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Livro de Contos

COMBOIO DE
CAUSOS

Alves Machado
(Paulo Henrique Alves Machado)

Cuiabá, 2008
O Golpe da Rosa

O ônibus parou no ponto lotado. Agripina desceu xingando o infeliz que tinha bulido com
ela a viajem toda.

- Vai esfregar no rabo da tua mãe! Dizia.

Já não bastava a Rosa ter morrido, devendo um montão para ela, ainda tinha correr atrás
do prejuízo e agüentar marmanjo tirando uma “casca”. “Pobre, Rosa!” pensava “mas
tinha que morrer justo agora, antes de terminar de pagar o produtos?”.

Agripina seguia apressada, rumo ao velório municipal. O coração quase saía pela boca,
não parava de pensar nas contas, para as quais já contava com o lucro da venda.

Naquela manhã, ela estava no trabalho, dando duro em uma cozinha emporcalhada de
gordura, quando a Jorgete ligou no seu celular – chamada a cobrar, quase não atendeu –
dizendo que a Rosa havia morrido. A diarista, também “consultora de perfumes e
cosméticos”, ameaçou desmaiar, entretanto não exatamente pela perda da amiga de tantos
anos, mas pela perda da cliente e do dinheiro. Acabou fazendo o serviço meia boca, para
ir ao velório. Droga! Gastando o vale transporte, teria que sair mais cedo de casa, no
outro dia, para seguir a pé até o serviço. Mas fazer o quê? Merdas acontecem.

Naquele momento ela adentrava o velório municipal. O recinto em questão fora


construído em forma de uma cruz: a nave central dava em uma capela, ladeada por outras
duas, menores. Agripina seguiu reto, até encontrar o corpo moribundo da amiga, velada
por uma única pessoa.

- O senhor é parente dela?

- Não senhora! Sou o agente funerário. Estou aguardando a chegada da família. E a


senhora? É parente?

- Não. Apenas amiga.

- Sinto muito.

- Ela era tão forte...

O agente tornou a ficar quieto no seu canto. Deixando a amiga entregue aos seus
sentimentos.

Agripina achou a colega muito abatida e inchada. Nunca fora bonita, mas, se a vida não
lhe havia premiado com a beleza, a morte lhe fora ainda mais cruel. Nem parecia a Rosa.
Elas se conheceram trabalhando na casa de D. Fé (Maria da Fé Carrancudo). Era uma
casa imensa, com dez suítes, além de três banheiros sociais, três salas, duas copas, salão
de jogos e varanda social. Para dar conta de tudo isso, apenas três faxineiras, uma
cozinheira, um jardineiro e dois porteiros. Na verdade quem trabalhava mais mesmo eram
a faxineiras (Agripina, Jucineide e Rosa) e, das três, quem trabalhava mais era a Rosa. Os
patrões pediam para deixar todo o peso para ela. Tinha um tapete pesado para levar para
fora? Chamem a Rosa; é para levantar os móveis? Deixem para a Rosa.
Surpreendentemente, ela suportava tudo com muita resignação. Parecia até que não lhe
era nada pesado. A mulher era um pé de boi. Nunca falou muito. Gostava de ouvir as
conversas das colegas e ria uma risada muito feia e grossa. As colegas se divertiam com
seu jeito desengonçado.

Trabalharam vários anos ali, mas, apesar dos patrões ficarem mais ricos, a cada dia, o
salário delas nunca aumentava; na verdade só aumentava mesmo o serviço, com as festas
e jantares de negócio. Foi aí que elas conheceram a Jorgete que era diarista e ganhava
bastante dinheiro com isso. Serviço não faltava, pagava-se melhor do que na D. Fé e,
muitas vezes, o serviço era mais leve. Disseram adeus a mansão dos Carrancudo e
tornaram-se autônomas.

A vida, naquele momento, não era nenhuma maravilha, porém libertarem-se daqueles
patrões para servirem a vários fez muito bem para elas, já que, a partir dali, conseguiram
construir suas humildes casinhas, apenas com o dinheiro das diárias. O mais
surpreendente de tudo é que a Rosa foi a engenheira-construtora. É!!! A Rosa não era
meia-colher. Não senhores! Ela era pedreira de colher cheia e ensinou as colegas a
profissão. Trabalharam em mutirão até terminarem as três casas, sem ajuda de homem
nenhum. Foi uma conquista e tanto na vida delas. Quando a coisa apertava, Rosa gritava
grosso, com seu jeito desajeitado:

- Corre logo, menina!

E lá vinha um carrinho de massa, ou de tijolo, ou uma ferramenta qualquer. Quando


terminaram tudo, comemoraram com uma cervejinha gelada até mais tarde. Aquilo serviu
para unir ainda mais o grupo e aumentar a admiração pela estranha amiga. Quando, no
entanto, falavam de homens, Rosa ficava quieta e bem calada; parecia não ter interesse
por aquele assunto. Agripina e Jucineide já suspeitavam de sua sexualidade, até que
tiveram coragem de fazer-lhe perguntas indiscretas. Rosa riu do seu jeito engraçado,
surpreendida com aquelas perguntas.

- Claro que não!

- Você já teve namorado?

- Uma vez, eu transei com um homem, mas não gostei.

- Como assim?
- Foi ruim.

- Ele deve ter machucado você. Deve ter sido isso.

- Mas você não gosta de homem?

- Gosto de apreciar os homens, mas não gosto que eles se aproximem de mim.

- E de mulher? Perguntou a segunda amiga.

- De mulher, eu só gosto da companhia e de ficar ouvindo essas histórias besta que vocês
contam.

E ria de maneira expansiva junto às amigas.

Ninguém conhecia parentes da Rosa. Ela mesma só falava, de vez em quando, da mãe.
Ninguém sabia se ela conhecia o pai ou se já tivera algum filho. Era uma semente que
nasceu do vento. Na verdade não se sabia muita coisa dela, nem mesmo o nome. Para
todos era sempre Rosa e nada mais. Nos últimos anos, como Agripina se tornara
“consultora de perfumes e cosméticos”, pusera na cabeça da desajeitada mulher que
deveria se cuidar. Fez regime, surpreendendo as companheiras com sua capacidade de
emagrecer, mas não ficou mais bonita. Ficou muito comprida e ainda mais desajeitada.
Depois começou a usar cosméticos (coisa que jamais fizera na vida). Não melhorou nada
e sua beleza aumentou tanto quanto seu interesse pelos homens.

Jucineide e Agripina armaram uma roubada pra a pobre mulher. Convenceram o Chicão
(um tipo vulgar, mas que encarava qualquer parada) de que ela era um fogo só. Na
primeira investida, o homem arrependeu-se como nunca em sua vida, pois Rosa
despachou-o a socos e ponta-pés. Essa aversão, no entanto, não diminuía seu entusiasmo
com os cosméticos, já que estava sempre investigando sobre “as novidades”. Para a
última remessa, ela encomendou um salário mínimo de cremes e perfumes. A amiga
havia parcelado o pagamento em duas prestações, mas só recebera a primeira parcela.
Agripina estava torcendo para que ela não houvesse usado todos os produtos. Talvez
ainda pudesse reaver a mercadoria e a vendesse, quem sabe ainda, por um preço
promocional.

Nesse instante uma jovem e elegante senhora entra transtornada pela capela e, chorando,
abraça o caixão. Junto dela uma dezena de pessoas parece estar ali para apoiá-la. Agripina
fica um pouco espantada com a emoção da mulher. Quem sabe fosse uma patroa da Rosa,
mas ela nunca havia mencionado uma patroa assim: tão ligada a ela. A diarista – “e
consultora de perfumes e cosméticos” – tenta mostrar sua solidariedade abraçando a
elegante mulher.

- Ela era tão querida!

A mulher retribui o abraço, aceitando a solidariedade. Emocionada comentou:


- Ela era tudo para mim!

Inoportunamente, mas ainda chorando, Agripina direciona o assunto para seu foco:

- Sabe, antes de falecer, coitadinha, ela guardou algumas coisas minhas na sua casa e...
sabe... eu estou até sem jeito, mas eu precisava pegar algumas coisas minhas que estão na
casa dela.

A mulher se assusta.

- Pegar o quê na casa da minha mãe?!

- Mãe! A Rosa era sua... mãe!

- Minha mãe se chama Mariana Brandão!

Ao perceber o fiasco, Agripina simula um choro convulsivo e se afasta rapidamente do


velório. Mas, ao andar em direção a saída e passando em frente a uma das capelas
laterais, vê a D. Fé, além de vários trabalhadores do lar conhecidos e um bando de gente
desconhecida. Todos estavam com uma expressão de espanto no olhar. Aqui e ali pessoas
cochichavam, alguns riam e outros simplesmente miravam Rosa no caixão com uma cara
de meu-deus-o-que-é-isso.

A Jucineide veio logo encontrar a amiga cheia de faniquitos.

- Agripina! Amiga, você não sabe da maior...

- Tenha compostura, Jucineide. É o velório da Rosa e você já me vem com suas fofocas?

- Que isso, amiga! Tá estressada é?

- Não. É que já aconteceu tanta coisa hoje... me conta: do que foi que a Rosa morreu.

- Um ataque do coração. Dizem que foi um só.

- Coitadinha! A chave do barraco dela está com quem?

- Sei lá.

- Merda!

- Que foi?

- Nada.

De repente irrompe um riso tão escandaloso que incomoda Agripina.


- Ô gente baixa, hein?! Falta de respeito com a falecida.

- Também... numa situação dessas...

- Do que é que você está falando?

- Tô tentando te contar: Rosa era homem!

- Quê? Tá doida?!

Jucineide ri a valer.

- Depois que ela morreu, a gente foi dar o banho e descobriu: Rosa tinha tudinho que um
homem tem. Acredita?

- Não.

Agripina não tinha nem o que dizer. Foi até o caixão e olhou bem para o rosto da amiga
falecida, percebendo que o queixo e o espaço entre o nariz e o lábio superior eram até
azuis: marca que revelava o cuidado dela em se barbear todos os dias. Apesar da
“amizade” parece que nunca alguém reparou direito naquela pessoa. D. Fé disse que já
sabia, mas que não tinha nada a ver com a vida dela. Sendo assim, nunca disse nada a
ninguém.

A diarista estava transtornada era muito para um dia só. Queria encarar logo o ônibus
lotado. Talvez em casa, depois de um bom banho, ela pudesse descansar um pouco para
encarar o trabalho no dia seguinte. Quanto à dívida: impossível pensar nisso agora. Rosa
era homem! Talvez ela precisasse de um gole, depois pensava na questão da chave, nos
produtos. Já não dava para confiar em mais nada. Que dia horrível!

Causo de Trancoso

Xá Terezinha já tirava o peixe seco do descanso na água morna para torrar na panela com
arroz. Ao despejar a iguaria na gordura quente, as erupções rompiam a monotonia
daquelas beiras de rio. Era tardezinha, mas uma imensa lua cheia já despontava sobre o
sarã e Terezinha já andava preocupada com os meninos. Gonçalo e Benedito haviam
saído para a pesca, mas não era comum ficarem até àquelas horas. Talvez, por causa do
luar, eles tenham decidido ficar até um pouco mais tarde. Noite de lua cheia era boa pela
visibilidade, entretanto, era muito perigosa também. Especialmente por conta dos seres
encantados.

- Petche seco cum arroz, xá Terezinha?


- Quentano aqui e esperano aqueles cria!

- Inda num vortaro?

- Hum! Atchei que cresceno miorava os dôs, mai agora dá inté mais trabaio.

- Lua tcheia é muito pirigoso. Inda mas quando o minhocão dá de atacá.

O interlocutor era xô Varti, antigo pescador da região e viúvo de xá Nica que fora mãe-
de-leite de Terezinha. Ele contava que, há muitos anos ele vivera momentos difíceis numa
noite como aquela.

A noite estava demais de clara e os pacús boiavam procurando um lanchinho. Xô Varti


estava feliz da vida com a canoa cheia de peixes. Já pensava até no dinheiro que ganharia
com tanta pesca. Dava até pra dar entrada numa televisão. Pensamento besta! Pra que
televisão? Se aquelas beiras de rio ainda não sabiam o que era energia elétrica; aliás, esse
assunto somente vinha à tona em época de eleição, mas aquele ano não tinha política,
então não convinha ficar quebrando a cabeça.

De repente, uma onda lapeou a canoa, seguida de outra menos forte. Varti teve
dificuldade para não virar com ela. Parecia até que uma voadeira tinha passado por ali,
mas que nada, tinha nada ali não. Depois disso, os pacús sumiram e o pescador ficou
dando banho na isca. Depois vieram uns respingos tão fortes que ensoparam a camisa de
Varti. Logo em seguida, outra onda tão forte que virou a canoa. Agarrado ao casco, ele
viu uma criatura que, a princípio, parecia mais uma centena de câmaras de trator
emendadas e espalhadas por sobre a água. O monstro ergueu seu pescoço imenso e o
enterrou na água, parecendo que queria encontrá-lo para devorar. Foi quando xô Antoim,
que Deus esteja pelas “oiça” dele, rezador dos bons, apareceu do nada em sua canoa e o
bicho maldito deu no pé, sumindo-se na água.

Xô Varti era dado a “causos de Trancoso”, que é como os antigos chamam as histórias de
terror contadas assim, oralmente. Mas aquela história mais apavorava xá Terezinha que a
confortava. Depois de contar o “causo”, o velho resolveu provar um pouco do arroz com
peixe seco, sem dar por conta da preocupação daquela mãe aflita. Ela tentava manter o
controle, mas já estava totalmente escuro e nada dos meninos. E o velhinho inventando
tanto assunto, que Deus sabe de onde tirava.

- Eles deve de tá entretido proseano qu’alguma moça!

- Ô tomano pinga puraí!

A mãe sentia um misto de preocupação e raiva dos filhos. A janta pronta e nada deles.
Não era a primeira vez que aprontavam daquelas. Em todas tinha sido malandragem.
Cachaça e mulherada, era sempre isso. Quando eram pequeninhos dava-se um jeito, mas
bater em homem de barba na cara...! Eles pagariam pelo sofrimento que a estavam
fazendo passar.
- Vô-me embora, siminina!

- Tá cedo! Bença!

- Bençoe! Preocupa não! Eles tão puraí!

- Deus te oiça!

- Vai vê, loguim eles tão aí.

A presença de chô Varti já se tornava incômoda, pois a mulher estava desesperada sem
saber notícia dos filhos. Sabe lá o que aconteceu? Vai que algum marido ciumento
mandou alguém dar cabo da vida dos dois; ou alguma dívida de jogo, um malfeitor
qualquer enganado; ou a canoa pegou em alguma pedra de ponta e afundou. Ela não
parava de cogitar desgraças. Mas os filhos eram jovens e poderiam estar também de papo
furado em algum lugar.

- Djuca xá bicicreta taí?

- Sinhora, tá sim!

- Cê mempresta!

- Como não!

- Gonçalo e Dito me pagam! Vô busca eles no inferno!

- Fala ansim não, xá Terezinha! Os menino deve de tá caçano!

- Mai tão e djá acharo.

- Passa a bicicreta aí!

Desesperada, Terezinha foi parar na rua e, mais precisamente, na zona do baixo


meretrício.

- Tô procurano meus fio!

- Tem muito filho ai dentro. Inclusive filho-da-puta. Informou uma meretriz que bebia na
porta do bar.

- Gonçalo e Benedito é o nome deles.

- Se gritar Gonçalo e Benedito aí dentro vem, pelo menos, a metade do cabaré aqui pra
fora, dona. Ainda mais nessa terra de Mato Grosso... parece até que só tem esses dois
nomes pra homem.
Xá Terezinha cansou-se das ironias daquela mulher, pegou a bicicleta e continuou sua
busca. Pensou em passar pela casa da xá Noca, pois os meninos gostavam de jogar bola
com os filhos dela.

- Os menino tão aí!

- Dimirxo dixe que encontrô cum eles.

- Graças a Deus! Onde, Dimirxo?

- Na estrada. Parece que perdero a canoa.

A mãe aflita não podia se conter. Tinha que voltar logo e ver se os filhos estavam bem.
Coitados dos meninos! Ela não se perdoava por pensar o pior dos dois.

Ao voltar para casa, ela encontrou, para sua felicidade, os filhos comendo a janta que
preparara.

- Que aconteceu, meus fi?

- Pedra de ponta torô a canoa no meio e a correnteza levô nois pra longe. Deus me livre!
Disse Gonçalo sem se delongar muito.

Estavam todos ralados e xá Terezinha lavou a feridas com água limpa, aplicando
compressas de arnica com cachaça para cicatrizar. Benedito, que era mais novo, tentou
contar alguma coisa para a mãe, mas Gonçalo o interrompeu:

- Cala sua boca, Dito. Cê num vê que a mãe ainda tá tremendo? Num adianta fala dessas
coisa. Deixa isso pra lá!

- Que que foi, heim?

- Nada não, mãe. Dito prexisa de dormi.

No outro dia, chá Terezinha lavava roupa na beira do rio, quando o filho mais novo se
aproximou:

- Mãe! Tenha cuidado, mãe. Minhocão quais matô nóis. Gonçalo num queria que eu
falaxe, mais o bicho quais matô ele e eu.

- Cunverxar, minino, num passa de sê uma sucuri.

Naquele momento uma onda lavou os dois. Um bicho enorme saltou para fora da água.
Sua silhueta negra desenhou um oito no espaço e voltou a mergulhar, gerando uma onda
que arrastou mãe e filho para dentro do rio. Apavorados, eles nadaram para a margem
temendo que aquilo os capturasse. Depois daquilo, chá Terezinha não sossegou enquanto
não saiu dali com os filhos. Foram morar na cidade, onde havia luz elétrica e televisão,
onde os filhos arrumaram empregos, onde os medos eram outros, mas nunca mais quis
voltar ali, naquele lugar do rio Cuiabá, onde o Minhocão é o predador-rei.

(***)

O Banquete da Carne

A mulher estava já assustada com o marido e suas novas manias. Agora dera pra comer
fígado cru com uns molhos de “sei-la-o-quê” e umas tripas grossas mais parecidas com
um p. O homem parecia fora do normal, pelo menos estava fora do seu normal: muito
pacato, trabalhador e totalmente submisso a sua mulher. Isso aconteceu faz tempo, a
maioria já se esqueceu, mas eu não.

Seu nome era Juca. Tinha um pequeno sítio no morrinho e dividia o tempo entre seus
trabalhosos afazeres ali e sua família no bairro COPEMA. Ele lutava muito para manter
sua família e, nisso, esquecia-se de si próprio tornando-se muito desleixado e gordo;
quando estava em casa, dormia; até mesmo sem querer. Muitas vezes, passava a semana
inteira lá no sítio e a esposa ficava sozinha na cidade com as crianças. Foi aí que a mulher
se apaixonou por outro rapaz. Sentaram para conversar e ele não aceitou a separação;
tentou convencê-la de que ficarem juntos era melhor para as crianças. Na verdade ele
estava pensando em si próprio, pois amava loucamente aquela mulher. A separação não
aconteceu, mas ela não o respeitava como marido e continuou a ter um caso com o
referido rapaz. O relacionamento extraconjugal, após um tempo, não deu mais certo.
Estava claro, no entanto, que ele não bastava a ela, como homem, e arranjou o segundo
namorado. Passados 10 anos de casamento fracassado, a mulher, July, estava vivendo seu
quarto relacionamento extraconjugal. Juca sabia os nomes e endereços, mas não fazia
absolutamente nada.

A idéia dos dez anos de casamento fez nascer em July um sentimento totalmente fútil:
comemorar as “bodas de estanho”. Começou a paparicar o marido para que ele fizesse a
festa. Ele achou o projeto muito bom, principalmente porque faria sua esposa feliz e
começou os preparativos: Alugou um clube muito bom, onde seria servido um jantar
muito farto e onde aconteceria um grande baile. Contratou um conjunto musical, mesas,
lembranças, tudo de primeira, mas o buffet seria por sua conta. July não gostava da idéia
de ter o marido cozinhando a noite toda, mas ele parecia irredutível. Se era assim que ele
queria, então que fosse!

Juca começou a trabalhar exclusivamente em função da festa. Era só no que falava e era
só no que pensava. Cada dia descobria um detalhe para incrementar: convites, enfeites,
ornamentos, recepcionistas etc. A cada semana que passava, o homem estava mais
envolvido nas suas bodas de estanho. Na última semana ele desapareceu completamente.
July achou que o marido tivesse desistido de tudo depois de ter gastado uma fortuna,
depois de ter comprado roupas caríssimas para ela e para as crianças. Talvez ele tivesse
descoberto tudo, o que era estranho, pois ela jamais havia escondido nada. Na véspera da
festa ele apareceu com manias estranhas. Primeiro comeu uma panela cheia de picadinho
de fígado cru. Parecia um doido comendo aquilo. Era nojento. Dava risada sozinho
enquanto comia aquilo. Dizia que era fígado de ganso, mas parecia mais fígado de porco.
Depois cozinhou umas tripas grossas e comeu dizendo que estava ficando fino, só comia
comida francesa. A mulher ficou intrigada com aqueles novos hábitos do marido. Teria
ele aprendido por onde andara na última semana? Ela chegou mesmo a provar daquela
estranha lingüiça, sob os aplausos festivos do homem que bebia no gargalo um vinho
caro. Na véspera das bodas, ele levou as crianças para a casa da sogra e preparou um
jantar a luz de velas, com um violinista vendado, mais um vinho de centenas de reais e
mais um prato exótico: estrogonofe de miolos e testículos flambados. Ele não contou o
que era e ela comeu tudo com prazer.

No outro dia, Juca estava transtornado. Calado, muito sério e todo sujo de sangue desde
as primeiras horas do dia. Havia matado 10 capados para as bodas e o trabalho agora
seria retalhá-los, temperá-los e assá-los para servir aos convidados. Na hora da festa,
aquele cheiro contagiante se espalhava por toda a festa. Quem não estava de barriga
cheia, começou a sentir uma dorzinha fina no estômago, toda vez que passava perto das
churrasqueiras. July, no entanto, estava contrariada com o marido que não parava de
trabalhar para tomar banho e receber os convidados ao lado dela. Ele parecia um louco,
sem dar atenção a ninguém, somente empenhado naquele seu ofício de assar carne.

- Cê num vai tomar banho e colocar a roupa nova que mandou fazer?

O marido nem respondeu e continuou a trabalhar. Ela, então, resolveu procurar o


aconchego dos amigos. Procurava entre os convidados alguém que ela convidara, mas
que não acreditava ter coragem de ir. Havia outros homens ali muito bonitos e que a
convidavam pra estar com eles. Ela então se entregou aos seus flertes, degustando a frise
caro que o marido comprara. Mas eis que surge o vulto de seu amante na multidão. Então
ela abandona o seu séqüito de admiradores e começa a procurá-lo na multidão. Mas o
rapaz parece ter evaporado, enquanto os convidados servem-se da deliciosa carne suína.
Todos comentam que há algo especial naquele molho, pois a carne parece mais saborosa
do que nunca. Juca, todo sujo de gordura e fuligem, serve com prazer os nacos de carne.
Todos comem, bebem muito e riem. Só o Juca parece meio estranho, nem parece que foi
ele mesmo que fez tudo aquilo.

July continua a procurar pelo seu amante, mas agora ela já via os três anteriores, andando
juntos, no meio da multidão. Engraçado, ela não os havia convidado, mas seria bom revê-
los. Continua sua busca sem êxito. Estanho, muito estranho. Por que eles estariam ali e
não viriam falar com ela? O mais difícil já fizeram que fora chegar até ali. Três deles
haviam se aventurado, mesmo sem terem sido convidados. Por que fugiam? De repente,
ela percebe os quatro correndo na penumbra e entrando em uma das dependências do
local. Ela vai atrás e se depara com uma cena nojenta: o local onde os porcos foram
abatidos e preparados para os espetos. Patas, rabos e cabeças ainda estavam ali,
juntamente com suas víceras cobertas de moscas.

July tinha nojo daquilo. Tinha nojo daquele marido que vivia junto daquelas coisas.
Certamente aquele casamento não chegaria ao décimo primeiro ano, mas ela queria
aproveitar aquele momento, aquela festa na qual o fracassado marido se empenhara tanto.
Ela sentia pena dele e sabia que ele a amava, mas era impossível gostar dele que parecia
um peão de fazenda. Ela era bonita, queria, portanto, homens bonitos e que a
satisfizessem em todos os aspectos.

Mas o que era aquilo? Em um canto daquele salão, havia alguma coisa estranha àqueles
fatos suínos: Mãos, pés e cabeças... humanas. Aquele louco havia matado gente ali. Os
crânios abertos de seus amores. Que asco! July estava transtornada com tanto horror. Ele
estava servindo carne humana, a carne de seus amantes, para todos que participavam da
festa. July saiu correndo e gritando:

- Não comam! Não comam esta carne! É carne de gente! Parem, por favor, parem!

A multidão foi ficando assustada; a maioria deixou o prato de lado, apesar de não
poderem acreditar no que ouviam. Alguns se aproximaram da mulher pedindo calma, pois
ela havia bebido um pouco demais. Ela saiu correndo para o lugar macabro e fora
acompanhada por um grupo que pôde constatar tudo. A banda começou a tocar uma
música alegre e os convidados foram dançar embalados pela bebida. Discretamente a
polícia levou marido e mulher, enquanto os boatos se espalhavam pela festa. Na cadeia,
Juca confessou que matara os quatro homens e servira naquela festa muito mais do que
carne de porco. Ao ser levado ainda gritou para a mulher:

- Agora eu posso ser seu único homem! Tenho tudo o que eles têm, pois comi a carne
deles, o fígado, o cérebro, os testículos e até mesmo seus pênis!

July vomitava de tanto asco. Pensar que tomara parte naquela orgia culinária.

As pessoas se esqueceram do fato. Muitos disseram que aquilo era apenas boato, mas
ninguém se esqueceu de como aquele churrasco era delicioso.

A Milésima Alma

Minha avó tinha devoção pelas almas. Não havia santo, para ela, mais importante que as
novecentas e noventa e nove almas do purgatório. Era estranho, mas minha avó era muito
correta naquela devoção. Toda sexta-feira, ela rezava novena para “as arma”. Dizia ela
que esses espíritos visitavam-na, que sonhava com eles quando alguma coisa ia acontecer.
Também enfrentava momentos difíceis, como da vez que os espíritos não a deixaram
dormir a noite, levantando a cama e largando-a com força no chão.

Todos estranhavam aquela devoção sinistra, mas ela não se importava, pois dizia que era
sua missão. Apesar do medo e do repúdio, as pessoas a procuravam para encaminhar
pedidos para as almas, pois, diziam, suas orações eram tiro e queda. Políticos, jovens
apaixonados, pessoas em crise no casamento, moribundos, todos procuravam minha avó,
para que ela pedisse às almas. Porém, um dia repentinamente, ela abandonou a devoção e
informava a todos que a procuravam que não mexia mais com isso.

- Virou crente, Bastiana?

- Não. Só não mexo mais com isso.

Era estranho tanta fé desaparecer assim, de uma hora pra outra. Mas a verdade é que
minha avó, já não queria nem ouvir falar mais das novecentas e noventa e nove almas do
purgatório. A gente perguntava, mas ela não queria dar explicações. Porém, um dia,
estando somente eu e minha mãe conversando sobre o assunto, ela nos fez uma revelação.

Disse-nos que a devoção aparecera em sua vida quando um dos filhos esteve muito
doente e preste a morte. Preocupada com a saúde do menino, ela adormeceu e sonhou que
uma criança aconselhou-a a rezar para as novecentas e noventa e nove almas do
purgatório e que fosse dado para o garoto o chá de uma tal raiz, encontrada em tal lugar.

Quando acordou, ela fez conforme se lembrava de ter sido aconselhada no sonho. No
mesmo dia, o menino levantou da cama e foi brincar. Depois disso, ela contava que
sonhou várias vezes com a criança que lhe ensinava remédios e orações milagrosas. Certa
noite, alguém bateu na porta. Era uma figura de capa e chapéu, cuja luz da lamparina não
podia revelar seu rosto, que lhe disse que tudo o que pedisse as almas seria atendido, pois
ela havia alcançado graça diante delas. Enquanto ela foi passar um café, a visita
desapareceu sem que ela soubesse, ao menos, o nome. Minha avó acreditava que fora
uma delas que estivera ali.

O seu irmão se candidatou para a câmara e ela pedira às almas. Foi o mais votado daquela
eleição; na falta de médico (e como faltava) era a Tiana, com seus chás e benzimentos
que dava jeito nas enfermidades. Um sujeito acertou a perna com um machado; Tiana deu
banho de barbatimão com arnica, benzeu sete dias seguidos e a ferida fechou. Um garoto
se queimou da cabeça aos pés; Tiana bezuntou seu corpo com clara de ovo, misturado
com um analgésico líquido, rezou para as almas e o menino sarou. Os médicos a
parabenizavam pela sua capacidade terapêutica. Ela dizia que ninguém lhe havia
ensinado nada, apenas as almas.

Dinheiro ela só recebia dos políticos e das pessoas apaixonadas que a procuravam. De
gente doente nunca recebeu um tostão. Toda sexta-feira, ela acendia as nove velas em um
pequeno cruzeiro que colocara no fundo do quintal e rezava nove terços pelas 999 almas
do purgatório. Quando alguém morria, ela era a primeira pessoa que aparecia pelo
velório. As pessoas acreditavam que ela era capaz de encomendar a alma para ser
conduzida ao paraíso. Com o passar do tempo, essa sua mania começou a ser repudiada
pelas pessoas que diziam ser ela um mau agouro. Os médicos, os farmacêuticos foram
chegando e a velha Tiana foi, aos poucos, esquecida.

Numa certa manhã, minha avó acordou de um sonho muito realista: o homem de capa e
chapéu pedia-lhe que acendesse agora dez velas e rezasse uma dezena no cruzeiro do
Cemitério da Piedade. Ela foi sozinha. O cemitério estava praticamente deserto. Ela fez o
sinal-da-cruz e atravessou o portão, caminhando por entre as tumbas. Aqui e ali deparava
com algum nome conhecido e parava para rezar pela sua alma. Já passava das dez da
manhã e ela se lembrava de que não havia ainda arrumado sua casa e aquele serviço
religioso tomaria muito tempo. Por que agora dez velas? Por que uma dezena? Por que ali
naquele cemitério? Ela aproximou-se do cruzeiro, acendeu as velas e iniciou sua reza. O
tempo fechou de repente, formando para chuva, e um vento frio começou a incomodá-la.
Uma a uma, pessoas se juntavam a ela naquela rezação. Parecia até que haviam
combinado; sem olhar pra trás ela sentiu que havia uma multidão naquele lugar e todos
rezavam juntos de maneira estranha. Quando voltou seu rosto, percebeu que estava
rodeada pelas novecentas e noventa e nove almas do purgatório. Ao seu lado o estranho
homem de capa e chapéu.

- Quem é você?

- A nonocentésima nonagésima nona alma.

- E por que a minha devoção mudou?

- Por que mais uma alma está entrando no purgatório: a sua.

Minha avó disse que não deu mais trela àquela conversa. Foi abrindo passagem por
aquela multidão de mortos até chegar à porta do cemitério, fez o sinal e partiu sem olhar
para trás até entrar dentro de casa. Lá caiu de joelhos em plena sala, pedindo perdão a
Deus e jurando jamais rezar por nada que não fosse o próprio Deus. Ela repetia
emocionada que só Deus tem poder e só ele é bom para o ser humano.

Eu duvidei muitas vezes das histórias fantásticas da minha avó, mas havia medo e
convicção naquela sua história mais recente. Ao morrer, ela foi rapidamente sepultada,
atendendo a um pedido seu ainda em vida. Quanto às orações só pediu que clamássemos
pela misericórdia divina. Difícil de entender, mas foi assim.
Alavanca Dourada

Nico andava fulo da vida com aquela situação. Primeiro: terra ruim que dava dó;
nem em época de chuva aquela terra prestava. Foi uma alegria quando comprou, mas
agora a segunda grande alegria viria no dia em que pudesse passá-la para frente.
Segundo: era a região mais agreste de Cuiabá. Próximo a Ponte-de-ferro só tem água
mesmo é no Rio Coxipó e Nico andava procurando pelo precioso líquido. Pagou para o
Rufino sondar poço e o filho-da-égua tinha dito que ali eram sete metros de
profundidade, mas já ia pra mais de 15 e nada da água. Tinha gastado todas as suas
economias pagando o homem pra furar sem sucesso. Agora estava sem dinheiro, sem
paciência e sem ter quem quisesse aquele pedaço de terra improdutiva. Ele mesmo
terminaria aquele poço sem ajuda de ninguém de fora. Preparou uma escada de corda
com vinte metros e chamou a mulher pra puxar o balde na carretilha. Com ela era muito
fraquinha, o balde tinha que ser pequeno e isso atrasaria um pouco o serviço, mas os
importante era não parar.

Nico baixou nos quinze metros do poço. Lá embaixo estava frio como naqueles poucos
dias de julho, nos quais cuiabano não sabe o que fazer, porque não tem roupa pra
agasalhar. Com um golpe de alavanca fez a piçarra desmoronar. O homem sabia que a
água só brotaria quando desse no cascalho e nem sinal dele por ali. Mais um golpe e mais
outro. Maria já reclamava de dor nos braços e à tardinha já caia. Aquilo parecia aposta de
loteria que no final só sobra decepção. Só mais umas alavancadas e ele desistiria por
enquanto. Foi quando apareceu um objeto fincado no meio da piçarra. Uma ponta, como
de um cabo de vassoura, mas feito de metal.

- Maria, traz um balde de água e uma lanterna pra mim!

- Que foi?

- Nada não. Traz a água e a lanterna.

Maria saiu resmungando. Já estava cansada daquilo. Achava que deveriam parar. Depois
ele ia querer janta pronta na hora, café e ela é que teria que providenciar tudo. Ele ficaria
na rede descansando e ela trabalharia até bem tarde para deixar a casa pronta. A mulher
não via a hora de vender aquela chácara e mudar de vez para a cidade, onde havia água
encanada e luz elétrica.

- Anda logo, mulher! Ouviu-se o grito de dentro do poço.

- Tô indo, sou só uma pra fazer tudo. Desabafou.

Quando a encomenda chegou ao fundo do poço, Nico pôde constatar: era a ponta de uma
bela aste de ouro fundido e cravada naquelas profundezas. Ele tentou puxar, mas havia
muito mais enterrado para dentro da terra. Talvez o objeto fosse do tamanho de sua
alavanca. Uma alavanca de ouro maciço! Depois de desenterrá-la, poderia doar aquela
chácara para alguém que não lhe faria falta. Compraria uma bela fazenda com muita
água, uma bela casa, animais, com energia elétrica. Compraria uma caminhonete
bonitona, como aquelas da gente grã-fina. O que faria com Maria? Maria era uma mulher
sofrida, sem modos, muito feia para ser mulher de um milionário. Talvez fosse melhor
deixar tudo em segredo até conseguir se livrar da mulher, depois, sim, venderia a
alavanca de ouro e adquiriria seu patrimônio. Era fácil: arrumava uma briga e pedia o
divórcio. Mas agora estava já escurecendo lá fora. Dentro do buraco o negrume já tomara
conta. No outro dia continuaria.

- Quê que cê tava procurando, homem!

- Nada não. Uma raiz que tá me dando trabalho.

A mulher estranhou o homem muito calado e pensativo. Parecia preocupado com alguma
coisa. O que poderia ser? Teria ele encontrado ossada de gente? Se fosse não adiantava
continuar que ela não beberia, nem tão pouco faria comida com uma água dessas.

No outro dia, Nico levantou cedo e não incomodou a mulher, deixando-a dormir. Entrou
no poço e iniciou a escavação do objeto precioso. Foi cavando em redor do objeto com
fúria. Avançou um meio metro, mas o objeto continuava do mesmo tamanho. Cavou mais
meio metro ao redor e nada da alavanca de ouro se revelar nem mais um centímetro.
Parecia até que estava afundando. Nico tentou cavar mais rápido e mais longe para evita
que o ouro afundasse. O homem já estava ficando cansado e nada do objeto se revelar
mais um pouco. Começou, então, a ficar furioso e a cavar com desespero. Na sua fúria,
não deu por conta de que estava entortando o poço que desabou por cima do agricultor.

Maria, que tinha achado muito bom ter ficado em casa dormindo, preocupou-se com o
marido e foi ao poço para ver como ele estava. Foi um desespero. Sem ter, nas
proximidades, quem pudesse ajudar, Maria desceu nos escombros e começou a cavar
sozinha na busca pelo marido.

- Nico! Já tô chegando, homem!

Deus dá a força conforme a necessidade, pois aquela pequena mulher cavou com as mãos
melhor do que com enxada. Finalmente achou o braço do homem e, um pouco depois,
sua cabeça também. Porém, era tarde; o homem estava morto e ela ainda teve forças para
terminar de desenterrá-lo.

Maria chorou muito durante vários dias. Mal sabia que o seu homem tramava deixá-la em
nome de um sonho de riqueza. Depois, ela retomou sua vida. Sem Nico para lhe impedir
de fazer o que queria, vendeu a chácara pela primeira oferta, comprou uma casinha na
cidade, arrumou um emprego e começou a se cuidar. Recentemente, de roupa da moda,
cabelo e unhas feitas, além de uma bela dentadura na boca; arranjou um namorado bem
mais jovem que ela. O rapaz não tem emprego e mora na sua casa. Faz, no entanto, todo o
serviço, seve a mesa quando ela volta do serviço, dá beijinho na boca e a chama de minha
princesa. Quanto ao Nico, poríamos dizer que fora “enterrado por um sonho”.
A Porca Encantada

Juscylene era boa por demais. A vida para ela começava na sexta-feira quando saia do
serviço como vendedora no centrão da cidade. Daí em diante era cerveja gelada,
rasqueado, beijo na boca e por aí a fora. Ninguém entendia como ela virava o final de
semana e ainda conseguia trabalhar na segunda-feira sem problemas. Era solteira e,
apesar de muito bonita, dizia que continuaria assim para sempre. Os pais já não tinham
poderes sobre ela. A casa era um dormitório durante a semana. De sexta a domingo, não a
viam. Muitas vezes, seguia direto para o serviço e a família a reencontrava na segunda-
feira à noite.

Amores, ela os cultivava aos montes. Dizia que não era de ninguém e que não permitia a
ninguém mandar na sua vida. Era de fato uma mulher independente e decidida, mas a
ordem natural da vida não a perdoou: certo dia, Juscylene ficou grávida. Ela pesou tudo
racionalmente: a transformação do corpo, a dedicação que isso exigiria e os custos. Não
teve dúvida, faria um aborto. Teve, então, que procurar D. Fia, benzedeira, parteira e
experiente em fazer os abortos. D. Fia fez-lhe um chá de Buchinha e a moça sorveu o
amargo veneno. Esteve muito mal e acamada por uns três dias. Então o inocente veio ao
mundo já sem vida. Juscylene guardou um mês e depois voltou à antiga vida.

Os familiares reprovavam seu estilo e a convidaram a deixar o núcleo familiar. Ela,


sempre muito segura, arranjou um apartamento e para lá se transferiu. Seguiu assim, sem
se importar com o que falavam ou pensavam dela. Sempre apaixonada por um novo amor
e entregue ao vício da bebida, ela não tinha exatamente as coordenadas de sua vida.
Assim mais um rebento insistia em ocupar-lhe o ventre. Ela já sabia o caminho das
pedras, mas precisava da ajuda das amigas. Lucia foi quem a velou durante seu processo
abortivo e, como se nada tivesse acontecido, logo ela estava de volta ao seu ritmo louco
de vida. Situações como essa se tornaram, apesar de eventuais, algo normal na sua vida.
Depois, quando ninguém mais se dispunha a ajudá-la, passou a usar os serviços de
clínicas clandestinas especializadas.

Conta-se que ela teria se envolvido com um jovem estudante e que o pai do mesmo teria
patrocinado a clínica para retirada do feto antes mesmo do rapaz tomar conhecimento da
paternidade. Quando ele, porém, ficou sabendo, já era tarde e tudo o que conseguiu foi
um recipiente com a bela e perfeita criatura moribunda. Esse rapaz enlouquecera,
guardando o cadáver dentro do seu quarto. Até que as autoridades o obrigaram a fazer o
enterro. O rapaz não foi preso, entretanto, por piedade da polícia que compreendeu sua
história e seu lastimável estado emocional.

Juscylene fazia questão de nem tomar conhecimento desses fatos macabros, já que, com o
aborto, havia também acabado o relacionamento com o rapaz. Depois disso, ela se tornou
uma espécie de “Barba Azul” das crianças, seus amigos se afastaram dela e já não era tão
popular como antes. Dizia-se que já havia feito quase dez abortos em toda a sua vida.
Juscylene teve de levar uma vida mais recolhida do que antes, mas, aos 33 anos de idade,
uma nova gravidez veio incomodá-la. Sozinha e sem dinheiro, ela recorreu aos meios
caseiro para expulsar o filho do seu ventre, mas seu corpo frágil, envelhecido
precocemente, não resistiu a tamanha agressão e veio a falecer. Seu corpo foi sepultado
no cemitério do Porto.

Naquela mesma noite do seu sepultamento, a atalaia do campo santo narrou ter visto uma
porca muito grande andando pelas alamedas do cemitério em companhia de sete leitões.
Segundo ele, era ela e seus sete filhos assassinados. Essa porca aparece sempre nas
madrugadas e, juntamente com seus sete leitões, corre atrás das pessoas que perambulam
tarde da madrugada pelas ruas. Foi o castigo que ela recebeu por levar uma vida sem
regras e desrespeitar a vida: a sua própria e a de seus filhos inocentes.

Xocororé Encantada

- Verdade que esta baía é encantada, vô?

- Verdade! Aqui, na baía de Xocororé, acontece coisa que qualquer um duvida.

No outro extremo da canoa, um homem ri debochando.

- Deixa o vô contar, pai!

- Conta! Não tô impedindo ninguém. E continua com ar irônico.

- Seu pai faz assim, porque não conhece nada desta baía, não sabe nada do pantanal e
sobre as suas tradições. Daqui, ele sempre gostou foi do dinheiro que eu sempre mandei
pra ele estudar e ter vida de rei em Cuiabá.

- Vôte! O que é que eu estou fazendo? Já vai começar?

- Conta, vô!

- Essa baía é como se fosse uma porta para outro mundo, povoado de mães e negos-
d’água, minhocão e uma luz encantada que vem bem lá das profundezas. Só nós que
vivemos por aqui e que pescamos nesta baía é que podemos testemunhar aquilo de que,
hoje, os doutores da capital fazem chacota, dizendo que é fantasia. Prova disso é que não
se grita, quando se está pescando por essas águas.

- Que acontece se gritar, vô?


- Os seres encantados ficam enfurecidos e começam a agitar a água. Posso lhe afirmar
que não há quem pare sobre uma canoa dessas, tão grandes são as ondas que aqui se vê.
Meu pai, um dia, pescava por estas bandas, quando fisgou um peixe muito grande que foi
levando linha com vara, pescador e canoa tudo junto. Ele nunca tinha visto um peixe de
água doce com uma força daquelas. Então, depois de arrastar a canoa com meu pai dentro
por quase uma hora, o bicho deu um último sopapo lançando o velho dentro da água.
Quando voltou a tona, ele pôde ver uma criatura negra, com olhos de perola, de cabelos
longos e muito lisos, parecida com uma mulher, mas quando ela mergulhou exibiu uma
imensa barbatana de peixe. O medo foi tanto que meu pai, depois disso, nunca mais
pescou por aqui.

Naquele instante, uma lapada muito grande na superfície da água gera uma onda de
proporções inacreditáveis, deixando pai, filho e avô bastante surpreendidos.

- Que foi isso, vô?

- Tô falano!

- É peixe grande: dourado. Remenda o pai.

- Nunca vi dourado desse tamanho. Observa o avô.

O filho fica calado e sério. Também nunca vira um dourado daquele tamanho.

- É um nego-d’água, ou uma mãe-d’água, incomodados com esse nosso falatório.

- E se for o minhocão, vô?

- Se fosse o minhocão a gente não tava mais encima dessa canoa. Já tava tudo espatifado
por aí. Que minhocão é criatura das mais perigosas. E essa luz misteriosa que sai do
fundo da baía, dizem que é um diamante gigante que vem de dentro do poço, onde mora
o minhocão.

Depois do susto o pai do menino ficou calado e sério, ouvindo seu pai contar aquelas
histórias.

- Vamo embora!

- Vamo que já é tarde.

- Eu queria ver a luz do diamante.

- Isso ninguém sabe quando acontece. É coisa muito difícil de se ver. Acho que seu pai já
viu uma vez.

- Já. O filho responde emburrado.


- Que legal, pai! E como é?

- É uma luz, como um farol. Mas só dá pra ver à noite.

- Legal. Vamos esperar à noite, pra ver a luz.

- Tô fora! Vamo embora. Diz o pai sentenciando.

- Um dia você vê, meu filho. É só não abandonar a baía e suas tradições. É só voltar mais
a este lugar, que um dia você verá. Diz o avô conciliador.

Santo Antônio do Rio Abaixo: o milagre

Frei José era um italianinho de vinte e cinco anos, aparentando, no entanto, ser
senhor de seus trinta e tantos. Estava ali naquela balsa numa missão muito triste: dar
extrema unção aos viajantes moribundos. Até aquele momento, já havia sido obrigado a
fazê-lo em duas ocasiões; todas elas por uma única causa: afogamento. Havia seis meses,
saíram de São Paulo, tomando o rio Tietê – o estranho rio que sai de bem próximo do
litoral e corre para o interior – depois foram parar em um outro muito grande, chamado
Paraná; desceram até as terras da coroa espanhola, subiram por outro chamado Paraguai e
agora navegavam por um rio tortuoso e cheio de armadilhas, chamado Rio Cuiabá. Os
perigos maiores daquela viagem eram os selvagens da terra e as maleitas.

Aqueles homens não era o que se poderia chamar “civilizados”. Tinham um único
propósito na vida que era o de ficarem ricos o mais rápido possível. E, em nome desse
ideal faziam loucuras como aquela, ficar de seis meses a cinco anos no sertão, voltando,
muitas vezes, de mãos vazias, ou mesmo jamais retornando ao lar.

Era como uma guerra. Tudo era precário, sem conforto. Aquelas pessoas desiludidas já
não respeitavam nada. Somente as armas impunham respeito ali. À religião, recorriam em
caso de morte, doença ou perigo iminente. Frei José não se sentia nada confortável junto
àquelas criaturas brutalizadas. Ele fora um menino mimoso, educado numa excelente
escola de Florença. Aos quinze anos já era professor de latim, escrevera ensaios elogiados
sobre história e sobre a arte renascentista, trabalhara no Vaticano e agora estava ali
naquele fim de mundo, junto a homens que não sabiam sequer o que fora o renascimento.
Na tentativa de cativá-los, o jovem monge carregava junto a sua bagagem uma imagem
de Santo Antônio, o santo português. Sendo eles portugueses ou descendentes diretos
desses, frei José acreditou que aquela imagem os tornaria mansos, mas aquela gente já
não respeitava nada: eram adeptos da luxúria e da libertinagem. Esta imagem de Santo
Antônio, no entanto servia de companhia a pobre figura do frade franciscano, ao menos
dois franciscanos ali, tementes a Deus.
O sol já começava a declinar quando passaram pela aldeia dos Bororos. Isso significava
que estavam há duas milhas do arraial do Rio Abaixo. A tripulação ficara alvoroçada ao
se aproximar da aldeia; certamente loucos para tomarem liberdades com as mulheres
selvagens – conhecidas pela beleza de seus corpos, bem como pelos seus cabelos muito
negros e escorridos – mas era melhor se apressarem para chegar ao arraial, onde era a
parada de costume. Ali descansariam dormindo em terra, comeriam a mujica de peixe
feita por “nhá Mariquinha”, ou “xá Mariquinha”, como preferia os aldeões, e depois
seguiriam até Lavras do Sutil.

Porém, em boa hora, aportavam no Rio Abaixo, já que os Guatós (índios inimigos)
montavam emboscadas no trecho entre Rio Abaixo e Lavras. A notícia foi recebida com
decepção pela maioria já contaminada pela febre do ouro e ansiosa por encontrar logo sua
fortuna para empreender o quanto antes à viagem de volta. Frei José era um desses, tão
logo chegasse às Lavras e recebesse a devida esmola por seus serviços religiosos,
retornaria na próxima balsa para São Paulo e dali só sairia se fosse para retornar a velha e
boa Itália; do contrário, passaria o resto da vida limpando o chão de algum liceu, mas
nunca mais retornaria àqueles sertões.

Em terra, os homens pareciam recobrar sua humanidade: alguns faziam a barba, lavavam
as roupas para irem a missa, usavam um vocabulário mais cristão e chegam mesmo a
fazer pé-de-alferes a alguma rapariga do povo. Tão diferentes daqueles animais que
viajavam em companhia de um frei assustado com tamanha selvageria. E assim passaram
três dias; o Franciscano chegou mesmo a rezar missa no arraial, enchendo de esperança o
coração dos aldeões que há muito imploravam por um padre. Mas eis que as balsas
começaram a descer e a trazer notícias de que um tal comandante José Maria afugentara
os selvagens, expulsando-os para muitas léguas de distância. Tão logo souberam, os
viajantes deixaram suas ocupações temporárias para voltarem à balsa.

Creio ter-me esquecido de dizer que os viajantes haviam chegado num dia de muita
chuva, encontrando um rio bastante ressaqueado, cheio e furioso. Três dias depois, ele
estava bem mais calmo e o nível das águas abaixara um pouco. Pois reside aí a segunda
grande frustração dos aventureiros: a balsa chata estava encalhada em um banco de areia.

Mestre Vasques, aldeão e canoeiro velho, coçou a cabeça cabeluda e sentenciou:

- É ter paciência e esperar o estio.

Antônio Golvea ficou furioso:

- Arrelio! É alugar os burros e seguir por terra.

Gomes era um homem alto, moreno de olhos muito negros e barba cerrada. Era a figura
mais robusta daquela comitiva. Amarrou uma corda à cintura e a atou ao barco, lançando-
se, em seguida, ao rio. Frei José pensou consigo: “Mais uma vítima para esse rio-
serpente!” Crendo que Gomes também morresse afogado, mas o musculoso jovem teve
sucesso no seu trabalho.
- Só a frente está encalhada.

- Arrumem então um cavalo! Disse Manoel Dias.

- Matam-me todos os cavalos e burros sem sucesso. Respondeu Mestre Vasques.

Gomes tinha um plano: primeiro aliviar toda a carga da chata e depois rebocá-la com três
canoas indígenas (cada uma com três remadores), puxando-a a favor da correnteza. O
trabalho era arriscado, no entanto, para os rebocadores que poderiam ser atropelados pela
balsa. Porém Gomes garantia que tão logo a embarcação fosse desencravada, as cordas
seriam cortadas para que as canoas fugissem do rebote da chata, enquanto os homens em
terra a seguravam. E assim fizeram.

Tudo fora retirado da embarcação, até mesmo o pequeno Santo Antônio que fora
imediatamente levado para o interior da casa mais próxima. Os aldeões tinham veneração
por imagem de santos e não poderia deixá-la ali, no meio dos cacarecos imundos.

Gomes estava pronto para executar o trabalho, não estava, no entanto, seguro do sucesso
e temeroso de uma tragédia. Os companheiros de empreitada também temiam pelo pior e,
assim, logo ouviu-se:

- Valei-nos Nossa Senhora!

Mas Gomes era Espanhol e moçárabe. Sua história estava mais voltada ao islão que ao
cristianismo. Com todo o respeito à mãe de Jesus, mas não era esse grito que lhe vinha à
garganta.

- Deus é grande! Gritou finalmente.

E ao som daquela invocação do nome de Deus os esquifes dispararam puxando com


força. Gomes liderava, no remo, um dos esquifes. Suor e água misturavam-se naquela
jornada perigosa e brutal. Eis que o mouro sentiu a embarcação deslizando lentamente.

- Mais forças, homens lá!

A madeira da embarcação cantou escorregando do barro para a água profunda.

- Corta agora! Gritou o mouro.

A chata, como se esperava, avançou contra as canoas com ferocidade. A de Gomes, que
estava no meio, sofreu o golpe da embarcação maior. Xá Mariquinha já gritava chorando:

- Oh Jesus, que eu encomendo! Meu sonho ruim! Ai! Ai!

- Homem na água!
- Não carece desespero. O homem está com vida. Disse mestre Vasques.

Gomes quebrara a perna, mas não havia nada que o fizesse ficar ali, queria ir para Lavras
com os companheiros. O desfecho dramático não foi empecilho, para os viajantes
ansiosos por chegar ao “El Dorado”; de forma que recomeçaram a viagem tão logo a tala
foi colocada em Gomes. Frei José nem conseguiu terminar o chá de ervas que a velha
Mariana fizera para o seu resfriado.

- Embora, padre de Deus!

O frade entrou na embarcação, rebuçou e dormiu um sono pesado sob o balanço das
remadas da galé. Quando acordou já era noite e alguns dormiam enquanto outros
montavam guarda à embarcação, bebendo aguardente e fumando seus cachimbos. Frei
José procurou a companhia do ilustre franciscano, mas não o encontrou. A imagem de
Santo Antônio ficara no arraial do Rio Abaixo para alegria dos aldeões e tristeza do pobre
frade.

Frei José ficou ainda uma semana nas Lavras do Sutil, também conhecido pelo nome do
rio: Cuiabá. Mas não houve como se adaptar, tão logo recebeu um bom número de
recompensas, tratou logo de se retirar. Ao pararem no arraial do Rio Abaixo, frei José
constatou com alívio que os aldeões haviam cuidado muito bem da imagem do santo; e o
devolveram com tristeza. Porém, ao embarcarem para continuar a viagem, eis que a balsa
encalha novamente, por sorte havia outra balsa que, bem atrelada à outra por uma trave,
fez o reboque de maneira menos dramática que a anterior. Os passageiros, no entanto,
estavam indignados, dizendo que a culpa era do padre, “designo de Deus”; “Nosso
Senhor quer que ele fique!” E não o aceitavam na embarcação. Mas o capitão, usando de
muita perspicácia e bom senso, sentenciou com cara de piedade:

- É o santinho! O santo quer ficar! Deixe a imagem, bom padre, e vamos seguir viagem.

Os passageiros esperavam a decisão do franciscano com ansiedade e ele entendeu que era
a única maneira de seguir para a civilização. Beijou a imagem e pediu desculpas em
latim, entregando-o a xá Mariquinha.

- Cuide bem desse santinho, nhá!

Ela, com lágrima nos olhos:

- Com a minha vida, meu bom padre.

O frei embarcou muito triste e nunca mais foi visto por aquele povoado. Mas, quando a
balsa desapareceu no rio, mestre Vasques comemorou:

- O santo quis ficar com a gente! Viva nosso santo milagreiro! Viva Santo Antônio do Rio
Abaixo.
A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DE UMA MULHER

É Domingo. Um Domingo quente e de sol ultrabrilhante. Uma mulher jovem dorme em


decúbito ventral, os braços cruzados sob o travesseiro, o lençol cobre-lhe basicamente o
glúteo generoso, o condicionador de ar permite-lhe conforto térmico para estar assim
adormecida às 9:00 horas da manhã na saárica Cuiabá. Ela desperta, mas permanece de
olhos fechados, em alpha como se diz no jargão médico. No seu caso, porém, já deve ser
o estado ômega, pois há horas ela dorme. Seu nome é Valéria, tem 25 anos, trabalha e faz
faculdade à noite. Ultimamente tem sentido uma vontade incontrolável de dormir.
Dormiria dias seguidos se pudesse. Ao mesmo tempo, ela sente vontade de sair, fazer
coisas agradáveis, curtir os amigos, dançar... mas o trabalho e o futuro têm consumido
todo o seu tempo. Quando está livre – coisa rara nos últimos tempos – não tem energia
para viver uma vida normal de uma garota solteira e independente. Vida dupla: professora
e advogada, duas profissões exigentes. Ainda mais quando vivida assim: professora
profissional e advogada aprendiz. Entre avaliações e processos ela tem perdido o juízo.
Reclamar? Nem pensar, pois logo vem um: “Você deveria dar graças a Deus... blá... blá...
blá...”. Sinal dos tempos: tempos de recessão, desemprego, superpopulação e de um
pessimismo sem precedentes na história de Valéria.

Ela levanta, senta na cama, olha o relógio e constata que a manhã se foi. Ontem foi dia de
balada. Já não estava muito aí, mas o tempo fechou quando o passado ressuscitou diante
dos seus olhos. Não! Chega! Sofrer por uma relação que já deu o que tinha que dar?
Valéria vestiu a máscara da “mulher segura” e levantou vôo, indo chorar na sua cela
solitária. Um bosta, um bostinha ordinário, um bostinha... adorável! Valéria tem um quê
de estética barroca no seu comportamento. Só de pensar, chora por aquilo que ela jura
não sentir. São máscaras, máscaras que lhe revestem o verdadeiro rosto. São tantas que
ela mesma já não sabe qual é o seu verdadeiro semblante. A máscara de mulher, a
máscara pequeno-burguesa, a máscara de educadora, a máscara de filha, a máscara de
irmã, a máscara de advogada... quem é Valéria? Ela sabe que usa máscaras e acostumou-
se principalmente com a máscara do PREDADOR. Ela sabe... pois, em suas duas
profissões, assiste a queda de máscaras o tempo todo. O que ela quer da vida é muito
claro. É o que todos querem. É o sucesso. Indecifrável, obscura e incerta palavra:
sucesso. O que é o sucesso nazareno? Jesus não teria resposta, assim como não teve para
a pergunta do seu inquisidor.

Bela e vistosa, com a força das ninfas do campo – cevadas pelos bons alimentos e pelo
trabalho constante – ela finalmente consegue levantar-se e caminhar até o banheiro. Ao
escovar os dentes, percebe as olheiras e quer morrer. Penteia os cabelos e constata que
estão caindo em demasia. Ela está um terror naquela manhã. É isso que ela sente. É assim
que ela se sente. Desce até a cozinha e procura alguma coisa bem light para matar a fome
naquela manhã – afinal o horário do almoço já se aproxima. Se tomasse um “café-da-
manhã” de verdade, viraria uma pipa no final do dia. Merda! Não tem suco de laranja,
não tem “porra” nenhuma de fruta. Pois vejam só: saem de casa o pai, a mãe e a irmã e
não têm a hombridade de fazer uma feirinha sequer, deixando “o traste” a morrer de
fome. O pior de tudo é que não tem ninguém para ouvir suas reclamações e dramalhões.
Droga! Só tem ovos, leite e tamarindo. Ela odeia tamarindo. Vai fazer um ovo frito.
Depois que comeu veio o arrependimento: “Se tivesse tomado um copinho de leite teriam
sido melhor, menos calorias. Já deveria é ter feito o almoço logo. Tenho que almoçar
sozinha mesmo”. Uma semana sozinha é o suficiente para enlouquecer qualquer mulher
como Valéria, que precisa de criaturas ao seu redor, mesmo que, quando as tem, pareça
não fazer muita questão delas. Alguém que possa ouvir-lhe os gritos e faniquitos já estava
bom. Ela não sente vontade de fazer nada, arrumar a cama, almoço, varrer a casa pra quê?
Pra quem? Naquele momento, ela é a pessoa mais solitária do mundo. Resolve ligar para
a melhor amiga, mas, antes que possa desabafar, começa aquela choradeira. A amiga tem
mais problema, ou acha que tem mais problemas do que ela mesma. Valéria resolve
desligar. Aquele papo está enchendo. Será que não tem um cristão nesta cidade com quem
se possa ter uma conversa de nível razoável?

Ela sobe para o quarto e, diante da pequena imagem de Nossa Senhora Aparecida, pede à
intercessora dos homens junto a Deus que lhe ajude para que possa terminar seu curso de
direito e iniciar uma nova carreira, em uma nova cidade, onde ela possa ter uma vida
mais feliz, onde as pessoas possam entendê-la melhor, onde ela possa crescer, onde não
faça tanto calor que faz a maquiagem borrar, suar a roupa, mau cheiro... Oh, minha Nossa
Senhora, me ajude! Bebida energética já nem faz mais efeito, nos seus serões para estudar
ou corrigir provas. Já pensou até em dar uns “tiros” – daqueles tiros sem arma – para
ressuscitar após o cansaço mortal, mas não foi essa formação que ela recebeu. Não
combina com ela. Olhos sem palpebras perscrutavam sua vida. Ela não decepcionaria sua
santa protetora.

A estética barroca volta a tomar conta dessa mulher. Será que existe reencarnação? Na
igreja ensinavam que isso era bobagem. Mas se não existisse, o que ela fizera contra
Deus para despertar sua ira? Por que ela sofria tanto? E, se existisse, deveria ter sido uma
pessoa muito ruim na vida passada, que fazia as pessoas que a amavam sofrer bastante.
Então, se fosse assim, bem feito para ela. Tinha mais era que sofrer.

Ela lembra mais uma vez do ex-namorado e as lágrimas começam a sair dos seus olhos
sem que as queira. Meu Deus! Ela nunca seria nada na vida! Nasceu para ser trouxa!
Nasceu para dar valor a quem não a valorizava! Um choro convulsivo toma conta da bela
e jovem mulher. Uma pérola. Uma pérola barroca com direito a todas as suas curvas e
todos os seus conflitos. Nesse momento, ela gostaria de falar com a mãe, mas não fará
isso, pois, como boa mãe, ela ficaria muito preocupada e, talvez, até interrompesse sua
viagem por uma bobagem sua. Engole o choro e vai até o quarto da mãe. Precisa, nem
que seja, sentir o seu cheirinho. Ao abrir o guarda-roupas, descobre um álbum de retratos
seu e de sua irmã, ainda crianças, que a mãe guarda ali. Sentada na cama dos pais ela
vasculha aquele documento secreto. Fotos clássicas: sentadas na motoquinha, de beca na
formatura do primeiro ano de escola, montadas a cavalo na fazenda do avô... mas uma
foto em especial chamou-lhe atenção, aquela em que aparecia vestida de bailarina.
Valéria descobriu ali seu verdadeiro semblante, despido de todas as máscaras que criaria
no futuro. Ela sonhara ser bailarina, mas como foi que aquele sonho havia acabado?
Quando suas colegas lhe disseram que ela estava muito gordinha para dançar. Um tiro.
Um inocente tiro disparado conta seu eu mais puro, mais original, mais essencial. Um tiro
fatal. A inocente perversidade feminina.

Valéria sentou-se em frente à televisão e, com o controle remoto na mão, começou a


selecionar canais: porcaria, porcaria, porcaria, porcaria... chega! Vai para seu quarto ler
um pouco de Eça de Queirós. Ela é um pouco Luísa e um pouco Juliana. Um pouco o
bem e um pouco o mal. Como todos. Você aí, leitor, também é assim! Tem dentro de si as
duas naturezas escondidas sob as muitas máscaras que artesanalmente criou ao longo da
vida. Meu Deus! Que dia é amanhã?! Puta-que-pariu! Último prazo para protocolar
aquele processo e ainda tem prova para corrigir e entregar esta semana! Imediatamente
Eça é lançado de lado e Valéria vorazmente revira sua papelada a procura do processo, a
procura das provas. Sua cabeça é um turbilhão, uma confusão. O que fazer primeiro, o
presente ou o futuro? O jeito e não pensar e começar logo.

Pelo jeito haverá mais uma noite de serão. Ela nem se lembra de que ainda não almoçou,
de que apenas comeu um ovo frito. Não lembrará de fazer o jantar também, imersa no
grande mar de trabalho que a espera, mas é bom certificar-se de que há bebida energética
na geladeira. Ela esquecerá tudo: que terminou o namoro, que está sozinha, que sua vida
está um tédio... só trabalho, só trabalho, como uma máquina.

Valéria é o fruto da emancipação da mulher; é fruto das lutas feministas do século XX.
Mas elas não imaginavam isso. Certamente elas não idealizaram isso.

MEU SONHO, MEU ABISMO

Podeis chamar-me como quiserdes. Já não me importo com a alcunha que, por ventura,
invocam-me. Há muito mesmo que não sou dono de mim. Lembro-me pouco do meu
passado, mas sei que hoje vivo no inferno, com direito a todos os demônios e tormentos
que podeis imaginar. Como tudo teria começado...? Tal como um sonho, recordo-me de
fragmentos dispersos, desconexos – ao menos parecem-me. Talvez podeis ajudar-me.
Mas não vos obrigueis a isso. Sei que ninguém mesmo se importa com a minha condição.
Acostumei-me a viver a margem, como os páreas.

Lembro-me de um pai a visitar-me de longe em longe. Sempre a justificar-se: muito


trabalho, muito trabalho, muito trabalho..., no entanto, tornar-se-ia meu herói, após o
desencanto do meu universo. Não me perguntai, pois não vos saberia dizer o que
realmente significa esse desencanto. E hoje vivo aqui, como um bicho rodeado de
aberrações, deformações da realidade. Diariamente vejo os jovens entrarem por aquela
porta maldita; tento gritar, apelar para que eles não entrem, mas é tudo inútil. Eles têm os
ouvidos mocos para os apelos de um traste como eu. Amanhã serão trastes também, mas
eles não acreditam nisso.

Foi ela quem me trouxe aqui. Eu creio que não pensava em nada quando vim para cá, a
vida parecia-me um paraíso de liberdade e gozos. Cheguei a pensar que não havia lugar
melhor no mundo. Mas eu estava errado. Tento partir, mas não posso. Agora estou fraco
para tentar fugir desta fortaleza química, este encantamento criado pelo demônio
chamado Humanidade. Ela envelheceu e já não me satisfaz. A paixão dos primeiros
tempos acabou, mas continuamos unidos por uma dependência, que já não sei dizer de
onde vem. Eu gostaria de matá-la, mas há quem diga que a maldita é imortal com seu pai,
o demônio Humanidade. Eu sei, porém, que tudo é finito, mas, no nosso caso, a extinção
será de ambos, simultaneamente.

Meus pais moravam em casas separadas e eu era como que uma bola que se joga para de
cá para lá. Eu cheguei até mesmo a gostar desse jogo. Servia aos meus propósitos,
principalmente para fazer chantagem com minha mãe: “Se não me dás isto, vou-me à
casa de meu pai”. Funcionava. Assim, eu a controlava e ela acabou sendo a bola. Mas
esse brinquedo estragou-se com o tempo, quando o vinho tomou meu lugar em sua vida.
Meu pai levou-me para morar consigo. Por algum tempo eu gostei muito daquilo, mas
logo vieram as exigências e eu não estava acostumado àquilo. Queria continuar meu jogo,
mas o velho deu de surrar-me e não pude suportar: “O maldito nunca fora um pai
verdadeiramente, como vinha agora a tocar-me com seu açoite?”

Ontem eu comi uma barata, pensei que fosse algum fruto do mar. Dei por mim quando
pude sentir alguma coisa e o amargo me veio à boca, vi seus restos ao meu lado, senti
náusea e a procurei para consolar-me. Antes ela levava-me para outros universos, mas
agora somente sua mão pode tirar-me do inferno por algum tempo. Essa maldita
prostituta vive a seduzir todos e todos se tornam seus escravos. Eu juro que tento ajudá-
los, mas todas as minhas forças já foram sugadas. Quando cheguei por aqui, os gritos de
socorro de suas antigas vítimas suavam-me como saudações de boas vindas. Só agora
posso compreender.

Lembro-me de ter saído da cidade com meus amigos. Fundaríamos uma comunidade,
onde viveríamos em completa liberdade. Não havia entre nós algum tolo ignorante.
Éramos jovens esclarecidos, inteligentes e audazes. Criaríamos o que a civilização
humana não fez em milênios. Entretanto, conhecemos apenas a fome, o frio e o desprezo
das pessoas. E foi aí que ela apareceu tão rica, tão fascinante e tão bondosa.

Ela encontrou-nos a beira do caminho. O frio das noites de outono já era bastante
insuportável. Além disso, a fadiga nos fez parar no cimo de uma colina de onde víamos as
luzes das pequenas aldeias ainda distantes. À cerca de uma milha dali a entrada de uma
quinta parecia nos convidar para o pernoite. Andamos um pouco mais, quase a desmaiar
de cansaço, fome e frio.

Quando chegamos à tal quinta, uma moça muito bonita esperava-nos no portão daquele
lugar. Era estranho, não tínhamos planejado nada com antecedência, nem tão pouco
comunicado nossa chegada. Como aquele anjo teria adivinhado que chegaríamos? Mas,
como eu já disse, a fadiga era tanta que aceitamos entrar, sem questionar nada. De
repente, entramos numa espécie de transe e tudo se transformou numa festa, como se
fossemos estrelas de cinema a entrar naquele recinto. Todos riam, bebiam, cantavam e
nos saudavam. A fadiga deixou-nos e começamos a dançar, dançar, dançar... a noite toda.
A todo o momento ela, a bela recepcionista, chegava conduzindo um grupo de rapazes e
moças. Todos jovens e bonitos que estavam ali tentando lembrar ou esquecer algo.
Estranhamente, ao pé das paredes, sombras pareciam acenar para nós, mas a alegria era
tanta que não poderíamos estragar observando algo tão bizarro.

A festa durou muitas noites; amamos muitas mulheres; bebemos muito vinho e
comungamos com ela, como se fosse nossa eucaristia. Depois beijamo-nos, todos, pois
nossas bocas já não nos pertenciam; nossas línguas se tocavam embaladas pelo ritmo que
conduzia aquela orgia divina, pois divinos éramos e havíamos recriado o paraíso. Ela
amou a todos, sem exceção. Todos nós dormimos com ela, homens e mulheres. Ali havia
a liberdade que procurávamos. Um sonho que finalmente se realizava. Já não havia “eu”;
havíamos nos fundido e formado um grande deus ou uma grande deusa. Ela, a deusa, que
viajou por todos os universos desconhecidos pelo homem, nos acolheu e revelou todos os
seus segredos. Segredos lindos, maravilhosos. Éramos felizes. Plenamente felizes. Quem
dera houvesse linguagem para descrever nossa loucura! Era como se pudéssemos viajar
por todas as galáxias, nebulosas, universos e visitar o gabinete de Deus, dançando no
Olimpo como pândegos, para depois sair chutando estrelas e urinando nos planetas em
que houvesse vida.

Mas um dia eu acordei e estava no inferno. Ela não era bela, não era jovem, não era
humana, nem tão pouco uma deusa. Era a filha de satã e eu era seu prisioneiro. A vampira
havia sugado de mim toda a vida, e o que restou foi apenas uma sombra que hoje vive ao
pé das paredes tentando beber um pouco do antigo prazer da vida. Assistindo a chegada
de outros desgraçados que não podem nos ouvir. Sou como uma planta que enfeita o
jardim dela. Todos me admiram sem saber que, na verdade, sou um ser humano que
perdeu a alma, iludido por um mundo que não existia. Deixei-me levar pelas minhas
próprias ilusões e sei que muitos outros, iludidos, virão depois de mim e não posso fazer
nada. Nada.

(***)

O nascimento

- Ô bosta!
Preto tinha deixado o leite derramar. Menos leite para a menina, já que recém-chegado se
alimentaria com o leite da mãe por um longo tempo. Graças a Deus! A Lica tinha muito
leite; mesmo dias antes do parto, seu leite transbordava pela roupa.

A menina de quatro anos estava no banho. Já sabia se virar sozinha, mas na hora do
acabamento final – penteado, roupa e sapato – o pai teria que ajudar. Bendita licença-
paternidade! Se não fosse ela, como Preto faria com a filha pequena? A mãe estava
internada no hospital e dera a luz um garotão. Ambos não possuíam parentes naquela
cidade.

- Põe a calcinha, que eu já vou arrumar você!

Preto era por demais pudico. Tinha vergonha de ver a filha pequena sem calcinha.

Primeiramente era colocar o macacão, para não ficar peladinha; depois, o mais difícil, o
penteado. Pente, um pouco de água, pomada e paciência para esticar o cabelinho crespo
de Silvana.

- Ai, pai, tá doendo!

O pai pede desculpa e tenta fazer de outro jeito que não cause tanta dor. Preto é
trabalhador da construção civil; está acostumado a fazer muita força. Tem até medo de
machucar a filhinha. Hoje é dia da visita; ainda não viu seu filho macho. Naquele
momento se sente muito ligado à filha que é tão indefesa e só tem a ele para lhe proteger.

- A agente vai ver o bebê?

- Vai...!

O pai não fala muito, mas a pequena tem um vocabulário rico e é habilidosa no uso da
linguagem. Ela está eufórica com a chegada do irmãozinho e, desde o dia anterior,
aguardava o momento de vê-lo pela primeira vez.

Ao calçar a sandália na filha, o trabalhador percebe algo preocupante: o calçado está


pequeno para seu pé gordinho. Talvez tenha que carregá-la no colo.

Todos agora estão prontos. Normalmente Preto anda muito desalinhado, mas hoje parece
haver um novo espírito naquele homem: fez a barba e colocou a roupa-de-ver-deus.
Porém nada se compara a elegância da pequena Silvana, com seu penteado de maria-
chiqunhas, o macacão vermelho com detalhes e a sandália que está incomodando um
pouco.

- Pai, como a gente vai chamar o bebê?

- Pelo nome que você escolheu.


Ela ficou muito feliz com a resposta do pai. Saiu até saltitando, mas... qual era mesmo o
nome que ela havia sugerido? E agora? Ela não se lembrava mais. Como ela iria falar
com o irmão se esquecera o nome que lhe dera. Tomara que a mãe não tenha esquecido
também, pois se depender dela... Marcos, Pedro, Renato... meu Deus! E agora?

O pai percebeu a filha muito quieta ao longo da viagem de ônibus.

- Quê foi?

Ela não poderia dizer aquilo para o pai. Ela não poderia contar que esquecera o nome que
dera ao bebê. Teria que lembra sozinha. E se o bebê ficasse sem nome só por causa dela?

Ricardo, Felipe, Godofredo... não! Godofredo não poderia ser. Será que ela tinha sugerido
justamente esse nome? Era bom que ela pensasse logo em outro nome bem bonito. Será
que a mãe seria louca de colocar Godofredo no bebê?

Ela tinha um plano: Antes que a mãe abrisse a boca para dizer o nome do menino, ela
diria o melhor nome em que pudesse pensar. Ela diria “Ricardo” e faria de conta que
mudou de idéia, pois Ricardo era muito mais bonito.

O ônibus encostou-se à frente do hospital. Preto ficou alerta e tomou a pequena no colo
para descer. O hospital tinha cheiro de remédio. Deveria ser porque ali havia muito
remédio. O pai procurava ansioso, pela enfermaria, a esposa. Achou; ainda na porta, a
pequena abriu os braços e correu para o leito da mãe dizendo “Ricardo”.

A mãe aproximou o dedo dos lábios, beijou sua testa e disse baixinho:

- Ele está dormindo.

E tirou a manta branca que o cobria.

- Mãe, o nome dele é Ricardo!

- Claro, meu amor, como você já havia pedido.

Então era esse nome mesmo que ela já havia dito. Quê sorte! Quase que o irmão fica sem
nome por sua culpa. Quase que o Ricardo vira Godofredo. Credo! Mas a menina achou o
irmão muito feio, porém não disse nada à mãe. Parecia uma pessoa bem velhinha, mas
muito pequena. Ficava dormindo o tempo todo, fazia xixi e cocô na roupa e não tinha
dentes. Talvez devesse mesmo se chamar Godofredo, que é nome de gente bem velhinha.
Aquele irmão não servia para brincar. Ela estava decepcionada; a mãe só dava atenção a
ele e, nem mesmo, pegou a filha no colo. Ela ergueu os braços pedindo colo para o pai.
Ele a pegou e ela entendeu que agora pertencia ao pai, enquanto que o Ricardo pertencia
à mãe, mas não era justo; a mãe pertencera a ela primeiramente.
Silvana quis ver o irmãozinho mais uma vez. Talvez tivesse melhorado. A mãe o exibiu
novamente, mas ela não teve uma impressão muito melhor.

“Cara-de-macaco!”

Pensou ela consigo. Talvez tivesse sido uma péssima idéia aquele irmãozinho tão feio.
Não combinava como nome: Ricardo.

O fim da infância

Qual foi a primeira vez em que vi as imensidades? Lembro-me ainda; tinha nove. Até
então, eu só conhecia conforto de cidade: cama macia, refeição na mesa, água do filtro,
refrigerante e televisão. Mas, um dia, eu quis acompanhar meu pai até o canteiro de
obras. Ele duvidou:

- Certeza?

- Eu quero ir!

- Lá não tem luz elétrica...

Minha mãe interferiu:

- Leva o menino. Ele tá de férias. Só assim fica mais perto de você.

Meu pai coçou a careca; não estava a seu contento, mas levaria.

- Prepare suas coisas, que eu só volto daqui uma semana!

Corri contente para preparar minha mala. Era a primeira vez que eu acompanharia meu
pai até seu trabalho. Sempre que ele voltava, contava mil histórias e nos divertia
sobremaneira. Eu gostava muito quando ele contava do foragido que eles encontraram e
capturaram para a polícia, da cobra que ele matou com um tiro, das assombrações que
apareciam de vez em quando... Naquele tempo eu queria viver aventuras como aquelas.
Eu queria ser com Daniel Boone, Tarzan, Buck Roger ou Flash Gordon e talvez aquela
fosse minha oportunidade. Eu estava, porém, com medo, pois lá não havia luz elétrica,
nem televisão. Seria possível sobreviver sem isso?

No dia seguinte, levantamos ainda escurinho. Meu pai ligou o caminhão, que ficou uma
meia hora esquentando, enquanto isso ele colocava mil coisas na carroceria – levava
comida para um exército, além de remédios, ferramentas e até roupas. Meu coração batia
disparado; fiquei calado. Entramos no caminhão e iniciamos a viagem. Meu pai falava
muito, parecia feliz, mas eu estava muito nervoso; não sabia ao certo se queria mais ir ou
ficar. O que eu faria em tal lugar? Bom agora não tinha mais jeito mesmo. O balançar
suave do caminhão fez-me cair no sono.

Quando dei por mim, já não havia asfalto, só uma longa estrada de terra recentemente
patrolada, cortando uma imensa floresta. Pequenas estacas de madeira pintadas de branco
e vermelho demarcavam os limites daquela futura rodovia. O sol quente dava ao cenário
um ar desolador. Não havia casas, não havia gente, parecia até que não havia nem bicho.
Meu pai gritava de vez em quando:

- Olha o cachorro do mato!

Mas eu não via nada. Aquilo, para mim, era uma ausência total de vida.

A noite já anunciava, quando o tempo começou a fechar. Logo não era possível ver nada
mais, apenas a porção de estrada deserta que o farol do caminhão alcançava. A chuva caiu
intensamente. Eu tive medo e comuniquei ao meu pai. Ele então respondeu:

- Medo por quê? Eu não estou aqui com você?

Tive vontade dizer que estaria mais à vontade se minha mãe estivesse ali, mas achei que
ele não gostaria e, assim, fiquei com medo e calado.

Meu pai pregou os olhos na estrada e dirigia muito concentrado. A situação parecia
preocupante. Ficou calado... muito calado. Apenas concentrado na estrada que mal se
identificava no meio do dilúvio.

De repente o carro acelerou forte, mas não saiu do lugar. Acelerou um pouco mais e nada.
Estávamos atolados. Pensei que tivera uma péssima idéia ao decidir acompanhar meu pai
para aquelas imensidades. E agora, como seria? Ficaríamos ali, no meio do nada,
esperando o quê? Tive vontade de chorar, mas sabia que levaria uma tremenda bronca.
Meu pai diria:

- Tá vendo! Por isso que eu não gosto de trazer menino!

Eu precisava achar forças. Mas acho que Deus não tardou muito em atender minhas
preces, pois logo a máquina de esteira pareceu do nada e nos tirou do atoleiro. O susto
não foi de todo mal. Quando chegamos no acampamento, parecia um hotel três estrelas,
para quem já se acostumava com idéia de dormir na boléia do caminhão.

Minha roupa tinha ficado um pouco molhada e tive de trocá-la mesmo sem tomar banho,
já que banho por ali era só no córrego que passava nos fundo. Com aquela tempestade lá
fora, era melhor nem pensar em tal possibilidade.

No acampamento só havia homens. Nem uma mulher para colorir um pouco aquele
ambiente, mas eram todos muito amistosos e brincalhões. Chamavam-me de “garotão” e
faziam mil brincadeiras para deixar-me bastante à vontade. Eu descobri, também naquela
noite, que homens também são prendados na arte culinária, pois a comida – degustada a
luz do lampião a gás – era deliciosas. Depois esticamos as redes e fomos dormir. Não
acreditei em princípio que conseguiria dormir naquele lugar, mas, como não havia nada
para fazer, o sono foi chegando até tomar conta de todo, inclusive de mim.

O acampamento era mais chato durante o dia, pois eu ficava ali praticamente sozinho. Foi
ai que eu descobri que brincar no córrego pode ser muito legal. Meu pai não gostou muito
da idéia, disse que era perigoso, e se uma sucuri resolvesse me atacar, ou uma onça? E
começou a me levar para a “pista” que era como eles chamavam a estrada ainda não
concluída. Era muito triste brincar sozinho naqueles montes de terra no meio daquelas
imensidades. Um dia nós ouvimos um barulho muito alto no meio da floresta. Dizem que
era uma onça; a máquina atropelou um tamanduá e um tatu-bola foi meu brinquedo por
um dia inteiro. Meu pai achava macaco, coruja, arara e preá. Ali meu pai virava um
pouco criança, assim como os outros homens. Conclui que os homens ficam fazendo
pose, só porque estão perto das mulheres e, quando ficam sozinhos, só entre eles, ficam
criançonas e brincam e riem em demasia.

Na véspera de voltarmos para casa, meu pai inventou de procurar um milho para nós
comermos cozido. Ele avistara uma roça no meio do mato e iria até lá para negociar com
o dono. Pedi para ir.

Embreamos no meio do mato por uma estrada muito precária. O barulho do caminhão era
o único som civilizado naquele caminho. Floresta de cá e mato de lá. De repente, uma
baixada e, lá embaixão, um riacho. Lembro-me que um dos companheiros do
acampamento que estava conosco apoiou o peito nos braços, encostou os lábios
diretamente no riacho e bebeu aquela daquela água. Depois comentou:

- Fria como água de geladeira!

Do outro lado do riacho havia um barranco muito alto e, lá em cima um rancho beira-
chão (que é aquele cujo telhado serve, também, como paredes laterais). Do lado do
rancho já era possível avistar uma roça de milho.

- Ô de casa!

Uma figura esquálida apareceu imediatamente no alto do barranco.

- Fala, seu moçô! Tomá café!

- A gente aceita!

- Travessa a pinguela e entra aqui!

No meio do riacho, unindo uma margem à outra, havia um tronco de árvore atravessado.
Passamos por ali com cuidado.
A habitação era primitiva como convém a um índio, no entanto, ali moravam três pessoas
brancas e bastante desnutridas: um homem, uma mulher e um bebê. Eram claros e
pálidos, muito magros e tossiam. A criança parecia ter dias e dormia o tempo todo. Não
foi só eu que fiquei impressionado com a pobreza e insalubridade daquela família, pois
meu pai, após terminar o café, inventou algum assunto, dissimulou e fomos embora sem
que ele fizesse alguma proposta de compra para o milho. No caminho de volta, estranhei:

- Pai, e o milho?

- Essa família só tem esse milho para comer. Se nós oferecêssemos dinheiro, ele aceitaria.
Mas, para eles, vivendo nestas imensidades, mais vale ter o que comer do que um pouco
de dinheiro.

- Só agora eu percebia que, naquele lugar, dinheiro não significava nada.

No dia em que voltamos para casa, eu tive pena de saber que aquela família, que aquele
bebê ficariam ali perdidos no meio das imensidades. Eles não tinham muita chance,
muito menos o bebê. Por que estariam ali, morando no meio do nada? Por que não iam
para a cidade? Eu não entendia que, para os pobres, a vida não é feita de escolhas, mas
sim de sobras.

Meu pai advertiu:

- Estude para não terminar assim!

E eu voltei feliz para minha casa, para minha cama, comida na mesa, água encanada,
chuveiro, refrigerante e televisão.

(***)

Meus doze anos

É difícil entender a natureza da nossa consciência, visto que, somente agora, posso
recordar com clareza minha vida aos doze anos. Não que houvesse de todo esquecido,
mas agora, já bem próximo ao declínio da vida, é que posso quase reviver cada sensação,
cada momento.
Eu havia ganhado uma bicicleta. Há muito que sonhara com isso, mas não acreditava que
tal sonho pudesse se realizar. Já estava acostumado a ver anseios como algo pertencente a
uma esfera inatingível. Sonhos eram sonhos, nada mais. Meu pai era um homem sem
ímpeto para realizações e, assim, sonhávamos apenas como se fosse um jogo. Quando
acaso questionávamos junto a ele a razão de tais projetos não saírem do âmbito das
conversas à mesa, meu pai reagia cheio de nervos, já nos interrompendo o gozo de tais
sonhos. Aquele presente, portanto, era motivo para um duplo regozijo, a tomar-me de
assalto às expectativas de um antigo sonho.

Sempre à noite, após terminar as tarefas escolares, eu tomava meu “veículo” e


perambulava até as nove pela pequena cidade onde morávamos. Eram poucas ruas de
cascalho, que se tornavam ainda menores quando percorridas assim de bicicleta. As serras
circundavam a pequena vila e, ao cair da noite, esses colossos tingiam-se de um negrume
intenso e desolador, como paredes abismais a fechar-nos, a isolar-nos do restante do
mundo. Nas ruas, fracas luminárias intensificavam a tristeza noturna de um lugar que
apenas se refestelava aos fins-de-semana. Do contrário, era sempre triste, aborrecido,
cansativo.

Quando ganhei, no entanto, minha primeira bicicleta, brotou-me um sentimento novo: de


que eu era o senhor da minha história naquele universo hostil – que me obrigava a estar
sempre reprimido num canto, envergonhado não sei do quê. Foi ai que, como Trumman,
descobri que aquele lugar era limitado por demais. Eu queria viver mais perto dos meus
sonhos, queria ter a ilusão de que eles estavam há um toque das minhas mãos. Vivendo
ali, teria o mesmo destino daqueles que ali viviam: cedo pararia de estudar; trabalharia
como lacaio de gente pouco rica; casar-me-ia, escolhendo entre as poucas opções
existentes – com uma consorte a minha altura, lógico. Nada de sonhar com rapariga que
não fosse para o meu “bico” – embriagar-me-ia nos fins-de-semana e aprontaria arruaças;
na segunda-feira, compareceria ao serviço com a maior cara-de-pau, como se nada
houvesse acontecido. E, assim, enterraria todos os meus dias naquele formigueiro. Ao
morrer, receberia o fim como um prêmio há muito esperado.

A propósito, eu estava apaixonado secretamente por uma jovem de uma casta superior.
Para cortejá-la, só havia uma possibilidade: buscar, fora dali, sucesso e riquezas, e, como
um El Cid mirim, retornar para resgatar aquele amor. Mas, enquanto a complexa manobra
não se realizava, montado naquela bicicleta, que talvez fosse minha alma exterior,
passava dez, vinte, trinta e tantas vezes na porta da sua casa, na esperança de vê-la um
segundo que fosse, e tornar minha noite um pouco menos triste, as ruas um pouco menos
escuras, a cidade menos aborrecida e aquelas serras – de um negrume infinito à noite –
não me comprimissem tanto, tanto o peito.

No meio da madrugada, acordei. Só conseguia lembrar de que ela me dera um beijo – o


beijo tão sonhado, o beijo tão esperado – a gola do pijama estava empapado de suor; o
cantar de uma infinidade de galos infernizava no silêncio escuro da noite. Sentei-me na
varanda para respirar o ar fresco. O coração batia acelerado, e eu queria prolongar aquela
sensação do beijo. Olhei a rua fantasmagórica. O negrume das serras parecia estrangular-
me naquele momento. O coração acelerado e aflito parecia bombear o suor que vertia por
todos os poros do meu corpo e, na cabeça, um sonho. Senti, por um momento, que estava
morto e que aquele lugar era minha sepultura. As paredes negras, que circundavam o
lugar, desabavam sobre mim, sepultando-me ainda vivo, para sempre.

A MENSAGEM LIBERTADORA

João Bom-rapaz parece ter saído de um filme estadunidense. É um cristão fervoroso e


segue os mandamentos da igreja como se fossem do próprio Deus. Todos os anos, ele
declara toda sua renda para o Leão com toda a sinceridade que convém a um brasileiro
cumpridor dos seus deveres. Trabalha desde a adolescência e sempre foi um funcionário
exemplar, elogiado pelo seu patrão (um único, toda vida). Sua mulher fora a única que
conhecera – no sentido bíblico – e ela, tão virgem quanto ele. Não bebe, não fuma, nunca
usou drogas. Participa da campanha do desarmamento, recolhendo armas dos vizinhos,
pois ele próprio jamais possuíra arma alguma. Ajuda os filhos com a lição de casa, nunca
lhes deu uma surra, mas conversa sobre suas ações sempre que for preciso. Além disso,
toma sorvete com eles aos Domingos à tarde. Depois de casado, nunca mais tocou outra
mulher que não sua própria esposa e ainda a chama de sua namorada.

Outro dia, recebeu um e-mail de verdade e não aquelas coisas indesejáveis, aquelas
propagandas ridículas que vivem entupindo as caixas-postais. Alguém perdera seu
precioso tempo escrevendo especialmente para ele um e-mail. Era simples – poucas
linhas e escrito em letras-padrão – mas era somente para ele. João ficou emocionado com
tanta deferência, mas, conforme lia a tal mensagem, seu semblante se transformava. Ao
final da leitura, ficara pensativo e resolvera espairecer um pouco. Ao cruzar a sala, a filha
mais velha lhe perguntou aonde iria. Ele respondeu e ela protestou:

- Já se esqueceu de que vai me levar à festa na casa da Marcinha?

Ele não deu ouvidos e saiu, batendo a porta na cara da filha. Caminhou sem destino,
sentou-se num boteco e pediu logo uma cerveja. Logo que terminou aquela, pediu mais
uma, além de uma carteira de cigarros. Fumou-a toda, já na companhia de uma garota,
com quem transaria mais tarde (problema dele). Ao voltar para casa, às três da manhã,
sua mulher o esperava como se fosse aplicar-lhe um corretivo. João a mandou às favas;
ela disse que contaria tudo para o pastor, mas ele o mandaria às favas também. O pastor o
excluiu e subtraiu mais um dízimo de sua lista. Comprou uma Mágno-44 e deu três tiros
em um ladrãozinho que tentava invadir sua casa, ainda dizendo:

- Avise seus colegas que aqui se dá tiro!

Foi processado por lesão corporal e posse ilegal de arma; entrou com recurso na justiça e
está respondendo em liberdade. Os ladrões nunca mais tentaram invadir sua casa; chamou
seu patrão de “explorador filho-da-puta” e foi despedido, mas arrumou um emprego
muito melhor. Antes tivesse dito isso antes para aquele filho-da-puta; arranjou um
contador que o ajudou a sonegar dez mil reais por ano e comprou um carro novo;
solicitou o auxílio bolsa família, financiou três casas em projetos populares para pessoas
de baixa renda e se inscreveu num projeto de reforma agrária, onde recebeu um bom lote
de terra.

Hoje em dia, já não possui mais nada disso. Vendeu tudo e comprou uma agência de
modelos e uma casa de praia em Belém do Pará, onde produz seus próprios filmes com
seus “modelos” e os vende para o estrangeiro. Negócio líquido e certo. De vez em
quando, compadecido do sofrimento de algum amigo, ele lhes envia a tal mensagem: a
mensagem libertadora.

NATAL E TRANSMUTAÇÃO

Parece irresistível escrever um conto de natal. Todo mundo se mete a escrever os tais
contos. São invariavelmente chatos, muito chatos. Como é irresistível, porém, creio que
neste exato momento esteja a me render a essa tentação.

Antes de mais nada, gostaria de esclarecer que detesto natais. É para mim o período mais
aborrecido do ano. Desculpe-me, leitor, pela franqueza, mas é simplesmente o que sinto.
Há vários fatores que acredito influenciar nessa minha antipatia pelo período natalino:
sou estrangeiro – vivo neste país com meu pai, minha mulher e meu filho de 5 anos, que
já não é mais estrangeiro – e, assim, vivo um tanto isolado, já que minhas raízes não estão
por aqui; pertenço a camada mais pobre da sociedade e não tenho, portanto, recursos
financeiros para os programas interessantes de final de ano; acho que o natal é uma festa
dedicada ao comércio e não aos fins religiosos aos quais deveria ser de fato dedicado;
minha mãe morreu a alguns anos, durante o período natalino, e talvez o motivo mais forte
para não gostar da festa é que sou um muito chato também.

Jesus não nasceu no dia de natal. A festa é, na verdade, mais antiga que o próprio Cristo.
É de origem pagã e foi anexada ao calendário cristão por conveniência política, mais que
por fé e respeito. E, como eu já disse antes, somente os mais ricos apreciam de fato a
festa, já que possuem dinheiro para darem-se presentes e banquetes. A nós resta apenas
olhar, olhar e olhar.

Reservo especial ódio e rancor pelo Papai Noel. O maldito velhinho jamais me visitou
para levar-me os presentes. Não foi por falta de lembranças e convites. É que ele é um
velho interesseiro mesmo, que só faz questão de visitar os ricos, deixando as pobres
crianças a ver navios. Já recebi presentes velhos e ordinários do Papai Noel dos pobres e
odiei, pois não fora aquilo que eu pedira. De fato, eu nem mesmo acreditei que aquele era
o verdadeiro Papai Noel, pois a barba era postiça e seu aspecto era jovem.

E, para terminar essa conversa sobre aversão a natais, o que tem mesmo o Papai Noel, as
renas, os duendes, a árvore de natal, as guirlandas, os presentes, os banquetes, os bonecos
de neve e tudo mais com a verdadeira essência do Natal? O que é o Natal? O nascimento
de Jesus – comemorado fora de época – é lógico!
Eu nasci em uma família cristã (católica), mas tenho decepcionado-me bastante em
relação ao que se diz e o que se faz verdadeiramente dos ensinamentos de cristo. Todas as
igrejas cristãs, com que tive contato, causaram-me semelhante decepção, de forma que,
hoje, classificar-me-ia como um tanto agnóstico. A fé em Deus, no entanto, continua em
mim. Ainda que eu não esteja em comunhão com credo algum. O Cristo, para mim, é um
estado do espírito que ultrapassa os limites do próprio homem Jesus.

Sei que muitos devem estar estarrecidos ao lerem essas minhas palavras e talvez as
odeiem, mas eu estou a fazer uma confissão sincera e honesta do que penso. Sei que é um
tanto diferente – há quem diga que seja ofensivo – desculpem-me, não quero ofender a
ninguém, mas tenha coragem de ler-me, para depois formular algum conceito sobre mim.

No último Natal, meu pai sofreu um enfarto. Foi terrível, pois é o único progenitor que
me resta. Cheguei a pensar que iria perdê-lo. Graças a Deus – no qual eu acredito e ao
qual reverencio – o velho suportou heroicamente o acidente vascular, ampliando, assim,
sua sobrevida. Aqueles dias, a percorrer hospitais, fizeram-me atentar para o valor da
saúde e da vida. A bem dizer “uma escola”, ou quem sabe um “treinamento” repentino
para a vida. De qualquer forma foi um exercício interessante para minha cabeça, meu
coração e para minha fé. Eu sempre digo que o presente de natal daquele ano foi a chance
de viver algum tempo a mais ao lado do velho.

Entre exames, picadas, comprimidos e tudo mais que o homem inventou para adiar a
morte, apareceu-nos lá pelas horas de visitas uma pessoa que buscava levar conforto
espiritual aos internos do hospital. Era um homem de aproximadamente cinqüenta anos
de idade, bem vestido, bem cuidado, com uma crachá onde lia-se “voluntário”. Mas o que
mais chamava a atenção das pessoas não eram esses detalhes, mas sim o fato de o homem
ter o rosto absolutamente deformado. Um dos lados era enorme. Tanto que um dos seus
olhos havia sido inutilizado, tomado pelo inchaço do aleijão. Tão grande era, que, para se
ter uma idéia, era como se um outro rosto tivesse sido anexado ao seu.

A deformidade daquele homem, ainda assim elegante, era um câncer que tomava parte do
seu rosto como se fosse uma máscara bizarra. Ele aproximou-se do leito do meu pai e
perguntou-lhe se permitia que fizesse uma oração. O velho achou uma boa idéia, já que o
medo da proximidade com a morte o tomava por completo. O bondoso cavalheiro leu
para nós um versículo da Bíblia, não pudemos entender, entretanto, pois suas cavidades
nasais e orais pareciam tomadas por aquele mal, a torná-lo um tanto fanhoso. De todo o
seu esforço, porém, ficou-me marcado na memória um trecho que dizia assim: “Na casa
de meu pai há muitas moradas”. Depois o homem arrematou a dizer que Deus era
infinitamente bondoso e que nós deveríamos ter muita fé Nele, pois nada para Ele era
impossível.

-Deus é muito bom, meu amigo! Vejas como estou! Um câncer estava-me a tomar por
completo o cérebro, mas hoje, graças ao Bom Deus, estou já bem melhor e a levar a Sua
mensagem a outros que se encontram enfermos. Pede ao Senhor e ele atenderá sua
súplica.
Sem demorar-se muito e com essas breves palavras, ele foi-se a exibir sua desgraça,
como um alento para os corações acovardados. Meu pai ficou muito pensativo e ambos
ficamos sem palavras. Na minha cabeça não parava de ecoar aquelas palavras: “Na casa
de meu pai há muitas moradas”... Deus mora em lugares distintos, não imaginados por
nós. Naquele dia, Sua morada fora aquele pobre homem que veio curar-nos com sua
doença assustadora. Ele está em tudo, Ele é tudo. Nós todos e tudo o que há é parte de um
programa divino ao qual chamamos Deus. Cada manifestação, por mais absurda ou
incompreensível que seja, é uma demonstração do Seu querer. O bem e o mal são Suas
duas faces. Como todo homem possui dentro de si esses dois pólos, Ele – a nossa matriz
– assim também o é.

Nesse dia, acendeu-se, dentro de mim, uma fé a muito esquecida, a de que o templo de
Deus está em todo lugar. Não gosto mesmo de natais. Acho-os tristes e desprovidos do
seu verdadeiro espírito, aquele que nos falou através de um pobre, mais enfermo do que o
meu próprio pai se encontrava. Abriu nossos olhos com suas vistas fechadas, sarou-nos
com sua doença, fortaleceu-nos com sua fraqueza. “Na casa de meu pai há muitas
moradas”, jamais me esquecerei, jamais te esqueças. “Cave, cave, Deus vivit”.

Mutilações

Era sexta-feira da paixão de Cristo. Na catedral da cidade, uma força-tarefa de padres


tentava expiar os pecados de uma multidão que se enfileirava ao longo da parede, onde se
viam as estações do sofrimento de cristo. Um jovem ingressa no final da longa serpente
que se enrosca dentro do templo. Seus olhos buscam a fisionomia de cada um que se
inscreve na fila e irrita-se.

A maioria daqueles que engrossa a legião de arrependidos é formada por senhoras de


classe média, aposentadas e sem muitas ocupações; gente que se confessa todos os dias e
estão ali para se confessarem mais uma vez, e para tomarem o tempo de quem não tem
muita chance de fazê-lo. É gente má, logo se vê, que têm pecados inextinguíveis e, por
isso, vêm se confessar todos os dias. Confessam o quê? Os pecados dos vizinhos, dos
filhos, das noras, do marido? Fazem suas maldades e depois vêem pedir desculpas para
quem não foi ofendido pelo seu veneno.

No centro da nave, Jesus crucificado, mutilado. Quem o mutilou? Os antepassados


daqueles que se espremem na fila para pedir desculpas por terem mutilado a outros. As
mutilações da alma são muito mais perversas do que as do corpo. Se o homem é
destituído de sua dignidade por outro homem, essa mutilação é irreparável. Pedir
desculpas a Deus, só faz com que o criminoso possa se sentir melhor, mas não repara o
crime. Quem foi mutilado, mutilado está.
O jovem que entrou na fila tem dezessete anos. É filho de uma família humilde, tem uma
cabeça povoada de sonhos e já coleciona muitas decepções. Ele procura se integrar na
sociedade, mas não entende o quanto ela é mesquinha. Ele não entende que as relações
humanas são jogos de interesse e sobrevivência; que as relações mais puras, chamadas de
amor, não passam de buscas de interesses mesquinhos. No entanto, a humanidade cobriu
tudo com um manto de austeridade, que não passa de ilusão. O trabalho não existe para
dignificar o homem, mas para enriquecer alguns homens; não há trabalho para todos, mas
apenas para os que produzem mais e melhor; não somos aceito pelo que somos, mas pelo
que podemos oferecer: bandidos beneméritos são bem aceitos pela sociedade, quem
trabalha muito e de graça para a sociedade, também é bem aceito; as pessoas belas são
muito desejadas, pelo prazer que elas podem proporcionar; as muito famosas, pelo status
qüo que mantêm; as bem situadas financeiramente, pelo conforto que podem ostentar.
Amor de verdade, só aquele que sentimos por nós mesmos. É isso que o nosso jovem não
pode entender, mas sabe que seu coração rejeita essa realidade e é por isso que está ali,
assistindo seus algozes pedirem perdão a Deus, por tê-lo humilhado, maltratado, ignorado
e ferido: mutilado sua dignidade.

Horas depois do seu ingresso na fila, um jovem sacerdote o convida ao sacramento. Ele já
nem sabe mais o que dizer, mas faz:

- Por que só os maus prosperam, padre?

O sacerdote está atordoado (foram centenas de confissões), a pergunta é difícil. Ele não
tem uma resposta para aquilo. Ele mesmo já se perguntou um milhão de vezes a mesma
coisa.

- Por que você diz isso, filho?

O rapaz tem falar de sua vida. Enquanto o padre pede a Deus que coloque em sua boca
uma palavra de alento para aquele coração que se deparou com a crueldade da vida.
Busca a resposta na sua erudição, mas só consegue lembrar que Camões tinha a mesma
inquietude. Talvez na bíblia..., mas lá há uma centenas de narrativas onde os maus
vencem. Davi roubou a mulher de Urias, Davi roubou a mulher de Urias, Davi roubou a
mulher de Urias... meu Deus, eu pensei que esse jovem fosse me confessar o quanto fora
mal com seu semelhante, ou da sua luxurias, ou dos seus crimes... mas essa é a minha
pergunta... a pergunta que me acompanha a vida toda.

O jovem terminou sua narração, apesar do sacerdote não ter ouvido uma palavra seque do
restante do seu desabafo. Ficou esperando que o padre lhe falasse alguma coisa, mas ele
não conseguia pronunciar palavra. Arrumou-se no banco incômodo de madeira, limpou o
suor do rosto e tossiu três vezes. Agora o fiel era espectador e aguardava o
pronunciamento da sabedoria divina. E por fim:

- Filho, eu não sei o que lhe dizer. Acho que todos já se perguntaram isso. Eu só posso lhe
dizer que o mal é mais forte que o bem, ou seja, sua manifestação é mais intensa. Um ato
de caridade não desperta interesse em ninguém, no entanto um crime bárbaro tem intensa
repercussão. O que eu posso lhe dizer? Mantenha-se firme na fé. Acredite nas promessas
do Senhor e espere. Eu também estou esperando, estou esperando... até o fim dos dias.

Pela primeira vez na vida, o jovem entendeu que ali na sua frente estava um pobre
homem. Alguém tão miserável quanto ele e que não sabia responder perguntas difíceis. O
garoto teve pena do padre e considerou-se satisfeito com suas palavras. Recebeu uma
absolvição, de não sei o quê, e se foi triste, por entender que aquilo não era uma bobagem
da sua cabeça, mas uma terrível lacuna que atormentava a vida dos homens.

Sineiro das Almas

Existem demônios. Há anjos também, mas as pessoas preferem os demônios. Quantos


comprariam um livro sobre anjos? Quantos comprariam um sobre demônios? Quantos
iriam ao cinema pra ver anjos ajudando pessoas? E quantos vão para ver demônios
atormentando a espécie humana?

Imaginemos uma manchete: “Família se emociona ao adquirir a casa própria”. É, no


mínimo, careta. Mas “Neto mata a avó para herdar bicicleta” dá uma vontade de ler, não
é?

Eu só sei que voltávamos, Maria e eu, de um jantar naquela sexta-feira. Não, não nos
divertíamos; trabalhávamos em um buffet. Eu tinha 19 e Maria 23; eu era garçon e Maria
auxiliar de cozinha. Ela era deliciosa e eu, um jovem faminto. A noite estava muito fria e
deserta, além de um denso nevoeiro que cobria a cidade de Três Lagoas. Na rua não se
via viva-alma e o relógio do centro marcava duas horas da madrugada. Na estação, a
última composição já havia saído e a próxima ainda demoraria.

Apesar do frio, eu voltava feliz: com gorjeta no bolso e ao lado de Maria. Eu fazia
companhia a ela, em contrapartida, ela suportava minhas investidas. A moça era medrosa,
mas o que presenciamos foi de meter medo a qualquer um. Quando cruzávamos a Praça
das Bandeiras, Maria parecia não ter resistido ao frio e estatelou ali, parecendo
congelada.

- Anda, Maria! Parar é pior, que o corpo esfria!

- Perai!

- Quê foi?

- O sino da Igrejinha tá tocando?


Pois é! O sino da Igrejinha de Santo Antônio tocava um discreto e longo toque que
cortava o silêncio da madrugada. Estatelamos ali os dois a ouvir o sinistro e impróprio
sino.

- Legião das arma!

Senti meus cabelos arrepiando. Quem, por Deus, havia dito aquilo? Os olhos de Maria
quase caíram fora do rosto e a pobre já não sentiu as pernas.

- Os condenado do inferno e um preto que, com seu único braço, conduz essa legião de
armas, pela escuridão da noite.

Quando consegui voltar meu rosto, vi um senhor alto e magro, porém forte, com boné de
charreteiro na cabeça e um cachecol que lhe cobria do pescoço até o nariz.

Naquele tempo, corriam pela cidade rumores de que o lobisomem andava a solta pela
madrugadas da cidade. Havia muito medo, sobretudo na periferia, e o medo é algo
contagioso. Não era preciso muito para meter medo à Maria, mas confesso que mesmo
eu, que não dava crédito aos boatos, tive medo de estar diante do monstro.

- Isso é assombração, meus fi! Vamo andano que eu conto.

Acompanhamos o estranho no nosso trajeto, mesmo suspeitando de suas intenções.

O homem contou que, antes da ferrovia chegar à região, os índios Ofaié viviam ali e tinha
uma religião muito rica no aspecto sobrenatural, com seus encantamentos e rituais
mágicos. Acreditavam, por exemplo, que tudo tinha duas origens: vinha da terra ou vinha
das árvores. Era como se o céu fosse no interior da terra e o inferno no interior das
árvores, apesar de ser quase impossível alguma comparação. Os primeiros Ofaiés,
segundo eles, tinham vindo do interior da terra.

Durante a guerra do Paraguai, um soldado desertor teria anotado detalhes sobre essa
religião. Ele teria vivido seus últimos dias entre os indígenas e, tendo falecido, deixou
para eles suas anotações: uma pequena pilha de papeis pardos e amarrotados, mas que
continha todas as tradições que o desertor pôde aprender durante sua estadia.

Quando os mineiros chegaram à região, onde futuramente seria a cidade, conheceram os


manuscritos e adotaram as práticas religiosas prescritas nele, tendo se tornado tão
popular, quanto os ritos católicos. Muitas décadas mais tarde, um vigário da região teria
considerado oficialmente as práticas como heréticas e recolhido os papéis. Conta-se que
eles foram trancados em uma caixa de bronze e guardados na sacristia da Igrejinha de
Santo Antônio, a espera de uma missão que os levasse para o Vaticano.

Porém, um jovem comerciante sírio, entregue a ambição de fazer-se rico em pouco tempo
e tendo tomado conhecimento de que o manuscrito continha o “segredo da fortuna”,
contratou um facínora para subtrair a relíquia da guarda da igreja. Entretanto, essa igreja
era guardada por uma atalaia singular: um jovem homem negro, cujo braço fora-lhe
amputado por um homem perverso que se dizia “seu proprietário”. Após o ato brutal, a
comunidade o resgatou dando-lhe como casa a própria Igrejinha, da qual ele cuidava com
carinho e muito zelo. Seu nome era José Maria de Jesus (um sobrenome arranjado,
certamente, já que todo o conjunto reporta à sagrada família) era o sacristão residente,
fazia de tudo e dormia embolado na minúscula sacristia. A morada, no entanto, dava-lhe
muito orgulho, pois dizia que sua casa era na “portinha do céu”. Todos diziam quer era
um anjinho de Deus, sem boca para responder, ou maltratar. Ás ave-marias, domingos e
velórios, seu único e vigoroso braço fazia soar o sino a quase uma légua. Era calado e
tímido, mas um homem de fé, para quem a oração era um dever constante. Mas nosso
mundo não gosta dos bons e o bondoso homem foi cruelmente assassinado na sacristia,
enquanto dormia. O mal-feitor levou consigo duas caixas: a da oferta e a que continha o
manuscrito.

O sírio a recebeu longe dali num porto do Rio Paraná, de onde o assassino seguiria para o
Paraguai.

O crime abalou o pequeno lugar que velou com pesar o pobre sacristão; o sírio, pelo
visto, conseguiu o que queria, tendo se tornado senhor de grandes bens e tendo entrado
para a história do lugar, mas até hoje o sacristão volta para tocar o sino da igrejinha para
as almas que foram condenadas ao inferno antes do juízo final: os assassinos, os que
roubam os órfãos inocentes, os agiotas e os soberbos.

Quando aquele senhor terminou de contar essa história, Maria e eu estávamos


petrificados. Ele falara o tempo todo, de forma que, ao percebermos, já estávamos nos
confins do bairro Nossa Senhora Aparecida. A escuridão nos banhava de medo e
congelava mais que o frio. Parecia haver algo ali.

Foi então que do meio do nevoeiro saiu uma fera semelhante a um porco, porém mais
ágil e peluda. Eu confesso que achei que era meu fim, Maria encostou-se a mim e
desabou, mas a fera queria mesmo era aquele senhor que nos havia contado uma estranha
história.

A criatura preparou o bote e o atacou; ele defendeu-se colocando um braço à frente da


jugular. Ela, porém, arrancou-o com facilidade e o levou para a escuridão, sumindo-se
enfim. O homem ficou ali caído, acompanhando a mim e Maria, que nos entregamos ao
medo totalmente. Eu acreditei que ele estava morto, dada a violência com que fora
mutilado, mas o homem começou a se mexer e a levantar-se com naturalidade.

- Como você está, amigo?

- Tô bem.

- E o braço?

- Era uma prótese. O braço mermo, eu já perdi faiz hora.


- O que era aquilo?

- O dimonho!

Maria parecia morta e eu estava atônito olhando aquele homem, pensando sobre o
ocorrido. Só agora é que eu pude ver seu rosto negro que já não se ocultava sob o boné e
o cachecol. Ele olhava firme para algo atrás de mim. Quando, voltando-me, vi uma
imensa procissão desfilava através do nevoeiro que se abria, muito maior que qualquer
uma que eu já tenha visto: “a procissão dos penados”. Foi então que ele retirou debaixo
da sua capa um sinete e o fez vibrar. A procissão o seguiu, deixando-nos ali, entregues ao
medo enlouquecedor.

Despertei na minha cama. Não. Não foi um sonho, mas como eu havia chegado ali? Eu
não me lembrava de ter andado nem mais um passo até chegar a casa! E Maria? O que
fora feito dela? Peguei a bicicleta e fui à sua casa imediatamente. Ao chegar, seus
parentes disseram-me que a garota estava fora de seu normal, empenhada em uma novena
desde que chegara durante a madrugada. Eu quis vê-la e foi deveras enigmático ver a
pobre Maria, que não era de religião, ajoelhada, com véu na cabeça, terço nas mãos,
rezando, alheia a tudo a sua volta.

Um Caso de Urgência

Era a estréia de Guilherme num time profissional. Saiu do fosso com o timão e se
assombrou com as arquibancadas do estádio cheias. Em meio a flash, microfones e
filmadoras, alguém lhe entrega uma carta:

“Se jogar esse partida, perderá a farmácia”.

Mas como? O que tinha uma coisa a ver com a outra? Ele não queria perder sua farmácia,
mas também não poderia abdicar do prazer de jogar aquela partida. Em seguida outro
bilhete:

“Sua mulher está aqui com a gente”.

Agora já não era mais uma simples chantagem, mas um seqüestro. Alguém o chamou:

- Guilherme! Ô Guilherme, acorda!

O farmacêutico acordou assustado com os gritos lá embaixo.

- Acorda ai, ô farmacêutico! Tem gente precisando!


Era difícil de acreditar... ele havia fechado a farmácia às onze horas, trabalhara desde as
sete da manhã e ainda havia cliente chamando para abrir a drogaria às três da madrugada!
Não era possível. Aquilo não passava de ser algum gaiato bêbado, de volta da festa de
carnaval, que resolvera pregar-lhe uma peça. Virou-se e voltou a dormir.

- Ô da farmácia! Acorda!

Aglea, a esposa, não se conformou com a indiferença do marido e interveio.

- Você não vai atender, Guilherme?

- Isso é gente bêbada.

- Vai pelo menos ver o que é. Só assim ele para de gritar.

- Já vai! Gritou para se ouvido lá fora.

Ele era o dono da única farmácia de Santo Antônio de Leverger e por isso não podia se
dar ao luxo de não atender quem quer que fosse.

Nasceu ali mesmo, na velha Santo Antônio, assim como seus antepassados. Seu avô fora
trabalhador da lendária usina de Itaicy no tempo em que a punição para os crimes era o
enforcamento público. Dizia o avô que, naquele tempo, os poderosos, ao se encantarem
com uma jovem mulher, mandavam seus empregados buscarem-nas na casa de seus pais
que eram obrigados a entregá-las sob pena de serem mortos.

O Pai de Guilherme foi vendedor de fumo, tornando-se depois funcionário público. Foi
nessa época que eles vieram morar em Várzea Grande. Ele ainda era criança e, depois da
escola, dedicava-se inteiramente ao futebol. Não conseguiu nenhuma vaga em times
profissionais, mas logo perceberam que o garotinho era muito esperto. Aos quinze anos,
foi convidado para trabalhar em uma farmácia. No começo era Office-boy, depois
vendedor e finalmente, com 18 anos, gerente do estabelecimento. Era um orgulho para os
pais o “filho trabalhador”. O irmão mais velho interessou-se pela sua capacidade de
gerência e o convidou para juntos abrirem uma drogaria na terra natal.

Naquele tempo, Santo Antônio tinha uma lojinha que, entre outras coisas, vendia alguns
remédios mais simples. Quando se tratava de algo mais sério, o jeito era comprar em
Cuiabá.

O sobrado de andar brotou do chão e cresceu do dia para a noite como moringa nova. O
prédio imponente no centro da cidade recebeu, no galpão inferior, belos expositores de
vidro com espelhos que faziam a loja parecer muito maior do que era. Os moradores da
cidade entravam na farmácia até para tomar preço de aspirina, só como pretexto para
conhecê-la.
O negócio prosperou, mas Guilherme estava intrigado, pois o irmão e sócio não o ajudava
com o trabalho; limitava-se a dividir os lucros. Foi quando o rapaz decidiu desfazer a
sociedade. Trabalhador e muito seguro, Guilherme já havia juntado dinheiro suficiente
pra comprar a parte do irmão. Depois vieram vários planos e pacotes econômicos e o
farmacêutico sempre firme. O plano real foi o mais perverso pra ele, mas mesmo assim
ele está lá, no mesmo lugar, desde 1985.

Levantando cedo e dormindo tarde, sem poder se divertir como os outros cidadãos;
padecendo com a inadimplência dos maus pagadores; importunado pelos viciados que
insistem em comprar suas drogas, mesmo sem a receita especial; procurado, em segredo,
pelas jovens para fornecer-lhes pílulas anticoncepcionais e toda infinidade de esquisitices
que se possa imaginar, Guilherme e sua esposa têm enfrentado tudo para manter sua
farmácia aberta e servindo sua cidade. Mas acordá-lo aos gritos as três da manhã parece-
lhe um pouco demais, mas, pelo jeito, deve ser coisa séria.

Guilherme sai na sacada do primeiro andar espantando pedaços de sono.

- Pode dizer, amigo!

- Dá pro senhor descer aqui?

Não fosse o Ricardo da Maria do seu Joaquim, ele não desceria não. Apesar do rapaz
estar aparentemente embriagado. Desceu trocando as pernas pela escadaria, destrancou o
portão e finalmente...

- O que está acontecendo, Ricardo?

- Não, sabe... pintou uma mulher ai pra mim, mas eu não tenho camisinha. Então eu vim
pedir pra você me vender uma... fiado. Dá pra vender?

Guilherme teve tanta raiva que veio até a boca um “vai a merda”, mas depois ele se
lembrou que brigar com bêbado é tempo perdido. Foi lá dentro e pegou uma do seu uso e
entregou-lhe dizendo:

- Outra vez que você me acordar por causa de uma coisa sem importância dessas, eu juro
que lhe parto a cara.

- Foi mal! Valeu, Guilherme! Depois a gente joga futebol junto.

Guilherme deu as costas com raiva.

- Vai a merda!

Ao voltar para a cama, Eglea perguntou curiosa:

- O que era?
- Queria uma camisinha.

- Quê! Não. Eu não posso acreditar... você disse “uma camisinha”?

- Foi o que ele me pediu.

Ela começou a rir, sacudindo nervosamente a cama de molas e Guilherme substituiu a


raiva por um riso nervoso que acompanhou o da sua mulher. Choraram de rir e perderam
o sono. Depois foram fazer café e logo o dia amanheceu para outra jornada de trabalho.

Seu Doca

- Seu Doca, o senhor tem certeza de que vai prender “o homem”?

- Evidente que sim. Se o senhor, que é sargento, não tem coragem de fazê-lo, vou eu
sozinho.

- Quê isso, seu Doca! Tá me chamando de covarde?

- Bom, eu não disse isso. O senhor me fez uma pergunta e eu apenas respondi.

O policial ficou um tanto magoado com a mensagem que ficava nas entrelinhas daquilo
que havia dito o delegado.

- O senhor está no comando. Eu cumpro determinação da lei.

- Eu já estou indo cumprir a lei. O senhor pode vir comigo ou não. Decida-se.

Seu Doca, o delegado, entrou no fusca preto e branco da polícia e já ia ordenando ao


motorista que seguisse, quando o sargento Siqueira veio correndo de dentro da delegacia.

- O senhor não vai sem mim!

Entra logo aí, que eu já estou de partida.

- Seu Doca, “o homem” é juiz, seu Doca. O senhor tá fazendo besteira. Disse o sargento
mais uma vez.

O delegado ficou taciturno. Teria mudado de idéia? Na verdade ele recordava o que havia
vivido até aquele dia, vendo-se delegado da cidade na obrigação de prender um juiz
arruaceiro.
Nascera em outros tempos, quando uma criança não passava de um adulto em miniatura.
Desde de criança fora obrigado a trabalhar para ajudar no sustento da casa. Levantava às
quatro da manhã para trabalhar no açougue, às oito ia para a escola, onde em pouco
tempo já seria professor dos seus ex-colegas. Com catorze anos começou a trabalhar com
tropas, mas logo fora chamado para ser administrador de uma fazenda. Tudo ia muito
bem, mas o jovem Doca teve uma desilusão amorosa e trocou a tranqüilidade da fazenda
de gado pela efervescência da Usina Itaicy, onde ingressara aos dezessete como auxiliar
da contabilidade. Foram tempos de muita prosperidade; o moço simples logo se viu em
terno de linho branco e chapéu de palhinha. Conhecia o funcionamento administrativo da
usina do avesso e logo seria uma peça fundamental dentro da administração da empresa.

Um dia, porém, a usina cerrou suas portas e Doca teve que trocar o conforto de um
gabinete e o terno de linho pela dureza da pesca e o cultivo da terra, pois agora tinha
mulher e filhos para sustentar. A mulher, por uma infelicidade, faleceu pouco tempo
depois, ficando ele sem ter como acompanhar a criação dos filhos e foi compelido a um
novo casamento com uma quase estranha, mas que tinha muito carinho pelas suas
crianças.

As provações tornaram Doca no “homem dos sete instrumentos”: professor,


administrador, contador, pescador, agricultor, comerciante e... músico, animando os
carnavais de Santo Antônio com seu pistão. Mas o homem “pau-pra-toda-obra” nunca
teve um diploma superior. Orgulha-se de mostrar seu diploma de admissão e só.

Seu Doca sempre fora um cidadão idôneo, de forma que, por várias ocasiões, fora
convocado como cidadão de bem a ocupar cargos públicos de confiança. Agora fora
incumbido de assumir a delegacia da cidade. Santo Antônio de Leverger sempre fora uma
cidade pacata em dias normais, mas havia um certo juiz de Cuiabá que levava uma vida
de austeridade na capital e, nos fins-de-semana transformava Santo Antônio na sua
Sodoma: bebia muito, brigava, descarregava revólver no meio da rua, enfurnava-se numa
casa-de-tolerância e lá apavorava todo mundo. Quando o dono de um estabelecimento via
o juiz chegar bêbado (e ele só andava bêbado em Santo Antônio) sabia que logo teria
sérias confusões. Porém todos temiam sua posição de magistrado e nada faziam, mas
Doca já estava com esse homem pelos escalpos.

Voltando de sua breve divagação, o delegado pede ao motorista da viatura:

- Gonçalo, vamos até a casa do fotógrafo!

- Já é tarde seu Doca! Disse o motorista.

- Preciso dele. Vamos até lá!

Sem maiores explicações, tirou o homem da cama, colocou-o no carro e seguiram para
um bordel afastado da rua. O delegado trazia algo enrolado em uma toalha e nenhum dos
três ocupantes da viatura imaginava o que ele estava preste a fazer.
Duzentos metros antes de chegar na casa, ele pediu que a viatura parasse. Pediu também
que o motorista ficasse ali e só aproximasse se ouvisse um disparo de arma de fogo e
seguiu com o sargento e o fotógrafo. Gonçalo ficou ali assustado e temeroso das idéias
tortas do seu superior. Imagina só! Prender um juiz! Só seu Doca mesmo e a sua mania de
fazer tudo certinho. Imagina só! Quarenta e três minutos depois – aguardados com
impaciência pelo motorista – ouviram-se três disparos de arma de fogo. Gonçalo ligou a
chave da viatura e seguiu para a casa apavorado, vencendo o areião da estrada. Quem
teria morrido? Seu Doca? O juiz? O covarde do sargento? Ou algum inocente? Gonçalo
estava tão apavorado, que nem percebeu que seguia pelo caminho rezando. Ao chegar,
viu o delegado sereno em meio a um cenário tranqüilo, o juiz caindo de bêbado
algemado, sendo conduzido pelo sargento que fazia pose de herói para as fotos que
espalhavam flashes por todo o pátio do palacete; os clientes todos escondidos nos quartos
e as mulheres assistindo a tudo triunfantes.

O fusca voltou até baixo, pois só o juiz ocupava quase todo o banco traseiro, com seu
corpão de peixe-grande. O prisioneiro não emitiu um gemido, uma queixa ou um
protesto. Seguiu sempre de cabeça baixa e calado. Ao chegar à delegacia, entrou sem
resistência na cela, deitou-se no catre e dormiu. O sargento ficou muito prosa depois da
prisão e falava o tempo todo revivendo cada momento daquela operação. Seu Doca, no
entanto nada dizia, sempre envolvido em organizar as coisas da delegacia.

- E aquelas fotos, seu Doca?

- Que tem aquelas fotos?

- O senhor vai publicar no jornal?

- Não.

- Vão só para os autos?

- Também não.

- Então...

- E tem mais.

Seu Doca desenrolou a toalha e mostrou um gravador que trazia oculto consigo.

- Eu gravei tudo o que ele estava dizendo: as imoralidades, as incitações à desordem que
fazia. Isso somado as fotos e a situação em que ele foi flagrado são nosso salvo coduto
que eu não revelarei, se ele não questionar minha atitude, tampouco empreender contra
nós algum tipo de perseguição.

- O senhor é esperto, seu Doca! Muito mais esperto do que muito doutor por aí.
Hoje seu Doca, septuagenário, repousa no anonimato fazendo uma coisa aqui, outra ali na
sua lanchonete em Santo Antônio do Leverger. Os mais antigos, no entanto, sabe que com
ele não se brinca, pois o homem foi o único a prender um juiz por ali até hoje.

Quo Vadis?

Contrariando as estatísticas, fomos parar na universidade. Ancoramos nosso barco em um


curso de graduação – aqueles que são reservados aos mais humildes, porque burguês, que
é burguês de verdade, faz medicina, direito, engenharia ou economia – um amigo e eu.
Meu colega, o Fred, fazia vasos para plantas e eu trabalhava como office-boy.
Estudávamos todas as horas vagas possíveis: no horário de almoço, no intervalo entre a
saída o serviço e a entrada na faculdade, sábado dia inteiro, domingo dia inteiro e nos
feriados. Namorar? Não! Nem era preciso se esforçar. Ninguém queria namorar dois
caras duros como a gente mesmo. Não tínhamos dinheiro para nada, pois tudo o que
ganhávamos gastávamos ajudando os pais na despesa da casa, uma roupa e um sapato de
vez em quando e cópias, muitas cópias de trechos e capítulos de livros para estudar.

A turma sempre fazia umas festas, mas a gente nunca ia, porque tinha que contribuir com
alguma coisa e a gente sempre estava na lona. Compúnhamos uma espécie de quarta
dimensão (existíamos, mas não éramos percebidos por ninguém).

Eu saia às quatro horas, tomava banho no serviço e passava pela casa-atelier do Fred. Eu
sempre o encontrava todo sujo de cimento, terminando algum trabalho. Depois íamos
para a faculdade de bicicleta e lá comíamos alguma coisa. A bicicleta, aliás, era a nossa
grande companheira, pois nos levava para todos os lugares. No entanto, nossos “camelos”
já estavam velhos, feios e, por esse motivo, eram motivo de vergonha. Bicicleta era bom
para andar no dia-a-dia, mas na hora de curtir o final de semana, ou de fazer o ritual do
macho-dominante não era nada legal.

Naquele dia, eu cheguei um pouco mais cedo do que de costume, o Fred ainda estava
montando um molde tamanho família parecia coisa para plantar mangueira produzindo
ou um coqueiro quem sabe. Sentei num caixote e ficamos jogando conversa fora.
Repentinamente ouvimos o ronco do motor de uma motocicleta que parecia ter parado
em frente ao atelier. Era um ex-colega de escola. Ele tinha uma bela moto esportiva, cujo
ronco humilhava qualquer uma que por ali passasse. Vestia roupas de grife, tinha um
bonito cordão de ouro no pescoço e um relógio de dar inveja. Eu o conhecera na quinta
série e o Fred, por coincidência, estudara com ele na oitava série. Fazia tempo que a
gente não se via e foi legal revê-lo assim tão bem. O nome dele era Nelson e, até onde
nós dois acompanhamos a história desse rapaz, era uma pessoa muito humilde e
desamparada. Criou a si e aos três irmãos, juntamente com o pai viúvo. Nunca fora muito
bem na escola e agora atava ali, parecendo até ser rico. Indagamos sobre os estudos e ele
dissera que os encerrara na oitava série mesmo. Ao devolver-nos a pergunta, declaramos
orgulhosos que estávamos cursando a faculdade. Nelson riu de nós dois, pois estávamos
tão adiantados nos estudos e, no entanto, vivíamos uma vida bastante indigna. Disse para
mim:

- De que adianta estudar tanto, se você não tem nada que preste, uma boa roupa, um
automóvel, uma casa? Desde que eu conheço vocês dois vocês batem cabeça por ai. O
Fred come barro aqui, quase desde que nasceu. Vocês são loucos! Como vocês pensam
em ganhar dinheiro com essas coisas que aprendem? O que dá dinheiro é trabalhar com a
cabeça. Eu faço uma coisa ilegal, mas quando a bomba estourar, eu vou estar bem longe
daqui. Eu repasso entorpecente, vendo droga pra viciado filho-da-puta há três meses e já
comprei essa moto, esse cordão de ouro de 18 quilates e esse relógio que vale quase o
mesmo que o cordão. E o que eu tenho que fazer? Nada. As pessoas vêm a mim. Eu
divido o lucro com o patrão, ele dá cobertura para mim, e está tudo certo. Pensem nisso e,
se quiserem sair dessa, procurem-me.

Ele partiu na sua moto, rugindo mais que um leão, e nós dois ficamos ali miudinhos com
vergonha da nossa dignidade. Fomos para a faculdade calados e chegamos a pensar que
estávamos errados. Dias depois, eu ouvi o Fred dizer que tinha como levantar muito
dinheiro, bastava ele querer. Fiquei preocupado, mas depois de alguns meses, encontrei o
Fred um tanto vitorioso, feliz.

- Tá sabendo a novidade? Não... quer dizer... qual?

- Nelson foi preso.

Fiquei surpreso.

- É... tá vendo, disse ele, botando aquela banca toda... eu sabia que ele ia se dar mal.

Ele não sabia nada, mas era uma forma de expressar a vitória do bem contra o mal, mas
nós chegamos a duvidar dos nossos princípios.

O DESPERTAR DA LUCIDEZ

Diga-me: o quê faz com que uma pessoa corra atrás de coisas intangíveis? O quê dá na
cabeça de alguém que inventa de acreditar no impossível? Pois é assim: as mentiras mais
absurdas têm um magnetismo muito superior à realidade e chegam a congregar
personalidades idôneas, de forma que você chega a acreditar naquilo que é absolutamente
insólito. Se eu dissesse que, em tal lugar, existe uma cidade onde os homens têm asas e
que podem voar como os pássaros, certamente encontraria uma multidão interessada em
tal estória, mas se, pelo contrário, dissesse que em tal lugar há uma tribo indígena, teria
poucos atentos ao meu assunto. Acho que o ser humano gosta de ser enganado.
Pois eis aqui um desses exemplos: Ricardo era jovem e fazia faculdade de comunicação.
Trabalhava na Secretaria de Educação e Cultura do seu município no arquivo de projetos.
Uma pobre e inocente vida apodrecendo juntamente com tantos papéis. Com seu
miserável salário, mal conseguia pagar suas contas, mas restava-lhe uma esperança:
talvez, quando terminasse a faculdade...

Um dia ouviu sua chefa dizendo:

- Ignoramos mesmo os mundos que estão sob nossos pés.

- E há mundos sob os nossos pés? Disse ele.

- Inúmeros. Apesar de a humanidade ainda ignorar isso.

- Fale mais sobre isso.

- Se você quiser saber mais sobre o assunto, vá a palestra que será proferida pelo doutor
Fulano de Tal da universidade de Não Sei o Quê, que fica em Não Sei Onde (os nomes
foram inventados por nós).

O rapaz ficou impressionado não tanto com o disparate, mas com as qualificações do
referido palestrante que falaria sobre o assunto; e ele foi à palestra.

Conforme fora prometido, um senhor com aspecto refinado e professoral iniciou sua fala
citando pensadores sofistas; o que, posteriormente deu lugar a trechos de livros sagrados
e terminou com supostas fotos retiradas pela NASA, mostrando que, do espaço se viam
aberturas para o interior do planeta terra. Segundo o especialista, o planeta seria uma
imensa cápsula que abrigaria um outro mundo no seu interior. Para arrematar o aspecto
acadêmico da pesquisa, citava uma centena de livros que tratavam do assunto, sendo que
metade tinha sido de sua própria lavra.

Quando o colóquio terminou, houve um convite geral para que os espectadores fizessem
um curso gratuito de alguma coisa relativa ao assunto naquela instituição que ofertara
aquela palestra.

Ricardo estava decidido a conhecer um pouco mais sobre o assunto, pois afinal o curso
era grátis. Foi ai que soube realmente de que tipo de instituição se tratava: uma “seita
secreta”, com estudos, símbolos, rituais e graus. Juntamente com os mundos interiores,
havia um panteão de personagens, cidades e mistérios. Aquela instituição, por exemplo,
tinha a chave para entrar naquele mundo. Desta forma, havia o lugar exato para se entrar,
bem como todo o conhecimento do que aquilo era. Havia alguém que transitava
livremente entre os dois mundo, aliás ele era o rei dos dois mundos; depois ele já era o rei
do mundo todo. Precisavam fazer rituais para conseguir evoluir, para poderem morar lá.
De uma hora para outra, já havia necessidade de contribuição financeira e, por fim, já
eram vinte por cento do salário (pesado imposto). Havia peregrinações até lugares santos,
ou “aberturas”; havia chás e almoços caríssimos e até uma família real. No meio disso
tudo, nosso jovem já não entendia mais nada, ou antes, achava que entendia, mas não
entendia.

Os Mundos Interiores era uma mentira insustentável, mas que servia de chamaris para
uma seita religiosa de pouco crédito. Depois de algum tempo nenhum dirigente suportava
mais que algum dos adeptos falasse sobre os tais mundos e inventavam alguma
dificuldade para chegarem até lá: “é uma outra dimensão”, ou “só as mentes evoluídas
são capazes de ver e penetrar” etc. As excurssões nacionais e internacionais
(peregrinações), os chás, almoços e jantares, além de parte das contribuições financeiras
eram os dividendos que sustentavam a luxuosa família real que nada tinha de importante
para oferecer.

Mas isso levou tempo para ficar visível. Ricardo galgou os graus até entrar para uma fase
mais secreta e que prometia explorá-lo ainda mais. Foi nesse momento que sua terceira
visão mística se abriu e ele pode ver que tudo aquilo não passava de uma grande
enganação, mas não só aquilo. Ele pode ver que no mundo há muitas mentiras que por
serem antigas e repetidas a miúde, parecem ser verdadeiras: filhos de Deus nascidos de
seres humanos; curandeiros e gurus que nada mais são que atores representando seus
sórdidos papeis; igreja e sociedades que funcionam como usinas de capitalização;
segredos que nada mais são que mentira, confusão e vazio; ícones, estátuas e objetos que
pretensamente têm mais poder que o próprio Deus . Mas ai daquele que tentar dizer.
Ricardo não era tão corajoso assim. Tornou-se cético e só.

Telemarketing do terror

São sete horas da noite, o telefone toca e minha mulher corre para atendê-lo. Por acaso,
estamos todos em casa: eu, ela e as crianças. O telefonema é a cobrar e, do outro lado,
uma voz masculina inicia assim:

- Boa noite! Aqui é dá polícia e estamos entrando em contato com vocês, pois ocorreu um
acidente envolvendo quatro carros e uma moto.

- Meu Deus! Diz minha mulher, mas ela sabe que estamos todos em casa. Que alívio.

- Pois é. No meio da documentação dos envolvidos nós encontramos este telefone. Com
quem estou falando?

- Natália.

- Natália, tem alguma pessoa da sua família que esteja fora no momento?

- Sim. Ela diz só para ver até onde vai a conversa.


- Você poderia confirmar alguns dados, por favor?

- Sim.

- Nome.

- João Vitor. Ela inventa.

- Tipo do automóvel, marca e cor.

- Carro, marca X, verde.

- Numero do celular ou outro telefone de contato.

- Não me lembro agora. Estou muito nervosa.

- Tudo certo.

- Oh, meu Deus! Ela diz fazendo teatro e me chama para ouvir o golpe.

- Não se preocupe, dona Natália, está tudo bem com o senhor João Vitor. Ele está aqui
conosco. Eu só me identifiquei como policial para que a senhora me desse atenção e não
foi um acidente que aconteceu na verdade. O que aconteceu é que o João Vitor vinha
passando no exato momento em que ocorria um assalto e nós tomamos o seu carro e o
fizemos de refém. Mas é importante que você saiba que ele tá bem. Nóis tamo aqui cum
ele e ele tá colaborano cum nóis, mais agora é cum voceis. Ceis vão tê que colabora cum
nóis, purquê nóis tâ na brabeza e num vamo tê medo de fazê qualquer coisa. Tá ligada?

- Sim. Estou entendendo.

- Nóis tamo precisano di dinhero.

Nesse momento achei que já estava de bom tamanho: a conta telefônica já ficava salgada
e, afinal, eu nem sabia se aquilo era um interurbano ou não. Tomei o telefone e falei
coisas impublicáveis ao patife. Eu o descompus com todo o poder da minha alma, por
estar aterrorizando uma família que só quer viver em paz.

Afortunadamente, estávamos todos em casa, mas se um único membro da família


estivesse fora, talvez caíssemos como patinhos; minha pressão arterial subiria ao espaço,
minha mulher choraria como uma louca e não saberia o que fazer, meus filhos (inocentes)
ficariam desesperados. É um terrorismo gratuito, contra gente que não faz mal a
ninguém; gente trabalhadora que não tem poupança, nem bens para serem extorquidos.
Certamente, eles nos apresentariam uma alternativa mais razoável, como comprar cartões
de telefonia celular ou coisa assim.
Fico pensando naquelas pessoas simples, com pouca informação, gente que nunca ouviu
falar desse golpe, gente pobre, como eu, fazendo das tripas coração para conseguir
satisfazer a exigências dos falsos seqüestradores de seus filhos. O que eu mais temo é que
tal atitude não parta de criminosos perigosos, mas sim de jovens de família, pregando
uma bela peça, para conseguirem créditos para seus celulares ou algo mais.

Se, desafortunadamente, minhas suspeitas se confirmarem, só devo dizer que se você


deseja viver em um mundo, onde possa passar tranqüilos momentos em sua casa com sua
mulher e seus filhos, ou passear de tarde pela calçada do seu bairro, ou tomar uma
cervejinha no bar da esquina, enquanto os filhos brincam com outras criança no
playground, você tem obrigação de semear essa paz tão desejada. Quem semeia terror
colhe terror.

(***)

EXCLUÍDO

Eugênio chegou atrasado à escola. A professora fez cara feia, mas deixou que ele
entrasse. Antes, porém, fez um discurso:

- Se o transporte fosse pago, diria que não teve como pegar o ônibus; mas não é o caso,
não é, seu Eugênio!

Ele entrou calado e tímido, sentando-se na quarta mesa da segunda fileira depois da porta.
A professora não sabia o que ele tinha de andar para pegar um transporte “gratuito”. Seus
pés, metidos em pobres sandálias de borracha, eram tingidos pela tinta vermelha da terra
que os banhava ao longo dos três quilômetros que distanciavam o ponto mais próximo de
sua casa. Não era magro, mas de corpo franzino, pequeno, mal distribuído; seus cabelos
eram desalinhados, seus olhos tristes, suas roupas amareladas e amassadas. Eugênio
vinha das periferias de um país chamado Brasil, que é onde moram aqueles que ficaram a
margem da cidadania. Seus pais são analfabetos; eles não têm televisão, computador,
Internet: nada. O garoto se diverte jogando futebol e empinando pipa. Faz isso o tempo
todo. O pai o levava para ajudar na lavoura, mas fora repreendido pelas autoridades.
Agora não fazia mais nada, além de ir a escola, futebol e empinar pipa.

Era aula de matemática. A professora explicava como se fazia um cálculo, mas o fazia de
forma muito mecânica e rápida para ele. Na verdade, ela estava explicando apenas para
um grupinho de alunos que não tinham dificuldade de entender, ou entendiam tudo muito
rápido. O garoto assistia aquela cena em que um grupinho de gênios interagia com uma
professora que falava tudo muito rápido, enquanto uma outro grupo bagunçava o tempo
todo. De vez em quando, uma pelotinha de papel babado o acertava a nuca. Eugênio não
estava interessado naquela aula, mas felizmente ela acabou. Nem bem esticou as pernas e
o professor de história já entrava na sala. Era um cara muito grande e falava parecendo
um trovão. Todo mundo tinha medo dele e ficavam quietos. Aquele professor falava a
aula toda de coisas que haviam acontecido muito tempo atrás. Era difícil armazenar tanta
informação. Ele colocava no quadro tantas datas e nomes que era humanamente
impossível repetir uma única idéia do que aquele homem dizia. Todos sabiam que ele
conhecia muito sobre o que ensinava, mas suas provas eram um verdadeiro arraso.
Depois veio a professora de Português, sempre pronta a disparar uma correção a sua
forma de falar. Eugênio nem gostava de abrir a boca naquela aula, pois tudo que ele
falava estava errado para a professora. Um dia, ela perguntara se ele não havia trazido o
livro e ele respondeu:

- Eu não “truxe”, professora!

E ela o massacrou covardemente. Outro dia, ele contava uma aventura sua, todo
empolgado:

- Ai eu “di” uma porrada no bicho...

E novamente fora criticado. Seus textos pareciam bandeira de Santo-reis quando


voltavam de suas mãos e havia uns tais livros que era preciso ler. Bem que ele tentava,
mas não conseguia entender nada. E, para piorar, ainda havia na sala o Betinho, cujo pai
era jornalista, sabia tudo de Português, mas não ajudava ninguém. Humilhado, Eugênio
alimentava a vontade de acertar-lhe bem no meio da cara.

Terminando a aula: intervalo, a melhor hora. Agora ele podia encontrar com os camaradas
e azarar as garotas. Não se dava bem na última atividade, mas era lícito tentar sempre.
Intervalo encerrado. Aula de... do que aquela mulher dava aula mesmo? Era uma agonia,
pois ela passava no quadro o tempo todo, nunca explicava e, ainda, era muito chata. Mas
o pior de tudo é que eram duas aulas.

Aos trinta minutos da quarta aula, Eugênio já não suportava ficar sentado copiando o
tempo todo. Então, levantou-se e resolveu conversar com Thiago, que era um camarada
muito bom de prosa. Mas a professora não gostou nem um pouco e o mandou para a
coordenação. Lá, ela apresentou uma série de reclamações a respeito dele. Coisas que ele
sabia que nunca tinha feito. Assim, indignado que estava, replicou:

- Mentira! É tudo mentira sua.

É ... aí a coisa ficou preta para o seu lado. Suspensão de três dias e só voltaria com a mãe
ou o responsável. Ele seguiu para sua casa. Em tudo havia um lado bom. Pelo menos não
teria que aturar aquela aula chata. O chato mesmo era ter que levar a mãe para a escola.
Eugênio sabia que os professores não estavam nem aí para ele. Queriam cumprir sua
missão e ganhar seu dinheiro. Pouco importava que aquele garoto ignorante estivesse
aprendendo ou não. Que se danassem todos... escola mais chata. Pra que aprender aqueles
cálculos, ou saber o que já aconteceu, ou falar e escrever de um jeito diferente, ou pra que
aprender aquele negócio que a professora nunca pára de passar no quadro? Besteira. E ela
sabia que aquilo não era verdade. Ele nunca bangunçou na aula dela. Mentirosa.

Mas agora era hora de esquecer aquele dia ruim. O vento estava bem bom para as pipas e,
mais tarde, pelada com os amigos. O resto ele resolveria depois.

A viagem de Mamede

Capítulo I

Mamede acordou de súbito com o estalo de um trovão. Lá fora a ventania e os


relâmpagos anunciavam uma forte tempestade e os animais do tropeiro, no curral, se
agitavam de forma incomum. Aquele temporal quebrava o sossego usual daqueles
sertões. Mamede já estava acostumado aos sons noturnos de aves, répteis e outros
animais selvagens, mas o som da tempestade era algo incomum. Por ali, só havia outro
rancho há uma légua e isso tornava uma tempestade ainda mais temível. Estranhamente
sua mulher dormia tranqüila ao seu lado; os filhos, em seus quartos, também
comungavam dessa paz.

Ele desceu ao curral e se surpreendeu ao verificar que havia alguém na entrada da


pequena propriedade.

- Quem vem lá? Disse o sertanejo.

- Até que enfim acordou, dorminhoco!

Estranhamente a tempestade parou e Mamede aproximou-se do visitante noturno com


cautela e desconfiança. Constatou, entretanto que era alguém muito familiar, mas... de
onde? Ao ficar frente a frente com o chegante, sorriu e recebeu um sorriso de longa data
de volta. O tropeiro estava totalmente confuso: Quem era? Na mente não lhe vinha o
nome e nem tão pouco de onde e como o conhecia, mas era como receber a visita de um
irmão, ou um primo muito chegado.

“Gabriel”. Ele agora se lembrava do nome do forasteiro, mas era somente isso, como uma
aminésia repentina.

- Vamo entrá!
- Não temos tempo. Vamos!

Ele não entendia o que estava acontecendo, mas sabia que deveria seguir o homem,
mesmo sem saber para onde.

O visitante o levou até a uma montaria nunca antes vista pelo experiente tropeiro. Era
maior que um jumento e menor que uma mula; não se identificava nela cabeça, pescoço
ou patas. Apenas o lombo era claramente identificável. Gabriel pediu que o homem
colocasse um chapéu na cabeça e ele o fez. Em seguida a estranha montaria partiu tão
veloz que em seu primeiro passo já estavam no horizonte; era como uma ave deslizando
no espaço.

Mamede estava totalmente confuso e tentava recordar-se do que havia acontecido antes
daquele momento. Havia deitado mais ou menos uma hora depois do jantar após fazer
suas costumeiras orações noturnas. A propósito trata-se de um homem bastante religioso,
ainda que sua religiosidade fosse fora do habitual. Não tinha devoção por santos, pela
virgem Maria ou por Jesus; não adotava também nenhum outro Deus que não fosse
aquele no qual acreditara Abraão e toda a sua descendência; só rezava para Deus e
somente para ele pedia por socorro e, nessa devoção, tinha para com Deus uma relação de
empregado e patrão, pois, segundo ele, era quem lhe dava de comer e a toda sua família.

As pessoas reparavam muito na sua forma de ser religioso e ele dizia que, no início da
humanidade, quando ainda não existiam nem santos, nem a virgem Maria ou Jesus, os
homens adoravam ao Deus supremo e para ele erguiam as igrejas que depois passaram a
ter donos humanos (Igreja de Nossa Senhora de Fátima, Igreja São João Batista, Igreja do
Bom Jesus etc) e o Deus de Adão, Noé, Abraão, Ismael... passou a ser um mero inquilino
dentro das medíocres casas que o homem criou para adorações. A sua maneira, Mamede
acreditava seguir a verdadeira religião, como nos tempos de Abraão.

Quando o vaqueiro deu por si, emerso que estava em suas divagações, a estranha
montaria voava pelo espaço a uns quarenta metros de altura.

- Olhe para baixo e verá a primeira igreja construída unicamente para reverenciar a Deus!
Disse Gabriel.

A emoção forte fez com que o tropeiro perdesse completamente os sentidos e, então,
deram-se sucessões de fatos ainda mais estranhos e, até certo ponto incompreensíveis.

Quando acordou estava deitado e cercado de pessoas estranhas, vestidas de forma ainda
mais extravagante.

- Precisamos fazer uma correção em você.

Seu peito foi aberto e seu coração, de lá retirado e banhado em uma bacia de prata.
Durante o ato insólito, um deles lhe disse:
- Seu coração está provando da água sagrada que livrou Ismael da morte um dia.

Ele acordou pouco tempo depois, de pé e recuperado, na companhia do companheiro


misterioso. A luz da lua nova iluminava o lugar onde estavam e um vento quase frio
açoitava seus corpos.

- Estamos em Jerusalém! Disse-lhe Gabriel.

Parecia impossível. Jerusalém estava a milhões de quilômetros de sua casa... e aquela


estranha cirurgia? Tudo parecia um sonho, no entanto não era.

Capítulo II

Em Jerusalém, uma torre se estendia até o infinito, circundada por uma igualmente
extensa escadaria. Ao convite do companheiro misterioso, os dois seguiram. A cada
degrau que galgavam era como se elevassem a uma centena de metros do solo e logo
chegaram a um portal que Gabriel disse ser “a primeira morada”.

O portal se abriu e o que puderam ver não era apenas um cômodo ou quem sabe um
conjunto extenso de cômodos. Era um mundo diferente onde tudo reluzia como prata e
tudo era iluminado por estrelas que mais pareciam lâmpadas, dando ao lugar um aspecto
de amanhecer chuvoso. Ali havia habitantes muito altos e seus rostos transpareciam
bondade. Havia também anjos que eram muito mais altos e resplandecentes que os
habitantes e que serviam ao criador o tempo todo, rezando com as mãos sobre o peito.

Foi quando se chegou a eles um homem tão grande como os anjos e cuja beleza era
incomparável. Ele os olhou com carinho e Gabriel fez a apresentação:

- Este é o pai de toda a humanidade. Trata-se do primeiro homem, Adão.

O colossal ser tomou Mamede na palma da mão e o elevou até a altura dos olhos e disse-
lhe com a voz de trovão:

- Quanto tempo! Você é uma pessoa digna e de caráter impecável. Por isso veio até aqui
para saber o que há além das quatro paredes. Prepare-se, pois verá coisas mais gloriosas
do que esta e também coisas muito mais assustadoras. Olhe para minha direita!

Mamede olhou por sobre o ombro direito de Adão e viu o vulto de uma multidão festiva e
Adão lhe disse:

- São aqueles que obterão a salvação. Agora olhe sobre o meu ombro esquerdo!
O homem olhou e viu uma multidão muito triste, desconsolada mesmo.

- Esses são os condenados ao inferno. Todos ficarão sabendo de sua sentença momentos
antes de sua morte e, por isso, muitos estiveram e estarão felizes ao morrer e outros não
desejaram nem desejarão a morte, mas ela é implacável. Agora olhe para baixo!

O tropeiro fez como o ele mandava e viu aberrações, coisas que quase faziam seu coração
convalescente quase parar de espanto e medo. Havia aqueles que devoravam a si
mesmos, regurgitavam suas carnes podres e voltavam a se devorar numa tarefa de agonia
sem fim. Outros eram obrigados a engolir pedras incandescentes, defecavam-nas em
seguida e logo eram reintroduzidas em suas bocas enormes, num suplicio infinito. Outros
eram atropelados paulatinamente por criaturas muito pesadas e somente podiam encontrar
abrigo entrando no fogo eterno.

- Porque tanta maldade?

- Eu não sei lhe dizer, mas eles merecem cada momento dessa tortura. Foram pessoas que
gozaram das fortunas terrestres a custa da exploração do seu semelhante. Verdadeiros
parasitas num mundo onde todos trabalhavam para viver. Tudo o que estava reservado
para eles foi-lhes dado em vida e o que restou após a morte para seu mundo foi isso.

Mamede viu adúlteros que se viam diante de banquetes maravilhosos, mas quando
levavam a boca o delicioso alimento transformava-se em fezes humanas e mulheres, que
enganavam os maridos, penduradas por anzóis fisgados aos seus seios. Os depravados
eram obrigados a satisfazer criaturas de fogo que, onde tocavam, nasciam tumores,
deformando o corpo e dilacerando ternamente.

O homem já perdia os sentidos quando Adão o privou da visão de horrores.

- Mesmo que eu contá essas coisa pra minha gente, num vão acreditá ni mim.

- O ser humano é assim mesmo, mas você não deixará de acender um pavio de
temeridade neles. Então não desista. Não deixe de repetir o que viu e de falar sobre o
Senhor que criou tudo e todos. Não deixe de adorar e clamar por misericórdia apenas para
aquele que tudo criou.

Mamede chorava convulsivamente ao ouvir os conselhos daquele pai tão sábio que nem
percebeu quando Gabriel o tomou pela mão e o levou ao portal de uma segunda morada
bem mais alta que aquela.

Capítulo III
A segunda morada era ainda mais ampla e mais bela que a primeira. Uma luz dourada
que brotava de uma fonte indireta dava ao lugar um aspecto semelhante ao crepúsculo
sobre a areia do deserto. João Batista e Jesus vieram ao encontro dos chegantes. Trocaram
beijos fraternos, como se há muito não se viam. Jesus trazia sobre o peito um medalhão
onde se lia um novo nome.

- Quê é isso aí?

- Meu novo nome. Com este nome eu voltarei em breve.

- Por que mudou seu nome?

- Que nome?

- Jesus!

- Eu nunca me chamei Jesus. Meu nome hebraico era Yoshua. Os romanos me chamaram
de Jesus e me perseguiram e depois me elegeram deus para servir aos seus propósitos.
Meu novo nome é porque voltarei para lutar pelos mais fracos como sempre foi minha
missão e porque Israel envergonha o verdadeiro Deus.

E continuou:

- Nasci em uma família de pessoas fiéis ao Deus de Abraão, Ismael, Isaque, Jacó... nosso
Deus confiou-me ser um profeta entre o povo de Israel. Mostrei para os homens o quanto
eram patéticas suas leis religiosas, mas fui perseguido pelos poderosos e o Senhor Deus
me retirou do meio deles. Mesmo assim, usaram meu nome para justificar as práticas
pagãs e a idolatria.

Quando eu voltar, será uma sexta-feira e estarei em meio à assembléia dos homens. E da
casa de orações sairemos para tomar Jerusalém. Depois tomaremos a capela dos idólatras,
em Roma, e lá realizaremos nosso serviço para com Deus. Ali mesmo, o imperador e seu
séqüito serão submetidos ao fio da espada.

O homem ouvia a tudo com atenção, mas o significado daquelas palavras ainda era muito
distante para o seu fraco entendimento, mas ele sabia que deveria repetir tudo aquilo
conforme ouvira da boca do messias.

- Vamos! Ainda há muito caminho por percorrer. Gritou Gabriel já na porta da morada.

O homem então se despediu dos dois, triste por querer ficar junto deles um pouco mais.
Quando se aproximou do portal, viu outro anjo enorme ao lado daquela saída, adorando a
Deus curvado e com as mãos apoiadas sobre os joelhos.
Capítulo IV

A terceira morada era toda revestida de pérolas que geravam a claridade daquele lugar.
Ali estava José que discursava para uma multidão com o dedo indicador levantado o
tempo todo dizendo:

- Testemunho que não há na minha vida outra divindade ou santo que não seja o senhor
Deus que tudo criou!

Ali também estava o anjo da morte escrevendo incansavelmente em seu livro todos os
nomes daqueles que nasciam e que morriam para o nosso mundo transitório.

Mamede assistia com surpresa a multidão que por ali passava constantemente como
peregrinos penitentes. Mas a hora já se adiantava e tiveram de seguir viagem.

Capítulo V

Ao entrar na quarta morada, os olhos de Mamede, até então tristonhos e interrogativos,


tornaram-se alegres e vibrantes, pois todo o lugar era feito de ouro: do firmamento até as
árvores, os rios e as pessoas que ali viviam; uma garoa constantemente, entretanto, apesar
da exuberância do lugar, dava a ele uma certa aparência melancólica. Gabriel e Mamedes
caminharam até a uma montanha toda de ouro, mas que, em verdade, era um anjo que
chorava sem parar e suas lágrimas caiam com garoa.

- Por que tanto chora esse anjo? Perguntou Mamede.

- Ele lamenta pelos pecados cometidos pelos humanos, pois melhor do que ninguém sabe
o quanto isso é danoso para eles e para todas as esferas celestes. Disse Gabriel.

Mais adiante, outro anjo rezava com os joelhos e o rosto repousados sobre o solo
dizendo:

- Glorificado seja o meu senhor, o maior de todos os senhores.

E assim seguiram para o portal do quinto caminho.

Capítulo VI
Eis que, na quinta morada, toda revestida de prata e de temperatura bastante fria, havia
um anjo que guardava uma máquina de guerra muitíssimo poderosa: Era a flecha do
trovão: uma arma muito poderosa que assinaria de forma definitiva o fim da humanidade.
Ela estava sendo guardada por aquele anjo que a enviaria para a terra na hora exata em
que o Senhor Deus ordenasse. O artefato exterminaria toda a vida, inclusive a do próprio
anjo que seria o último a morrer.

Mamede não entendeu nada daquilo e Gabriel o alertou:

- Não tente interpretar nada. Aqui está tudo o que foi, é e será. Impossível encontrar para
tudo um sentido. Mas continuemos nossa caminhada.

Capítulo VII

Mamede e Gabriel agora se encontravam na sexta morada que era um lugar de esplendor
maior que os outros anteriores. Por toda parte havia pedras preciosas, tornando aquele
lugar de aspecto inigualável. O tropeiro teve tonturas ao chegar naquele lugar, tamanha
foi a emoção que sentiu. Quem os recebeu foi Moises que chorava como que pela morte
de algum parente querido. O humilde homem quis saber a razão de tanta comoção e o
profeta lhe disse:

- Choro porque vejo que meu trabalho foi em vão, pois muito daqueles para quem Deus
deixou a mensagem, através de mim, não poderão ver a sua graça. Tu, que vieste para a
terra muito mais recentemente que eu, serás ouvido por muito mais gente.

Perto dali uma multidão de pessoas de todas as raças e culturas enfileiravam-se todas
num único sentido. Ao ser questionado sobre aquelas multidões, Moisés respondeu:

- São os profetas de todos os tempos e lugares do mundo, que foram fiéis ao Deus único,
e que já se enfileiram aguardando o dia do juízo final.

Antes que Mamede perguntasse mais alguma coisa, Gabriel o convidou para continuarem
o caminho.

Capítulo VIII
Ao abrirem a porta da sétima e última morada Mamede experimentou o maior impacto de
toda sua vida. Nada que tenha visto até aquele dia comparava-se ao que seus olhos agora
contemplavam. Ele conhecia a imensidão do sertão, mas imensidão como aquela nunca
fora vista. Ele conhecia a grandeza das montanhas, mas aquelas grandezas eram
amedrontadoras. Seria impossível contar para seu povo o que ele estava vendo. Ele só
poderia dizer que a paisagem mais bela do nosso planeta seria desprezada pelos
habitantes daquele lugar; a maior fortuna do nosso mundo era miséria para eles. Os seres
eram colossais e cada parte de seus corpos era capaz de enxergar, ou cheirar, ou escutar,
ou provar e, por isso, viam tudo, sentiam tudo e eram capazes de saber de tudo. Havia
mulheres lindíssimas, mas, ao contrário das mulheres da terra, aquelas não precisavam
fazer sacrifício para serem infinitamente mais lindas do que as que acreditamos serem as
mais bem dotadas. Além disso, ninguém ali sabia o que era envelhecer, emagrecer ou
engordar, ficar doente ou morrer.

De todos aqueles seres imensos saiam filamentos feitos de ouro e de prata, ligando
milhares deles a um único ponto, formando, assim, uma outra criatura que, ligada a
milhares de outras como essa formavam ainda outra criatura que fazia parte de outra
criatura, assim sucessivamente. Para que se entenda, era como uma imensa floresta
constituída de uma única árvore, uma teia de aranha maravilhosa. Ao longe, a magnífica
formação tomava o aspecto de uma flor. Aquela era a face de Deus.

Mamede levou as duas mãos ao coração, em seguida curvou-se diante do seu Senhor e,
por último, curvou seus joelhos e deitou o rosto por terra.

- Bom servo! Eu te privei de toda riquezas e prazeres mundanos, mas te convido a


desfrutar de tudo o que encontrar aqui na minha morada. Há outros a quem dei muitas
coisas e que entenderam que tudo me pertencia e, assim, trabalharam para que suas
riquezas fossem também a riqueza de outros. Mas há os que usufruíram cada migalha de
sua fortuna, pensando unicamente em si. Esses já tiveram tudo o que eu poderia lhes dar e
não estarão entre os agraciados. Também rejeitarei aqueles que se entregaram à
depravação e que estimularam outros a fazerem o mesmo, que roubaram e estimularam
outros a fazerem o mesmo, que blasfemaram e que estimularam outros a fazerem o
mesmo. Também não suportarei a presença em minha morada daqueles que não
reconheceram que sou o criador de tudo e o único senhor de sua vida.

- Senhor, e aqueles que deixaro se levá pela depravação, que robaro, mas não estimularo
mingúem a fazê o mesmo? E aqueles que se desviaro da fé em ti, mas se arrependero do
que fizero?

- Primeiro devem se arrepender sinceramente, pois ninguém pode me enganar. Depois


devem rezar cinqüenta vezes por dia, para que, ao final de cada dia, eu possa perdoar uma
fração de seus pecados e, assim, no dia do juízo, computarei seus créditos e seus débitos
para que possa expressar uma sentença. Agora vá, pois ainda não viestes para habitar
nesta morada. Moisés o aguarda na morada anterior e está ansioso para saber de nossa
conversa.
Mamede percebeu que já não estava na companhia de Gabriel e deu um passo para trás,
encontrando-se ao lado de Moisés.

- O que lhe pediu o Senhor?

- Que diga pra minha gente se arrepende do que faiz e rezá cinqüenta veiz por dia para o
perdão dos pecado.

- Mas eles jamais rezaram cinqüenta vezes por dia. Conheço muito bem a natureza do ser
humano sempre muito preocupado com sua própria satisfação.

- Nada posso fazê. Deus determinô.

- O Senhor é o mais poderoso e o mais perdoador. Volte e peça que ele reduza essa pena
para o bem dos displicentes humanos, para que possam se salvar.

Mamedes deu um passo a diante e novamente estava na presença do Senhor.

- Senhor...

- Moisés deve ter achado muito pesado o número de orações diárias que pedi.

Ocorreu ao tropeiro perguntar como Deus sabia da reação de Moisés e, antes que dissesse
qualquer coisa, Deus assim respondeu.

- Conheço muito bem a natureza de cada uma das minhas criaturas. Cuidei de cada um de
vós como flores do meu jardim e, assim, sei o que se passa na mente e no coração de cada
um. Se cinqüenta é demasiado, se rezarem 25 vezes por dia, já considerarei suas missões
cumpridas.

Mamedes se curvou e deu um passo para trás. Moises já o esperava ansioso.

- Baxô pra 25 oração diária.

- Os humanos nunca cumprirão com isso. Estarão, portanto, todos condenados ao inferno.
Volte e peça ao PERDOADOR que diminua sua sentença.

Mamedes deus um passo adiante e o Senhor o recebeu com uma imensa gargalhada.

- Como os humanos são preguiçosos! E como vós gostais de regatear! Se algum homem
rezar dez vezes por dia, dar-me-ei por satisfeito. Agora vá!

Moisés estava ali, a espera do pobre humano.

- E agora?
- Dez veiz e já tá ficano furioso.

- Se você se der por contente, estará condenando toda a humanidade ao fogo do inferno,
pois sei que pouquíssimos dentre eles serão capazes de realizar tal feito. Negocie um
pouco mais. O Senhor gosta de ser procurado.

Mamede deu outro passo a diante e se viu diante do Senhor Deus. Estava rubro de
constrangimento.

- Senhor, os home são preguiçoso e egoísta. Eles passa a vida pensano em suas própria
sastifação, mais diz não tê tempo para servir a Deus. Se eu pedi pra que reze 10 veiz por
dia, tenho certeza de que não vão fazê e vão tudo condenado pro inferno. Retornei pra
pedi sua clemência pra que o Senhor peça alguma coisa ainda mais fácil.

- Bondoso e ponderado Mamede, os humanos dizem não terem tempo para fazer o que
lhes peço, porém encontram muito tempo para criarem seus próprios precipícios. Com
seu tempo livre geram seus próprios infernos, suas dores futuras. Há quem toma seu
tempo livre difamando seu vizinho; há quem rouba os bens de seus conterrâneos, quando
Deus lhe dá um tempo de descanso; há quem persegue a mulher, ou marido da sua
concidadã; há quem trama contra o outro, quem estraga sua própria saúde, quem mente e
prejudica outros, quem engana, quem mata, quem corrompe, quem nem sabe o que fazer
com tanto tempo e vive a perturbar seus semelhantes, julgando que sejam eles os
responsáveis pelo imenso vazio de suas vidas. Pois que sejam cinco orações, mas que
sejam distribuídas ao logo do dia, de forma que não sobre para eles tanto tempo para que
não cometam tantos erros. E que assim seja.

Mamede deu um passo para traz e já encontrou Moisés a sua espera.

- E agora?

- Pediu que a gente reze 5 oração por dia.

- Eles não o farão.

- Mais eu já tô bastante vexado e não volto lá, na presença de Deus, pra pedi mais nada.

Nesse instante Gabriel em forma de anjo arrebatou-o, colocando-o sobre sua montaria e
desceu veloz pelo caminho de todas as moradas, passando por Jerusalém até chegar ao
rancho do humilde homem. Ainda era noite e Mamede, extremamente cansado, deitou na
sua cama e só pode levantar com o raiar do dia. Ao ver o nascer do sol, agradeceu a Deus
rezando como o primeiro anjo, como o segundo anjo e como o terceiro, depois erguia seu
dedo direito e reafirmava que só adoraria a um Deus.

Sua mulher levantou-se e o saudou. Ele contou de sua viagem, mas ela lhe ponderou que
fora apenas um sonho. Ele, então, abriu sua camisa e mostrou-lhe a imensa cicatriz, já
bem seca.
- O que é isso? Admirou-se ela.

- É uma prova do infinito poder de Deus.

Deus é grande!

(***)

TERROR DE BANHEIRO

Lembro-me que, aos sete anos, eu detestava ter que ir ao banheiro da escola. O mau
cheiro era percebido a muitos metros de distância. O interior do lugar era deprimente,
com muitos aparelhos quebrados, vazamentos, bacias entupidas, detritos nas latrinas e
uma mistura de água, urina e barro que recobria todo o piso do banheiro. Apesar da total
falta de higiene, que não parecer ter mudado nos últimos trinta anos, não era exatamente
o motivo da minha total aversão ao banheiro da escola.

Eu não era o único. Na verdade, tornara-se um problema social naquele lugar. Maria
Dolores fez pipi pernas abaixo na sala de aula mesmo, após ter segurado o quanto pôde.
Os garotos despachavam no tronco das árvores e sempre havia alguém que fazia seu cocô
nas calças após um imenso suplício. O motivo de todo esse vexame, que para nós não era
nada natural, era o banheiro da escola, ou melhor, algo que havia lá.

Corria o boato de que, naquele banheiro, muitas crianças viam uma mulher vestida de
branco, como uma noiva, com as narinas todas entupidas de algodão; ela era pálida como
uma defunta, mas parecia estar viva e surpreendia, vez por outra, um estudante. Era
comum que crianças saíssem correndo desesperadas do banheiro, jurando tê-la visto.

Íamos ao banheiro aos pares, mas não era o suficiente para que superássemos o medo,
pois aquilo era alimentado o tempo todo pelos professores, funcionários e alunos mais
velhos. Se alguém estava se divertindo com aquela história, certamente não éramos nós.
Estranhamente, o fenômeno ocorria tanto no banheiro dos meninos quanto o das meninas,
já que, todos os dias, assistíamos a garotas que gritavam de desespero e, aos prantos,
saiam correndo daquele lugar.

Lembro-me que minha bexiga já estava preste a estourar e ainda faltava muito tempo para
o esperado “último sinal”. Maurício era um bom companheiro, já que sempre fazíamos
nossos exercícios e brincávamos juntos no recreio. Cochichei:
- Maurício, tô com vontade de mijar!

- Fala pra Dona Fátima pra ela deixar você ir ao banheiro.

Eu não sabia o que era pior: sentir aquela dor, ir ao banheiro, ou ter que pedir para a Dona
Fátima que era nossa professora. Ela era muito brava e sempre achava que a gente estava
era querendo passear no corredor. E ela nunca acreditava em mim. Não sei porquê, se eu
não me lembro de ter pedido para ir ao banheiro e ter ido fazer outra coisa. Acho que a
professora não ia com a minha cara. Mas o Maurício era o xodó da professora que sempre
atendia aos seus pedidos.

- Pede pra ela deixar a gente ir ao banheiro!

- Deixa eu terminar de copiar mais esse parágrafo.

- Cara, eu vou mijar nas calças!

- Dona Fátima, o Henrique tá precisando ir ao banheiro e está com vergonha de falar!

A professora olhou desconfiada para mim. Pensei que ela não fosse liberar, mas eu acho
que já estava quase chorando.

- Vá, mas não demore!

- Posso ir com ele, Dona Fátima? Ele tem medo de ir ao banheiro!

- Pode sim, mas não vão ficar de brincadeira por esse corredor.

Não gostei daquela última argumentação do Maurício: “Ele tem medo de ir ao


banheiro...” até parece que aquele cara não tinha medo de ir sozinho ao banheiro também.

Quando tomamos o corredor, a dor parece ter aliviado um pouco. Acho que era medo de
chega ao banheiro. Puxei uma conversa sobre figurinhas e, como sempre, Maurício veio
com aquela conversa fiada da figurinha rara que ele chegou a ter em suas mãos, mas que
a havia dado a outro guri. Eu ficava fulo da vida: porque não a dera para mim? Lembro
de ter reparado no teto da escola que parecia preste a cair. Não era só o banheiro que
precisava urgentemente ser refeito, toda a escola parecia estar a um minuto da ruína.
Imaginei que já era um prédio muito velho e que devia ter sido a escola de pessoas que já
haviam morrido e talvez voltassem para revê-la. Senti mais medo ainda. Imaginei um
mundo invisível paralelo ao meu, onde criaturas invisíveis transitavam por aqueles
corredores fantasmagóricos. E se a moça do banheiro quisesse arrastar a gente para o
outro lado da vida? Não podia nem pensar naquilo. Minhas pernas endureciam.

Naquele tempo, estava em cartaz o filmo “O exorcista” e minha prima, que já era de
maior, fora assistir e contara-me tudo: o demônio tinha o poder de tomar o corpo das
pessoas e transformá-las em monstros horrendos. A música “Don’t Cry for Me,
Argentina” era, para mim, uma trilha sonora de terror. Não sei ao certo porque associei
aquela música a Dama do Banheiro, mas a verdade é que, sempre que a ouvia, sentia um
arrepio ruim e vontade de esconder-me embaixo de alguma coisa.

Quem conheceu o “Patronato Bom Jesus” de Três Lagoas sabe que bem ao lado do
banheiro havia o “Cine Lapa”. Àquela hora da manhã não havia sessão, mas acho que
estavam dando alguma manutenção no som. O fato é que, quando íamos entrar no
banheiro, “Don’t Cry for Me, Argentina” começou a tocar em alto e bom som. Olhei para
o Maurício e o vi amarelo, calado e sério. Nada cooperava para nos fazer deixar o medo,
pois o encanamento velho do banheiro fazia um barulho pra lá de estranho e, naquele dia,
parecia que estava pior. Meu colega disse que não entraria de jeito nenhum. Implorei pela
sua ajuda e o pobre coitado entrou pra que eu não urinasse nas calças. Entramos naquele
lugar inóspito, há tempos a última lâmpada queimara e o dia nublado e frio mergulhava o
ambiente em quase trevas.

Dirigi-me ao urinol menor, destinado aos pequenos como eu, e desabotoando a braguilha
fui logo despachando. Um segundo a mais e seria um vexame. Foi quando a porta de um
dos boxes se abriu, num de repente, e algo vivo se movimentou. O susto cortou a urina e,
sem por as vergonhas para dentro, saímos em disparada. Apavorado, meu companheiro
escorregou naquele caldo e caiu sujando a roupa. Quando cheguei lá fora ouvi seu choro
aos gritos e senti que infelizmente teria que voltar. Foi quando vi, no meio daquela
escuridão, um moço muito grande e cabeludo ajudando-o a se levantar todo sujo e
chorando. Era um aluno do ginásio que ria da desgraça do pobre garoto. Tive ódio dele,
pois sabia que fizera tudo aquilo de propósito para nos assustar. Queria ter algum primo
grande naquela escola só para pedir para lhe dar um corretivo, mas eu só tinha duas
primas, que eram boas de briga também, apesar de não poderem com aquele grandalhão.

Depois disso o Maurício nunca mais foi o mesmo comigo. O incidente do banheiro o fez
se afastar de mim. Coitado! Não gostaria de estar no lugar dele: todo melecado com
aquela coisa que sempre me causou muito asco. E o medo da Dama do Banheiro
continuou por muito tempo ainda. Certa noite, tive um sonho medonho com ela: no fundo
daquele banheiro escuro, ela flutuava com sua camisola esvoaçante e cantava, com sua
boca pálida de defunta, “don’t cry for me, Argentina...” suave como um soprano. Ao ver-
me, sua cabeça deu uma volta inteira sobre o pescoço e a voz, outrora suave, tornou-se
rouca e grossa, dizendo:

- Venha comigo, meu anjo! Meu senhor quer ver você!

Tive vontade de correr, mas minhas pernas não me obedeciam. Acordei com meu próprio
grito e o meu pavor piorou ainda mais.

Na verdade, esse medo só desapareceu com o tempo, depois de ver que em toda escola
havia aquela estória boba para meter medo nos pequenos. Mas ainda muito tempo depois,
morando em uma casa cujo banheiro ficava do lado de fora, eu detestava acordar de noite
e ter que atravessar a escuridão para ir até lá. Medo de reencontrar, talvez, uma velha
conhecida.
O lobo do homem

É noite. Uma Ferrari vermelha, de brilho intenso, atravessa a badalada avenida. O farol
xenon e o dance-balada de última geração rompem a pomposa monotonia do lugar. Ao
chegar ao meetingpoint, a porta do automóvel se levanta, revelando a rica figura de um
jovem, cujo traje não custaria menos do que vinte vezes o salário de um trabalhador. Ele
entrega as chaves ao manobrista sem dar-lhe muita atenção. Naquele momento, o
abastado personagem atende a um telefonema do seu exclusivo celular: um verdadeiro
computador portátil. Antes que desse o terceiro passo, duas belas jovens, de lindos e
longos cabelos, vêm recepcioná-lo.

No interior do bar, todos o cumprimentam com reverência, demonstrando a popularidade


da ilustre personalidade. Sem deixar de falar ao telefone, ele tenta relacionar-se com
todos através de sorrisos e de gestos. Mas, num sobressalto, ele olha para o relógio
cravejado de diamantes, com uma bela esmeralda no centro: são cinco da manhã.

Eugênio acorda do sonho. Surpreendentemente são cinco da manhã no seu despertador de


dois reais. Ele vira de um lado e outro da cama, mas o ranger dos tijolos, que servem de
escora para o leito, não o deixam mais dormir. Levantou-se, tentou tomar banho, mas a
água havia acabado. Tentou tomar um café, mas uma voz gritou do cômodo ao lado da
cozinha:

- Você não tem mais café não! Eu seu café já acabou há muito tempo! Esse aí é meu!

- Pode ficar tranqüilo! Não vou mexer!

- Aliás, Eugênio, eu queria mesmo te falar... o pessoal da república tá grilado de ter que
bancar o seu aluguel. Sabe como é... todo mundo aqui é trabalhador... não dá pra ficar
quebrando o galho não. Se todo mundo fizer como você, estamos na rua. Então queria lhe
pedir para adiantar esse lado aí o quanto antes. Certo!

- Claro! Eu estou vendo esse lado!

- Mas veja direito!

- Já disse que estou vendo!

O rapaz saiu zangado naquela manhã. Todos na república sabiam que o empreiteiro
estava enrolando para pagar e os pequenos vales, que ele conseguira fazer, mal davam
para comprar alimentos. Ali só havia magnata: o Luís era funcionário do banco, o Thiago
trabalhava na contabilidade de uma empresa, o Sérgio era instrutor de auto-escola e o
Pedrinho, funcionário da prefeitura. Quer dizer, ele era o mais quebrado. Não que isso lhe
desse o direito de ser sustentado pelos demais, mas talvez pudessem ter um pouco de
calma e compreensão.

Eugênio havia chegado há pouco. Talvez três ou quatro meses. Vinha do interior para
tentar a vida, sem parentes, ou amigos na cidade.

Era difícil viver num lugar, sem nenhuma referência. Eugênio não tinha convívio social,
vivia para o trabalho e, do trabalho, ainda não tivera retorno.

Naquele dia, ele retornou para casa com dinheiro para o aluguel e algum a mais.
Ninguém suspeitava o quanto tivera de se humilhar para conseguir um pouco daquilo que
era seu. Pagou a dívida, tomou banho (a água havia voltado) e saiu para refrescar a
cabeça. Entrou num barzinho mal iluminado, de pouca categoria, e pediu uma cerveja.
Quando tomou o segundo gole, sentiu que outro homem sentou-se ao seu lado. Era um
rapaz da sua idade (mais ou menos vinte e três anos), bem vestido, cabelo e barba bem
feitos; e, lá fora, um belo carrão. Sentou-se e pediu também uma cerveja. Tomou o
primeiro gole e puxou assunto:

- O pastel daqui é bom mesmo?

- Não sei. Nunca comi.

- Você vem sempre aqui?

- Raramente.

- Lugarzinho maneiro!

- Me ajuda com uma porção de pastelzinho.

- Não, eu...

- Pode deixar que eu pago. Sabe... é que eu estou precisando conversar com alguém.

O operário achou estranho, mas estava mesmo com fome e o rapaz parecia muito
simpático.

O nome do novo companheiro era Ricardo. Contou que amava muito uma “pessoa”, mas
que haviam brigado por problemas financeiros e coisa e tal. Volta e meia, o nobre jovem
fazia referência a problemas com dinheiro. Eugênio achava aquilo muito engraçado, um
moço de aparência tão rica, que parecia ter mais problemas financeiros do que ele
próprio. Certamente o jovem não conhecia o que era aquela vida de retalhos.

Apesar dos queixumes, o rapaz continuava a pagar cervejas e pastéis. De repente, olhou o
fino relógio, pagou a conta, se despediu e foi embora. Mas, antes, fez o convite:
- Venha amanhã a essa hora, pra gente conversar mais.

Eugênio achou que o novo amigo era gay. Mas era o único companheiro que havia
encontrado até então.

No outro dia, à mesma hora, lá estava o operário a espera do rapaz. O carro imponente
encostou, o vidro fumê abaixou e, de lá de dentro, veio o convite:

- Vem comigo! Quero te apresentar umas garotas!

O jovem havia usado a palavra mágica: “garotas”. Sem resistência, Eugênio embarcou
naquela aventura.

Rodaram bem uns trinta minutos, até chegarem a uma chácara, onde um grupo de jovens
bem-nascidos celebravam a vida. Ao chegar, o operário sentiu-se deslocado e inseguro,
mas, logo, uma bela jovem tomou a iniciativa de se apresentar:

- Oi! Meu nome é Mariana.

- Prazer, Eugênio.

- Eu vi você chegando. É amigo do Maurício.

- Nos conhecemos ontem.

- O Maurício é um bom amigo. Fique perto dele e você estará em boa companhia.

Um dos anfitriões se aproxima oferecendo uma cerveja ao rapaz, mas a garota,


estranhamente, intervêm:

- Agora, não. Eu quero apresentar-lhe o resto da casa.

- Hã... claro!

Era uma casa de campo de alto padrão. Todas as peças tinha um quê de megalomania:
sala de televisão com uma imensa teve de alta definição, poltronas de couro, revestimento
da sala todo em madeira – do piso até as paredes. Mas o que mais impressionou o
operário foi um laboratório no subsolo da mansão: balcões de granito cobertos por
recipientes de vidro e objetos de aço inoxidável por toda a parte; microscópios e
aparelhos de todos os tipos também faziam parte do cenário; o cheiro, porém, era
desagradável, enjoativo.

- Esse é o meu lugar predileto. Disse Mariana a Eugênio.

- Você trabalha com isso?


- Eu sou bioquímica e é aqui que realizo minha pesquisa.

O rapaz ficou um tanto constrangido de estar ali com uma garota tão estudada, mas
parecia que ela tinha algum interesse nele. Estranho.

- Aliás, você não quer colaborar com a minha pesquisa?

- Claro, mas eu não tenho estudo. Não entendo dessas coisas.

- Não. Basta você doar o material.

- Como assim.

- Vou precisar de um pouquinho do seu sangue. Mas se você tiver medo de tirar sangue...
ah... tudo bem.

- Que isso! Já fiz muito exame. Pra mim é coisa normal.

- Ótimo! Você tomou alguma bebida alcoólica hoje, ou algum medicamento?

- Ainda não.

- Então é só colocar o seu bracinho aqui e o resto é comigo.

Eugênio morria de medo de tirar sangue, mas estava buscando coragem para
impressionar a moça.

Ela fez tudo com muito profissionalismo e, ao terminar, parecia mais interessada no
material do que no novo amigo. Saiu com aquele tubo para um canto do laboratório, de
onde fez uma ligação pelo celular. Eugênio não conseguiu entender o que dizia, mas
percebeu que ela estava um tanto impaciente pelos gestos que fazia.

O operário tentou ainda engrenar alguma conversa a respeito de exames de sangue e


laboratórios, mas a jovem parecia ansiosa e apenas ouvia o seu discurso desconcertante e
inútil. Foi quando Maurício chegou para por um fim naquele encontro.

- Eugênio, venha! Vamos comer uma costela deliciosa que acabou de ser tirado do fogo.
Já bebeu alguma coisa?

- Não.

- Mas que pecado. Venha, vamos resolver isso!

- Você não vem, Mariana. Disse Eugênio.

- Podem ir. Eu subo depois.


Os dois rapazes subiram. O operário estava decepcionado pelo repentino desinteresse de
Mariana. Talvez fosse pela sua ignorância e condição social muito inferior. Ainda mais
uma moça tão rica e formada em bioquímica certamente que não se interessaria por ele.

Mas Maurício e os demais convivas fizeram de tudo para que o jovem continuasse
animado dançando, bebendo e comendo do bom e do melhor. Eugênio só não entendia o
estranho sumiço de Mariana da festa. Maurício estava muito feliz, nem parecia o jovem
cheio de dívidas que tanto se lamentara com o operário. De vez em quando seu celular
tocava e imediatamente interrompia o que estivesse fazendo para atendê-lo em particular.
Numa dessas vezes, o jovem voltou eufórico, dizendo que seus problemas estavam
resolvidos. Aí a festa pegou fogo. Parecia que tinham ganhado no bolão da loteria. Mas
Eugênio parecia se sentir mal. Foi ficando muito quieto e sonolento até cair ali, no meio
da sala de estar.

Ao acordar, sentindo-se ainda muito mal, estava deitado em um dos quartos da casa.
Usava uma camisola de hospital, uma sonda no ureter, sob seu dorso uma bolsa de gelo e,
atado ao seu braço, uma mangueira ligada ao balão de soro. Sentiu sobre seu peito uma
folha de papel, onde se lia:

“Amigo Eugênio, espero que você possa se recuperar desse forte golpe que sofreu na
vida. Infelizmente não poderei ajudá-lo, pois há essa hora já estarei bastante longe deste
lugar. A verdade é que eu estava à beira da ruína, então tive que me envolver com o
tráfico internacional para poder salvar a vida de um milionário e recuperar minha saúde
financeira.

Quando o conheci, simpatizei-me logo de cara contigo, mas, infelizmente, minha


amizade não foi sincera, pois vi em você a chance de resolver meus problemas.

Você conheceu Mariana que é a pessoa que eu tanto amo. Ela lhe pede desculpas por não
ter tido tempo de conhecê-lo melhor, pois precisava realizar o exame de sangue que
atestaria seu estado de saúde para o nosso cliente.

Agora, graças a você, estamos muito bem e poderemos, finalmente, nos casar.
Infelizmente, para isso, tivemos de feri-lo, mas você resistiu bravamente a todo o
procedimento. Se estiver lendo esta carta, significa que sua resistência e vontade de viver
o levaram a mais longe ainda.

Ao seu lado há um telefone. Pegue-o e ligue para o telefone que está anotado junto dele.
Trata-se de um hospital, pois você precisa urgentemente de um, já que você não tem mais
nenhum dos dois rins que foram retirados pela minha equipe para serem vendidos ao
preço de um milhão de reais. Diga ao médico que você não tem mais os rins e que precisa
fazer hemodiálise. Só assim você poderá ter uma sobrevida melhor.

Obrigado por tudo. Desculpe-me pela crueldade, mas foi preciso. Na selva de pedras
também temos que matar para sobreviver. ‘O homem é lobo do homem’.
Assinado: Maurício”.

Eugênio não podia acreditar. Sentiu ódio, sentiu desespero, sentiu impotência. Por fim,
viu que só lhe restava seguir os conselhos de seu algoz e ligou para o hospital pedindo
socorro.

“Salem, o grande”

Posso dizer que a maior influência intelectual que tive, até hoje, foi o velho Salem Bint
Mustafa. Nascera na Índia durante a Segunda Guerra Mundial; seu pai fora companheiro
de Gandhi e participara da liga muçulmana que trabalhou pela formação do estado
paquistanês. Com a independência do Paquistão, sua família fora obrigada a se transferir
para aquele território, fugindo das perseguições políticas que os aguardavam na Índia.
Percorrera o Irã, Afeganistão e Egito, acompanhando os pais num exílio de dez anos. Aos
vinte, seguiu sozinho para a Turquia, de lá para a Espanha, Portugal e Inglaterra. Em
Bristol, pegou um navio clandestinamente para a América, tendo sido pego e lançado ao
mar. Depois de ficar a deriva por uma noite inteira, chegou ao litoral capixaba em estado
gravíssimo.

Era uma figura muito magra e escura. Mantinha um bigode exoticamente arrebitado nas
pontas; sua barba era vasta e elegantemente aparada. Salem não tinha muitas posses, mas
sua edícula de três cômodos era bastante organizada. Sua pequena sala comportava um
velho tapete persa, sobre o qual quatro cadeiras de braço, com o verniz já desbotado,
descansavam voltadas para uma mesa de centro de muita nobreza; sobre ela, um vaso
canopo que, segundo dizia, abrigara as vísceras do faraó Zhoser; objeto que fora
comprado de um traficante no Cairo. Na parede ao fundo, um retrato tão antigo quanto a
exótica moldura, exibia uma figura de longa barba e turbante na cabeça. Era seu pai:
Ibrahim Ali bint Mustafa, um verdadeiro herói. Sua pequena biblioteca era uma
curiosidade à parte, com livros que revelavam bom gosto e sofisticação. Homero, Dante,
Dumas, Cervantes, Eça, Machado, entre outros. Alguns títulos em Inglês, Francês,
Espanhol, mas, estranhamente, nenhum escrito em Árabe. O cenário ainda comportava
uma escrivanhia, acompanhada de uma cadeira vulgar, e encimada por um espelho que,
apesar da moldura muito nobre, já perdia sua capacidade de refletir.

Não tinha mulher nem filhos, mas gostava de contar uma linda história de amor que
vivera com uma jovem na Turquia, de onde teve de sair às pressas, deixando para trás o
grande amor. Sua fonte de renda, à qual se referia invariavelmente como “minhas
modestas posses”, também era um mistério.

Eu o conheci na escola, quando o professor de História o chamou para relatar os fatos


ocorridos na Índia durante a Segunda Guerra. Ele nos impressionou por apresentar
aspectos da realidade que jamais havíamos analisado. Lembro-me que ele questionara o
motivo que levava os livros, a televisão e o cinema a enfatizarem tanto a história da
formação do estado de Israel e desprezar completamente a criação do estado Paquistanês,
por exemplo. Por que tantos filmes e novelas abordando a migração de Italianos para o
Brasil e nenhum dedicado à migração Árabe, apesar de boa parte da população ser
descendente de libaneses ou sírios? Ou, por que somente as disputas políticas de árabes
são associadas a sua religião?

A inteligência, visão e eloqüência do senhor Salem conquistaram toda a minha geração.


Ele passou a ser uma presença necessária em eventos culturais, intelectuais e políticos da
cidade. Nessas ocasiões, eu sempre me aproximava dele e tentava puxar assunto,
exibindo, quem sabe, um pouco do meu conhecimento. Um dia, Dois amigos e eu
resolvemos fazer-lhe uma visita. Acredite: o famoso senhor Salem ficou muito honrado
com a nossa insignificante presença. Serviu-nos café persa e contou-nos mil histórias de
suas andanças pelo mudo.

- O senhor deveria escrever um livro!

- Eu não poderia.

- Como não? O senhor é um homem tão culto!

- Eu não tenho o talento de um José de Alencar, ou de um Machado de Assis... não é para


mim.

É verdade que se equiparar a tais nomes da literatura não é para a maioria das pessoas,
mas acho que o velho Árabe gostava mesmo era de contar suas história e discutir seus
conceitos assim, frente a frente com seus interlocures. Nada de livros que ninguém sabe
se alguém os lê. Seu público era cativo. Nós que freqüentávamos sua casa tínhamos o
maior orgulho de fazê-lo.

Certo dia, eu recebi um presente inesperado de suas mãos. Ele retirou um título da sua
estante e entregou-me. Era “Dom Quixote de La Mancha” e disse-me:

- Leve! É para você. Leia e aprenda com ele. Dom Quixote é um homem que conseguiu
enxergar a verdade.

Como um compromisso moral, eu iniciei a leitura daquele livro. Contava a história de um


homem aparentemente enlouquecido pelo obsessivo hábito da leitura, que resolve tornar-
se cavaleiro, ainda que isso fosse totalmente anacrônico. As aventuras daquele
anticavaleiro (velho, fraco e fantasioso) faziam-me rir de tão patéticas. Privado, porém,
de viver ao seu jeito (maluco), Dom Quixote morre de infelicidade. Demorei um tempo
para ler toda aquela novela e, quando terminei, não tive oportunidade de comentar a
leitura com o nosso guru, que morreu vítima de um infarto fulminante.

Ao morre, uma nova realidade veio à tona: seu verdadeiro nome era Sebastião Lima
Salgado, um professor aposentado por problemas de saúde; nascera em Murutinga do Sul
(no interior de São Paulo), onde trabalhara até os quarenta anos. Devido a sérios
problemas cardíacos, transferira-se para a capital, onde se dedicava ao tratamento de sua
saúde. Mas as dimensões de São Paulo, a poluição e a insegurança fizeram com que ele
se mudasse para nossa cidade (bem menor, tranqüila e de ar puro).

Houve quem o xingasse, quem jogasse no lixo tudo de bom que ele nos ensinara, só por
causa daquela falsa identidade. A maioria de nós, andava cabisbaixa, querendo encontrar
razão para a mentira e fugindo das críticas ao velho mestre.

Um dia, fiz questão de reunir amigos em comum para apresentar-lhes minha justificativa.
Contei-lhes do presente que Salem fizera-me.

- Dom Quixote criou sua própria identidade. Não esperou que o mundo lhe dissesse o que
ele deveria ser. Construiu sua personalidade, sendo fiel a sua alma. Nosso querido amigo
Salém fez o mesmo e, com isso, jamais prejudicou alguém. Eu nunca conheci Sebastião
Lima Salgado, mas fui amigo de Salem Bint Mustafa, um paquistanês culto e inteligente;
um homem de visão que ensinou e influenciou toda nossa geração. Deu um novo brilho
para nossas vidas opacas; fez-nos sentir maior do éramos até então; honrou-nos com sua
amizade nobre e partiu, deixando-nos sedentos da sua grandeza.

Devo confessar que tal discurso fora proferido entre lágrimas de emoção, mas, ao
terminar, eu não era o único que chorava, pois aquilo era o que todos os presentes
sentiam vontade de dizer. Os aplausos tiraram-nos desse transe de emoção e nunca mais
permitimos que algum leviano maculasse a memória do inesquecível Salem.

TERROR DE BANHEIRO

Lembro-me que, aos sete anos, eu detestava ter que ir ao banheiro da escola. O
mau cheiro era percebido a muitos metros de distância. O interior do lugar era
deprimente, com muitos aparelhos quebrados, vazamentos, bacias entupidas, detritos nas
latrinas e uma mistura de água, urina e barro que recobria todo o piso do banheiro. Apesar
da total falta de higiene, que não parecer ter mudado nos últimos trinta anos, não era
exatamente o motivo da minha total aversão ao banheiro da escola.

Eu não era o único. Na verdade, tornara-se um problema social naquele lugar.


Maria Dolores fez pipi pernas abaixo na sala de aula mesmo, após ter segurado o quanto
pôde. Os garotos despachavam no tronco das árvores e sempre havia alguém que fazia
seu cocô nas calças após um imenso suplício. O motivo de todo esse vexame, que para
nós não era nada natural, era o banheiro da escola, ou melhor, algo que havia lá.

Corria o boato de que, naquele banheiro, muitas crianças viam uma mulher
vestida de branco, como uma noiva, com as narinas todas entupidas de algodão; ela era
pálida como uma defunta, mas parecia estar viva e surpreendia, vez por outra, um
estudante. Era comum que crianças saíssem correndo desesperadas do banheiro, jurando
tê-la visto.

Íamos ao banheiro aos pares, mas não era o suficiente para que superássemos o medo,
pois aquilo era alimentado o tempo todo pelos professores, funcionários e alunos mais
velhos. Se alguém estava se divertindo com aquela história, certamente não éramos nós.
Estranhamente, o fenômeno ocorria tanto no banheiro dos meninos quanto o das meninas,
já que, todos os dias, assistíamos a garotas que gritavam de desespero e, aos prantos,
saiam correndo daquele lugar.

Lembro-me que minha bexiga já estava preste a estourar e ainda faltava muito tempo para
o esperado “último sinal”. Maurício era um bom companheiro, já que sempre fazíamos
nossos exercícios e brincávamos juntos no recreio. Cochichei:

- Maurício, tô com vontade de mijar!

- Fala pra Dona Fátima pra ela deixar você ir ao banheiro.

Eu não sabia o que era pior: sentir aquela dor, ir ao banheiro, ou ter que pedir para a Dona
Fátima que era nossa professora. Ela era muito brava e sempre achava que a gente estava
era querendo passear no corredor. E ela nunca acreditava em mim. Não sei porquê, se eu
não me lembro de ter pedido para ir ao banheiro e ter ido fazer outra coisa. Acho que a
professora não ia com a minha cara. Mas o Maurício era o xodó da professora que sempre
atendia aos seus pedidos.

- Pede pra ela deixar a gente ir ao banheiro!

- Deixa eu terminar de copiar mais esse parágrafo.

- Cara, eu vou mijar nas calças!

- Dona Fátima, o Henrique tá precisando ir ao banheiro e está com vergonha de falar!

A professora olhou desconfiada para mim. Pensei que ela não fosse liberar, mas eu acho
que já estava quase chorando.

- Vá, mas não demore!

- Posso ir com ele, Dona Fátima? Ele tem medo de ir ao banheiro!

- Pode sim, mas não vão ficar de brincadeira por esse corredor.

Não gostei daquela última argumentação do Maurício: “Ele tem medo de ir ao


banheiro...” até parece que aquele cara não tinha medo de ir sozinho ao banheiro também.
Quando tomamos o corredor, a dor parece ter aliviado um pouco. Acho que era medo de
chega ao banheiro. Puxei uma conversa sobre figurinhas e, como sempre, Maurício veio
com aquela conversa fiada da figurinha rara que ele chegou a ter em suas mãos, mas que
a havia dado a outro guri. Eu ficava fulo da vida: porque não a dera para mim? Lembro
de ter reparado no teto da escola que parecia preste a cair. Não era só o banheiro que
precisava urgentemente ser refeito, toda a escola parecia estar a um minuto da ruína.
Imaginei que já era um prédio muito velho e que devia ter sido a escola de pessoas que já
haviam morrido e talvez voltassem para revê-la. Senti mais medo ainda. Imaginei um
mundo invisível paralelo ao meu, onde criaturas invisíveis transitavam por aqueles
corredores fantasmagóricos. E se a moça do banheiro quisesse arrastar a gente para o
outro lado da vida? Não podia nem pensar naquilo. Minhas pernas endureciam.

Naquele tempo, estava em cartaz o filmo “O exorcista” e minha prima, que já era de
maior, fora assistir e contara-me tudo: o demônio tinha o poder de tomar o corpo das
pessoas e transformá-las em monstros horrendos. A música “Don’t Cry for Me,
Argentina” era, para mim, uma trilha sonora de terror. Não sei ao certo porque associei
aquela música a Dama do Banheiro, mas a verdade é que, sempre que a ouvia, sentia um
arrepio ruim e vontade de esconder-me embaixo de alguma coisa.

Quem conheceu o “Patronato Bom Jesus” de Três Lagoas sabe que bem ao lado do
banheiro havia o “Cine Lapa”. Àquela hora da manhã não havia sessão, mas acho que
estavam dando alguma manutenção no som. O fato é que, quando íamos entrar no
banheiro, “Don’t Cry for Me, Argentina” começou a tocar em alto e bom som. Olhei para
o Maurício e o vi amarelo, calado e sério. Nada cooperava para nos fazer deixar o medo,
pois o encanamento velho do banheiro fazia um barulho pra lá de estranho e, naquele dia,
parecia que estava pior. Meu colega disse que não entraria de jeito nenhum. Implorei pela
sua ajuda e o pobre coitado entrou pra que eu não urinasse nas calças. Entramos naquele
lugar inóspito, há tempos a última lâmpada queimara e o dia nublado e frio mergulhava o
ambiente em quase trevas.

Dirigi-me ao urinol menor, destinado aos pequenos como eu, e desabotoando a braguilha
fui logo despachando. Um segundo a mais e seria um vexame. Foi quando a porta de um
dos boxes se abriu, num de repente, e algo vivo se movimentou. O susto cortou a urina e,
sem por as vergonhas para dentro, saímos em disparada. Apavorado, meu companheiro
escorregou naquele caldo e caiu sujando a roupa. Quando cheguei lá fora ouvi seu choro
aos gritos e senti que infelizmente teria que voltar. Foi quando vi, no meio daquela
escuridão, um moço muito grande e cabeludo ajudando-o a se levantar todo sujo e
chorando. Era um aluno do ginásio que ria da desgraça do pobre garoto. Tive ódio dele,
pois sabia que fizera tudo aquilo de propósito para nos assustar. Queria ter algum primo
grande naquela escola só para pedir para lhe dar um corretivo, mas eu só tinha duas
primas, que eram boas de briga também, apesar de não poderem com aquele grandalhão.

Depois disso o Maurício nunca mais foi o mesmo comigo. O incidente do banheiro o fez
se afastar de mim. Coitado! Não gostaria de estar no lugar dele: todo melecado com
aquela coisa que sempre me causou muito asco. E o medo da Dama do Banheiro
continuou por muito tempo ainda. Certa noite, tive um sonho medonho com ela: no fundo
daquele banheiro escuro, ela flutuava com sua camisola esvoaçante e cantava, com sua
boca pálida de defunta, “don’t cry for me, Argentina...” suave como um soprano. Ao ver-
me, sua cabeça deu uma volta inteira sobre o pescoço e a voz, outrora suave, tornou-se
rouca e grossa, dizendo:

- Venha comigo, meu anjo! Meu senhor quer ver você!

Tive vontade de correr, mas minhas pernas não me obedeciam. Acordei com meu próprio
grito e o meu pavor piorou ainda mais.

Na verdade, esse medo só desapareceu com o tempo, depois de ver que em toda escola
havia aquela estória boba para meter medo nos pequenos. Mas ainda muito tempo depois,
morando em uma casa cujo banheiro ficava do lado de fora, eu detestava acordar de noite
e ter que atravessar a escuridão para ir até lá. Medo de reencontrar, talvez, uma velha
conhecida.

A Bela da Vereda

Uma lua imensa clareava a “Praia da Vereda” em Santo Antônio de Leverger. Estava na
época do “Festival” na cidade, de forma que muita gente acampava pelas praias, talvez
para não perder um só segundo do evento.

As barracas de camping, o boteco de palha e o palco dos shows davam vida àquele
imenso ermo de areia clara. Naquele instante, o rio era como uma larga estrada negra
divisando o areal do alto barranco na margem oposta.

O silêncio da madrugada revelava o murmúrio das águas, bem como os sons misteriosos
do cerrado. A solitária canoa, abandonada na praia à beira do Rio Cuiabá, compunha um
cenário tão bucólico quanto fantasmagórico.

Marcos saiu da barraca insone e resolveu vagar pela imensidão arenosa, tentando sentir
toda a delicadeza da areia na sola de seus pés. O rapaz havia sido guiado por seus
instintos até aquele lugar. Agora já não sabia o que fazer dali em diante.

Tudo começou na cidade de Cuiabá. Era noite de sexta-feira e o forte calor noturno
convidava para o Happy Hour. Em noites como essa, os hormônios agitavam-se e
compeliam homens e mulheres a se buscarem pelas ruas, trajando roupas leves e sedentos
por um drink gelado. Marcos era um daqueles que saía a caça. Era um moreno forte, um
metro e oitenta e cinco de altura: uma figura elegante, destacando-se na multidão. Ficara
órfão de pai ainda muito criança, o que se somou à pobre condição financeira da família,
dando àquele rapaz o traquejo dos malandros. Não possuía carro, mas, naquela noite,
desfilava com o Gol 95 emprestado de um primo, que se via obrigado a fazê-lo mediante
os favores que lhe devia. Tais concessões são dadas, no entanto, após muita insistência e
de um sermão constrangedor:

- Amanhã tô indo acampar em Santo Antônio; a barraca e as tralhas já estão no porta-


malas; esteja aqui, no mais tardar, às nove da manhã...

- Ê, ah... agora quando?! Já pisei na bola com você?

- Deixa de “moagem” e vê se não apronta. Se estragar alguma coisa, arrume e nem me


fale nada. Se bater o carro, eu te quebro a cara.

- Hummm...!

Chave no contato, pancadão vibrando na lataria e lá se vai o rapaz queimando pneu pelas
ruas. Após algumas tentativas frustradas de levar uma garota à balada, acabou seguindo
em companhia de um amigo que sabia onde encontrar uma ótima, com cerveja na faixa e
tudo.

A festa em questão estava pra lá de “nervosa”, mas poucas mulheres bonitas e quase
todas muito bem acompanhadas. Apesar da escassez, logo o amigo encontrou uma antiga
paquera e escafederam na balada. O rapaz ficou ali de bobeira e resolveu sair para tomar
um ar fresco. Logo que deixou a confusão, ele pôde ouvir, logo atrás de si, um casal que
discutia em voz alta.

- Deixa de bobagem! Vamos voltar lá e nos divertir!

- Você não precisa de mim para se divertir. Divirta-se com sua amiguinha!

- Qual é?! Você quer estragar a minha noite.

- De maneira alguma. Volte lá e divirta-se! Já disse.

- Diga isso novamente.

- Vai lá pra sua festinha.

- Vou mesmo. Foda-se!

- Já vai tarde.

Marcos dissimulava estar ali distraído, mas, ao ouvir os soluços da mulher que chorava,
resolveu se voltar para ver. A garota era muito linda, muito clara, cabelos oxigenados,
metida num vestidinho negro bem curto; suas longas e torneadas pernas emolduradas por
um salto 15 provocante. O rosto revelava pouca idade, mas o batom vermelho, a
maquiagem carregada e os longos brincos dourados denunciavam a pouca inocência
daquele anjo.

O rapaz olhou bem ao redor, certificando-se da segurança na aproximação; parou na sua


frente e ofereceu-lhe um cigarro. A moça aceitou ainda chorando e tragou três vezes sem
nada dizer. Marcos acendeu um também para acompanhá-la.

- Sente-se melhor?

Ela balançou a cabeça afirmativamente.

- Tudo bem. Valeu!

- Não vá. Fique aqui comigo!

- Acho que seu namorado não vai gostar.

- Ele não é meu namorado. Sabe... você é muito bonito? Qual o seu nome?

- Marcos!

- Meu nome e Elisa. Sabe, Marcos, hoje eu saí só para me estressar. Acho que eu
precisava de uma bebida forte.

- Bom! Posso te convidar para um drink em outro lugar?

- Sim. Mas você está sozinho?

- Se você me fizer companhia, eu não estarei mais só.

A garota sorriu pela primeira vez.

- Meu carro está aqui perto. Que tal me acompanhar?

Ela sorriu novamente e foi com ele.

Era meia-noite e os dois conversavam a beber um whisky ordinário em plena Avenida do


CPA. O rapaz já se preocupava com a conta, pois a moça embriagada perdera a noção de
que tudo aquilo era pago. Finalmente ela disparou:

- Queria fazer uma coisa totalmente louca neste momento.

Ele pensou rapidamente e respondeu:

- Que tal irmos para um lugar mais reservado, onde a gente possa conversar melhor?
- Você quer me levar para o motel, não é? Olha aqui, bonitão, a gente mal se conhece, a
gente nem ficou ainda e você já tá querendo me levar para o motel?

Ela falava muito alto e Marcos ficou incomodado com aquilo.

- Imagina. Talvez seja melhor irmos cada um para sua casa, então.

- Não quero ir para casa. Quero fugir desta cidade.

- Que tal irmos para Santo Antônio, acampar na Praia da Vereda?

Ele soltou um riso histérico de bêbada.

- Cê tá doido?

A mulher aproximou seu rosto ao do rapaz, mirando bem na sua boca.

- Beija-me! Depois decido se vou, ou não, com você.

Aquele primeiro contato entre os dois jovens foi como uma grande explosão. Marcos
sentiu que estava a um passo de possuir aquela mulher e insistiu na aventura. Ela também
o queria muito e aceitou acompanhá-lo. Meia hora depois, estavam naquela que era uma
das mais belas praias do rio Cuiabá. Uma brisa de várzea simulava um quase frio. O
rapaz rapidamente instalou o pequeno abrigo e ela o ocupou como o fazem os
passarinhos. Entregaram-se às loucuras da paixão, porém ela o deteve para revelar algo
muito grave.

- Sabe... eu tô te curtindo muito, mas é preciso que você saiba de uma coisa...

Ele balançou a cabeça, como a pedir que prosseguisse.

- Eu sou casada. Aquele cara que discutia comigo é meu marido.

Apesar de um tanto decepcionado, disfarçou o constrangimento.

- E o que tem isso?

- Tem que meu marido é o “Neno Caveira”.

O famigerado Neno Caveira era um criminoso violento e cruel que dominava as noites
nas periferias de Cuiabá. Sua marca registrada era a caveira que trazia tatuada no
musculoso bíceps.

O rapaz tentou fazer-se de corajoso, dizendo que não havia nenhum problema, mas,
depois da revelação, ele se assustava só de ouvir o barulho de um motor. É fácil concluir
que o sexo não rolou.
Completamente bêbada, Eliza deitou-se de bruços no colchonete, procurando posição
para dormir.

- Você está nervoso, anjinho. Relaxe e durma um pouco. Depois a gente “garimpa” um
pouco mais.

Agora o encontramos andando pela areia da praia. Não conquistou o que queria e ainda
conseguiu um baita de um problemão com um dos maiores criminosos de sua cidade. O
que fazer?

Marcos voltou à barraca onde a bela repousava seminua toda sua brancura. O bumbum
redondo arrebitado para o espaço, com uma das torneadas pernas esticadas e a outra
flexionada formando um “P”, como a dizer “perigo”. Ele tinha suas razões para tanto
temor, já que aos dezessete anos fora baleado por um marido ciumento. Os ferimentos
trouxeram muito sofrimento ao rapaz e as lembranças do fato ainda o incomodavam.

Ele fechou a barraca e foi até o carro. Respirou fundo, deu partida e saiu. Pelo retrovisor
ainda contemplou a barraca do primo, onde dormia sua paixão proibida. Esse primo iria
matá-lo, pois ele não via outra saída, a não ser ir para Cáceres e buscar a ajuda dos
amigos. Depois ligaria para o parente, combinando a entrega do automóvel. Quanto à
barraca... era comprar outra.

No arco da cidade, ele sentiu que deveria voltar e levá-la consigo, porém cometer o um
segundo erro seria burrice. Não lhe restava outra opção, além de dizer “adeus para
sempre” à bela da vereda.

(***)

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