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O CLAMOR PÚBLICO COMO FUNDAMENTO DA PRISÃO PREVENTIVA E O

ESTADO DE INOCÊNCIA

Sara Géssica Goubeti Melocra¹


sara_melocra@hotmail.com

RESUMO
Este trabalho visa abordar quanto à fundamentação da prisão preventiva quando
baseada no clamor social ou clamor público, relacionando-a com o princípio da
presunção da inocência, que é princípio fundamental garantido pela Constituição
Federal, e aplicado como princípio reitor no processo penal. Será abordado quanto
ao alcance do fundamento “clamor social”, sendo que este é utilizado subjetivamente
pelo juiz na decretação de uma prisão preventiva, o que permite ser esta passível de
inconstitucionalidade, devido a sua afronta com o princípio da presunção da
inocência.

PALAVRAS-CHAVE: Clamor Público, Prisão Preventiva, Princípio da Presunção da


Inocência e Garantia da Ordem Pública.

1. INTRODUÇÃO

O princípio da presunção da inocência é princípio fundamental garantido pela


Constituição Federal em seu art. 5º, LVII que garante a não culpabilidade até o
trânsito em julgado da sentença condenatória. No entanto, esse princípio relativiza-
se quando da decretação das prisões cautelares, que limitam a liberdade do
indivíduo, mesmo antes de proferida uma sentença condenatória, visando uma
proteção para a sociedade.
Quando se fala em prisão preventiva, trata-se de uma das espécies das
prisões cautelares, espécie esta que poderá ser decretada durante o inquérito
policial ou processo criminal e baseado nas hipóteses previstas pelo art. 312 do
Código de Processo Penal. Ocorre que o citado artigo não prevê a possibilidade da
fundamentação de uma prisão preventiva no “clamor social”, sendo que este é
fundamento aplicado rotineiramente em sentenças proferidas pelo Poder Judiciário,
principalmente, nos casos que a mídia dá maior ênfase em todo território nacional.
Devido isso, torna-se questionável a legalidade de uma prisão preventiva
decretada com fundamento no clamor público, ao qual não é fundamento suficiente
para privar a liberdade do indivíduo.
Muitas são as decretações de prisão preventiva que se baseiam puramente
no clamor social, isso fica explícito principalmente em casos na qual a mídia dá
maior ênfase e a população acaba realizando uma “pressão” no poder judiciário para
que alguma providência seja tomada, e obviamente que esta providência só poderá
ser de prisão.

As jurisprudências dos Tribunais Superiores vêm se posicionando no sentido


de que o clamor social ou clamor público não é fundamentação suficiente para a
decretação de uma prisão preventiva. Contudo, ainda há grande divergência e,
como a matéria ainda não foi legislada, os Juízes Estaduais e, muitas vezes, até os
Tribunais de Justiça ainda se acolhem ao clamor social e acabam restringindo a
liberdade do indivíduo, que é direito fundamental previsto pela Constituição Federal,
de forma ilegal.
Portanto, pesquisar quanto ao clamor social quando fundamento da prisão
preventiva é de extrema importância para o Direito Penal e Processual Penal em
razão de tratar-se de uma matéria extremamente discutida e ainda não legislada.
Sendo assim, torna-se um assunto de relevância, sendo sua explanação primordial
para busca de soluções proporcionais que possam harmonizar a aplicação da prisão
preventiva com o Princípio da Presunção da Inocência.

2. DESENVOLVIMENTO

Cabe, inicialmente, um breve comentário acerca das prisões cautelares. As


prisões cautelares, também chamadas de prisões provisórias, são prisões de
natureza processual, decretada pelo juiz a qualquer tempo, que visa a privação de
liberdade do paciente antes do trânsito em julgado da sentença se preenchidos os
pressupostos exigidos pelo art. 312 do Código de Processo Penal, quais sejam o
“fumus comissi delicti” (provas da existência do crime e indícios de sua autoria) e
com fundamento no “periculum libertatis” (perigo decorrente do estado de liberdade
do imputado). O doutrinador Fernando Capez explica:

[...] a prisão provisória somente se justifica, e se acomoda dentro do


ordenamento pátrio, quando decretada com base no poder geral de cautela
do juiz, ou seja, desde que necessário para uma eficiente prestação
jurisdicional.

A prisão preventiva, que é espécie das prisões cautelares, é prisão de


natureza excepcional, quer dizer que, teoricamente, só será decretada em última
hipótese, garantindo assim, o direito constitucional de liberdade da pessoa.

Nesse mesmo sentido é que o Princípio da Presunção da Inocência caminha,


sendo que este protege que o indiciado só seja preso depois do trânsito em julgado
de sentença condenatória, pois aí sim poderá ser punido pelo crime que,
comprovadamente, cometeu. Em respaldo a este princípio dispõe o art. 5º, inciso
LVII da Constituição Federal que “ninguém será considerado culpado até o trânsito
em julgado de sentença penal condenatória”.

No entanto, têm-se vislumbrado, na prática, uma prisão preventiva não tão


excepcional. A regra pela liberdade do réu passou a ser exceção quando a
decretação da prisão preventiva ocorre com fundamento no clamor social, sendo
que este sequer está previsto como hipóteses de decretação da mesma, segundo
art. 312 do CPP. Isso ocorre, na maioria das vezes, em crimes de maior notoriedade
quando a brutalidade do delito provoca uma comoção no meio social, gerando
sensação de impunidade e descrédito pela demora na prestação jurisdicional.

Quanto ao assunto têm-se havido muita divergência nas decisões dos


tribunais. Conforme RT 656/354 do STJ:

[...] quando o crime praticado se reveste de grande crueldade e violência


causando indignação na opinião pública, fica demonstrada a necessidade
da cautela”. No mesmo sentido o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu
na RT 691/314: “Levando-se em conta a gravidade dos fatos não está fora
de propósito argumentar sobre a ocorrência de clamor público e temor da
vítima justificando a prisão preventiva, fundamentada na garantia da ordem
pública”. Neste último caso se discute que a prisão preventiva teria sido
decretada em razão da gravidade do delito e não em razão de haver um
risco ponderável do autor da infração tornar a cometer novos delitos, o que
em sentido estrito, se configura o conceito da garantia da ordem pública.
Divergente a essas decisões, o STF já decidiu, na RT 549/417 que: “A
repercussão do crime ou clamor social não são justificativas legais para a prisão
preventiva”.

No mesmo sentido o Informativo nº 138 do STF dispõe:

“O reconhecimento da existência de "clamor público" em relação ao crime


praticado não basta, por si só, para justificar a prisão preventiva do
acusado, porquanto não se enquadra no art. 312, do CPP ("A prisão
preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da
ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para
assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do
crime e indício suficiente de autoria."). Precedentes citados: HC 71.289-RS
(DJU de 6.9.96); RHC 64.420-RJ (DJU de 13.3.87). HC 78.425-PI, rel. Min.
Néri da Silveira, 9.2.99”.

Ainda nesse sentido, dispõe o Informativo nº 234, também do STF:

“Considerando que o clamor público e a repercussão social do crime, a


privilegiada condição econômico-financeira do acusado, a gravidade em
abstrato do delito e a evasão do distrito da culpa para evitar a
caracterização da situação de flagrância não bastam, por si sós, para
justificar a manutenção da custódia cautelar, a Turma, por falta de
fundamentação, deferiu habeas corpus para, confirmando a liminar
anteriormente concedida, invalidar o decreto de prisão expedido contra o
paciente [...]”.
Recentemente, algumas turmas do STJ vêm se posicionando conforme a
jurisprudência do STF, no sentido de não ser suficiente para decretação da prisão
preventiva a fundamentação no clamor social. É o que demonstra o Informativo 213
do STJ:
“A gravidade do delito, mesmo quando praticado crime hediondo, se
considerada de modo genérico e abstratamente, sem que haja correlação
com a fundamentação fático objetiva, não justifica a prisão cautelar. A
prisão preventiva é medida excepcional de cautela, devendo ser decretada
quando comprovados objetiva e corretamente, com motivação atual, seus
requisitos autorizadores. O clamor público, por si só, não justifica a
custódia cautelar. Precedentes citados: HC 5.626-MT, DJ 16/6/1997, e HC
31.692-PE, DJ 3/5/2004. HC 33.770-BA, Rel. Min. Paulo Medina, julgado
em 17/6/2004”.
Contudo, esse posicionamento ainda não é pacífico no tribunal. Conforme
jurisprudência do STJ:

“Embora seja certo que a gravidade do delito, por si só, não basta para a
decretação da custódia, a forma e execução do crime, a conduta do
acusado, antes e depois do ilícito, e outras circunstâncias podem provocar
imensa repercussão e clamor público, abalando a própria garantia da ordem
pública, impondo-se a medida como garantia do próprio prestígio e
segurança da atividade jurisdicional. [Grifo nosso]”.

É importante ainda compreendermos uma profunda diferenciação entre o


clamor público e a garantia da ordem pública. Ao analisarmos jurisprudências dos
principais tribunais do país percebe-se o quanto vêm sendo utilizado o clamor
público como fundamentação da prisão preventiva, no entanto, sendo aquele
“mascarado” pela garantia da ordem pública.

Em decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça têm-se demonstrado,


exatamente o exposto acima:

“HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO TRIPLAMENTE QUALIFICADO,


PRATICADO CONTRA VÍTIMA DE 10 ANOS DE IDADE PARA ENCOBRIR
CRIMES DE ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. PRISÃO
PREVENTIVA. DEVIDAMENTE FUNDAMENTADA NA GARANTIA DA
ORDEM PÚBLICA. ORDEM DENEGADA.
1. A despeito de o Magistrado monocrático ter feito referência no decreto de
prisão preventiva ao clamor público causado pelo crime, o que, por si só,
não justificaria a medida constritiva, fez também o julgador expressa
referência à necessidade de se garantir a ordem pública, diante da
periculosidade do agente, evidenciada pela gravidade dos crimes
perpetrados, bem como em razão dos substanciosos indícios de autoria.”
Aury Lopes Junior, sobre o assunto, nos traz:

“A ordem pública, ao ser confundida com o tal “clamor público”, corre o


risco da manipulação pelos meios de comunicação de massas, fazendo
com que a dita opinião pública não passe de mera opinião publicada, com
evidentes prejuízos para todos. (...) Assume contornos de verdadeira pena
antecipada, violando o devido processo legal e a presunção de inocência”.
A garantia da ordem pública é fundamentação muito abrangente, por isso
possui tantas discussões quanto à sua constitucionalidade, pois, por vezes, sua
aplicação se dá de modo genérico e abstrato o que gera uma grande insegurança
jurídica.

Por mais respeitados que sejam os sentimentos de revolta ou vingança, é


inconstitucional um decreto prisional provisório, pois a prisão preventiva não tem a
finalidade de antecipação da pena, muito menos a de prevenção, sendo vedado
também ao Estado assumir esse papel vingativo.

É importante que a garantia da ordem pública não seja confundida com o


clamor público. Entende-se ser àquela o risco ponderável de o autor da infração
tornar a cometer delitos, significa que só poderá ser decretada a prisão preventiva
com fundamento na garantia da ordem pública quando o paciente demonstrar,
através de suas condutas e antecedentes, que provavelmente praticará novos
crimes se continuar em liberdade, o que garante uma proteção a toda sociedade.

O clamor público ou clamor social é aquele realizado por toda a sociedade


que, devido a gravidade do delito e a manipulação da mídia, acaba se comovendo e
exigindo a prisão do paciente como forma de “fazer justiça”, assumindo
características de verdadeira pena antecipada, violando o devido processo legal, a
presunção de inocência e o princípio da não- culpabilidade.

Portanto, uma prisão preventiva decretada com toda sua fundamentação


voltada ao clamor público, mas, ao final o juiz a decreta com base na garantia da
ordem pública, não deixa de ser ilegal, pois fica clara a confusão que ocorre em
relação a esses dois institutos.

É o que demonstra a decisão do Superior Tribunal de Justiça a seguir:


“O fato valorativo sobre a gravidade genérica dos delitos imputados ao
paciente, bem como a existência de prova da autoria e materialidade dos
crimes e o clamor público e comoção social não constituem fundamentação
idônea a autorizar a prisão para garantia da ordem pública, se
desvinculados de qualquer fator concreto”. (HC 35.684/SP, Rel. Min.
GILSON DIPP, DJ 1°/7/05) [Grifo nosso]”.

3. CONCLUSÃO

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