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O perecível e o imperecível: Reflexões guarani mbya sobre a existência
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Ebook431 pages5 hours

O perecível e o imperecível: Reflexões guarani mbya sobre a existência

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Este livro é um refinado estudo da cosmologia guarani, produto de uma longa e densa colaboração entre o autor e os Guarani Mbya, em aldeias próximas e distantes da metrópole de São Paulo e de outras áreas do Sul e Sudeste do Brasil. Sua contribuição está na escuta atenta das reflexões e debates de jovens e velhos, em torno das maneiras de como foi e de como ainda é possível conviver com os estragos causados pelos modos de vida dos não índios. Particularmente interessantes são os ensinamentos sobre as cidades, seus objetos e tecnologias, pois, para os Guarani, os deuses moram em cidades. Nas plataformas celestes, as moradas das divindades são cidades, onde tudo é belo e reluzente, ou seja, onde tudo é imperecível: a energia elétrica não apaga, os carros e as motos não quebram, as coisas não se transformam em lixo. Nesta terra, os Guarani raramente têm acesso a essas mercadorias, que foram feitas para os brancos, "para enganá-los", como nos
explicam os interlocutores de Daniel Calazans Pierri. Aqui, tudo estraga: as coisas são apenas imagens perecíveis dos modelos originários controlados pelas divindades. Os depoimentos dos Guarani fartamente apresentados no livro, e traduzidos com esmero, revelam uma poderosa crítica ao fetichismo das mercadorias.
— Dominique Tilkin Gallois, na orelha
LanguagePortuguês
Release dateMay 15, 2020
ISBN9786587235073
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    O perecível e o imperecível - Daniel Calazans Pierri

    tênues.

    1

    Kuaray,

    Jaxy e

    Tupãra’y:

    Sol,

    Lua e

    Jesus

    Do objeto-sim resplandecente descerá o índio

    Caetano Veloso

    no livro A religião dos Tupinambá, Alfred Métraux demonstrava inquietação diante da profusão de heróis míticos denominados com o mesmo epíteto Maire (Maire-Ata, Maire-Monan, Maire-Pochy) e ligados por uma cadeia de relações de parentesco com ares de um romance de Gabriel García Márquez. O antropólogo suíço atribui a suposta confusão ao coletor das narrativas, o frade franciscano André Thévet, que esteve em contato com os Tupinambá em meados do século xvi, durante a tentativa fracassada de colonização francesa levada a cabo por Villegagnon. [15] Para Métraux, a aparente multiplicidade, na cosmogonia de Thévet, dos heróis civilizadores origina[ria]-se do fato de [que] esse viajante ter[ia] fundido, em um só, diferentes mitos ou diferentes versões do mesmo mito, considerando como figuras distintas o mesmo deus cujo nome vem seguido de epítetos vários, ou muda em função das ações a ele atribuídas (Métraux, 1979, p. 7).

    Lévi-Strauss (1993 [1991], p. 49) intervém em defesa do franciscano com uma afirmação que soa a princípio um tanto dogmática de que o frade não poderia ter se confundido, pois todo mito possui uma estrutura que dirige a atenção e ecoa na memória do ouvinte. Como sempre, porém, isso não é tudo, a explicação não para por aí, culminando na chamada teoria do dualismo em desequilíbrio perpétuo, que seria característica da metafísica ameríndia, em oposição à ocidental. O exemplo dos pares de heróis tupinambá é notável no sentido de demonstrar que a explicação deve residir nessa característica do pensamento ameríndio em operar por bipartições sucessivas, no seio das quais um dos polos da oposição guarda sempre em si o germe de uma nova bipartição. Nesse contexto, a suposta confusão dos personagens não teria qualquer importância, uma vez que o movimento de desdobramento das oposições é que seria constitutivo.

    Essas observações, que devem soar inicialmente abstratas, podem ser aprofundadas à luz dos dados provenientes dos Guarani Mbya de que trato aqui. Cadogan (1997 [1959], pp. 28-9) aponta incômodo semelhante ao de Métraux. Ele se questiona sobre as diferentes designações presentes nos cantos cosmogônicos guarani mbya para a divindade Nhanderu Papa Tenonde, Nosso Pai Último-Primeiro, aquele que criou o cosmos. E diz que, nas primeiras versões que havia coletado, [16]

    aparece Nhanderu Papa Tenonde como criador de Nhamandu Ru Ete, mas, na verdade, segundo se depreende dos mitos, hinos e orações transcritos nessas páginas, é Nhamandu Ru Ete o Ser Supremo de sua teogonia, e ambos os títulos se empregam indistintamente para designar o Criador. (1997 [1959], p. 29). [17]

    Embora Cadogan não pareça interessado em refletir sobre a lógica por detrás das variações entre as distintas versões desses cantos, mas em construir uma versão canônica, ele nos dá uma pista para entender por que em uma das versões que coletou dizia-se que Nhanderu Papa Tenonde [18] criou Nhamandu Ru Ete, e na outra os dois epítetos designariam um mesmo personagem. Segundo meus interlocutores, Nhamandu é o termo oriundo da linguagem ritual, [19] da fala dos deuses para designar o astro solar. De acordo com as narrativas apresentadas por Cadogan (1997 [1959], p. 27), antes da criação da primeira terra, quando reinava no universo a noite originária (pytũ ymã), a única luz que existia era o reflexo do coração de Nhanderu Tenonde, e é ela que dá origem ao primeiro Sol, Nhamandu. É evidente, portanto, que, mesmo se vistos como um personagem único, essa unidade encerra em si mesmo uma dualidade, formulação que evoca diretamente a teoria lévi-straussiana do dualismo em desequilíbrio perpétuo, acima mencionada.

    A discussão também se estende às demais divindades, especialmente no que concerne à designação do personagem Kuaray, [20] por ser muitas vezes chamado Nhamandu, ou Nhamandu’i, embora seja inequivocamente tido como filho do criador. É ele que figura na narrativa que analisarei adiante. Da mesma forma, características que certas vezes parecem pertencer a Tupã são por outros tidas como pertencentes a Jakaira: as mesmas ações atribuídas a um são por alguns atribuídas ao outro, gerando debates intermináveis por parte dos guaraniólogos e também dos próprios índios. Pissolato (2006, p. 252), comentando as diferenças entre as versões de seus interlocutores a respeito do tema, chega inclusive a atribuir aos Guarani um desinteresse no conhecimento dedicado às divindades, solução que me parece apressada.

    Demonstrarei adiante que as breves descrições das plataformas celestes que pude obter em campo apontam para um cosmos inscrito no regime da multiplicidade, recortado por uma miríade de populações celestes, cada qual chefiada por uma divindade principal e habitada por uma série de outros espíritos auxiliares. Esse cenário poderia ser suficiente para que se percebesse que tal debate se faz infrutífero devido à infinidade de versões e à complexidade das reflexões cosmológicas sobre os mundos celestes. Entretanto, da mesma forma que Lévi-Strauss considerou espantosa a permanência flagrante dos mitos tupinambá em relação àqueles coletados entre os Guarani modernos por etnólogos clássicos como Cadogan e Nimuendaju, parecerá ainda mais surpreendente a recorrência, no seio da própria mitologia guarani, de transformações descritas pelo antropólogo francês para analisar a passagem da narrativa tupi-guarani sobre os gêmeos para narrativas provenientes de outros grupos americanos, como os Canela, por exemplo, tal como abordarei ao final deste capítulo.

    Analisarei, aqui, o modo particular como uma narrativa de caráter aparentemente exógeno a respeito da história de Jesus, extremamente difundida entre os Guarani com quem tenho convivido, e negligenciada pela literatura, [21] mostra uma transformação estrutural da célebre narrativa dos irmãos Sol e Lua, tida como seu principal mito. Já analisei em outro texto a mesma narrativa a respeito da origem de Jesus, enfatizando, porém, uma exegese detida nela mesma, que apontava para uma poderosa crítica xamânica ao cristianismo (Pierri, 2014). Partirei agora de uma análise da versão do mito dos irmãos Sol e Lua publicada por autores guarani em A Vida do Sol na Terra [22] (Kanguá & Poty, 2003), para avançar na comparação com a história de Jesus. A atribuição pelos índios de um comportamento paradigmático por parte de Kuaray, que merece ser perseguido por eles, e a concepção contida na versão mbya desse mesmo mito, de que Kuaray criou seu irmão como uma imagem de si mesmo, nos conduzirão à conexão entre a teoria lévi-straussiana do dualismo ameríndio e a teoria do platonismo em perpétuo desequilíbrio, que detalharei no próximo capítulo.

    Comecemos por sublinhar o quanto é notável o desdobramento sucessivo de pares de irmãos na mitologia guarani, semelhantemente ao que Lévi-Strauss (1993 [1991]) havia apontado para os Tupinambá. Muitos de meus interlocutores apontaram que Xariã ou Anhã, [23] o demiurgo responsável pela criação de elementos negativos da terra atual, é irmão mais velho de Nhanderu Tenonde. Numa disputa por poder, ele tentava superar as criações de seu irmão, gerando imagens negativizadas dos elementos que o criador principal havia feito. Ladeira (2007 [1992], pp. 156-8) abordou inicialmente esse tema, que ela designou como as imitações de Anhã. Abordarei em diversos momentos do texto a questão da imitação, mas iniciemos a partir dessa relação entre Anhã e Nhanderu Tenonde. Um de meus interlocutores apontou observações semelhantes às colocadas pela autora quando me esclareceu a respeito de uma pergunta equivocada:

    d: Os três eram irmãos? Jaxy, Kuaray e Xariã?

    Vera Popygua: [24] Não, Xariã era irmão do pai deles. Daí que ele é mau mesmo. Às vezes xeramoĩ [25] conta essa história, porque eles disputavam o poder, aí o poder, quem tinha mais poder. O que Nhanderu Tenonde gerava coisa boa, ele gerava coisa má. Então por isso que existe assim cobras venenosas, tudo que ele criou, não foi Nhanderu. Então ele fazia uma coisa, ele [Xariã] fazia outra.

    d: E esses espíritos ruins, como itaja, [26] que manda doença, também foram gerados por Anhã?

    Karai Katu rãgue’i: [27] Foi, todo o espírito que é ruim, fica com raiva, pega arma, mata, é tudo de Anhã. O espírito dele vem aí, se invoca, não tem dó do cara, fura ou atira.

    No mesmo sentido, compare-se essa passagem do filme Orereko Mbaraeterã, [28] no qual o xamã de uma aldeia no litoral do Rio de Janeiro, Vera Mirim rãgue’i, [29] disserta sobre a origem da diferença entre as modalidades de trançados da cestaria por eles praticada:

    Exatamente como no caso tupinambá, abordado por Lévi-Strauss (1993 [1991], p. 57), esse par de irmãos rivais (Tamendonare e Aricoute, para os Tupinambá; Xariã e Nhanderu Tenonde, para os Guarani) é sucedido por outro par de irmãos, agora companheiros, revelando a recorrência notável da mesma matriz estrutural. No caso tupinambá, tratava-se dos filhos de Maire-Ata. Na versão guarani mbya, são os filhos de Nhanderu Tenonde: Kuaray e Jaxy. Embora essa afirmação seja a mais recorrente, ouvi também outras exegeses sobre o tema dos irmãos. Conversando sobre a história de Tupãra’y ou Jesus (ver adiante), sobre o fato de ele ser um enviado de Tupã Ru Ete, um jovem líder guarani me afirmou que todas as divindades pais das almas (nhe’ẽ ru ete kuery) [30] mandaram filhos para a terra, sempre aos pares. Nhamandu Ru Ete teria mandado Kuaray e Jaxy, o Sol e o Lua. Para ele, porém, Xariã é um dos filhos de Karai Ru Ete, que teria como irmão um personagem chamado Xa’ã. Ele me disse que há todo um ciclo de narrativas sobre esses irmãos, em relação ao qual nunca ouvi nada, e que não consegui confirmar com outros interlocutores. Jakaira Ru Ete, por sua vez, seria ele próprio o pai das outras divindades. Por fim, Tupã enviou seu filho Tupãra’y (associado a Jesus) para a ilha onde residiam os brancos. O que me parece interessante, entretanto, é a possibilidade latente do desdobramento de novos pares de irmãos, que sobressai da reflexão desse jovem guarani.

    Ao ser questionado sobre a ausência de um irmão de Tupãra’y, meu interlocutor disse que ele não aparece na história, mas está sempre acompanhado de um xondaro, [31] que o auxilia. Vamos reter esse comentário, que será importante mais adiante, mas antecipo que será possível perceber a transformação do tema da gemelaridade tratado por Lévi-Strauss mesmo nessa narrativa. Por ora, fica como uma questão em aberto, cuja resposta só poderá ser extraída através da análise da narrativa em si.

    Origem dos índios

    Passemos, pois, um resumo da história de Sol e Lua: [32]

    A mãe do Sol (Nhanderu xy’i), quando era mocinha, esteve no mundo. Era uma jovem bonita, que um dia teve a ideia de fazer um laço para pegar o pássaro inambu, mas em vez de pegar o inambu, em seu laço caiu uma corujinha (urukure’a’i). Ela gostou tanto da coruja que a levou para casa para criar.

    Quando chegou em casa, a mãe do Sol tentou alimentar o bichinho, oferecendo alguns grilos (kyju) que havia caçado, mas a coruja não aceitava. Voltou então à procura de alimentação e trouxe muitas borboletas (popo’iju), mas a coruja não aceitava. Ela já não sabia mais o que fazer quando a ofereceu farelo de mbeju [33] e a corujinha finalmente comeu. Em pouco tempo, a mãe do Sol percebeu que seu ventre estava começando a crescer e que estava grávida. Então ficou muito assustada e preocupada, sem entender o que havia acontecido.

    A coruja, percebendo sua tristeza, apareceu como era, transformando-se (onhemboete) em homem. E a moça viu que era Nhanderu Papa, o nosso Deus, que disse a ela, sua namorada (guembireko pe), que ia embora, convidando-a a ir junto. Ela nega, alegando que a sua esposa celeste não ficaria contente. Nhanderu Papa diz a ela que pode segui-lo quando quiser para levar seu filho Kuaray, o Pequeno Sol, que saberá guiá-la, conversando com ela desde o ventre.

    No dia seguinte, ela resolveu ir atrás de Nhanderu Papa, mas pela mata onde ele seguira havia várias picadas, e ela não sabia por onde ir. Lembrando-se do que Nhanderu Papa havia dito, perguntou ao bebê que estava em sua barriga qual era o caminho, e Kuaray respondeu que pegasse o da direita. Ele pedia também para que ela colhesse flores que estavam, para que ele as levasse para brincar na morada de seu pai. Até que, pegando um girassol (yvoty), a mãe é picada por uma mamangava, fica furiosa e dá tapas na própria barriga.

    O menino se cala em represália, e, sem saber o caminho, a mãe os conduz à morada da onça velha originária (xivi ypy jaryi), que lhe recomenda que volte, pois seus filhos são ferozes e irão devorá-los. Porém, sem saber voltar, a mãe de Kuaray fica, e a onça velha a esconde sob uma

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