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O sexo começa no olhar, o amor começa no olhar, toda relação começa no olhar.

De

repente, ele pisca diferente e começa a olhá-la como amante. Ela então, sem saber,

reconhece o espaço sutil que lhe está sendo oferecido e lentamente nasce ali, agindo como

sua namorada. O primeiro beijo surgirá desse espaço emanado pelo olhar. Os filhos e a casa

de praia também.

A visão, e não o tato, é o único sentido que invade o objeto, penetra-o. Se a música

transpassa o ouvido e inunda o corpo inteiro, o olhar inverte esse movimento: ele é a

música, é ele que permeia cada parte do objeto. Os outros não veem o nosso olhar. O

sentido que ativamos é a audição. Os outros ouvem o nosso olhar. Um homem surdo saberia

o que é uma música ao ser contemplado por alguém. E um homem cego, ele também

conseguiria saber o que é um olhar ao ouvir uma música. Cada música é um mundo nos

olhando, nos costurando e mostrando que nós podemos fazer o mesmo com ele.

Já reparou que as músicas fazem nascer coisas em nós? Elas não só nos contam coisas, elas

fazem brotar coisas aqui dentro, elas nos fazem nascer de um certo modo em um certo

mundo. A música dá o espaço e a energia para um novo nascimento. Vórtex criativo, o olhar

funciona do mesmo modo. Olhar é fertilidade: os bebês não nascem do órgão genital, eles

nascem dos nossos olhos. Antes de darmos à luz, abrimos um local para novos seres em

nosso mundo. Antes de os darmos à luz, jogamos luz na cara deles. Os bebês, seus pais, o

amor, o casamento e os anéis, o divórcio e os papéis, do mais sutil ao mais denso, são todos

construídos antes de vir a ser.

O olhar, construtor supremo, é uma abertura de espaço fértil (vacuidade/liberdade) e

também uma projeção de gestos criativos (luminosidade). A visão faz nascer na medida em

que mescla vazio e luz, vastidão e criação, espaço e movimento, silêncio e pulsação.

Do vácuo à dança, todas as coisas pedem existência. Cada objeto é um pedido silencioso de

contemplação, cada objeto nos chama porque deseja nascer. Por isso a natureza sabiamente

deixou prazeirosos os processos de fertilidade. Tudo o que faz nascer dá tesão. Mais do que

o sexo, é o olhar a fonte autêntica do prazer. O homem gosta de olhar, de abraçar com sua

visão, envolver com sua consciência. A mulher curte ser olhada, penetrada em seu brilho,

encantando tudo ao seu redor com sua exibição.

É muito comum a discussão sobre qual o ato mais erótico: beijar ou transar? Os tradicionais

votam pelo sexo. Outros muitos defendem o beijo. Eu já acho que erótico mesmo é sorrir

junto olhando-se nos olhos. Já notou que a maioria das pessoas desvia o olhar ao sorrir?

Sorrir olhando nos olhos é ter prazer de dentro do outro. Daí pro sexo é um pulo…
Sorrir olhando nos olhos é a imagem perfeita de uma boa relação sexual. É muito comum

que a mulher se concentre demais em seu próprio prazer e se feche em seu interior (ela sorri

desviando o olhar), ou que o homem concentre-se demasiadamente em dar prazer e

esqueça de sua própria energia (ele olha mas não sorri). Os parceiros podem também não

revelar seu prazer ao outro e evitar se olhar durante o orgasmo, como se os olhos do outro

reprimissem ou restringissem o prazer. Eis um sintoma do olhar negativo, que não expande

o amor. Um bom olhar tem de aumentar a loucura, criar e não fechar espaços. Se isso for

treinado cotidianamente, os olhos dos dois vão se procurar espontaneamente durante o

orgasmo.

Um bom olhar é pura potência, capacidade de explosão em gestos, vidas, atos e mundos.

Como um holograma, ele projeta tanto os palcos de manifestação quanto os personagens e

enredos possíveis. Um bom olhar contém tudo aquilo que acontecerá naquela noite. O que só

comprova uma hipótese minha: sexo bom é aquele que não é necessário. Sexo é bom

quando não precisa acontecer para acontecer, aquele que já rola sem rolar nada, que já

estava acontecendo pelo olhar. Tente fazer amor em cada gesto, sem precisar do sexo em

momento algum e, quando ele de fato acontecer, me conte como foi.

A epígrafe do já clássico Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, nos instrui: “Se podes

olhar, vê. Se podes ver, repara”. Ele parou por aí devido ao contexto da obra, mas acho que

poderíamos continuar, não?

Se podes olhar, vê.

Se podes ver, repara.

Se podes reparar, contempla.

Se contemplas, enlaça.

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