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A importancia dos Giduoto Mazgues Magris Nocuetea! Mana oe Farts Ansatont Fonres? Introducgao Na pesquisa sociolégica consagrada a educacdo, a problema- ‘ica das desigualdades educacionais tem ocupado, desde o ini cio da década de 50, uma posicao central. Inimeras investiga- ‘96es, realizadas em diferentes paises, demonstram a relacdo entre ‘origem social e participagao no sistema escolar. Em seu conjun- to, essas investigacées evidenciam a influéncia das varidveis socioeconémicas e socioculturais nos processos de escolarizagao ‘ou, mais precisamente, na constituigéo de percursos escolares caracterizados pelo sucesso ou pelo fracasso. Até 0 inicio dos anos oitenta, as investigagOes acerca das desi- gualdades educacionais caracterizavam-se, predominantemen- te, por seu cardter macrossociolégico. Buscava-se estabelecer correlagdes amplas entre as categorias socioeconémicas & 0 desempenho escolar dos sujeitos a elas pertencentes. Se, por um lado, essas analises contribuiram para a identificagao de al- ‘gumas variaveis-chave relacionadas ao desempenho escolar, por estudos sobre trajetérias escolares na Sociologia da Educagao contemporanea 1, Professor oa actaoe oe Eiueaan a UMS © Crago om Eaes0 raven 2, rts oa Fou eae Gres Fumamc 2 Unies PUNE, (0 Crs de Pedopeis do caer Etcain UNG PAIDETA 56s outro elas deixaram de elucidar a ago individual dos sujeitos 08 processos internos as familias, através dos quais projetos estratégias so elaborados e implementados. Nas uiltimas décadas, uma mudanga significativa reorientou Sociologia da Educagao, deslocando 0 foco de atengao da macro-estruturas para a analise, justamente, das acées e do processos microssociolégicos relacionados com a vida escolai Dentro dessa nova perspectiva, os individuos deixam de ser con siderados meros executores de processos macroestruturais qu 0s transcendem e passam a ser vistos como agentes efetivos « diferenciados que influem diretamente na definigao de seus des tinos socials, inclusive escolares. As diferengas entre percurso: escolares de individuos de um mesmo grupo social passam, en tdo, a ser cada vez mais estudadas. Deixa de ser suficiente apon tar a relagéo entre origem social e destino escolar. Busca-se en 140 compreender como essa relacao 6 construida ao longo da trajetorias escolares. A nog¢ao de trajetoria escolar A nogao de trajet6ria escolar nao € definida de modo univoce no Ambito da Sociologia da Educacao (QUEIROZ, 1993). E pos sivel, no entanto, compreender o significado dessa nogao con siderando-se 0 uso que se faz do termo trajetéria em outras are as do conhecimento e mesmo no senso comum. A nogao di trajetéria é utilizada em geometria, meteorologia e astronautic significando, basicamente, a linha ou 0 caminho percortido po um objeto mével determinado - respactivamente um ponto, de finido em termos geométricos, uma massa de ar ou um missil Da mesma forma, na linguagem cotidiana, o termo trajetoria utilizado, fundamentalmente, no sentido de caminho, perours« ou trajeto, Sinteticamente, qualquer trajetéria supde um ponto ou objeto _que se move e um espaco em relacdo ao qual ocorre o desloca- ‘mento, Partindo-se desses dois elementos basicos, é possivel “caracterizar qualquer trajetéria em fungao da direcdo, distancia rida e velocidade alcangada pelo ponto ou objeto mével ‘0 espaco considerado. Quando se fala de trajetorias escolares, ‘© “ponto” em questéo 0 aluno e 0 espago de referéncia é 0 sistema de ensino. Trata-se, entéo, em primeiro lugar, de se ca- terizar a diregao tomada, a distancia percorrida e o tempo gasto diferentes alunos para a realizado de seus percursos esco- dentro dos sistemas de ensino. Os sistemas de ensino podem ser caracterizados como uma 1i6ncia de niveis diferenciados, hierarquizados do ponto de fsta da raridade do conhecimento que oferecem e do valor so dos titulos que conferem. Cada um dos niveis do sisterna se Ibdivide em conjuntos de ramos, cursos e instituigdes de ensi- igualmente diferenciados e hierarquizados. Os niveis mais do sistema de ensino, nos quais é oferecida uma educa- basica, s4o normaimente menos diferenciados intermamen- . Os niveis subseqUentes tendem a apresentar um grau cada maior de ramificagées internas. Esses ramos do sistema de ensino, aiém de distintos do ponto de vista da natureza da educagao oferecida em cada um deles, \contram-se, de Modo geral, hierarquizados em termos do grau de prestigio imediate que conferem aos alunos que os seguem e retoro social e econémico que tendem a propiciar a esses ‘mesmos alunos. E possivel falar ainda, dentro de um mesmo ramo do sistema de ensino, de diferengas e hierarquias mais sutis que distinguem e classificam os varios cursos e as diversas institui- ‘es de ensino. ‘A nogao de trajetéria escolar diz respeito, entao, aos percur- ‘308 diferenciados que os individuos ou grupos de individuos rea- Jizam no interior dos sistemas de ensino. Esses percursos po- A importincia dos estudos sobre trajetérias escolares na Sociologia da Educagio contemporinea PAIDEIA 60 dem ser caracterizados, em teimos absolutes au relativos, coma mais ou menos bem-sucedidos. Em termos absolutos, ¢ possivel falar de um sucesso maior ou menor em funcdo da disténcia que ‘© sujeito percorre no sistema de ensino, da natureza mais ou menos prestigiada dos ramos de ensino seguidos por ele e da velocidade com que ele realiza seu percurso. Nesses termos, 0s casos de maior sucesso séo definides como aqueles em que 08 sujeitos alcangam os ramos superiores mais prestigiados do sistema de ensino no menor prazo possi- vel. Em comparagao com esses casos extremos, outras trajetd- rias S40 caracterizadas como de menor sucesso, ou mesmo de insucesso. Outra possibilidade de analise implica definir 0 sucesso maior ou menor das trajetérias escolares individuais em relagdo ao que seria estatisticaiente provavel para sujeitos de determinada cate- goria social. Assim, os individuos que alcancassem desempenho compativel ou superior ao esperado de alunos com sua origem social seriam considerados bem-sucedidos, e ocorreria o inverso nos casos de desempenho inferior ao estatisticamente mais pro- vavel. Essa avaliagao das trajetérias em termos relativos, ou seja, em relagao a posigao do sujeito na estrutura social, torna o concel 10 de sucesso escolar muita mais camplexo. Passa a ser possivel, por exemplo, descrever como relativamen- te malsucedida a trajetéria de um estudante que conclui um curso superior numa area do conhecimento e numa faculdade pouco prestigiadas quando seus pais 580 académicos altamente renomados de areas prestigiadas do conhecimento ¢ formados em alguma grande universidade. A trajetéria desse mesmo estu- dante poderia ser deserita como muito bem-sucedida se ele fosse filho de camponeses analfabetos. Essa defini¢do mais sutil do su- cesso escolar tem se tornado mais usual nos tiltimos anos. De modo geral, no entanto, como observa Queiroz (1993), a nogao de trajetéria escolar nao @ nova. Na verdade, ela esta e A importincia dos esudes sobre trajetriasescolares na Sociologia da Béucagdo contempordnea empre esteve presente em todos os estudos que buscam anali- ar, numa perspectiva diacrénica, a relacdo entre origem social e articipagao no sistema escolar. Em cada momento da historia la Sociologia da Educagéo, no entanto, a nogéo foi utilizada de orma diferente. No perfodo que vai das primeiras pesquisas do Ined (Institut ational d'Etudes Démographiques) ao final dos anos 70, a no- do de trajet6ria estava associada as pesquisas longitudinais de yrande escala, que acompanhavam um conjunto consideravel fe alunos ao longo do seu percurso escolar. O objetivo mais ou nenos explicito dessas pesquisas era o de evidenciar as desi- Jualdades de oportunidades presentes no sistema escolar. O segundo periodo, que corresponde aproximadamente a dé- ada de 80, 6 marcado pelo surgimento de estudos feliberadamente mais circunscritos, que selecionam um grupo ie trabalhadores ou uma regido geogréfica espectiicae estudam ninuciosamente as trajetorias escolares ai presentes. Queiroz cita, sspecialmente, Berthelot e Terrail. Passa-se, nesse segundo mo- nento, a dar maior atengao ao trabalho dos proprios sujeitos na onstrucdo de suas trajetérias escolares. O terceiro periodo, de certa forma, radicaliza as caracteristicas Jo segundo. Os grandes estudos estatisticos e as preocupagées nacrossociologicas com a questo das desigualdades séo subs- ituldos por pesquisas microssociolégicas voltadas para a com- sreensao de biografias escolares. Em termos tebricos, o grande Jesaiio passa a ser a construgao de um modelo analitico que va 6m da dimenséo da reproducao da estrutura social pelo siste- na de ensino @ explique simultaneamente os casos em que 0 ucesso ou 0 fracasso ocorrem apesar de serem, do ponto de ista da teoria da reprodugao, improvaveis.* De acordo com a periodizagao proposta por Queiroz, parece ier possivel falar de uma tendéncia a conceber a nocao de traje- 6ria escolar cada vez mais como algo que descreve 0 percurso S.Ct Laurens, 1982, ¢ Vira, 1008 61 PAIDEIA 62 escolar de um sujeito social concreto. As andlises construidas em termos de correlacées estatisticas cumpriram seu papel ao demonstrar exaustivamente o vinculo entre origem social e traje- teria escolar. Essas andlises deixaram sem explicacao, no entan- to, uma série de casos concretos nos quais ¢ sucesso ou 0 fra- casso ocorriam a despeito do que teoricamente seria o mais pro- vavel. Em relagdo aos casos em que a reprodugao ocorria conforme © que era previsto estatisticamente, permaneciam, de qualquer forma, sem explicagao os mecanismos microssociolégicos res- ponsdveis por essa reprodugéio. O segundo e terceiro periodo delimitados por Queiroz parecem orientados pela necessidade de superar essas limitagdes da analise puramente estatistica. A questao no segundo e, sobretudo, no terceiro momento passa a ser a de entender como, concretamente, os sujeitos lidam com ‘maltiplas influéncias sociais e constroem trajet6rias escolares di- ferenciadas. Nao basta demonstrar que na maioria absoluta dos casos 0 sistema de ensino reproduz as desigualdades do siste- ma social. E preciso entender como ele faz isso e por que ndo 0 faz em todos os casos. Perspectivas tedricas para 0 estudo de trajetérias Com 0 objetivo de entender a acao dos sujeitos perante as miltiplas influéncias sociais no sentido de construir trajetérias escolares diferenciadas, investigagdes tém sido realizadas a par- tir da década de 80. $40, em geral, pesquisas que contemplam casos atipicos de trajetérias escolares, em que o sucesso ocorre apesar de ser, do ponto de vista estatistico, improvavel. Jean Paul Laurens denomina esses casos atipicos como excegdes sociolé- , | A importancia dos estudes sobre trajetorias escolares na Sociologia da Educagdo contemporinea . Para 0 autor, a investigacdo desses “fendmenos marginais” ¢ de uma importancia fundamental. Conforrne afirma: *... a observagao atenta de um fendmeno pode desembocar em das situagées em todo caso positivas: seja por dare um lugar ‘no modelo teérico dominante, lugar que ele nao tinha encontrado ainda pela falta de dados detalhados, seja por mostrar a inadequagdo do modelo teérico, colocando em evidéncia meca- rismos socials até entao desconhecidos, 0 que implica um novo modelo e participa, assim, da renovagao da abordagem conceitual Nesses dois casos a sociologia tem a ganhar, pouco a perder” (LAURENS, 1992, p. 16) Bernard Lahire (1997) se refere as improbabilidades estatisti- ‘cas como verdadeiro mistério a elucidar. Segundo esse autor, considerando o conjunto de trunfos ou de recursos que certas ilias tém a sua disposigéo, & um desafio para a Sociologia ‘explicar por que familias muito mais bem dotadas que outras, retuclo em capital escolar, tém os filhos em grandes dificulda- ‘des escolares, ao mesmo tempo em que outras familias, diante todas as caracteristicas objetivas que permitem pensar que a ‘escolaridade dos filhos pode ser dificil, os t8m em boa situacéo ‘escolar. No que diz respeito ao estudo de trajetérias, duas perspecti- -vas te6ricas podem ser destacadas: a genealégica, que se retere 4 histéria da linhagem familiar e dos projetos elaborados pela familia; ¢ a individuagao, na qual se considera o individuo como ser formado no ambito social e que é, ao mesmo tempo, dotado de uma subjetividade. . A perspectiva genealégica Em estudo realizado na Franga, no periodo compreendido ‘entre 1986 e 1987, Jean Paul Laurens, professor da Universida- de de Toulouse — Le Mirail, Franga, analisou trajetérias excepci- ‘onais de filhos de operatios, alunos ¢ ex-alunos de 13 escolas de engenharia da regio de Midi - Pyrennés. © titulo de seu 63 PAIDEIA 64 trabalho, “1 sur 500 - La reussite scolaire en milieu populaire", é explicado pelo autor pela constatacao de que dentre 376 mil filhos de operarios que nasciam na Franga a cada ano, no inicio dos anos 60, apenas 700, aproximadamente, diplomavam-se en- genheiros, n0 final dos anos 80. Utiizando-se de uma abordagem quantitativa e qualitativa, 0 autor analisou 0 “como” se processa 0 sucesso escolar desses filhos de operérios e 0 “porqué” sociolégico dessas trajetorias sociais e escolares atipicas. Na parte quantitativa de seu traba- Iho, foram utilizados questionarios, a partir dos quais foram reconstituldas 167 trajet6rias. A anélise estatistica desses dados permitiu ao autor identificar trés tipos de trajetéria escolar que quardam estreita ligacéo com trés tipos de praticas educativas familiares. Na parte qualitativa foram analisados 31 relatos genealdgicos, através dos quais Laurens caracterizou aspectos mais espectficos da ascendéncia familiar de cada sujeito da pes- quisa e do seu provesso de escolarizacdo. Os trés grupos de familias operdrias caracterizadas pelo autor, através de um tratamento de correlagées estatisticas, foram de- nominados de “laboriosos”, “ambiciosos” e “sortudos”. No grupo dos “laboriosos”, que representa 42% da popula- go estudada, o pai e a mae s40 envolvidos no trabalho escolar, © pai supervisiona esse trabalho e é bem informado sobre as diregdes possiveis de se seguir no sistema de ensino. A mae é disponivel para orientar o filho e possui informagdes sobre o funcionamento do sistema escolar. Nas familias desse grupo. em geral, 0 plano de uma escolarizagdo de nivel superior 6 ela- borado tardiamente. © grupo dos “ambiciosos” tem como projeto para os filhos os ramos mais nobres do ensino superior. Um niimero significativo de mées desse grupo trabalha no setor puiblico e tem uma traje- t6ria de ascensao profissional nao operaria. Nas familias desse grupo, que representam 35% entre as investigadas, a mae se ‘A importancia dos extudos sobre tajetrias escolar na Sociologia da Educagao contempordinea dedica ao trabalho de orientagao e acompanhamento escolar do ‘filo, 0 pai nao tem papel de destaque nas tarefas escolares coti- | ‘dianas, mas estimula o prosseguimento dos estudos nos momen- j ‘tos decisivos. Finalmente, 0 grupo dos “sortudos” se caracteriza por delegar ‘a outros as praticas educativas de sucesso, uma vez que as fami- | jas que 0 compéem desconhecem o funcionamento da escola : “secundaria e superior. Elas representam 21% das familias opera- tias da pesquisa e possuem uma caracteristica classica do com- | “portamento operdirio que é a de buscar, antes de mais nada, as- segurar a sobrevivéncia profissional. Nesse sentido, a “escolarizagao de nivel superior nao se apresentou como possibi- ‘fidade sempre presente nos planos familiares. Cruzando os dads estatisticos, coletados a partir das 167 ‘trajetérias com a abordagem qualitativa, realizada através dos 31 relatos genealdgicos e biograficos, Laurens identificou al- _guns fatores super-representados na populagao estudada que denominou de “fatores de sucesso”: avés nao operarios; pais _com trajetérias ascendentes, qualficacdo profissional e estal lidade no emprego; mae ativa e funciondria do setor puiblico; _pais com instrug4o superior a da média dos operarios france- ( Ses; familias operatias restritas (em relagao ao numero de f- thos); ativismo politico (de esquerda) e religioso (catélico) dos pais; pais imigrantes (italianos e espanhéis); e oportunidades exteriores (0 estimulo do cura de uma paréquia, as boas rela- Ges dos pais com professores e a influéncia positiva de tios & tias, entre outras). Prosseguindo a andlise em meios operarios, Laurens identi cou outros fatores condicionantes do sucesso escolar que de- nominou de “estruturantes e desencadeadores de sucesso”. SAo eles: 1 — pai primogénito que nao péde prosseguir os estudos; 2 ~ processo de contramobilizagéo social, que se refere a um investimento dos pais direcionado a recuperar uma situagao 65 PAIDETA 66 social favordvel dos avés e que foi perdida por raz6es diversas; 3. acidente demogratico, que representa situagées de pais que no puderam ter outros filhos e que concentraram seus investi- mentos no filho Unico; 4 ~ a imigragao, que segundo a pesquisa {oi forgada sobretudo pela guerra civil espanhola e que, no ge- ral, constituiu uma ruptura com a comunidade de origem e favo- receu a abertura da familia ao mundo exterior @ a novos proje- tos; e 5 — a frustragao escolar, sentimento experimentado por pais que foram forgados a interromper estudos que poderiam conduzi-los a uma ascenséo social. Laurens destaca que os fatores estruturantes desempenham um papel catalisador essencial no proceso. Sao eles que permi- tem as familias utilizar os fatores de sucesso em prol de uma escolarizagéo prolongada para os filhos. O autor conclui que 0 sucesso escolar em meios populares esta indissociavelmente li- gado a um projeto familiar estruturante, capaz de orientar e unir agées de toda uma linhagem. Segundo Laurens (1992, p. 239): “sem um projeto intencional, nao ha sucesso, qualquer que Seja a situagdo familiar. O sucesso ndo ¢ jamais evidenciado como uma fatalidade ditosa, assim como ele nao 6 jamais imposto con- tra.0 agrado dos atores”. trabalho de Laurens tem uma importancia indiscutivel por inlroduzir no estudo das trajet6rias a perspectiva genealdgica (a linhagem familiar). Ele propde a abordagem das situagées atipicas de sucesso escolar em termos de uma sécio-genealogia ~ a his ‘6ria da linhagem familiar e dos projetos por ela elaborados. Na concepedo do autor, a trajetéria de um ator social sé tem sentido se relacionada ao préximo, ao seu meio, a de sua geragao e sua tegido, mas também e, antes de tudo, por referéncia, a de seu préprio pai, a de sua mae, a de seus avés e ao contexto familiar préximo e imediato. O sucesso e 0 projeto que o sustentou nao tém significado se ndo forem relacionados a uma trajet6ria social passada, & histéria da linhagem familiar. A individuacgao Outro estudo, realizado na década de 80, que contempla traj torias escolares, 6 0 de Jean-Pierre Terrail (1990). Ele pesquisou © “éxito escolar” de intelectuais, estudantes universitérios e pro- fissionais franceses de origem operaria, que tiveram acesso a universidade nos Ultimos 20 anos. Sao 23 os sujeitos de sua pes- quisa, entre os quais se incluem: professores de Filosofia e Mate- matica, estudantes de Geogratia, de Ciéncias Econémicas e So- ciologia, engenheiro de pradugao, economista, jornalista, mé 0, psicdlogo, administrador, sociélogo, professor de formagéo continuada e bidfogo, entre outros. Utilizando-se de uma abor- dagem quaittativa, através de narrativas biograficas, 0 autor pro- ‘curou compreender o processo de transformacao de filhos de ‘operdrios em intelectuais, os quais denominou transfugos. Terrail identificou e caracterizou trés grupos de familias, consi- derando as formas de investimento num projeto de escolarizacao prolongada ¢ os significados atribuidos ao sucesso escolar dos filhos. No grupo de familias A, a geracao precedente detinha um patriménio produtivo, Sao familias que se isolam em si mesmas @ exercem vigilancia sobre o trabalho escolar dos filhos. Caracte- rizadas por forte integragao religiosa, essas familias mobilizaram secursos materiais a servico da desproletizacao familiar. O grupo de familias B é caracterizado por uma “apropriagao do mundo”, que envolve o interesse pela vida associativa, cultu- ral e politica. Nessas familias existem praticas de investimento ‘escolar tais como acompanhamento e orientacdo da vida esco- lar do fifho e contatos com os professores. Um ou ambos os pro- genitores das familias desse grupo quarda uma frustrago esco- lar por ter interrompido os estudos. A sociabilidade, a relativa diversidade de suas relagdes de amizade e a tancia ampliam 05 horizontes dos filhos e suas oportunidades. Nas familias do grupo C 0 sentido da escola se relaciona com A importancia dos estudos sobre traetoriasexcolares na Sociolagia da Educagdo contemperinca PAIDEIA 6s a aquisigao de um oficio, 0 acesso a uma qualificacao profissio- nal e um emprego estavel. As trajetérias escolares bem-sucedi- das ocorrem apenas para um dos filhos dessas familias ¢ nao so resultado de um projeto familiar, uma vez que nesse projeto trabalho ocupa lugar de destaque. Assim, o prolongamente das estudos se realiza sem a adesao dos pais, que, nao raro, de- monstram reticéncia ou franca oposicao diante do sucesso esco- lar dos filhos. Terrail analisou os diferentes tipos de relagao dos pais com a trajetéria escolar dos filhos e os investimentos dos filnos na sua prépria escolarizagdo. Nessa andlise alguns aspectos podem ser destacados. O primeiro deles diz respeito & autodeterminagao dos filhos. De acordo com o autor, mesma quando existe mobilizac4o familiar intensa, 0 sucesso escolar nos meios operé- rios requer que o desejo dos pais seja interiorizado pelo filho. A mobilizagae dos filhos tem origem na escola primaria e & fundamental para o enfrentamento das dificuldades que surgem no decorier da trajetéria escolar. A disposigao se enraiza nas re- lagées familiares e com 0 nascimento de uma consciéncia das injustigas sociais. O sucesso escolar passa ser visto, em alguns casos, como forma de revanche. Um segundo aspecto ressaltado pelo autor refere-se as prati- cas escolares ¢ as estratégias de sobrevivéncia no universo es- colar, A escola, segundo Terrail, separa as classes e reforga as diferencas, transtormando-as em desigualdade. Neste sentido, situar-se do ponto de vista da escola, adotande comportamentos € posturas que nao destoem dos esperados neste ambiente, 6 condigao fundamental para obter sucesso. processo de adequagao do aluno dos meios operérios a 16- gica escolar é caracterizado pela repressao e desconstrugao cul tural, perante o qual as respostas dos alunos sao variadas, inda desde a dissimulagdo, a negacdo e a desvalorizagao de sua ori- gem social até a vergonha dessa origem, da aparéncia e profis- A importancia dos estos sobre trajetirias ecolares na Sociologia da Educagdo contempordnea ‘s40 dos pais, E um momento de ruptura para alguns e de conti- nuidade transformadora para outros, na medida em que a escola possibilita uma mudanga na compreenséo do mundo, através dos contetidos que ela ensina. Assim torna-se possivel para alguns reconhecer nas diferencas vivenciadas na escola uma “razao de classe, € ndo uma deficiéncia pessoal”. Terrail destaca ainda que, na universidade, 0 percurso escolar dos filhos de operarios, de maneira geral, 6 feito com interrup- 6es, devido as dificuldades financeiras e culturais. Existe tam- bem, por parte desses alunos, fraca capacidade de utilizar as possibilidades oferecidas nas instituigbes, entre as quais as bol- sas de estudo. © autor propée a perspectiva da individuacdo nas investiga- g6es sociolégicas. Nesta perspectiva 0 individuo 6 percebido ‘como ser social, que se constitui como membro de um grupo social e que, assim, tem sua personalidade formada na presenga do social e, ao mesmo tempo, 6 dotado de uma subjetividade singular. Tal perspectiva de andlise supée considerar nas trajet6- rias os processos de aptopriagdo das condigées de existéncia, no que se constituem e se exercem as capacidades e a subjetivi- dade dos individuos, tratando-se tanto de sua capacidade de gerit ‘seu destino pessoal como de sua percepeao em relagao & sua capacidade. Estudo de trajetorias: alguns princfpios de andlise e estruturagdo das pesquisas Embora as investigag6es de Terrail e Laurens apresentem pers- Pectivas diferenciadas de andlise de trajetorias, a genealogia ea individuagao, ambos adotam procedimentos semelhantes na anélise dos dados e na estruturagao de suas pesquisas. Um dos procedimentos comuns aos dois socidlogos é o agru- pamento de familias segundo critérios de afinidades, conside- 69 PAIDEIA rando a natureza das trajet6rias percorridas, o perfil sociocultural das familias e as relagées e praticas familiares. Outra semelhan- anos trabalhos dos dois autores 6 a contextualizacao dos seus estudos, seja na teoria sociolégica, seja nas esferas econémicas e politicas. Laurens 0 faz na introdugao e no primeiro capitulo do seu trabalho, intitulados, respectivamente, “O excepcional e a re- gra” e “Para situar 0 excepcional”, nos quais discute, entre ou- tras questdes, 0 processo de democratizagao de ensino na Fran- cae sua relagao com os filhos de operarios. Ao analisar essa suposta democratizagao, quando se trata das classes operdii- as, recorre & afirmativa de Bourdieu: "O direito 4 educagao 6 sem divida um dos mais dificeis de se contestar na teoria, mas um dos mais dificeis também de se estabelecer de fato”(LAURENS, 1992, p. 11) Terrail dedica a parte inicial do seu trabalho, desde a introdu- go até 0 sexto capitulo, a tratar da histéria, da cultura, da organi- zaga0 da identidade operdrias e da classica oposigao metodolégica presente nas Ciéncias Sociais, que contrapée a abordagem individualista, que confere primazia as ages duais, a abordagem “holistica", que, conforme o autor, “recusa a redutibilidade da realidade social & agregagao de condutas indi- viduais" (TERRAIL, 1990, p. 13). Nesses capitulos iniciais de seu trabalho, Terrail inclui ainda uma discussao a respeito da nogéo de individuagao, afirmando que: “Os individuos nao tém duas espécies de histbrias diferentes, mas uma Ginica e mesma historia de onde procedem, inseparavelmente, sua dimensao social e a sua singularidade.[...] E essa historia, na medida em que ela produz, de uma s6 vez, © pertencimento e a diferenca, que eu quaificarel de proceso de individuagao” (TERRAIL, 1990, p. *3). Outro aspecto comum nos estudos de Laurens e Terrail 6 a identificagdo de fatores causais no processo de produgao do su- cesso escolar. Essa tendéncia é criticada por Lahire: 70 A importincia dos estudos sobre trajetérias escolares na Sociologia da Educagio contempordnea "4. 8@ Considerarmos a literatura sociolégica sobre os casos de ‘sucessos’ escolares e/0u sociais nos meios populares, encon- traremos uma variedade de hipéteses todas interessantes, umas mais que outras, mas todas também reducionistas, umas mais ‘que outras. As vezes € 0 ‘projeto escolar’, o superinvestimento ‘escolar [...] Por vezes & 0 aspecto militante da familias que & superconsiderado”... (LAHIRE, 1994, p. 77). Contrapondo-se a identificagao de fatores isolados para expli- car 0 sucesso escolar estatisticamente improvavel, o autor busca ‘na sua investigagao* analisar 0 modo como se articulam dentro de cada configuragéo familiar especitica certos elementos (rela- cionados com as formas familiares da cultura escrita, com as condigées € disposicdes econémicas, com a ordem moral do- 4, resisasetzasn oa méstica, com 0s modos familiares de investimento pedagdgicoe ftewa Suir imves. ‘com as formas de autoridade familiar) apontados pela andlise fasarr suscbes ve. ‘sociolégica como condicionantes do sucesso ou do fracasso ffir ts esr ‘escolar. A importancia de cada um desses elementos paraade- "*"" ‘nigéo de uma trajetéria mais ou menos bem-sucedida nao po- deria ser determinada de modo universal e abstrato, mas, ao con- srario, dependeria do conhecimento das caracteristicas particu- lares de cada familia. Um mesmo atributo sociolégico pode desempenhar um pa- pel mais ou menos importante e mais ou menos positivo do ponto de vista das trajetérias escolares, dependendo do modo como ele se relaciona com os demais atributos de determinada fam- liae, sobretudo, de acordo com o modo como essa familia cons- {tdi internamente suas relagdes interpessoais. Uma vigiléncia pedagégica rigida por parte dos pais sobre a vida escolar dos tithos, por exemplo, conduziré a resultados escolares mais ou menos positivos, dependendo do lugar que ela ocupa na vida familiar. Essa vigilancia é vivida como cobranga ou julgamento pater- ‘no, ou como manifestaco de interesse, de companheirismo, de afeto? Ela 6 manifestagao de confianga no potencial intelectual Wm PAIDEIA 72 dos filhos ou de receio quanto ao seu futuro escolar? © conheci- mento é valorizado em si mesmo ou apenas como recurso a ser utiizado estrategicamente para uma boa performance escolar e, futuramente, profissional? Como o trabalho de acompanhamen- to da vida escolar 6 dividido cotidianamente entre o pai, a mae, 08 irmaos ¢ os demais parentes? Na perspectiva de Lahire, & preciso responder a esse tipo de questo para se compreender de modo mais preciso a forma como cada familia influencia a vida escolar de seus filhos. A traje- t6ria escolar de cada crianga nao seria resultado direto das ca- racteristicas objetivas ou dos recursos materiais e culturais pos- suidos por cada familia. Seria necessério compreender 0 uso que cada familia, de acordo com sua dinamica interna e seus lagos pessoais € afetivos, faz desses atributos e desses reousos. Concluindo, cabe destacar que 0 estudo de trajet6rias escola- res constitui um campo fértil de andlise dos processos escolares @ tem contribuido para elucidar questées referentes aos casos estatisticamente improvaveis, as estratégias de escolarizagao postas em pratica por diferentes grupos sociais € aos processos @ mecanismos através dos quais se processam a excluséo e a seletividade do sistema escolar. No Brasil, os estudos acerca de trajetérias escolares vém se ampliando na tiltima década. As investigagdes de Nogueira (1998), Romanelli (2000), Viana (1998) e Zago (2000), dentre outras, tm contribuido para a compreensao de uma relagao complexa e ain- da pouco privilegiada nas pesquisas brasileiras, a relagao fami- lia-escola. IEIDA, Ana Maria F, NOGUEIRA, Maria Alice. A escolarizagdo das altos: um ia internacional da pesquisa. Petropolis: Vozes, 2002. QUADIEU, Pierre, A miséria do mundo. Petrépolis: Vozes, 1998. 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Palavras-chave: Trajetbria escolar, desempenho escolar, classes operdrias, individuagéo, genealogia. THE IMPORTANCE OF STUDIES ABOUT SCHOOL PATHS FOR MODERN EDUCATION SOCIOLOGY In this article we discuss the notion of schoo! path and present, through investigations by Laurens and Terrail, some theoretical perspectives developed by Modern Education Sociology for the study of paths. Key words: School path; Student performance; Bottom tiers; Individualization; Genealogy. LIMPORTANCE DES ETUDES DES TRAJECTOIRES SCOLAIRES DANS LA SOCIOLOGIE DE LEDUCATION CONTEMPORAINE Dans cet article on discute la notion de trajectoire scolaire ot on présente, via les recherches de Laurens et Terrail, certaines Perspectives thécriques développées par la Sociologie de Education contemporaine en vue de l'étude des trajectoires. Mots-clés: Trajectoiro scolaire; performance scolaire; classe opératoire; individuation; généalogie.

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