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Da Ética Contextualista à Moral Universal

Aluno: Caius César de Castro Brandão (caiusbrandao@globo.com)


Orientadora: Profª Drª Helena Esser Reis (helenaesser@uol.com.br)
Universidade Federal de Goiás, 74001-970, Brasil

PALAVRAS-CHAVE: Justiça, moralidade, poder, classes sociais.

1 INTRODUÇÃO

Através desta Pesquisa de Iniciação Científica, nos propomos a relacionar o


resultado de uma investigação sobre a justiça em Foucault com a primeira hipótese
proposta no Projeto de Pesquisa CIDADANIA E JUSTIÇA: Exigências Ético-Políticas do
Estado Democrático Tocquevilliano, coordenado pela Profª. Drª. Helena Esser dos Reis, a
saber:

“Que a idéia de justiça compartilhada pelo gênero humano cumpre o papel


de norma moral universal (a qual, embora inscrita na necessidade histórico
providencial, não é exterior à vontade, à razão e à ação humana) que
confere aos cidadãos um critério último para julgar a própria ação e a ação
coletiva.”

A biografia de Michel Foucault nos revela um pensador que não se manteve


alheio às questões políticas e sociais que tecem a história da humanidade... uma história
marcada por lutas e dominações entre diferentes estratos de nossas sociedades. Para
Foucault, não seria suficiente denunciar que por trás de um aparelho estatal existe uma
classe dominante. Crítico da suposta centralidade do poder estatal, ele reconhece que o
poder político é exercido mediante uma pluralidade de centros e pontos de apoio
invisíveis e desconhecidos. Desta forma, a tarefa que ele assume como intelectual é a de
localizar e expor os diferentes pontos de atividades do poder; os lugares e as formas nas
quais a dominação é exercida.
Antes de mergulhar nos textos de Foucault, tomamos o cuidado de identificar
um parâmetro de investigação acerca do conceito e funcionamento da justiça. Adotamos
a estratégia de não tratar neste trabalho das questões epistemológicas e da hermenêutica
do sujeito, constitutivas da ética foucaultiana, para colocarmos o foco na abordagem que
o filósofo faz da justiça enquanto instrumento de poder entre classes sociais.
Em seguida, abordaremos a questão do poder e a sua relação com os
processos de elaboração do discurso, com referência à palestra proferida por Foucault em
sua aula inaugural no Collège de France, em 1970, intitulada “A ordem do discurso”.
Também utilizaremos como fonte argumentativa a transcrição de um debate, de 1971,
entre Michel Foucault e Noam Chomsky, facilitado pelo filósofo holandês Fons Elders.
Intitulado Human Nature: Justice versus Power (Natureza Humana: Justiça versus Poder),
este debate traz à baila uma antiga questão filosófica sobre a existência de uma natureza
humana inata, independente de nossas experiências e de influências externas. No centro
da discussão, subjaz a veemente objeção foucaultiana à noção de justiça enquanto um
princípio inato e absoluto. Neste debate com Chomsky, Foucault afirma que a justiça é
uma idéia constituída para servir como instrumento de certo poder político e econômico
ou de resistência contra ele.
Nosso próximo passo será uma breve análise de seu livro Vigiar e Punir, de
1975, pela qual pretendemos demonstrar que o estudo foucaultiano do sistema judicial
penal europeu enfatiza a utilização da justiça em termos de lutas sociais.
No capítulo Sobre a Justiça Popular, em Microfísica do Poder, Foucault
reconhece que a justiça popular é um instrumento de resistência importante e autêntico,
das classes oprimidas. A pergunta central do debate é se o tribunal popular pode ser uma
expressão da justiça popular. Na resposta de Foucault a esta questão, buscamos uma
possível definição para o conceito de justiça popular e a compreensão de quais
circunstâncias políticas, econômicas e sociais ela se faz necessária.

2 DISCUSSÃO

2.1 O Conceito de Justiça

Desde a antiguidade, a filosofia ocidental vem se ocupando com temas


relacionados à política e aos costumes. A questão da justiça, por exemplo, sempre
recebeu de distintas correntes filosóficas um papel de destaque em seus esforços de
elucidação conceitual. Aqui, no entanto, não nos interessa realizar um inventário das
diferentes conceituações de justiça ao longo da história da filosofia, mas apenas
estabelecer um parâmetro para classificar as tendências mais clássicas em duas formas
distintas de falar sobre justiça. Na primeira, justiça se refere ao sujeito ou ao seu
comportamento em relação à norma. Na outra, a justiça é tomada como meio para um
bem maior. Esta análise nos deu critérios para reduzir a amplitude do campo de
investigação filosófica sobre a justiça nas obras de Foucault. Portanto, não foi trivial a
nossa escolha de desprezar toda a hermenêutica do sujeito e a analítica da relação entre
verdade e poder. Subtraímos da nossa abordagem os estudos epistemológicos e as
questões sobre a justiça no âmbito da subjetividade para voltar a nossa atenção ao
funcionamento da justiça enquanto instrumento de poder.
De acordo com Nicola Abbagnano, justiça é “em geral, a ordem das relações
1
humanas ou a conduta de quem se ajusta a essa ordem.” A partir desta definição,
Abbagnano realça duas abordagens distintas, a saber: por um lado, temos o critério de
julgamento da pessoa ou do seu comportamento em relação à norma e, por outro, o
critério de julgamento da norma que regula o comportamento das pessoas. No primeiro
caso, o foco é a pessoa ou o seu comportamento, no segundo, temos a própria norma
como dado a ser avaliado quanto à sua eficácia, ou seja, “sua capacidade de possibilitar
2
as relações humanas.”
Sob este ponto de vista da justiça como condição de possibilidades para se
garantir um fim benéfico ao homem e às relações entre os homens (a convivência, a
felicidade, a utilidade, a liberdade ou a paz) se desenvolveram diferentes correntes
consideradas clássicas na história da filosofia ocidental. A novidade, em Michel Foucault,
é que ele toma a justiça como instrumento de poder, sob a ótica das lutas sociais. Essa é
a abordagem que agora passamos a analisar.

2.2 O Intelectual e a Microfísica do Poder

Sob a perspectiva do compromisso político de Foucault reside uma possibilidade


de compreensão da palestra proferida por ele em sua aula inaugural no Collège de
France, em 1970, intitulada “A ordem do discurso”. Apenas um ano após assumir a
prestigiosa cadeira que antes pertencia ao já falecido Jean Hyppolite, Foucault participou
de um debate com Noam Chomsky, Human Nature: Justice versus Power (Natureza
Humana: Justiça versus Poder), facilitado pelo filósofo holandês Fons Elders. Quando
questionado por Elders acerca do seu interesse pela política, Foucault responde que “a
essência de nossas vidas consiste, afinal, no funcionamento político da sociedade na qual
1 ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. 1ª edição brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
2 Idem.
nos encontramos” 3 [tradução nossa]. Oportunamente, salientamos que democracia, para
Foucault, é o efetivo exercício de poder por uma população que não é dividida, nem
hierarquicamente ordenada em classes sociais. Foucault prossegue:

“É óbvio que estamos vivendo sob um regime ditatorial de classes, sob


um poder de classe que se impõem pela violência, até mesmo quando os
instrumentos de tal poder são institucionais e constitucionais. (...) Eu
admito não ser capaz de definir, nem mesmo por razões ainda mais fortes
de propor, um modelo ideal de funcionamento de nossa sociedade
científica e tecnológica. (...) Por outro lado, uma tarefa que me parece
imediata e urgente, acima de qualquer outra coisa, é essa: Deveríamos
indicar e demonstrar, até mesmo quando estiverem escondidas, todas as
relações de poder político que controlam, oprimem e reprimem o corpo
4
social.” [tradução nossa]

A princípio, algumas instituições, diferentemente da polícia, do exército e do


tribunal judiciário, não demonstram nenhuma relação com o poder político. Por exemplo, a
Universidade ou o sistema educacional como um todo podem parecer fazer nada mais do
que simplesmente disseminar conhecimento. Mas, na visão de Foucault, “elas são feitas
para manter certa classe social no poder; e para excluir os instrumentos de poder de outra
5
classe.”
No capítulo IV da “Microfísica do poder” – Os intelectuais e o poder - Conversa
entre Michel Foucault e Gilles Deleuze, Foucault nos deixa clara a sua posição política,
conforme podemos observar no seguinte trecho:

“Ora, o que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas


não necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente,
muito melhor do que eles; e elas o dizem muito bem. Mas existe um
sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber.
Poder que não se encontra somente nas instâncias superiores da
censura, mas que penetra muito profundamente, muito sutilmente em toda
a trama da sociedade. Os próprios intelectuais fazem parte deste sistema
de poder, a idéia de que eles são agentes da "consciência" e do discurso
também faz parte desse sistema. O papel do intelectual não é mais o de
se colocar "um pouco na frente ou um pouco de lado" para dizer a muda
verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder
exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na
6
ordem do saber, da "verdade", da "consciência", do discurso.”

3 FOUCAULT, M. e CHOMSKY, N. Human nature: justice versus power. Disponível em http://www.chomsky.info/debates/1971xxxx.htm

. 20/05/2010
4 Idem.
5 Idem.
6 FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. São Paulo: Ed. Graal, 1979. (p. 71)
Portanto, não é trivial a tese de que Foucault tenha feito exatamente isto – lutar
contra uma forma de poder, ao colocar em pauta a ‘ordem do discurso’ em sua aula
inaugural no Collège de France. Se o papel da Universidade é manter certa classe social
no poder; e se é verdade que a instituição deva ser atacada em seu âmago para ser
destruída, então, cogitar a subversão da ordem do discurso parece ter sido mesmo a
melhor estratégia para questionar o papel do sistema educacional numa sociedade
dividida em classes. A Universidade, o manicômio e a prisão são instituições que foram
alvo da genealogia do poder desenvolvida por Foucault ao longo da sua vida de trabalho.
Vejamos o que Foucault tem a dizer sobre o poder, enquanto discute o papel do
intelectual em seu debate com Deleuze:

“Existe atualmente um grande desconhecido: quem exerce o poder? Onde


o exerce? Atualmente se sabe, mais ou menos, quem explora, para onde
vai o lucro, por que mãos ele passa e onde ele se reinveste, mas o poder...
Sabe-se muito bem que não são os governantes que o detêm. Mas a
noção de "classe dirigente" nem é muito clara nem muito elaborada.
"Dominar", "dirigir", "governar", "grupo no poder", "aparelho de Estado",
etc.. é todo um conjunto de noções que exige análise. Além disso, seria
necessário saber até onde se exerce o poder, através de que
revezamentos e até que instâncias, freqüentemente ínfimas, de controle,
de vigilância, de proibições, de coerções. Onde há poder, ele se exerce.
Ninguém é, propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se
exerce em determinada direção, com uns de um lado e outros do outro;
7
não se sabe ao certo quem o detém; mas se sabe quem não o possui.”

Em “A ordem do discurso”, Foucault nos fala deste mesmo poder e o relaciona com
aquilo que seria um processo ordenado de produção de discursos em nossas sociedades.
Os discursos cotidianos são mais efêmeros do que os “discursos sérios” da instituição,
tais como o da medicina, da psiquiatria e da política. Para Foucault, “o discurso não é
simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo pelo
8
que se luta, o poder que queremos nos apoderar.” Ele então abandona a hermenêutica
e toma o discurso como prática social. Foucault se coloca acima do nível da proposição
de um texto para analisar o discurso enquanto um ‘acontecimento’ que se dá mediante
condições de possibilidades e regras pré-estabelecidas. Em “A ordem do discurso”,
Foucault coloca a seguinte hipótese:

“Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo


tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo
número de procedimentos que tem por função conjurar seus poderes e

7 Idem.
8 FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso – Aula inaugural no College de France. Pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo.
Ed. Loyola: 1996. (p. 10)
perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e
9
temível materialidade.”

2.2 Crítica ao Ideal de Justiça

A antropologia filosófica se propõe a explicar a idéia de justiça a partir de reflexões


acerca da natureza humana, ou seja, a partir de certas estruturas fundamentais do
homem. Noam Chomsky – filósofo, lingüista e militante político contemporâneo – por sua
vez, realiza estudos lingüísticos empíricos para identificar certos “conhecimentos
10
instintivos” ou “princípios organizadores” inatos ao ser humano, os quais orientam
nossos comportamentos sociais e individuais. Em suma, tais princípios seriam um dos
componentes fundamentais daquilo que ele chama de natureza humana. Chomsky afirma
que o conhecimento de princípios inatos, mesmo que parcial, deve ser posto a serviço da
elaboração de uma teoria social humanista com o objetivo visionário de construir uma
11
sociedade justa. Tendo Foucault como seu interlocutor em um debate facilitado por
Fons Elders, Chomsky faz a seguinte ponderação:

“Acredito que seria uma grande pena deixar inteiramente de lado a tarefa
filosófica, e de certa forma mais abstrata, de tentar estabelecer conexões
entre um conceito de natureza humana – que permite total alcance à
liberdade, dignidade, criatividade e outras características humanas
fundamentais – e a noção de uma estrutura social na qual tais
12
propriedades poderiam ser concretizadas (...)” [tradução nossa].

Foucault, ao contrário de Chomsky, não atribui à noção de natureza humana


um valor científico. Ele argumenta que não foi através do estudo da natureza humana que
Freud descobriu os princípios de análise dos sonhos, ou antropologistas culturais as
estruturas dos mitos. Em seguida, Foucault afirma:

“Na história do conhecimento, a noção de natureza humana me parece ter


desempenhado, principalmente, o papel de referência epistemológica para
designar certos tipos de discursos, em relação ou em oposição à teologia,
13
biologia ou história. Eu dificilmente veria nisto um conceito científico.”
[tradução nossa].

9 Idem. (p. 8)
10 CHOMSKY, N.; FOUCAULT, M. Human Nature: Justice versus Power. Disponível em
http://www.chomsky.info/debates/1971xxxx.htm . 20/05/2010
11 Idem.
12 Idem.
13 Idem.
Reconhecendo a inexistência de qualquer fundamento absoluto e universal,
como alguns pensadores atribuem à idéia de natureza humana, Foucault não se
compromete em propor um modelo de justiça para a sociedade. Ele chega a questionar a
validade da utilização da noção de justiça ideal como fundamento de uma crítica do
funcionamento da justiça instuticional. Para ele, é a utilidade para as lutas de classe que
justifica o conhecimento sobre a justiça, sobre como ela é disseminada nos discursos e
práticas das instituições, e sobre os objetivos de quem a instituiu e controla. Foucault
reconhece que a questão da justiça está sempre presente em todas as lutas sociais, mas
adverte, “ao invés de pensar a luta social em termos de ‘justiça’, deve-se enfatizar a
14
justiça em termos de luta social.” [tradução nossa] A classe oprimida não inicia uma
guerra contra a classe opressora porque considera tal guerra justa, mas porque ela quer,
finalmente, tomar o poder. Por outro lado, no seio de uma sociedade divida em classes, a
noção de justiça pode funcionar como uma demanda dos oprimidos ou como uma
justificativa para tal demanda.
Ao invés de tratar a idéia de justiça como um princípio absoluto e inerente à
natureza do homem, Foucault a coloca no plano da historicidade das relações de poder. A
história da justiça demonstra que ela nada mais é do que algo inventado para servir como
instrumento de certo poder político e econômico ou de resistência contra este poder. Esta
civilização que constrói muros para separar classes sociais possui um tipo de
conhecimento e uma forma de filosofia que possibilitam a formação de certos conceitos,
tais como o de natureza humana, de essência do homem, e de justiça. Para Foucault,
seria infrutífera a tentativa de utilizar uma noção de justiça ideal para definir ou justificar a
luta das classes oprimidas contra seus opressores, porque esta luta deveria, em princípio,
modificar os fundamentos do nosso modelo civilizatório. Quiçá teríamos uma noção
diferente de justiça numa sociedade sem divisão de classes.
Como veremos a seguir, o estudo arqueológico que Foucault faz do sistema
judicial penal europeu enfatiza a noção de justiça como instrumento de poder e
dominação.

2.3 O Poder de Fazer Justiça

Em 1975, Michel Foucault publica Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Nesta


obra, a aurora do homem moderno aparece relacionada ao desenvolvimento da

14 Idem.
tecnologia disciplinar e de uma ciência social normativa. Entre os séculos XVIII e XIX, a
Europa sofreu significativas transformações políticas e econômicas que nutriram o
surgimento do Estado moderno e, com ele, um novo poder de julgar e punir.
Nos antigos regimes monárquicos, o poder de fazer justiça estava inscrito na
pessoa do soberano, mesmo tendo ele conferido aos tribunais a tarefa de exercer tal
poder. Isto, no entanto, não é uma alienação do seu direito de julgar, já que ele resguarda
pra si o direito de suspender ou confirmar as decisões dos tribunais. O príncipe
personifica a justiça de tal forma que sempre quando um crime é cometido, o poder
soberano é diretamente atacado. Para Foucault, “a intervenção do soberano não é (...)
15
uma arbitragem entre dois adversários; (...) é uma réplica direta àquele que o ofendeu.”
O castigo do condenado servirá para demonstrar a força quase infinita do príncipe, de
onde provém o direito de fazer justiça. O aparelho de justiça deixa claro que tal direito não
16
pertence aos súditos. “Diante da justiça do soberano, todas as vozes devem-se calar.”
Talvez o castigo não funcione como reparação do dano causado à vítima, mas como
vingança pessoal do príncipe.
Até meados do século XVIII, o suplício dos condenados era uma prática comum
em toda a Europa. De acordo com Foucault, em Vigiar e Punir:

“A morte-suplício é a arte de reter a vida no sofrimento, subdividindo-a em


‘mil mortes’ e obtendo, antes de cessar a existência, the most exquisite
agonies. O suplício repousa na arte quantitativa do sofrimento.”

Gradativamente, a eficácia dos suplícios começa a ser questionada pelos


operadores da justiça. Os espetáculos de crueldade por vezes causavam tumulto social.
Outro problema são os casos em que condenados passam a ser considerados heróis
populares pelas massas, porque ousaram desafiar o poder do soberano. Foucault faz a
seguinte ponderação:
“No abandono da liturgia dos suplícios, que papel tiveram os sentimentos
de humanidade para com os condenados? Houve de todo modo, de parte
17
do poder, um medo político diante do efeito desses rituais ambíguos.”

Para Foucault, seria um exagero atribuir como causa da mitigação das penas
na reforma do sistema penal o aumento de sensibilidade da sociedade européia ou os
esforços de reformadores humanistas:

15 FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987.
16 Idem.
17 Idem.
“Não foram os mais esclarecidos dos expostos à ação da justiça, nem os
filósofos inimigos do despotismo e amigos da humanidade, não foram
nem os grupos sociais opostos aos parlamentares que suscitaram a
reforma. (...) A reforma não foi preparada fora do aparato judiciário e
contra todos os seus representantes; foi preparada, e no essencial, de
dentro, por um grande número de magistrados e a partir de objetivos que
lhes eram comuns e dos conflitos de poder que os opunham uns aos
18
outros.”

A reforma do sistema judicial penal não visava estabelecer uma nova justiça
com base em princípios humanitários, mas instituir o que Foucault chama de “uma nova
19,
‘economia’ do poder de castigar” garantindo, assim, a sua melhor distribuição. De
acordo com Dreyfus e Rabinow (1995), com a reforma, o crime deixa de ser visto como
ataque direto ao corpo do soberano para ser tratado como quebra do contrato social que
vitima a sociedade como um todo. Antes de princípios democráticos, o que determina
essa mudança é uma necessidade estratégica de distribuir o poder de julgar e punir. A
punição, então, deixa de ser um direito do soberano para se consolidar como uma
obrigação da sociedade. O objetivo da reforma não é punir menos, mas punir com maior
eficácia.
Com a dissolução dos governos monárquicos e o surgimento do estado burguês, o
poder de fazer justiça passa a se fundamentar e obter suas justificativas e regras a partir
do desenvolvimento de um ‘complexo científico-judiciário’, até então inexistente. Foucault
demonstra como os novos saberes produzidos pelas chamadas ciências do espírito, tais
como a psicologia, a psiquiatria e a psicopedagogia, foram postos a serviço do aparato
jurídico do Estado. Chegamos à era dos ‘castigos incorpóreos’. O alvo agora não é mais o
corpo do condenado, mas a sua alma. O objetivo não é mais punir o autor de um crime,
mas estudar, classificar, qualificar, prender e recuperar o sujeito delinquente. No lugar do
crime, temos agora a criminalidade como objeto da intervenção da justiça penal. De
acordo com Dreyfus e Rabinow, “em Vigiar e Punir, Foucault apresenta a genealogia do
20.
indivíduo moderno como um corpo dócil e mudo (...)”

2.4 Sobre a Justiça Popular

No fim do século XVIII, motivados por ideais democráticos, líderes da


Revolução Francesa implantaram o tribunal popular. Seria o Tribunal do Povo, idealizado
18 Idem.
19 Idem.
20 DREYFUS, H. e RABINOW, P. Michel Foucault: Uma Trajetória Filosófica – Para Além do Estruturalismo e da Hermenêutica.
Tradução de Vera Porto Carrero. 1ª edição brasileira. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
por Danton, um dos principais líderes da Revolução, uma expressão genuína da justiça
popular? Deixaremos que Foucault responda com suas próprias palavras:

“No caso que eu cito, o Tribunal Popular, tal como funcionou durante a
Revolução Francesa, tendia a ser uma terceira instância, aliás bem
determinada socialmente; representava uma linha intermediária entre a
burguesia no poder e a plebe parisiense, uma pequena burguesia
composta de pequenos proprietários, pequenos comerciantes, artesãos.
Colocaram-se como intermediários, fizeram funcionar um tribunal
mediador e, para fazê-lo funcionar referiram-se a uma ideologia que era
até certo ponto a ideologia da classe dominante, ao que era "bom" e "não
bom" fazer ou ser. (...) Vê-se bem então que eles retomaram o lugar
"mediano" da instância judiciária tal como ela tinha funcionado no Antigo
Regime. Eles substituíram o revide das massas àqueles que eram os seus
inimigos pelo funcionamento de um tribunal e boa parte de sua
21
ideologia.”

Por ironia do destino, quando Danton deixou de representar os interesses da


classe dominante, ele foi julgado e condenado à guilhotina pelo mesmo tribunal que ele
criou.
Quando a decisão sobre o que é justo ou injusto em uma sociedade de classes
é tomada por uma instância supostamente neutra (o tribunal judiciário), o conceito de
justiça sobre o qual ela se fundamenta corresponde aos interesses da classe que a
instituiu e controla. Foucault é categórico ao afirmar que o tribunal, enquanto aparato do
Estado, tem a função de dividir as massas. Ele entende que o tribunal popular (enquanto
elemento de intermediação entre as partes em litígio) pode escamotear a justiça popular.
Por exemplo: a disposição espacial das pessoas que com compõem um tribunal revela a
ideologia que ele representa. Separando as partes em litígio, é posta uma mesa composta
por juízes. A posição deles representa uma neutralidade entre as partes. O julgamento do
mérito só é proferido após a defesa e a acusação terem se pronunciado. As decisões dos
juízes tomam como fundamento uma ideologia composta de “certa norma de verdade e
de um certo número de idéias sobre o justo e o injusto.” A posição dos juízes implica
autoridade, já que a sua decisão deverá ser cumprida. Entretanto, a idéia de uma
autoridade neutra que decide a disputa entre duas partes com base numa justiça com
valor absoluto é totalmente contrária à idéia de justiça popular. Na justiça popular existem
apenas as massas e seus inimigos. Aqui inexiste um elemento neutro que decide com
autoridade. Tão pouco, os oprimidos se valem de uma noção de justiça abstrata e
universal, quando decidem punir ou re-educar seus inimigos. Sua decisão tem como base
a experiência concreta. Isto é, os danos que sofreram e a forma como foram prejudicados.

21 FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. São Paulo: Ed. Graal, 1979.


Foucault enxerga a subversão do poder judiciário pelas classes oprimidas como
atos de justiça popular em resistência e superação da opressão exercida pela classe
dominadora. Por exemplo, no início de julho de 1789, o rei da França, Luis XVI, ordenou o
cerco de Paris por 30 mil homens das tropas reais. Seu objetivo era sufocar o ânimo
revoltoso da população. No entanto, com intuito de se defender contra a opressão do
soberano, o povo formou a Guarda Nacional e, em 14 de julho, se insurgiu contra um
ícone do poder do rei: a prisão da Bastilha. De acordo com Foucault, “(...) a Revolução
Francesa era uma revolta anti-judiciária. A primeira coisa que ela explodiu foi o aparelho
22
judiciário.”
Foucault reconhece que o ato de justiça popular “não poder ser confiado a uma
espécie de espontaneidade instantânea, não refletida, não integrada a uma luta de
23
conjunto”. Ao contrário, a justiça popular deve promover a elucidação política e a
eliminação da alienação e da divisão ideológica entre diferentes camadas das classes
populares.
O conceito de justiça popular, em Foucault, é formulado através de uma
abordagem analítica da historicidade da justiça e das relações de poder. A história da
justiça narrada por Foucault cumpre a tarefa de denunciar as instâncias de controle,
vigilância e coerção da classe opressora sobre a massa popular. Face ao exposto,
concluímos que, para Michel Foucault, a justiça popular é um instrumento de subversão
importante e autêntico das classes oprimidas contra seus inimigos e contra o aparato de
justiça dos seus opressores.

3 Considerações Finais

De acordo com Nithamar Oliveira, “(...) podemos apenas falar de uma ética não-
cognitivista, não-universalizável e contextualista em Foucault, onde as práticas de
24
resistência e as lutas pela liberdade desautorizam qualquer pretensão humanista.”
A primeira hipótese proposta no Projeto de Pesquisa CIDADANIA E JUSTIÇA:
Exigências Ético-Políticas do Estado Democrático Tocquevilliano, fala sobre uma “idéia de
justiça” que desempenha “o papel de norma moral universal”. Foucault, por outro lado,
não toma uma idéia de justiça como fundamento absoluto e universal para “julgar a

22 Idem.
23 Idem.
24 OLIVEIRA, N. Tractatus Ethico-Politicus – Genealogia do Ethos Moderno. Porto Alegre: Edipucrs, 1999.
própria ação e a ação coletiva”. O que está em foco na analítica foucaultiana da justiça
enquanto instrumento de poder é a norma como dado a ser avaliado quanto à sua
eficácia, como dizia Abbagnano, “sua capacidade de possibilitar as relações humanas.”
Por outro lado, a busca por critérios últimos para discernir o justo do injusto aponta para a
necessidade de direcionar a continuação desta pesquisa para a compreensão dos
processos de constituição do ‘sujeito de justiça’, a partir da hermenêutica de Michel
Foucault.

4 Resultados

4.1 Apresentações de Trabalhos com Publicações de Resumos

• Os Caminhos Percorridos pelo Homem Natural até a Constituição do Corpo Moral


e Coletivo - I Jornada de Estudos J.J. Rousseau. USP, Departamento de Filosofia,
Março de 2010.

• A Justiça Popular em Michel Foucault. XVII Semana de Filosofia da UFG,


Departamento de Filosofia, Maio de 2010.

REFERÊNCIAS

Livros

DREYFUS, H. e RABINOW, P. Michel Foucault: uma trajetória filosófica – para além do


estruturalismo e da hermenêutica. Tradução de Vera Porto Carrero. 1ª edição brasileira.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso – Aula inaugural no College de France.


Pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo. Ed. Loyola: 1996.

______________ Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete.


Petrópolis: Vozes, 1987.

______________ Microfísica do poder. São Paulo: Ed. Graal, 1979.

OLIVEIRA, N. Tractatus ethico-politicus – genealogia do ethos moderno. Porto Alegre:


Edipucrs, 1999.
Dicionário

ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. 1ª edição brasileira. São Paulo: Martins Fontes,


2000.

Transcrição de Debate

FOUCAULT, M. e CHOMSKY, N. Human nature: justice versus power. Disponível em


http://www.chomsky.info/debates/1971xxxx.htm . 20/05/2010

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