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LUCIEN FEBVRE E HENRI-JEAN MARTIN O APARECIMENTO DO LIVRO Traducao de Fulvia M. L. Moretto Guacira Marcondes Machasto EDITORA HUCITEC Introducao* No inicio desta obra, consagrada ao aparecimento ¢ ao desenvolvimento do livro impresso, pareceu necesséirio lem- brar brevemente 0 que foi, no mundo ocidental, o livro ma- nuscrito que, durante tantos séculos, foi o tinico instrumento de difuso do pensamento escrito. Nao ¢ possivel narrar aqui a histéria do livro manuscrito e de sua apresentacao, pois, para isso, seria necessario pelo menos um volume comple- to, Nosso propésito ¢ apenas o de mostrar, em algumas pé- ginas, de que maneira, desde a metade do século XIII mais ‘ou menos até o final do século XV, a producao do livro ‘manuscrito organizou-se no Ocidente, diante da crescente demanda, e indicar a que necessidades este se encarregava de responder quando o livro impresso veio substitui-lo. Desde ha muito tempo os historiadores acostumaram-se a dividir em dois grandes perfodos a evolugao do livro ma- nuscrito na Europa Ocidental. “Perfodo monédstico” e “pe- riodo leigo” so os termos consagrados ¢ familiares a to- dos os que se interessam pouco ou muito por esses proble- , Parece certo que a escolha desses qualificativos, * Tntrodugio do St. Marcel Thomas, conservador do Gabinete dos Manuscrtes de Bibliotca Nacional 2 ‘LUCIEN FEBVRE E HENRI-JEAN MARTIN: embora careram um pouco de preciso, é feliz e justa, pois exprime uma realidade indiscutivel. Ao longo dos sete sé- culos que decorreram desde a queda do Império Romano até o século XII, foram realmente os mosteiros e, acesso- riamente, 0 conjunto dos outros estabelecimentos eclesids- ticos que conservaram 0 monopélio quase integral da cul- tura livresca e da produeao do livro. Nao é menos certo, Por outro lado, que a partir do final do século XII inter- veio uma profunda modificacdo ¢ que as transformacdes intelectuais e sociais, traduzidas especialmente pela funda- so das universidades e pelo desenvolvimento da instrugao entre 0s leigos, ao mesmo tempo que sc formava uma nova classe burguesa, tiveram repercussdes profundas nas con- digdes em que os livros eram compostos, escritos, copia- dos e difundidos. Deixaremos totalmente de lado, nesta répida exposicao, 0 perfodo dito mondstico, estudado de maneira notdvel em obras recentes que constituem verdadeiras sumas do assun- to.!* Nossa intenglio € mostrar (na medida em que-os do- cumentos 0 permitem, pois muitos aspectos desses proble- mas esto ainda envolvidos por um certo mistério) como, a partir do século XIII, novas estruturas profissionais per- iram satisfazer, de uma forma ou de outra, as novas ne- cessidades, em livros, de uma quantidade sempre crescente de clientes. Apesar da impossibilidade em que nos encontramos ain- da hoje de redigir um repertério completo e preciso dos cen- tros de producdo de livros e de fornecer uma visio quanti- tativa dessa produg&o, numa época e numa regido determi- nadas, é contudo possivel ter uma idéia bastante exata das condig6es nas quais 0 livro era elaborado e difundido nos éculos XIII, XIV, XV. Nao temos, ‘encode re- sumir aqui, mesmo em suas grandes linhas, a evoluco ero- noldgica do livro manuscrito, mas apenas mostrar a que si- * As notas eacontram-se no final do volume, INTRODUGAO 2 tuagdo se chegara progressivamente quando os primeiros impressores vieram por ao servigo dos produtores de livros sua nova técnica de fabricacao. ‘Apenas no plano da técnica material e sem abordar o es- tudo da apresentagio e da decoragdo do livro, somente poder-se-iam mencionar, durante o perfodo “‘leigo” de sua hhistéria, infimas transformagdes em relaco aos séculos pre- cedentes. Uma inovacdo deve todavia ser mencionada, pois teve importantes repercussdes na fabricag&o ¢ nos pregos dos livros: queremos falar do aparecimento do papel que, evidentemente, ndo vai substituir o pergaminho, longe dis- introdu¢&o no merca- ros menos caros (embora a diferenca de prego no sio to considerdvel quanto se pensa as vezes) € produzidos em maior quantidade. Encontrar-se-d mais abaixo uma répida cronologia da conquista da Europa Ocidental pelo papel; ver-se-d, de ou- {0 lado, como o aparecimento do papel e 0 desenvolvimento da indistria papeleira permitiram o nascimento da imprensa. No que diz respeito ao manuscrito, a tinica vantagem do papel sobre o pergaminho era seu menor preco e a possibi- lidade que se tinha de produzir uma quantidade, em prin- cfpio, ilimitada. Mais frdgil, com a superficie mais rugosa (falamos aqui apenas de papéis medievais, é claro), com maior porosidade a ti suportava menos bem os pigmen- tos utilizados pelos iluminadores. Em compensagdo, pos- sufa a vantagem de ser mais leve — contudo menos do que se poderia crer, pois no século XII chegara-se a fabricar um pergaminho de finura e de maciez extremas, mais fino mesmo do que o papel da época. Um grande mimero de pe- quenas biblias latinas do século XIII, através de uma du- pla faganha do pergaminheiro e do copista, podem assim atingir dimensdes inferiores 4s dos dois volumes que ocu- a, por exemplo, a traducdo modema de Lemaistre de Sacy. Evidentemente, para decifrd-las é preciso ter olhos adestra- dos e penetrantes, mas essas biblias so incontestavelmen- te mais manejaveis e ocupam menos lugar do que as pri- meiras e célebres biblias impressas; é somente no século XVI que a imprensa produzira biblias portatcis. - LUCIEN FEBVRE E HENRI-JEAN MARTIN ‘Acabamos de dizer que a principal vantagem do papel residia em seu menor preco ¢, sobretu ‘em sua maior abun- previsas. Possuiamos, d aa mengdo do prego do pergaminho necessario par tadas as compras de pergaminho e de papel ‘usados nem sempre slo definidos de mai necessérias & c6pia de um eis, E surpreenden abater para obter as obras recentes ¢ mui INTRODUCAO 2 25 por 16 centimetros, ou seja, uma superficie de pergaminho de seis ‘metros quadrados, perfazendo no méximo umas 12 peles. “Mais ou menos na mesma época, as contas da Argenterie" indi- «cam para o pay jena forma’ (sem diivida de 50 por 30 centimetros mais ou me- sja um dinheiro e meio cada folha de 0,15 metro quadrado, © pergaminho, jé 0 dssemos, valia entZo no miximo de tidade bastante grande para suplantar o pergaminho. ‘Mas este ultimo teria sido abundante? Na Franga como na Ingla- terra seu prego permanecen sensivelmente constante da segunda me- tade do século XIV a segunda metade do: CV, enquanto a pro- duglo de livros aumentava muito e isso tenderia se tornara por esse razo uma mereedoria rara, tudar se © gado artendado, sobretudo ovino, ‘mesmo periodo, um crescimento importante. Em todo caso, sabernos diet séculos mais tarde, numa época em que o pergaminho $o- meats era usado par cits de aot jurdoye para vr onsurirarn portato 5.000 peles. Para os 100 exemplares papel teriam sido necessrias 15.000 peles suplemen- de horas de formato muito pequenc. ‘Como ao longo dos séculos anteriores os mosteiros con- tinuam sempre, mesmo durante 0 periodo dito leigo, a co- = Soma reservada anualmente para despesas da Casa Real (N-T.) 6 LUCIEN FEBVRE E HENRI-JEAN MARTIN piar os diversos manuscritos de que podem necessitar para seu uso pessoal. As regras das ordens monésticas previam sempre um certo mimero de horas de trabatho intelectual por dia — ¢ a cépia dos manuscritos representa uma parte importante desse trabalho. Os scriptoria, organizados se- jicionais,” produzem portanto sempre virgicos. Aliés, continuard ser assim até 0 dia em que a imprensa teré definitivamen- te relegado 0 manuscrito para o dominio do passado — pe- Jo menos, pois tanto por tradi¢ao quanto por necessidade s continuarao até muito tarde no século XVI a , antifondrios, brevidrios etc. Mas 0 trago do- minante do novo periodo que comeca com 0 inicio do sé- culo XIII é que os mosteiros no s&o mais os tinicos produ- tores de livros, e que quase sé os produzem para seu uso. s centros da vida intelectual deslocaram-se ¢ serd nas universidades que os eruditos, os professores ¢ 0s estudan- tes organizarao, como veremos, juntamente com artesdos especializados, um ativo comércio de livros. E evidente que poderd acontecer, por vezes (¢ isto mais na Inglaterra do que na Franca), que este ou aquele mos- teiro, em que as grandes tradigdes da caligrafia e da ilumi- nura tiverem particularmente sido bem conservadas, seja solicitado, por um soberano ou grandes senhores, a execu- tar para eles, manuscritos de luxo, cuja venda seré uma fonte suplementar de rendas para a abadia. O fato torna-se con- tudo cada vez mais raro. Na Inglaterra, 0 caso de Lydgate, monge de Bury, que compée e copia, até sua morte em 1446, textos em lingua inglesa para uso dos leigos aos quais os vende,$ permanece excepcional. A partir do inicio do século XIII ¢ mesmo a partir do final do século XI, 0 aparecimento ¢ 0 desenvolvimento das universidades fizeram surgir um novo piblico leitor — clérigos, é claro, em sua maioria, mas que no esto estrei- tamente ligados a outros estabelecimentos eclesidsticos a nao ser 4 alma mater, enquanto estiverem ligados a ela. Para preparar suas alas, os professores vio precisar de textos, de obras de referéncia, de comentarios. (Sabe-se a | INTRODUGAO n importancia que ocupa no ensino medieval a glosa, a dis- cusso, o comentario de um texto que tinha autoridade isso em todos os ramos do conhecimento). Era portanto i dispensavel que pudessem dispor comodamente desse ‘trumentos de trabalho —e, sidade organizasse uma Jos. Mas nem sempre era possivel nem facil comprar textos J4 copiados; impunha-se pois a criagdo de oficinas em que (8 arteséos pudessem copiar, a baixo prego eno menor tem- Po possivel, as obras indispenséveis. Isto absolutamente ndo exclui a utilizagdo de bibliotecas exteriores & Universidade, em que podiam encontrar-se obras, raras e contudo titeis. O empréstimo dos livros sempre foi uma institui¢&o em grande honra na Idade Média e os esta- belecimentos monésticos, os capitulos etc... sem duivida al- guma emprestaram muito freqiientemente obras de que ndo teriam accitado desfazer-se para sempre vendendo-as as no- vas bibliotecas universitérias. Apesar da importancia do ensino oral, os estudantes tam- bém precisavam de um mimero minimo de livros. Se po- diam tomar o que chamariamos “‘notas de aula” ¢ fiar-se em grande parte numa meméria que os métodos aprecia- dos na Idade Média haviam, sem diivida alguma, conside- rayelmente desenvolvido, nao deixavam de ter necessidade de um mimero minimo de obras de base. Se ndo tinham tem- po de copié-las pessoalmente e se fossem bastante ricos pa- ra fazé-l jam-se, para isso, a0s copistas profissionais que se multiplicaram ao redor das universidades. Pouco a pouco formou-se, assim, em cada centro uni- versitério, uma verdadeira corporacio de profissionais do livro, clérigos ou bem freqiientemente leigos (os cram Icigos, 0s copistas ou “‘escritores” muitas ve; ‘g08) que foram logo considerados como parte da Universi- dade das quais eram os “‘suppéts”’.* Gozavam assim de cer- ilégios, sobretudo da isengao da talha e da ronda, plano judicidrio, das autoridades univer- ilégio de commitimus, que remontava para eles ao inicio do século XID)? * Suppdt - funciondrio subatierno, (N.T.) 8 LUCIEN FEBVRE E HENRI-JEAN MARTIN Em contrapartida dessas vantagens, os_livreiros, stationarié* (este termo, que remonta & antigiiidade roma- na, foi a principio reposto em uso nas universidades italia- nas), copistas etc. eram submetidos a um estrito controle or parte da universidade. Servidores de uma grande cor- oracdo, que estendia sobre eles sua protecdo, nao etam li- vres, como simples artestios, de trabalhar em seu proprio interesse pessoal. Constantemente, a propria organizacio de seu trabalho thes lembrava que exerciam de fato 0 que chamarfamos um “servic ‘Numerosos documentos,"° dos quais os principais trazem as datas de 1275, 1302, 1316, 1323 e 1342, nos permitem ter uma idéia precisa cle seus deveres. Nomeados apés uma investigagdo prévia que permitia &s autoridades assegurarem- se de sua boa reputacdo ¢ de sua capacidade profissional, 08 livreiros e stationari deviam pagar uma caugio e pres- tar juramento & Universidade. ‘Uma vez na posse do cargo, tinham suas atividades ¢s- tritamente delimitadas e constantemente controladas em seu . O livreiro era menos um comerciante do que um depositdrio de livros: em razio de sua relativa raridade, os manuscritos eram, de fato, muitas vezes repostos a venda € passavam de mao em mao durante varias geracdes de es- tudantes ¢ de professores. Esse comércio de livros usados ‘operava-se por intermédio do livreiro mas, no mais das ve- zes, este era apenas 0 mandatério do vendedor e a caucdo ‘que tivera de pagar para estabelecer-se garantia sua solva- bilidade. Somente podia vender ou comprar sob certas con- digdes, devia anunciar publicamente as obras que conser- vava em seu poder (isto para evitar provocar, em seu pro- yeito, uma rarefacio artificial) e s6 era remunerado por seu trabalho por uma comissao determinada que nao podia ul- trapassar 4 dinheiros, por volume, se 0 comprador fosse mestre ou aluno da universidade ou 6 dinheiros, se fosse ivreiros, simples comerciantes ou comissa- * Stationarius era o responsivel pelo provimento de textos. Mandava copia 05 livros, omprestava-ot ou vendia-os oe extudantes. (NT) InTRoDUGAO Fa ios de livros, os stationarii desempenhavam um papel mais delicado, ¢ que foi recentemente revelado pelos belos tra- balhos do abade Destrez, gragas ao qual conhecemos ago- ra em detalhes 0 mecanismo da “‘taxagdo” das cépias ¢ da circulagdo dos ‘‘exemplaria’” e, de maneira geral, do que foi chamado a instituigdo da pecia.!! Para exercer um controle intelectual e econdmico sobre a circulagao dos livros, a Universidade quisera, de fato, que as obras indispensaveis aos estudos dos mestres e dos estu- dantes fossem cuidadosamente verificadas em seu texto, para que nele nao figurassem erros que teriam podido desnatu- rar o sentido. Para permitir a multiplicagdo das c6pias nas melhores condigées, sem alteragdo do texto e sem especu- lacdo abusiva da parte dos copistas, a Universidade orga- nizou um sistema muito engenhoso de empréstimo de ma- nuscritos controlados ¢ cuidadosamente revistos, a partir do qual podiam ser feitas cépias por uma remuneragao de- terminada (“taxada”). O manuscrito de base, ‘“o exemplar”, voltava, apés feita a cépia, ao stationarius ¢ este iltimo po- dia entdo alugé-lo novamente. Este método tinha a grande vantagem de evitar alteragdes cada vez mais graves de uma c6pia para outra, visto que cada uma era feita a partir de ‘um mesmo modelo nico. Basta ter tido a ocasido de estu- dar os problemas de estabelecimento dos textos antigos pa- ra compreender a que ponto tal sistema era feliz. O modelo, o exemplar, emprestad ravés dos statio- narii (cles préprios habilitados a multiplicarem suas c6- pias) aos estudantes descjosos de copié-lo ou de mandé-lo copiar por copistas pagos, nao o era em bloco mas por cadernos separados 0 que permitia imobilizar por menos tempo o exemplar, que varios copistas podiam copiar si- multaneamente. O prego do aluguel desses cadernos (cha- mados peciae ou pecas) era fixado pela Universidade os stationarii ndo podiam majoré-lo. Tinham, de outro lado, a obrigagdo de alugi-los a todos aqueles que o dese- jassem. Se um “exemplar” fosse reconhecido como defei- tuoso, era retirado de circulagio. ‘Conservou-se um certo numero desses “exemplaria”’, es- critos em geral com uma letra bastante grossa e muito es- x0 LUCIEN FEBVRE E HENRI-JEAN MARTIN INTRODUGAO 3 tragados porque eram freqiientemente utilizados. Estabe- discutivel da ‘‘quantidade de cépia”” fornecida riba e facilitavam assim a discussao dos precos entre clientes oe cf wh! pagos. ema criado dessa maneira para difundir os textos i até o final da Idade Média e irene ean sie nace arent livros de que se pre- pesquisa, Evidentemen- iugdo da Cidade de Deus 200 obras diferentes pa- 1. Primeira folha da pega 9 de um exemplar parisiense do Comentétio de Sto ‘Tomas de Aquino do IV liveo das Sentencas. rio. den, et pro illo qui decuit me invenire exemplar, in taberna, iol. 2 LUCIEN FEBVRE E HENRI-IEAN MARTIN Esta espértula a0 indicador do exemplar, escondido num local tfo inesperado quanto uma taberna, lembra as expedieSes bibliograficas de Richard de Bi itor do Philobiblion. Em resumo, convém do exagerar as dficuldades encontradas pelos pesqvisadores do sé culo XIV ou XV. Nao € menos verdade eram muito ‘mais raros do que serdo quando a imprensa tiver feito sua obra. AS indicagdes sobre as bibliotecas dos séculos XV e XVI que se encon- ‘rardo mais longe (p. 375 e seg.) petmitem ter uma idéia do fato. ‘Mas, ao lado desses novos meios usados pelas universi- dades para difundir 20 maximo 0s livros “eruditos”” cada vez mais necessérios, colocava-se um problema quanto & produgdo dos livros que chamariamos hoje obras ‘‘de vul- surgira a partir do final do século XIII, paralelamente a transformacdo do antigo feudalismo. Ao lado dos clérigos e dos nobres nascera uma nova classe bur- ‘guesa, capaz ela também de aceder & cultura. Jurisconsul- 05, conselheciros leigos dos reis, “altos funciondrios" de toda, espécie, um pouco mais tarde, ricos negociantes ou burgue- ses, numerosos individuos precisavam de livros. E no ape- ivros sobre sua especialidade (obras de di litica ou de ciéncias), mas também livros “literdri de edificagdo moral facilmente acessiveis, romances, tradu- Ges etc. Essa literatura nao se dirigia a eclesidsticos (embora fos- ‘se muitas vezes escrita por eles) e ia ser redigida sobretudo em Iingua vulgar. Obras originais, a principio em verso, de- ois em prosa, remanejamento de obras antigas, traduedes ou adaptagdes de obras latinas cldssicas ou medievais iam em breve pulular. Para difundi-las, para satisfazer as exi- géncias de um piiblico cada vez mais vasto, ia tornar-se ne- cessdria uma nova organizacio da producao de livros. Basta consultar qualquer histéria d: para constatar que, na Franga pelo m¢ lingua vulgar existia jd no século XII. Mas as condigdes de sua difusdo eram ent&o completamente diferentes: tura de época era feita, antes de mais nada, para ser recitada INTRODUGAO 8 ida em voz alta diante dos ouvintes. O puiblico que sa- ler nao era ainda suficientemente numeroso para que pudesse ser de outra forma. Pode parecer surpreendente, a primeira vista, que uma tradiedo literdria considerdvel te- nha podido desenvolver-se em tais condigdes, mas é por- que, penetrados como estamos por cultura escrita, nao con- seguimos mais fazer um esforco de imaginacio suficiente para compreender o mecanismo das transmiss6es literdrias orais, atestado todavia em numerosas civilizagdes. Parece, contudo, que em nossa época esses novos meios de difusio fa do pensamento, que so o cinema e sobretudo e de idéias que ndo mais usem o circuito normal do texto escrito. Nos séculos XI ¢ XII lé-se pouco em lingua vulgar, mas compdem-se numerosos textos nessas linguas. O Sr. Faral!4 mostrou perfeitamente como nessa época os menesiréis que recitam ou lem, de castelo em castelo, poemas, romances, vidas de santos etc. (0 mais das vezes escritos em versos por que eram mais faceis assim de reter na meméria) sao fre- ailentemente os autores dos textos que difundem. Os no- mes troveiros e trovadores jd indicam, para aqueles a quem foram dados, uma atividade de criadores literérios, enquanto ‘0 menestrel, ligado & casa de um bartio, somente faz bene- ficiar este ultimo e seus familiares das obras que recita ou compée. As circunsténcias nas quais esses primeiros homens de le- tras eram obrigados a exercer seu oficio colocavam-Ihes pro- blemas delicados. Era-lhes rigorosamente imposstvel con- servar sobre suas obras o menor direito de propriedade lite- réria, amenos que conservassem para si, ciosamente, 0 tex- to de suas composigSes ou remanejamentos. Mas, se tives- sem agido dessa forma, ter-lhes-ia sido impossivel saborear as satisfagbes de amor-préprio que todo criador procura a0 fazer-se conhecer por um pilblico o mais vasto possfvel. Essas duas exigéncias deviam a0 sabor das necessidades materiais do autor. Simplesmen- te, a melhor solugao era para ele, como jé se fazia na anti- u ‘LUCIEN FEBVRE E HENRI-JEAN MARTIN silidade romana, encontrar um mecenas a quem pudesse ofe- recer suas obras, nas quais, em caso de necessidade, colo- caria adulagdes dirigidas ao benfeitor ou a sua familia. Na falta de mecenas, podia também ensinar, de forma remu- nerada, a outros menestréis, 0 texto de suas composicdes ou vender-thes algumas cépias. ‘Com o aumento do niimero de pessoas capazes de ler um texto em lugar de apenas ouvi-lo, ver-se-4 aparecer, no fi- nal do século XIII e durante o século XIV, uma certa espe- cializa¢do. O autor contentar-se-& doravante em escrever (ou compilar) sua obra sem preocupar-se com as condigées pe- as quais atingird seu futuro puiblico, O melhor meio de consegui-lo, evidentemente, continuaré sempre a ser o de recorrer a mecenas. Obter que um rei, um principe ou algum grande senhor aceite a dedicatéria de uma obra ¢ o oferecimento de um exemplar de luxo tra- 4 para o autor ndo somente a quase certeza de receber re- compensas materiais para suas dificuldades, mas ainda uma idade de fazer com que sua composicSo tenha isonjeira. A moda vem de cima ¢ o esnobis- ‘odas as épocas; se o piiblico souber que uma tal traduco foi nao apenas aceita mas encomendada por um rei da Franca, haverd quase obrigatoriamente uma clien- tela para seguir um exemplo vindo de tao alto e disso re- sultardo encomendas novas para o autor. Este poderd en- to mandar copiar de novo seu texto a partir de um exem- pessoal, por um copista que ele pagard: tornar-se-d as- proprio editor. E 0 que fazia particularmente Boc- caccio.! Uma das cartas que enviou a seu amigo Maghi- nardo dei Cavalcanti, ao mandar-the um exemplar de Iuxo de uma de suas novas obras, explica como ela permanece- ra em suas mos durante algum tempo apés estar acaba- da, pois ele ndo sabia a quem oferecé-la: envia-a finalmen- te. seu amigo para que este, apés té-la lido, faga com que suas telagdes a aproveitem e a difundam junto ao piiblico (emittat in publicum), Esta missdo parece ser uma das obri- gagGes tacitas do mecenas pois, ao dedicar seu De claris mu- lieribus a Andreina Acciajuoli, o proprio Boceaccio escreve- Ihe: “Se julgais conveniente dar a meu livro a coragem de INTRODUGAO 35 exibir-se em puiblico (procedendi in publicum) uma vez di- vulgado (emissus) sob vossos auspicios, ele escapard, creio, 0s insultos dos malévolos”, Outros autores, mais preocupados com os beneficios ma- teriais da profissdo, podiam assim conservar consigo um exemplar de sua obra e vender cépias mais ou menos nu- ‘merosas. As vezes mesmo mantinham uma verdadeira ofi- cina de cépia; testemunho disso é Jean Wauquelin, 0 autor- editor de Mons.6 As vezes, também, serviam-se para is- so da intermediagao de um livreiro. Jean Golein entregou assim ao livreiro Henri du Trévou um exemplar de sua tradugdo do Rational de Guillaume Durand, que o livrei- To, “em seu nome e respondendo neste ponto pelo Sr. Jean Goulain...”, venden em 1395 ao criado de quarto do duque de Orleans para seu senhhor (a traducdo fora feita vinte anos pelo mesmo Jean Golein para Carlos V).!7 Em geral e sobretudo nos séculos XIV e XV, o mecenato € uma instituigéo largamente divulgada, pelo menos para © primeiro lancamento da obra. Isto explica, alids, a enor- me diferenga entre as somas as vezes considerdveis pagas por um rei ou um principe a um autor, em troca do primei- To exemplar de apresentacdo de uma obra recente, e 0 pre- ¢0 infinitamente mais moderado ao qual eram vendidas cé- pias ulteriores, mesmo se se tratasse, em certos casos, de ‘exemplares de luxo. Do ponto de vista do economista, poder- sevia de fato considerar que a totalidade dos. tor devia ser incorporada a primeira “‘edigao” da obra — edigdo que se compunha apenas de um tnico exemplar, visto que o autor nao possuia dai em diante nenhum direito so- bre sua obra. Assim, a prética do mecenato permitia aos “letrados”” viver de sua pena — pelo menos em parte. O prego era, na- turalmente, a obrigagdo em que se encontrava 0 autor de ‘no apenas nada dizer que pudesse desagradar ao mecenas, mas ainda de especializar-se numa literatura capaz de agra- dar a um largo piiblico.'* Acontecia mesmo, muitas vezes, que o livro fosse objeto de uma encomenda expressa, Sabe~ se, por exemplo, que Carlos V remunerava varios traduto- res ¢ que, desejando favorecer reformas politicas, quis que 36 LUCIEN FEBVRE E HENRI-JEAN MARTIN seus conselheiros e altos funciondrios lessem as obras de Aristételes (Politica, Economia, Etica) que, para is dou traduzir por Nicole Oresme de 1369 a 137. A obra uma vez composta e oferecida “‘em primeira edi- gdo” ao mecenas que a encomendara ou que pelo menos aceitara sua apresentagao, a difusdio junto ao piblico cada vez maior fazia-se por intermédio dos livreiros e copistas profissionais, com (pelo'menos no inicio) a colaboragéo do autor em condicSes, na verdade bastante obscuras. Assim como 0s troveiros do século precedente, um “thomem de letras” (que nos perdoem este neologismo) materialmente no tinha interesse em que sua obra se difundisse com de- masiada rapidez porque desta forma ela lhe escapava; mas, ao contrério, no desejava com certeza permanecer mergu- Ihado na obscuridade. Era preciso encontrar um ponto de equilibrio entre esses dois interesses contraditdrios. ‘Estamos mal informados sobre a organizacao da profis- so de livreiro nos dominios que ndo a colocavam em con- tato com os meios universitérios. Sabemos, contudo, que 0 livreiros juramentados da Universidade podiam comer- ciar livros com os particulares e que, nesse caso, no esta- var mais submetidos (deduzimo-lo por pretericiio) aos mes- ‘mos regulamentos. E certo que desde o final do século XII, na Franca, desde os primeiros anos do século XIV na In- glaterra, existiam verdadeiras oficinas de copistas que tra- balhavam para produzir, para certos livreitos, textos em lin- gua vulgar vendidos exatamente nas mesmas condices em que 0 so hoje os livros impressos. Os grandes senhores, mesmo quando mantinham suas préprias oficinas de copistas, nao hesitavam em dirigir-se a tais oficinas. Era assim, por exemplo, que o duque de Berry, que encomendava muitas vezes livros de luxo a ar- tistas alojados em sua casa ¢ subvencionados por el prava também belos exemplares postos 4 venda por ros — e, particularmente, adquiriu em 1403 um manus. to do ciclo arturiano em prosa que lhe foi vendido por Raoul du Montet.?! (5s inventétios precisam neste caso que se tratava de uma obra comprada a um livreiro — ¢ nao encomendada, Pro- INTRODUGAO a va de que, nessa época, a clientela que se interessava pelos manuscritos de luxo era suficiente para que um livreiro acei- tasse fazer as consideraveis despesas exigidas pela fabri ‘¢do de um tal manuscrito (vendido por 300 escudos de ou- ro) sem ter em vista um comprador determinado. Contudo, o aumento da clientela, que trazia uma cres- conte demanda, levava os copistas ¢ 0s artesdos a “‘norma- lizar™ sua produgdo que procuravam tornar to abundan- te ¢ répida quanto possivel. muito, evidentemente, chegara-se, nos scriptoria monésticos, a uma certa forma de especializagao, Segundo suas aptiddes, uns consagravam-se & cépia do texto, outros sua iluminura, Pelo menos, o monge copista e o monge iluminador trabalhavam lado a lado em contato constante. elo contrario, quando as oficinas leigas se multiplicam vé-se um nimero cada vez maior de oficinas separadas, umas de copistas, outras talvez de rubricadores, outras enfim, cer- tamente de iluminadores. Constituem-se assim, pouco a pou- co, verdadeiras correntes de produgo nas quais um gran- de mimero de artesdos tem suas tarefas bem definidas. ‘A matéria-prima (o support) é cada vez mais raramente preparada nas oficinas que a utilizam. As contas do Tesouro ‘mostram que o pergaminho, em geral comprado em estado bruto (parchemin froutin) vai para as maos de artesdos en- carregados de desbasté-lo, de raspé-lo (réve) e de branqued- Jo; sua remuneracao é geralmente indicada & parte. Quan- doo texto é ido acrescenta as pitulos. Ele nem mesmo lerd o texto e é para ele (sem diivi- da para poupar-Ihe qualquer hesitagdo ou perda de tempo) {que o escriba, ao copiar a obra, terd anotado no espago bran- co reservado a letrina uma miniiscula letra-guia — chama- da lettre d’attente — prova manifesta de que o trabalho era executado em varias etapas. Restava ainda, se fosse 0 caso, Nao insistiremos no trabalho de vezes estudado ¢ cuja organizacao conhecemos desde Henri 38 LUCIEN FEBVRE E HENRI-JEAN MARTIN ‘Martin®? — limitar-nos-emos a mostrar como, ainda aqui, do copista, este ti ailustragio, Tais indicagées, colocadas nas margens, tas vezes desapareceram; Léopold Delisle,” todavia, citou numerosos exemplos e constata-se que elas eram muito su- mérias (aqui, por exemplo, um papa no trono, lé dois mon- es, acolé uma dama a cavalo etc.). O chefe da oficina poe-se entio & obra e determina mais precisamente as cenas ou per- sonagens que devem ser representados.* Se 0 manuscrito nao é de enorme valor, contenta-se as vezes em tragar a l4- pis um répido esboco que ajudaré os alunos a executar sua ‘composicéo segundo regras bem aprendidas e mil vezes apli- ‘cadas. Foi assim que, de uma oficina de iluminador do inf- cio do século XV, puderam sair, a0 mesmo tempo, uma ‘obra-prima da pintura francesa como as Grandes horas, di- tas “de Rohan” ¢ muitas obras rapidamente executadas em que se reconhecem a maneira ¢ os habitos do mestre mas nao seu talento. Efetuado esse trabalho, caberd a outros es- pecialistas ainda executar os fundos, se a moda Ihes impu- ser 0 recurso a uma técnica particular, se se tratar, por exem- plo, de fundo de ouro velho ornado ou nao de folhagens ou de ponteados, de quadriculados mais ou menos ricos etc. Diante da multiplicidade e da complexidade dessas ope- rages, insistiu-se sempre em que a confecgdo de um tinico livro representava uma soma colossal de trabalho e de es- forgos. Este ponto de vista é, evidentemente, justificado mas . E claro que o livro luxuo- sissimo, verdadeira obra de arte destinada a ser olhada ¢ nio lida, como os suntuosos volumes pertencentes a0 du- que de Berry, que foi sem nenhuma divida o maior bibli6- filo de seu tempo, exigia meses se nao anos de trabalho ¢ custava verdadeiras fortunas. Mas fabricavam-se também, na mesma época, quantidades de livros eventualmente ilu- minados e ornados — sobretudo livros de horas cujo uso se INTRODUGAO » dava por toda a Europa nos séculos XIV e XV — que per- maneciam ao alcance das bolsas mais modestas. A indiistria do livro de horas, por sua vez, ocupava ex- clusivamente certas oficinas especializadas — ld também, 1d sobretudo, engenhosos métodos de divisto do trabalho ‘que certos iluminadores fabricavam assim, em grande mi- mero, cenas, sempre as mesmas, destinadas a ilustrar as randes festas litirgicas (Natividade, Anunciaco etc.) en- quanto copistas escreviam calendarios diferentes, segundo as dioceses, que se juntavam em seguida 4s partes “comuns” do livro de horas. s iluminadores conseguiram mesmo aperfeigoar proces- sos técnicos que Ihes permitiam reproduzir varias vezes um dado modelo. Como 0 mostrou Henri Martin, a partir do século X1V utilizou-se uma espécie de papel caleo (carta lus- tra) a base de resina, que permitia reproduzir de maneira ntica um mesmo carton ou modelo; ¢ sabemos que houve muitas vezes disputas, até mesmo rixas, entre iluminado- res que se acusavam mutuamente de se terem roubado es- ses cartons que representavam para eles um inestimavel ins- trumento de trabalho. Tais processos, de resto, no sao ape- nas usados na producao de livros de horas. E assim que © manuscrito 117-120 da Biblioteca Nacional, contendo um ciclo arturiano, é a réplica exata de um manuscrito da Bi- blioteca do Arsenal: mesma paginac4o, mesmo programa de ilustracdo, mesmos cortes de texto de um caderno para . Uma descoberta recente, feita na Holanda pelo Sr. gresso de cigncias hist6ricas,”> dé uma ser a capacidade de producdo das oficinas que haviam re- corrido a tais métodos. Num manuscrito da Biblioteca da Universidade de Leyde (B.P.L.138) contendo 0 conjunto de textos conhecidos sob o nome de Auctores octo e escri- to em 1437, encontra-se mencionada em flamengo uma en- ‘comenda feita por um particular (quase certamente um li- vreiro por atacado) a um chefe de oficina de copistas que 0 ‘LUCIEN FEBVRE E HENRI-JEAN MARTIN ndo é nomeado. Essa encomenda diz respeito a um grande mimero de exemplares de i tes: 200 exemplares dos Sete Salmos da Peniténcia, 200 dos Disticos de Catéo em flamengo, 400 do pequeno livro de preces. Tais cifras surpreendentes representam, portanto, verdadeiras edigdes. Assim, desde a metade do século XIII, para satisfazer a necessidades crescentes, os copistas haviam sido levados verdadeira producdo em série. Gragas ao sistema da pecia haviam conseguido multiplicar os manuscritos universit4- ios, evitando ao mesmo tempo fabricar textos cada vez mais, falhos a cada c6pia. Gracas, de outro lado, a uma organi- zago racional nas grandes oficinas, haviam podido fabri- car em ainda maior quantidade, manuais, tratados elemen- tares, obras literdrias (tradugdes, remanejamentos em pro- sa de canedes de gesta e de romances corteses) e sobretudo livros de piedade dos quais ndo havia familia burguesa que nao alguns espécimes, visto que era comum como presente de casamento. Antes mesmo de ser objeto de miltiplas edigdes impressas, 0 Voyage de Jean de Mandeville, acabado em 1365, &, por exemplo, largamen- te difundido sob forma de manuscritos: 250 chegaram, de fato, até nds, representando versdes em todas as linguas (73 em alemdo e em holandés, 37 em franc em inglés, 50 ), sem contar as representantes de versGes espanho- Jas, italianas, dinamarquesas, checas ¢ irlandesas que, quase » existem desde os primeiros anos do século XV.26 No Portanto, o trabalho dos copistas prepara o dos im- Pressores. Constata-se assim, as vésperas do aparecimento da imprensa, uma necessidade crescente de livros, que pa- rece fazer-se sentir em camadas sociais cada vez mais lar- ‘gas — sobretudo entre os burgueses ¢ os negociantes — exa- tamente aqueles que sao nesta primeira metade do século XY, 05 artesdos ¢ 0s beneficidrios de tantas transformacdes INTRODUGAO a técnicas, como a invengdo do alto forno, para citar ape- iprensa, que é essencialmente um progresso es imprevisiveis em seu inicio. 10 das paginas seguintes & 0 de mostrar como cla ealizada ¢ 0 que trouxe, ao ultrapassar, seu pri- meiro objeto.

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