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Amália Rodrigues

Amália Rodrigues, a diva do fado, nasceu em 1920. Foi uma pessoa que
sempre soube resistir às evoluções dos regimes políticos. Projectou, com o
seu génio e modo singular de cantar o fado, Portugal no mundo.

B. A dona Amália nasceu em 1920, numa altura em que o país, Portugal,


era essencialmente rural. O seu pai, um sapateiro-músico, mudou-se e
malas e bagagens para Lisboa.

F. Sim, eu mal nasci, o meu pai tentou a sorte em Lisboa, mas a vida era
difícil e acabou por regressar para o Fundão, para o interior, ainda mais
pobre do que já estava. Mas eu fiquei, com apenas 14 meses, em Lisboa
com os meus avós.

B. Foi educada pela sua avó, quando é que cantou pela primeira vez?

F. Foi numa festa da Escola Primária da tapada da Ajuda, quando tinha 9


anos De facto eu era uma rapariguinha muito tímida. A minha avó foi a
única pessoa que conseguiu que eu cantasse. Além disso, quando estava
dentro de casa eu gostava de cantar, sempre sem ser vista.

B. E o que é que costumava cantar?

F. Eu cantava tangos de Carlos Gardel e muitas outras coisas.

B. Desde cedo sofreu de bronquite asmática.


F. Apesar de sofrer dessa doença, eu gostava tanto da escola que nada nem
mesmo essa bronquite asmática me impedia de frequentar a escola. É que
na escola, lá, ninguém me mandava limpar o pó, nem lavar a loiça ou
esfregar o chão.

B. Na escola era conhecida por sabichona. Mas havia uma disciplina que
não lhe entrava pela cabeça?

F. Era a Geografia. Paciência!

B. É verdade que um dia despiu a roupa que trazia da escola e deu-a a uma
menina pobre?

F. Na escola era obrigatório o uso de uma bata branca por cima do vestido.
Ora, um dia a caminho da escola, encontrei uma rapariga toda rota, ainda
mais pobre do que eu. Tirei o vestido que trazia por baixo da bata e dei-lhe.

B. Na altura, nos anos vinte e trinta era normal que as crianças, ainda
adolescentes, aprendessem um ofício. Qual foi o primeiro ofício que
aprendeu?

F. Foi o ofício de bordadeira. Mas como não tinha jeito para passar a ferro,
a minha avó não quis que eu continuasse nesse ofício. Eu tinha uma tia que
era encarregada numa fábrica de bolos e rebuçados. Era sempre preciso
muita gente para este tipo de trabalho. E, com apenas 12 anos, passei a
trabalhar nessa fábrica.
B. Entretanto, aos 14 anos os seus pais regressam a Lisboa e volta viver
com eles.

F. A minha mãe monta uma pequena banca de fruta e tive que abandonar a
fábrica de bolos e passei a ajudar a minha mãe.

B. Há um episódio, um pouco dramático, da sua vida quando tinha 16 anos


e resolveu fugir de casa.

F. Tinha, pois 16 anos e a minha inseparável irmã 14, e lá resolvemos fugir


num barco, clandestinas, mas vestidas de homens, para ninguém se meter
connosco. Vestimos os fatos dos meus irmãos. Eram seis da manhã e…
passado meia hora já estávamos novamente em casa.

B. Em 1938 representa o Bairro de Alcântara, onde vivia, no concurso da


Primavera em que se disputava o título de Rainha do Fado.

F. Nessa altura eu cantava ali e aqui, ora cantigas tradicionais e danças


rurais, bem como as marchas populares nas festas dos santos populares de
Lisboa.

B. Com o estado novo, é criado a carteira profissional de fadista, sem a


qual os fadistas não podiam se apresentar em público.

F. O fado das ruas e vielas de Lisboa, dos retiros e casas de pasto para as
chamadas casas de fado. E foi precisamente numa dessas casas, o Retiro da
Severa, que em 1939, com 19 anos, eu fiz a minha estreia profissional. No
ano seguinte já era artista exclusiva e com repertório próprio.
B. Na revista, um estilo próprio de teatro cantado com muita sátira à
mistura, também se estreia por esses anos.

F. Foi personificando a fadista vestida com xaile negro, que me estreei no


teatro Maria Vitória.

B. A diva do fado impressiona todos, canta com intensidade dramática o


fado, porquê?

F. Porque o que interessa é sentir o fado. Porque o fado não se canta,


acontece. O fado sente-se, não se compreende, nem se explica.

B. Aos 23 anos, divorciada a seu pedido, Amália é independente, jovem e


divertida.

F. Ganhava bem e a vida era uma festa. Restaurantes, boites. Cantava tudo
o que estava na berra. Dançava o que estava na moda, tangos, sambas,
valsas. E levava o público das casas de fado atrás de mim, de um lado para
o outro.

B. Quando é que começou o seu sucesso internacional?

F. Foi em Madrid, em 1943, a convite do embaixador português. A partir


daí, Brasil, Londres. Infelizmente nesses períodos conturbados da política
portuguesa nunca recebi um elogio de qualquer pessoa do governo. O
próprio Salazar sempre que se referia à minha pessoa, chamava-me a
criaturinha.

B. Recorda-se de algum espectáculo que a tenha marcado?


F. Em Roma, quando cantei sozinha, no Argentina, um teatro de ópera,
onde participava a cantora lírica Maria Caniglia. O contraste era grande. Eu
era apenas uma cantora ligeira. Foi um sucesso. Antes os fadistas tinham
muitos complexos de inferioridade e eu é que tirei os complexos ao fado.

B. O fado precisa de letras, de poetas, quem eram os poetas que cantava?

F. Tinham poetas que escreviam para mim, o Pedro Homem de Mello,


David Mourão Ferreira, Manuel Alegre e Alain Oulmain. Este último um
compositor luso-francês.

B. Todos os amantes de fado bem que conhecem o fado Povo que lavas no
rio, de Pedro Homem de Mello.

F. Curiosamente, não sei bem por que razão este fado passou a ter uma
dimensão política.

B. A sua vida artística, com inúmeros prémios e condecorações é infindável


e grandiosa, como explica estes reconhecimentos por todo o mundo.

F. Eu passei a minha vida a surpreender-me com o que me aconteceu, mas


nunca lutei, como nunca sofri para conseguir fazer alguma coisa, para o
que se chama vencer, talvez não tenha gozado bem as coisas por que
passei. Embora saiba que a única artista portuguesa conhecida no
estrangeiro seja eu. Eu gosto de cantar sem estar a pensar que estou a
cantar.
Amália Rodrigues, que contava 79 anos, foi encontrada sem vida Às oito
horas da manhã do dia 6 de Outubro de 1999. O coração de Lisboa chora.
Flores, lenços brancos acenam. Nas ruas, nos carros, nas lojas, por todo o
lado o fado de Amália.

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