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E AÍ DOUTORA EU VOU MELHORAR?

Em raras situações me senti tão constrangida diante daquele senhor com essa pergunta
que além de essencial a ele era simples para que eu pudesse responder... Senti minha
impotência e insignificância como se uma mão estrangulasse minha garganta e minhas
cordas vocais não existissem, além do minuto que me pareceu eterno minha resposta se
recostou na crença que chamamos desde os primórdios da filosofia como "o ópio do
povo".

Era uma manhã de trabalho como outra qualquer, em um serviço de ultrassonografia


que embora não fosse público, atendia pacientes de baixa renda. Dentre esses pacientes
a solicitação de um exame abdominal de um hospital de oncologia. Como sempre minha
mente se concentra para encontrar as imagens mais bizarras, de difícil descrição, que
geralmente não há assistente que acompanha os seus ditados, que no íntimo você tenta
expressar em palavras o que não é expresso nem nas imagens, e o trabalho exige que
isso seja retratado ao seu colega de profissão e pior poderá lhe indicar uma decisão a
tomar, uma obrigação a ação. Obviamente, como sempre faço, priorizei o paciente e
solicitei que entrasse na sala. O senhor chegou à sala acompanhado de sua filha, ela se
apresentou explicando que o pai estava com uma sonda para alimentar, e com
humildade solicitava a permanecer na sala. Até esse momento estava olhando para o
aparelho e identificando o exame, quando me viro e a imagem que com dificuldade
sentava na cama me passou uma expressão de fim. Ele com a ajuda da filha e da
assistente conseguiu se deitar e observei que seus olhos não tinham essa expressão, ao
contrário, eram vivos e esperançosos, e lhe perguntei como estava, sua resposta foi
pronta, embora com dificuldade de dicção devido a dificuldade respiratória e a
impossibilidade de deglutir a própria saliva, o que o fazia solicitar uma toalha para
cuspir a todo momento, que a única coisa que o estava incomodando era a sonda. Dirigi
meu olhar para o local da sonda duodenal que estava coberta com gazes e exalava um
cheiro adocicado e pútrido. A filha se desculpou ao pai que havia esquecido no carro o
material para o curativo. Nesse momento, calcei luvas e levantei as gazes que cobriam
um ferimento extenso que comprometia metade de seu abdômen, cuja pele não existia
ficando exposto uma ampla ferida onde tinha em seu centro uma sonda coberta por
material purulento, após limpar a área iniciei o exame procurando conversar com aquele
senhor, que com dificuldade, mas alegria respondia as minhas perguntas. Sim estava em
tratamento para câncer de esôfago, mas iria começar quimioterapia, haviam lhe dito que
era um tratamento difícil, mas ele não se importava, já havia passado por muitas
dificuldades na vida, e aquela seria somente mais uma. Durante sua fala a toalha
praticamente não saia de seu rosto. Disse-me que não entendia como "havia se
arruinado assim", pois afinal nunca precisou procurar médico, sempre teve uma saúde
de ferro e trabalhava no norte de Minas, estava nessa cidade somente para o tratamento,
mas tinha certeza que iria voltar rápido, pois tinha muito que fazer. No momento, havia
perdido muito peso, mas com certeza iria recuperar assim que o tratamento fizesse
efeito e voltasse a comer.

Enquanto ouvia procurava imagens dentro daquele abdômen que não me oferecia
nenhuma resistência a visualização, pois os ecos passavam sem qualquer dificuldade
pela fina camada muscular, sem nenhum tecido adiposo. Procurei alcançar as imagens
sem agredir as áreas já tão comprometidas e em seu rim esquerdo a presença do que eu
inconscientemente já sabia que iria encontrar, a imagem bizarra de difícil descrição em
seu pólo inferior.

Refiz o curativo, olhei para o senhor evitando seu olhar que se voltava para mim como
uma faísca de interrogação e que eu não conseguia ampará-los. Desejei sair da sala sem
emitir um som qualquer e agradeci aos deuses não ter que assumir o compromisso de
estar com aquele ser de olhar vívido e belo no pouco tempo que lhe restava.

Ele não se apiedou de mim, acredito que pensam que os médicos são seres especiais,
desprovidos de sentimentos e com capacidade de reverter situações, insistiu com a
pergunta: e aí doutora vou melhorar? Lembrei dos filósofos, do ópio e novamente
agradeci a presença desse ópio que apoiava esse senhor e me permitiu dizer a ele que
claro, afinal ele não estava fazendo a sua parte, com certeza a outra parte seria feita
também.

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