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“O Federalista”: gênese de uma nova forma de governo1

Job Duarte Morais*


Eliete Nascimento Borges**
João Nascimento Borges Filho***

Resumo: A obra O Federalista é uma série de 85 artigos, argumentando em favor da


ratificação da Constituição dos Estados Unidos. Representa a estruturação do Esta-
do americano e a implementação de uma nova forma de governo até então nunca
vista. A questão da liberdade sai do campo da teoria, passando para a prática.

Palavras-chave: Federalista. Federalismo. Governo. Liberalismo.

“The Federalist”: genesis of a new form of government

Abstract: The book The Federalist is a series of 85 articles arguing for the ratification
of the Constitution of the United States. It represents the structuring of the American
State and the implementation of a new style of government never seen before in
which the freedom issue transcends theory and goes into practice.

Key words: Federalist. Federalism. Government. Liberalism.

1
Artigo apresentado ao professor Dr. Josênio Parente, como avaliação da disciplina: Teoria Política I, Mestrado
Profissional em Planejamento e Políticas Públicas da UECE.
*Acadêmico do curso de Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas Públicas/UECE. Pós-Graduado em
Metodologia do Ensino Superior. É coordenador do Curso de Administração/FAMA. Professor no Centro de
Educação Profissional do Amapá/CEPA e da Faculdade SEAMA.
**Acadêmica do curso de Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas Públicas/UECE e Especialista em
Segurança Pública e em Ciências Forenses (IDEAP/FAMAP). Diretora-Presidente da Polícia Técnico-Científica
do Amapá. Enfermeira/UEPA e Perita Criminal da POLITEC/AP.
***Acadêmico do curso de Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas Públicas/UECE. Especialista em Psi-
copedagogia e Metodologia do Ensino Superior/FISS-RJ. Pró-Reitor de Extensão da Universidade do Estado do
Amapá/UEAP. Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil-OAB/CF. É professor efetivo da Univer-
sidade Federal do Amapá/ UNIFAP. Foi Vice-Reitor e Pró-Reitor de Graduação da UNIFAP.

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Introdução
Inúmeros teóricos abordaram o tema “formas de governo”. Porém, e até en-
tão, não havia o desapego às práticas da antiguidade. Neste sentido, pensadores que
trataram e defenderam o federalismo, além de avançarem para uma nova forma de
governo, inovaram, saindo da teoria, passando para a praticidade, com a sua imple-
mentação, tomando a questão da liberdade com novo foco e sob uma nova ótica,
originados com as discussões decorrentes da aprovação da Constituição Americana
no século XVIII.
A obra O Federalista é uma série de 85 artigos argumentando em favor da
ratificação da Constituição dos Estados Unidos. É o resultado de reuniões que ocor-
reram na Filadélfia em 1787 para a elaboração da Constituição Americana. Essas
reuniões renderam vários artigos publicados em Nova York, assinados por Publius.
O propósito: ratificar a Constituição Americana.
Nem sempre, assim, a produção da ciência política adveio da simples pesquisa.
Ressalte-se ainda que se “tratava de uma polêmica: a Publius opunha-se Brutus, que
era o pseudônimo sob o qual se apresentavam os antifederalistas” (LEONEL, 2007).
Antes de entrarmos no tema que nos dispomos a comentar, é extremamente
importante fazermos de forma bem sucinta uma síntese a respeito dos principais
filósofos que sustentam a teoria política moderna. Então, vejamos:
Nicolau Maquiavel (1469-1527): Este pensador foi o fundador da ciência
política moderna e não aceitava a divisão clássica dos três regimes políticos (monar-
quia, aristocracia e democracia). Defendia que qualquer regime político pode ser
legítimo e ilegítimo, sendo o valor que media a legitimidade e a ilegalidade – a liber-
dade. O poder do príncipe deve ser superior aos “grandes” (aristocratas e ricos) e
estar a serviço do povo, ou seja, separa o ethos moral do ethos político. Maquiavel
rejeita a tradição idealista de Platão, Aristóteles e Santo Tomás de Aquino e segue a
trilha inaugurada pelos historiadores antigos, como Tácito, Políbio, Tucídides e Tito
Lívio. Seu ponto de partida e de chegada é a realidade concreta. Daí a ênfase na
verità effettuale – a verdade efetiva das coisas. Esta é sua regra metodológica: ver e
examinar a realidade tal como ela é, e não como se gostaria que ela fosse (SADEK,
2004).
Thomas Hobbes (1588-1679) foi o teórico da “Soberania Estatal”. Defen-
dia um contrato que desse origem a um Estado Absoluto. Sua teoria tenta explicar a
paz e, com isso, justificar a existência do Estado. Provoca uma ruptura com as tradi-
ções do feudalismo. Foi o grande influenciador dos federalistas, uma vez que a cha-
ve para entender o seu pensamento é o que ele diz do estado de natureza. Hobbes é
um contratualista, quer dizer, um daqueles filósofos que, entre o século XVI e o
XVIII (basicamente), afirmaram que a origem do Estado e/ou da sociedade está
num contrato: os homens viveriam, naturalmente, sem poder e sem organização,
que somente surgiriam depois de um pacto firmado por eles, estabelecendo as re-
gras de convívio social e de subordinação política (RIBEIRO, 2004).

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John Locke (1632-1704) foi um teórico liberal. Teoriza que o homem possui
originariamente direitos naturais que devem ser defendidos pelo Estado, como o
direito à propriedade. É considerado o fundador do Empirismo2. Como filósofo, é
conhecido pela “teoria da tábula rasa” do conhecimento. Influenciou a Revolução
Americana, cuja declaração de independência foi alicerçada sobre os direitos natu-
rais e o direito a resistência para fundamentar a ruptura das colônias com a Inglater-
ra (MELLO, 2004).
Charles de Montesquieu (1689-1755), fundador da teoria dos três governos e
dos três poderes, base do constitucionalismo moderno. Autor da obra O Espírito das
Leis, na qual elabora conceitos sobre formas de governo e exercício da autoridade
política que se tornaram pontos doutrinários básicos da ciência política. Ofereceu aos
constituintes americanos as bases do ideal do federalismo (ALBUQUERQUE, 2004).
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), teórico contratualista. Para Rousseau,
a soberania reside no povo. O homem era, para esse filósofo, um ser desconfiado.
Em sua descrição do Contrato Social, afirmava que este tinha a finalidade de orga-
nizar os indivíduos, após a passagem de seu estado de natureza. Postulava que “en-
contrar uma forma de associação que defenda e proteja, com toda a força comum,
as pessoas e os bens de cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só
obedece, contudo, a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes” (NAS-
CIMENTO, 2004).
Isto posto, podemos ter uma visão ampla dos pensadores e de suas ideias, que
vieram a servir de base para a argumentação federalista e também dos confedera-
dos. Alguns teóricos influenciaram bem mais, outros menos. Mas a efetivação da
liberdade estava presente no contexto da revolução americana, bem como nas dis-
cussões para aprovação de uma nova ordem política.

1 O Contexto Histórico de “O Federalista”


Os fatos sociais não surgem por acaso. É necessária a existência de um ambi-
ente que possibilite a implantação de um processo de mudança. Dentro desse ambi-
ente, encontramos a correlação de forças internas e externas que condicionam todo
o processo.
No final do século XVIII, havia um crescente descontentamento das colônias
americanas com o governo inglês, e treze colônias já não tinham representatividade

2
Sobre a linha do desenvolvimento do empirismo, Locke representa um progresso em confronto com os precedentes,
no sentido de que a sua gnosiologia fenomenista-empirista não é dogmaticamente acompanhada de uma metafísica
mais ou menos materialista. Limita-se a nos oferecer, filosoficamente, uma teoria do conhecimento, mesmo aceitan-
do a metafísica tradicional e do senso comum, no que concerne a Deus, à alma, à moral e à religião. Com relação à
religião natural, não muito diferente do deísmo abstrato da época; o poder político tem o direito de impor essa
religião, porquanto é baseada na razão. Locke professa a tolerância e o respeito às religiões particulares, históricas,
positivas. “Mundo dos Filósofos. Texto: O Empirismo. John Locke. Disponível em: <http://
www.mundodosfilosofos.com.br/locke.htm>. Acesso em: 2 out. 2008.

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no parlamento daquele país. Como consequência, ocorreu a Guerra da Indepen-
dência americana (1775-1783), tendo sido elaborada uma Constituição que caracte-
rizava o novo país como uma Confederação.
Dentro daquele contexto, várias causas levaram à Guerra da Independência.
Uma delas foi a Revolução Industrial, que possibilitaria uma maior abrangência
mercantil. Outro fator foi a Guerra dos Sete Anos (Inglaterra X França), uma luta
entre as duas potências por áreas de influência na América. A guerra foi vencida
pela Inglaterra, mas, foi muito onerosa. Para reparar os gastos, a Inglaterra promo-
veu arrocho do pacto colonial, tendo como consequência lógica o início de uma
tensão social entre a colônia e a metrópole. Com o propósito de se buscar um meio
termo para essas tensões sociais é que os congressos começam a ser realizados (em
1774, ocorre o primeiro, na Filadélfia), sem caráter separatista.
Na Convenção da Filadélfia, também conhecida como Convenção Constitu-
cional, ocorrida em 1787, que tinha como propósito inicial rever os artigos da Con-
federação, os federalistas James Madison e Alexander Hamilton tinham a intenção
de criar um novo governo, não apenas “articular” a permanência do que existia. Em
seu artigo VII, a Constituição dizia que só entraria em vigor com a aprovação de
nove estados participantes. A proposta dos federalistas era substituir a Confedera-
ção pelo Federalismo, criando assim, uma nova forma de governo ainda não experi-
mentada por nenhuma nação.
O que distinguia as propostas? A Confederação é uma associação de Estados
soberanos, usualmente criados por meio de tratados, mas que pode eventualmente
adotar uma constituição comum. A principal distinção entre uma Confederação e
uma Federação é que, naquela, os estados constituintes não abandonam a sua sobe-
rania, enquanto que, nesta, a soberania é transferida para a união federal.

1.1 Principais Teóricos do Federalismo


Deter-nos-emos a fazer uma breve síntese da atuação dos defensores do fede-
ralismo que vieram, por intermédio de seus artigos, no intuito de ratificar a Consti-
tuição Americana, a fundamentar a construção de uma nova ordem liberal. Traça-
mos, a seguir, um breve perfil:
Alexander Hamilton (1755-1804): foi o primeiro secretário do Tesouro dos
Estados Unidos e, como John Jay, foi conselheiro de George Washington, primeiro
presidente dos Estados Unidos da América (EUA) em 1789. Foi o criador da infra-
estrutura financeira dos Estados Unidos.
James Madison (1751-1836): foi um dos fundadores do Partido Republica-
no, junto com Thomas Jefferson (que foi eleito presidente dos EUA em 1808). É
chamado de “Father of the Constitution”.
John Jay (1745-1829): co-autor da Constituição de seu estado natal, promul-
gada em 1777 e importante fonte de ideias para a Constituição Federal. Presidiu o
congresso continental em 1778. Foi o principal arquiteto do tratado de paz com a Grã-

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Bretanha, tornando-se em seguida o presidente da Suprema Corte dos EUA. Depois de
dois mandatos como governador de Nova York, retirou-se da vida pública.
Os autores de O Federalista não concordavam entre si em muitos pontos, mas
possuíam um acordo de defender a Constituição elaborada pela Convenção Federal,
uma vez que a consideravam incontestavelmente superior à vigente, sob a tutela dos
artigos da Confederação.
Em suma, a nova Constituição propunha a reestruturação do Estado Nacio-
nal Americano, passando os Estados Unidos a ser uma República Federativa, presi-
dencialista, adotando o princípio dos três poderes (Legislativo, Executivo e Judiciá-
rio), fundamentando-se no ideal de liberdade e universalidade. Segundo Limongi
(2004, p.270), um dos eixos estruturados de O Federalista é o ataque à fraqueza do
governo central instituído pelos artigos da Confederação. Cita Alexander Hamilton
que afirma, em O Federalista, n. 15, que nem se chegou, propriamente, a criar um
governo, uma vez que estavam ausentes as condições mínimas a garantir sua exis-
tência. Podemos reiterar a afirmação na passagem que vem a seguir:
Governar implica o poder de baixar leis. É essencial a idéia de
uma lei que ela seja respaldada por uma sanção ou, em outras
palavras, uma penalidade ou punição pela desobediência. [...] Essa
penalidade, qualquer que seja, somente pode ser aplicada de duas
maneiras: pelos tribunais ou ministros da justiça ou pela força
militar; [...] A primeira [forma de aplicação] só pode evidente-
mente incidir sobre indivíduos; a outra recairá necessariamente
sobre grupos políticos, comunidades ou Estados.
A Constituição teve por base as ideias dos pensadores liberais ingleses que
apresentamos no início do artigo. Esses teóricos são mais bem compreendidos se
observados por dois pontos de vista: econômico, posto que defendem a livre-inici-
ativa e a ausência de interferência do Estado no mercado; sob o ponto de vista
político: podem ser entendidos como defensores de uma nova forma de organiza-
ção do poder, contrária ao Absolutismo, proposta pelos iluministas franceses (Li-
berdade, Igualdade e Fraternidade).
Para Josênio Parente (1994), os principais mentores dos teóricos federalistas
foram Hobbes e Montesquieu. Os artigos Publius colocam uma questão bastante
moderna: a fundação de um governo popular numa sociedade sem castas.

2 Sobre o embasamento teórico federalista


Os artigos publicados pelos federalistas são fundamentadores da teoria políti-
ca base para a nova Constituição Americana. Sabe-se que Montesquieu, membro de
uma tradição teórica que se inicia em Maquiavel e culmina em Rousseau, aponta
para uma incompatibilidade entre governos populares e tempos modernos. Os “an-
tifederalistas” usavam esta argumentação para combater o texto constitucional apre-

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sentado, propondo a criação de três ou quatro confederações, como o tamanho
ideal (LIMONGI, 2004).
Incompatível por quê? Montesquieu apontava que a necessidade de se manter
grandes exércitos e a predominância das preocupações com bem-estar material fazi-
am das grandes monarquias a forma de governo mais adequada daqueles tempos.
Assim, as condições ideais exigidas pelos governos populares seriam: um pequeno
território, possuir cidadãos virtuosos, amantes da pátria e surdos aos interesses ma-
teriais.
O grande desafio dos defensores do federalismo era desmistificar tais mode-
los de pensamento: primeiramente desmentir os dogmas da incompatibilidade da
existência de governos populares, que vem desde Maquiavel, Montesquieu e perma-
necem em Rousseau, ou seja, numa longa tradição. Em segundo lugar, os federalis-
tas deveriam trabalhar a ratificação dos ideais contemplados na nova Constituição,
em decorrência do contexto da época, em que se apresentava um forte desenvolvi-
mento do espírito comercial. Desta forma, os federalistas não viam impedimento
para a constituição de governos populares. E, tampouco, esses dependiam da virtu-
de do povo ou precisavam permanecer confinados em pequenos territórios, sob
pena de serem sobrepujados pelos seus vizinhos militarizados.
Vale registrar que, em relação à forma de governo, a teorização de Montes-
quieu ainda está ligada a exemplos da antiguidade3 (Monarquia) e voltada às ques-
tões correntes da Europa. Os federalistas não reproduzem os argumentos dos teó-
ricos clássicos. Defendem uma inovação: a República Federativa. Nesse aspecto,
queremos chamar a atenção para a questão geográfica. Naquela época, quais nações
vizinhas teriam o poderio bélico para intimidar os Estados Unidos como uma presa
fácil? Outra questão que destacamos é que, efetivamente, existe um “oceano” sepa-
rando a Europa dos Estados Unidos. Assim, as influências dos teóricos não impac-
tavam, com a mesma repercussão, a ex-colônia inglesa, como atingiam as correla-
ções de força no âmbito da Europa.

3 A Questão do Mérito
Pela primeira vez, a teorização sobre os governos populares deixava de se
mirar nos exemplos de forma de governo da antiguidade, iniciando-se, assim, seu
caráter eminentemente moderno.
Segundo Limongi (2004, p. 247), o raciocínio desenvolvido por Hamilton dei-
xa entrever o desdobramento necessário. A única forma de criar um governo cen-
tral, que realmente mereça o nome de governo, seria capacitá-lo a exigir o cumpri-

3
Na moderna tipologia das formas de Estado, a República se contrapõe à Monarquia. Para saber mais ler: BOBBIO,
Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 13. ed. Brasília: EDUNB, 1995, v. 2,
p. 1107.

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mento das normas dele emanadas. Para que isso se efetivasse, seria necessário que a
União deixasse de se relacionar apenas com os estados e estendesse o seu raio de
ação diretamente aos cidadãos.
Em O Federalista n. 2 (JAY apud LIMONGI, 2004, p. 258) tratando sobre as
vantagens naturais da União, diz que “nada é mais certo do que a indispensável
necessidade de um governo, e é igualmente inegável que, quando e como quer que
ele seja instituído, o povo deve ceder-lhe alguns de seus direitos naturais, a fim de
investi-lo dos necessários poderes”.
Torna-se evidente que a nova Constituição seria o contrato que regeria a
relação Estado/povo ou governo e governado. Os poderes estariam nas mãos de
homens que governariam o Estado. Segundo Limongi (2004, p. 249), “todo ho-
mem que detém o poder tende dele abusar”. Neste momento, os defensores do
federalismo se aproximam de Montesquieu, uma vez que apontam a necessidade
de um poder para frear outro poder. Neste sentido, O Federalista faz uma relação
com a natureza humana: “se os homens fossem anjos, não seria necessário termos
governos” (MADISON, O Federalista, n. 51, apud LIMONGI, 2004, p. 272). Mas
é da natureza humana ter ambições, interesses e desejos. Para reiterarmos as posi-
ções federalistas sobre a natureza humana, recorremos mais uma vez a Limongi
(2004, p. 263):
Na medida em que a razão do homem continuar falível e ele
puder usá-la à vontade, haverá sempre opiniões diferentes. En-
quanto subsistir a conexão entre o raciocínio e o amor-próprio,
suas opiniões e paixões terão uma influência recíproca umas so-
bre as outras; e as primeiras serão objetos aos quais as últimas se
apegarão.
Para Silva (2003, p. 1), os defensores do federalismo reconhecem a fraqueza e
maldade da natureza humana. É fácil notar como, para eles, uma sociedade não tem
como sobreviver pacífica e eticamente sem que haja pressões, ameaças e punições
declaradas para possíveis desvios. Partindo disso, provam que um grupo de homens
não está livre de tais problemas e demonstram que estados também precisam ser
policiados (cf. SILVA, 2003).

4 O Governo como controlador do Governo


Para Madison,
A fim de lançar os devidos fundamentos para a atuação separada
e distinta dos diferentes poderes do governo [...] é evidente que
cada um deles deve ter uma personalidade própria e, consequen-
temente, ser de tal maneira constituído que os membros de um
tenham a menor ingerência possível na escolha dos membros
dos outros. Para que esse princípio fosse rigorosamente obser-

80
vado, seria necessário que todas as designações para as magistra-
turas supremas do executivo, do legislativo e do judiciário tives-
sem a mesma fonte de autoridade – o povo [...]. (O Federalista, n.
51, apud LIMONGI, 2004, p. 272).
No mesmo artigo (O Federalista, n. 51), Madison diz:
Ao constituir-se um governo – integrado por homens que terão
autoridade sobre outros homens –, a grande dificuldade está em
que se deve, primeiro, habilitar o governante a controlar o go-
vernado e, depois, obrigá-lo a controlar-se a si mesmo [...]. As-
sim, para frear a relação de poder entre as esferas do executivo,
legislativo e judiciário, ressalta ainda que [...] os membros de cada
um dos três ramos do poder devem ser tão pouco dependentes
quanto possível dos demais.
Neste sentido, Madison continua:
Todavia, a grande segurança contra uma gradual concentração
de vários poderes no mesmo ramo do governo consiste em dar
aos que administram, a cada um deles, os necessários meios cons-
titucionais e motivações pessoais para que resistam às intromis-
sões dos outros. [...] A ambição deve ser utilizada para neutrali-
zar a ambição. Os interesses pessoais serão associados aos direi-
tos constitucionais. [...]. Em outras palavras, um poder deve con-
trolar o outro ou as pessoas devem controlar as outras. Assim,
os interesses privados de cada cidadão devem ser uma sentinela
dos direitos público (O Federalista, n. 51, apud LIMONGI, 2004,
p. 273).
Mas como seria possível distribuir para cada um dos poderes instrumentos
iguais de autodefesa? Segundo Madison (O Federalista, n. 51, apud LIMONGI, 2004,
p. 274), no governo republicano predomina a autoridade do Legislativo, apontando
um caminho:
A solução [...] está em repartir essa autoridade entre diferentes
ramos e torná-los — utilizando maneiras diferenciadas de elei-
ção e distintos princípios de ação — tão pouco interligados quan-
to o permitir a natureza comum partilhada por suas funções e a
dependência em relação à sociedade.
Surgem desta forma, dentro da estrutura do governo republicano, a figura da
Câmara de Deputados e o Senado, ambos com atribuições distintas. Continuando,
Madison (O Federalista, n. 57, apud LIMONGI, 2004, p. 280) argumenta que:
A Câmara dos Deputados é o lugar onde os cidadãos se fazem
representar, e o Senado é onde os Estados têm voz igual, para
discutir assuntos de interesse da federação. Isso garante a pro-

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porcionalidade e a igualdade, e ainda possibilita um controle in-
terno do mais poderoso dos três poderes da União.4
Para proteger o Executivo do poder do Legislativo, é atribuído o poder do veto
absoluto, que O Federalista considerava uma defesa com a qual deveria ser armado o
Executivo. Mas reconhece que talvez não seja seguro nem eficiente. Com relação ao
Poder Judiciário, Hamilton, no artigo n. 78 (O Federalista, apud LIMONGI, 2004, p.
275), afirma que é o mais fraco dos três poderes. O Federalista nos mostrar que:
A independência integral das cortes de justiça é particularmente
essencial em uma Constituição limitada. Ao qualificar uma Cons-
tituição como limitada, [...] que ela contém certas restrições es-
pecíficas à autoridade legislativa [...]. Limitações dessa natureza
somente poderão ser preservadas na prática através das cortes
de justiça, que têm o dever de declarar nulos todos os atos con-
trários ao manifesto espírito da Constituição.
Os juízes serão os guardiões da liberdade. A vitaliciedade no cargo, com o
tempo tiraria qualquer dependência em relação à autoridade que o nomeou. O Fede-
ralista afirma que não haverá liberdade se o poder judiciário estiver sob jugo de
outros ou junto a eles.

5 As Facções e as Formas de Controle


As facções foram caracterizadas como a principal ameaça ao destino dos go-
vernos populares. Madison, em O Federalista, n. 10, defende a ideia de não eliminá-
las, mas de eliminar seus efeitos. Pelo ideal de liberdade defendido pelos federalistas,
não se pode evitar o surgimento das facções.
Madison as define como:
[...] um grupo de cidadãos, representando quer a maioria quer a
minoria do conjunto, unidos e agindo sob um impulso comum
de sentimentos ou de interesses contrários aos direitos dos ou-
tros cidadãos ou aos interesses permanentes e coletivos da co-
munidade (O Federalista, n. 10, apud LIMONGI, 2004, p. 262).
Afirma Madison que existem dois processos para remediar os malefícios das
facções: um, pela remoção de suas causas; outro, pelo controle de seus efeitos. Para
combater as causas, deveria ser destruída a liberdade, que é a essência de sua exis-
tência. Mas, fazendo desta maneira, estaria aplicando um remédio que seria pior do
que a própria doença. Outro caminho apontado por Madison para combater as

4
No artigo 57, James Madison trata das bases populares da Câmara dos Deputados. Para saber mais, ler: LIMONGI,
F. P. “O Federalista”: remédios republicanos para males republicanos. In: WEFFORT, Francisco (Org.). Os Clássicos
da Política. São Paulo: Ática, 2004.

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causas das facções seria fazer com que todos os cidadãos tivessem os mesmos sen-
timentos, opiniões e interesses5. Assim, os federalistas acreditam que as facções de-
vem existir, mas sem prejudicar a liberdade. A unificação de opiniões diferentes dos
homens também é apontada como uma solução impraticável por Madison, ao afir-
mar que “a diversidade das aptidões humanas, nas quais se originam os direitos de
propriedade, não deixam de ser um obstáculo quase insuperável para uma uniformi-
dade de interesses” (O Federalista, n. 10, apud LIMONGI, 2004, p. 263).
Nesse sentido, “a conclusão a que somos levados é a de que as causas da
facção não podem ser removidas e de que o remédio a ser buscado se encontra
apenas nos meios de controlar os seus efeitos” (MADISON, O Federalista, n. 10,
apud LIMONGI, 2004, p. 265), pois o autor afirmava que o remédio é fornecido
pelo princípio republicano, e entendia “república como um governo no qual se apli-
ca o esquema de representação – abre uma perspectiva diferente e promete a cura
que estamos buscando”6.
Neste contexto, o tamanho da república servia como meio para repelir fac-
ções ou filtrar o facciosismo. Mais cidadãos eleitores, melhor discernimento, mais
grupos de interesses reduziriam as chances de conspiração. A representação dividi-
ria responsabilidades locais, estaduais e federais, e poderia realizar o interesse co-
mum contra facções majoritárias oprimindo minorias, exercitando o povo sobre as
razões pelas quais teria vantagens em controlar sua própria paixão. Assim, os vários
corpos legislativos se completariam, vigiando um ao outro, e os federalistas inte-
grariam república e federação. Madison insistiu em que, na democracia direta, as pes-
soas devem reunir-se todas; na república, atuam por representação (LEONEL, 2007).

Conclusão
É incontestável a inovação da teoria defendida pelos federalistas. Igualmente
é inegável que eles efetivamente lançaram as sólidas bases do liberalismo. É neste
momento que a ciência política encontra-se com a modernidade.
Com efeito, nota-se que algumas inovações são implantadas com O Federalista.
Viabilizam-se, entre outras, algumas categorias conceituais: República: Res publica (latim)
– coisa pública, forma de governo na qual o povo é soberano. Federação: união entre
Estados independentes para formar uma única entidade soberana, formando o Estado
Federal que está dotado de características próprias (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUI-
NO, 1995). Pode-se, assim, observar que, com a separação dos poderes Legislativo, Exe-

5
Como destruir a liberdade quando a base das discussões do federalismo é a liberdade?
6
Fazendo uma correlação com a democracia pura, define-a “como uma sociedade congregando um pequeno número
de cidadãos que se reúnem e administram o governo pessoalmente – tem de admitir que não há cura para os males da
facção. Uma paixão ou interesse comum dominará, em quase todos os casos, a maioria do conjunto” (MADISON, O
Federalista, n. 10, apud LIMONGI, 2004, p. 266).

83
cutivo e Judiciário, o governo passa a controlar o próprio governo, e o povo é a expres-
são superior da defesa intransigente da Constituição. Atua permanentemente como se
fora “sentinela”, defensor contumaz dessa nova ordem democrática.

Referências

ALBUQUERQUE, J. A. Montesquieu: sociedade e poder. In: WEFFORT, Francis-


co (Org.). Os Clássicos da Política. 13. ed. São Paulo: Ática, 2004.
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de
Política. 13. ed. Brasília: EDUNB, 1995.
HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O Federalista. Brasília: Uni-
versidade de Brasília, 1984. (Coleção Pensamento Político).
LEONEL, Mauro. “O Liberalismo Federalista: tensões e soluções dos EUA”. In:
Revista Arquivos Contemporâneos, São Paulo, v. 1, p. 1, 2007.
LIMONGI, F. P. “O Federalista”: remédios republicanos para males republicanos. In:
WEFFORT, Francisco (Org.). Os Clássicos da Política. 13. ed. São Paulo: Ática, 2004.
MELLO, Leonel Itaussu Almeida. John Locke e o individualismo liberal. In: WE-
FFORT, Francisco (Org.). Os Clássicos da Política. São Paulo: Ática, 2004.
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NASCIMENTO, Milton Meira do. Rousseau: da servidão à liberdade. In: WEFFORT,
Francisco (Org.). Os Clássicos da Política. 13. ed. São Paulo: Ática, 2004.
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RIBEIRO, Renato Janine. Hobbes: o medo e a esperança. In: WEFFORT, Francis-
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SADEK, Maria Tereza. “Nicolau Maquiavel: o cidadão sem fortuna, o intelectual de vir-
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curso de Ciências Sociais da Universidade de Montes Claros. Montes Claros, 2003, p. 1-7.
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