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Avaeté

Um

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Eu jamais imaginaria que uma animensagem pudesse me
inquietar tanto. Ainda mais aquela. Para qualquer outro professor
universitário, aquilo não teria nenhum significado extraordinário. Mas
não para mim. Pelo menos não naquele momento. Passava
discretamente pelo rodapé da tela. Capturei-a rapidamente com o
olhar. Ela veio para o foco central.

“Participe do IV Colóquio Mundial da GBuNGO


Inovação e sustentabilidade através dos negócios, ciência, artes
e religião
17 a 20 Janeiro – El Calafate, Patagônia
Focalize aqui para inscrever-se.”

Fosse apenas pela chamada em si, não me atrairia. Mais um


congresso na carreira com direito a turismo? Encontrar gurus
grandiloqüentes? Já bastava. Mas, e quanto à chance de encontrar
alguém realmente interessante pelos corredores? Bom, aí estava algo
que valia a pena. Mas não era só isso. Tinha algo a ver comigo. Um
transtorno. Uma angústia. Uma sensação de que algo mais radical
precisava ser feito. Comigo? Com o mundo? Sei lá.
Volta e meia você faz um balanço geral. Às vezes faz o balanço
e o deixa de lado. Outras vezes muda completamente o rumo. Ou
sobe um degrau. Conquistei muita coisa na vida nos últimos anos.
Tornei-me um catedrático respeitado. Fui convidado inúmeras vezes
para ministrar palestras. Eu próprio me tornei um aspirante a guru.
Escritor de livros sobre negócios sustentáveis. Os alunos me adoram.
A maioria. Bem, uma parte deles. Oriento dezenas de trabalhos
acadêmicos. Sou consultado por empresas e governos. Viajo pelo
mundo todo. Amo o que faço. Tenho uma vida equilibrada. Jogo tênis.
Isto é sagrado. Dou o máximo para ser respeitado como um bom
ecoengenheiro. Você sabe, quando se é professor de ecoengenharia,
você é muito cobrado. Os alunos não perdem a oportunidade de se
vingar. Imagine se descobrem que você gasta 5,2 megawatts de
energia por ano. Ou que descarta 7.200 litros de lixo. É a sua morte.

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É, mas aquela mensagem mexia com alguma coisa mais do
fundo. É como pressentir que coisas importantes estão por acontecer.
Algo maior que tudo isto. Como estar para descobrir uma chave. Uma
chave que resolve todos os conflitos. Uma chave que dissolve as
ansiedades. Uma chave que mostra o caminho.
É, uma chave ajudaria. Poderia ajudar o mundo. Ajudar a salvar
o mundo. É definitivamente do que o mundo precisa: uma chave
salvadora. No caminho de desesperança que tudo vai, só algo
salvador. Uma chave oracular, divina. Alguém para quem perguntar:
“Ó Mestre, abandonemos a tecnologia e vivamos uma vida de
simplicidade voluntária ou nos entreguemos com toda energia ao
poder tecnológico que temos nas mãos?” “Criemos uma sociedade
sistemática e eficiente ou livre e diversa?” “Ofereçamos a outra face
à violência ou a atacamos com fúria?”
Perdi-me em pensamentos divagantes sobre os conflitos mais
profundos que a civilização vive, até que saí daquele torpor com um
tapa na cara. “Mas que besteira!” – pensei. Uma chave mágica? Não
era exatamente o que meus clientes e alunos sempre pediam? E o
que eu respondia? “Não existe uma solução mágica para seu
problema, meu caro. Ele foi gerado em um processo, a solução só
ocorrerá através de um processo.” – com aquele ar de sábio. Ok, que
não haja uma chave salvadora. Mas algo importante vai acontecer
por lá e eu não posso estar fora dessa. Nunca perdi a oportunidade
de fazer a coisa certa. Zoom.

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A escolha de El Calafate não é inadvertida. Óbvio, muita gente
aproveita para passear. El Calafate encontra-se na região da
Patagônia, às margens do Lago Argentino, este nascido de inúmeras
geleiras. O lago é de um turquesa leitoso esplêndido e os tours levam
os interessados por um mar de têmpanos, ilhas de gelo que se
desprendem de glaciais outrora fenomenais, como o Perito Moreno. O
fato é que os glaciais estão mirrados. Por todos os motivos que todos
sabem e por muitos outros que ninguém imagina. Bem, uma coisa é
falar do assunto, outra é ver aquela coisa magnífica desaparecer. Por
isso, aquele era o lugar.

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Analisei todos os detalhes. O período era de férias, mas havia
muitos trabalhos em andamento. Pelo menos três projetos de
pesquisa estavam “pegando”. Todos envolviam a academia, algumas
empresas patrocinadoras, governos e comunidades locais. Eram
projetos de que me orgulhava. Não poderia deixá-los assim. Mas não
poderia haver escolha. Contei com a ajuda dos meus assistentes
Ângelo e Márjorie. Gosto deles. Crianças com quem vale a pena
trabalhar. E que se pode confiar. Bela escolha a minha. Incluindo o
fato de terem nomes proparoxítonos.
Tratei dos trâmites burocráticos, atropelei fluxos de sistemas de
informação, coletei eu próprio vistos eletrônicos. Avisei quem
precisava, convidei quem merecia e toquei para casa fazer as malas.
Escolhi um pequeno bando de livros, empacotei meu note, separei
roupas multiuso, úteis para os auditórios e para uma eventual
caminhada, e pé na estrada. Algumas horas de trem da cidade
universitária até o aeroporto mais próximo, outras poucas horas num
vôo com destino final a Rio Gallegos, e depois até El Calafate em um
aerobus bacana. Os aerobus estavam em experimentação em
algumas regiões mais desérticas do globo, por isso tínhamos à
disposição um transporte moderno até aquela região turística.
Não foi possível passar irreconhecível pelos trechos. Quanto
mais perto do destino, mais gente “da tribo” vai se encontrando. A
maioria dos livros ficou intocada. Sem problemas, a volta
normalmente é mais longa.
A chegada ao local do evento foi sem surpresas. Avisos virtuais
de “Reduza, Reuse, Recicle”, café orgânico, nada de descartáveis,
camisetas e mochilas feitas de embalagens diversas reutilizadas.
Procedimentos já comuns aos congressos. Não havia mais novidade
nestes detalhes.
Aproveitei que era fim de tarde, deixei minhas coisas no quarto
e fui dar uma volta na cidade. A gente “da tribo” teve a mesma idéia
e encontrei alguns parceiros também pelas ruas e pelos bares. O
clima era um pouco nostálgico, pois estive aqui vários anos atrás
conhecendo a região. Era diferente porque parte da beleza natural
dissipou-se, mas recompensador por ver novamente aquele
maravilhoso e potente deserto. A cidade estava maior, não pelo
crescimento da população local, mas pelo aumento do número de
negócios diversos que europeus rodavam. Eram bem cuidados e

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traziam um ar cosmopolita a esta região por eles “descoberta” no
Séc. XIX.
Entre alguns “Olá!” e “Como vai você?”, pus-me a imaginar que
ainda estaria cedo para começar velhas conversas sobre green
business, liderança e inovação nos negócios, liga dos cientistas para
o desenvolvimento, etc. Por isso, optei por ficar caminhando pela rua
mesmo, até chegar a um local um pouco mais afastado e alto da
cidade para contemplar o movimento. Fui e voltei pela Av. Del
Libertador e depois peguei o rumo sudeste até os limites do povoado.
Buscar instintivamente lugares altos é algo que aprendi com o
passar do tempo. Uma visão mais ampla. Perspectiva. Mirei o pôr do
sol, aquele laranja-acinzentado maravilhoso, deixando que a
paisagem tomasse posse do que era seu. A grande expiração
começava a tomar vulto e uma predisposição de espírito calmante
surgia.
Estrelas, uma a uma, reapareciam para a negra travessia. Em
número muito, muito superior ao que posso assistir do meu apart. Da
minha casa, só sou capaz de observar algumas poucas estrelas. Isto
acontece, em parte, porque só vejo o que está à minha volta e
mesmo acima pelas frestas de prédios. De resto, a iluminação da
cidade compete de maneira implacável com o brilho da noite. Só as
mais potentes vencem a batalha.
Aqui ainda não há tal pressão. Vejo pontos brilhantes aos
milhares. É algo que ajuda a diminuir a sensação de solidão. Como
uma demonstração diária, porém pouco vista, de magnitude, de
propósito, de realização, pelo simples fato de estar vivo. Não é à toa
que as estrelas nos trazem imagens de orientação, de norte, de
direção do movimento do universo. Iluminaram os ensejos de tantos
povos e viajantes. Será que serão capazes de iluminar o caminho
destes milhares de cegos-surdos-não-mudos aqui reunidos?

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Fora uma noite tranqüila de sono. De volta ao hotel, um lanche
leve, uma cama confortável, um pouco de diversão barata na tela,
um chá quente e nada de pesadelos. Apesar da ausência de
sobressaltos, notei a calma subitamente transformar-se numa ponta
de expectativa sensível na parte superior do estômago. Isto ocorreu

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diante do espelho fazendo a barba. Havia alguns anos que não sentia
mais esta excitação prévia a um evento. Com o passar dos anos você
passa a sentir-se mais seguro de si, autoconfiante, senhor das
situações. Desaparecem as incertezas, as expectativas e as
surpresas. O coração quase não dispara mais. Mas aquela sensação
era esquisita, não porque não a esperava, mas porque já não estava
mais acostumado e ela.
Voilà, sigamos em frente. Com o motor em aumento de giro, agi
inconscientemente precipitando ações e pensamentos. Tomei um
café da manhã sem propriamente degustá-lo e parti rapidamente
para as providências iniciais do dia. A primeira coisa a fazer era o
check-in do evento. Ao chegar à grande ante-sala de onde se
adentrava aos locais dos trabalhos, garotas o atendiam com polidez e
distanciamento. Uma vez recebidas as orientações e o crachá, fui
orientado a dirigir-me à sala Agassiz, uma das maiores do centro de
convenções do hotel. Cinco cafés-colóquio ocorriam simultaneamente
nas diferentes salas com nomes de geleiras. Todos contavam com
figuras importantes. A idéia era uma manhã de debates sobre
grandes temas, com a meta de tratar de propostas objetivas para
problemas mundiais.
O café-colóquio que escolhi reunia quatro expoentes e um
mediador. Havia uma motivação para estar ali, pois vislumbrei
naqueles convidados maior potencial para um debate produtivo.
Estávamos diante de um tablado circular mais alto que a platéia, em
que figuravam o presidente da maior empresa de multienergia do
mundo, um artista rupestre vanguardista, um dos grandes
neurocientistas nobelistas da década e o bispo-mor da Igreja
Messiânica Mundial.
O mediador dá a deixa para iniciar os debates.
- Caros participantes deste IV Colóquio, sejam muito bem-
vindos. Como todos sabem, vivemos enormes conflitos em várias
esferas no globo terrestre. Infelizmente, estamos diante de um
desafio que urge por uma escolha de caminhos que nos permita
prosperar e salvar o planeta ao mesmo tempo. Para catalisar nosso
diálogo, gostaria de colocar a seguinte questão aos nossos ilustres
convidados: “Há uma maneira de reconciliar humanidade e planeta
nos nossos tempos atuais? Há, senhores, tempo de salvar o planeta e
a raça humana? Pagaremos pelo que viemos fazendo nos últimos
séculos?”

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Achei a pergunta genérica demais, para dizer o mínimo.
Imaginei alguém falando alguma frase de efeito logo a seguir, mas o
pessoal ainda não estava aquecido o suficiente. Um que outro
movimento de cadeiras dos mais inquietos, mas nenhuma
manifestação mais efusiva. Resolvi dar uma vasculhada na audiência
para ver se encontrava algum outro inquieto como eu.
Havia cerca de setenta pessoas na sala, dispostas em mesas de
cinco a oito “cabeças” cada uma. O que eu podia notar era uma
saudável diversidade, porém uma injusta maioria pertencente à
ciência e aos negócios. Isto era esperado. Os artistas estão morrendo
de fome. Os religiosos missionários estão preocupados demais
combatendo demônios que se avizinham. A ciência manda no mundo.
E os negócios mandam na ciência.
As manifestações do palco foram dentro do esperado. A primeira
fala foi da ciência. Os neurocientistas no mundo inteiro alcançaram
uma supremacia tal, que todos os que podem ler jornal ou revistas de
pop-science neste mundo sabem das suas teses básicas.
- Há algumas idéias presentes no imaginário popular que
dificultam a nossa capacidade de dar respostas aos desafios mais
fundamentais com os quais nos defrontamos. A primeira destas
idéias nefastas, secularmente defendida pela pub-psychology e
apoiada pelo senso comum, defende que o ser humano só é mau
porque é ensinado. Ela sugere o ser humano como dotado de uma
memória computacional “limpa” pronta para receber os mais
variados programas desde cedo e executar estes programas de
maneira mais ou menos inconsciente. Softwares como nazismo,
democratismo, revolucionarismo, salvacionismo, machismo se
desenvolvem em algumas máquinas-mestras e instalam-se nos
demais computadores da rede como se fossem vírus. Esta tese
denomina-se "RAM", em referência aos chips de memórias de rápida
e livre gravação. Já a segunda idéia...
O mediador, jornalista de renome precocemente nervoso,
aproveitou um momento de hesitação do neurocientista e
interrompeu:
- Você poderia justificar por que essa seria uma “idéia nefasta”,
se me permite usar suas próprias palavras?

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- Em seguida, meu caro. Deixe-me primeiro enunciar as três
teses básicas mais danosas para a humanidade. Em seguida, as
justificarei. A segunda diz respeito a...
Não me contive a fazer uma careta e coçar a cabeça. Comentei
com meu vizinho, um biólogo indiano que se remexia na cadeira:
- Que tal? Saímos daqui hoje, ou o evento deveria chamar-se
solilóquio?
Meu companheiro de mesa piscou o olho e manteve-se
impassível. Uma maneira discreta de dizer: “Fica frio que a coisa vai
longe”. Ok, vamos em frente.
A intervenção do nosso amigo estudioso das entranhas
cerebrais durou mais de trinta minutos. Quase tão longa quanto
discurso de ditador. E ainda havia mais três respeitáveis senhores por
manifestar-se! Que batalha para nosso mediador. A platéia, já
àquelas alturas, tinha um misto de parcial enfadamento com total
aborrecimento.
O segundo foi o presidente da McSquare Energy Corp. Apesar de
mostrar-se um sujeito muito mais direto, fui confirmando minha
profecia particular de que estas manifestações não levariam a nada.
No caso do nosso amigo executivo, o tom motivacional para “uma
mudança do mundo através dos negócios” causou na platéia
circundante aquele comportamento típico das massas alienadas, um
“é isso aí, é isso aí”. Sua frase mais ovacionada foi: “Temos todos os
instrumentos necessários para uma mudança fundamental neste
planeta. Tudo o que nos falta é o comprometimento com uma visão
comum que somente um planejamento estratégico mundial pode nos
dar!”.
“Palmas” – pensei. Acho que todo mundo pensou isto. Ninguém
o fez por uma questão de moral esquerdo-intelectualóide: não
entregar a mente (a liberdade) ao capital estrangeiro. Pelo menos
não em público.
Minha inquietude foi dando lugar a uma resignada
desesperança. Naquele estado de torpor, passou batido para mim a
obra que nosso artista litófilo preparou para o colóquio. Ele a
apresentou num tom de suspense, inicialmente coberta por um pano.
Assim que ele silenciosamente obteve a atenção da platéia, sacou
rapidamente a coberta, provocando um “Oh!” coletivo. Não falou
palavra. Deixou que a obra falasse por si. Pensando em retrospectiva,

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passei a gostar deste: pelo menos nos poupou vários minutos de
linguajar oco.
O grand finale ficou para o bispo messiânico, que
surpreendentemente (ou não) ressoou as idéias do executivo
empresarial, evitando citar versículos de quaisquer escrituras.
- Bem, já temos um início de consenso: a igreja concorda com os
negócios – ressaltei.
- Se você ainda não tinha prestado bem a atenção, pelo menos
há uns três séculos! – cochichou o vizinho biólogo.
Uma manhã pouco produtiva até então. Será que todas as
minhas expectativas de algo radical acontecendo eram falsas? De
onde poderá surgir um raio iluminador de inteligência? Bem, restam
os corredores e os bares. Mantenhamos a esperança.

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Resumo da ópera: o que estava previsto para ser um diálogo
diverso e produtivo, virou uma passarela de idéias de alguns poucos
“estilistas” afetados. A platéia pouco teve tempo para manifestar-se
e, quando o fez, reproduziu o modelo. No fundo, todo mundo também
quer ser um “estilista” de renome. Incluindo eu.
Almoçamos num grande e moderníssimo salão em estilo
sustentável. Eu estava mais curioso para conhecer as pessoas do que
a fim de falar do assunto principal do evento. Amenidades,
curiosidades a respeito do trabalho de cada um, avaliações quanto às
dificuldades ecológicas e humanas no planeta eram o que rolava.
Sobre isso, a pergunta mais comum era: “O que vocês (bantus,
mongóis, andinos, etc.) estão fazendo a respeito dos nossos recursos
ecológicos planetários?” Um tom meio inquiridor, uma coisa meio
culposa a partir da própria pergunta. Quando me perguntaram isso,
titubeei numa resposta de contra-ataque que também provocasse
alguma dose de culpa compartilhada. Por isso, fiquei irritado comigo
mesmo.
Resolvi fugir das conversas disfarçadamente e fui buscar uma
sobremesa. Aproveitando que estava de pé, dei uma olhada geral nas
mesas para achar algum conhecido e orientar-me sobre a escolha de
algum dos eventos da tarde. Encontrei um grupo de caribenhos muito

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divertido que também comia sobremesa em pé. Perguntei por que o
faziam, e eles saltaram rapidamente a explicar: “las chicas!” E
caímos na gargalhada.
Após um cafezinho descontraído, concluímos pelos anúncios que
a tarde estaria reservada para atividades mais experienciais que
ocorriam pelo mundo afora. Recursos de mídia diversificada estavam
à disposição para demonstrar ações locais. Minicolóquios estavam
previstos em vários ambientes semicomunicantes. Fui orientado
pelos meus amigos divertidos a assistir a simulação interativa de
uma cidade modelo ecológica “bolada” pelos highlanders. Agradeci,
mas avisei que pretendia fazer uma busca mais ampla. Estava à
procura de vínculos entre o resto do mundo e o que fazíamos na
universidade. Meus amigos desejaram-me sorte, persistência e bom
humor.
Enquanto navegava por aquele desfile de experiências, notei o
movimento de algumas pessoas que também se moviam da mesma
maneira. Como era um número não desprezível de indivíduos,
formava uma espécie de corrente que parecia viver e divertir-se nas
frestas e entremeios dos ambientes. Comecei a ficar intrigado com
aquele movimento. Quem seriam estes seres que viviam nas frestas,
nos canais, à margem dos fluxos?
Comecei a achar que era alguma “gente do bem”. Algo que
contrastava com o tom mais paroquial e messiânico dos ambientes
oficiais. Uma coisa mais diversa e tolerante e menos arrogante e
autoritária. Um livre ir e vir de pessoas e idéias. “Viu esta idéia? Leve,
se lhe for útil. Conosco funciona. Se eu tenho certeza? Não, apenas
funciona há algum tempo. Se é inovador? Não sei do que você está
falando.” É, gostei do papo.
Mas a questão era: quem são os protagonistas “deste papo”?
Perscrutando um pouco, achei todo tipo de malucos de tudo quanto
era parte do mundo. Espécie de “turistas do saber”, a fim de estar ali,
curtir, trocar, aproveitar e experimentar. Na maioria, sem muita
preocupação em “ter certeza”, em “fazer o que é certo”, ou em
intervalos de confiança estatísticos. Com algumas coisas
definitivamente em comum: não pertenciam a nenhuma maioria, não
investiam em nenhum marketing massificado, não tinham maior
poder econômico ou legal. Pequenos empreendimentos sociais ou
ecológicos, grupos culturais, artesãos ou artistas locais, agentes
organizadores de movimentos sociais, professores realmente

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aprendizes em escolas periféricas, líderes comunitários e vagabundos
de vários tipos, no mais positivo sentido da palavra: cidadãos ricos de
liberdade, indivíduos com uma propensão vital para mover-se
livremente.
Resolvi interagir. Ali estava uma oportunidade de achados que
poderiam reacender a chama. Falei com todo tipo de maluco. Aquilo
era um tipo de rescaldo distante de beats, hippies, bruxas
aquarianas, gerações índigo, mutantes rebeldes e pessoas que
percebem seres de outras dimensões. Com duas diferenças básicas:
eram reais e estavam sobrevivendo por este mundo afora.
Eu me identificava de alguma forma com estas pessoas. Mas
elas desconfiavam que eu não pertencesse à tribo. Que era uma
espécie de antropólogo das horas vagas a fim de um estudo meio
científico. Tentei várias aproximações, mas elas não passaram de
quase-entrevistas. Será que eu era algum tipo de extraterrestre de
um planeta maligno querendo dominar o mundo livre? Ou portava
algum tipo de vírus contagioso para o qual não existe vacina? Não
sei, mas não tomei isto como um ataque ou indiferença ao meu ego.
Parecia-me uma rejeição valiosa que me faria ter algum tipo de
aprendizagem.

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No passado, já fui mais hábil em entregar-me à intuição.
Antigamente, tomava muito mais decisões à luz de vislumbros de
uma inteligência que eu não sabia de onde vinha. Como a mente
racional não entende isto, resolve tomar este espaço, mandando um
oficial à sua casa não só proibindo que você tome “decisões
intempestivas”, mas também impedindo que os relâmpagos
iluminem a escuridão. Ela vai se apossando e dominando o terreno,
até que você seja seu escravo. Escravo das decisões racionais.
Resolvi contrariar o grande senhor e entreguei-me àquela
piscadela intuitiva. Decidi permanecer então na área que me
permitiam: observar contemplativamente o fluxo. Passei a olhar
rostos, depois a observar comportamentos e a buscar padrões que
permitissem distinguir as tribos. O que era mais notável era a
heterogeneidade étnica: nativos americanos de vários povos,
mediterrâneos de várias tonalidades de peles, afrodescendentes

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espalhados pelos cinco continentes, tipos arábicos heterodoxos,
eslavos, indianos, saxões branquelos, asiáticos, tipos caribenhos
sorridentes, entre tantos outros que não tenho a menor idéia de onde
vêm. O mundão velho sem fronteiras. Depois da Emenda Global
número 1, que erradicou a necessidade de vistos de entrada entre
quaisquer localidades e instituiu uma menos hipócrita liberdade de ir
e vir, cruzar fronteiras tornou-se um processo muito mais fácil.
Aproveitei o que deu, de maneira que não notei o passar das
horas. Entretido com aquele jogo de adivinha solitário, olhei o relógio
e notei que já marcava seis horas da tarde. Aos poucos, o burburinho
de gente aumentou, com o término dos eventos simultâneos e o
deslocar-se de grupos que discutiam o que acabavam de
testemunhar. Juntaram-se os que estavam confinados com os que
estavam fluindo durante a tarde. Mas isto não durou, de modo que
em cerca de meia hora todos já estavam de volta aos seus quartos
para descansar um pouco.
Fui também para o meu quarto, fiz um balanço rápido no diário
de congresso, para que meus colegas na base pudessem ter uma
idéia do que ocorria, e vesti uma presença de espírito alternativa
para a noite. Tomei uma dose de uísque e preparei-me para o
verdadeiro colóquio que estaria por começar: o que se faz do cair da
noite até as 4 horas da madrugada seguinte.
Optei por ir a um bar onde pudesse estar em contato com um
mix de nativos e forasteiros. Saí a pé na direção norte, buscando as
imediações da cidade. Na Rua Los Tehuelches encontrei o “Delante
del Arroyo”. Pareceu-me aconchegante, com lareira, meia luz, poucas
mesas e servindo vinho ótimo. Pedi uma porção de copa para
aperitivar e procurei relaxar. Estava só, mas disponível para um papo
com os nativos.
Olhei para os lados e observei que ninguém se preocupava com
minha presença. Todos comiam, bebiam e conversavam de maneira
tranqüila. Uma música regional tocava em volume agradável. Uma
única mesa me chamou a atenção: quatro nativos americanos que,
pelas feições, só poderiam ser oriundos da faixa andina, pelos
adornos de cabeça em prata que as mulheres usavam. Eles me
observavam discretamente, principalmente os dois homens. Podia
quase jurar que os havia visto hoje à tarde. Teriam eles me notado?
Se sim, que curiosidade despertava nestes distintos companheiros?

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Não tardei a descobrir. Acabei de servir minha terceira taça de
vinho ao mesmo tempo em que recebi a visita de um dos homens:
- Importa-se que eu sente à sua mesa por um momento?
- Por favor, fique à vontade. Na verdade, esperava poder
conversar sobre algo proveitoso com alguém esta noite. Qual o seu
nome?
Estava desejoso por uma boa conversa. Alguém com quem
compartilhar as impressões sobre o que acontecia. Minha ansiedade
impedia de surpreender-me sobre o porquê daquele sujeito me
procurar de maneira tão direta.
- Olá, sou Pedro Ruca. É um prazer conhecê-lo. Creio que não é
adequado você saber muitos detalhes a meu respeito neste
momento. Talvez você esqueça-os por completo até amanhã pela
manhã...
- Não entendi. Por que esqueceria? – indaguei com uma ponta
de desconfiança de que se referia à quantidade de vinho na minha
garrafa.
- Não me leve a mal. Existem alguns motivos pelos quais não
desejo alongar nossa conversa. Não fique na defensiva, não quis
ofendê-lo.
“Estou aqui por causa de um amigo seu. Ele também está na cidade
e imaginou encontrá-lo aqui. Na verdade, ele tem tentado encontrá-lo
há algum tempo, mas parece que você tem afazeres muito
importantes que o tornam incapaz de notá-lo. Seu amigo, que é
também um grande amigo meu, pediu-me que o avisasse do
seguinte: amanhã, ao anoitecer, ele estará esperando por você no
Cerro Huyliche.”
Um amigo meu? Há muito tempo à minha procura? Quem será?
Alguém em apuros? Precisando ajuda? Não quer se mostrar, pois
corre algum perigo de vida? Não quer ser visto comigo? Represento
algum perigo para ele? Um adversário intelectual que deseja uma
trégua? Enquanto me fazia todas estas perguntas, mal notei o adeus
e a retirada educada de Pedro Ruca.
Decidi não insistir. Não via motivo para ser deselegante e me
intrometer na mesa em que conversavam. Apesar de notar que eram
descendentes de nativos sul-americanos, não conseguia ter a menor

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idéia de onde seriam, seja pela fala muito distinta, seja por seus
traços. Eram apenas muito discretos, mas claramente francos.
Bebi mais algumas taças do meu vinho mergulhado no ar
agradável daquela pequena cidade turística, buscando escapar das
imagens daquele encontro com um quê de mistério. Ele deveria
provocar em mim alguma expectativa. Mas minha mente vagava
entre a perspectiva desesperançada de um congresso sem essência,
as preocupações com projetos sem fim que me esperavam em casa,
os muitos alunos que não sabem bem o que querem da vida e o
desconforto com meus próprios rumos. Uma sensação ensimesmada
de “o que é que eu estou fazendo aqui?” que eu já sentira outras
vezes. Entre uma preocupação e outra, acabei com minha bebida e
saí um bocado alto do bar até o hotel.
Acabou sendo uma noite difícil de dormir. O vinho, dificultando a
digestão de toneladas de proteína e gordura, gerou uma sensação de
estar à beira de uma explosão. Os poucos cochilos foram agitados,
até que às três horas consegui um relaxamento mais longo.
O tempo foi suficiente para um sonho. Sonhei ser o comandante
de um navio cargueiro que transportava algo pesado. O interessante
era que, quanto mais peso e mais carga, maior se tornava o navio e
isto permitia colocar ainda mais carga e peso. Até um momento em
que o cargueiro começou a afundar. Mas o processo não tinha fim:
mesmo totalmente submerso, continuava empilhando mais carga,
apesar de estar afogando os tripulantes e a mim mesmo. Estava no
limite de morrer afogado, quando acordei sobressaltado e com falta
de ar.
Acordar desta maneira o deixa realmente desperto, por isso
resolvi levantar e tomar banho para enfrentar o dia de evento. Não
fiquei especialmente interessado pelos significados do sonho e me
deixei tomar durante vários minutos pelas sensações da
hidromassagem e do pesar estomacal.
O relaxamento do banho quente acabou por levar-me a uma
decisão ineficiente, porém necessária: voltar para cama, ainda que já
fosse seis e meia da manhã. Estava na cara que não acordaria a
tempo para as primeiras atividades do evento. Fechei completamente
as cortinas do quarto e mergulhei num reconfortante sono.

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Só acordei às onze horas da manhã. Apesar da sensação de
consciência pesada, cheguei com uma cara muito descansada, o que
contrastava com as dos primeiros participantes do colóquio que
encontrei: enfadamento, cinismo, indignação, ironia, cansaço,
entusiasmo ingênuo, desesperança. Parecia que já no segundo dia se
perdia a perspectiva de algo positivo.
Como eu estava renovado, interagi com energia desproporcional
com vários participantes e conhecidos. Encontrei representantes de
negócios dizendo-se incapazes de mudar suas organizações,
cientistas conscientes preocupados com o rumo dos investimentos,
artistas alheios fazendo considerações críticas aos descobridores dos
novos mundos, esses “destruidores de culturas e biodiversidades”,
pastores com fórmulas salvacionistas e o tipo que mais me irritava:
cidadãos cumpridores das suas obrigações culpando a falta de
controle dos governos.
Cheguei a discussões bastante acaloradas em vários grupos que
conversavam e tomavam cafezinho na grande ante-sala. Fui
gentilmente expulso de alguns deles e me auto-ejetei de outros.
Porém, o ápice foi quando inadvertidamente critiquei a atuação de
ONGs poderosas em territórios com riquezas biológicas a pretexto de
suporte social. Por azar, estava diante do diretor de uma organização
que, para minha surpresa, copatrocina um de meus projetos:
- Tenho acompanhado sua trajetória em projetos do qual somos
patrocinadores, nas entrevistas que você tem dado e nos artigos que
você tem escrito. Pelo que estou vendo até aqui, acredito (e não é
minha opinião isolada) que você tem assumido posições um tanto
perigosas, e reagido de forma muito emocional quando confrontado
educadamente. A esta confrontação, tenho notado que você articula
suas razões de maneira extremamente pueril. Dá opiniões
generalizantes e não sustenta nenhum dos seus argumentos. Usa
poucos dados concretos e chega a conclusões de fé. Não creio que
terá qualquer tipo de sucesso em influenciar o pensamento vigente e
menos ainda em assumir qualquer posição de liderança na sua área.
Você não acha que está na hora de recolher seu time de campo e ir
fazer algo mais apropriado? Que tal algum turismo na região?
Nossa, aquilo me pegou. Vindo daquele distinto cavalheiro,
aquilo significava que meu trabalho estava sendo avaliado de perto

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por pessoas das quais não imaginava estar ligado. Não tinha a
clareza burocrática a respeito de quem estava por trás dos projetos
em que atuava tecnicamente. Imaginei que o incidente seria
divulgado em fóruns de poder político, e que isto iria me trazer vários
tipos de incomodações.
Senti como um contragolpe no rim, de dor aguda, depois de
uma esquiva elegante ao meu ataque. O fato é que eu costumo
disparar alguns tiros de festim a esmo, mais para assustar, e nunca
espero receber um tiro de revide com intenção de ferir. Sem resposta
imediata, senti-me de fato um infantil, meu sangue ferveu e tudo o
que me restou foi xingar de volta.
Foi um balde de água fria nas motivações para tirar algum
proveito daquele dia. Decidi que me dedicaria mesmo a algum tipo
de turismo neste dia. Não por sugestão do cavalheiro, mas porque
sabia que seria uma das únicas maneiras de recolocar as idéias no
lugar. A outra seria o álcool, o que rejeitei por ser cedo demais. De
qualquer maneira, pensei de maneira cínica: além das conversas nos
corredores não havia algo que realmente merecesse minha presença
na agenda.
Troquei minhas roupas logo após o almoço e peguei o primeiro
barco que saísse para navegar no Lago Argentino. A tarde estava
aquecida por um sol brilhante que era refletido nas mais variadas
formas pelos têmpanos navegantes do lago. Ao passar diante dos
glaciais, o azul e o branco intensos e a grandiosidade daquele rio de
gelo traziam alguma paz momentânea.
Aquela sensação baixou a intensidade com que meu coração
vinha batendo, até ser tomado por uma visualização sobre o que
vinha ocorrendo. Desde aquele misterioso encontro no dia anterior,
fiquei muito mais tempo tomado por minhas próprias preocupações e
pensamentos particulares, e pouca atenção dei àquele que poderia
ser o momento que estava esperando. Estava tão isolado dentro de
mim mesmo que já não tinha percepção consciente para coisas
importantes que aconteciam à minha volta. Apesar de parecer
preocupado com o mundo, estava mesmo era ocupado com desejos
egoístas. Será que não era esta a mudança necessária: passar a uma
vida mais interdependente, mais aberta, mais fluída? Será que aquele
encontro não teria alguma chama a reacender? Isto ativou uma
expectativa que não imaginava para aquele encontro de logo mais à
noite.

18
Descemos do barco e o grupo de turistas seguiu em um trekking
rumo a outros glaciais. Entretive a minha tarde com esta gente
mochileira, tentando fazer uma troca mais honesta de sentimentos,
caminhando, conversando e fazendo um esforço para ouvir através
do coração. Estava definitivamente usando músculos atrofiados.
Quando retornamos ao hotel, sentia as pernas e algo mais doendo.
A preparação tinha que ser rápida. Não poderia me tardar em
aprontar-me para o encontro que logo viria. Não houve tempo nem
para um banho. Peguei minha carteira e rumei rapidamente para
uma locadora de automóveis 4 x 4, onde aluguei o único veículo
disponível. Obtive algumas orientações sobre como chegar ao Cerro
Huyliche e parti no rumo sul.
As orientações eram claras: havia algumas estradas de rípio até
certo ponto, mas depois teria que transitar pelo campo aberto sem
uma via demarcada. Na locadora, perguntei se teria dificuldades em
achar uma pessoa que marcara um encontro comigo naquela
localidade. As informações eram de que eu me orientasse pelas
fogueiras que os caminhantes acendiam no local ao cair da noite.
Passei por algumas porteiras de estâncias até chegar ao final do
sopé da montanha. Dali ainda se avistava a cidade e o lago. A cidade
já estava começando a ficar tomada de luzes e a vista para oeste
apontava os picos gelados da Cordilheira dos Andes, com um pôr do
sol estonteante. Diante de mim, o pequeno cerro.
Não parecia haver qualquer sinal de alguém acampado junto ao
morro. Pelo menos eu imaginava haver alguém acampado. Imaginei
que poderia estar no local errado, até que uma raposa desceu por
detrás de umas pedras e barrancos, olhando alternadamente para
frente, para mim e para o local de onde veio. Não estava assustada,
mas parecia não querer meter-se com gente. Imaginei que do lugar
de onde viera poderia haver alguém.
Tive que caminhar um pouco além do que gostaria, perdendo de
vista o carro e com dores que me lembravam a caminhada da tarde.
Escalei algumas pedras pequenas até descortinar um pequeno platô,
logo abaixo do cume, onde havia um homem solitário com um
cachimbo na boca ao pé de uma fogueira.
Aproximei-me e fui tendo uma sensação de frio misturado com
espanto e esvaziamento. A subida havia me esquentado o corpo,
mas, diante da visão, estacionei alguns segundos o suficiente para

19
que o vento me congelasse. Sem o sol, aqueles locais ficam um
pouco frios à noite. Meu espanto dizia respeito a não acreditar poder
estar diante de alguém realmente importante para minha vida, mais
no sentido potencial do que real, mais pela força do homem do que
pelo que ele faz. E esvaziamento, porque fui incapaz de canalizar
aquela força que já havia testemunhado antes para mudanças
realmente positivas em minha vida.
Aquele que estava diante de mim era Avaeté.

20
Avaeté

Dois

21
1
Conheci Avaeté na Serra da Canastra há quase dez anos atrás.
Naquela época, eu e meus colegas costumávamos fazer trilhas
longas e acampar. Vivíamos de uma energia alegre de curtir a
natureza e pensar em mudar as coisas. Sentávamos à beira de
fogueiras e conversávamos coisas abstratas e teóricas que,
acreditávamos, poderiam fazer alguma diferença.
Nos dias finais de uma longa aventura, estávamos acampados
em Araxá. Era noite. Nós estávamos todos em volta do fogo,
conversando. Porém, alguém mais se acercou. Avaeté chegou
sorrateiramente e juntou-se a nós. Sem necessidade de convite,
como se já fosse de casa. Nunca tive idéia clara de onde morava,
nem de como seu povo levava a vida. Os Guarani estão espalhados
por este continente em situação terrível, à beira de vias e cidades.
Mas Avaeté nunca mencionou sobre sua vida passada.
Avaeté sempre foi muito direto, simples e sereno. Digo sempre,
porque nosso encontro, apesar de breve, cunhou uma mudança em
minha vida, o que a colocou em rumos completamente diferentes. Eu
perecia de uma enfermidade arrogante e ingênua. Hoje, ainda tenho
sinais disto, mas abri bastante espaço para a dúvida que dissolve as
certezas. Mudei muito desde então. Parece que ele me acompanha
desde sempre.
Naqueles poucos dias, Avaeté nos falou sobre alguns princípios
da Vida. Pareceram-me princípios para os nativos americanos, mas
eram muito mais que isto. Agora, muito tempo depois, ele está aqui
novamente. E eu também: mirando o horizonte, na direção oeste,
buscando novos ares.
- Avaeté!
- Pyá. Quando nos vimos da última vez, não houve tempo para
dar-lhe um nome Guarani. Agora você é Pyá. Venha me abraçar.
Foi um abraço apertado e cheio de tapas. Avaeté gargalhava
como um condenado.
- Pyá, você está gordo.
- E você está muito bem! Parece que nem se passaram dez
anos! Mas o que faz aqui?

22
- Você está cheio de gordura no coração e na alma. Alma gorda.
Coração confuso.
Poderia debater-me em contra-argumentos de todos os tipos
para defender-me. Mas de que valiam? Era uma profunda verdade.
Avaeté continuou:
- Tenho enviado sinais disto há tempos. Infelizmente, você é
teimoso e surdo. Fala muito, pensa muito, silencia pouco. Mas agora
chega. É preciso recuperar o Pyá dentro de você.
Indaguei Avaeté o significado de “Pyá”.
- Pyá é menino. Mas Pyá também é coração, é ânimo, é espírito
e é consciência. As crianças são isto, e os adultos devem nutrir para
serem também.
- Como posso reencontrar-me, Avaeté. Você sabe, sinto-me um
pouco perdido.
- Você não está perdido. Apenas não sabe que está no caminho.
O caminho de arandu. Arandu é o caminho correto, o caminho da
sabedoria. Você está apenas confuso.
- Sabe Avaeté, sempre recusei pedir ajuda. Sempre achei que
minha missão neste mundo era ajudar. Mas sou eu que preciso ajuda.
Eu preciso de ajuda para equilibrar minha vida...
- Pyá, você aprendeu muito. Transcendeu ao que o limitava.
Desapegou-se de coisas muito caras a você. Só que achou que isto se
faria pela mente. Exercitou a mente e esqueceu o seu lado Pyá.
Agora está gordo e inflexível. Sabe qual é o homem mais inflexível? O
homem morto. Está na hora de exercitar seu coração e sua alma. É
para isto que eu voltei.

2
Àquelas alturas da noite a fogueira se fazia muito útil. O vento e
o frio gelavam os ossos. O céu, muito limpo. Mas algo em mim estava
sendo reaquecido. A presença de Avaeté é aconchegante. Ele tratou
de arrumar mais material para o fogo e aqueceu um bule com chá.
Aquilo era o céu.
- Como você me encontrou, Avaeté?

23
- Eu sempre estive por perto. Conheço seus hábitos. Saberia
onde encontrá-lo. Apesar de não compartilhar seus espaços e suas
atividades, tenho amigos em muitos lugares. Nesse evento, por
exemplo. Estou com meus amigos Mapuche. Os Mapuche são povos
araucanos que vivem do outro lado da cordilheira. Eles estão aqui
para expor as suas lutas. Querem que o mundo conheça sua luta com
os negócios madeireiros. Eu o descrevi para eles. Por isso, Pedro o
procurou naquele bar.
- Eu jamais imaginaria que era você. Na verdade, nem pensei
muito. Estou muito triste e indignado com o que acontece aqui. Você
imagina por quê?
- Não tenho interesse pelo que tratam aqui, Pyá. Estou aqui por
causa dos meus amigos. E por causa de você.
- Mas o que acontece aqui, acontece comigo e acontece com
seu povo, Avaeté! Você não pode ficar alheio!
- Não preciso do seu falar panfletário. Isso é arrogante e inútil.
Uma postura do tipo “errado é você, certo sou eu, vamos à luta.”
Esqueça.
- Não posso, Avaeté. Cada vez a civilização tem mais tecnologia
e poder econômico, criando devastação sobre a natureza e sobre os
povos nativos. É isto que está errado. Temos que parar com esta
corrida de ratos devastadora.
- Meu caro Pyá, você parece um pobre cachorro com medo de
largar o osso e morrer de fome. Se não largar o osso, não terá seu
focinho livre para achar comida. Abandone essa mente teorizante e
olhe para o que está diante dos seus olhos. Largue as coisas
abstratas. Civilização. O que significa isto em termos práticos? Um
conceito de uma vastidão abstrata que não serve de nada. Culpar a
civilização? Culpar os americanos? Culpar os europeus? Culpar os
primeiros agricultores de dez mil anos atrás? De que serve?
Avaeté sempre foi direto e econômico. Mas creio que agora
precisaria usar da lógica do meu mundo para expulsar-me dele.
Continuou:
- Devastação da natureza? Natureza, o que é isto? Ninguém no
seu mundo tem uma idéia clara do que significa “proteger a
natureza”. Se tivesse, estava morrendo de rir do absurdo da idéia.

24
Veja, a idéia não é brega. A idéia é absurda. Só que no mundo
abstrato, você não sabe por quê.
“Povos nativos? O que são? Um mar homogêneo de selvagens do
bem? Uma idéia romântica que muitos de vocês nutrem de uma volta
ao paraíso? Isto é absurdo, Pyá.”
Parando para pensar um pouco, noto que Avaeté tinha razão.
Criamos cruzadas contra inimigos lá fora. E o pior é que são inimigos
impessoais. Criamos conceitos abstratos e os transformamos em
inimigos para manter uma pseudo-educação e impessoalidade para
com indivíduos de carne e osso que estão “do outro lado”. Não
consegui ter oportunidade de concordar com Avaeté. Em seguida
adotou um estilo menos irado e passou a um tom mais socrático:
- Vejamos onde esse raciocínio o levará. A natureza e os povos
nativos estão sendo arrasados pelo poder tecnológico e econômico,
correto?
- Bem, em princípio sim, mas você está me colocando em
dúvida...
- Finja que você acredita no que acabou de falar. Isso não leva a
um conflito do tipo homem versus natureza? Ou civilização versus
povos nativos? Ou, no final, a necessidade de escolher entre
tecnologia e simplicidade no viver?
- Sim, é isto! Este é o conflito básico: tecnologia ou simplicidade!
- Errado, Pyá! Sabe por quê?
- Me diga por que, Avaeté?
- Pense, Pyá! Use a parte mais musculosa e desenvolvida do seu
corpo!
- Eu não sei por onde começar, Avaeté. Apenas me parece que é
um conflito básico que vivemos.
- Vou ajudá-lo. Pelo seu raciocínio, tecnologia é ruim. Logo
ausência de tecnologia é bom, e ausência de tecnologia significa
simplicidade, levar uma vida simples como a dos índios. Certo?
- Colocado de maneira tão clara parece estranho, mas
basicamente é isto.

25
- Aprenda a usar o nariz, Pyá. Se algo cheira mal, pode estar
estragado. Onde está o furo do raciocínio? O que embasa essa idéia
que pode estar equivocado?
- Por favor, Avaeté, eu preciso de uma pista.
- Vocês, “civilizados”, se acham descobridores e donos da
tecnologia? Que idéia absurda, Pyá. É tão absurda quanto dizer que
um italiano a bordo de um navio espanhol descobriu a América em
1492. A tecnologia é algo presente em todas as raças e gêneros
humanos e na maioria, se não em todas as espécies animais.
- É Avaeté, nos achamos donos da América, do conhecimento e
da tecnologia.
- Grande equívoco. Os nativos já viviam aqui antes e tinham sua
própria tecnologia. Isto os fazia maus? Isto os fazia bons? Isto fazia
dos europeus bons ou maus? Nada a ver. Não há sentido nesse
julgamento.
- Está certo, Avaeté. Creio que posso enxergar seu ponto. Não
existe um problema inerente à tecnologia, porque ela não é separada
da natureza. Tecnologia, no sentido mais profundo, como arte,
habilidade, instrumento e conhecimento é inerente ao humano, ao
animal e até mesmo extensivo à natureza. Logo, se a natureza é boa,
a tecnologia não pode ser má.
- Você estava indo bem, mas deu uma escorregada. Não há
problema, chegaremos lá. É essa sua triste mania de julgar. Você tem
o vício de carimbar as coisas como boas ou más.
- Mas não é assim que se julga a maneira correta de viver? O
que é certo e o que não é certo?
- Pyá, você não sabe o quanto é nociva essa idéia. Mas, no
momento, é difícil falar sobre isto. Precisamos estar mais preparados.
Continuemos nosso desafio para iniciantes. Você percebeu? O
problema não é a tecnologia. Tecnologia não é um problema, Ok?
- Ok, e você não sabe o quanto isso me alivia.
- Então, se existe um, qual é o problema?
- Deixe-me mostrar-lhe os fatos.
- Oh, que maravilhoso, não vamos falar abstratamente!
- Não seja irônico, Avaeté. Eu estou falando sério.

26
- Ok, continue.
- As geleiras aqui do parque. Elas quase desapareceram. Isto
não foi terrível? O uso de tecnologia para criar embalagens e
eletrodomésticos e o uso de tecnologia para produzir todo tipo de
bens, décadas atrás, inundou este planeta de gases e aumentou a
sua temperatura. Um problema estético? “Ah, não teremos mais
nossas maravilhosas geleiras!” Não é só isso: todos aqueles que
sobreviviam destas águas estavam em perigo. Quem é o culpado?
- “A tecnologia!” Palmas! Agora vá lá e atire-a na fogueira!
Pronto!
- Você me faz parecer idiota.
- É mesmo, Pyá? Não era minha intenção... Rá, rá, rá, rá, rá!
Você não é idiota, Pyá. Apenas se comporta como um. Rá, rá, rá, rá,
rá!
Avaeté às vezes gargalhava como uma criança, de maneira tão
sórdida e intensa que o que restava era rir com a mesma vontade.
Tentei ainda argumentar sobre os problemas concretos que a
tecnologia trazia, exemplifiquei vários casos, até que Avaeté me
interrompeu:
- Não estamos em condições de levar adiante esta conversa
sobre os problemas da tecnologia nesses termos. Se você quer
alguém para brincar de boxe retórico, encontrou a pessoa errada.
Volte amanhã ao colóquio e procure um bom cientista executivo de
uma empresa de tecnologia médica e faça queda de braços com ele.
Agora, se você quer saber, de uma maneira muito simples e direta,
onde reside a questão que põe por terra esse dilema, continuemos
nossa conversa amanhã. Agora já está tarde, eu desejo dormir, e
aconselho que você também faça o mesmo.
- Puxa, Avaeté, agora que estava esquentando...
- É justamente a hora de parar. Há pouca lenha para o fogo, e
você está adquirindo aquela arrogância intelectual inflada. Há um
longo caminho até que essa tendência desapareça para dar lugar ao
seu coração. Se você deseja esta busca, volte aqui amanhã, ao
entardecer. Eu estarei sobre o cume do cerro. Lá é um lugar de
poder. Lá poderemos ir mais fundo na sua “noite”.

27
Despedi-me amavelmente de Avaeté, sem dizer, mas
transmitindo a alegria de rever meu velho amigo. Notei o mesmo no
seu abraço e nas suas risadas.
A descida do morro foi um pouco mais difícil, pela falta de luz.
Orientei-me apenas pelas luzes da cidade, tropeçando às vezes em
algumas pedras e escorregando pelos barrancos. Consegui localizar o
carro e rumei com faróis altos até as cercanias da cidade.
Sentia certa euforia enquanto rememorava meu encontro com
Avaeté. Apesar de ter sido um guia por aquelas terras de Araxá anos
atrás apenas por uma ou duas noites, sinto-o como uma luz que, de
uma forma ou outra, sempre esteve presente. Agora ele está aqui!
Isto é maravilhoso.
Porém, percebi que nossa conversa rumou numa direção que
não revelou o propósito de Avaeté, ou mesmo do porquê de ter me
procurado. Como eu sou desligado. Nem fui capaz de insistir. No final
das contas, que desejava Avaeté?
Minha sorte é que nos encontraríamos na noite seguinte. Mas
será que ele pretendia passar as demais noites aqui? E depois do fim
do evento? Iria para outro lugar? Poderia encontrá-lo novamente?
Estas poucas noites seriam o que eu estaria esperando de uma
mudança radical na vida? Já na cama, a euforia e os pensamentos me
mantinham em vigília e em expectativa. Procurei induzir um estado
de maior tranqüilidade até a chegada do sono.

3
Não havia planejado uma atividade para aquele terceiro dia de
eventos. Depois dos acontecimentos do dia anterior, fiquei meio
desinteressado por acompanhar mais de perto o que ocorria.
Enquanto tomava café da manhã, passei os olhos pela agenda. Nada
em especial chamava a atenção pelos títulos, até dar-me conta de
que tal diversidade presente tinha que ter muita riqueza e
aprendizagem a oferecer. Passei a imaginar, entre um gole e outro de
café, que talvez algo estivesse escondido sob os títulos. Passei a
focalizar os nomes.
Para ser sincero, eu estava me esforçando para extrair algo
daquilo tudo. Mas o que realmente dominava minhas expectativas

28
era a possibilidade de reencontrar Avaeté logo à noite. Senti que o
dia demoraria demais a passar, mas procurei manter a calma.
Vasculhando os nomes, localizei algo que me chamou a atenção.
Líderes Mapuche estariam em uma mesa redonda com
representantes de negócios agroflorestais, de extração de minérios e
de petróleo fazendo um balanço sobre as conseqüências locais da
expansão ocorrida nas décadas anteriores. Será que Pedro Ruca
estaria presente? Encontrá-lo seria uma maneira de estar próximo a
Avaeté. Se ele é seu amigo, deve ser uma pessoa formidável.
Concluí rapidamente o café e dirigi-me a sala Torres a fim de
chegar a tempo. Passei pelos corredores com a cabeça baixa, para
evitar ser notado pelas indelicadezas do dia anterior. Adentrei a sala
e sentei-me ao fundo. Prestei atenção às pessoas que também
entravam, e identifiquei claramente nativos e representantes de
negócios pelas vestimentas e pela cor da pele.
Pedro Ruca e seus amigos chegaram poucos segundos antes do
início da sessão. Fiquei feliz em localizá-lo. Seu grupo acompanhava
um líder de seu povo que, depois descobri, esteve escondido, exilado
e depois preso por vários anos. Hoje está de volta, tem voz ativa e é
um dos representantes na mesa redonda. Pedro acompanhou-o até a
mesa e depois se sentou na primeira fila da platéia. Como identifiquei
assentos vagos na segunda fila, dirigi-me até lá.
O presidente da mesa iniciou os trabalhos relendo os primeiros
parágrafos do acordo “Repacificación de Araucanía” assinado há
quase uma década, como que instilando um clima de paz para o
encontro. Eu aproveitei que Pedro e seus amigos não prestavam
atenção à abertura e cumprimentei-os:
- Olá, Pedro. Que prazer em revê-lo.
- Olá, Pyá. Desculpe, mas creio que não se importa em chamá-lo
pelo seu nome índio.
Fiquei intrigado sobre como tiveram a oportunidade Avaeté e
Pedro de comunicar-se sobre isso.
- Claro que não me importo, apenas fico surpreso com a
velocidade com que você descobriu.
- Amigo Pyá, você ainda terá que aprender muito sobre a
natureza do tempo, a natureza de antü. Digamos que eu sempre
soube de “Pyá”.

29
Numa atitude de respeito pela sua sabedoria, resolvi não fazer
muitas perguntas. Acreditava que em algum momento poderia
entender isto, entender como outras culturas vêem o que está à
volta, a natureza do mundo e do tempo. Avaeté já havia me ensinado
um pouco sobre como os Guarani enxergavam isso e é um tanto
diferente do que nós, civilizados, pensamos.
Enquanto conversávamos, os debates foram se aquecendo, com
cada um dos participantes fazendo um repasse histórico das relações
entre os negócios, os governos e as comunidades Mapuche na região
da Araucanía. Pedro sugeriu que prestássemos atenção, mas foi
gentil em convidar-me para almoçarmos juntos mais tarde, ficando
próximo ao seu grupo durante aquele dia.
A mesa redonda teve a maior parte da sua atenção voltada para
a discussão das compensações sociais e ambientais que as empresas
vinham cumprindo, apesar do alto custo das mesmas. A posição dos
grupos empresariais era de que vinham cumprindo com o que era
exigido, apesar da perda de competitividade global que isso
implicava. Os governos vinham tentando elaborar leis de proteção e
de compensações, mas isto aparentemente não ia ao encontro do
sistema de vida das comunidades indígenas. Os conflitos foram
muitas vezes a custo de vidas humanas e parece que está longe de
haver paz na região.
Pedro fazia comentários vez por outra com seus companheiros,
dando a crer que “não é por aí”. Comentou comigo:
- Creio que você entenderá se eu lhe disser que os conflitos que
ocorrem na superfície não serão resolvidos na superfície. Temos que
escavar a terra para reconhecer as raízes mais profundas.
Aquilo fazia todo sentido para mim, é claro. Este é o princípio
básico de trabalho de um ecoengenheiro. Fiz algumas anotações para
explicitar o conflito aparente e tentei enumerar algumas causas, a
partir da exposição dos palestrantes. Pedro olhou e disse:
- Um dia você terá que largar tudo o que aprendeu, para
entender coisas mais profundas. O dia em que isto acontecer, você
olhará para si mesmo com outros olhos.
Pedro referia-se a uma mudança que estaria por vir. Eu já a
havia notado, mas imaginava que este desenvolvimento seria
acumulativo: aprendendo mais, sabendo mais. Mas a mensagem que
Pedro me passava apontava em outro sentido: largar muitas das

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coisas que eu acumulei ao longo dos anos. Como estas minhas
anotações.
O encontro caminhou para o seu final com a idéia de que se
deveriam criar mais algumas leis e fazer cumprir outras. Ninguém
pareceu sair realizado assim que se encerrou a sessão. Empresários
com mais cargas sociais e tributárias, comunidades locais tendo a
impressão que nada mudaria e governos com mais tema de casa por
fazer.
Pedro aguardou que se desfizesse a mesa para despedir-se de
seu líder. Foi até ele enquanto eu assistia do meu assento.
- Faça uma boa viagem de volta. Ficaremos aqui até o último
dia, temos mais alguns trabalhos a fazer. – informou Pedro.
- Fiquem em paz. Fico triste por não termos avançado, mas o
caminhar é longo. Até breve.
- Até breve.
Pedro e seus amigos acenaram e vieram ao meu encontro.
Sugeriu que almoçássemos em outro lugar, saindo do hotel.
Caminhamos alguns quarteirões até o que parecia uma ampla casa
residencial. A casa possuía uma grande varanda nos fundos, com
várias mesas. Era uma espécie de restaurante familiar que não
constava em qualquer guia turístico. Uma música que misturava
acordes eletrônicos e bandoneon alegrava o ambiente. Não havia um
cardápio, apenas um ou dois pratos eram servidos. O amigo de Pedro
pediu que fosse servida a todos a especialidade do dia. Em poucos
instantes saboreávamos um assado de tiras com batatas e salada,
acompanhados de vinho.
Enquanto o almoço era saboreado, Pedro e seus amigos
conversavam num tom muito tranqüilo, porém firme, sobre o que
haviam concluído do encontro da manhã. Avaliaram como positivo,
ao final das contas, não pelos resultados objetivos, mas pelo avançar
do diálogo. Permaneci apenas escutando o assunto, até que
encerramos nosso almoço com um chá.
Os amigos de Pedro sugeriram uma pausa para a sesta. Pedro
informou-lhes para ir adiante, pois desejava permanecer um pouco
mais. O que descobri era que Pedro desejava conversar mais comigo.
- Sabe, Pyá, Avaeté pode ter uma incumbência para você que
pode estar além dos seus interesses ou da sua força para executá-la.

31
Avaeté não está aqui apenas para aconselhá-lo até o final deste
colóquio. Ele está aqui para algo mais intenso.
- Você sabe o que Avaeté pretende?
- Honestamente, não sei seus propósitos, mas sei o que ele está
para lhe pedir. Avaeté não é mais um homem jovem. Como um
homem maduro que é, terá sua vitalidade diminuída a cada dia. Por
isso, precisa fazer o que tem que ser feito.
- E o que é que tem que ser feito? No que isso me afeta?
- Não posso adiantar esses detalhes que só Avaeté poderá
informar-lhe. Mas suponho que é algo pelo qual você tem estado
esperando na sua vida. Talvez isto só possa acontecer agora. Talvez
só agora você esteja pronto para a incumbência. Na nossa tradição
também temos passagens que não podem ser precipitadas.
“Quase todo modo de vida nativo neste continente tem isto. Estas
passagens são rituais de religação. Você se reconecta com sua
natureza e com seu tempo. Você se dá conta de quem é e ao que
está unido. Você tece o fio da vida e passa pelo ritual para dar-se
conta disso.”
Pedro ficou horas me falando sobre seus rituais e seu jeito de
viver. Dei-me conta que outro viver implica não só o que está
explícito, como os rituais, a arte, a tecnologia ou os costumes, mas
toda uma maneira diversa de conceber a si mesmo e a vida. Pedro
insistia que estava na hora de novas experiências, porque o que eu
pretensamente vivia como algo diferente em minha vida cotidiana
era apenas superficial.
- Mas, Pedro, eu tenho mudado muito. Dedico-me à busca de um
mundo melhor, mais limpo, mais justo...
- Sua mudança tem sido superficial. Se todos fossem como você
(aliás, você não admite, mas gostaria que todo mundo fosse igual a
você) haveria muito mais catástrofes por este mundo. Ainda bem que
ainda há diversidade. Faça as contas. Quinze bilhões de gafanhotos
“ecologistas” iguais a você. Já parou para imaginar?
Não era preciso. Intuitivamente sabia o que isto significava.
Você apenas não pensa para não sentir o peso.
- Culpa não o ajudará a ter mais consciência. Mais tarde você
entenderá o porquê – surpreendeu-me Pedro.

32
- Parece que você lê pensamentos – disse eu.
- Eu não leio pensamentos. Eu percebo sentimentos.
Ficamos conversando naquele tom manso, sob uma brisa
refrescante, até quase o fim da tarde, quando Pedro sugeriu:
- Vá novamente ao encontro de Avaeté. Leve seu corpo, seu
coração e seu espírito. Deixe a cabeça no hotel.
Sorri com a imagem de um sujeito sem cabeça vagando pelos
campos patagônicos.
- Isto! Leve seu bom humor. Você vai precisar muito – continuou,
sorrindo.
Pagamos nossa conta e tomamos rumos distintos. Fui ao hotel e
troquei a minha roupa por algo mais confortável e aquecido para
enfrentar a noite. Preparei algo para levar na mochila, coisas como
água, alimentos rápidos, capa, agasalhos, lanterna, estas coisas.
Peguei a estrada logo em seguida. Não imaginava o tamanho do que
me aguardava, mas tinha receio que talvez não fosse capaz.

4
Cheguei um pouco antes do combinado ao pé do morro, mas
havia um propósito. Apesar de estacionar no mesmo local, seriam
necessários alguns minutos a mais para alcançar o topo, como
Avaeté recomendou. Ele havia mencionado que aquele era um “lugar
de poder”. Nunca tinha ouvido Avaeté falar nisso, mas não era uma
idéia de todo estranha: “lugar de poder”. Coloquei a mochila nas
costas e comecei a escalada. Havia alguns trechos mais
escorregadios, mas não era preciso ser alpinista para chegar até o
cume. Cheguei a ter um pouco de falta de ar pelo despreparo, mas
em menos de uma hora alcancei o patamar final. A vista era ainda
mais bonita do que a dos pequenos refúgios abaixo, um deles onde
encontrei Avaeté no dia anterior. Fiz uma visualização de trezentos e
sessenta graus e notei Avaeté à distância, aproximando-se com
algum material para o fogo.
- Avaeté! – gritei com intenção de cumprimento.
- Venha, ajude-me. Temos que ter suprimento suficiente para
manter o fogo até a madrugada. Já está anoitecendo.

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Ajudei-o sem muita conversa, até que ele sentiu-se satisfeito.
Sentei-me junto a uma pedra e imaginei se aquele seria um bom
lugar para permanecermos.
- Parece adequado? – perguntou.
- Acho que sim, mas preferia algo mais protegido.
- Protegido? Em que sentido?
- Mais no centro do morro. Sabe, acho que seria melhor se a
cidade não estivesse à vista.
Aquela sensação era esquisita, mas por algum motivo a cidade
poderia me trazer algum desconforto durante nossa conversa.
- Se você acha melhor, eu acho melhor – sentenciou Avaeté.
Buscamos um local de onde houvesse uma vista ainda ampla,
mas não ao alcance das luzes da cidade. Ali fiquei mais à vontade.
- Buscar um lugar de poder é assim, Pyá. É onde você sente-se
centrado. Você está mais centrado aqui?
- Creio que sim.
- Isto é bom. Você vai precisar estar bem plantado no seu
centro, mas despregado de seus conceitos.
- Como isso é possível, Avaeté? Eu sou meus conceitos.
- É o que você pensa. Você pode se despregar de tudo o que
quiser. E vai precisar disto hoje.
Avaeté começava a me preparar para a nossa conversa.
Preparou tabaco para seu cachimbo e mate para nos aquecer.
- Este cachimbo é sagrado. Fumamos para fortalecer o espírito.
Sente-se e aquiete a alma.
Avaeté baforou fumaça sobre minha cabeça e sentou-se
concentrado. Em seguida começou:
- Lembra do que conversamos ontem? Aquilo não era nada
importante. Apenas uma amostra do que serão seus dias e noites.
- Uma amostra? O que você quer dizer? – questionei.
- Não se apresse. Saberá na hora certa. Pensou no assunto?

34
- Assunto? Ah, conversamos sobre alguns assuntos, mas a
questão girou em torno de um conflito, certo?
- Prossiga – recomendou Avaeté, fingindo-se paciente.
- Sim, o conflito da tecnologia ou da simplicidade. Confesso que
não pensei de ontem para hoje, mas tenho pensado muito sobre isso.
- Não pense. Pensar mascara o que você sente. Rá, rá, rá –
gargalhou.
- Não vejo nada de engraçado. Perguntou se pensei no assunto.
Imaginei que você desejasse que tivesse pensado.
- Não! Imaginou mal. Hoje não quero que pense. Quero que
contemple.
- Não é a mesma coisa?
- É claro que não! Pensar é atividade do raciocínio lógico.
Contemplar é atividade da alma. Examine sua língua: contemplar
vem do latim templum, lugar sagrado. Contemplar é estar junto ao
sagrado, notar sua presença, perceber seus sinais. Portanto,
contemple e dialoguemos.
Não entendi como poderia ser contemplativo ao invés de lógico,
mas tratei de tentar obedecer.
- Você quer saber que direção tomar nesse conflito. Oscila entre
um pólo e outro. Quer uma resposta. Pois lhe digo está no caminho
equivocado. Contemple o conflito, e você chegará ao construtor de
caminhos.
- Construtor de caminhos?
- Sim. Aquilo que produziu o conflito e colocou você lá. Sabe
quem foi? Algum demônio que se diverte vendo-o perdido? Não. Você
mesmo fez o caminho e se colocou lá. Você e seus comparsas. Suas
idéias. Para um índio, não faz sentido essa questão. Ambas são
partes de um mesmo caminho. Vivemos outros conflitos, mas nunca
perdemos de vista quem os construiu. Sabe como vemos esse seu
conflito?
- Estou ansioso por saber, Avaeté – falei com a curiosidade e a
abertura de uma criança.
- Mbyacuí – sentenciou.

35
- Como assim, mbyacuí?
- Mbyacuí – repetiu. É assim que vemos vocês, Pyá. Gente do pó.
- Não estou entendendo.
- Vocês, Pyá, autodenominados “civilizados”, são gente do pó.
Sabe como chamamos areia? Itacuí. Pedra fragmentada. Vocês são
um povo fragmentado, Pyá. Partiram o ser humano em corpo, mente,
alma e coração. Partiram o mundo em países. Partiram a terra em
propriedades. Partiram o sagrado, e apartaram Deus, ser humano e
natureza. Todos irreconciliáveis. Todos em conflito.
Aquela era uma visão arrebatadora. Nossa faca analítica,
durante séculos e séculos, partindo e repartindo tudo o que via.
Partimos para nos apropriar. Apropriar-nos por força do
conhecimento, nos apropriar por força do desejo de possuir, nos
apropriar por força de estar no controle da nossa própria vida. Não
queríamos mais estar nas mãos de deuses caprichosos. Queríamos o
poder de estar acima das incertezas. Por isso, partimos, repartimos e
nos apropriamos.
- Pyá, vocês são gente do pó. Gente isolada nos seus interesses
próprios e nos seus apartamentos. Que imagem vem a você um local
de enorme quantidade de areia?
- O deserto.
- Sim, o deserto. Seu mundo é um deserto, Pyá. Você é um grão
de areia num deserto. Isolado. Isolado no meio da multidão. Assim
como seu vizinho. Solitários. Vocês, Pyá, civilizados, são seres
solitários, isolados, desconectados. E da desconexão nascem os seus
conflitos.
- Como assim, Avaeté?
- Eu tenho uma maçã para você! – e remexeu sua bolsa até
achar uma maçã, estendendo-a para mim.
- Não fique de brincadeira, Pyá. Eu estou falando sério.
- Não fale a sério. A vida não é séria. Rá, rá, rá, rá. Tome esta
maçã!
Tomei a maçã, mas achei que era troça. Fiquei desconfiado.
- Vamos, faça o que tem que ser feito.

36
Tomei a maçã e apoiei-a sobre uma pedra lisa. Apanhei meu
canivete e partia-a ao meio. As duas metades começaram a rolar,
mas fui rápido o suficiente para salvar uma delas de cair no chão.
- Viu o que eu disse? – inquiriu Avaeté.
- Não vi nenhuma ligação entre o que aconteceu e o fato de
sermos gente do pó, Avaeté.
- Não seja preguiçoso. Quando você colocou a maçã sobre a
pedra, ela rolou?
- Não, ela estava em equilíbrio.
- E quando você partiu a unidade, o que ocorreu?
- Ela não era mais uma unidade. Eram duas metades, cada qual
com o seu centro de gravidade alterado.
- E...?
- Cada uma foi para um lado.
- Conflito! Cada uma tem o seu interesse, agora. Cada metade
quer encontrar seu novo equilíbrio. Cada uma quer ir para um lado. E
o que você, mbyacuí, faz? Culpa! Culpa a metade que caiu no chão,
culpa a pedra que permitiu esse desequilíbrio, culpa o agricultor que
produziu maçãs irregulares, culpa o governo por permitir uma sem-
vergonhice dessas e culpa até mesmo a lei da gravidade! Culpa
todos, menos sua mão e seu canivete. Que vergonha, Pyá! Você não
está envergonhado?
Falou isto num tom tão sarcástico, que desatei a rir. Gargalhei
muito até quase chorar.
- Ok, Avaeté, sua idéia é muito clara. Mas o que isso tem a ver
com o conflito de que falamos, o conflito da tecnologia?
- É a mesma coisa. Você culpa a tecnologia, culpa a metade da
maçã que caiu no chão. É um equívoco! Olhe para todos os seres que
usam tecnologia neste mundo, exceto vocês, Pyá. Eles parecem
infelizes por isso?
- Não, não parecem.
- É claro que não! Sabe por quê? Porque a tecnologia, como
vocês assim a chamam, é o veículo para o sagrado, Pyá. Sabe o que
fazemos quando produzimos ou usamos o arco, a flecha, os

37
instrumentos de pesca, as técnicas de plantio e colheita? Sabe o que
acontece quando obtemos sustento através deles?
- Diga-me, Avaeté.
- Rituais. Para quê? Porque é bonito? Não: porque isto religa. O
ritual é uma maneira de religar-se ao sagrado. De reconhecer que
não estamos perdidos. Que estamos no caminho de ser uma unidade
com o divino. Vocês, Pyá, perderam a conexão. São gente
desconectada. Desconectada de Deus? Não. Nunca houve tanto
cristão, judeu ou muçulmano na face da Terra. Desconectada, isto
sim, do sagrado. Desconectada da grande fonte de energia.
Desconectada da Vida.

5
Avaeté tinha o poder de esclarecer as coisas de uma maneira
tão direta que me assombrava. Que clareza! Enquanto a gente fica
aqui, amarrado por uma teia de pensamentos incoerentes, existem
seres iluminados que, com um comando ao nosso olhar, nos tira
daquele emaranhado. Ah, como eu gostaria de ter uma clareza
tranqüilizadora como essa...
A idéia presente no que Avaeté demonstrou dissolve por
completo a idéia de um conflito entre o uso do poder tecnológico
como contrário a uma vida simples e boa. A vida pode ser simples e
sofisticada desde que você...
- Esteja conectado, Pyá. Esteja conectado em tudo o que você
faz. Esteja conectado no seu dia-a-dia. Reconecte-se em cada coisa
que você faz. Reconecte-se com as origens daquilo, reconecte-se
com as conseqüências dos seus atos, reconecte-se com todas as
pessoas e seres que ajudaram a criar aquele momento.
- É, na fragmentação da nossa vida civilizada, perdemos a
conexão. Isto é triste.
- Não se torture, Pyá. Não há nada de inerentemente errado com
você e seus semelhantes mbyacuí. Só esta pequena questão: vocês
são desligados.
Dito isto, Avaeté fumou mais algumas baforadas do seu
cachimbo. Eu olhei para o horizonte e notei que já havia anoitecido
por completo. Aquele mar de estrelas estava novamente presente.

38
Naquele escuro destacavam-se apenas as estrelas, o fogo e nós, à
sua volta. Fiquei admirando o dançar das labaredas.
Nossa busca pela certeza, na ânsia por tomar o controle da vida
nas nossas próprias mãos e tirá-la das mãos dos deuses, nos levou a
um caminho de busca de conhecimentos e verdades absolutas.
Saímos pelo mundo à cata de emancipação, na busca pela verdade,
inventando instrumentos para ajudar nesta busca. Nossos olhos
voltaram-se para o conhecimento definitivo, a verdade.
- Mas, veja, Pyá. Mbyacuí só considera verdade o que pode ver.
Se mbyacuí não enxerga, não existe. Só que ele só vê o que é do seu
tamanho. Por isso, só se ocupa do que mede entre um grão de areia
e um Monte Everest. Só considera o que dura entre um piscar de
olhos e uma geração. Essa é a dimensão de mbyacuí.
- Pois é, Avaeté, na nossa obstinação por encontrar a verdade,
utilizamo-nos de métodos que fragmentaram o tempo e o espaço,
criando um mundo do aqui e agora, que nos afastou da vida, tal qual
ela é, muito maior que aquilo que vemos. Estas fragmentações, que
levaram a conflitos dentro das nossas cabeças e dentro da nossa vida
coletiva de povos e nações, estão nos levando a inúmeras mazelas.
Por isso, diante das mazelas da nossa civilização, notamos um debate
e uma dúvida sobre uma volta à experiência da vida, tal qual ela é,
ou se continuamos a construção do castelo do conhecimento.
- Essa é a mesma dúvida sobre continuar a criar um mundo de
tecnologia ou um mundo de retorno à natureza. Pyá, abra seus olhos.
A pergunta não faz sentido, pois traz em si a semente da
fragmentação e a dicotomia.
“Meu querido, vocês são uma sociedade de construtores de
fortalezas. Fortalezas de certezas que cada um pretende dominar.
Fortalezas de uma só pessoa. Hordas de fortalezas. Hordas de ilhas
de solidão. Reconecte-se, Pyá. Religue-se.”

6
Ficamos em silêncio por um razoável tempo. O diálogo criou em
mim sentimentos confusos. Sentia alívio pelo distensionar do conflito,
por um lado, e um abismo exatamente pela idéia que o dissolveu.
Lembrei-me das faces das pessoas que participavam do evento.
Indignação, desesperança, cinismo, hipocrisia contrastando com

39
fanatismos, paroquialismos e idolatria a gurus. O que mais me
abismava era como eu estava identificado com tudo isto. Nos rostos
que via, um reflexo de mim mesmo. Era como se a repulsa àqueles
que me rodeavam fosse uma projeção da minha própria miséria, uma
repulsão de mim mesmo. Fiquei mergulhado nestes devaneios
psicanalíticos até ser acordado por Avaeté.
- Pare com essa autocomiseração, Pyá! – exclamou Avaeté,
irritado.
“Pare de sentir pena de você e dos seus colegas. Você acha que
autocompaixão pode salvar seu mundo. Você quer salvar o mundo,
Pyá? Isso é de uma demência completa. De onde você tirou essa
idéia estapafúrdia? Você anda vendo muito filme ‘anti-american-way’.
Eles estão loucos e estão enlouquecendo você. Caia fora! Desfrute!”
- Mas como, Avaeté?
- Crie uma nova maneira de fazer as coisas.
- Os hippies tentaram e se deram mal.
- Eles não se deram mal. Apenas não sobreviveram. Quer ver
como eles não se deram mal? Estamos aqui falando deles. O espírito
hippie está aqui, agora, nos aconselhando.
- Ok, mas no que isso nos ajuda, Avaeté?
- Os hippies, assim como a maioria das almas iluminadas, não
estão em conflito entre salvar o mundo ou salvar a si mesmos e
desfrutar. Não há carga. Não há culpa. Apenas experiências plenas de
viver que podem oferecer caminhos.
- Sua vida é uma dessas experiências?
- Sim. Eu preciso achar saídas para meu povo. Mas não sou o
único. Muitos no meu povo estão experimentando saídas. Há alguns
de nós, por exemplo, que buscam saídas por dentro do seu mundo,
Pyá. Eles estão estudando no seu sistema. Buscando saídas por
dentro do seu sistema.
- E isso não representa um peso para você e todos esses? Não é
algo muito grande, ser responsável pela sobrevivência de todo um
povo?
- Sim e não, Pyá. Compreenda que não há dicotomia: eu vivo
uma vida plena, assim como os índios que estudam direito ou

40
filosofia nas suas escolas. Minha vida plena é uma vida de
experiências. Sem compromisso de ter certeza. Apenas buscando
mais um caminho. Se este caminho der certo, meu povo agradece.
Senão, agradece também, pois foi um caminho de aprendizagem.
Como os hippies, os beats, e tantos outros.
- E o que isso tem a ver comigo, e com você estar aqui, Avaeté?
- Meu caminho cruzou seu caminho, Pyá. Não podemos fugir
disto. Eu sou um homem que vive nas frestas dos modos de viver
deste mundo. Entro e saio deles, sobrevivo através deles. Sou um
homem só, mas não solitário. Agora, chegou a hora de ensinar a
alguém este viver. A Vida o colocou aqui, Pyá.
O que significava tudo isso? Que Avaeté havia me escolhido
para ser seu seguidor? Seu discípulo? A idéia em si era maravilhosa.
Desfrutar da companhia de Avaeté, estar junto com ele, isto era
fantástico. Mas em que bases isto seria? Ele iria viver na minha
cidade? Trabalharia comigo? Daria conselhos nos meus projetos?
- Avaeté, você está dizendo que para me ensinar estaria
disposto a viver no meu mundo?
- Você é muito engraçado, Pyá – disse, às gargalhadas. – Quer
mudar sua vida, mas não está disposto a mudar seu estilo de vida.
Isto é muito engraçado.
- Falo sério, Avaeté.
- Ensinarei o que você precisa em outro mundo. O mundo das
frestas para uma nova vida. Um mundo viajante.
“Ao longo da história, nós Guarani sempre tivemos um quê de
nomadismo. Nossa tradição indica a existência da terra sem males,
yvy maraney. Do outro lado do oceano é a terra sem males. É yvy
maraney que buscamos. É uma busca não só geográfica, mas
temporal, filosófica e religiosa.
- Um mundo viajante?
- Pyá: o que eu tenho para propor a você exige uma decisão
profunda em sua vida. Para aproveitar tudo o que há neste mundo
maravilhoso você terá que abrir mão das migalhas que você dispõe.
Você acha que essas migalhas são tudo o que você tem e não pode
abrir mão delas. Para aproveitar a vida, você terá que largá-las. Se
você o fizer, experimentará a vastidão sem fronteiras da liberdade

41
suprema. No mundo viajante, você conhecerá locais de poder e
beleza, povos de poder e lições de vida.
- Mas como é essa vida, Avaeté? Terei que deixar meus amigos,
meus colegas? Terei que deixar para trás meus projetos, minha
profissão, meus planos?
- O que eu estou propondo é uma viagem. Uma viagem de
aprendizado. Você vai aprender a viver como eu. Depois que
aprender, faça o que quiser da sua vida. Enquanto isso, terá que abrir
mão do que tem.
Tendo dito isso, Avaeté apagou seu cachimbo e esticou-se sobre
uma pequena esteira, com o intuito de descansar numa posição
horizontal. Imaginei que desejasse dormir. Imaginei que Avaeté não
falaria mais sobre o assunto.
Tinha muitas dúvidas. Mas não eram só dúvidas. Eram medos. O
que Avaeté propunha era como um atirar-se num abismo, do qual
nada se leva, e no qual não se sabe o que há. Exigia um ato de fé.
Exigia um desapegar-se fundamental. Era isto pelo que eu tanto
ansiava? Esta era a mudança? Assim, radical?

42
Avaeté

Três

43
1
Debati-me na cama. Não havia como ser diferente. Não queria,
mas ficava alternando entre imaginar como seria essa viagem com
Avaeté e entender o que significava abandonar tudo o que tinha.
De um lado, os meus projetos pessoais, meus amigos e
familiares, minha reputação, minha segurança profissional, isto sem
falar na minha segurança financeira. De outro, uma vida de
aventuras, de aprendizagem, de sabedoria e de expectativa pelo
desconhecido. Passaria a viver no fio da navalha, completamente nas
mãos da Vida. Sem planejamento. Sem previsibilidade. Medo. Esta
era uma palavra que acreditei não existir no meu dicionário. Sempre
me senti destemido, corajoso, com iniciativa. Mas agora eu estava
diante dele: o medo.
“Medo de quê?” – me perguntava. Você cria sua fortaleza
pessoal para não ter medo. Busca estar protegido do ridículo, da
exclusão social, do passar necessidades, de precisar ajuda, das
incertezas, do sofrimento. Agora Avaeté está sugerindo: saia de
dentro da sua fortaleza e viva! Não é assim tão fácil.
Levantei com uma cara péssima. Olheiras visíveis denunciavam
uma má noite de sono. Estava desconcentrado do que fazia. Nem
lembro o que tomei no café. Não sabia para que lado iria ou o que
faria. Era a última manhã do colóquio, muitos já haviam deixado a
cidade. Arrastei-me como um zumbi até o salão central. Havia alguns
poucos grupos conversando. Alguns se despediam. Sentei-me numa
poltrona, das várias colocadas ao redor do salão, e fiquei lá, aéreo.
Alguns conhecidos passavam, cumprimentavam-me, mas davam-se
conta que havia um ser autômato do outro lado.
- Você está bem? – perguntavam.
- Ãhn? Ah, não se preocupe, está tudo bem – dizia eu,
despistando.
Dificilmente alguém conseguiria tirar-me daquele torpor, até
que uma voz feminina quebrou o timbre comum de vozes e “olás”:
- Você tem dificuldade para abrir-se. Precisa arejar o que há aí
dentro. Caso contrário, em breve tudo estará mofado.
- Como? – levantei os olhos e percebi diante de mim Miguelina
Toledo, uma das amigas de Pedro Ruca.

44
- Em casa fechada o vento não é capaz de expulsar os
demônios. Abra suas janelas.
- É o que lhe parece?
- Você só tem aberto sua fortaleza para enviar cavaleiros em
batalhas. Sua riqueza interior está trancada.
Decidi que não iria argumentar com Miguelina. Nos últimos dias
isto tem sido difícil. Parece que todo mundo que se aproxima tem
alguma verdade reveladora incontestável para me contar. Miguelina
continuou:
- Talvez exista uma janela entreaberta. Ajude-me a localizá-la.
- Há muito tempo não me defrontava com meus demônios
interiores. Alguma coisa os colocou em polvorosa.
- Deixe-me contar-lhe uma coisa. Quando eles exageram,
acabam intoxicando tudo, inclusive a eles próprios. Se você for capaz
de escapar, pode salvar-se de ir para o esgoto com eles.
- Ok, ajude-me a assoprar um pouco através dessa janela.
Miguelina pediu-me que a abrisse um pouco mais. Eu aproveitei
e expus o dilema:
- Estou diante de uma proposta sedutora, mas que exigirá um
desprendimento que nunca tive na vida. Gostaria de viver uma nova
vida, mas não gostaria de abandonar as coisas que me são caras.
- Você tem filhos? – perguntou Miguelina.
- Não – disse eu.
- Sim, você tem. Mas eles são de outro tipo. Você sabe... Eu sou
mãe. Meus três filhos têm mais de vinte anos. Eles são adultos. Já
passaram por todos os rituais necessários para tornarem-se adultos.
Sabe para quem eu os criei? Para mim? Não, é claro que não. Eles
foram criados para a Vida. Para dar seqüência ao milagre. Você
imagina um desapegar mais dramático que entregar seus pequenos
para a Vida?
- Imagino que não.
- Definitivamente, não, Pyá. Porém, esse momento de entrega é
muito mais doloroso se você os cria para você. Se você se considera
dono dos seus filhos. Como dono dos seus filhos, você os

45
superprotege, criando fortalezas das quais eles não ganham a própria
liberdade. Sua missão é dar-lhes a chama da vida, não grilhões.
Quando isto não acontece, quem está falando mais alto é seu medo
egoísta de perda. Seu ego fala: “Ora, fui eu quem gerou e criou
aqueles pequenos. Eles são meus!”
Não conseguia ter uma idéia vivencial daqueles sentimentos,
mas acreditava poder compreendê-los. Ela prosseguiu:
- Você também tem medo de perder seus filhos. Seus filhos são
o que você nutriu: os projetos de vida, as relações familiares, os
amigos, os alunos, a reputação, os colegas de trabalho, os livros, as
palestras, a fama. Agora, tenha uma coisa em mente: eles não são
seus, no sentido de sua propriedade. Eles são capazes de viver sem
você. Você não é importante para eles. Entendeu? Existe uma
interdependência entre você e eles, mas você não é essencial para
que eles sobrevivam. Tem noção da extensão disso?
- Miguelina, isso é tocante. A pequenez que você não quer
assumir.
- Somente assumindo esta pequenez é que você pode fazer o
trabalho essencial. É aí que você se torna grande. Deixe-me contar
uma história. Você já ouviu falar dos Terena?
- Sim, é um povo nativo do Pantanal, no coração do continente,
correto?
- Isto. Você sabia que eles não possuem pronomes possessivos
na sua língua? Não existe “meu”, “teu“ ou “nosso“. Tem uma idéia do
que isto significa? Não existe “minha mulher”, “meu marido” ou “seu
cavalo”. Propriedade, em qualquer sentido, não faz sentido para os
Terena.
Disse para ela que achava isso “muito doido”. Miguelina
continuou dizendo que era verdade, e que naquele momento eu
deveria pensar nos meus “filhos” como os Terena.
- Eles não são “seus” – ponderou ela.
- Entendo, Miguelina. Porém, uma coisa é compreender isso
racionalmente. A outra são os próprios sentimentos. E os dos outros.
Veja: se eu abandonar tudo o que tenho, as pessoas vão ficar
decepcionadas, vão se sentir como que deixadas “na mão”. As
pessoas que o amam ficarão magoadas. Você estará agindo mal.

46
- Para fazer uma viagem como essa, não se pode ser bom
amigo, bom filho, bom irmão. Veja você: preocupado com a auto-
imagem. Quer ser considerado uma pessoa boa, por isso precisa
ficar.
- Você precisa ser bom para aqueles que ama!
- Quem o ama de verdade quer o melhor para você. Quem o
ama de verdade não quer que você seja bom. Quer que você seja
livre!
- Como eu disse, Miguelina, falar é fácil. Sentir é outra coisa.
Sentir tristeza, saudade, melancolia, arrependimento...
- Amigo Pyá: não tenha medo de sentir tristeza. A tristeza o faz
crescer. O apego à tristeza é que o mata. Fique triste. Sinta com todo
o coração a tristeza. Depois abra a porta e deixe-a sair. Ela não terá
como ficar.
“Veja: falo isto para que você possa sentir uma brisa renovada na sua
janela. Não é a verdade absoluta. É apenas uma maneira diferente de
enxergar as coisas. Aceitar esta maneira é algo que só seu reizinho
interno pode decidir. Converse com ele. Decida. E não se arrependa.
Nós confiamos em você.”
Dito isto, Miguelina pegou meu rosto entre suas mãos e beijou-
me a testa. Em seguida, saiu em direção à porta principal. Abanou-
me através do vidro e desapareceu.

2
Fiquei por ali um pouco mais, observando o movimento que se
desfazia, tomando vez por outra um café, um chá ou um refrigerante.
Quando aproximou-se do meio-dia, estava um pouco sem fome. Subi
ao quarto e sentei-me junto à janela, mirando parte do lago. Servi
uma dose de uísque, comandei um pouco de música e mantive-me
ali, a meditar.
Estava claramente ponderando. Fazendo um balanço de lucros e
perdas de cada opção. Esta ponderação levava, ao final das contas, a
um balanço dos meus medos mais interiores.
Medo do incerto. Medo da falta de domínio. Medo de expor-me.
Medo da perda de controle. Medo da perda de poder. Medo de estar

47
procedendo mal. Medo de estar errado. Medo de entrar num beco
sem saída. Medo de não haver volta. Medo da falta de grana. Medo
da solidão. Medo de sofrer. Medo de levar uma vida não-significativa.
Medo de não ser “o cara” (que eu acho que sou). Medo de perder a
identidade. Medo de não ser ninguém.
Coisas acumuladas dentro da fortaleza. Vejo na minha avaliação
patrimonial como acumulei lixo. Avaeté tem razão. Estou gordo.
Gordo de apegos que vão atrofiando-o. Imobilizando-o. Tornando-o
inflexível.
Mas, e agora? Para deixar de ter medo, não basta saber da sua
existência.
Ah, que droga! Dane-se! Chega dessa conversa chorosa. Chega
de lamentos.
- Turn the music on.
- Album, open.
- Genre, sort.
- Rock and roll.
- Shuttle.
- Play.
“…I'm more afraid of living
Than I am scared to die...”
Guitarras aéreas. Baterias bombantes. Baixos a mil. Mais uma
dose. Uhuuuu!
Velhos tempos de sonzeira. Velhos parceiros de trago. Tardes,
noites e madrugadas. Ah, o gosto da juventude. Estrada, barraca,
rango. Violão, danças célticas ao fogo. Viagens alucinantes na
madrugada. Vaga-lumes em barracas infladas como balão. Monstros
à solta.
“…What have you found? The same old fears.
Wish you were here…”
Ah, meu velho! Que saudades. Como eu queria te ter aqui,
pacificando meu coração. Os velhos conselhos. Falar de filmes e

48
discos. Assar churrasco. Comer feijão à beira de cânions
esfumaçados.
- Stop.
- Find “Eric Clapton“.
- Play.
- Replay.
- Find “The Band”.
- Play forever.
“... Tchudjá, tchumdjum, tchudjá, tchumdjum, tchudjá,
tchumdjum,”
Não! Não dá! Vamos parar com este enlouquecimento. Isto não
está acontecendo. Ninguém me convidou para nada. Minha vida vai
continuar igual a sempre. Vai seguir seu curso. Sem explicações. Sem
elucubrações. Sem rompimentos. Fazer o que tem que ser feito.
Resolvido.
- Turn the motor on.
- GPS on
- Route, open route list #6.
- Turn radio on.
- Seek, “metal station”.
- Go.
Planejar discurso a apresentar a Avaeté. Não deixar expressão
de dúvida. Manter a voz calma. Passar a sensação de centramento.
Decorar um argumento irrefutável. Desligar o motor. Trancar o carro.
Nunca se sabe.
Escalar a montanha. Que frio! Tremo de frio! Sim, tremo de frio!
Só pode ser o frio! Andar mais rápido. Correr. Aquecer-se. Olho para o
céu e vejo um caminhão espacial. Alucinação? Não agora, não!
Manter a calma. Inspirar. Um, dois, três, quatro. Expirar. Um, dois,
três, quatro, cinco, seis. Baixar ritmo cardíaco. Ir com calma. Beleza.
- Jogue sua máscara no penhasco. – falou calmamente Avaeté.
- Ãhn?

49
- Máscara – apontou o próprio rosto. – Penhasco abaixo.
- Não, Avaeté. Pare com isso. Você quer me desestabilizar. Isto
eu não vou permitir.
- Jogue. Jogue o personagem montado fora. Aqui não é um
palco. Somos só você e eu. Não há platéia. Não há direção. Não há
roteiro. Não é preciso máscara. Não é preciso personagem.
- Não há máscara nem personagem.
- Tipo durão? É você mesmo que está aí?
- Vá se danar, Avaeté. Você veio até aqui para me tirar dos
trilhos. Dos trilhos de uma vida com propósito?
- Na vida não há que se ter propósito. Uma vez que não haja, só
aí o propósito é útil. Na vida você tem que viver fundo aquilo que
você está aqui para viver. Isto é tudo.
- Mas eu levo uma vida honesta, céus! Eu vou fundo! Você quer
me confundir. Decidiu me trazer para cá para me confundir!
- Não. Foi você que veio. Você que acha que tem que mudar.
Você que acha que está confuso. Você que está inquieto. Sua voz
interior que lhe diz que há algo errado.
Droga! Chutei várias pedras penhasco abaixo. Uma, duas, três,
droga! Aaaaaaahhhhhh! Gritei bem alto. Perito Moreno deve ter
escutado. Sentei-me. Longe daquele demônio.

3
Observava o resto de sol emitindo raios por baixo das nuvens.
Sem saída, a não ser pedindo ajuda. Onde está você, meu velho? Um
sinal. Envie-me um sinal qualquer. Se não houver um, desço e deixo
esse índio aqui. Deixo esta cidade e pronto. Nunca mais pensar no
assunto. Um relâmpago, um trovão, uma voz do nada, qualquer coisa
improvável.
Estava sentado junto à beira do penhasco no mesmo lugar onde
já estivera nas noites passadas. Havia uma imensidão à minha frente.
Apoiava-me sobre meus dois braços estendidos para trás, com o
peito aberto recebendo o vento noroeste, gelando minhas pernas.
Tudo o que havia era aquele vento frio.

50
De repente, senti um sopro leve em uma de minhas mãos
estendidas. Uma brisa localizada, como a de insetos rondando.
Insetos, não há muitos por aqui, mas isto não é um sinal. Puxei de
leve a mão sem olhar. De novo. Era mais como uma baforada. Olhei
para minha mão. Um cão! Ah, não! Um vira-lata. Magro. Assustou-se
quando puxei repentinamente a mão. Mas logo voltou. Mas que diabo
faz um cão aqui?
Olhei fixo para ele. Ele pôs-se em posição de querer brincar.
Correu para um lado. Parou. Correu para o outro. Parou mais uma
vez, agachado sobre as patas dianteiras. Saí correndo atrás dele.
Fugiu. Escondeu-se. Retornou. Trouxe um graveto na boca. Tomei
dele. Atirei longe. Foi. Buscou. Não me devolveu. Mágico!
- Rá, rá, rá, rá! – riu Avaeté de maneira incontida. Não se
elocubre em excesso com a presença de um cão. Um cão não é um
sinal. Afinal, para que foi feito um cachorro? Para “cachorrar”! Hi, hi,
hi! Ele pertence à estância aí do pé do morro. Resolveu me
acompanhar até aqui, hoje. Nada demais.
- Você tem uma ironia esquisita, Avaeté! Quando algo é mágico,
você diz que é corriqueiro. Quando é corriqueiro, faz com que seja
mágico. Não entendo você.
- Não fui feito para ser entendido. Sua triste mania de tentar
entender. Não entenda. Viva!
- Avaeté, você não merece. Mas tomei este cão como um sinal,
vindo de um local que eu confio. Das poucas coisas que aceito que
cuidem de mim. Das poucas coisas irracionais que aceito na minha
vida.
- É uma fresta, mas acho que podemos começar com ela.
Precisa expandir essa fresta.
- Já sei, já sei. Aceitar que eu preciso aceitar ajuda. Aceitar o
irracional.
- E muito mais. Aceitar o incerto. Aceitar que você não sabe.
Aceitar a liberdade de não saber. Experimentar estar nas mãos dos
deuses. No fio da navalha. Experimentar ser ninguém. Jogar-se no
abismo. Conhecer as cavernas do centro da Terra. Seus monstros. E
seus paraísos.
- E as pessoas que amo?

51
- Elas o amam. Desejam o melhor para você. Como esse
cachorro, que o ama. Não precisam de você. Você não é
indispensável. Apenas amam você. Um dia você morreria de qualquer
forma. Um dia voltará, contará as aventuras e festejarão como nunca
o grande milagre do viver.
Fiquei caminhando com as mãos nos bolsos e os olhos na
abóboda celeste acima de mim. Caminhei para disfarçar minha
aflição e meus tremores. Estava ali, diante do maior amigo que
poderia ter nesta vida, a ponto de dizer-lhe sim ou não. A ponto de
partir o coração de alguém com uma resposta ou outra. E a ponto de
fazer uma decisão radical que mudaria para sempre o curso.

4
- Muito bem. Quando partimos? – perguntei num impulso.
Cheguei a ter uma vertigem. Não acreditei que tinha realmente
dito aquilo. Acho que meu cérebro encheu-se de vários químicos com
nomes que terminam com “-mina”. Agachei o tronco, pus minhas
mãos sobre os joelhos e procurei respirar mais fundo. Não funcionou,
meu corpo pendia para um lado e outro e então me sentei. O cão
lambeu minha mão direita, latiu duas vezes e abanou o rabo.
- Estou orgulhoso de você, Pyá. Passou num teste difícil, talvez o
mais difícil, dado seu despreparo. Não há problema, você vai se
preparar para uma nova vida.
- Não sabia que teria testes para cumprir.
- Não são testes como os que você passa para seus alunos. Seus
alunos têm que aprender sem prazer para depois serem testados
com temor de ser reprovados. Não é nada disso. São muito mais que
isso. São provas de libertação. A aprendizagem é a prova. Você não
precisa ser testado. A liberdade é sua medida de auto-aprovação.
- Entendo. Atemorizante, mas instigante. Quem sabe um dia
posso voltar e criar um sistema de ensino para meus alunos que seja
assim.
- Seria a glória – sentenciou Avaeté.
- Ok. E para essa viagem-aprendizado, o que teremos que levar?

52
Comecei a imaginar a necessidade de conseguir vários materiais
de viagem e acampamento. Pensei numa mochila grande o suficiente
para levar roupas, suprimentos, equipamentos, medicamentos,
barracas, pertences pessoais, livros e guias. É, teria que ser uma
mochila grande, mais uma bolsa para caber tudo.
- Tudo o que você precisa já está entre seu cabelo e a planta de
seus pés. Quanto ao adicional, coloque tudo o que conseguir ou
desejar numa pequena mochila de trinta litros – orientou Avaeté.
- Mas isso é impossível, Avaeté! Não sobreviveremos mais de
uma semana com suprimentos de uma mochila de trinta litros!
- Não viveremos do que você carrega nas costas. A Vida nos
suprirá do que precisamos.
- Mas como teremos certeza de achar o que precisamos pelo
caminho? A menos que tenhamos muito dinheiro...
- Ah, as certezas. A viagem que faremos não precisa de muito
dinheiro nem de muito suprimento. Lembra que eu falei que seria
uma viagem de libertação. Como você quer se libertar carregando o
que mais o aprisiona?
- Não entendo como isso pode ser possível.
- Não entenda, apenas confie. Olhe para mim. Tenho cara de
principiante no assunto?
Como poderia ter esquecido isto? Avaeté é um homem vivido.
Tem marcas que denunciam o tipo de vida que leva. Seria capaz de
viver em condições muito adversas. E ainda, por cima disso tudo,
deve ter amigos por vários lugares. Deve ter amigos muito legais,
assim como Pedro Ruca e Miguelina Toledo. Gente muito boa.
- A vida na estrada requer leveza, Pyá. Se você não está leve, só
sobram duas opções: ou você morre, ou você se estabelece.
“Deixe-me contar-lhe uma coisa. A vida existente nas frestas do
mundo é muito rica. Rica de alimentos para o corpo, rica de
alimentos para a alma e rica em vida. Os que estão nas bordas da
transformação não são poucos, Pyá. Se você prestar bem atenção,
verá milhares de seres, senão milhões, vivendo nas mãos dos deuses.
E eles escrevem livros, estão em comunidades reais e virtuais, e
podem ser encontrados facilmente. É só saber procurá-los. Seres
caminhantes de várias espécies, viajantes em tempo integral,

53
nômades por iniciativa própria ou por necessidade de sobrevivência,
mambembes, voluntários e grupos tribais nas mais diversas formas. E
também fazem parte deste mundo seres humanos estabelecidos que
ajudam os andarilhos. Você visitou um restaurante na cidade que
poucos conheciam, certo? Foi lá com Pedro. Pois lá é lugar de gente
que ajuda os andarilhos deste mundo. Foi barato comer lá, não foi?
Mesmo se você não tivesse dinheiro, haveria como comer em troca
de algum favor.”
- Nunca prestei atenção, Avaeté. Acho que sempre andei em
outra freqüência.
- Desligado, na verdade. Não importa, agora você vai ligar seu
rádio. Lembre-se: como não queremos morrer nem nos estabelecer,
você levará pouca coisa consigo.
- Ok. Mas existe algo essencial? Algo que não pode ser
esquecido? – indaguei, pegando rapidamente meu caderno de notas
digital.
- Sim. Há duas coisas essenciais.
- Estou pronto para anotar.

5
- A primeira coisa importante que você deve levar consigo é sua
língua.
- Ãhn? – resmunguei, boquiaberto.
- Sua língua. Não sua língua física. Estou querendo dizer sua
linguagem. Chamamos de avanhe’em. Língua de gente.
- Mas uma linguagem é algo intrínseco a todos nós, Avaeté. Eu
não precisaria lembrar de pegá-la e carregá-la. Nós somos feitos de
linguagem, assim como de carne e osso. Você não precisaria me
lembrar de separar meus ossos para viagem, correto? – ironizei,
esboçando um sorriso de canto de boca.
- Quer bancar o engraçadinho, mas por hora isto é prerrogativa
minha.
- Ok, Avaeté. Desculpe. Prossiga – disse, sem deixar o ar
“engraçadinho”.

54
- A resposta é sim e não, Pyá. Há certas coisas na sua cultura
que são tão intrínsecas que vocês sequer estão cientes da sua
influência. A linguagem é uma das mais importantes.
- Por que, Avaeté?
- É um dos substratos mais fundamentais de uma cultura. Vou
dar alguns exemplos. Começarei pelo meu povo.
- Estou prestando atenção.
- Você sabia que até termos contato com os não-nativos, nós, os
Guarani, não tínhamos uma palavra para o verbo “mandar”? Para
nós, não existe sentido no mandar. Não existe a noção. Um índio
acharia muito estranho outro índio dando ordens. Só viemos a ter
noção do que isto significava no contato com juruakuery, com os
brancos. Por isso, hoje usamos emprestado esse termo da sua língua.
- Como pode isso, Avaeté? Vocês não têm hierarquia? Não
existem pessoas que dizem a outras o que fazer?
- Podemos dizer que sim, mas as coisas não eram feitas através
de ordens. Mandar, na sua língua, vem do latim manus, que significa
“mão”. Manda quem tem o poder nas mãos, seja por força das armas
ou do conhecimento.
- Mas os índios também possuem armas e conhecimento, não é
mesmo?
- Sim, mas a vida tem seu rumo e seu fluir pela força da nossa
tradição, dos nossos costumes, que seguem os princípios da Vida.
Este é o poder. É de acordo com isto que fazemos as coisas.
- Entendo. É por isso que a escravidão significava a morte para
os índios. Uma violência que ia contra os princípios da Vida. Melhor
deixar-se morrer...
- Deixar-se levar pela morte era o único caminho que restava
para encontrar a terra sem males. Mas a escravidão dos índios é uma
história que não nos interessa no momento. Entendeu? – perguntou
Avaeté.
- Entendi. Mas creio que preciso de mais alguns exemplos para
entender o quanto a língua influencia uma cultura.
- Você lembra que Miguelina falou-lhe sobre os Terena?

55
- Claro. Surpreendeu-me saber que eles não possuem pronomes
possessivos na sua língua.
- Pois é. Isto significa que não existe posse. Pelo menos não no
sentido de propriedade como a temos. A propriedade é um conceito
muito novo na história humana e remete aos primeiros agricultores
sedentários estabelecidos cerca de dez mil anos atrás. No caso deste
continente, é um conceito de pouco mais de meio milênio.
“Os nativos americanos, de uma forma geral, não são donos de suas
terras. São como formigas ou cobras ou marmotas ou ursos: vivem
num território, mas não são seus proprietários.”
- Entendo. Fale-me de outros exemplos dos povos nativos. É um
assunto que me fascina. Novos modos de ver o mundo...
- O ponto relevante é o seguinte: os “civilizados” têm a noção de
que a linguagem é feita apenas para transmitir idéias. Mas a
linguagem faz mais que isto. Ela cria idéias. Cria visões. E, por isso,
cria realidades. A linguagem estabelece maneiras de olhar para o
mundo. Veja, por exemplo, uma árvore. O que é uma árvore para
você, Pyá.
- Devo falar como um ecoengenheiro ou como pessoa comum?
- Deve falar como a maioria entende o que seja uma árvore. Não
desejo uma descrição técnica. Dê-me uma descrição a partir de sua
intuição de “civilizado”.
- Bem, Avaeté, vou tentar ser o mais intuitivo possível. Uma
árvore é um vegetal que possui tronco com ramificações superiores
como galhos, folhas, frutos e flores, além de ramificações inferiores
como raízes.
- Prossiga.
- Serve para oferecer frutos para alimentação animal, fornecer
sombra ao solo e sustentação contra erosão. Não é uma descrição
completa, mas creio que satisfatória.
- Para nossos fins, sim. Veja como você vê uma árvore. Uma
estrutura que é subdividida em partes e que possui funções. Aliás, se
eu pedisse para descrever uma cadeira, um violino ou um coelho,
assim você o faria, certo?
- É verdade.

56
- É assim que vocês vêm o mundo, Pyá. Não é bom nem mau,
apenas é. Sua língua foi desenvolvida assim. Uma língua que
descreve, em sua maioria, os objetos. Agora veja outra maneira. Sabe
como chamamos árvore?
- Diga-me, Avaeté.
- Yvyrã. Futura terra. Yvy quer dizer “terra”. Rã, “o que será”, “o
futuro”. Uma visão processual. Árvore é o que será terra. Que será
árvore. Um processo sem fim. Para vocês, todos os objetos têm fim.
Uma árvore morre. Fim. Para nós, fim é recomeço. Terra, árvore,
terra. Infinitamente.
- Puxa! Vejo como isso tem uma ligação com o sagrado, Avaeté.
Vocês enxergam tudo unido por processos infinitos e vocês fazendo
parte de tudo isto...
- ... Que é a Vida. Por força da nossa linguagem e cultura.
“Meu caro Pyá, a experiência do divino, do sagrado, está no dia-a-dia
do meu povo, de uma maneira muito direta na caça, na coleta, no
cultivo, na tradição oral. Você esqueceu isto, pois dividiu e subdividiu
o seu mundo, criando intermediários para auxiliá-lo na tarefa de
conhecê-lo e controlá-lo. Hoje, vocês estão desconectados da Vida
porque quem faz as coisas por vocês são as máquinas e os sistemas
que vocês criaram. As máquinas e os sistemas são ruins? Não. É
como a tecnologia. O deixarão em apuros somente enquanto você
estiver desconectado.”
- Entendi, você já disse isso.
- Pois muito bem. Agora precisa experienciar isto. E o fará
começando pelo que tem de mais fundamental: sua língua. Você vai
experienciar novas formas de entender o mundo através de outras
línguas que estão por aí no mundo. Talvez até mesmo
experienciemos novas línguas, línguas que nem mesmo existem.
Para finalizar: sabe que palavra usamos para designar “alma”?
- Imagino algo surpreendente.
- Para você, sim. Nhe’em. A mesma palavra para “linguagem”. O
espírito de um povo começa pela sua língua.
- Isso é realmente profundo, Avaeté. Estou entendendo a
importância. Acha adequado que eu leve um dicionário etimológico
na nossa viagem? Você sabe, não estou acostumado a compreender

57
as origens das palavras da minha língua. Não vai pesar. Está dentro
do meu caderno digital.
- Para mim, está ótimo.
- E agora, a segunda coisa a levar na viagem?

6
Ainda refletia sobre como sua própria língua é capaz de mediar
seu interior e o mundo. A visão de uma pessoa, e de todo um povo,
em relação à sociedade, à natureza e ao transcendente. Já tinha
ouvido falar que na Ásia Oriental as pessoas se comunicam por
línguas visuais que dão uma visão fluída ao mundo, mas nunca havia
tomado contato. Era uma idéia abstrata para mim. Agora isto estava
ficando mais concreto, através dos ensinamentos de Avaeté...
- A duração da nossa viagem não será medida em “luas”. É mais
adequado dizer que serão “estações”. Neste tempo, visitaremos
muitos povos amigos, mas talvez encontremos outros não tão
amigos. Com uns ou outros, aprenderemos muito.
- Entendo, Avaeté. Já estou preparado (pelo menos
mentalmente) para passar meses nesta aventura. Não sabe como
isto me atemoriza cada vez que verbalizo.
- Quanto mais experiência, maior aprendizagem. Aprender, do
latim prendère, significa “tomar, prender, atingir, apreender,
compreender”. Você atinge e é atingido por aquilo que aprende. Suas
entranhas se modificam. Você já não é mais o mesmo. Experiências
transformadoras... Por isso, a segunda coisa importante a levar...
Fez uma pausa para verificar se eu estava prestando atenção e
anotando e continuou:
- ... É a abertura para aprender.
- Mas Avaeté, isso eu já tenho. Sou um estudante voraz!
- Não estou certo disto. Lembra que eu falei que você e seus
semelhantes estão isolados? Se você está isolado, você não aprende.
Você só aprende quando faz parte. Só fará parte se estiver aberto. É
isto. Você precisa estar aberto. Aprender é daquelas coisas sagradas
que a Vida tem a nos oferecer. Quem aprende com abertura da alma
é livre e feliz. Só quem é livre pode aprender profundamente.

58
- Pronto. Está escrito. Tentarei me lembrar. Será assim tão
difícil?
- Seus velhos hábitos e conceitos lutarão para sobreviver. Será
outro teste. Se estiver livre deles, poderá aproveitar e ser feliz.
- Ok, Avaeté. Estarei alerta. E agora, uma pergunta importante
para mim. Qual será nosso roteiro?
- Eu não tenho noção – disse Avaeté, como se fosse a coisa mais
normal do mundo.
- Como assim? Viajaremos meses e você não sabe aonde
iremos?
- Não tenho noção. Na hora saberemos.
- Assim não é possível, Avaeté. Você precisa dizer onde
andaremos, se será frio ou quente, seco ou chuvoso. Precisamos
saber onde pisaremos.
- Seus velhos hábitos falando alto. Já se esqueceu da abertura
para aprender? Aprenderá a não ter planos.
- Mas não há um mínimo que precisamos saber? Temos que dar
o primeiro passo em alguma direção!
- Tudo o que sabemos é que serão locais de poder. E sabemos
por onde começaremos.
- E por onde começamos, Avaeté?
- Cruzando a cordilheira. Esteja pronto amanhã no momento do
desaparecimento das sombras. Isto nos trará sorte. Encontre-me na
saída norte da cidade.
Que loucura! Terei que providenciar tudo até o meio dia! Não vai
dar tempo de fazer tudo. Ainda não acredito que esteja fazendo isto...

59
Avaeté

Quatro

60
1
Tentei providenciar tudo o que fosse necessário e possível para
poder me entregar àquela viagem maluca. Antes de dormir, procurei
fazer uma lista do que seria preciso fazer e me vi louco. Imagine só:
encaminhar projetos em andamento, providenciar substitutos para
minhas aulas e orientações, avisar profissionais que dependiam de
algum tipo de trabalho meu, providenciar andamentos burocráticos e
legais para contratos em vigor, avisar os amigos, avisar os familiares,
deixar alguém autorizado a cuidar das minhas questões profissionais,
deixar alguém autorizado a cuidar das minhas questões pessoais,
encaminhar licença junto à universidade. Isto só com o que eu me
lembrei. Que confusão. E se eu estiver esquecendo algo importante?
Fiz o que podia aproveitando-me da interatividade tecnológica.
Enviei mensagens e processos eletrônicos para tudo o que foi
possível. Conversei em tempo real com aqueles que precisava. Deixei
Ângelo e Márjorie responsáveis por tudo o que era possível. Bons
meninos. Saberão se virar. E mais: crescerão com minha ausência.
Para algo deve servir toda esta loucura. O maior problema era
explicar. Ninguém entenderia. Ninguém entendeu. Nem eu. Procurei
várias maneiras. Sempre que possível, apresentei as menos
traumáticas e entristecedoras explicações. Tentei racionalizar a
minha decisão. Demonstrei preocupação para com os outros. Não
funcionou muito. Talvez fosse melhor a verdade mais nua e crua.
Sem máscaras. Talvez fosse mais crível. Sem personagens. Acho que
seria o que Avaeté recomendaria. Bem, não tenho sua sabedoria.
Separei a mochila. Ela estava ridiculamente incompleta. Enviei
para casa meus pertences pelo correio. Cancelei meus vôos de volta
e dei check out no hotel.
Havia dois sentimentos concorrentes em meu coração. O
primeiro era de um aperto, um machucamento em forma de pressão.
Era uma sensação de perda misturada com saudades por
antecipação. Algo sentido numa despedida. Por outro lado, sentia
uma leveza. Como um esvaziar das preocupações e
responsabilidades. Uma experiência de liberdade. Andava pela rua
transmitindo isto. Leve e triste. Pés no ar, lágrimas no chão. Parece
que tudo isto é natural. Quando se deixa, se deixa o que há de bom e
o que há de ruim. Em quase tudo na vida, sentimentos controversos.

61
Encontrei Avaeté, mas ele não estava sozinho. Com ele
encontravam-se Miguelina e o casal companheiros de Pedro Ruca.
Estavam ao lado de uma antiga van. Foi uma surpresa:
- Avaeté! O que os amigos de Pedro fazem aqui?
- O que você acha? – perguntou sorrindo.
- Sei lá! Vieram se despedir?
- Claro que não! Você está vendo este carro?
- Sim. Pertence a eles?
- Claro.
- Eles irão conosco? Também farão a nossa viagem? – perguntei
eu.
- Não. Nós é que vamos com eles. Seremos seus companheiros
de viagem. Precisamos de uma carona. Acha que atravessaríamos a
pé a cordilheira? – provocou Avaeté com seu tom sarcástico.
Para ser sincero, não pensei como o faríamos. Havia muitos
detalhes que não imaginava como seriam. Eu estava nas mãos de
Avaeté. Era um território completamente novo. Bem, isto é bom.
Numa das primeiras vezes na vida madura não estava no controle,
nem precisava fingir estar. Não seria esta a verdadeira liberdade?
- E Pedro? Ele não vai conosco?
- Pedro já está a caminho. Iremos ao seu encontro no final da
jornada.
Acenei com a cabeça, transmitindo a idéia de que havia
entendido. Atirei a mochila, primeiro no chão, para que perdesse o ar
de “novinha em folha”, e depois no porta-malas. Dei um abraço firme
e prolongado em Miguelina e em cada um dos demais. Todos
entraram na van. Antes de entrar, olhei para o sul, em direção ao
Cerro Huyliche, abri os braços e inspirei fundo. Procurei soltar o
coração, o peito e o nó da garganta. Expirei e saltei para dentro.

62
2
- Para onde, senhores? – indagou o motorista, fingindo não
saber. – Sou Federico, muito prazer. Este condutor está às suas
ordens – informou, dirigindo-se a mim e logo após a Avaeté.
- Para Mapucheland – ordenou Avaeté.
- Mapucheland? – repeti interrogativamente.
- Vamos para o povoado onde vivem Pedro e seus
companheiros. Fica do outro lado da cordilheira, a centenas de
quilômetros a noroeste de onde estamos. No coração da grande
nação Mapuche. Levaremos alguns dias até lá.
Seria uma longa viagem. Federico deu a partida e engatou a
primeira marcha. Saímos da cidade pela Ruta 11, nos primeiros de
milhares de quilômetros de estrada de rípio. Eu estava sentado no
lado esquerdo do carro, que possuía instrumentos de bordo muito
simples. Era a última carreira de bancos, a mesma de Avaeté. Entre
nós, sacolas e bolsas diversas. Olhei pela janela, encostei a cabeça
no vidro e fiquei admirando o deserto e o lago. Foram pouco mais de
vinte quilômetros até encontrarmos a Ruta 40, uma carretera mítica
que seria a nossa companheira por longo tempo.
Viramos à esquerda. Não havia muita conversa entre os cinco
ocupantes. Uma ou outra troca de idéias em mapudungun, a língua
dos companheiros. Apontávamos então para o norte. Nesta direção,
iríamos costeando a cordilheira pelo meio do deserto patagônico até
que o rumo oeste indicasse o passo certo a cruzar a cadeia rochosa.
Federico pôs a rodar uma música muito suave e melódica, com
notas new age misturadas com acordes e instrumentos norte-
africanos. Isto levou minha mente a imaginar as paisagens que
veríamos e as pessoas que encontraríamos. Aquele muro a oeste
como que fantasiosamente escondia um mundo novo, inexplorado.
Aprenderia coisas fantásticas do outro lado? Como reagiria? Que
experiências me aguardavam?
Olhava o deserto infinito e a mente ia se esvaziando. Tão vazia e
leve quanto o vôo dos condores sustentado pelo vento patagônico.
Abri a janela e senti a liberdade vindo de encontro ao meu rosto.
Sorvi com o nariz e a boca todo aquele ar. Deixei que meu cabelo
ficasse esvoaçado. Precisava mais e mais daquilo. Coloquei a cabeça

63
para fora da janela e gritei muito alto, esperando que as montanhas
ouvissem: “Que beleeeeezaaaaa!”
Logo em seguida fechei a janela, um pouco envergonhado com
meus novos amigos. Dignaram-se apenas a alguns cochichos e
risadinhas contidas. Avaeté sorria de canto de boca sem me olhar:
- Se alguém perguntar, direi que não o conheço! – exclamou ele.
Alguns quilômetros mais à frente e já não víamos mais o Lago
Argentino. Acho que aí surgiu a verdadeira sensação de viagem.
Daqui por diante, não haveria mais nada familiar. Havia passado
alguns dias na companhia daquele lago, e agora não estava mais à
vista.
A estrada segue junto ao Rio La Leona, com seu azul
característico. Avistam-se ao longo do rio algumas raras estâncias e
um ou outro hotel. A paisagem é de vegetação rasteira e dourada. A
estrada segue em linha reta na direção norte, onde se encontra o
Lago Viedma. Próximo a ele, cruzamos o Rio La Leona na direção
nordeste, costeando-o, deixando para trás também o acesso ao
Monte El Chaltén. Visando um pouco de distração, fizemos uso dos
nossos pensamentos e da tentativa de iniciar alguma conversa.
Diante do autocentramento da minha condição, quem começa é
Miguelina:
- Os povos patagônicos nativos deste lado da cordilheira são os
Tehuelche. Logo mais ao norte e principalmente a oeste da cadeia de
montanhas encontraremos os Mapuche. A língua dominante destas
regiões é o mapudungun. “Che” significa gente. “Mapu”, terra. Gente
da terra. Já os Tehuelche são a “gente brava”. Você sabia que os
habitantes desta terra deram muito trabalho a todo tipo de
colonizador? – perguntou Miguelina, chamando minha atenção.
- Desculpe por minha desinformação a respeito dos Mapuche. Eu
realmente não conheço muito do seu povo. Por favor, prossiga –
estimulei.
Avaeté ressaltou:
- Os Mapuche resistiram bravamente ao domínio de várias
expedições de conquistadores. Entretanto, quanto maior a força de
resistência, mais violento o contra-ataque. Depois de décadas de
confrontos, os Mapuche foram obrigados a recolher-se a reduções

64
durante o Século XIX para dar lugar aos colonos europeus. Miguelina
prosseguiu:
- A batalha para preservar o corpo e a alma do meu povo é
constante. Infelizmente, isto cria a noção que somos povos guerreiros
e violentos. Não é verdade. Não vivemos em guerra. Somos povos
felizes que vivem a vida, os rituais e o dia-a-dia na sua plenitude.
Eu disse que ansiava por conhecê-los e reencontrar Pedro Ruca.
Adicionei que me interessava por compreender as lutas que os
Mapuche travam hoje com os negócios.
- Nós não lutamos contra os negócios. Lutamos para sobreviver.
Nossa batalha não é a favor ou contra uma bandeira, mas pela vida.
A alma Mapuche e as almas de muitos outros povos são a alma
nativa. Se nos matarem, matarão a alma nativa. Se nos matarem,
matarão nossa terra. Assim como se matarem nossa terra, nos
matarão – falou Miguelina com um tom de voz sereno e firme.
Encantava-me essa visão que Miguelina expressava. Nela, você
não aniquila seu adversário. Não pode matá-lo. Você luta para
permanecer tecendo a teia da vida. E não impede que os outros o
façam.
Isto também afasta a crença ingênua do bom selvagem, pensei.
Os povos nativos não são “bonzinhos”, no sentido que nos
acostumamos a dividir o mundo, os bons e os maus. É uma noção
equivocada. Entre os nativos, por exemplo, guerras não é algo
incomum. Só que são guerras de afirmação integrativa, não de
domínio exclusivo ou de extermínio. A diversidade, que é o
fundamento da teia, é mantida.
Rodamos mais um bocado. Não tardou a aproximação ao Lago
Cardiel. Este lago possui cor turquesa e praias circundantes
estriadas. Em plena Patagônia é surpreendente encontrar um lago
cheio de peixes como este. Paramos para conversar um pouco com
pescadores e obter alguns peixes para o jantar. Já estava chegando o
final da tarde e era hora de preparar-se para a noite.
Não foi preciso armar barracas. Apesar de um pouco fria, a noite
não impunha maior rigor. Por isso decidiram-se que alguns dormiriam
na van, ao passo que outros ficariam ao relento. A outra moça
companheira de viagem, mais reservada, foi a última com quem tive
o prazer de trocar algumas palavras:

65
- Beti Mestiza, encantada – estendeu-me sua mão morena,
apresentando-se afinal. – Mas me chame apenas Mestiza. Sua nobre
cozinheira. Que tal ajudar-me a preparar estes peixes?
Apanhei uma faca bastante afiada que me alcançara e comecei
a trabalhar sob sua orientação. Faríamos os peixes assados, de modo
que precisávamos limpá-los e temperá-los. Ainda havia um pouco de
luz proveniente do poente em seu tom alaranjado, ao passo que já
notávamos um azul-escuro para o lado do nascente.
- O céu azul é onde moram nossos antepassados. É o país azul.
Jamais nos esquecemos deles. Sua alma está em contato diário com
nossa alma através do portal azul do céu – esclareceu Mestiza.
Não pude deixar de notar a constância deste contato. Você olha
para o céu e sente seus antepassados suportando-o. É reconfortante.
Você e sua história são um. O tempo todo.
Exatamente como prenunciara Avaeté, eu estava começando a
experimentar a maneira de outros povos enxergarem a vida. Não
posso deixar de olhar para minhas mãos alvas e macias como um
sinal de isolamento. Nunca preciso limpar um peixe. Nunca preciso
cozinhá-lo. Raramente lembro que tenho antepassados.
Comemos em um sereno clima de cumplicidade por esta
primeira tarde juntos e pelo compartilhar da estrada e da comida. O
som da van agora tocava alguns ritmos sul-americanos que não
conseguia distinguir, assim como tons ritmados que imaginei serem
de música do povo de Miguelina, Federico e Mestiza. Descansávamos
recostados em pedras e no próprio automóvel, quando Miguelina
tratou de atualizar-me das notícias:
- Nas últimas décadas, temos tentado retomar as terras onde os
nossos ancestrais viveram. Na maioria das vezes é uma tomada
apenas simbólica, pois não temos sua posse legal. Por isso,
freqüentemente, alguns dos nossos irmãos são presos. Porém, hoje,
nossa maior fonte de preocupação é com negócios que se
estabelecem e impactam de diversas maneiras destrutivas a nossa
sobrevivência – ponderou.
“Negócios como os de barragens, florestais e mineiros tomam
territórios fundamentais das nossas comunidades. A maioria destes
negócios possui poder de influência sobre políticos e governos. Por
isso, muitas vezes, nossos irmãos recorrem a meios violentos, o que
nem sempre é desejável, pois isto provoca uma escalada. Por outro

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lado, nós, das comunidades do Conguillío, buscamos meios políticos
pacíficos, como o debate no colóquio de El Calafate.”
- Apesar de certa descrença com relação ao que ocorreu
naquele evento, Miguelina, admiro sua fé em procurar mudar o
estado das coisas por meios menos ortodoxos – comentei.
Ao terminar o jantar tratei de recolher os pratos para lavá-los. A
conversa continuou:
- Temos alguns líderes muito hábeis na interlocução com
empresários e gerentes “ligados” num mundo mais saudável e
humano. Com estes é possível conversar frente a frente, criar algum
tipo de empatia e compaixão mútua. A maioria dos outros líderes
empresariais e políticos com quem tentamos dialogar escondem-se
atrás de máquinas dos mais variados tipos: sistemas políticos e
legais, burocracias arcaicas ou altamente sistematizadas, aparatos
policiais ou de guerra, protocolos, acordos e documentos diversos.
Como você sabe, não é possível argumentar com máquinas. Nem
mesmo ativar qualquer tipo de sentimento de sistemas impessoais.
“É verdade” – pensei, enquanto lavava a louça. Neste nosso
mundo cada vez mais sistematizado e maquinizado, não há mesmo
muito espaço para um bom diálogo. E silenciamos. “O que eu poderia
fazer para ajudar?” – meditei.
Encerrado o serviço, sentamo-nos um pouco. Falamos sobre
avanços e retrocessos da luta Mapuche e de outros povos, até rarear
um pouco as intervenções de cada um e surgir apenas o silêncio da
noite. Cada um puxou a coberta e caiu no sono.

3
O dia amanheceu com algumas poucas nuvens. Dormi um sono
só por toda a noite. Os primeiros raios motivaram um abrir de olhos
definitivo. Em meia hora todos já estavam levantados. Avaeté
preparou mate e ofereceu a cada um. É interessante como esta
bebida quente traz um bem-estar quando tomada assim, em jejum.
- Tomamos mate para facilitar a digestão, nos aquecer e nos
unir – explicou Avaeté.
Federico e Mestiza colocaram sobre uma toalha estendida no
chão o que havia disponível para o desjejum: café, pão amassado,

67
empanadas, tunas. Comemos e conversamos brevemente, o
suficiente para perceber que nosso motorista era o mais bem
humorado da turma. Conversava alegremente, fazia brincadeiras vez
por outra e ironizava suavemente situações. Sem contrastar
demasiadamente com o estilo araucano mais reservado. Isto era
bom: deixava a todos mais à vontade naquele reinício de jornada.
Federico avisou que seria um dia “puxado”, pois sairíamos
bastante cedo, rodaríamos praticamente o dia todo e só pararíamos à
noite, o mais próximo possível de Esquel, mais de setecentos
quilômetros ao norte. Pelas suas explicações, desejava estar próximo
de um centro menos isolado para qualquer emergência.
- Não é bom ficar próximo de aglomerados urbanos. Eles
cheiram mal. Mas quando você está em apuros, o que mais deseja é
um pouco de fedor – completou Federico com uma boa risada.
Apesar de seu carinho com a van, nosso motorista demonstrava
vez ou outra inconformidade com algum comportamento do carro.
Não via tal preocupação nos demais, de modo que procurei relaxar.
De fato foi um dia duro, ainda que belo. As paisagens da Ruta 40
mantinham-se invariáveis. Deserto, rochas e vegetação rasteira
dourada eram entremeadas eventualmente por estâncias com casas
protegidas do vento por álamos. Vez por outra se notavam
montanhas em gradações de cores, como se fossem a paleta de um
pintor. O céu não estava completamente azul, pois algumas
formações de nuvens nos davam algum refresco do sol. Mesmo
assim, a grandiosidade daqueles coloridos não era diminuída em
nada.
Alguns povoados também iam ficando pelo caminho. Gente
morena e gente branca entretecida em pueblos e cidades por onde,
décadas atrás, antigas estradas de ferro cruzavam. As estações
permanecem lá. Relembrando os moradores dos tempos idos.
Rios, guanacos, lagunas, arbustos iam desfilando pela janela do
carro. Procurei ver como meus companheiros reagiam à paisagem.
Miguelina e Mestiza olhavam fixamente cada elemento em silêncio.
Avaeté mantinha uma posição ereta, como que a observar a direção
que seguíamos. Já Federico, apesar de bom motorista que era, não
tinha os olhos apenas fixos na estrada. Fazia um rastrear com a
cabeça e os olhos, alternadamente para a direita e para esquerda,
como a escanear algo que lhe interessasse. Perguntei o que fazia:

68
- Coelhos. Estou com vontade de comer coelhos. Na falta, pode
ser nhandu – disse, sem interromper sua busca. Procurava por algo
para caçar entre as moitas e tufos.
A estrada não tinha fim. Havia muito cascalho no seu leito,
alguns perigosos pelo tamanho. O risco de um pneu estourado é
permanente. Ainda bem que tínhamos dois estepes.
Não tardou para que Federico parasse o carro ao avistar uma
lebre. Parou, desligou o carro, apanhou uma espingarda calibre .22 e
lançou-se sorrateiramente por entre os tufos vegetais. Ficamos
silenciosos até ouvir um pequeno estampido. Logo em seguida,
Federico entrou no carro e disse:
- Precisamos mais um ou dois destes para o jantar. Será o
banquete que ofereceremos a nosso amigo Pyá.
Confesso que aquela harmonia interior, aquela sensação de
liberdade, só era quebrada por uma espécie de mal-estar. Não estava
totalmente à vontade por não estar contribuindo de maneira
importante para aquilo. Eu sentia uma sensação de ser hóspede, de
estar atrapalhando algo. Quando você sente isto, fica ansioso para
retribuir, para ajudar na mesma medida.
Paramos próximo às três da tarde para descansar e lanchar.
Estávamos num posto de serviços de beira de estrada, num local
improvável de haver um. Havia sanduíches, mas como o dia estava
quente, achei que cairia bem um refrigerante. Ofereci-me para pagar,
o que foi gentilmente aceito por todos. Aquele lanche caíra bem e os
refrigerantes estavam bastante refrescantes. Assim que terminamos,
alguns foram ao toalete. Prontifiquei-me a cobrir também os gastos
com o combustível. Neste momento Avaeté chegou próximo e
assentou:
- Todos ficarão felizes com suas gentilezas. Isto porque todos
são igualmente gentis. Só que você precisa ter uma idéia clara do
porquê faz esse tipo de gentilezas...
Fiquei um pouco contrariado com a frieza de Avaeté, mas,
novamente, não havia motivo para argumentar. Poderia ter ficado
mais magoado, irado ou sentindo-me injustiçado, mas não era o caso.
Fazer gentilezas é bom, é claro. Faz bem a você, faz bem aos outros,
o faz humano, parceiro, companheiro de empreitada. Mas pode haver
motivos sob a superfície para seu ato gentil.

69
Alguns o fazem em avanço para ter algo que cobrar depois.
Como uma garantia. Uma maneira de obter um “rabo preso”. Ou por
medo da solidão. Sei lá. Não estou interessado nesta análise agora.
No meu caso é diferente. Avaeté sabe. É que eu não gosto de “ficar
devendo”.
Noto como soa estranho isto. Uma coisa meio absurda. Quando
você verbaliza, a coisa toma outra dimensão. No seu íntimo, o que
acontece é que você fica com um desconforto em ser ajudado. Você
sente-se depreciado. Sabe por quê? Porque você próprio,
inconscientemente, provoca depreciação quando ajuda. Você é quem
ajuda. Você é quem está por cima. Você é que é o maioral. Um
altruísmo egoísta. Ajuda os outros para inflar seu ego. Para confirmar
ao mundo que é você quem dá as cartas. Quer ficar sempre no
crédito. Nunca no débito. Nunca por baixo.
Avaeté pegou “na veia”. Um comportamento absurdo. É como
se a vida fosse um balanço patrimonial. Débito, crédito. Linha final
azul, você é o bacana. Abastado. Eficiente. Linha final vermelha,
devedor. Necessitado. Deficiente. Avaeté completou:
- Na vida verdadeira, esse jogo é o fim, Pyá. A morte. Nenhuma
comunidade saudável faz esse tipo de contabilidade. Isso leva a uma
hierarquia dos favores completamente inócua. Ao isolamento dos
balanços individualizados. À solidão, à falta de amor.
Fiquei imaginando pais e filhos acertando as contas. Uma coisa
meio fria e sem sentido. Pedi a Avaeté que continuasse.
- Veja: a grande teia das comunidades vivas e humanas troca
milhares de coisas em uma complexa rede. Por sua vez, cada uma
dessas milhares de coisas é valorada por padrões também
complexos. O que não serve para mim pode ser, e é, muito
importante para outros seres. Já essa contabilidade tacanha é
incapaz de avaliar esta complexidade. No final das coisas, há um
enorme fluxo de amor entre todas estas comunidades que não cabe
nesse tipo de balanço.
Tentei argumentar que era preciso objetivar e quantificar
algumas coisas, exemplificando alguns dos fundamentos do sistema
jurídico moderno, mas Avaeté manteve-se impassível.
- O amor é imensurável, Pyá. Não quantifique o sagrado. Você só
fará depreciá-lo.

70
- Mas você tem que ter uma medida do que é certo, Avaeté.
Precisa ter noção daquilo que é justo e daquilo que não é! – tentei
demonstrar.
- Contemple o insondável com a alma, Pyá. Não com a mente.
Fiquei em silêncio ao pular para meu banco no carro. Pus-me a
refletir sobre o que disse Avaeté. O carro arrancou logo após ter sido
abastecido. Neste ponto, dei-me conta de algo subjacente ao nosso
diálogo e à minha visão de mundo. Raramente, na minha vida, fiz uso
da palavra alma. Ouço-a com alguma freqüência, mas nunca a usei
deliberadamente. Já me referi ao espírito. Mas nunca à alma. Seria
algum preconceito religioso? Não cheguei a nenhuma conclusão
imediata. Não precisaria, creio. Haveria muito tempo para isto.

4
Nossa segunda noite juntos se aproximava. Já era bem tarde
quando paramos diante das luzes de Esquel. Estávamos em um cerro
das cercanias, ainda há alguns quilômetros de distância. Todos
saíram do carro e esticaram os músculos e articulações. Sem
comandos, em poucos minutos havia fogueira e carne de lebre sendo
assada. Federico só encontrou mais uma pelo caminho. Mas seria o
suficiente.
As estrelas e uma lua nova faziam-nos companhia. Ainda
tentava imaginar como a noção de alma me faria alguém melhor.
- Pyá, todo e qualquer povo nativo vive a vida conforme uma
tradição – retomou Avaeté, num tom muito manso. – Infelizmente, as
pessoas em geral têm uma idéia equivocada do que seja tradição.
Pensam que é algo estático, coisa dos velhos. Como se os velhos
buscassem uma maneira de engessar o mundo que deseja avançar.
- É isso mesmo que acontece, Avaeté. É um tremendo equívoco.
As pessoas crêem que o tradicional é ultrapassado – concordou
Miguelina.
Acenei com a cabeça admitindo também, ao mesmo tempo em
que dava uma olhadela no dicionário:
- Vejam, pessoal – chamei a atenção. – Tradição tem menos a
ver com regras estáticas e mais com transmissão, transferência. Tem
origem na palavra latina tradère que significa “dar em mãos;
entregar, confiar; transmitir, ensinar”.

71
- Você entrega tudo o que é aprendido. Toda a sabedoria
acumulada. Esta sabedoria é aprendida em toda e qualquer geração.
E depois ela é confiada à próxima. Um patrimônio dinâmico. Para os
Guarani é nhandereko – expôs Avaeté.
- Para os Mapuche, az mapu. Um patrimônio que não é só de
conhecimento, mas de sabedoria. O patrimônio da alma de um povo –
disse Miguelina.
Avaeté continuou:
- Como eu lhe disse, Pyá, essa é sua jornada de enriquecimento
da alma. Você enriquecerá sua alma abrindo-se para outras almas.
Seus ensinamentos e experiências já começaram, mas haverá coisas
mais fortes do outro lado desta cordilheira.
Sentia que, de fato, eu já estava recebendo ensinamentos.
Confessei que era um mundo muito novo para mim, mas que me
esforçaria em estar aberto a ele. Avaeté me perguntou se via alguma
convergência entre sua repreensão de hoje à tarde e o que acabara
de explicar. Disse que sim. Que o que eu estava recebendo não era
para ser considerado uma dívida, muito menos para ser paga
economicamente. Falei que imaginava que os nossos companheiros e
mesmo Avaeté faziam isto por amor e pela tradição.
- Por amor a você e por amor à tradição dos nossos povos, o que
no fim é a mesma coisa – concluiu misteriosamente meu benfeitor.
Avaeté tinha a mania de concluir desta maneira seus diálogos,
sem explicações. Deixa um mistério no ar para que você fique
sondando. Tem que tentar achar as ligações. Pelo menos isto poderia
ser feito em boa companhia. Neste caso, de uma lua nova.
O dia seguinte seria mais um dia cheio. O trecho entre Esquel e
Zapala deveria ser feito o mais rapidamente possível se quiséssemos
cruzar a cadeia antes do anoitecer. Seria preciso vencer estes cerca
de quinhentos quilômetros em meio dia.
Acordamos às cinco horas da manhã. Meu corpo estava um
pouco dolorido, mas Avaeté me sugeriu que descesse rapidamente
parte do cerro e regressasse escalando, pois isto faria bem. Fiquei
constrangido em fazê-lo, assim do nada, mas o fiz. Observando como
estava fora de forma e ofegante, meus amigos riram um bocado.
Acabei rindo também.
- Viu como fez bem? – disseram-me e continuaram a rir.

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Reunimos tudo rapidamente logo após o desjejum.
Reabastecemos a van, obtivemos alguns suprimentos frescos nas
cercanias da cidade e regressamos a Ruta 40. Fazíamos uma parada
a cada duas ou três horas para necessidades e para os cuidados do
motorista com a van. Ultrapassamos Zapala por volta de uma da
tarde. Deixamos a Ruta 40 para ingressar naquela que nos levaria ao
Passo de Icalma, a 1.400 metros de altitude: a Ruta 13. Este passo
não representa uma travessia muito radical para efeitos dos Andes.
Além disso, como era verão, havia menor o risco de que a neve
fechasse o passo.
A estrada sobe, às vezes serpenteia e tem seu percurso ao largo
de rios. É linda, não só por estes detalhes, mas porque você vê
crescer à sua frente aquela cadeia de montes brancos. Vez por outra,
paramos somente para admirar a paisagem.
Nas proximidades do passo cruzamos por pequenos povoados.
De repente, você nota que a paisagem mudou. À medida que fica
para trás a paisagem patagônica desértica, ocorrer um aumento
progressivo do verde da mata mais úmida.
Observamos também a mudança de humor de nosso condutor,
Federico. Desde Zapala começava a dar sinais de insatisfação com o
automóvel. Por algum motivo ele estava preocupado com nossa
travessia das montanhas. Vez por outra havia uma parada, em que
eu acreditava que era mais por motivação fisiológica, mas cujo
propósito principal era para que Federico revisasse algum aparato
mecânico. Por fim, todos foram notificados do problema. O eixo da
roda traseira esquerda descolou-se do seu centro. De alguma
maneira a suspensão não suportou o rípio e o pneu passou a raspar
no pára-lama.
Estávamos no meio da tarde diante do Lago Aluminé, um lindo
manancial de águas azul-transparentes, com o carro enguiçado. Uma
perspectiva não muito alentadora nos afligia, já que poucos
automóveis estavam cruzando a cordilheira naquele dia. Vimos
poucos deles ao longo do caminho. Contávamos que talvez algum
caminhão pudesse parar para nos ajudar ou nos fornecer uma
carona, mas não parecíamos estar com sorte. Ainda restavam entre
vinte e trinta quilômetros até o passo e nada de qualquer movimento.
Sem perspectivas imediatas, acabamos nos dispersando ao
redor do ponto onde a van estragou. Dava para notar que o lago era
usado como área de camping e de balneário. Havia uma mata não

73
muito alta nem densa, mas observavam-se algumas espécies mais
altas.
- São exemplares de pehuen. A nossa araucária. Começo a
sentir o gostinho de casa – deliciou-se Mestiza.
Após uma hora de espera, Federico resolveu meter-se sob o
carro para tentar algum tipo de solução. Os demais foram orientados
a ficar com os olhos na estrada.
Perdidas as esperanças de ele próprio providenciar conserto,
Federico informou que seria necessário buscar ajuda. Disse que não
estávamos a mais de cinco quilômetros de Villa Pehuenia e que iria
até lá a pé. De lá, seria necessária uma carona até o passo, onde
carabineros poderiam ajudar. Comprometemo-nos a ficar por perto
até seu retorno. Pegou agasalho e desapareceu na primeira curva da
estrada.
Imaginamos que em menos de duas horas Federico não
regressaria. Fomos à beira do lago molhar um pouco os pés, depois
caminhamos pelos arredores. Encontramos algumas pessoas,
caminhantes e moradores, e fomos informados que aquela operação
poderia ser demorada. Voltamos para junto do carro e sentimos a
noite aproximar-se. Apesar da beleza do lugar, começou a ficar um
pouco aterrorizante permanecer isolado em meio à travessia da
Cordilheira dos Andes. Vêm à sua mente histórias de acidentes,
contadas em livros e filmes sobre o assunto. Será que teríamos que
passar por alguma privação ou risco de sobrevivência?
Olhei para Avaeté e, por algum motivo que desconhecia, não
parecia estar aterrorizado com as circunstâncias. Talvez já tivesse
passado por situações deste tipo. Ou piores. Com o temor pela
situação, eu não conseguia relaxar o suficiente para aproveitar a
paisagem. As nuvens eram de tons laranja e vermelho muito vivos ao
brilho daquele sol poente. Pareciam que estavam a incendiar-se.
Além disso, dispúnhamos de poucos alimentos e água para uma
permanência mais longa no local. Decidimos por um jantar frugal.
O retorno de Federico só aconteceu depois de muita espera,
cerca de quatro horas e meia depois. Sentimos um certo alívio. Veio
em uma caminhonete de carona com um senhor moreno, um
mecânico de Cunco, uma localidade situada quilômetros adiante.
Àquelas alturas, já estava um tanto frio pela caída da noite. O
termômetro da van marcava um e meio grau centígrado. Um vento

74
proveniente do lago deixava a sensação ainda mais fria. Morrer de
frio não era uma boa perspectiva. Puxa vida, problemas logo no
começo da viagem?! Seria isso algum tipo de prenúncio negro para a
aventura? Tentei afastar estes pensamentos. Não poderia desistir tão
cedo.
Tentávamos encontrar algum calor tomando chá quente.
Federico e o mecânico puseram mãos à obra para providenciar
alguma solução. Nem que fosse algo temporário, que suportasse pelo
menos até uma mecânica mais próxima. Estavam com ferramentas e
lanternas sob o carro, batendo, torcendo e gemendo.
Calculamos estar a cerca de cento e cinqüenta quilômetros do
nosso destino, o povoado de Pikuche, à margem norte do Lago
Conguillío. Até que a suspensão estivesse consertada, ficaríamos ali.
Estava realmente frio, obrigando-nos a usar cobertores, fogo e ficar
próximos para não congelar.
Apesar da determinação do mecânico e de Federico, estava
ficando claro que permaneceríamos parados ali durante aquela noite.
Em alguns momentos ajudávamos os trabalhadores, segurando
lanternas, alcançando ferramentas e oferecendo chá e biscoitos.
Batíamos os pés no chão, dançávamos ou corríamos, tudo numa
tentativa quase desesperada de aquecer-se. Seria uma noite de cão.
Dificilmente conseguiríamos dormir com aquele frio.
Nestas horas você deseja um banho e uma cama quentinhos.
Melhor nem pensar. Miguelina recomendou que tentássemos dormir
onde fosse mais abrigado do vento. Cada um buscou a acolhida de
uma pedra ou uma árvore mais larga. Eu batia queixo. Os dedos das
mãos estavam quase imóveis e os pés estavam insensíveis. Vez por
outra o mecânico, portando uma garrafa de pisco, bebericava de seu
aquecedor. Federico acompanhava-o. Pedi um trago para acalmar o
frio e o nervosismo. Brrr! Argh!
Não havia possibilidade de dormir. Tremia como um louco.
Estava tenebroso o passar das horas, até que senti o cutucar de
Miguelina:
- Você está bem? Acho que ouvi você gemer um tanto alto.
- Acho que estou delirando pelo frio – desculpei-me. O vento
uivava ao passar por entre as árvores e pelos cantos da van.

75
- Teremos que fazer como na altitude. Vamos nos aquecer mais
próximos em bivaque. Retire suas botas e usaremos nossa coberta
juntos.
Deitamo-nos num local mais abrigado do vento. Entramos os
dois para baixo das cobertas e Miguelina veio pelas minhas costas
entrelaçando seus braços ao redor do meu corpo. Encostou seus pés
junto aos meus e senti seu calor. Como podia estar com os pés
quentes? Agarrei seus braços junto ao meu corpo e comecei a sentir
desaparecer aos poucos aquela sensação mais gelada.
Felizmente, depois de algum tempo consegui cochilar. Em
seguida acordei quando Miguelina virou-se. Também troquei de
posição para aquecer o outro lado. Cochilei novamente. Agora um
sono mais profundo. E um sonho.
Sonhei que eu era um lago. Um lago de vinho. Eu mesmo
poderia me ver no lago. Minha silhueta era visível, projetada em
relação à superfície. Possuía um cálice na mão. Servi o cálice com
vinho do lago e apreciei-o. Olhava-o contra a luz, cheirava-o e sorvia-
o. Era aromático e delicioso. E repetia.
Isto durou até que me percebi, no sonho, inflado pela bebida.
Apesar de aumentado, sentia-me fraco. Pela fraqueza, comecei a
submergir até desaparecer no lago. Acabei sonhando também outros
sonhos, mas apenas lembrava-me daquele.
Acordamos com o chamamento de Federico. Haviam consertado
o feixe de molas provisoriamente, o suficiente para levar-nos ao
destino. Viva! Pelo menos iríamos sair daquele lugar congelante.
Recolhemos tudo ao carro e seguimos caminho pela noite escura.
A van seguia a baixa velocidade. Passamos por luzes de
povoados e estâncias aqui e ali e dormíamos um sono entrecortado.
Pobre Federico. Dirigiu o dia inteiro, teve que consertar o carro e
ainda continuava firme. Foram ainda algumas horas pela noite.
Pelas seis horas da manhã, com a primeira luz do dia,
amanhecemos em uma nova paisagem. Estávamos em um vale
muito mais verde, cheio de araucárias e de montanhas cônicas com o
topo branco. O céu estava muito azul e completamente livre de
nuvens. Paramos em um povoado chamado Melipeuco. Federico
despediu-se do mecânico e agradeceu por ter nos acompanhado até
aquele ponto. Ele seguiu para oeste e nós tomamos a direção norte.

76
Entramos em uma estrada também de rípio, muito linda. Mestiza
avisou que estávamos próximos do nosso destino, talvez a uma ou
uma hora e meia de Pikuche. Apontou o Vulcão Llaima à esquerda e
logo a seguir a Laguna Quililo. Logo adiante, junto à estrada, a
formosa Laguna Arco-Íris e, finalmente, a Laguna Conguillío.
A Laguna Conguillío tem um azul profundo que, da estrada,
reflete os picos da Sierra Nevada. Paramos o carro próximo a uma
praia. Federico nos disse que seria preciso seguir adiante a pé, pois a
estrada exigiria demasiadamente da van. Era um caminho bastante
mais difícil. Pegamos nossa bagagem e seguimos caminhando pela
beira do lago. Àquela hora da manhã, a luz solar oferecia um
contraste maravilhoso para as cores verde, azul e branca da
paisagem. Apesar da beleza, o cansaço exigia alguns bocejos.
Federico guiava o grupo, primeiro pela beirada do lago e depois ao
longo da mata. Seguimos uma trilha que ascendia até um platô mais
amplo, onde localizamos o povoado.
Havia pouco movimento. Entramos em silêncio. Mestiza
combinou com Miguelina que nos encontraríamos à noite para o
jantar. Federico e Mestiza nos abraçaram e seguiram por uma viela.
Miguelina tomou a frente e guiou-nos até sua casa. Conversávamos
pouco. O cansaço era visível.
A casa onde nos instalaríamos era de madeira, como a maioria
das demais. Não era muito grande, mas aconchegante pela
decoração andina. Eu e Avaeté fomos guiados até nosso quarto.
Miguelina apontou duas camas cobertas com mantas. Disse que
pertenceram a seus filhos. Deveríamos nos instalar ali e descansar o
quanto desejássemos. Saiu, apresentou o local ao final do corredor
onde ficava o banheiro e fechou a porta. A casa está bem aquecida.
Será gostoso dormir novamente em uma cama.
Retiramos nossos calçados em silêncio. Cobri-me até as orelhas.
Avaeté deitou e virou-se para o canto. Eu fiquei ainda acordado por
alguns minutos curtindo o calor da cama. Lembrava-me do sonho.
- Avaeté, eu tive um sonho muito estranho.
- É mesmo? – disse em tom sonolento.
- Gostaria de contar-lhe.
- Não se preocupe. Haverá muito tempo.
- Temo esquecer-me.

77
- Você não esquecerá. Se isto fosse ocorrer, já haveria
esquecido. Conte-me mais tarde. Isto é maravilhoso, Pyá. Sonhos são
portais para a alma.
E passou a ressonar logo em seguida. Resolvi também entregar-
me ao sono.

5
Acordei várias horas depois. Notei que Avaeté ainda dormia.
Notei também um som contínuo. Algo como um chiado. Era chuva!
Há quanto tempo não ouvia o barulho da chuva. Agora vejo como foi
reconfortante este sono. A chuva foi a protetora do nosso adormecer.
Fiquei curtindo aquela sensação até ouvir um bater na porta.
Emiti um som abafado para que entrasse. A porta abriu-se. Era Pedro
Ruca. Estava acompanhado de Miguelina e ambos estavam
abraçados.
- Levantem-se, homens! Venham me abraçar! Que satisfação
me dão ao estar em minha casa!
- Pedro, Pedrito. Aguarde que levantemos e tomemos um banho
– disse Avaeté, regozijando-se também.
- Aguardo-os na sala. Venham tomar um pouco de chá ou
chicha.
Tomamos um banho de lavar o corpo e a alma e fomos
encontrar Pedro na sala. Estavam sentados ele e Miguelina.
Mostravam-se carinhosos um com o outro no seu conversar.
Abraçamo-nos demoradamente.
- Então, Pyá, aqui está você. Estamos muito felizes pela sua
decisão e pela sua visita – cumprimentou Pedro.
- Acredite, apesar da loucura disso tudo, estou encantado com
sua gente. Só tenho recebido manifestações carinhosas até agora.
Até o tempo foi carinhoso mandando esta chuva! – comentei.
- Aqui há muita precipitação – esclareceu Miguelina. – A
Araucanía é uma região úmida. Chove em mais da metade dos dias
do ano.

78
- Vocês não ficam entristecidos com tanta chuva? Numa região
muito nublada ou chuvosa as pessoas tendem a ficar mais
aborrecidas – questionei.
- Não! De maneira nenhuma, Pyá – esclareceu Pedro. – Através
dela, unem-se o país azul, no céu, e o país verde, na terra. Uma
conversa harmoniosa que é parte disso que você vê à sua volta. Sem
ela, nada disso aconteceria, e nós não seríamos Mapuche. Somos
Mapuche por causa da chuva. A chuva que, como dizem nossos
poetas, é o sonho das águas.
Não podia deixar de notar o encaixe disto com a cosmovisão
deste povo. Imaginei a ligação do seu espírito com os ciclos naturais.
Quando você é parte de algo maior, sente o sagrado naquilo e em
você. O sol e a chuva não são elementos separados que você torce
para que apareçam na hora certa. Não são elementos funcionais. É
você. Assim este povo foi feito. Desta chuva.
- A araucária, a mata, a neve, as lagoas, os Mapuche são todos
feitos desta água. E vice-versa. E também a chicha. Bebam! – bradou
Pedro.
Ficamos bebendo e conversando até o final da tarde. Pedro e
Miguelina explicavam como era a natureza nesta região onde vive a
nação Mapuche.
- Aqui há serras, grandes montes e vulcões com até 4.000
metros de altitude. Alguns deles são ativos e podemos ver
derramamentos de lava recentes – apontou Pedro para a janela. – Em
certas oportunidades, influenciam tão dramaticamente a paisagem
que acabam criando ou destruindo rios, lagos e florestas.
“Como você pode notar, a árvore predominante nas florestas é a
araucária. Colhemos seus pinhões para alimentação. Deles fazemos
pratos das mais variadas formas. Também são comuns nesta região
as lengas e os coigües.”
- Note também a beleza das flores. Veja aquelas que estão no
vaso sobre a mesa. São añañucas – apontou Miguelina para as flores
cônicas amarelo-alaranjadas.
Enquanto reconhecíamos a natureza à volta, a chuva mantinha-
se constante lá fora. Fiquei pensando como levavam a vida numa
região tão chuvosa. Como fariam para produzir alimentos e trabalhar.

79
Meus pensamentos foram interrompidos por um toc-toc-toc ligeiro
vindo da mata. Girei o ouvido na direção do som.
- Pica-paus. O carpinteiro negro. Por aqui se encontram também
animais, como o puma, (cada vez mais raro), o pudú (uma espécie de
cervo) e um pequeno marsupial chamado llaca. Além de patos,
encontrados nos rios e lagos. – completou Pedro. – Por sinal, hoje
haverá pato para o jantar.
“Antigamente se comia mais carne de caça. Hoje, o clima, a
vegetação e as águas da região estão sofrendo transformações que
têm influenciado fauna e flora aqui das altitudes. Agora temos
adotado técnicas mais flexíveis em uma combinação cíclica de
agricultura minifundiária orgânica e piscicultura. Tecnologias
sustentáveis têm permitido manter nosso povo vivo.”
- A luta do povo Mapuche – interpôs-se Avaeté – é uma luta de
sobrevivência, Pyá. Isto está acontecendo com muitos dos povos que
encontraremos pelo caminho. É uma luta que não deveria ser
somente do povo A ou B, mas uma consciência mais ampla da
comunidade humana.
- Compreendo, Avaeté. Se a diversidade é uma riqueza na
comunidade da vida, não poderia ser diferente entre nós, humanos.
Não estamos a salvo das leis da vida ecológica – disse eu,
relembrando leituras que fiz na ecologia e antropologia.
- O valor dos povos nativos tem várias dimensões, mas uma em
especial é importante para você e seus irmãos “civilizados”. Ali estão
conhecimentos preciosos sobre formas alternativas de viver. Se sua
forma de viver estiver em perigo, o que acho que é o seu caso, Pyá,
você tem à disposição uma riqueza imensurável testada pelo tempo.
- Tem razão, Avaeté. Podemos falar mais sobre isso?
- No momento, não. Você não está aqui para salvar seus irmãos.
Está aqui para divertir-se! Rá, rá, rá, rá, rá! – gargalhou Avaeté.
- Sim, é hora do jantar – ressaltou Miguelina. – Vamos!
O jantar seria servido num salão, a poucos metros da casa de
Pedro e Miguelina. Eu estava muito à vontade com a amistosidade
dos novos amigos e com o carinho com que era tratado. A atitude de
Miguelina foi muito amorosa na noite anterior e, apesar das
diferenças de personalidade e de humor de cada um dos que
conheci, todos têm oferecido uma amizade sincera.

80
No salão havia cerca de uma centena de pessoas. Fui
apresentado a muitas delas, desde pessoas maduras a crianças. Era
algum tipo de celebração comunal que incluía nossa visita. Dei uma
olhada nas faces. Notei haver algumas delas não nativas. Indaguei
Pedro:
- Todos pertencem à comunidade?
- Não. Esta é uma festa que inclui nossas boas-vindas a muitos
viajantes. Esta é uma localidade afastada, mas por isso mesmo
muitas pessoas vêem aqui nos visitar.
- Nos incluímos nesta classe de viajante? – perguntei, pois talvez
houvesse algum protocolo a ser seguido.
- Não. Você e Avaeté estão aqui como amigos visitantes. Mas
são todos gente muito boa. Fique à vontade para integrar-se com
eles.
Imaginei fazê-lo após o jantar. Poderia conversar com as
pessoas da comunidade e depois com os viajantes.
Na grande mesa viam-se vários tipos de comidas. Miguelina
ajudou na identificação:
- Aqui temos batatas cozidas, ervilhas e mote, um alimento feito
de milho. Para beber, sucos e chicha. Mais adiante, tortillas de
rescoldo (um pão assado em cinzas), fígado de cordeiro e pato
assado.
Sentei-me próximo a Pedro, Miguelina, Federico, este já bem
recomposto, e Mestiza. Avaeté aproximou-se de outras pessoas, uma
delas tinha a impressão de ser o líder Mapuche que estava presente
ao colóquio de El Calafate. Comemos e conversamos de forma
descontraída. Falamos sobre o dia-a-dia da comunidade e as ações
políticas da nação Mapuche. Falamos mais num tom de integração e
relaxamento do que de preocupação na resolução dos problemas. Fui
orientado por Avaeté a não querer “aconselhar” os locais. “Você está
aqui para ouvir, não para falar.” – reiterou.
Ao final do jantar, havia rodas de conversa por todo o salão. A
maioria estava fazendo planos para as atividades do dia seguinte,
principalmente os viajantes. Alguns participariam em atividades da
comunidade, ao passo que outros empreenderiam caminhadas ao
vulcão e a outras localidades remotas. A maioria não poupava elogios
à comunidade pela acolhida e oportunidade de convívio.

81
Indaguei alguns viajantes se estavam em férias. Para minha
surpresa, muitos deles estavam em licenças sabáticas longas ou
mesmo nem tinham vinculações de trabalho fixa. Parecia ser verdade
o que Avaeté dizia. Há uma crescente onda de indivíduos nômades
circulando por este mundo. Fiquei sabendo por intermédio de um
desses, um viajante polinésio, que haveria um ritual na noite seguinte
com a participação de alguns dos viajantes. Perguntou-me se estaria
presente e eu informei que não sabia do tal ritual.
A certa altura da noite começou-se a notar o lento esvaziar do
salão. O burburinho reduzia-se e as pessoas deslocavam-se para suas
casas e alojamentos. Foi uma atividade de integração agradável.
Aproveitei o clima de tranqüilidade e perguntei a Pedro:
- Obtive a informação de que haverá um ritual amanhã à noite
aqui na comunidade. Poderia me falar um pouco a respeito?
- Claro. Será o ritual nguillatun. Você e Avaeté estarão presentes
e assistirão à cerimônia. O nguillatun é um evento que ocorre uma ou
mais vezes por ano. É uma oportunidade de realizar pedidos pelo
futuro. É muito alegre, com cantos, danças e comidas. Vocês
certamente apreciarão – concluiu Pedro.
- Nós certamente estaremos lá. Assistiremos com muita alegria –
assegurou Avaeté.
- Ótimo. Fiquem à vontade para retirar-se assim que desejarem.
Eu preciso ficar para algumas providências. Tenham uma boa noite –
cumprimentou-nos Pedro.
Cumprimentamos reciprocamente Pedro e seus amigos e nos
dirigimos à sua casa. Na preparação para dormir, contei a Avaeté
meu sonho. O lago de vinho que era eu e que eu o bebia. Avaeté riu
um sorriso maroto. O sorriso de quem matuta: “Eu já sabia.”
- Amanhã teremos muito tempo para meditar sobre seu sonho.
Ele é importante. Diz muito sobre você. Acordaremos, tomaremos
desjejum e caminharemos durante o dia inteiro. À noite,
participaremos do nguillatun. Durma bem, Pyá.
- Boa noite, Avaeté.
E a luz apagou-se.

82
Avaeté

Cinco

83
1
Avaeté levantou-se bem humorado e disposto, assim como
estava o dia. Não havia mais chuva. Havia apenas uma bruma que
abrandava o sol. Nesse estado de espírito, desde cedo estava muito
falante:
- Hoje será um dia muito bom. Entraremos na mata, nos
renovaremos e iremos, à noite, a um lugar de poder.
- Lugar de poder? – o termo novamente chamou minha atenção.
- Você teve uma noção do que é um lugar de poder no Cerro
Huyliche. Ele é o responsável por você estar aqui. Hoje entrará em
contato com outro lugar de poder. Nossos amigos nos levarão até ele.
“Um lugar de poder é como um portal. Um portal de luz entre os
mundos. Não importa que mundos. Céu, terra, wenu mapu, yvy
maraney, toca do coelho. O nome não importa. Importa a passagem,
a viagem. E a volta.”
Tomamos café e preparamos o material para a caminhada.
Avaeté disse que andaríamos cerca de doze quilômetros em rota de
ascensão. Partiríamos de uma altitude de 1.300 metros para chegar a
cerca de 2.100 metros. Subiríamos a Sierra Nevada, de onde
teríamos uma visão magistral do Vulcão Llaima.
Saímos logo em seguida. Levávamos lanche, água, capa de
chuva e mantas para proteção contra o frio. Avaeté disse que
provavelmente passaríamos a noite fora. Botas firmes nos pés,
dirigimo-nos ao centro do povoado. Lá, um grupo de quatro outras
pessoas nos aguardava. Eram três viajantes e um nativo, que, em
seguida, se apresentou:
- Olá, sou Chiwai. Serei seu guia neste dia de caminhadas.
Apresentamo-nos uns aos outros e seguimos pelo norte do
povoado. Todos caminhavam em silêncio. Para quebrar a monotonia,
tentei puxar assunto. Os viajantes pareciam frios. Chiwai, como
araucano, era um guia reservado. Limitava-se a dar as orientações
necessárias sobre a trilha. Avaeté não estava preocupado com a
companhia. Parecia conversar com as árvores, tamanha sua alegria
ao caminhar. Eu puxava uma conversa ou outra com os viajantes.
Coisas como “de onde você é?” ou “o que faz da vida?” Os viajantes

84
até mostraram-se gentis em responder, mas não levavam adiante o
assunto.
Avaeté olhou para mim e sorriu:
- Você não precisa bancar o facilitador aqui. Não precisa se
preocupar, pois todos estão muito à vontade, do jeito de cada um.
Aproveite o dia e não deixe que os personagens o atrapalhem... Sinta
o poder do lugar!
De que personagens Avaeté estaria falando? Talvez se referisse
a personagens internos. As máscaras que colocamos vez por outra
nas relações sociais. Quando, por exemplo, você está numa reunião
de trabalho e todos estão muito quietos, você precisa facilitar a
comunicação. Você, digamos, banca o facilitador. É parte do meu
trabalho. Às vezes é difícil desvencilhar-se dos seus personagens.
Senti-me tolhido, mas compreendi que poderia aproveitar melhor o
dia sem aquela conversa fiada. No fundo, era apenas tagarelice.
Procurei então prestar mais atenção à paisagem.
Passei a notar como a mata possuía uma variedade de plantas
rasteiras pouco espaçadas, entremeadas por arbustos e árvores
pequenas ou jovens, além das maiores, araucárias e lengas. Pode-se
observar como este tecido de mata protege e umidifica o terreno,
tornando possível a sobrevivência e o deslocamento dos animais
adaptados. Mas não é só isso. Os animais retribuem proporcionando
limpeza, reprodução e controle das populações vegetais. Há uma
sustentação através da mutualidade. Estendendo um pouco a visão,
podemos notar a mutualidade por tudo: entre animais e vegetais,
entre animais, entre vegetais e até entre predadores e presas. Sim,
pois não é só a presa que dá alimento ao predador. O predador
regula a população da presa. E vive-versa. Se há abundância de um,
haverá também do outro. Se há falta, ambos irão regular-se.
Fantástico. Isto sem falar na mutualidade entre os próprios
elementos: terra, água, fogo e ar. A terra precisa da água. A água, da
terra. E assim por diante. Comentei com Avaeté:
- Temos uma noção enganosa de que a natureza é uma grande
cadeia alimentar. Mas creio que isto é equivocado, não é mesmo?
- Prossiga – estimulou Avaeté.
- Só vemos as coisas num sentido. A gazela alimenta a onça.
Mas a natureza possui fluxos muito mais complexos. Em cada
passagem de energia ou materiais, há a volta praticamente

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instantânea. A mutualidade. A árvore precisa da água e, exatamente
nesta troca, a água precisa e faz uso da árvore para seguir seu
caminho. A gazela precisa da onça e a onça precisa da gazela. A flor
da abelha e a abelha da flor.
- Na natureza, ajudar é ser ajudado. Que tal uma consulta ao
seu bloco eletrônico?
Imaginei que Avaeté referia-se ao termo “mutualidade”. Vem de
mutùus, que significa “recíproco” e de mutáre, que significa “mudar,
trocar”. O que vai e o que vem. Sempre que algo deixa, algo chega.
Circuitos colaborativos. Enormes redes de vai-e-vem. Transformações
contínuas que voltam ao ponto de partida. Evoluídas.
“Claro!” – pensei. A sustentação só poderia ter este desenho.
Numa cadeia alimentar, só há fluxo numa direção. Se fosse assim,
tudo desapareceria! Se tudo for numa única direção, desaparecerá.
Precisa voltar.
Talvez tenhamos construído nossa sociedade sobre uma base
linear equivocada. Tudo está tendo um único sentido. Da extração de
matéria prima para a indústria. Da indústria para o consumo. Do
consumo para o lixo. Da base da pirâmide para o topo. Da
diversidade local para a homogeneização global.
- Por que não pensamos na vida ou na natureza como uma
metáfora para nossas sociedades e comunidades? – perguntei a
Avaeté.
- Para ter controle, vocês negaram a natureza. Negando,
excluíram-na. Excluindo-a, apartaram-se.
- Mas não seria uma metáfora rica para uma sociedade mais
saudável e viva?
- Responda você. Contemple e medite enquanto caminhamos.
Seguimos por entre a mata, às vezes de maneira ofegante
devido aos aclives. Mantínhamos o olhar à frente e aos lados. De
repente, na passagem por um platô, Chiwai chamou a atenção para
que mirássemos o sul. Uau, soberbo! Estávamos a uma altitude que
permitia ver o Vulcão Llaima refletido no azul do Lago Conguillío. A
bruma havia se dispersado e o visual era nítido. Montanhas brancas
anteriormente encobertas tornaram-se visíveis. Era um local ideal
para o lanche. Paramos ali e comemos sanduíches e frutas.
Descansamos e curtimos o visual.

86
Uma hora depois, já alimentados e descansados, regressamos à
trilha. Pela conversa, consegui identificar que os demais viajantes
eram agrônomos. Também falavam sobre a mata e as relações na
natureza. Não faziam referências estéticas, mas estavam
interessados em como ocorriam as interações de um ponto de vista
mais funcional. Fiquei atento à conversação. Em certo momento, um
perguntou a outro:
- Você considera a natureza eficiente?
- Claro que sim! É o que há de mais eficiente. Não há perdas.
Tudo é aproveitado!
Natureza? Eficiente? Fiquei encucado com a idéia. Dentro de
uma visão funcional, parecia correto. Mas algo me inquietava. Achava
inadequado fazer tal atribuição. Eficiência é um termo da visão
mecânica do mundo. E eu vejo o mundo mecânico como oposto ao
mundo da vida. Uma máquina é feita para ser eficiente. Fazer o que
foi projetado sem falhas ou perdas. Mas assim seria a natureza?
Resolvi perguntar a Avaeté:
- Avaeté, você acha que a natureza é eficiente?
- Pergunta sem sentido.
- Ãhn? Como assim, Avaeté? É uma pergunta muito clara e
direta.
- Obscura, abstrata e dicotômica.
- Por que dicotômica? – questionei.
- Leva a um conflito. Se ela é eficiente, não será algo oposto. Se
for algo oposto, não será eficiente.
- E qual é esse oposto?
- Pense. De onde vem toda a diversidade que você vê no
mundo?
Tentei pensar logicamente. Segundo o seu argumento, o oposto
da eficiência é algo que leva à diversidade. O que será? Vejamos.
Eficiência vem de fazer certo, correto, perfeito. Logo, há uma ligação
entre os termos eficiência, certeza, correção e perfeição. Certo é algo
fixado, firme, confiável. Correto vem de reto, direito, em oposição a
tortuoso. Perfeito significa feito inteiro, completo, acabado, cumprido.
Bem, nestes termos, a natureza não é eficiente. Ela não está fixada.

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Está mudando permanentemente. Ela também não é reta. A
diversidade é produto de experimentos aleatórios que estão
permanentemente ocorrendo. E ela não está acabada. Ela não é
completa. Está sempre se desdobrando para algo maior e mais
diverso. E por que isto acontece? Porque ela é livre! É isto! A
liberdade para experimentar é a base da evolução da natureza. Então
o oposto da eficiência não é a ineficiência. É a liberdade.
Logo, a natureza não é eficiente porque é livre. Mas não posso
deixar de acreditar que ela também é eficiente: nada é perdido. Tudo
é feito com maestria. Que nó!
- Sua mente racional vai deixá-lo em apuros, Pyá. Viu como a
sua pergunta e o seu raciocínio o levaram a um conflito?
- Sim, o conflito entre a eficiência e a liberdade. Sabe, Avaeté,
este é inclusive um dos meus conflitos existenciais. Adoro encontrar
a eficiência nas coisas que faço. Como fazer isto ou aquilo? Como
fazer melhor? Como fazer perfeito? Mas isto acaba levando-o a uma
cunha mental que impede as variações, a liberdade de experimentar.
The one best way.
- Não queime demais seus neurônios. Está usando o órgão
errado – sentenciou Avaeté.
- Não entendi...
Não adiantou não entender. Avaeté não continuou o assunto.
Insisti, mas ele só fazia chamar a minha atenção para observar
pássaros, frutos ou flores na mata.

2
Caminhamos em silêncio por mais algumas horas, passando
através de córregos e cascatas. Em certo momento, chegamos à
crista de uma das serras. Era uma crista inicialmente estreita que,
logo à frente, alargava-se em um rochedo mais amplo desprovido de
vegetação. Para minha surpresa, havia mais alguns pequenos grupos
de pessoas reunidos. Pelos rostos, eram outros grupos como o meu
que provavelmente tomaram outros caminhos, bem como algumas
dezenas de pessoas da comunidade.
- Aqui será o local do ritual – informou-nos Chiwai. – Descansem.
Ainda temos cerca de duas horas até o seu início.

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Alonguei-me um pouco e recostei-me sobre uma pedra muito
anatômica. Os demais caminhavam pela beira do rochedo e
admiravam a paisagem. Era realmente deslumbrante, mas eu
mantinha a atenção entre os pensamentos e as dores na panturrilha.
Estávamos muito próximos da linha de altitude onde a vegetação
torna-se escassa e a neve mais abundante.
Ainda ruminava as idéias. O conflito eficiência versus liberdade
é análogo ao que nos faz oscilar entre uma metáfora mais mecânica
e outra mais holística ou ecológica do mundo. Infelizmente, nos
últimos trezentos e tantos anos, a visão mecânica tem vencido, nos
fazendo construir sociedades muito eficientes e pouco humanas.
Muito “máquinas” e pouco “vivas”. Vê-se isto aqui mesmo, entre os
Mapuche: empresas “maquinizadas” e despersonalizadas que estão
avançando sobre a vida. Indústrias desumanizadas e governos
burocratizados contra comunidades humanas e biológicas.
Não sou contra os negócios. Eles nos ensinam o tamanho do
potencial criativo humano. Sou é contra a ditadura dos negócios. Sou
é contra a arrogância e a falta de compaixão. Avaeté interrompeu
meu protesto:
- Contra ou a favor. Certo ou errado. Pobre Pyá. Esqueça isto e
contemple a vida. Não pense. Saia da prisão. Contemple!
Achei que já estava começando a falar em voz alta. Tentei
relaxar e respirar mais pausadamente, algo como preparando o
espírito para sentir as energias do lugar e do ritual. Sentei-me com as
pernas cruzadas o mais confortavelmente possível. Chiwai começou a
demonstrar o que ocorreria ali naquela noite.
- Neste local depurado realizaremos o ritual do nguillatun. Ao
centro, podemos ver o altar. Notem que junto ao altar estão dispostos
galhos de araucárias e outras árvores, algumas frutas, além de
canela. A bandeira que vocês vêem hasteada é a bandeira da nação
Mapuche.
Chiwai continuou explicando que, de acordo com a cosmologia
do seu povo, convivem na terra duas forças contrárias e
complementares: uma positiva e outra negativa. A positiva chama-se
pillán ou wangulén; a negativa, wekufu. Pillán ou wangulén trazem a
criação e a vida; wekufu, a destruição e a morte. No mundo há um
equilíbrio dinâmico de ambas.

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- O ritual do nguillatun é feito uma ou mais vezes por ano e tem
o propósito de entrar em contato com estas forças e pedir-lhes pelo
tempo, pela semeadura e colheita, para que não haja doenças ou
pela prodigalidade. Basicamente, aspectos ligados ao bem-estar –
enfatizou nosso guia.
Aproveitei uma pausa para perguntar:
- Neste caso específico, por que ele está sendo realizado?
- Depois que cresceu a afluência de pessoas de poder espiritual
que nos visitam, passamos a realizá-lo nesta época. A maioria dos
que estão, hoje, aqui presentes é considerada “amigos de poder”.
Pediremos por sua força espiritual – respondeu Chiwai.
Ele ainda prosseguiu dizendo que os Mapuche têm sido mais
bem sucedidos e felizes desde que surgiu este fenômeno. Referia-se
ao afluxo de viajantes de diversas áreas humanas, das artes à
política, dos negócios a lideranças comunitárias.
- Viu? – perguntou Avaeté. – Está sentindo a força deste
movimento silencioso?
Comecei a notar realmente uma força fluída e silenciosa
brotando dos subterrâneos. Homens e mulheres, como se podia notar
naquela reunião, em busca de vidas mais plenas, interagindo e
vivendo na estrada. Aquela era mais uma manifestação. A primeira
foi no colóquio.
- Já vamos começar – cochichou Chiwai.
Em seguida, as pessoas do povoado tomaram pacotes e cestas
que traziam e distribuíram aos visitantes. Havia pães amassados,
chicha, maçãs e outros alimentos. Fomos encorajados a colocá-los
junto à mesa do altar. Em seguida, o fogo foi aceso devido à
escuridão da noite que se aproximava. Um homem em trajes típicos
chegou junto ao altar portando um cordeiro amarrado pelas patas.
Chiwai disse que era o lonko, o líder da comunidade. Ele dirigiria a
cerimônia. Quando começou a falar, identifiquei-o imediatamente.
Era Pedro Ruca!
- Amigos Mapuche de coração! Estamos por começar o
nguillatun. Queremos dizer-lhes que aquece nosso coração estar aqui
com irmãos de tantas partes do mundo. Este ritual é feito por nosso
povo como sinal de amizade, como resgate da esperança de um

90
futuro mais feliz e, acima de tudo, para pedir a nosso pai Ngenechén
que dê força espiritual a todos os nossos amigos!
Ao pronunciar estas palavras com maior ênfase, uma salva de
palmas, gritos e assovios inundou o vale abaixo e o céu acima com
alegria. Apesar de reservados, os Mapuche mostram-se intensamente
alegres e confiantes no futuro. Isto foi ficando claro à medida que
Pedro dirigia-se à audiência em sua abertura. Falou de esperanças,
comunhão e paz. Não foi um discurso demorado, mas foi
emocionante. Por fim, completou:
- Acima de tudo, celebramos aqui a inseparável união entre
espírito religioso, natureza e arte! Por isso, rendemos tributos ao
grande espírito azul. Viva a convivência pacífica e a comunhão!
Novas ondas de ovação retumbaram. Pedro então apanhou um
punhal que estava sobre a mesa e pediu para que dois ajudantes
içassem o cordeiro. Ao ficar suspenso no ar, Pedro cortou-lhe uma
veia no pescoço e seu sangue passou a jorrar dentro de uma bacia.
Parte do sangue foi preparada com outras misturas para ser
oferecido a terra. Neste momento, algumas anciãs em trajes muito
lindos começaram a entoar cânticos alegres. Logo em seguida,
instrumentos musicais começaram a acompanhar as cantorias. Eram
instrumentos de sopro, guitarras e tambores.
Enquanto ocorriam os cantares, as pessoas passaram a
confraternizar-se e conversar livremente. Alguns dos visitantes
tentavam acompanhar as músicas sem muito sucesso, pela
dificuldade em reproduzir a língua mapudungun. No altar processava-
se o carnear do cordeiro, após ter sido sangrado. Estava claro que
aqueles alimentos seriam para que as famílias e demais pessoas
fossem nutridas durante o ritual. Perguntei a Chiwai quanto tempo
levaria a cerimônia.
- Pode levar de dois a quatro dias, conforme o clima, a
disposição ou a necessidade. Neste caso, durará dois dias, pois
precisa ser respeitada a capacidade dos forasteiros em acompanhá-lo
– respondeu o guia.
Ficaríamos por ali dois dias. Avaeté avisou-me que seria muito
prazeroso permanecer ali. Era preciso apenas deixar-se tocar pela
alma do lugar.
- Vocês, juruakuery, esquecem de celebrar. Bebem, comem,
dançam e divertem-se, mas não celebram – assentou Avaeté.

91
Celebrar é freqüentar a casa do sagrado. É tocar coletivamente a
alma. “Vamos celebrar, celebrar, celebrar, vamos celebrar!” – e saiu
rindo e dançando.
Bebíamos chicha e comíamos mote e pão assado. Trocamos
experiências e idéias sobre a visão de mundo Mapuche, bem como
comparávamos as visões dos vários povos ali presentes. Eu mais
ouvia do que falava. Havia muita riqueza naquela celebração. Uma
sensação leve e alegre ia tomando conta de mim. Um tipo de
comunhão com aquelas pessoas, que celebravam tudo o que há de
bom e nos desejavam sorte e ânimo em nossas empreitadas e
viagens. Cada um falava sobre sua própria aventura e o que
pretendia. Encontrei muitas pessoas em trabalhos voluntários. Já
haviam vivido em várias partes do globo.
Logo a seguir, uma roda de danças chamou a atenção de todos.
Chiwai nos disse que começaria a dança do pürrum, uma dança
muito colorida, em função dos trajes dos dançarinos. Era cadenciado
e compassado, com um movimento de vai-e-vem imitando a corrente
dos ventos em diversas direções, assim como o movimento das
nuvens.
Entremeados às danças ocorriam discursos que provocavam
emoção e mais alegria. "Vivas" eram entoados a deuses, às forças
criativas e destrutivas, à natureza e ao espírito azul. E mais dança e
música. Era contagiante. Dava vontade de sair dançando em volta
daquele fogo. Muitos o fizeram. Eu fiquei um pouco envergonhado.
Avaeté, não. Apesar de dançar uma espécie de “outra dança”, estava
junto dos demais dançarinos muito à vontade. Uns divertiam-se com
as danças dos outros.
Cerca de três horas depois começou a ser servida a carne do
cordeiro. Havia também outras carnes sendo assadas e servidas,
como a bovina e a de caça. A música prosseguia enquanto
saboreávamos cortes macios e deliciosos. Logo após foi servida uma
sobremesa de frutas e trigo. Os músicos em seguida foram descansar
e alimentar-se.
Havia burburinho e relaxamento. Alguns já estavam sob efeito
da chicha, mas não havia exageros. Após alguns momentos de
conversas e descanso, os músicos retomaram as canções, que agora
se misturavam entre ritmos locais e outros ritmos andinos. Algumas
mulheres jovens da comunidade entregavam penas de aves para que
os visitantes as pusessem junto ao seu corpo. Chiwai me disse que as

92
plumas concediam poder, dependendo do pássaro a que
pertencessem. O condor concede força. O aguilucho, uma espécie de
falcão, concede as virtudes da visão, elegância e serenidade. Outras,
capacidade de enxergar no escuro. Ou velocidade ao correr. E assim
por diante. Eu recebi uma pena de aguilucho. Avaeté recebeu uma
pluma negra de condor.
Como as músicas andinas têm um ritmo muito apreciado em
todo mundo, a maioria dos visitantes pôs-se a dançar. Não tardei a
juntar-me àquele carrossel global de alegria, já que a bebida fez-me
perder parte da vergonha. Avaeté incentivava-me a dançar muito,
sem parar e de maneira ritmada. Aceitei sua sugestão. Passamos
mais de três horas a dançar aqueles ritmos.
Apesar de diferentes músicas, o ritmo parecia manter-se
constante. Entrava dentro da sua cabeça pelos ouvidos e espalhava-
se pelo corpo. Quanto mais dança, menos pensa, e você começa a
entrar numa espécie de transe prazeroso. Neste momento, alguns
dançarinos passaram a dar galopes circulares e gritos ininteligíveis.
Aquele transe era delicioso, mas senti a certa altura uma
impossibilidade total de continuar dançando, de modo que me atirei a
um canto, de onde tinha uma visão dos acontecimentos. Parecia
distanciar-me visualmente daquela massa de gente alegre, mas
sentia uma proximidade auditiva enorme. Era como se os músicos e
os bailarinos estivessem dentro da minha cabeça. Fui amolecendo o
corpo. Os sons ritmados e pulsantes lembravam um martelar
constante. O martelar parecia metálico, de aço contra aço. Comecei a
visualizar gigantescas fábricas muito quentes. Elas emitiam muitas
faíscas, e delas saíam enormes bolas incandescentes. Elas eram
arremessadas na escuridão do céu, na vastidão do universo. Com a
velocidade, as bolas resfriavam-se, tornavam-se às vezes vermelhas,
às vezes cinzas e às vezes azuis. À medida que esfriavam entravam
em um deslocamento circular mais suave, numa espécie de
movimento orbital.
Tentava afastar estas imagens com um esforço enorme para
abrir os olhos, mas via aquela dança muito ao longe, de maneira que
desaparecia novamente e as alucinações voltavam a tomar conta da
minha mente.
Nas alucinações, de repente, fui lançado para dentro de uma
daquelas bolas azuis a uma velocidade impressionante, até
materializar-me à frente de Avaeté diante de uma fogueira. Era o

93
mesmo Avaeté que eu encontrara anos antes, em Araxá. Estávamos
em Araxá. Avaeté disse-me algo. Foram duas frases. Ou, pelo menos,
era somente disso que me lembrava:
“Em Araxá, não existem perguntas nem respostas. Apenas tudo
em cada parte e cada parte em tudo.”
De súbito, fui então jogado dentro da fogueira. Tornei-me muito
pequeno. Enxergava por dentro a enorme fogueira de lenha de
floresta tropical. Ouvia os seus estalados. Mas escutando bem,
notava que não eram estalos. Eram marteladas. Marteladas de
pequenas fábricas que exalavam da própria fogueira. Marteladas
ritmadas. Como daquela dança.
As frases de Avaeté ressoavam em minha cabeça. Eu suava
muito. Não conseguia abrir os olhos, mas também não dormia.
Novamente, de maneira repentina, fui extraído daquela fogueira e
jogado de volta ao ritual. Senti-me novamente dentro do meu corpo,
como se meu espírito tivesse sido transportado de volta ao meu
lugar.
Como que num passe de mágica, recompus-me e passei a sentir
o corpo novamente firme. Tive um relance de iluminação,
acreditando que tinha compreendido aquelas palavras pronunciadas
por Avaeté no transe.
Procurei Avaeté com o olhar. Ele estava sentado, com as pernas
cruzadas, exatamente como na visão, na extremidade oposta à
minha no círculo. Fitava-me com olhar de fogo. Fui até ele. Dei a
volta pelo grupo de pessoas que ainda dançava. Avaeté não me
seguiu com o olhar. Estava com o olhar fixo, também parecendo
estar em transe. Não o perturbei. Apenas sentei-me a seu lado.
Dentro de poucos minutos, passou por um tremor corporal e tive
a sensação que também voltara de seu transe. Levantou-se num
único movimento e pediu que o acompanhasse.
Avaeté estava muito altivo e atento. Caminhamos por entre a
mata, até que perdemos de vista a festividade e a fogueira. Ficou
bastante escuro, mas Avaeté orientou-me para que caminhasse sobre
suas pegadas. Informou que as cercanias eram perigosas, pois havia
penhascos em ambos os lados da trilha. Quase caí algumas vezes,
mas mantive-me o mais atento possível ao caminhar. Logo em
seguida, descortinou-se a mata e ficamos diante de um rochedo que
oferecia uma vista para o sul da serra.

94
Sentamo-nos juntos sobre o rochedo. Estava me sentindo muito
bem, talvez como não me sentisse havia anos. Uma leveza incomum.
Avaeté aproveitou o momento:
- Sei que você tem sentimentos controversos, Pyá. Sente-se com
vitalidade racional, mas também é imaturo. É algo natural. Certas
pessoas são naturalmente controversas. Talvez sejam as mais
inquietas e as mais criativas. Mas está na hora de você transcender a
essa vida controversa. O mais irônico é que, apesar de transcender,
você continuará sempre controverso! Não é a ironia das ironias? – e
desatou a rir.
- Estou pronto, Avaeté. Estou sereno, mas não sei por quanto
tempo.
- É verdade. Vamos aproveitar essa janela. Sabe lá quando
teremos outra! Rá, rá, rá, rá, rá, rá! – gargalhou um pouco mais.
Avaeté olhou para uma pedra. A visão estava se acostumando
ao escuro. Perguntou então:
- O que aconteceu de essencial em seu transe?
- Foi aquilo que você falou no transe. “Em Araxá, não existem
perguntas nem respostas. Apenas tudo em cada parte e cada parte
em tudo.”
- É realmente algo essencial. Não esqueça que são apenas
palavras. A visão toda é que é essencial.
- Mas você sabe que as palavras são importantes para que eu
possa entender...
- Sim, mas você está aprendendo que elas podem ser
insuficientes e, às vezes, traiçoeiras. Seu aprendizado poderá ocorrer
através da mente, mas será principalmente através do seu corpo e
da sua alma. Aquela visão foi um ensinamento desses novos veículos.
- É verdade, Avaeté. Mesmo assim, desejo elaborar um pouco a
visão através das palavras.
- Ok. O que você deseja me contar? – perguntou Avaeté.
Levei algum tempo até chegar a alguma inquietude que,
acreditava, poderia ser esclarecida pela visão. Elaborei-a em voz alta,
sem maiores preocupações com alguma seqüência lógica:

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- Por exemplo, as questões que coloquei a você e você não me
respondeu. Sobre ver o mundo metaforicamente como máquina ou
como vida. Sobre se a natureza é eficiente ou livre...
- Já conversamos sobre essa forma dicotômica de ver o mundo,
Pyá.
- Sim, eu sei. Agora noto como ela pode ser danosa. A visão me
ajudou.
- Continue – estimulou Avaeté.
- O mundo é mais do que nossas classificações sobre ele.
Separamos aspectos mecânicos de aspectos biológicos do mundo.
Atribuímos característica “eficiente” ou "livre” a cada uma e
tentamos caracterizar o todo por uma destas partes. Na visão eu vi
que o mundo é mecânico e é vivo. Eu vi que ele é livre e é eficiente.
Ao mesmo tempo. Não é coerente tomar o todo pela parte. O todo
está nas partes, porque toda máquina tem aspectos vivos e todo ser
vivo tem aspectos mecânicos. E as partes estão no todo: livre e
eficiente ao mesmo tempo!
- Não desejo desestimulá-lo, mas você sabe que sua visão é
muito mais rica que seu discurso. Não é mesmo, Pyá?
- É verdade. Talvez fosse melhor contemplar isso em silêncio.
Mas eu preciso elaborar as coisas também em palavras. É meu jeito,
Avaeté.
- Percebo que está se esforçando. Um dia, não terá mais tanto
apego às palavras. Aí estará livre para usá-las mais criativamente.
- Anseio por isso.
- Tenhamos paciência. Fique aqui por um tempo e contemple
sua visão. Você ficará em boas mãos.
- Como assim em “boas mãos”?
- Você saberá em breve. Estou com sede. Preciso de água. Não
está com sede também? Espere aqui – falou, levantando-se e
desaparecendo por entre a mata.
Fiquei ali, envolto por uma manta para proteger-me do frio.
Apesar da escuridão, conseguia discernir vários montes ao redor.
Abaixo, apenas a escuridão. Senti uma espécie de tranqüilidade
interior com aquela visão. Naturalmente, não tive uma extensão

96
completa do significado daquilo. Mas acreditei nela como um sinal e
uma direção. Uma direção de pacificação. Não completa, mas
encorajadora. De repente, uma voz feminina veio por trás:
- A visão que você teve ajuda pacificar seu espírito? – era
Miguelina, oferecendo-me um cantil com água. – Avaeté contou-me
rapidamente o que lhe aconteceu no ritual. Quer me contar o que
está sentindo? – e sentou-se ao meu lado esquerdo.
- Sim, desejo muito. A visão foi reveladora. Por um lado, é
maravilhoso entender a complexidade do mundo como tudo estando
envolto em tudo. É como no meu sonho. Eu bebia de um vinho que
era o lago do mundo e era eu, ao mesmo tempo. Eu e o mundo, um
envolto no outro.
- Mas vejo que no seu tom de voz há também inquietude...
- Sim! Se for verdade que tudo está envolto em tudo, por que
vemos conflitos no mundo, Miguelina? Quero dizer, conflitos de
sobrevivência e morte. Por exemplo, entre brancos e índios, negócios
e comunidades locais ou entre homens e mulheres?
- Pergunte ao seu sonho e à sua visão, Pyá. Eles estão aí para
lhe responder.
- Você acha isso?
- Claro! Sabe por que acho isto?
- Diga-me – falei com curiosidade.
- O seu sonho e a sua visão vieram do seu coração e chegaram
a você pela sua alma, Pyá.
Fiquei um pouco desconcertado. Tanto o sonho quanto aquela
visão pareciam para mim como vindos de algum lugar exterior. Que
alguém mais mandou. Não parecia ter nascido do meu interior.
Miguelina continuou:
- Você não está acostumado a ouvir seu coração. Abra-se para
ele.
Silenciei por alguns instantes para poder ter noção disso. Tanto
quanto Avaeté, mas de formas diferentes, notava a manifestação de
sabedoria em Miguelina. E também em Pedro Ruca, Federico, Mestiza
e nos demais amigos Mapuche.

97
- Como a gente se abre, Miguelina? Como abrimos o coração? –
perguntei com sinceridade.
- Com desapego e poesia, Pyá.
- Como assim? – indaguei.
- Sua visão é pura poesia. O que você viu nela? Você crê que é
um martelar mecânico. Eu acho que é mais como um pulsar. O pulso
do mundo batia em sua cabeça e criava a vida. Era o coração do
mundo criando a vida! É lindo!
- E o desapego?
- Falei em desapego porque, para ver de maneiras diferentes,
você precisa se desapegar da sua própria visão. Esqueça seu
intelecto um pouco. Use as emoções. Emocione-se ao entrar em
contato com a fonte da vida. Nos seus sonhos e na sua vida.
Emocione-se ao saber que tudo é diferente. Mas que, ao mesmo
tempo, tudo está envolvido em tudo.
“Por exemplo, homens são diferentes de mulheres. Isto não é
maravilhoso? Mas o que é mais maravilhoso é saber que estão,
ambos, um envolto no outro. O que seria de um homem sem todas as
mulheres envolvidas na sua vida. Pense em todas as mulheres que
tocam a alma de um homem: mãe, avós, antepassadas, amigas,
gerentes, professoras, agricultoras, amantes, operárias,
abolicionistas, domésticas, líderes. O mesmo para as mulheres: elas
são o resultado de milhares e milhares e milhares de homens.
Homens e mulheres do passado, presente e futuro: resultados e
resultantes uns dos outros! Isto é poesia pura! Isto é a alma
buscando integrar-se. Homens envoltos em mulheres envoltas em
homens envoltos em mulheres. Essa é a sua visão, Pyá. Sua
emocionante visão. Seu emocionante sonho.”
Comecei a pensar em todas as mulheres que forjaram a minha
vida. Algumas muito intensamente. Algumas efemeramente.
Lembrei-me da minha mãe, da minha avó. Lembrei-me de minhas
mestras. Lembrei-me das minhas amigas. Lembrei-me das minhas
mulheres. E lembrei-me do amor de todas.
Lembrei das que não conheci. Senti saudades das que nunca vi.
O nó na garganta foi subindo. Engolia para fazê-lo descer. Miguelina
pôs a mão no meu ombro. E eu desatei a chorar. Não era um choro

98
copioso ou convulsivo. Era um choro como o de um riacho pedregoso
que se umedece com o desgelo lento da primavera.
Chorei pelo amor dessas pessoas. E pelo que isto deixou em
mim. Chorei por quinze minutos. Meia hora, talvez. Chorei de tristeza
e de alegria. De tristeza feita de saudade. E de alegria de saber que
minhas entranhas eram feitas de amor.
Miguelina abraçava-me enquanto eu soluçava. Dizia:
- Chore o choro dos tempos. Chore o choro do final do inverno.
Para que vire água dos rios, dos mares e dos picos nevados. E, então,
chore novamente.
Miguelina era uma mulher de real sabedoria. E de poesia.
Alguém para se ter como verdadeiro amigo. Amparou-me para que
levantasse e regressássemos ao ritual. Cruzamos juntos a escuridão
até onde havia novamente festa e confraternização. Uma fogueira
renovada iluminava a noite através de uma coluna de mais de dez
metros de altura.
Havia uma energia renovada também entre as pessoas. Estava
ocorrendo uma dança muito diferente. Era movida por um violino e
um violão, bem como por um pequeno tambor ritmado. Havia dez ou
quinze dançarinos circundando um homem que andava em
ziguezague no meio do círculo. Portava um bastão em uma das mãos.
Conduzia-o a cerca de quarenta centímetros perpendicularmente ao
chão. Lançava-o contra as pernas dos dançarinos, tentando fazer com
que tropeçassem e caíssem.
Fiquei olhando aquela dança estranha e imaginando o seu
propósito. Chiwai me cutucou e explicou:
- Avaeté está ensinando ao povo Mapuche o xondaro. Ele disse
que é uma mistura de dança e arte marcial Guarani.
- Como ela funciona? – perguntei.
- Veja os movimentos de Avaeté. Ele é a natureza. Comanda a
dança num certo ritmo, mas, aleatoriamente, ataca os participantes
com o bastão. O dançarino deve manter-se atento e esquivar-se para
não ser derrubado. Avaeté disse que o xondaro faz com que se tenha
uma atenção consciente com relação à vida.
- Mas é uma dança muito alegre! – admirei-me.

99
- Como a vida! Você deve viver alegremente, mas não
descuidadamente. – concluiu.
Vi que alguns se esquivavam espertamente, enquanto outros,
por falta de habilidade ou afetados pela bebida, tropeçavam e caíam.
Quando isto acontecia, havia muito riso. Resolvi experimentar. Entrei
na roda e passei a dançar de maneira ritmada no sentido do giro dos
dançarinos. Avaeté notou, mas permaneceu impassível no seu
próprio ritmo. Dei uma, duas, três voltas de maneira muito atenta. De
repente, Avaeté tentou um ataque, do qual me esquivei com rapidez.
Estava pronto para regozijar-me com Chiwai pela minha esperteza,
quando Avaeté atacou novamente e me fez cair de costas. Ele seguiu
dançando como se nada tivesse acontecido, enquanto a platéia
achava muita graça. Também ri bastante da minha trapalhada, mas
não me envergonhei. Avaeté gritou:
- Não esqueça: o seu corpo é que tem que aprender – e ofereceu
o bastão para levantar-me.
Entrei novamente na dança, esquivando-me ou quase caindo no
chão por vezes. Era muito divertido. À medida que ela se
desenrolava, muitas pessoas entravam e saíam. Eu próprio entrei e
saí do xondaro várias vezes. Fui ao chão por umas três vezes.
Precisava de muito treino para ter mais destreza. Em seguida, a
música cessou. As pessoas aplaudiram e Avaeté fez algumas
considerações finais sobre a dança:
- Estas experiências são feitas para o corpo aprender. O nosso
corpo precisa aprender que as forças da natureza estão aí, seguindo
seus caminhos. Se você interpuser-se a elas, sofrerá ou morrerá. Por
isso, seu corpo precisa estar atento a estas forças, fluir com elas e
modificá-las no ponto certo, no tempo certo, com eficiência e
maestria.
Todos aplaudiram e agradeceram a gentileza de Avaeté. Quando
as palmas cessaram, Pedro Ruca aproveitou a pausa para agradecer:
- Obrigado, Avaeté, pelas lições de hoje. Creio que todos nós
estamos exultantes com as demonstrações de sabedoria e felicidade
ocorridas aqui hoje.
- Eu é que agradeço a acolhida de todos os irmãos Mapuche
desta terra – reiterou Avaeté.

100
- É uma honra para nós, Mapuche. Com isso, creio que podemos
relaxar os trabalhos para que todos possam descansar. Tenham
todos uma boa noite! – despediu-se Pedro.
Houve ainda uma salva de palmas. Todos começaram a dirigir-
se para locais abrigados, em pequenos grupos. Passaram a conversar
em tom de voz suave e a recostar-se para dormir. Achei engraçado
Pedro desejar “boa noite” quando já estava quase raiando o dia.
Bem, cada um entraria na sua própria noite pessoal.

3
Não havia percebido o quanto aquela maratona tinha me
deixado cansado. Os músculos quase não respondiam mais aos
comandos. Localizamos um local na mata abrigado pela copa das
árvores e estendemos mantas e cobrimo-nos com outras cobertas.
Naquele local estávamos eu, Avaeté, Chiwai, os nossos companheiros
de caminhada e dois ou três outros locais e viajantes. Era muito
integradora a maneira como tudo se dava, pois compartilhávamos
comida, bebida, dança, conversa, canto, alegria e adormecer.
Não tardei em estar em sono profundo. O mesmo ocorreu com a
maioria. Aquele sono restaurador durou muitas horas. Quando os
primeiros a acordar começaram a conversar e a acordar os demais, já
passava do início da tarde. Uma brisa suave e refrescante soprava do
sudoeste. Joguei sobre minha face e pescoço um pouco de água fria
para estimular a circulação.
Serviram-se chá, pães, empanadas e mote. Logo em seguida
houve um movimento coletivo de rearranjo e limpeza do local, para
que iniciassem as celebrações da segunda noite do nguillatun. Nas
conversas, descobrimos que seria uma noite de apresentações dos
viajantes. De maneira livre, não programada, os viajantes poderiam
mostrar seus dons.
Havia uma amistosidade muito declarada entre todos os
participantes. Todos fizeram novas amizades. Trocaram idéias sobre
viagens e maneiras de estar contribuindo voluntariamente em várias
partes do mundo. Empreendimentos sociais eram discutidos, bem
como idéias sobre ações e mobilizações políticas. Conheci pessoas
que me falaram de diferentes culturas, sobre artes e sobre religião.

101
A noite começou a chegar e a fogueira foi prontamente acesa.
Novos suprimentos de alimentos e bebidas ficavam à disposição.
Rodas de violão surgiam à medida que os instrumentos passavam de
mão em mão. Pequenos shows eram realizados à beira da fogueira
para audiências maiores ou menores. Era uma grande festa ao ar
livre.
Músicas as mais diversas eram ouvidas. Às vezes, tons andinos.
Outras, sons tropicais. Passava ainda por ritmos africanos e
indígenas. Sons pop ou rock-'n'-roll eram obtidos do violão itinerante.
Cantorias coletivas para uma ou outra música mais conhecida. Os
visitantes estavam à vontade. Demonstravam danças locais
adaptadas a sons cosmopolitas e vice-versa.
A festa varou a madrugada, como no dia anterior. Alguns se
recolhiam mais cedo, sob efeito da bebida, enquanto outros
resistiam. Minha mente estava mais despreocupada. Nem mesmo
fiquei rememorando muito os acontecimentos da última noite. Aquela
reunião foi de uma alegria muito fluída.
Estava ficando claro para mim que apreender um mundo novo
não seria feito sob o controle da mente. Era preciso soltá-la para
deixar aqueles ensinamentos e maneiras de viver diferentes
penetrarem no corpo e na alma. Por isso, não ocupei a mente
naquele dia. Apenas entreguei-me ao fluxo.
Veio a madrugada e as primeiras horas da manhã. Novamente,
com os músculos exaustos. Dormimos sob a mesma proteção. E
imaginamos como seriam os próximos dias.
Ao acordar, era hora de arrumar o local e descer de volta ao
povoado. Todos ajudaram na limpeza, de modo que não restassem
vestígios de presença humana. Ajudamos no transporte dos materiais
e suprimentos e tomamos a trilha de volta a Pikuche.
Uma vez no povoado, despedimo-nos de alguns dos viajantes
que estavam prontos para ir embora. Prometemos nos reencontrar
pela estrada ou em alguma localidade deste mundo. Em seguida
rumamos para a casa de Pedro.
Uma vez de volta à casa, tomamos um banho e fomos relaxar
na varanda. Foram dois dias esgotantes das energias corpóreas.
Avaeté preparou mate e compartilhamos daquela cuia. Falávamos de
assuntos diversos e sobre o dia-a-dia do povoado. Avaeté, então,
expôs suas idéias:

102
- Caro Pedro, a celebração de ontem foi espetacular. Nosso
objetivo principal em estar aqui com vocês é compartilhar e celebrar
juntos, assim como várias vezes ocorreu entre nós...
- É verdade, Avaeté. É sempre uma emoção grande quando você
retorna à nossa convivência. Já havia quase cinco anos que você não
vinha nos visitar – lembrou Pedro.
- Havia um motivo importante em voltar aqui. Estou com meu
novo companheiro de aventuras: Pyá. E tinha certeza que conhecê-
los faria muito bem a ele.
- Sem dúvida. Nossos dias desde que deixamos El Calafate têm
sido de aprendizagens e emoções fantásticas – confirmei.
Avaeté dirigiu-se a Pedro:
- Caro amigo: não teremos muitos dias para estar aqui na
companhia de vocês. Pretendo ficar mais uns três ou quatro dias, não
mais do que isto. A alma do mundo tem outras pontas que
precisamos tocar. Pretendemos seguir no rumo norte, onde
pararemos aqui ou ali. Nosso novo destino é San Pedro de Atacama.
De lá, cruzaremos novamente os Andes para leste. Desejamos
encontrar novos povos.
- Amigo Avaeté, você tem o tempo que quiser para ficar aqui e
ser nossa companhia. Estamos felizes só de vê-lo – reiterou Pedro.
Avaeté e Pedro contaram-me de onde vem sua amizade. Ela é
de tempos anteriores. Avaeté é um morador das estradas. Conheceu
Pedro em Temuco, numa festa-manifestação pela formação de um
partido Mapuche. Avaeté vagava pelas terras a oeste da cordilheira e
soube da concentração de nativos Mapuche naquela cidade. Pedro
comentou que a cidade havia sido tomada pelos moradores dos
povoados ao redor.
- Pedro era então um jovem líder. Bradava com seus
companheiros para que lutassem por uma vida melhor para o povo –
explicou Avaeté. – Fiquei ali, observando o movimento, até localizar o
grupo daquele líder. Como falava da alma, tinha que conhecer seus
amigos. Foi aí que o conheci, sua esposa Miguelina, além de Federico
e Mestiza, companheiros seus de longa data.
- É verdade, Avaeté – concordou Pedro. – É bom relembrar isso.
Você chegou sem cerimônias e disse que gostaria de juntar-se a nós.
Lembro-me do povo todo dormindo pelas praças naqueles dias. Nós

103
fomos até o mercado, bebemos um pouco e conversamos sobre a
luta. A conversa tornou-se acalorada e precisava ser refrescada com
bebida. Acabamos passando da conta e dormimos dentro do próprio
mercado público.
- Sim! Rá, rá, rá, rá! – gargalhou Avaeté. – Todos fecharam as
portas e ficamos lá dentro trancados.
- Dormimos sobre palhas e sacos de linho. Foi muito divertido –
disse Miguelina sorrindo. – Você lembra, Pedro, como escrevíamos
naquele tempo?
- Sim, Miguelina, escrevíamos poesia. Mas são tempos idos...
- Os tempos são idos, mas não os sentimentos...
- Uma poetisa da vida, não é mesmo, Pyá? – cutucou-me Pedro.
- Uma poetisa da vida, com certeza – confirmei.
Conversamos e tomamos mate por várias horas. Vez por outra
petiscávamos algum aperitivo ou bebericávamos um pouco de
chicha. Avaeté indagou sobre as necessidades atuais do povoado.
Pedro disse que várias coisas muito úteis já estavam sendo
providenciadas pelos visitantes, como ensino de idiomas para as
crianças e os adultos, organização de pequenos empreendimentos
comunitários, registro digital da história do povo, bem como resgate
de elementos de sua cultura. Citou uma série de assuntos nos quais
os viajantes e voluntários colaboravam. Avaeté estimulou o assunto
para que pudéssemos nos encaixar em alguma atividade
comunitária. E adicionou:
- Para ser honesto, Pedro, desejamos colaborar em algum tipo
de atividade mais básica, se é que me entende?
- Você quer dizer ligada a terra, correto?
- Exato – reforçou Avaeté.
- Muito bem. É uma época muito boa para ir plantar batatas,
com o perdão do trocadilho – disse Pedro sorrindo e olhando para
mim. Estamos na época da seleção das sementes, momento que
antecede o plantio. Que tal vocês nos ajudarem nesta tarefa?
- Era o que eu imaginava. O que você acha, Pyá?
- É uma boa oportunidade para tirar das minhas mãos este
branco denunciador da minha condição de almofadinha...

104
- É isso aí! – comentou Pedro.
- É isso aí! – reforçou Avaeté.
Foram, na verdade, quatro dias de trabalho intenso, da manhã
ao anoitecer em contato com a terra. Os Mapuche tinham um sistema
agrícola muito adequado, de maneira pouco extensiva, em rotação
de culturas e entremeando vários tipos de plantas. Era uma forma
muito em acordo com a própria natureza circundante. Primeiro
trabalhamos selecionando sementes-tubérculo. Foram centenas que
passaram pelas nossas mãos. Depois acompanhamos homens e
mulheres que se dirigiam aos locais de plantio. O terreno já estava
previamente preparado e o trabalho todo tratava de colocar as
sementes na terra e cobri-las de maneira apropriada e carinhosa.
Aliás, este era um aspecto interessante: o carinho com que homens e
mulheres tratavam terra e sementes.
Neste tipo de atividade seu corpo está plantado na terra, mas
seu espírito está livre como o condor. Conversávamos entre os
trabalhadores sobre a maneira com que este povo enxergava o
mundo. Falava com Avaeté também sobre os ensinamentos das
experiências pelas quais passamos. Eu disse que estava muito longe
de uma sabedoria tranqüila como a que Avaeté, os Guarani ou este
povo possuíam. Avaeté disse que o que era aprendido não eram
coisas definitivas. Muitas e muitas vezes revisitaríamos o que
passamos, como forma de reelaborar e fixar o que aprendemos. Eu
disse que, além disso, tinha muitas idéias de minha tradição
“civilizada” que gostaria de testar. Avaeté disse para não ter pressa.
Teríamos muito tempo. Como disse um companheiro de trabalho
Mapuche: “Não se preocupe: pu-am, a alma universal, estará sempre
ao lado daqueles que a buscam.”

4
Certo dia, perguntei a Avaeté, no meio da lavoura, como ele
conseguia ser uma pessoa tão direta e aberta. Parecia-me que esse
jeito direto e aberto era o que fazia de Avaeté um sujeito ligado.
Disse a ele que admirava essa forma de portar-se, pois, no convívio
social em que eu estava acostumado, era difícil você não assumir
algum papel, personagem ou máscara no dia-a-dia. Avaeté
surpreendeu-me:

105
- Cuidado, Pyá. Você não tardará a defrontar-se com uma
encruzilhada.
- Avaeté, fazia tempo que você não me dava uma resposta
misteriosa como essa – reclamei.
- Fazia tempo que você não fazia uma pergunta dicotômica –
replicou ele.
Fiquei tentando imaginar a que dicotomia Avaeté referia-se.
Considerava Avaeté um sujeito puro. Aliás, olhava para as pessoas à
minha volta e via-as como pessoas puras. Não via necessidade de
que tivessem máscaras. Avaeté não esperou que eu chegasse a
verbalizar o conflito entre viver a pureza ou viver de máscaras:
- Pyá, seu coração precisa de uma casa. Se você é incapaz de
lidar bem com as emoções, fará uma fortaleza ao seu redor. E aí
estará isolado. E seu coração mofará. Ou se transformará numa
pedra. Por outro lado, se você não tiver uma morada para ele, estará
à mercê do tempo e das forças destrutivas. Por isso, construa uma
casa para seu coração. Uma casa muito arejada. E convide seus
amigos a freqüentá-la! Sem máscaras, sem fortalezas, sem muros.
Apenas uma morada arejada e aconchegante! Pyá tekoha!
- Perdão?
- Pyá tekoha. A morada do coração. Faça uma bem arejada – e
continuou semeando batatas.
Pensei sobre todos os novos domínios que passei a viver desde
meu reencontro com Avaeté. Foi pouco mais de uma semana e já
vivia uma vida muito diferente da que levava. Aprendi coisas novas,
tanto aqui, no contato com a terra, quanto em domínios que não
estava acostumado a transitar: o domínio da alma e o domínio do
coração. Territórios novos, uma imensidão a explorar. A mente é
necessária e importante. Mas é apenas uma dimensão, às vezes
árida, desta multidimensionalidade que é a vida.
Ficava imaginando o quanto havia para explorar nestes novos
terrenos. Seria ainda uma viagem tão surpreendente quanto o foi até
agora? Aprenderia ainda muito? Avaeté garantia que sim. O quão
transformadora seria? No que me transformaria? O medo e a
expectativa de continuar uma viagem radical é tão grande ou maior
do que a de iniciar uma viagem desconhecida.

106
Nosso retorno à comunidade, à tardinha, era de extenuação
física, mas também de leveza espiritual. Um banho rápido, um jantar
frugal e nos deslocávamos para a rua para observar a noite e
conversar. Certa feita, Pedro indagou-nos:
- Vocês têm uma idéia dos próximos destinos da sua viagem?
- Iremos a San Pedro. Mas creio que teremos algumas paradas
pelo caminho. A passagem para o norte é muito linda. Do verde do
sul ao deserto no norte – disse Avaeté.
- Como vocês pretendem deslocar-se até lá? É um longo
trecho... – comentou Pedro.
- Como o fazem os verdadeiros viajantes: do jeito que der – falou
displicentemente Avaeté.
Pedro, então, recomendou:
- Vocês poderão obter carona, mas evitem fazê-lo nas estradas.
A polícia não permitirá. Peçam ajuda nas comunidades. Quanto
menores, melhor. Se quiserem efetuar algum trecho a pé, evitem
também as estradas principais.
- Não podemos pegar um ônibus ou trem, Avaeté? – indaguei,
imaginando ser uma opção.
- Só tomaremos um transporte impessoal se for estritamente
necessário. Por que se apressar se podemos aprender imensamente
durante a viagem?
Pedro comentou com gentil entusiasmo:
- Caro Avaeté: desejo informar-lhe que precisamos estar em La
Serena em poucos dias. A van já está em ordem. Federico, Mestiza,
Miguelina e eu temos negócios a realizar no Vale do Elqui. Não deseja
ir conosco?
Aprendi a gostar daquelas pessoas. Mostraram-se pessoas
amorosas. Achei que prolongar o contato com aqueles novos amigos
seria maravilhoso. Avaeté, percebendo minha inclinação a aceitar o
convite, perguntou:
- O que você acha, Pyá? Estaríamos em boa companhia?
- Mas é claro! Adoraria que seguíssemos viagem juntos –
afirmei.

107
Não era somente a idéia de estarmos em boa companhia na
estrada. Acreditei que teria algo mais a aprender com aquela gente
boa. Pedro sentenciou, então:
- Muito bem, está decidido. Tomaremos as providências
necessárias e partiremos em três dias.
Foram mais três dias de convívio alegre em Pikuche. Além de
trabalhar, também fizemos trilhas para conhecer os arredores.
Federico disse que não poderíamos deixar o lugar sem subir o Vulcão
Llaima. No dia anterior à nossa partida, Chiwai nos levou até o
caminho de subida da montanha. Naturalmente, não subimos até o
topo, mas foi uma experiência maravilhosa. Faltava o ar, tivemos
dificuldades em escalar pedras, terrenos arenosos e neve, mas
tivemos uma visão linda dos arredores. No meio do caminho,
extenuado, pedi a Chiwai para que regressássemos, e assim foi feito.
Na última noite discutimos sobre a viagem. Repassamos o
roteiro. Federico nos disse que não haveria alternativa a não ser
tomar a principal estrada de ligação entre o sul e o norte: a Ruta 5.
Disse que era uma longa e retilínea estrada, mas haveria
oportunidade de sair dela e visitar locais de beleza natural e humana,
como os pequenos povoados serranos ou litorâneos.
Terminado o planejamento da rota até La Serena, local onde
nossos caminhos tomariam rumos distintos, recolhemo-nos aos
aposentos e tratamos de preparar as mochilas. A de Avaeté era
invariável. A minha foi brevemente aumentada por mantas e
apetrechos que os nativos estavam acostumados a levar. Algum
alimento de emergência poderia ser útil num aperto, como trigo ou
arroz. E nada mais que isto.
Fiz um balanço com Avaeté do que acontecera até então. Disse
que todo este mundo novo era maravilhoso, que sentia falta de
algumas coisas da minha vida anterior, mas que tinha a esperança de
uma abertura para coisas ainda mais maravilhosas à frente.
Uma coisa apenas me surpreendia. Disse a Avaeté que
imaginava que nossas lições seriam mais como que palestras ou
aulas que ele proferiria a mim e a eventuais outras pessoas.
Contrariamente a isso, quantitativamente Avaeté havia falado muito
pouco em comparação à minha expectativa. Avaeté limitou-se ao
seguinte:

108
- Não se aprende a viver por palestras. A única maneira é
experimentando o viver. Boa noite, Pyá.
- Boa noite – desejei, puxando as cobertas.

109
Avaeté

Seis

110
1
Tomamos café com um misto de saudade e expectativa. As
mochilas já estavam na sala à espera de pô-las nas costas e partir.
Miguelina encostou a porta assim que passamos e fez uma pequena
pausa para pedir por algo com os olhos fechados, em forma de reza.
Acho que pedia pela sua comunidade e pela nossa viagem. Assim que
me viu olhando para ela, apontou para o céu:
- O espírito azul, lembra?
Estava pedindo proteção aos antepassados. Quando nos
dirigimos à companheira van, com nossos amigos Federico e Mestiza
aguardando por nós, brinquei:
- Acho que estas pessoas têm alguma dificuldade com
despedidas. Toda vez que partimos, eles nos acompanham.
- Não esqueça o que eu lhe disse: nós é que os
acompanhamos... – corrigiu-me Avaeté em tom bem-humorado.
Federico estava orgulhoso do seu carro. Estava consertado e
respondendo bem aos seus comandos. Regressamos pelo caminho
que há dias atrás passamos, enxergando uma paisagem diferente.
Estava ensolarado, mas nós estávamos mais alertas e descansados
do que quando chegamos. O Vulcão Llaima estava grandioso à nossa
direita. Ingressamos também à direita na estrada que leva a
Melipeuco e cruzamos o povoado em direção à cidade de Temuco.
Temuco é uma espécie de capital cosmopolita da nação
Mapuche. É a maior cidade da região e é destino intermediário de
muitos viajantes que se aventuram cordilheira adentro, em direção
aos povoados, montanhas, vulcões e lagos.
Nossa parada na cidade explicava-se. Desejávamos comprar
alguns suprimentos para viagem. Ingressamos no mercado central e
circulamos pelas vielas em forma de labirinto. Havia um clima de
total intercomunicação entre vendedores e clientes, com altos
brados, música, pechinchas e congregação. Compramos um ou outro
mantimento e paramos na famosa banca onde Avaeté, Pedro e
companhia tomaram “umas que outras” anos atrás, quando se
conheceram.
Pedimos cerveja, pisco sour e aperitivos. Paramos ali por alguns
momentos, brindamos aos “velhos tempos” e partimos logo a seguir.

111
Antes de sair da cidade, passei em uma livraria para comprar algo
para ler. Fiquei feliz ao encontrar um livro de poesia e prosa
Mapuche. Mostrei a Miguelina, que aprovou completamente: era
Elicura, um dos maiores poetas do seu povo.
Tomamos a Ruta 5, uma rota também mítica. Ela é parte da
grande Rodovia Panamericana, que liga o Alasca a Terra do Fogo.
Não havíamos rodado mais que cinqüenta quilômetros, quando
carabineros nos abordaram. Apresentaram-se documentos, trocaram-
se algumas palavras de identificação e fomos saudados com um
respeitoso e sincero “buen viaje”.
Logo em seguida começou a chover. Mestiza disse que, às
vezes, a chuva estende-se por até vinte dias ininterruptos ou mais.
“Ah... aquela gostosa sensação de proteção da chuva...” – pensei.
Deixamos a estrada na altura de Collipulli e rumamos para oeste. O
objetivo era, conforme noticiou Federico, passar a noite no Parque
Nahuelbuta. À medida que penetrávamos no parque, notamos o
adensamento da vegetação, predominantemente florestas de
araucárias e carvalhos. Algumas destas árvores são gigantes, com
até cinqüenta metros de altura, dois metros de diâmetro e idade de
até 2.000 anos. Paramos para abraçar algumas delas e logo em
seguida partimos em direção à costa. Seria uma emoção encontrar o
Oceano Pacífico, com suas águas frias.
Pelos caminhos observamos a rara raposa de Chiloé. Era uma
mãe com seus filhotes. Notamos também muitas orquídeas. Dos
picos do parque, com até 1.500 metros de altitude, era possível mirar
tanto o mar quanto os Andes. Foi possível realizar algumas
caminhadas curtas antes de acampar.
Obtivemos orientações para nos instalar no camping Pehuenco,
não muito distante da administração do parque. Comemos no jantar
arroz com lingüiça, uma especialidade de Avaeté. Que louca
sensação. Estava me acostumando àquela vida! Parecia algo que
estava programado para acontecer! Boa noite, estrelas. Boa noite,
lua. Boa noite pehuens.

2
Não foi preciso acordar muito cedo no dia seguinte. Por volta
das oito horas e trinta minutos da manhã iniciamos o despertar, com

112
o tradicional mate de Avaeté. Ele sempre tinha à mão sua cuia, sua
bomba e erva mate. Aquecer água sem deixá-la ferver e sorver
aquele estimulante matinal... Já estava habituando meu corpo àquela
prática. Avaeté descreveu-o brevemente:
- Este hábito se cultiva em toda região sul da América do Sul.
Ele é originário do povo Guarani, que utiliza a erva mate como
digestivo e estimulante. É um hábito saudável pela manhã ou ao final
da tarde.
Para deixar o parque, optamos por seguir para o norte até
Concepción. Utilizamos rotas secundárias, costeando o oceano e
passando por pequenas praias desertas e elevados rochedos. Não
resisti a tomar um banho de mar naquelas águas geladas de doer. Os
demais se limitaram a apreciar a vista. Ironizaram ao dizer que, se
avistassem uma tsunami, avisariam com a devida antecedência.
Prosseguimos por estradas pequenas que ligam pequenos
povoados costeiros, resorts e colônias de pescadores. Miguelina
aconselhou que não poderíamos deixar de visitar Isla Negra. Esta
pequena vila guarda uma das míticas casas que pertenceram ao
poeta Pablo Neruda.
A casa é um tesouro. Aberta à visitação, se parece com um
barco, com a proa apontando a direção sudoeste. Ele próprio pediu
para que fosse enterrado lá. Sua sala é como um grande convés.
Próximo à proa está uma escotilha, diante da qual se encontra a
mesa de trabalho de Neruda. Federico mirou através da janela e
sentenciou o mesmo que qualquer viajante diria diante da cena:
- Com esta vista diante da minha mesa, até eu viro poeta...
De fato, era uma vista maravilhosa do mar. A própria mesa de
trabalho, contam, foi feita de uma tábua que chegou à praia pelo
mar. Neruda costumava dizer que era presente das águas.
Fomos dar uma volta na praia. Sentamos sobre as rochas,
admirando as ondas daquele azul profundo e enorme. Este lugar tem
o poder de demonstrar que a vida é invulgar. Repentinamente, um
cachorro escalou a pedra onde eu estava e farejou-me. Logo a seguir,
deitou-se a meu lado. Dei uma olhadela para Avaeté, como que
imaginando algum pensamento seu. Avaeté disse:
- O cachorro é seu animal protetor e guia. Mas não qualquer
cachorro. Apenas aqueles que vivem na rua. Como esse vira-lata que

113
está ao seu lado. Ele está dando um sinal. Um sinal de que você
receberá um ensinamento. Alegre-se, Pyá!
Acariciei o cão safado e disse-lhe que agradecia por estar ali.
Federico, bem-humorado, lascou:
- Se cachorros são bom sinal, você vai “fazer a festa” nesta
terra. O que mais há por aqui são cachorros de rua. Rá, rá, rá! – riu.
Pedro emendou:
- Esta é a terra dos cães livres! Viva Neruda! – e ergueu uma
taça de vinho imaginária. Todos brindaram.
Ficamos ali sentados por algum tempo sentindo a brisa e a
maresia. Logo a seguir, já sentindo o estômago roncando,
combinamos procurar um local para comer. Seria um almoço-janta.
Outra pequena extravagância permitida. Seguimos até uma hostería
pouco conhecida dos turistas, mas cujo restaurante servia um
excelente curanto.
Pedimos pisco de aperitivo e depois vinho. O curanto veio a
seguir, com seus mariscos, carnes de peixe, porco e frango, verduras,
lingüiças e batatas. Uma delícia. Comemos maravilhosamente bem.
Não tardou para que Federico nos recomendasse retornar à
estrada. Seriam mais de trezentos quilômetros ainda a percorrer, se
desejássemos acampar do Parque Fray Jorge. Federico informou que
haveria uma surpresa nos aguardando se chegássemos a tempo ao
local. Para isto, pegamos a Ruta 5, visando ganhar tempo.
Recostei minha cabeça no vidro da janela e fui curtindo as
paisagens. Elas foram aos poucos deixando de ser verdes para
tornarem-se levemente amareladas, rasteiras e, muitas vezes,
deixando à mostra a arenosidade do terreno e a cor das rochas
vulcânicas. O deserto estava voltando aos poucos. Eu amo o deserto.
Ele traz a sensação da vastidão do mundo e do quanto estamos à
mercê das suas forças. É a mesma de quando você está em alto-mar
ou no topo das montanhas. Além disso, o deserto é amplamente
silencioso.
Avaeté serviu-nos mate para injetar um pouco de cafeína e
manter-nos alertas. Era, sobretudo, para facilitar a digestão daquela
extravagância alimentar. E oferecer um pouco de hidratação, retirada
pelo deserto e pelo vinho. A tarde ia dando seus últimos sinais de
vida. Em não mais que uma ou duas horas, seria noite escura.

114
Sentíamos certo cansaço, à exceção de Federico, que se
mantinha altivo e alerta. Não tardou a chamar a atenção para que
ficássemos atentos, pois a estrada poderia, às vezes, ser traiçoeira.
Não sabíamos quanto a quê deveríamos ficar alertas, mas seguimos
seu conselho. De repente, uma névoa espessa surgiu do nada,
impedindo completamente a visibilidade diante do veículo. Olhei
preocupado para Federico, mas ele estava com um leve sorriso no
rosto. Parecia deliciar-se com a situação.
A coisa ficou feia e fantasmagórica. É que aquela névoa não era
uniforme. Era como se nuvens tivessem baixado subitamente à
estrada, em formatos pincelados, de maneira que cortávamos as
mesmas, gerando pequenos intervalos de visibilidade entremeados
com muita neblina à medida que o veículo deslocava-se. Algo como
um formar-se e esvair-se rapidamente. A estrada às vezes
serpenteava, mas não tínhamos a menor idéia de para onde, nem se
haveria automóveis ou caminhões à frente. Comecei a ficar um pouco
aterrorizado. Apenas os Mapuche não estavam preocupados. Eu e
Avaeté nos olhávamos. Federico sorria.
- Gostaram da surpresa? – perguntou.
- Por favor, fique atento à estrada, Federico – disse eu, temendo
por um acidente.
- Fique tranqüilo. Estamos voando no céu! – e sorriu ao olhar
para mim através do retrovisor.
Era lindo e aterrorizante ao mesmo tempo. Perguntei, afinal, o
que era aquela surpresa. Pedro respondeu:
- É a camanchaca! Ela aparece na costa do Pacífico pelas
variações de temperaturas entre o oceano e o ar costeiro. Não é
maravilhosa?
- E sinistra, também! – emendei eu, já me acostumando um
pouco ao fenômeno.
- Neste caso, também é sinal de sorte. Estamos próximos à
região de Fray Jorge – informou Pedro.
- Por aqui o deserto costeiro vai dar lugar a uma ilha de bosques
úmidos alimentados pela camanchaca. A neblina fica presa neste
local pela Cordilheira da Costa – continuou Mestiza.

115
- E aqui encontraremos em abundância várias espécies animais
e vegetais, como a caneleira, nossa árvore sagrada – concluiu
Miguelina.
Comecei a gostar do lugar pela maneira carinhosa com que se
referiam à natureza. É maravilhoso! Adentramos ao parque e fomos
até um cerro onde poderíamos acampar naquela noite. Foi ainda
mais difícil deixar a estrada de asfalto e tomar a estrada de terra até
o local onde passaríamos a noite. Mas Federico disse que valia a
pena. Paramos a van em um lugar que pareceu adequado a ele. Do
local, podia-se escutar o som do mar, com suas ondas indo de
encontro aos rochedos. Tratamos de tomar chá quente e lanchar
algumas empanadas. Por sorte, logo em seguida, o céu abriu-se e
conseguimos vislumbrar as estrelas, em contraste à escuridão logo
abaixo, na direção dos penhascos.
Logo após o lanche, Pedro convidou-me para uma caminhada
exploratória noturna. Federico avisou para que tivéssemos cuidado
com os rochedos, pois estávamos a uma altura considerável e muito
próximos ao mar.
Andamos cerca de quinhentos metros com uma lanterna e
sentamo-nos sobre uma pedra para sentir a brisa que vinha do
oceano. Pedro puxou assunto:
- A mãe-terra é muitíssimo generosa, não concorda?
- Sim, não há dúvida. Longe da cidade é mais fácil sentir seu
poder – respondi.
- Sentimos seu poder através da paisagem e das pessoas que
vivem em contato mais direto com a natureza – adicionou Pedro.
- É uma pena que muitas destas pessoas estejam sucumbindo,
não é mesmo?
- Sim, é verdade. Esse sofrimento o afeta?
- Eu diria que sim. Sinto a destruição em várias partes do
planeta. Aniquila-se a flora em troca de lavouras gigantes, destruindo
o habitat de inúmeros animais. E o pior de tudo, para mim, é que
estão destruindo os seres mais ricos espiritualmente deste mundo: os
povos nativos. São os maiores exemplos de uma vida sustentável que
se pode ter.

116
- Você fala como se fossem terceiros que estivessem fazendo
essa destruição. Como se você não fosse responsável...
- É verdade, Pedro. Mas eu tenho consciência da minha
participação nisto tudo. O simples fato de viver como um “civilizado”
o torna responsável. Sinto realmente que colaboro com esta situação.
Veja, por exemplo, aquele colóquio onde nos conhecemos. Muita
conversa, pouco resultado prático. Inclusive de minha parte. Senti
como era ineficaz a minha pretensa cruzada pela transformação do
mundo. Por este motivo, entre outras coisas, aceitei o convite de
Avaeté e abandonei tudo. Mas, além disso, o que é possível fazer?
- Creio que esse tipo de atitude só lhe trará angústia, Pyá.
Deixe-me contar-lhe algo...
- Prossiga – incentivei.
- Você é uma pessoa iluminada e de sorte, Pyá. Poucas pessoas
no mundo têm a chance de conhecer o que você está prestes a
testemunhar através de seu benfeitor.
- É verdade. Até agora não compreendi porque Avaeté decidiu
convidar-me para esta aventura.
- Um dia entenderá. O mais importante, neste momento, é viver
intensamente o que está diante de você. Viva intensamente essa
aventura.
- Mas, Pedro, viver esta aventura poderá acabar com minha
angústia?
- Depende do quanto se entregará a ela. Vou mostrar-lhe como.
“Meu povo tem vivido centenas de anos de lutas. Para ser sincero,
estamos bastante cansados delas. Já brigamos em várias batalhas,
assinamos centenas de acordos, fizemos milhares de manifestações,
mas nossa vida tem se reduzido paulatinamente, tanto em
quantidade quanto em qualidade. Apesar disso, somos e
continuaremos a ser profundamente o que somos em essência: um
povo Mapuche. Poderão nos aniquilar totalmente um dia. Mas até lá,
estaremos vivendo a felicidade da vida e a energia da
sobrevivência.”
- Mas vocês pareciam tão felizes naquelas celebrações que
testemunhamos!

117
- Sentimos a felicidade de estar vivos e ligados a este mundo
maravilhoso. Por isso, celebramos cada vez mais. Mas temos nossos
momentos tristes, também, quando perdemos o direito a viver livres
sobre a terra. Ela não nos pertence. Você sabe o que significa a
palavra Mapuche?
- Não.
- “Gente da terra”. Isto significa Mapuche. Nós pertencemos a
terra. A terra não nos pertence. E ninguém poderia ter o direito de
adonar-se dela e nos expulsar. Isto não é um desrespeito aos
Mapuche, apenas. É um desrespeito à própria terra...
- Compreendo. Isso vem acontecendo cada vez mais...
- Sim. Em primeiro lugar, através do Estado e suas instituições
impessoais, como exércitos e sistemas legais e de propriedade.
Depois, pelas grandes propriedades agrícolas. E, por fim, pelo poder
dos grandes negócios.
- Você tem razão.
- Mas, pense bem, Pyá. Você acredita que isto ocorre apenas
conosco? Você acha que isto só acontece ao povo Mapuche?
- Bem, creio que não, Pedro. Muitos povos vêm sofrendo esta
pressão...
- Muitos. Muitos mesmo. Milhares de povos durante centenas de
anos, por este continente e pelo mundo afora.
- Sim, é muito triste.
- Triste? O que você sente de verdade a respeito disto, Pyá?
- Não sei. Sinto uma espécie de compaixão. Sinto que deveria
fazer algo, ajudar de alguma forma...
- Você sente pena?
- Não, Pedro. Não é pena!
- Não tenha pudor em sentir pena. Se for o que você sente,
conscientize-se de que é isso que sente. Não negue esse sentimento
por uma questão social. Sinta o que você sente.
- Sei lá. Acho que não é pena. É apenas compaixão...

118
- Você não deve sentir pena, Pyá. Sabe por quê? Porque sentir
pena o impedirá de integrar-se com aqueles por quem você sente
pena. E, com isto, deixará de compreender o real valor do outro...
Ao terminar de dizer isto, silenciou por alguns instantes, como
que para compreender consigo próprio a extensão daquelas palavras.
Eu fiz o mesmo. Tentei entender como a pena o isola do outro.
Depois de um tempo desse mergulho interior, Pedro disse com traços
de melancolia e esperança ao mesmo tempo:
- Avaeté também sofre, Pyá. Avaeté é um homem vivido e de
muita energia, mas ele sofre diariamente com o que fazem a ele e a
seu povo, assim como aos Mapuche. Avaeté foi o único de sua família
que decidiu por não ir viver na cidade, nem ser exterminado dentro
do seu próprio território. Avaeté adotou uma dentre muitas
alternativas. Foi viver na estrada, alimentando sua cultura e
alimentando-se de outras culturas. Avaeté não teve autopiedade,
nem jamais teve pena dos povos que ele conheceu. Ele mergulhou
fundo no conhecimento dos povos da terra. Por isso, é um grande
homem.
- Também sinto isso a respeito de Avaeté. Apenas acho que não
tenho a total extensão do seu sofrimento...
- Nem precisa, Pyá. Como lhe disse, você não deve sentir pena.
Permita-me dizer algo muito direto, Pyá?
- Claro! O mínimo que pode me acontecer é receber um grande
ensinamento...
- Pena é sinal de arrogância, Pyá. Não sinta pena. Não seja
arrogante. Caso contrário, você estará fechado ao valor daqueles por
quem você sente pena. Abra-se para o verdadeiro valor que existe
em cada uma das outras pessoas e povos.
Realmente, gente como Pedro e seus amigos são de uma
sensibilidade impressionante. Mais uma vez, dão provas da
capacidade em apontar nossas mais profundas cavernas. Por trás da
sua pena e da sua vontade de ajudar – sentimentos, aliás,
socialmente bem aceitos – esconde-se a arrogância daquele que acha
que é mais e que pode mais. “Como você é arrogante, egoísta e
ingênuo, Pyá!” – esbravejei comigo mesmo.
Antes de retornarmos ao acampamento, Pedro recomendou num
tom mais descontraído:

119
- Volte aqui ao amanhecer. Lembra-se da surpresa de que
Federico mencionou?
- Claro. Mas achei que ela se resumia à camanchaca que vimos
esta noite...
- A surpresa ainda não foi completamente desvendada. Volte
aqui amanhã – recomendou, sorrindo.
Em seguida, regressamos ao acampamento. Antes que
adormecesse, disse a Pedro:
- Obrigado pela sua sinceridade.
- Você pode contar com ela sempre – disse mansamente,
enrolando-se na sua manta e adormecendo logo a seguir.

3
Acordei-me ao toque do meu alarme e do canto dos pássaros.
Como recomendou Pedro, resolvi acordar um pouco mais cedo do
que o normal para verificar a continuação da “surpresa”. Observei
que todos, à exceção de Avaeté, ainda dormiam. Fui até a clareira
onde conversamos na noite anterior e vislumbrei uma cena inusitada:
estávamos sobre as nuvens! Do alto da montanha avistamos um mar
de algodões se estendendo até o horizonte, cobrindo totalmente o
mar. Você se surpreende porque, ao invés de enxergar um oceano
azul à sua frente, o que você vê é um mar de nuvens brancas aos
seus pés. Avaeté também se maravilhava com a visão. Disse-me que,
apesar de ter visitado os amigos Mapuche várias vezes, jamais havia
presenciado o espetáculo da camanchaca desta forma. Ficamos ali
por vários minutos, mateando. Em breve, nossos companheiros
também se achegaram. Federico era o mais orgulhoso.
Uma hora depois, já havíamos regressado à estrada. Não
demorou que passássemos pela cidade de Coquimbo e por sua
vizinha, La Serena, local de nossa despedida. A partir deste ponto,
nossos amigos seguiriam seu rumo ao Vale do Elqui adentro,
enquanto nós seguiríamos o rumo norte.
Fazendo as contas, não foram muitos os dias em que
convivemos. Pouco mais de uma quinzena. Mas a percepção é de que
foram meses. Tantas coisas aconteceram na companhia destes
amigos, que despedir-se agora não era tarefa fácil. Saltamos nas

120
cercanias do centro da cidade, junto à Rodovia Panamericana, e
abraçamos demoradamente nossos amigos antes que partissem para
oeste. Miguelina recomendou, como uma mãe ao filho:
- Aprenda muito, Pyá. Depois retorne e nos conte tudo.
Os amigos Mapuche tinham negócios a fazer e pessoas a visitar
no Vale do Rio Elqui. O rio alimenta povoados e plantações de vários
tipos, como uvas, de onde se produz o famoso pisco. É região
também dos mais importantes observatórios astronômicos do mundo,
pela pureza do ar deste deserto. Gostaria de poder ficar aqui mais um
pouco. Pelas estrelas do céu e pelas estrelas da terra, os brilhantes
amigos Pedro, Miguelina, Federico e Mestiza.
Senti meus olhos umedecerem-se ao partirem. Pela primeira vez
em nossa viagem, estávamos por nossa própria conta: apenas eu e
Avaeté. Ele me deu um tapinha nas costas e disse:
- Vamos, parceiro? Temos um belo trecho até o Deserto do
Atacama e precisamos de uma boa carona. Já sente saudades dos
amigos Mapuche?
- Claro. A companhia foi maravilhosa– agarrei seu ombro e
balancei-o de leve.
À beira da Ruta 5, bem no meio da cidade, o movimento estava
intenso. Carros, caminhonetes e caminhões passavam rapidamente à
nossa frente.
Aprontamo-nos para obter alguma carona. Dedo polegar
apontando a direção norte, ficamos ali por cerca de uma hora e meia.
Obtivemos carona de um comerciante de Antofagasta que acabara
de entregar alguns produtos na cidade e estava regressando.
Perguntou-nos para onde rumávamos e informamos que, quanto mais
ao norte, melhor. Informou-nos que dormiria em Caldera e partiria
para seu destino final pela manhã.
- Está ótimo para nós. Daremos um jeito quanto à noite – disse
Avaeté.
Dentro de quatro horas estávamos em Copiapó, logo após
cruzar a ponte sobre o rio de mesmo nome. Nas horas em que
passamos na estrada, conversamos sobre os negócios, na forma
como o povo vive, sobre futebol e sobre o movimento na estrada.
Chama a atenção a quantidade de pequenas grutas e tumbas em
miniatura ao longo da rodovia. Nosso amigo comerciante, de nome

121
António, disse que são animitas, em memória de pessoas mortas na
estrada. Fiquei assombrado com a quantidade.
Mais uma hora e chegamos ao povoado litorâneo de Caldera.
António deixou-nos junto ao cais da cidade e partiu para o seu hotel.
Pretendíamos ficar em alguma hospedaria barata, por isso nos
acercamos do movimento portuário para obter informações. Alguns
pescadores indicaram uma casa de família que proporcionava
hospedagem e comida baratas. Era bem próxima, junto à praia.
Alimentamo-nos e caminhamos brevemente pela areia à beira-
mar. Crianças jogavam futebol e pelicanos chegavam para descansar.
Avaeté disse que no dia seguinte ingressaríamos definitivamente no
Atacama. Seria outra travessia importante. Comecei a preparar meu
espírito para ela. Acho que parte da preparação exigia um revisar dos
ensinamentos. Avaeté disse que teríamos muito tempo para isto.
No dia seguinte, conforme o combinado, encontramos António
no cais. De Caldera a Antofagasta, mais três horas de viagem. A
paisagem é muito seca nesta região. A estrada estende-se sobre um
terreno arenoso, às vezes em linha reta por quilômetros e
quilômetros. Você enxerga um ponto distante de estrada e leva
vários minutos para alcançá-lo. Montes alaranjados situam-se a leste
da estrada.
António nos informou que, apesar da secura, ocasionalmente
chove, momento em que ocorre o fenômeno chamado deserto florido.
Mostrou-nos uma foto com um tapete imenso de flores violetas,
brancas, rosas, vermelhas e amarelas estendendo-se até o horizonte.
Elas brotam como que “do nada” e explodem em cores. Fiquei
imaginando. “Como pode?! Toda esta vida latente sobrevivendo na
adversidade, somente esperando uma oportunidade de florescer...”
Depois de rodar muito, passamos por uma enorme escultura em
forma de mão. Ela parece que está saindo da areia e apontando para
o céu. “La mano del desierto”, informou António. Estávamos a apenas
setenta quilômetros de Antofagasta. Perguntou onde desejaríamos
nos acomodar. Como ainda era cedo, preferimos não nos instalar em
um grande centro urbano. Seguiríamos até Baquedano. António disse
que o tráfego até lá seria menos intenso, mas, ainda assim, seria
possível obter outra carona. Deixou-nos no trevo de acesso à cidade
e desejou-nos boa sorte. Caso mudássemos de idéia e
permanecêssemos em Antofagasta, recomendou que não nos

122
assustássemos com os terremotos. “Aqui a terra treme um pouco.” –
disse, sorrindo.
Foi realmente mais difícil obter uma carona até nosso destino.
Baquedano é uma junção ferroviária onde só se encontram a estação
e um velho cemitério de trens. Para nossa sorte, um dos funcionários
da estação estava em Antofagasta para buscar suprimentos e
mostrou-se disponível para levar-nos até o local em sua velha
caminhonete. Perguntou-nos por que desejávamos ficar em
Baquedano. Avaeté disse-lhe que um velho cemitério de trens é um
bom local para passar uma noite tranqüila. Acho que se referia à
recusa de ficar em Antofagasta, uma cidade um tanto grande.
Obtivemos permissão para passar a noite numa das instalações
da estação. Conversamos um pouco com nosso hospedeiro sobre sua
vida nesse local afastado e tivemos uma amostra verbal do que é
uma vida solitária e tranqüila. Acomodamo-nos em velhas camas.
No dia seguinte, acordamos cedo. Avaeté resolveu surpreender.
Sugeriu que fôssemos a pé de Baquedano até Chacabuco, um velho
vilarejo salitreiro abandonado, trinta quilômetros à frente. Pela
distância levaria um dia inteiro de caminhada.
Devo confessar que seria a primeira vez que iria aventurar-me a
pé numa região desértica, sem proximidade de qualquer recurso. A
idéia me assombrava um pouco, mas acreditava que Avaeté sabia o
que estava fazendo.
- Uma real sensação de estar livre e, ao mesmo tempo, nas
mãos dos deuses, Pyá – disse alegremente.
Liberdade e sob controle dos deuses é uma contradição para
nós, “civilizados”. Durante nossa caminhada, haveria muito tempo
para ruminar o significado de tudo o que estávamos vivendo.
Inclusive o próprio fato de viver em contradição, sem estar
preocupado com isto.
Saímos dando os primeiros passos para nordeste com o sol logo
acima do horizonte. Deixamos para trás a estação e os vários
exemplares de locomotivas e vagões depositados no cemitério
ferroviário. Seria um dia quente. Pelo menos não havia mais aquele
visual almofadinha de calçados ou mochilas novas. Já estavam
cobertos por poeira do deserto.

123
Optamos por caminhar afastados da estrada. O terreno tem um
ou outro tufo de vegetação dourada. À nossa frente, a perder de
vista, ondulações alaranjadas e marrons.
Coloquei-me a repassar alguns dos muitos ensinamentos que
tive desde que começamos a viagem. Uma síntese volta e meia é
importante, porque você pode colocar as coisas num todo coerente,
vendo que os fragmentos fazem parte de algo maior. Queria a
participação de Avaeté nisto:
- Alô. Aqui é Terra chamando Marte. Responda, Marte. Você está
aí? – cutuquei Avaeté, imaginando que estava absorto em algum
pensamento.
- Ah, o viajante estelar querendo contato... Normalmente sou eu
quem tem que tirá-lo do seu transe mental – devolveu Avaeté.
- Imaginei que você estava em outra freqüência.
- Eu sempre estou conectado em várias freqüências. Ok,
entendi. Você quer atenção. Pergunte.
- Na verdade, Avaeté, desejo sua ajuda para ter uma
compreensão de todo dos ensinamentos que tivemos até agora –
esclareci eu.
- Prossiga.
Nossa conversa tinha lugar naquela imensidão. Mesmo que você
ache que seja a conversa mais importante do mundo, nota que, ao
mesmo tempo, se dá como se fossem dois grãos de areia
conversando naquele deserto. Uma coisa muito maior nos envolve, e
somos diminutos diante dela. Apesar disto, continuei:
- Lembra, Avaeté, que eu buscava uma chave mágica que me
ajudasse a resolver todos os conflitos?
- Lembro. E quem no seu mundo não deseja uma?
- Sim, é verdade. Queremos ter certeza e tranqüilidade sobre o
que é certo e o que é errado...
- Se essa chave existisse, ela seria perigosa. Tudo se tornaria
monótono e a vida deixaria de existir.
- É o que você acha, Avaeté?

124
- É só uma intuição. Mas o real perigo é outro. Quando existe
uma chave, você não é responsável. Se quem decidiu por você não
for você, não se sentirá responsável pelas conseqüências. E aí
sabemos no que isto pode acabar.
- É, Avaeté, pode ser catastrófico. Sabe o que acontece? A gente
não quer sofrer. Quando se está em conflito, a gente sofre.
- Já falamos sobre o construtor dos caminhos, não é mesmo?
Aquele que constrói os conflitos.
- Sim. Agora compreendo que na nossa mente ou na nossa alma
reside a semente dos conflitos.
- Mais uma vez, você é responsável. Isto não é maravilhoso? Isto
é que é liberdade, Pyá. Se alguém pode consertar os seus conflitos,
esse alguém é você mesmo! Liberdade! Autonomia!
Responsabilidade! – disse Avaeté, com o dedo indicador em riste.
- Avaeté, eu poderia até mandar confeccionar a bandeira do
novo iluminismo: liberdade, autonomia e responsabilidade – disse eu,
imitando o tom irônico costumeiro de Avaeté.
- Muito engraçado. Nada de novos movimentos libertadores. O
mundo está cheio dessa baboseira. Continuemos nossa conversa.
Os pés doíam um pouco, pois havia dias que não fazíamos
trilhas. Resolvi parar para colocar uma segunda meia, de modo a
tornar mais firme meu pé dentro da bota. “Ah, ficou bem melhor.”
Agora estava firme, sem que roce e crie bolhas. Você tem que fazer
isto o mais cedo possível. Depois que as bolhas aparecem, é tarde
demais, e você vai sofrer um bocado. Prossegui relembrando os
ensinamentos:
- Expressei durante nosso tempo juntos vários conflitos pessoais
ou da vida civilizada. Sofisticação tecnológica ou simplicidade ao
viver? Eficiência ou liberdade? Fico feliz em enxergá-los agora de
maneira completamente diferente e nova...
- Sim, Pyá. Acho que tivemos uma conversa proveitosa sobre
isso. Que maneira é essa?
- A idéia da conexão, Avaeté. Tendemos a ver as coisas em
conflito porque as vemos isoladas. E porque nós mesmos estamos
isolados. Se olharmos para os conflitos conectando-os e nos
conectando, procurando transcender a eles, não só como idéia, mas

125
como seres que transcendem, novas percepções muito luminosas nos
ocorrem.
- Fico feliz com sua mudança de visão, Pyá.
- Mas, Avaeté, existem lições que foram muito mais
avassaladoras para mim.
- Diga-me quais.
Vota e meia parávamos para tomar alguns goles de água.
Sombra, nem pensar. Não há naquele deserto. Você tem que
carregar consigo um bom chapéu, de preferência aqueles que
protegem o pescoço e as orelhas, além de roupas leves, porém que o
cubram razoavelmente.
- Sempre acreditei que eu tinha responsabilidade em ajudar aos
outros. Sempre achei que eu deveria ter a atitude proativa para
ajudar a salvar o mundo. Você sabe, não é mesmo?
- Uhum. Você é uma pessoa de índole boa, Pyá. Essa é sua
essência, não a abandone jamais. Mas precisa também amadurecer –
exprimiu positivamente Avaeté.
- É verdade, Avaeté. Aprendi com Pedro e Miguelina que o
querer ajudar, de maneira unilateral, é uma atitude muitas vezes
arrogante. Dentro da minha arrogância, eu não enxergava que quem
realmente precisava de ajuda era eu. Se alguém precisa ser salvo,
este alguém sou eu mesmo...
- Mais uma vez, você se transcende através da conexão. Agora,
parceiro, você tem consciência por que essas foram aprendizagens
mais profundas?
- Acho que sim, Avaeté. Foram lições aprendidas com a alma,
não com a cabeça. Para mim, esta foi a maior descoberta até agora.
O quanto se pode aprender quando isto é feito através do corpo, do
coração ou da alma. São dimensões atrofiadas de mim mesmo.
- E você compreende que, para aprender com essas dimensões,
você tem que fazer experiências de outra natureza? Que a linguagem
e o pensamento nem sempre são suficientes?
- Este é, em si, um ensinamento arrebatador, Avaeté. Aprender
com a alma, com o coração, através de experiências completamente
novas. E perceber que os ensinamentos, muitas vezes, brotam de

126
dentro de nós mesmos... Que nós já sabíamos o que era preciso
saber...
- Nossa alma como parte da alma do mundo. O poder disso é
imensurável, Pyá.
No deserto, assim como na montanha, se você verdadeiramente
deseja ajudar seus amigos, precisa em primeiro lugar cuidar de si
próprio o mais responsavelmente possível. Ao cuidar de si, você não
está sendo egoísta, mas consciente da ligação entre você, seu
equilíbrio e o equilíbrio dos demais. Se você pensa em si próprio,
desta maneira, não está sendo egoísta. Está sendo mais colaborativo
do que de qualquer outro jeito.
- No sonho que tive, em que me via como um imenso lago de
vinho que, ao mesmo tempo, era o mundo, tive o ensinamento do
poder de uma alma maior, Avaeté. Se você quiser se apropriar de
todo o vinho, morrerá de sede, embuchado e enfartado. Entregar-se
ao poder do lago é entregar seu poder pessoal e, ao mesmo tempo,
ter todo poder do mundo.
- Assim é o poder da alma, Pyá. Quando você abre mão, tem
todo o poder à sua disposição.
O caminhar estava começando a ficar sacrificante. O sol nos
castigava e a poeira secava nossa garganta. O peso infinito daquele
deserto dava seus sinais. Caminhávamos mais lentamente. Seu poder
mental vai sendo drenado lentamente. Quem precisa da energia é
seu corpo. Avaeté perguntou:
- Como você vê essas dimensões de si mesmo, agora, Pyá?
- Partes de um todo, umas envolvidas pelas outras. Corpo,
coração, mente, alma. Todas como que possuindo tentáculos,
tocando umas às outras e tocando outros corpos, corações, mentes e
almas. Criando uma grande alma presente no mundo.
Alegrei-me com aquela visão em forma de uma dança. Nela
havia som de música saída de uma harpa. As dimensões do meu ser
eram como que tecidos a dançar, enrolando e desenrolando uns aos
outros, em uma dança de muitos dançarinos.
O sol estava castigando demais. Comentei com Avaeté que
estava sentindo um razoável desconforto. Avaeté sugeriu um
pequeno descanso. Sentamos e tiramos mantas da mochila para
cobrir a cabeça e o corpo. Ficamos ali por cerca de meia hora,

127
recompondo um pouco os sentidos. Avaeté estava bem mais disposto
e preparado do que eu. Disse-me que eu sairia desta bem, não havia
motivo para preocupações. Disse a Avaeté que me esforçaria.
Enquanto descansávamos, fui, aos poucos, recuperando as
forças. Então senti uma fagulha de energia e limpidez mental.
Levantei os olhos na direção de Avaeté. Senti uma energia que vinha
do seu olhar. Mas senti, também, que aquela energia em seu olhar
era uma espécie de reflexo da energia do meu próprio olhar. Neste
momento, tive um vislumbre da mutualidade que passava a existir
entre mim e meu benfeitor. Sua energia vinha da minha energia. Em
mutualidade. Reconheci o quanto Avaeté começava a significar para
mim. E reconheci o quanto eu poderia significar para Avaeté.
Mutuamente. Ao mesmo tempo. Em qualquer tempo.

4
De repente, avistamos Chacabuco no horizonte. Foi preciso
reaproximar-se da estrada, pois o velho vilarejo está à sua margem.
Era quase noite. Desejamos tanto por uma sombra o dia inteiro e,
quando ela surge, já não é mais necessária. Adentramos a cidade
abandonada à procura de alguma viva alma. Chegamos à antiga
praça central e chamamos por alguém. Vimos movimento vindo do
lado ocidental da cidade, um abrir lento de portas, e notamos a
presença de um homem portando um rifle. Perguntou-nos o que
desejávamos. Avaeté gritou três ou quatro palavras em mapudungun.
Imaginei serem palavras de apresentação em tom amistoso. O
homem aproximou-se menos defensivamente e perguntou:
- Que deseja, irmão?
- Sou um irmão nativo, mas não Mapuche. Desejamos um local
para passar esta noite. Caminhamos o dia todo para chegar até
aqui...
- Não é comum ver caminhantes por estas bandas. Todos vêm
motorizados!
- Isto é parte da caminhada espiritual. Permita-nos dormir aqui.
O homem olhou para Avaeté e para meu jeitão meio de turista,
com o vermelhidão do meu rosto, e acreditou que éramos pessoas de

128
bem. Descontraiu a mão do rifle e convidou-nos a dirigir-se aos
aposentos utilizáveis do vilarejo.
Havia sinal de abandono por tudo. Apesar de muitos turistas
visitarem o lugar, o mesmo era cuidado apenas com parcos recursos
e com o ímpeto daquele homem que nos recebera. Mostrou seus
aposentos, cozinha e sala, todos improvisados em antigas
construções.
Conversamos e compartilhamos um pouco de água, bebida e
comida. Ele nos contou sobre a história do lugar, tanto aquela
contada aos turistas, como as que ele ainda mantinha na memória,
apesar de poucas vezes relatadas. Falou do lugar, do que fora no
passado longínquo e no passado próximo, como o fato de ter sido
uma prisão nos tempos da ditadura. Ele próprio havia mais de vinte
anos que vivia ali. Narrou também as próprias histórias, contando
com a presença de fantasmas ou não.
Perguntou-nos o que faríamos nos próximos dias.
- Pretendemos chegar a San Pedro de Atacama amanhã –
respondeu Avaeté.
- Fiquem aqui o tempo que quiserem. Não tenho muita
oportunidade de conversar com viajantes corajosos, como os que
havia nos velhos tempos.
- Um dia voltaremos. Agradecemos sua hospedagem.
- Eu é que agradeço sua companhia. Contem-me suas histórias!
Avaeté contou algumas passagens de sua vida pessoal. Contou
sobre viagens a vários lugares do continente e falou de algumas
aventuras. Imaginei que, algum dia, as nossas próprias aventuras se
transformariam em histórias a contar. E senti orgulho por estar ali,
fazendo parte de uma aventura que seria um dia contada no futuro.

5
A manhã seguinte necessitava uma carona. Seguir adiante a pé
seria loucura, pois não haveria muitas bases no deserto nos próximos
cem quilômetros. Precisaríamos de uma carona pela Ruta 25 até a
cidade de Calama, para depois tomar a estrada que se direciona para

129
o Salar de Atacama, a sudeste. Nossa sorte é que esta rota é
freqüente entre viajantes que vêm do sul para conhecer o salar.
Não demorou em que estivéssemos a bordo de uma moderna
caminhonete 4 x 4. O casal que viajava vinha de Santiago e pretendia
passar alguns dias em San Pedro. Diziam que era uma espécie de
lua-de-mel. Informamos sobre o tipo de viajem que fazíamos e
ficaram muito interessados. Prometeram algum dia viajar desta
forma. No momento, precisavam cuidar de suas carreiras de
advogados.
O aparelho de som tocava canções românticas, seguramente
cantadas por uma cantora cuja primeira língua não podia ser
castelhana. De qualquer forma, eram canções muito lindas, que
perfumavam as visões que tínhamos da paisagem. Até chegar a
Calama, você vai se aproximando lentamente da Cordilheira dos
Andes. Então você não entra na cidade, pois toma a direita na
estrada CH 23. Você acerca-se ainda mais das montanhas, com seus
cumes brancos e bases vermelhas, laranjas, marrons, cinzas e roxas.
Aos pés delas, grandes extensões de planície marrons e brancas,
devido ao sal. Enormes montes e vulcões surgem. O mais imponente,
o Licancabur. Você o avista a quilômetros de distância.
De repente, você cruza a Cordilheira de Domeyko e passa a
vislumbrar toda a imensidão do Salar de Atacama. Ele descansa
sobre a depressão andina, local de um antigo mar interno. Descendo
a cordilheira, você chega à sua base. Antes de San Pedro residem o
Valle de la Luna e o Valle de la Muerte. O casal nos informou que
naquela noite poderia estar acontecendo algum tipo de reunião no
vale da lua. Perguntaram se não desejávamos ir até lá. “Para quem
não está fazendo nada mesmo, por que não?” Deixamos a estrada de
asfalto e ingressamos, já no fim da tarde, numa estrada de rípio
bastante castigada. O chão estava muito seco e víamos às margens
da estrada enormes placas de terra, como que sextavadas, numa
espécie de calçada a perder de vista até o horizonte. Uma visão
maravilhosa.
Chegamos ao vale a tempo de subir as dunas e admirar o ocaso
do sol no horizonte. Algumas poucas nuvens conferiam uma riqueza
maior ao desaparecimento do astro. Dezenas de pessoas também
curtiam o espetáculo. Depois desceram as dunas, sendo que a
maioria resolveu permanecer num local não muito distante, onde
uma fogueira enorme estava sendo preparada. Havia idosos, jovens e

130
crianças. Alguém abriu o porta-malas de seu carro e surgiram
enormes alto-falantes do interior. Temi por músicas muito altas ou
estridentes, mas daquele porta-malas começaram a sair tons
melodiosos e doces, vindos de flautas, violinos, sintetizadores,
tambores e vozes muito suaves. Letras em inglês e gaélico
denunciavam músicas de inspiração medieval, dos tempos em que a
máquina não era uma visão dominante.
À medida que a noite escurecia e a luz passava a ser oriunda
apenas da fogueira, pequenas rodas de conversa e trago formavam-
se. Juntamo-nos a uma delas, compartilhando uísque e tira-gostos
diversos. Descobrimos que a festa era em função da lua cheia. Ela
acabara de surgir de trás da Cordilheira dos Andes. Que visão
aplacadora. Uma bola laranja enorme surgia de trás da cadeia.
Quando isto aconteceu, todos começaram a gritar, dar “vivas”, cantar
e dançar. O tom ritmado da música instrumental inspirou todos a
saltar à volta do fogo. “Isto é demais!” – gritavam alguns. Todos
dançavam uma dança saltitante e alegre ritmada por um tambor
bodhran que crescia à medida que a lua subia e os espíritos iam a
seu encontro. Foi uma festa emocionante, pacífica e cheia de graça e
congregação. Encontrei uma garota de cabelos negro-avermelhados
e olhos escuro-amendoados, como o mel selvagem, e comecei a
dançar com ela. Ela tinha um jeito tímido-gracioso, firme-esvoaçante
de dançar. Dançamos e dançamos e dançamos por horas. Depois nos
escondemos atrás das rochas, aonde apenas a luz do luar nos
chegava. Despimo-nos lentamente e fizemos amor lentamente.
Poderíamos ficar ali abraçados numa noite sem fim. Estava ali,
apenas com as estrelas e a lua cheia como testemunhas, amando
uma antiga desconhecida de alma amiga.

6
Quando acordei, estava coberto apenas com minha manta.
Minhas roupas descansavam junto a uma rocha. Vesti-me
preguiçosamente e subi na pedra para ver o cenário. Havia algumas
poucas pessoas à volta do que sobrou da fogueira. Entre elas, Avaeté
conversando com alguns malucos. Desci até lá e resolvemos seguir
adiante. Sentíamos certa leveza corporal e espiritual. Era um dia
perfeito para morrer, não tivéssemos outros planos.

131
Pegamos carona num microônibus de turistas e passamos a
viagem conversando e rindo. Descemos finalmente em San Pedro de
Atacama, onde caminhamos pelas vielas encontrando hordas de
viajantes de toda parte do mundo. Esta cidade é como uma olhadela
no futuro dos vilarejos turísticos. Uma Vancouver dos viajantes de
beira de estrada. Casas de barro escondem ambientes modernos à
luz quente de velas. Gente de todo tipo e de toda origem escutando
tudo o que é tipo de música, comendo todo tipo de comida e falando
todo tipo de língua só para compartilhar uma mesma natureza
exuberante.
Curtíamos aquele ambiente, mas estava claro que não
ficaríamos muito tempo por ali. Escolhemos o restaurante mais
barato da cidade, mas nem por isso menos transado, para comer algo
fora do normal. Encontramos algumas pessoas conhecidas, como o
casal em lua-de-mel e velhos parceiros de outras épocas.
Localizamos pouso numa pequena hospedaria e dormimos a
exaustão dos dias de estrada e a expectativa do cruzar de um novo
limiar. Meu corpo doía em vários lugares. No outro dia, ainda não
totalmente recuperado da estafa, tomamos café e fomos até o posto
policial da saída da cidade, local de partida de várias excursões.
Avaeté disse que cruzaríamos a cadeia de montanhas para
conhecer os vales do outro lado. Precisávamos conhecer os
diferentes lados das questões. Por isso, cruzar de volta os Andes era
nossa próxima aventura. Sentamos junto à estrada até que alguma
alma caridosa estivesse disposta a ter-nos como companhia.
Nossa carona veio a bordo de um gigante caminhão.
Transportava algo para a cidade de Salta. Subimos na ampla cabine e
nos acomodamos confortavelmente. O seu condutor era um homem
moreno e robusto, com típicos traços andinos, e muito cortês.
A beleza desta travessia é demais. Você passa por montes
imponentes, salinas brancas que o cegam com o refletir do sol, lagos
escuros de bordas amarelo-arroxeadas. Que novos mundos
espetaculares!
Avaeté olhou pela janela do veículo. Viu condores desenhando
vôos circulares. Apontou e disse:
- O vôo dos pássaros é um sinal. Sinais da mãe-terra. Eles nos
dizem que o que vai, volta. Deixemos que volte. Para depois ir,
novamente, renovado.

132
Avaeté voltou a agir misteriosamente. O que será que está
farejando? O que será que quis dizer? Não adiantaria perguntar.
Fiquei imaginando se toda aquela beleza se explicava. Fiquei
pensando se aquilo era uma obra deliberada ou puro acaso. Se fosse
deliberada, que mente seria responsável por tudo isto? Caso fosse
aleatória, estaria esta beleza apenas em nossa mente? Fiz menção
de perguntar a Avaeté o que ele achava. Avaeté apenas respondeu:
- Guarde sua faca analítica para depois. Aqui nesta altitude pode
provocar acidentes! Rá, rá, rá! Os condores têm razão. Os condores
têm toda a razão! Rá, rá, rá! – gargalhou e silenciou.
Em tom de bom humor, fiz sinal para que o nosso motorista não
desse atenção. Que era típico do meu amigo esse tipo de maluquice.
Ele apenas sorriu, como se estivesse acostumado. Avaeté estaria me
tolhendo de minha vontade de compreender este mundo curioso?
Bem, estava a fim de deixar a mente solta por algum tempo. A
natureza é muito inspiradora de vôos mais amplos da mente. Por que
não?
Sentia-me renovado por todos os acontecimentos da passagem
pelo deserto. Usar um pouquinho a faca racional... Fazer algumas
perguntas inspiradoras... Usar o intelecto produtivamente... Não
poderiam nos trazer bons pensamentos?

133
Avaeté

Sete

134
1
Mais uma vez a passagem através da cordilheira é maravilhosa.
A sua pequenez fica evidente. Você é tão pequeno que fica indistinto
visto do céu. Formigas. Microorganismos. Pequenos animaizinhos que
se deslocam lentamente sobre a superfície de salares, região de
punas, areia do deserto, subindo montanhas. Pequenos organismos
admiráveis diante da força dos ventos, da neve, do sol, das nuvens,
dos rios, dos glaciais, das lagunas. Forças estas também indistintas
se vistas do cosmos. Engraçado. A distinção é um ponto de vista.
Você distingue isto e aquilo dependendo do seu ponto de visão. Se
você “voa” baixo, distingue certas coisas. Se você voa muito alto,
distingue outras. Coisas muito maiores ou menores que sua
capacidade de enxergar são indistintas...
Distinguir. Do latim distinguère. Separar, dividir. E este, por sua
vez, da raiz proto-indo-européia stig. Picar. Ah! A faca analítica de
que Avaeté falava. A faca que corta a maçã. Desde quando viemos
cortando a maçã?
Desde sempre, claro. Mas nossas facas andam bem mais afiadas
desde que “renascemos”. Desde que renascemos com os planetas e
o sol de Copérnico. Desde as cidades perfeitas de Da Vinci. Desde as
leis do poder de Maquiavel. Desde as torturas à natureza de Bacon.
Desde o sonho geométrico de Descartes. E desde a maçã de Isaac
Newton.
Desde que “renascemos”, quisemos nos emancipar da
escravidão das trevas medievais e dos intermediários de Deus.
Afiamos as facas analíticas (do grego analúó: “desligar, separar,
examinar”). Apuramos nossa racionalidade (do latim ratìo: “cálculo,
medida, causa, projeto, método”). Polimos nossa intelectualidade (do
latim lego: “reunir, ver sucessivamente, resenhar, fazer leituras,
explicar”). Assim, definimos um método. Com as ferramentas certas,
separaríamos, mediríamos, calcularíamos e reuniríamos tudo
novamente numa explicação coerente. Não houve dúvidas quanto à
eficácia deste método. É por ele que possuo um dicionário eletrônico
em minhas mãos a 4.500 metros de altitude. Mas isto é tudo?
É certo, o intelecto nos libertou. Mas depois nos aprisionou.
Talvez porque tenhamos exagerado na dose. Quando o intelecto nos
libertou, libertou-se. E olhou para si mesmo e disse: “Fui eu!” E ao

135
dizer isto, recortou-se a si mesmo, apartando-se do corpo, do coração
e do espírito. O ditador intelecto, com suas novas leis, suas novas
verdades. Arrogando-se superior. Do seu trono, mal lembra-se ele
que um dia era chamado mente, mens: “inteligência, juízo, índole,
sabedoria e alma”. O intelecto apartou-se. Esqueceu-se do seu
passado e do seu lugar. E tivemos alguns problemas...
Ah, já tive esta lição com Avaeté. Tecnologia ou simplicidade?
Razão ou coração? Intelectualidade ou espiritualidade? Lembrei. “O
conflito não faz sentido, Pyá. O problema é apenas a desconexão!”
Ok, concordo. Mas, a pergunta é: como religar? “Amigo! Pode parar
um pouco o caminhão? Gostaria de me aliviar atrás daquela pedra.
Isto. Ótimo. Obrigado. Ahhhh!” Conexão.
- Pyá, você tem um longo caminho, assim como é o de nós
todos. Mas tenha uma certeza: você está dando os passos na direção
certa – sentenciou Avaeté quando subi novamente na cabine.
- Isso me anima, Avaeté. Você me assusta um pouco quando
adverte para não pensar muito...
- Pensar é viver. Pensar demais é morrer. Lembra do velho
ditado “como para viver, não vivo para comer”? É a mesma coisa.
Pense para viver. E viva sem pensar muito! Rá, rá, rá, rá, rá, rá! Não
funda a cuca!
Dei um soco de leve no seu ombro, fingindo contrariedade com
aquela zombaria. Nisso, introduziu-se o amigo caminhoneiro:
- Faça como eu. Eu só dirijo e relaxo. Não penso. Já pensou no
que daria? Acabaria maluco! Completamente doido! Louco de varrer!
Um disparatado! Totalmente lelé da cuca!
- É isso aí, parceiro – confirmou Avaeté. – Pinel! Biruta por
completo! Mentecapto! Baratinado “da Silva”!
- Lunático! Abilolado das idéias! Desnorteado! Um insano! –
emendei.
- Alucinado! Tonto! Pancada da cabeça! Desvairado! – disse o
motorista.
- Demente! Aloprado! Aluado! Zureta! – adicionou Avaeté.
– Zureta! Ah, não. De onde você tirou essa? Zureta passou dos
limites! – ressaltei. E todos caíram na gargalhada.

136
O caminho nos oferecia inúmeras oportunidades para esticar as
pernas e apreciar a paisagem. Lagunas verdes e azul-escuras
maravilhosas. Salinas brancas de cegar as vistas. Vulcões. Cadeias de
montanhas. Primeiro você vai morro acima até 4.200 metros de
altitude. No meio passa por alguns platôs. E depois segue
serpenteando morro abaixo. Despenhadeiros. Gargantas. Lhamas.
Neve. Povoados perdidos nas montanhas. Morros coloridos. Postos de
fiscalização. Um pneu furado.
Com tudo isto, utilizando as Rutas 27 e 52, você pode levar
tranqüilamente um dia inteiro para cruzar os cerca de 400
quilômetros entre San Pedro de Atacama e Purmamarca. Quando
chegamos a este povoado, já era noite. Paramos para um lanche.
Porém, não tardamos a seguir viagem, pois nosso motorista desejava
estar em Salta o mais breve possível. Provavelmente chegaríamos
pelo fim da noite ou início da madrugada.

2
Salta é uma cidade de tamanho razoável. É uma base para
viajantes visitarem a Quebrada de Humahuaca, o Tren a las Nubes
até San Antonio de los Cobres, os Vales Calchaquíes, o Parque Los
Cardones, Cachi, Cafayate e as vinícolas da área. Segundo fomos
informados, todos locais que valem uma visita. Avaeté não estava
diretamente interessado em turismo. Dormimos na cidade em um
albergue e tomamos café da manhã no Patio de la Empanada. Na
cidade, Avaeté pretendia encontrar alguns conhecidos índios e fazer
um pequeno abastecimento para os próximos dias. Os índios
conhecidos de Avaeté eram da nação Coya. Eles estavam se
preparando para as festividades carnavalescas em homenagem a
pachamama, a mãe-terra. Convidaram-nos para que ficássemos para
as festividades, mas não era o que Avaeté tinha em mente. Ele disse
que gostaria de estar em Amaichá del Valle em breve.
- Em Amaichá também há festa boa! Não percam! – recomendou
um dos Coya, enquanto mascava algumas folhas de coca.
A maioria por aqui masca folhas de coca. É estimulante e
combate as eventuais agruras da altitude. Homens, mulheres e
crianças preparavam fantasias, instrumentos, talco, chicha e
alimentos para a festa que ocorreria em alguns poucos dias. Imagino

137
que seria uma festa muito alegre. Eles festejam até mesmo durante
os preparativos.
- Não se engane com a alegria dos povos em épocas de festa ou
quando nos recebem – sentenciou Avaeté.
- Imagino que você esteja se referindo a sofrimentos e tristezas,
como os que ocorrem entre os Mapuche – disse eu.
- Todos os índios neste continente sofrem. Esteja atento para os
sinais. Eles farão parte da nossa aprendizagem – concluiu.
Passamos parte do dia com os amigos Coya, sem que eu
pudesse notar sinais de tristeza naquele povo. Abastecemos nossas
mochilas e passamos o restante do dia perambulando pelas ruas,
praças e morros da cidade. Ao final da tarde subimos o cerro do
teleférico e apreciamos as luzes da cidade tomando cerveja. A noite
estava quente e agradável.
Na manhã seguinte, bem cedo, rumamos em direção à saída sul
da cidade. Nossa idéia era tomar a estrada 68. Dali, com sorte,
obteríamos alguma carona até nosso destino. Tivemos que esperar
cerca de três horas. Muitos passavam, em automóveis, caminhões,
ônibus ou motocicletas. Poucos paravam. Nenhum pretendia ir tão
distante para o sul quanto desejávamos. Até que Sr. Acuña nos
avistou.
Sr. Acuña é comerciante. Possui uma pequena mercearia
próxima ao mercado de artesanato de Salta. Pretendia ir até Cafayate
abastecer-se com bebidas. Vinho, especialmente. Perguntamos se
não havia distribuidores na cidade. “Claro!” – respondeu. “Mas por
que deixar de fazer uma bela viagem?” – perguntou em tom bem-
humorado.
Concedeu-nos espaço em sua diminuta e antiga caminhonete
Citröen. Estava um tanto avariada, mas nós não tínhamos qualquer
objeção. Saltamos dentro dela e partimos. Subimos as montanhas ao
sul da cidade em direção a Cerillos. Sr. Acuña era bastante falante.
Comentou sobre o tempo, sobre Salta, sobre sua família e sobre sua
descendência. Parecia contente com nossa companhia. Alguém com
quem conversar numa viagem de duzentos quilômetros é ótimo.
- Desejam o caminho mais curto ou o mais longo? – perguntou
Sr. Acuña, próximo à localidade de El Carril.
- Qual é a diferença? – perguntei.

138
- Pela Ruta 68 passaremos pela Quebrada de Cafayate. É uma
passagem linda, com montes muito vermelhos e formações
fantásticas – respondeu, fazendo uma pequena pausa para minha
próxima pergunta:
- E a alternativa?
- Ruta 33, pelo interior do Parque Los Cardones e depois pela
Ruta 40. Tudo em rípio. Vistas maravilhosas dos cactos e do vale do
Rio Calchaquí. Mais longa, mas hermosísima. Então?
Duas ótimas alternativas de paisagem... Hum, mas a Ruta 40...
Belas lembranças... Aquela estrada mítica...
- Ruta 40, a carretera mítica? Aquela que vai até o sul? –
lembrava-me de Pedro e seus companheiros.
- Essa mesma. Agrada ao amigo?
- Agrada. Tomemos a rota dos cardones! – sentenciei.
As paisagens são realmente lindas. Subimos até 3.350 metros
de altitude. Encostas íngremes ao lado. O velho Citröen apanhando,
mas firme. E lentamente descemos novamente. Uma paisagem mais
desértica, próxima ao parque, contrasta com os arredores verdes de
Salta. Cardones são cactos gigantes, existentes em profusão por
estas bandas. Seu tronco é muito firme, duro. Muitos o usam para
fabricar móveis. Aqui pelas bandas do parque eles são protegidos. De
repente, um platô abre-se à direita da estrada e uma longa reta
mostra a imensidão da paisagem. “Esta é a reta Tin Tin, com quase
vinte quilômetros de extensão” – informou Sr. Acuña. Disse também
que o local é preferido por ÓVNIS. Contou que certa vez a polícia foi
acompanhada por um deles. E desferiu uma profusão de histórias
sobre o lugar. Passamos a reta toda ouvindo e imaginando as
histórias.

3
Já era final da tarde quando chegamos a Cachi. Uma
cidadezinha simpática, com sua praça central cheia de gente.
Vendedores e... seres de tez muito branca e botas de caminhadas
desembarcando de ônibus.

139
- São viajantes europeus. Eles adoram estas bandas – informou
Sr. Acuña.
Tomavam praticamente toda a praça, além dos bares e
restaurantes à sua volta. Comemos o especial da casa no “Del Sol”:
milanesa. Depois, eu, Avaeté e Sr. Acuña esticamos as pernas ao
redor da praça, agora iluminada. Finalizamos a caminhada na igreja.
Chama atenção seu teto feito em madeira de cardon. Arrumamos
pouso num galpão, indicado por Sr. Acuña, pertencente a um velho
amigo seu.
Pela manhã, levantei e verifiquei que a instalação dava fundos
para o vale do Calchaquí, um rio pedregoso, como costumam ser os
rios andinos, com água proveniente do degelo. Pomares e parreirais
são plantados às suas margens. Interessante como se vive de
fenômenos que ocorrem a centenas e milhares de quilômetros. O
Pacífico, o vento, a chuva, o inverno, a neve, os Andes, o verão e os
rios. E as pessoas. Incluindo nós, aqui, desfrutando deste vale.
Tomamos um café leve e retornamos à estrada. De volta à Ruta
40. A mitificação desta estrada, neste ponto, deve ser devido ao seu
estado. O rípio é bem mais espesso e há muitas pedras pontiagudas.
Não é difícil ter um pneu furado por aqui. Serpenteamos junto com o
vale do rio, passando por pequenas estâncias e pueblitos, onde
crianças pastoreiam ovelhas, cruzando freqüentemente a estrada.
Paramos diante de algumas lindas visões das montanhas e da beleza
das pessoas, principalmente dos pequenos.
Nosso pneu furado surgiu, claro. Sr. Acuña substituiu-o
rapidamente, enquanto sinalizávamos a estrada. Não teria sido
necessário. Ninguém passou por ali em quinze minutos que
estivemos parados. Rodamos mais alguns quilômetros, agora
torcendo para que não houvesse outro pneu furado.
Entramos no povoado de Molinos para achar uma borracharia.
Enquanto o conserto era feito, caminhamos pelo povoado. Poucas
pessoas pelas ruas, nuvens escuras no céu. Uma chuva passou
rapidamente pela localidade, borrifando água e logo seguindo
adiante. Enquanto ia-se, permitia apenas o passar de poucos raios
divergentes de luz solar, formando visões divinas. Avaeté comentou:
- Vê aquilo? É sinal de que, por trás da escuridão, há luz.
- Tudo para você é sinal, Avaeté?

140
- Nem tudo. Mas aquele é. Diz que apesar de passarmos por
tempos de sombras, sempre haverá luz.
- Está tendo o pressentimento de que vamos passar por algum
tipo de sofrimento?
- Estejamos sempre preparados. E com fé na luz sempre
presente.
Fico em dúvida se Avaeté não inventa este negócio de sinais. Os
cães do Cerro Huyliche e de Isla Negra. Os condores na cordilheira.
Bem, até agora, todos os seus sinais se confirmaram.
- Os sinais estão sempre presentes. Esteja aberto para eles e
seus significados – disse Avaeté.
- Seu amigo tem toda razão. Eu apostaria meu lindo carro como
aquilo é um sinal – completou Sr. Acuña, sorrindo.
Que sombras estariam à nossa espreita? Não perguntei a
Avaeté. É uma pessoa de sabedoria, não um adivinho. Seguimos
nosso rumo para o sul. Passamos pela entrada de Angastaco e, logo
após, em San Carlos de Animaná, retornamos ao asfalto. Começavam
a tomar conta da paisagem as videiras. Esta é uma região de
produção de vinhos e observamos os trabalhadores deslocando-se
das plantações para suas casas. Sr. Acuña informou:
- Vê como as pessoas usam bicicletas por aqui?
- Gostaríamos de chegar até Amaichá del Valle. Isto pode ser
feito desta forma? – perguntou Avaeté.
- Certamente! A estrada é segura e a paisagem vale a pena.
Aluguem duas em Cafayate.
E lá estava: Cafayate. Uma bonita cidadezinha. Simpática. Sr.
Acuña desejou-nos sorte e desapareceu na primeira esquina.
Precisava adquirir seus suprimentos e iniciaria o regresso a Salta
ainda esta noite. De nossa conta, caminhamos um pouco pelas ruas e
praças, obtivemos algumas informações necessárias, comemos algo,
tomamos uma cerveja e procuramos pelo local onde se poderiam
alugar bicicletas. Já estava fechado, mas os rapazes responsáveis
foram gentis em realizar o aluguel. Saímos eu e Avaeté na direção da
saída sul da cidade, onde se localizava um camping. Estendemos
nossas mantas sob uma cobertura abrigada e descansamos da
agradável viagem com Sr. Acuña.

141
Com o sol começando a raiar do outro lado do vale, levantamos
e aprontamos a viagem de bicicleta. Alojamos as mochilas
firmemente e tocamos em frente pela Ruta 40. Desceríamos o vale,
com ambos os lados tomados por montes de pouca neve, devido ao
verão, e hectares de plantações de uva. Acompanhamos vários
trabalhadores pela estrada, que saíam de suas casas em direção às
plantações. Deveríamos pedalar cerca de duzentos quilômetros até
Amaichá. Provavelmente não seria possível fazê-lo num único dia,
porque pretendíamos visitar antes as Ruínas de Quilmes.
A não ser pelas terras junto ao rio, a paisagem é bastante seca.
Avistam-se apenas os cardones, ao longe. Pedalamos várias horas,
encontrando vez por outra viajantes de bicicleta, vindos de
localidades muito mais distantes que a nossa. Igualmente com
destino incerto. Com as únicas certezas de que viajar de bicicleta
decreta uma liberdade inigualável, simbolizada pelo vento no rosto, e
de estar na velocidade que a paisagem merece.
Encontramos a entrada para as ruínas dos índios que
bravamente resistiram ao completo domínio, tanto de antigos
impérios como dos conquistadores da América. Os Quilme, assim
como os Mapuche, foram resistentes. A diferença é que não restou
um para orgulhar-se disto.
As ruínas estão localizadas numa reentrância dos cerros, local
de onde se pode perfeitamente mirar todo o vale. São milhares de
cômodos nas ruínas, testemunhando o tamanho do povoado. Hoje, os
habitantes destes cômodos são as lhamas e os cactos. Subimos até o
topo dos morros circundantes para ter uma idéia mais ampla do local.
Sentamos numa pedra mais saliente, como provavelmente sentavam
os sentinelas e sábios de outrora destas bandas.
- Avaeté, ontem você mencionou o sinal das sombras cobrindo o
sol...
- Aqui é muito seco, elas não chegam até aqui. Mas poderão
estar em Amaichá.
- Entendo. Por quê?
- Em nossa viajem, conhecemos os Mapuche e um pouco de
suas lutas. Mas não experienciamos seu sofrimento, apenas sua
alegria. Você precisava testemunhar isto. Agora testemunhará o
sofrimento. Em Amaichá há conflito e sofrimento. Os povos nativos
deste continente estão em maior ou menor grau de fragmentação.

142
Você verá amanhã um destes povos. Faz alguns anos que não venho
aqui, mas tenho tido notícias.
- Para o que precisamos estar preparados, Avaeté?
- Para experienciar isto. Mas apenas isto. Não é nosso papel
interferir no que acontece. Pelo menos, não agora – disse, tornando-
se taciturno.
- Compreendo. Procurarei estar aberto para perceber o que
acontece.
Tomamos um pouco mais de água e apreciamos a vista até que
o sol se pusesse às nossas costas. Descemos pela trilha até nossas
bicicletas e rumamos até a hospedagem existente junto às ruínas.
Acampamos cobertos por um mar imenso de estrelas, tão
abundantes e algumas tão pequenas que pareciam poeira. Poeira
estelar. E as “magrelas”, ali ao lado, deitadas como nós.
No dia seguinte regressamos pela estrada de acesso até
retomarmos a Ruta 40 e, alguns quilômetros adiante, tomamos a 357
em direção ao outro lado do vale. Em breve, adentraríamos Amaichá.

4
Sua entrada não é a típica de uma comunidade indígena. Há
casas construídas em concreto e um museu. Avaeté disse que os
antigos ressentem-se da ocidentalização. Avaeté questionou alguns
transeuntes pela Madre Córdoba. Imaginei ser alguma de suas velhas
conhecidas, assim como Pedro Ruca, Miguelina e os outros. Indicaram
alguns quarteirões à frente e à direita. Localizamos a casa indicada e
batemos palmas. Uma senhora certamente nonagenária atendeu. Era
a própria Madre Córdoba. Abraçou demoradamente Avaeté,
parecendo seu filho ou neto. Abraçou-me como a um bisneto. E
convidou-nos a entrar.
Madre Córdoba era morena, com poucos dentes, olhar um pouco
turvado pelos anos, mas com vitalidade e firmeza. Chegamos no
momento em que preparava empanadas. Sentamo-nos na cozinha.
Ela ofereceu-nos café.
- Querido Avaeté, quantos anos! Que bom revê-lo!

143
- Saudades, madresita! É maravilhoso vir visitá-la. Como estão
todos? – perguntou Avaeté.
- Todos com muita saúde, graças à pachamama. Infelizmente,
não são tempos pacíficos...
- Sei, tenho tido algumas notícias...
Avaeté estava um pouco a par dos problemas. Nestes vales
viveram povos da grande nação Diaguita: os Amaichá e os Quilme,
entre vários outros. Hoje são poucos. A chamada “pacificação” da
área foi catastrófica para eles. Já não são mais que dez por cento
daqueles de então.
Séculos atrás, os Quilme foram retirados à força e postos em
marcha de 1.200 quilômetros até os arredores de Buenos Aires. Os
Amaichá, não tendo participado dos conflitos, foram deixados em
suas terras, mas foram reduzidos e ocidentalizados. Muitos foram
escravizados no trabalho em minas, nas plantações e como
empregados de senhorios.
Hoje, sua força se dilui pela falta de autonomia na educação dos
pequenos e nas questões administrativas. As recentes gerações
foram perdendo a cultura nativa. Madre Córdoba falou, aflita:
- A maioria já não quer ser chamada de indígena. Têm
vergonha...
Comentou que a política tem corrompido a vida nos povoados.
Caciques desonestos perpetuam-se e rodiziam-se no posto por
práticas clientelistas. Acabam apoiados por entidades estatais e não-
governamentais que deveriam justamente proteger a cultura nativa.
Promessas não são cumpridas e a cultura desvanece. Madre Córdoba
continuou:
- O maior exemplo disto é a corrupção da tradicional festa a
pachamama. Hoje em dia, tornou-se um espetáculo comercial,
incluindo, muitas vezes, cobrança de ingressos que a própria
comunidade não tem dinheiro para pagar. Isto se dá pelo turismo
“gafanhoto” que, ao trazer seu dinheiro, corrompe a cultura local.
Além disso, as empresas patrocinadoras, nunca antes necessárias,
são hoje quem manda na festividade...
Avaeté perguntou:

144
- Como andam o conselho dos anciãos e a mobilização da
juventude, Madre?
- As manifestações têm sido rechaçadas com violência. Tivemos
nos últimos anos dezenas de pessoas presas arbitrariamente e
muitas assassinadas. Os assassinos nunca aparecem. Você sabe... Os
assassinos e a polícia...
- Claro, entendo, Madre – baixou os olhos Avaeté.
Madre Córdoba e Avaeté permaneceram falando várias horas
sobre o assunto. Madre disse que o conselho dos anciãos tentou
várias vezes destituir caciques déspotas, mas suas decisões sofrem
com o medo e impotência da comunidade. Muitos vão embora. Vão
para grandes cidades fazer trabalho quase escravo e viver vidas
pobres, econômica, cultural e espiritualmente. Quase não há mais
para quem passar a tradição.
- Nossa cultura está escorrendo por entre nossas mãos. Está se
dissolvendo. Aqueles que buscam fortalecê-la sofrem violências. Você
sabe, Avaeté? Meu sobrinho foi assassinado há três meses atrás...
- Puxa vida, Madre, não sabia disto. Fernando?
- Sim, Fernando. Apareceu morto. As investigações não
avançaram.
“Fernando estava tentando tornar pública uma ação de impacto
nefasto sobre a comunidade. Uma organização não-governamental
de promoção do turismo e promoção da proteção natural tem
explorado as festividades e as belezas naturais da região. Por detrás
de uma saudável promoção da cultura e proteção ao meio ambiente,
tal organização, associada com empresas e estâncias da região
beneficiadas por este turismo, tem se apropriado de terras não
demarcadas onde viveu e vive nosso povo. Esta apropriação tem sido
feita a pretexto de protegê-las. Pois é justamente nessas empresas e
estâncias, que se apropriaram e se apropriam de nossas terras, que
trabalham nossos filhos e netos, forçados a tal pela ausência de solos
adequados nas reduções. Mas isto só é levado totalmente a cabo
porque tais empresas, organizações e até os governos corrompem
pessoas dentro da própria comunidade, facilitando sua ação em troca
de favores. Mas a coisa não acaba aí. Tais operações têm suporte
legal, governamental e de empresas globais para operar. As
empresas globais investem em tais organizações através de
incentivos governamentais. E veja quem patrocina as festividades?

145
Estas próprias empresas globais. E porque elas querem se beneficiar
desta publicidade? Porque as pessoas desejam conhecer a nossa
festa. Nossa celebração. Veja a situação, Avaeté.”
Mapeei mentalmente a situação e percebi que todos têm
benefícios mútuos na rede. Exceto a comunidade. Madre concluiu
com ar profundamente triste:
- Quem matou Fernando? Quem puxou o gatilho? Jamais
saberemos. Mas quem tem as mãos sujas, Avaeté? Ah, isto sabemos.
Vários e vários têm as mãos sujas pela violência ao meu povo...
Madre Córdoba em seguida nos ofereceu café e ficamos
conversando durante algumas horas sobre os acontecimentos.
Durante nossa estada na sua cozinha, filhos, netos e bisnetos
passavam para cumprimentar sua madre e ver-nos e cumprimentar-
nos, também.
Avaeté disse que se sentia profundamente triste com a situação.
Madre respondeu dizendo que compreendia seu sentimento. Que era
muito bom tê-lo presente e que sua ajuda espiritual era o que lhe
bastava:
- Você é um companheiro de resistência. Cada um segurando
sua própria cultura, mas todos pelo espírito nativo. Manter o céu
suspenso, meu caro Avaeté, é uma luta diária...
- Sim, Madre. Assim é a nossa dança.
Noto como Avaeté é admirado pelos irmãos nativos. Assim como
as histórias que Avaeté tem com os Mapuche, deve ter várias outras
com inúmeros povos neste continente. Avaeté é um daqueles que
leva as vozes nativas entre os povos. E me dá isto tudo como
presente. Um maravilhoso presente.
Avaeté disse a Madre Córdoba que pretendíamos ficar no
povoado por apenas dois ou três dias. Perguntou se Madre sabia de
algum lugar para o pouso. Madre ofereceu a casa de um dos filhos,
que passaria alguns dias longe da cidade. Muito próximo dali,
aliviamos o peso das bicicletas e mochilas, tomamos banho e
descansamos da jornada. Comemos um jantar simples, mas caseiro e
muito saboroso com Madre e sua filha mais nova e sua família.
Bebemos um pouco de chicha, conversamos um tanto mais e
recolhemo-nos à pousada.

146
5
Durante o dia seguinte estivemos à disposição da comunidade
para trabalhar na preparação das festividades em homenagem a
pachamama. Trabalhamos lado a lado com homens e mulheres que,
ao celebrar, mantém viva a alma Amaichá. Montamos arquibancadas,
preparamos mesas e cadeiras, auxiliamos na construção de
quiosques, puxamos eletricidade para a praça e vimos o preparar do
agujero, o buraco onde seriam oferecidas comidas e bebidas a
pachamama. As festividades dar-se-iam dentro de poucos dias, mas a
preparação estava em bom termo.
Naquela mesma noite visitamos artistas e artesãos locais, com
trabalhos muito lindos. A maioria com motivos da cultura Diaguita,
bem como réplicas alusivas aos desenhos rupestres da região, cuja
presença humana tem sido reportada como existente há pelo menos
12.000 anos.
No dia seguinte, auxiliamos um pouco mais nos trabalhos de
preparação da festa e, à tarde, Avaeté dedicou seu tempo para
visitar as escolas da região. Vi Avaeté dar palestras às crianças de
um modo muito descontraído e divertido, incentivando-os a
perguntar e comparar a sua cultura com a de Avaeté. Depois levava
as crianças para a rua e ensinava-os o xondaro. Havia muita diversão
e risadas. Por fim, Avaeté abraçou as crianças e desejou “boa sorte”
a cada uma delas. Avaeté tinha um jeito muito carinhoso com os
pequenos. Por isso, eles também o admiravam.
Ao cair da noite, Avaeté sugeriu subirmos até as montanhas ao
redor do vale. Levamos abrigo para a passagem da noite e nos
embrenhamos pelas trilhas usadas pelos Amaichá. Paramos por duas
ou três vezes, ofegantes, até localizar uma clareira em boa altitude
para mirar o povoado lá embaixo. O que se via era uma pequena teia
de luzes.
Avaeté estimulou a conversa:
- Que sentimentos lhe ocorrem nesta nossa visita, Pyá?
- Bem, Avaeté. Gozo da alegria de compartilhar a sua
companhia e a companhia destes povos. Mas estou triste pela sua
situação. Uma tristeza que eu não alcançaria se alguém apenas me
contasse o fato. Mas, neste caso, é diferente. Eu vi a tristeza nos

147
olhos de Madre. Eu senti a sua tristeza, não na mesma intensidade,
mas a experimentei.
- É isto que precisamos, Pyá. Experimentar para conhecer. Sem
a experiência, não há contato, compaixão ou sentimento profundo.
- Claro, e isso me fez sentir também uma vontade profunda de
ajudar. Não sabia como, mas imagino que você não apoiaria uma
ação mais engajada.
Nossos olhos, depois de todas estas noites passadas com pouca
luz, já têm uma maior capacidade de enxergar com pouca luz. Apesar
de a noite ter se tornado repentinamente nublada, podíamos
nitidamente notar as nuances dos cerros ao redor, bem como sua
vegetação, levemente mais esverdeada e úmida, denotando uma
espécie de transição entre os Andes e os esteros e charcos a leste.
Avaeté continuou:
- Como já conversamos, Pyá, primeiro temos que fazer o nosso
tema de casa. Ajudamos com o pouco que temos, que é nosso apoio
e força, tanto física quanto espiritual. Eu estou fazendo o meu tema
de casa, você está fazendo o seu. Isto é tudo. Por hora.
- Veja, Avaeté, como as coisas são imbricadas. Você notou o
relato de Madre Córdoba? A rede de ligações entre negócios, política,
governo e comunidades provoca fenômenos que influenciam locais
distantes. Por exemplo, a maneira como esta comunidade é afetada.
Organizações diversas em relações com empresas globais, ambas
ligadas a políticos e governos, trabalhando em prol dos seus próprios
interesses (legítimos, diga-se de passagem), afetando a vida desta
pequena comunidade e os negócios vizinhos. Um indivíduo qualquer
que compra um produto do outro lado do globo está ligado a esta
comunidade perdida, aqui, no sul do continente, encostada nos
Andes.
- Digamos que nossas mãos estão “sujas”.
- É verdade, Avaeté. É o que nos disse Madre Córdoba. Porém,
não nos sentimos culpados...
- Nem faria sentido. A culpa não resolve o problema, só cria
mais problemas.
- Acho que compreendo. O melhor seria experienciarmos essa
rede. Tomar ciência dela. Sabe, Avaeté, acho que há uma idéia nas

148
nossas cabeças, entre outras, que dificulta um pouco isto, este
experienciar...
- Prossiga.
A cidade, lá embaixo, era apenas uma pequenina teia de
aranha. As luzes cintilavam fracamente, como uma pequena
constelação enfraquecida, esvaindo-se lentamente. As vidas de
algumas dezenas de pessoas pulsando, ainda, através do tênue fio de
suas próprias tradições, festividades e amor a terra e aos seus
familiares. Os fios de uma vida simples, quase todos visíveis daqui de
cima. Conforme o pedido de Avaeté, continuei:
- Na nossa vida diária, tomamos as transações que temos com o
mundo numa base muito restrita. Toma lá, dá cá. Entende? Sem
muita aproximação. “Faça bem e barato seu produto e eu pagarei
honestamente.” E é isso. “Eu pago em dia meus impostos, por isso
cuide para que não haja buracos nas estradas.” “Sou um turista, está
aqui minha grana, sirva-me com cortesia.” O outro lado é um objeto,
uma caixa-preta. Não tenho tempo para vasculhar. Faça seu serviço,
que eu faço o meu. Cuide do seu lado que eu cuido do meu.
- Não sei aonde você quer chegar.
- Vou tentar explicar. A idéia é a seguinte: eu sou um ser
importante, preciso cuidar das minhas preocupações. Você é como
um objeto, deve me oferecer o que eu quero. Eu estou pagando. Dê-
me o que eu quero. Ponto. Entendeu?
- Não. Você está um pouco enrolado. Seja mais direto.
- Sei lá, Avaeté. Não estou conseguindo articular algo mais
direto para expressar a idéia. A idéia de que você não quer saber o
que há do outro lado, se o outro lado é ético ou não, se está fazendo
algo prejudicial ou não, estas coisas.
- Muito bem, vou ajudá-lo a organizar sua idéia. Você usou uma
palavra para referir-se ao outro lado. Você disse o outro lado é
como...
- ... Um objeto. É como nos relacionamos na vida diária. Os
outros são objetos dos meus interesses.
- Ok... E objeto significa o quê?
- Um objeto? Um objeto é coisa física ou mental. Algo
discriminado pelo seu ato de percepção.

149
- Discriminado, é? Separado, digamos?
- Sim, um objeto é algo que você discrimina e separa de você.
Não é você, é outra coisa.
- Sei. Acho que já conversamos sobre o assunto, não é? A velha
faca?
- Sem dúvida. Um pouco de história das palavras? Você gosta
disso, não é mesmo, Avaeté? Vamos lá. Objeto vem de objectus: ação
de pôr diante, interpor; pôr um obstáculo, uma barreira.
- Ah, entendo. Você põe uma barreira entre você e o objeto. E
diz: “Aquele lá fora, do outro lado.”
- Isso! E não se responsabiliza pelo que há “do outro lado”. Não
é problema meu. “Passe-me o que eu quero por cima do muro.” Não
interessa se há sofrimento do outro lado. Não é problema meu.
- Vocês pensam assim, Pyá? É essa a sua maneira de enxergar o
mundo?
- Sim, creio que sim, Avaeté. Nós vemos o mundo como objetos.
É esta a idéia central. Tratamos o mundo como objetos. Obrigado,
Avaeté. Você me ajudou a sintetizar minha percepção.
- Certo. Vamos adiante, então. Você propõe algo?
- Sim... Bem, não sei.
- Vamos lá, articule o que você está pensando.
- Não sei... Acho que a gente deveria derrubar o muro!
- Derrubar o muro? Ah, que novidade! “Hey! Teachers! Leave
the kids alone!”
- Avaeté, estou falando a sério!
- Eu já lhe disse, não fale a sério! Rá, rá, rá, rá, rá! Cante!
Escreva uma canção sobre o assunto! Rá, rá, rá!
- Ok, ok, Avaeté, só para satisfazê-lo, no dia que eu tiver talento
escreverei uma canção e lhe enviarei. Por hora, fiquemos na prosa.
- E nas experiências!
- Muito bem. O que quero dizer com “derrubar o muro” tem mais
a ver com “olhar por cima do muro”. Eu creio que só
compreenderemos a complexidade do nosso mundo se tivermos a

150
predisposição de olhar por cima dos muros e ver a imensa teia em
que estamos envolvidos. Não nos basta ser informados dos
problemas pelo jornal. Acho que precisamos ir além dos sintomas,
além do que nos contam, além do “toma lá, da cá” e nos
envolvermos um pouco mais. Envolver nesta teia de
relacionamentos...
- Ok, você está sugerindo mudar o tratamento do mundo de
objetos “lá fora” para...
- Relacionamentos “aqui dentro”! Quando você olha por cima do
muro, você vê mais do que o objeto. Você vê em tudo o que você e
os outros estão ligados, e isto leva a outras e outras ligações...
- ... Até encontrar no final da teia...
- Você mesmo! Coisas do tipo o quanto você mesmo contribui
para a violência, coisas que as pessoas até falam, mas não
vivenciam.
- “A coruja empoleira-se sobre si mesma para criar a sabedoria.”
- Hein?! – exclamei, sem entender nada.
- Nada. Deixe para lá... Você se saiu razoável na sua prosa, Pyá!
Acabou fortalecendo a minha tese. Para nos encontrarmos,
precisamos vivenciar o mundo à nossa volta.
- Fico feliz com isso, Avaeté.
- Bem, pelo menos sua faca analítica não o deixou em apuros
desta vez... Às vezes ela é útil... Afinal, você precisa descascar alguns
abacaxis de vez em quando...
Neste momento, um vento mais forte soprou a ponto de obter
nossa atenção. Não havia assobios ou barulhos de folhas, pois a
vegetação é rasteira, mas um barulho intenso da própria
movimentação do ar. Acho que até meus ouvidos passaram a ouvir
diferente depois de todos estes dias vivendo no íntimo da natureza.
Avaeté fez uma pausa, ergueu um dedo e notou que soprava para
oeste. Depois, fez uma advertência:
- A mudança na direção dos ventos é um sinal. Nossos avôs e
avós xeramoi kuery diziam: “O que tem que morrer, morrerá.”
Fez uma pausa para compreender o alcance destas palavras e
disse:

151
- Basta! Chega de papo furado. Hora de dormir! Boa noite, Pyá.
- Mas logo agora que a “coisa” estava esquentando?
- ...
- Ok. Boa noite, Avaeté.

6
Não tinha sono, por isso apenas recostei-me protegido do vento
e meditei sobre nossa conversa. Pensei sobre o alcance do
abandonar a objetificação do mundo. Chegamos a extremos de gerar
categorias falsas como “natureza”, “civilização” ou “nativos”,
produzindo generalizações fantasiosas de caráter duvidoso. Idéias
como “proteger a natureza”, “ser civilizado é bom” ou sua
contraparte “a civilização está matando a natureza e os povos
nativos”, “os nativos são selvagens do bem”, além de várias outras,
provocam mais confusão do que clareza. Já que é difícil não pensar
nestas categorias, pelo menos é preciso fazer um esforço para olhar
por cima dos muros delas e enxergar o que é concreto: a rede de
relacionamentos reais entre as pessoas. E disso tirar algum rasgo de
iluminação. Uahh... Que sono! Zzzzz...
A manhã seguinte ainda amanheceu nublada. Foi uma noite
mais ou menos agitada, acho que pela constância do vento. Ele ainda
soprava, só que agora mais brandamente. Avaeté tomava seu mate e
eu juntei-me silenciosamente a ele. Depois disso, apagamos as
nossas marcas no terreno e descemos até o povoado. Avaeté estava
decidido a partir brevemente e precisava avisar Madre Córdoba.
Despedimo-nos longamente dela e de alguns de seus parentes,
desejando força e sorte. Saímos a pé pela cidade, empurrando nossas
bikes e acenando para alguns novos conhecidos. Diziam para que
voltássemos em breve. Sorríamos em retribuição.
Ao chegar à estrada, voltamos a pedalar. Regressaríamos pela
mesma rodovia que nos colocou na rota de Amaichá e das Ruínas
Quilmes e dos trabalhadores dos parreirais. Em algumas horas
estávamos de volta a Cafayate. Devolvemos as bicicletas e tentamos
providenciar transporte para o leste. Avaeté sugeriu que tomássemos
esta direção, pois estava na hora de ter um encontro com seu próprio
povo. Nossos próximos passos seriam cruzar o chaco, adentrar o

152
pampa e, depois, encontrar o oceano, do outro lado do continente.
Estávamos por entrar em território Guarani e de muitos outros povos.
Obtivemos no escritório de turismo de Cafayate indicações para
realizar este percurso de ônibus. Primeiro cruzamos a Quebrada de
Cafayate até Salta em um ônibus com turistas. Foi divertido e
agradável, pois paramos em vários dos lindos lugares ao longo da
estrada, com morros e formações muito alaranjadas, devido ao solo
ferroso. Os turistas, muito alegres, foram gentis em conversar e
trocar experiências. Próximo a Salta pernoitamos, de maneira que no
dia seguinte pudéssemos tomar um ônibus de linha até Resistência e
Corrientes, passando por 700 quilômetros de linha reta em meio ao
chaco, esta espécie de deserto quente e úmido. Depois, mais ônibus
de Corrientes, a leste do Rio Paraná, até Posadas. E, por fim,
cruzando o Rio Uruguai. Combinamos que após cruzar o rio,
empreenderíamos nossa jornada a pé.
Avaeté chamava a atenção para os nomes das localidades e
acidentes geográficos: se não eram nomes cristãos, eram, na sua
maioria, nomes Guarani. Pirapó, Ijuí, Piratini, Bossoroca, Icamaquã,
Itacurubi, Tupantuba, Carovi, Caibaté, Ubiretama, para citar alguns.
Passamos dias dormindo em estâncias, estábulos, pequenas
residências e povoados indígenas.
Ao adentrar algumas destas aldeias, você começa a entrar em
contato com alguns dos sintomas das doenças dos povos nativos em
vários locais deste continente: tristeza, depressão, alcoolismo,
miséria, más condições de saúde física, alimentação pobre, sub-
habitações, falta de perspectivas. Não que os nativos necessitem de
perspectivas, na noção a que estamos acostumados, como objetivos
de vida, mas no sentido da descaracterização de sua cultura.
Avaeté chama minha atenção para os paradoxos. Ao mesmo
tempo em que é um povo alegre, intimamente alegre, mergulha na
tristeza de ver desvanecer-se esta mesma alegria. Ao mesmo tempo
em que é entendido como um povo guerreiro, perde a batalha da
vida para as forças do abraço da morte. Enquanto alimenta a chama
da terra sem males, vê a própria terra sendo usurpada. Bebe para
celebrar, ao passo que no fundo desta celebração encontra a
destruição das suas entranhas. Avaeté indicou:
- Há um lugar nesta região que é o símbolo das dicotomias do
meu povo, Pyá. Lá, você verá opressor virando oprimido. Lá, verá
heróis controversos admirados pela esquerda e pela direita. Símbolos

153
de luta e de submissão. Construção de “utopias” sobre “utopias”
anteriores. A pretexto de serem melhores, “mais boas”, “mais
divinas” que outras. O poder missionário varrendo o poder nativo. E o
poder total esmagando ambas. As ruínas jesuíticas é este lugar.
Avaeté falava das ruínas jesuítas de São Miguel das Missões.
Poderiam ser quaisquer reduções na face da terra. A história é
conhecida. Missionários cristãos, apoiados pelo poder imperial
português e espanhol, aliciando e purificando nativos “pagãos” sob o
pretexto de salvá-los. Arrebanhados, “domesticados” e organizados,
viraram o símbolo de uma “comunidade socialista”. Virou tal símbolo
depois de martirizada pelo próprio poder concedente: os impérios
ibéricos. Sepé Tiaraju, o mártir símbolo. Símbolo do orgulho Guarani.
Símbolo do orgulho jesuíta. Símbolo do orgulho socialista. Símbolo do
orgulho regional caudilho. Símbolo do orgulho de qualquer um. Quem
não deseja apropriar-se de um mártir que está aí, “dando sopa”?
Sentamo-nos sob a solene cruz defronte às ruínas de uma
imensa igreja. Era tardinha e o sol poente tornava ainda mais
alaranjada a construção. Apesar de protegida da destruição por um
parque, o próprio poder natural a consome. Árvores alojam-se e
adonam-se de frestas nas paredes, muros e torres.
- O encontro entre nativos e juruakuery é irreconciliável dentro
do sistema de qualquer um dos dois. É um embate entre concepções
de mundo, entre sistemas de vida. Quando se encontram, o mais
voraz e apropriador vence.
- Mas aqui, não houve vitória de um sobre outro. Ambos
transformaram-se num terceiro, Avaeté...
- O fato é que dificilmente o sistema indígena sobrevive. Ele é
esmagado ou desfigurado. Esse sistema experimentado aqui não era
mais indígena. Claro, também não era mais branco, em essência. Foi
aí que entrou em conflito com os interesses imperiais. Enviaram
bandeirantes e exércitos e varreram a experiência do mapa –
explicou Avaeté, taciturno.
- Você parece demonstrar desesperança, Avaeté? – questionei.
- Não! Estou é triste. Não confunda com desesperança. Estou
aqui, vivendo minha própria vida Guarani. Livre! Um sobrevivente!
E Avaeté saltou de seu acento em um pulo. Apontou seu
cachimbo para o alto como se fosse uma espada e gritou: “Podem

154
nos matar, mas não acabarão com a terra sem males. Viva yvy
maraney!” E soltou uma gargalhada.

155
Avaeté

Oito

156
1
É, Avaeté tinha razão. Aquele é um lugar paradoxal. Lá, você
pode se alegrar e celebrar, mas também pode se entristecer e sentir
pesar. Foi lugar de heróis e de bandidos. Claro, tudo depende de seu
ponto de vista. E da sua predisposição para erguer muros.
O que importa agora é sentir esta liberdade da dissolução dos
muros. As ruínas de São Miguel logo ficarão para trás. Avaeté me
adverte para os próximos passos da viagem. Iremos às bordas desta
terra, nos campo de cima da serra geral, a leste, desceremos suas
encostas cheias de cânions e buscaremos o litoral do Atlântico. Lá,
vamos entrar em contato com aldeias Guarani em várias situações:
de povoados empobrecidos até aldeias experimentais. A idéia é
entrar em contato com o povo de Avaeté no Parque da Serra do
Tabuleiro.
Nas cercanias das ruínas nos deparamos com um grupo de
motoqueiros viajantes pelas Américas. Estavam voltando para casa
de uma viagem de três meses. Era um grupo de vinte pessoas em
quatorze motocicletas, com alguns casais e adolescentes viajando
juntos. Voltavam da visita às ruínas. Entraram em contato conosco
num desses bares das cercanias, no momento em que almoçávamos.
Conversamos sobre ambas as viagens, a deles e a nossa, e tivemos a
sorte de descobrir seu paradeiro final: Criciúma.
A cidade localiza-se próximo à estrada 101, entre o Parque da
Serra Geral e a do Tabuleiro, nosso destino. Ofereceram-nos carona,
o que foi uma agradável surpresa.
Recompuseram-se e pusemo-nos na estrada 285 até Vacaria. O
grupo curtia acampar, de maneira que, a cada parada para pernoite,
um muro de potentes motocicletas servia como nosso abrigo.
Durante o dia, o vento no rosto e a total entrega nas mãos da Vida
limpa seu interior. Refresca seu radiador como o faz com o da moto.
Vamos seguindo por estradas vicinais até o cânion do
Itaimbezinho, no Parque dos Aparados da Serra. Você continua se
refrescando com o vento das beiradas da garganta. O ar está muito
limpo e a visão que se obtém é estupenda. Os campos são cobertos
por gramíneas verdes, um pouco mais para o dourado nesta época.
Cobrem as pequenas elevações, que são como ondulações formadas
na terra pela ação do vento. Pelas estradas você cruza rios e arroios

157
pedregosos, com águas marrons ou azul-escuras. Muitas cascatas.
São refrescantes. Todos banhamo-nos em várias destas passagens.
A grande surpresa deste local são as araucárias. Diferentes da
região dos Mapuche, aqui se encontram as araucaria angustifolia,
com longos galhos localizados somente no topo. Capões de mata de
araucárias cobrem parte das ondulações gramadas. De longe,
parecem palitos com cabelo rastafári fincados na terra.
Seguimos adiante pelos campos de cima da serra, costeando a
grande borda da Serra Geral até encontrarmos inúmeros outros
cânions, incluindo o Fortaleza, de onde se pode avistar o mar a
dezenas de quilômetros. Tudo o que você precisa fazer aqui é abrir os
braços, como se fosse uma antena. Mil metros de altitude separam a
borda da serra e a área litorânea, lá em baixo.
Desta altitude, neste estado de liberdade, não há conflitos, não
há divisões, não há caminho certo nem errado. Não há antes, não há
depois. Não há aqui, não há lá. Só a liberdade. Lá embaixo, não se
vêem muros, paredes, divisões ou estradas. Daqui de cima, não há
certo nem errado. Certo ou errado é uma noção que só há lá
embaixo.
- Está na hora de descer e saber o que está acontecendo. Há
coisas que você precisa ver com os próprios olhos – Avaeté disse isso
e acenou para os companheiros de viagem, avisando que estávamos
prontos.

2
Cruzamos em estradas de terra por povoados como Cambará,
São José dos Ausentes, Silveira e São Joaquim. Logo depois, a estrada
438 nos oferece a descida da Serra do Rio do Rastro. É um ir e vir
constante e lento, um serpentear realmente radical ao longo de seus
quinze quilômetros por dentro de um cânion que desce os 1.460
metros até o nível do mar.
Despedimo-nos dos nossos companheiros em Lauro Müller. Dali,
seguiriam até sua cidade natal, depois de meses de jornada sobre o
selim das motos. Para merecidamente entregá-las aos artistas da
manutenção de motocicletas.

158
De nossa parte, resolvemos nos afastar da cidade para acampar
próximo ao Rio Tubarão. Puxei assunto com Avaeté, dizendo que
havia notado que estava mais quieto desde que passamos por São
Miguel. Avaeté comentou:
- É natural, Pyá. Nestas terras viveram meus antepassados.
Dentro do sistema nativo, éramos ricos. Ricos de vida, ricos de
liberdade. Hoje, vivemos às margens do sistema jurua. Dentro dele,
somos pobres.
- Compreendo, Avaeté. Isso estava planejado? Passarmos por
aqui e vermos isso? – perguntei.
- Sim, Pyá. Planejei passarmos por aqui para você conhecer
meus irmãos e para que eu me realimente da minha cultura. E para
trazer energia. Ficaremos aqui alguns dias.
- Aonde iremos?
- Visitaremos duas aldeias. A primeira fica ao sul do Parque da
Serra do Tabuleiro. Há cinqüenta anos atrás era uma aldeia isolada
ao pé do morro. Mas a abertura de uma estrada deixou-os à vista dos
brancos. Hoje, com a valorização da área, eles estão sendo expulsos
morro acima. É a aldeia do Morro Mirim de Dentro. Esta aldeia está
doente.
- E a outra, Avaeté?
- A outra se chama aldeia Tekoha Guatá. Fica ao norte do
parque. Ela também esteve doente, quase morreu. Mas agora, uma
nova experiência está sendo feita lá. Encontraremos alegria e
renascimento.
- Essa nova experiência, você acredita que será um caminho
para sobrevivência do seu povo, Avaeté?
- Há muitas experiências sendo feitas por este mundo afora. É
claro que acredito nelas. Elas renovarão este mundo maravilhoso que
temos à frente.
Estávamos a cerca de quarenta metros do rio, numa área com
algumas árvores um pouco afastada da cidade. Fizemos uma fogueira
discreta e armamos a barraca para proteger-nos. Tomamos chá e
comemos um sanduíche de pão e produtos caseiros comprados na
serra. Na manhã seguinte iríamos a São Martinho, a localidade mais
próxima da aldeia do Morro Mirim de Dentro.

159
Enquanto comíamos, senti um pequeno desconforto físico, um
cansaço e uma friagem corporal. Era a primeira vez na viagem que
sentia algum tipo de desconforto deste tipo. Já havia sentido muito
frio, muito calor e outros tipos de desconforto, mas este era
diferente. “Ah, deixa para lá, não deve ser nada” – pensei.
Olhando para Avaeté, noto vestígios de dois estados de espírito.
Apesar de haver um Avaeté amargurado, há outro energizado. Ele
próprio declarou sua crença numa reenergização e renovação. Torço
para que este seja um ciclo de renovação para o povo de Avaeté e
para todos os povos nativos deste planeta. Torço para que as forças
que renovam os rios, florestas e animais tenham impulso aqui. A
força que renova.
- Avakue ojere oo rupi – falou misteriosamente Avaeté.
- Ãhn? – indaguei.
- “Os homens dão a volta ao redor de casa.” Quando voltam,
retornam evoluídos, renovados. Nós estamos voltando aqui, Pyá.
Retornar, voltar, circular. A idéia do círculo é poderosa. A
sabedoria muitas vezes refere-se a ela. Mutualidade, evolução,
sustentabilidade. Círculos de pedra. Rituais circulares. Danças
circulares. O eterno, o início e o fim, a transformação, a totalidade, os
opostos e os unitários. O acampamento em volta do fogo, o
horizonte, o ninho, as estações, nascer e morrer, o dia e a noite. Tudo
circularidade.
Cânions são cânions por causa de círculos. Círculos de
intensificação entre rio e rocha. A fenda da rocha que se desgasta e
produz uma cunha para água mais concentrada passar. Água mais
concentrada significa mais erosão da rocha e a fenda torna a se
aprofundar. Deixa de ser uma pequena fenda. Torna-se uma
garganta mais profunda.
Rios também são rios por causa de círculos. Águas que fluem e
que alimentam lagos e mares evaporam e precipitam-se sobre
lençóis que alimentam nascentes que alimentam rios.
Como o círculo é um símbolo poderoso na natureza, tornou-se
também na mitologia, na filosofia e na psicologia. Os Guarani são
Guarani por causa de círculos. São culturas que dão certo e evoluem
e que, por isso, reproduzem-se e transmitem uma tradição. Mas
também deixam de sê-lo por causa de círculos. Círculos de poder

160
destrutivo dos jurua. Mais exploração da terra significa maior poder
econômico para explorar mais terra. E isto é igual a menos terra para
os nativos.
- Ava ojere guigua. Gente feita de anéis – arrematou Avaeté.
O dia seguinte ainda nem havia amanhecido quando escutamos
trovoadas. Levantamos rapidamente. Era melhor desmanchar o
acampamento ainda seco. Assim que terminamos de guardar tudo,
começou a chover. Não era uma chuva torrencial, mas era forte.
Encharcou-nos em instantes. Colocamo-nos na estrada na direção
nordeste, tentando algum transporte até São Martinho. Após
caminhar por meia hora sob chuva, um caminhão vazio parou para
que subíssemos na carroceria. Cobrimo-nos com uma lona. O
motorista falou que quando chegasse à cidade nos avisaria.
Na pequena cidade de origem germânica quase não havia
movimento de pessoas a pé. Um ou outro automóvel deslocava-se
pelas ruas. Sentia um pouquinho de frio por estar molhado, mas
Avaeté sugeriu que devêssemos por o pé na estrada para chegar o
mais breve possível à aldeia de Morro Mirim de Dentro. Tomamos a
rodovia com asfalto recente e caminhamos cerca de doze
quilômetros até sairmos da estrada e tomarmos a trilha em meio à
mata.
A trilha sobe por entre a mata atlântica, onde encontramos uma
riqueza vegetal impressionante. A quantidade de espécies é
formidável. Subimos cerca de cem metros durante uma hora e meia
de caminhada. De repente, vimos fugir alguns vultos por entre as
árvores. Assustei-me, mas Avaeté disse para ficar calmo. Eram
crianças brincando na mata. Em breve, avisariam da nossa chegada.

3
Em mais alguns minutos de caminhada pela mata úmida
chegamos à aldeia. Havia casas com paredes trançadas de taquara e
forro de fibras, misturadas a algumas outras construídas em madeira
comum. A mais típica era a casa central, a opy, a casa de rezas.
Houve um pouco de algazarra das crianças. Logo a seguir, um
homem idoso nos recebeu.
- Avaeté! Que surpresa nos dá sua visita!
- Karay Porã! Meu velho Karay Porã! – abraçaram-se ternamente
durante alguns segundos.

161
A aldeia fora construída numa clareira, no lado oeste do Morro
Mirim de Dentro. Logo a sudoeste avistava-se a estrada de que
Avaeté falara. Passa próximo da aldeia, realmente. O barulho dos
caminhões chega até aqui. Como Karay Porã notava minha atenção
para os arredores, comentou:
- Esta aldeia foi construída há quatro anos. Vivíamos mais
próximos da base do morro. Agora estamos aqui. Empoleirados.
Karay convidou-nos a entrar em sua casa, ao lado da casa de
rezas. Lá encontramos sua esposa preparando mandioca para o
jantar. Sentamo-nos e o velho homem convidou-nos para tomar
mate. Enquanto preparava a cuia com a erva e aquecia a água,
atualizou Avaeté das notícias do povoado:
- Avaeté, quanto tempo se passou sem você aparecer, hein?
- Sim, Karay. Muito tempo. Voltei porque senti saudades.
- Traz um amigo...
- Sim. Amigo companheiro de viagem. Este é Pyá.
- Seu amigo é uma pessoa simples? Aqui tudo é muito simples...
- Sou uma pessoa simples, não se preocupe, Karay. Pelo menos,
tento ser – falei sorrindo.
Karay sorriu discretamente:
- As coisas pioraram um pouco depois que você nos visitou pela
última vez, Avaeté. Agora somos menos gente na aldeia. Os jovens
estão abandonando a nossa vida.
- Para onde estão indo?
- Para as cidades vizinhas. As maiores. Mas passam mal. Estão
nas favelas. Algumas das nossas meninas estão até se prostituindo.
Outras pedem esmolas nas ruas. E nossos meninos vendem drogas...
- Eu sei, Karay. A situação é a mesma em vários lugares. Tenho
visitado muitos dos nossos. Não está muito melhor que aqui.
- Isto é grave, Avaeté – julgou Karay, chupando o primeiro mate
da cuia e cuspindo-o.
- Você tem falado com o povo? Como enxergam o que está
acontecendo?

162
- Falaremos sobre isso depois. Por hora, tirem suas roupas
molhadas. Emprestarei algo para vestirem.
Recolhemo-nos a um aposento vazio, apenas com colchões pelo
chão. Penduramos nossas roupas e outros apetrechos para secar.
Secamo-nos e retornamos à cozinha.
- Venham. Vou levá-los à opy para conversarmos – disse Karay,
pegando o mate e a chaleira com água quente, além de um
cachimbo.
Dirigimo-nos até a casa de reza. Eu estava sentindo ainda parte
daquele desconforto físico. Sentia dores também. Um pouco de dor
pelo corpo. Nada de mais sério, eu achava. Sentamo-nos no chão,
sobre esteiras trançadas. Karay começou a falar:
- Muitos vêm aqui, Avaeté. Imprensa, representantes oficiais,
polícia, ONGs, pesquisadores. Alguns têm uma postura indiferente.
Eles vêm, tiram fotos, filmam, perguntam e vão embora. Outros
querem ajudar, mas é uma ajuda que nos faz sentir como se
fôssemos animais em extinção. Outros vêm com más intenções.
Ninguém vem aqui como amigo. Os únicos amigos que recebemos
são os irmãos nativos de outras aldeias e povos. E algum ou outro
viajante.
- Compreendo, Karay. Explique-me a situação. Desde a última
vez em que estive aqui, sua aldeia diminuiu – estimulou Avaeté,
tomando pela sua vez o mate.
Karay baforou seu cachimbo:
- Muitos morreram. Outros foram para cidades como Tubarão,
Criciúma ou Palhoça. Foram viver como o branco. E outros estão
transferiram-se para as comunidades evangélicas das redondezas.
- Nunca tentaram migrar, Karay? – perguntou Avaeté.
- Uma vez. Mas não há mais mata. Esta aqui é a única que resta.
Tentamos a mata do oeste, mas houve conflito com outros povos.
Alguns morreram lá. Tivemos que voltar e subir o morro. Sabe como
é, aqui é difícil plantar. Só tem pedra.
Noto que a alimentação deve ser mais pobre nestas
circunstâncias. Todos na aldeia estão muito fracos. As crianças estão
magras e barrigudas. Os mais velhos, esqueléticos. Não há jovens.
Poucos são os adultos maduros.

163
Karay continuou:
- Antes, alimento era abundante. Tínhamos caça na mata, roça
próximo, frutas, tínhamos de tudo. Aqui, no morro, é mais difícil. A
maioria prefere fazer artesanato e balaios e ir vender na estrada.
Ganhar dinheiro do branco. Comer comida do branco comprada na
venda. Comida que nos faz mal. Mas, o que fazer? A mata sempre
nos deu de tudo: alimento, remédio. Agora, não temos mais remédio.
Temos que ir no doutor dos jurua. Remédio mau. Parece que quanto
mais usamos suas comidas e remédios, mais doença e epidemia há.
Baforou um pouco mais do seu petynguá e serviu-me uma cuia
de mate. A água aqueceu-me por dentro. Depois, falou:
- O contato com os brancos tem nos feito muito mal. Mas tenho
consciência de que não é qualquer contato. Só o contato
“paternalista”, como branco gosta de falar. Há contatos com brancos
de espírito bom. Estes não nos fazem mal. Fortalecem-nos. São os
que nos ajudam a revigorar nossa própria cultura e jeito de viver,
como inúmeros antropólogos, ecologistas, estudiosos, líderes de
organizações da sociedade civil, artistas, viajantes e gente livre que
vagam por este mundo.
- Por outro lado, que tipo de contato tem sido prejudicial, Karay?
– perguntou Avaeté.
- No passado, nos procuravam para sermos escravos. Nos
caçavam, entende? Como a um cavalo selvagem. Agora nos caçam
para catequizar. Incutir religião de branco. Tudo o que é tipo de
religião de branco. Vêm aqui, nos vêm nesta situação e acham que
precisamos ser salvos. Mas nos dão o que não precisamos. E nos
tiram o que nos é essencial: terra e mata para viver.
Imagino a crise de identidade e a descaracterização a que isto
leva. Os jovens ficam a pensar se devem ficar na tradição e viver
neste estado, ir atrás de comunidades religiosas, onde recebem
tratamento paternalista, ou ir para a cidade, com seus atrativos
duvidosos e sua “modernidade”.
- Muitos bebem, Avaeté. Bebida do branco é comprada na
venda, junto com a comida. Bebem porque estão em crise.
Deprimidos. Os seus bem-queridos estão se indo. Suicidam-se. Ou
são mortos, presos ou assassinados. Morremos até atropelados pelas
estradas, como os cachorros também são.

164
Avaeté tem razão quando fala do abraço da morte. Ela vem por
todos os lados. Cerca o povo, que não tem para onde escapar, a não
ser para seus braços. As cercas são seus sinais. Cercas de
propriedades, de exploração imobiliária, de reservas ecológicas e
parques, de estradas, de negócios, de cidades. Todas elas vão se
expandindo, até empurrá-los. Hoje, muitos vivem entre a estrada e a
cerca. Ou estão subindo os morros. Indo para os rochedos. E para os
despenhadeiros.
Faz sentido pensar que é um abraço. São forças que se
realimentam. Sem terras, ou migram, ou entram em contato com o
branco. O contato com o branco debilita-os, enfraquece-os e
empobrece-os. A migração tem cada vez menos locais alternativos.
No contato com os brancos, adoecem, ficam subnutridos,
descaracterizam-se, entram em crise. Migrar, só para a cidade. Na
cidade, serão pobres, subnutridos e doentes. Além de serem aliciados
pelo tráfico ou prostituição. Não migrar é entrar em depressão. O
resultado é a morte ou ser pressionado para o contato com o branco.
O branco, fortalecido, apropria-se de mais terras. Sobram menos
terras e menos alimentos e remédios vindos da mata.
- Infelizmente, Karay, muitos brancos bons que tentam ajudar
não têm consciência inteira do que acontece. Eles vêem os
problemas dos índios de maneira fragmentada, picada. Acha que
índio sofre com exploração de terras, catequização, que é forçado a
migrar, com conflitos, doenças, epidemias, subnutrição, pobreza,
dependência, alcoolismo, tristeza, estresse, vulnerabilidade,
prostituição, homicídios, atropelamentos, cobiça de terras onde
vivíamos, “depopulação”. Cada um chega aqui e acha que tem o
diagnóstico do problema do índio. O problema é X. O problema é Y. E
quer tratá-lo de maneira isolada. O problema é tudo isto. E nenhum,
ao mesmo tempo. A questão é nosso tipo de interação, a relação
entre dois sistemas de viver: o branco e o nativo.
Avaeté já tinha falado sobre isto. Nas ruínas, falou da interação
entre brancos e Guarani do passado. Agora estou aqui, frente a frente
com os resultados da interação no presente. Sempre fico tentado a
perguntar a Avaeté se há alguma solução para o problema. Uma
saída para a situação. Avaeté é avesso a esse negócio de solução.
Karay logo concordou:
- Sim, Avaeté. Temos muitos amigos. Eles querem ajudar, mas
não tocam na semente que cria esta situação.

165
- Para tocá-la, é preciso cavar o lodo e sujar as mãos. A maioria
não tem coragem ou discernimento suficiente para tal – decretou
Avaeté.
- Vemos a coisa de maneira muito simples, Avaeté e Pyá:
precisamos de mata. Como qualquer animalzinho da floresta. Não
queremos ser dono da mata. Não interessa quem é o dono, se é que
haverá dono. Queremos é mata.
Tomamos mais alguns mates enquanto Karay Porã e Avaeté
baforavam o petynguá. Ficamos todos em silêncio. Aos poucos a casa
de rezas ia ficando mais escura pela noite que chegava. Em breve,
seria hora de alimentar-se e deitar. Sentia necessidade de dormir um
pouco mais cedo. Retornamos à casa de Karay, onde sua mulher
servia mandioca cozida com picadinho de carne e molho. Bebemos
um pouco de água e recolhemo-nos ao nosso quarto.

4
No dia seguinte, Karay Porã convidou-nos para conhecer todo o
entorno da aldeia. Pretendia fazer-nos testemunhar o que havia
mencionado na noite passada. Caminhamos por vários quilômetros
de trilhas e estradas. Muito próximo da aldeia pudemos notar vários
aspectos que a afetam. Havia atividades madeireiras ocorrendo nas
matas junto ao parque; expansão de áreas cercadas de fazendas
aproximando-se da aldeia; atividades oficiais dos batalhões de
proteção ambiental vasculhando a área para evitar a expansão do
aldeamento Guarani; a estrada, recém construída, a mesma que
“descobriu” a antiga localização da aldeia; as comunidades
evangélicas e os cultos com várias pessoas de origem Guarani ou de
outras nações vizinhas; escolas de educação ocidental sendo
implantadas por estas comunidades; a expansão urbana das cidades
vizinhas, principalmente de Imbituba, com sua explosão imobiliária.
Por fim, avistamos as barracas onde muitos índios vendem
artesanato e cestaria na estrada.
- Sabe, Avaeté, nós, os índios, sempre fomos pensados como
seres “inferiores”, como em transição para a “civilidade”, para a
cristandade, para a “evolução” e a “salvação”. Se isto não acontece,
acham que merecemos mesmo é morrer por recusar a oferta. Mas o

166
que somos é um povo autônomo, dinâmico. Temos nosso caminho.
Nosso caminho não é o caminho do branco.
- Eu sei, Karay Porã. No nosso sistema, somos ricos. Mas os
brancos acham que somos pobres infelizes.
Passamos ainda um par de dias na aldeia do Morro Mirim de
Dentro, convivendo com homens e mulheres de olhar cansado e
crianças alheias aos problemas do seu mundo. Com elas, Avaeté e eu
passamos a maior parte do tempo brincando, passeando pela mata e
tomando banho de riacho. Avaeté contava-lhes histórias de
antepassados, as quais ouviam com atenção e alegria. Quanto a
mim, não tinha muitas histórias a contar a uma criança, mas
procurava ser alguém com quem pudessem brincar e respeitar. Um
deles, adolescente dos mais velhos da aldeia, era um parceiro em
todas as aventuras. Seu nome era Jaxy Pyau. Significa “lua nova”.
Transformou-se em nosso amigo e companheiro.
Caçamos juntos, pescamos juntos e Jaxy parecia conhecer bem
a região. Soube que pretendíamos partir em breve, para o norte, ao
encontro da aldeia Tekoha Guatá.
- Eu conheço o caminho para a aldeia. Nunca estive lá, mas sei
como chegar. Pelo caminho mais lindo!
- Como assim, Jaxy? Que caminho é esse? – questionou Avaeté.
- O caminho da costa. Há uma trilha linda que liga as praias, da
Ribanceira até o Sonho. Deixem-me acompanhá-los até lá!
- Não sei, Jaxy. Karay é quem sabe. Você não tem que ajudar a
cuidar dos outros meninos e meninas?
- Há outros que podem fazê-lo. Deixem-me falar com Karay. Se
ele permitir, posso acompanhá-los?
- Sim, pode sim, Jaxy – concordou Avaeté.
Avaeté disse que era bom que os moradores daqui entrassem
em contato com a aldeia Tekoha Guatá. Talvez houvesse um
intercâmbio positivo. Eu não entendia positivo em que sentido.
Avaeté disse que há uma experiência importante sendo realizada em
Tekoha Guatá. Também estou curioso para conhecê-la.
Até o norte do Parque da Serra do Tabuleiro, onde fica Tekoha
Guatá, seriam cerca de setenta quilômetros de distância. Isto
representa perto de uma semana na trilha. Quer dizer, achei que

167
seria interessante fazer tudo isto a pé. Em primeiro lugar, banho de
mar seria absolutamente necessário, tão próximos estamos do
oceano. Segundo, de acordo com Jaxy, as paisagens litorâneas são
lindas. E, terceiro, não temos pressa. Chegar lá em um, dois ou sete
dias não faria a menor diferença. Por que apressar-se?
Karay Porã não se opôs. Jaxy pulava de alegria. Aquilo também
nos alegrava. Acho que teríamos boa companhia por vários dias de
caminhada.

5
Preparamos alguns poucos mantimentos e materiais e pusemos
novamente o pé na estrada, depois de alguns dias de convivência
com este povo amável de crianças alegres. Jaxy seria nosso guia,
cruzando as matas, estradas e dunas entre a Serra do Tabuleiro e o
mar.
A chegada ao mar foi esplêndida. A praia chama-se Ribanceira.
No canto sul, encontramos uma casa bucólica de pescadores e o
merecido banho de mar. De lavar a alma. O mar azul estava
refrescante demais. Jaxy e Avaeté também se divertiram com a água
e as ondas. Finalizado o banho, hora de seguir a trilha. Ribanceira
encontra-se, ao norte, com a praia de Ibiraquera.
Esta, mais populosa, mistura veranistas e pescadores. Possui
uma lagoa e uma barra. A lagoa de Ibiraquera é praticamente uma
lâmina d’água, onde deslizam barcos de pesca e pranchas de
windsurfe. O sol alto denunciava o meio dia. Paramos para almoçar
num bar de pescadores. Conversamos com os locais e partimos assim
que a digestão dos peixes estava a bom termo. Em seguida,
tomamos a trilha que margeia o norte da lagoa, até chegar ao topo
do morro que separa Ibiraquera da Praia do Rosa. Alguns pequenos
gaviões faziam seu vôo panorâmico. Já no fim da tarde, sentia um
pouco de cansaço, mas resolvemos cruzar o morro para chegar à
praia e acampar para passar a noite.
Havia outras pessoas pela praia à noite. Na pequena baía, viam-
se os sinais de fogueiras e festas aqui ou ali. Jaxy foi ver todos os que
estavam ao longo da praia enquanto descansávamos próximo à
beira-mar.

168
Na manhã seguinte, vimos o sol nascer no oceano e pusemo-nos
a andar cedo. Seria um dia quente. Antes de deixarmos o Rosa,
notamos o quanto é paradisíaca. Apesar de cheia de casas e
pousadas, a mata as esconde, e você tem a impressão de um paraíso
perdido. Cruzamos a trilha que liga o Rosa a Praia Vermelha e depois
a que leva ao Ouvidor. São trilhas refrescantes e, quando não o são,
caímos no mar. Vermelha é uma pequenina praia, acessível apenas a
pé. Ao longe, a água parece uma pequena língua azul que lambe a
areia, emoldurada pelo verde à volta. Os pássaros típicos da região
da Serra do Tabuleiro estão por aqui, como saíras azuis, cardeais,
pica-paus e papagaios. A trilha sobe e desce morro, as pernas
reclamam e a visão agradece. Chagamos a Praia da Barra para
“esticar o esqueleto”. Instalamo-nos no canto da praia para passar a
noite. Jaxy ainda teve tempo para pescar algo para o jantar. Pouca
coisa. Praticamente um tira-gosto.
A caminhada pela Barra em direção a Praia da Ferrugem é cheia
de dunas e rochas. Há também algumas sombras de árvores à beira-
mar, boas para descansar, depositar as mochilas e tomar banho.
Você poderia ficar por estas praias o resto da vida, deitado numa
rede e refrescando-se nas sombras ou em casas bem ventiladas
feitas com teto de palha. Perguntei a Jaxy se havia, hoje em dia,
alguma aldeia à beira-mar. Jaxy disse que desde tempos antigos não
se vivia mais na praia. Tiveram que migrar para o interior, para
dentro das matas. Imagino a vida paradisíaca que tinham os nativos
por aqui em tempos remotos.
Da Ferrugem ao Silveira percorre-se por uma longa trilha. Ela
passa pelo interior de uma mata deliciosa e revigorante. Muitos
morros e algumas vistas indescritíveis. Acampar dentro da mata foi o
que sugeriu Jaxy. E assim foi feito. Pela manhã acordamos do sono da
floresta ao som de pássaros. Havia milhares deles. Gralhas azuis em
maior abundância. Guardamos o material nas mochilas e saímos pela
trilha. Depois de algumas curvas da trilha e de saltar por sobre
troncos e raízes, senti um súbito mal-estar, caí no chão e “apaguei”.
Fiquei desmaiado por alguns segundos. Mas pareceram-se
horas. Acordei com água sobre a testa despejada por Avaeté. Um
pouco desnorteado, perguntei o que havia acontecido. Avaeté disse
que tropecei em uma raiz de guapuruvu. Caí e bati a cabeça num
tronco. Eu disse que não era deste tipo de “mancada”. Avaeté e Jaxy
se olharam. Avaeté sentenciou que meu corpo estava sob efeito de

169
doença. Vinha dando sinais. Precisava ser tratada, mas não com
urgência. Deveria apenas ter cuidado.
Levantei e seguimos pela mata. Realmente vinha sentindo
alguns mal-estares e dores, mas acreditava ser apenas cansaço. De
qualquer maneira, continuei achando que não era motivo para
preocupação. Seguimos adiante em direção à Praia do Silveira.
Percorremos com certa dificuldade as areias da longa praia, sob sol
escaldante e buscando refresco no mar. Alguns surfistas
compartilhavam o oceano. Da saída da areia se adentra uma trilha
que percorre morros, passa por casas suntuosas e praias
semiparticulares. As vistas são majestosas, tanto para o sul quanto
para a próxima passagem: Garopaba.
Garopaba, o paradeiro das canoas, ainda o é por força de alguns
pescadores guerreiros. Na maior parte, é terra de mochileiros,
campistas e veranistas. Agitadíssima, obtivemos alguns peixes e
cruzamos as areias. Paramos na ponta norte, antes de Siriú, num
camping, onde tivemos oportunidade de conversar sobre viagens e
aventuras com a tribo do trailer e do motorhome. Assamos nossos
peixes e apreciamos as sombras de pinheiros exóticos até o final da
tarde, curtindo o pôr do sol.
De Siriú a Gamboa, praias separadas por trilha, cruzamos
contemplando a mata e as rochas. Boa e longa caminhada. Andar
sobre as rochas é uma aventura para as articulações, mas vencida a
passagem, você cruza a pequena praia e chega a Guarda do Embaú.
A água é mais verde, a areia mais branca. O Rio Madre tem sua foz
aqui, descendo em direção ao mar e, de repente, quase desistindo,
fazendo uma curva de noventa graus, correndo perpendicular à costa
para, no fim, entregar-se no cantinho da praia. Subimos numa pedra
para mirar a paisagem. Jaxy é contemplativo e alegre ao mesmo
tempo. É um guia fabuloso, pois conhece as histórias destas
passagens, muito antigas, do tempo dos seus ancestrais, do tempo
da colônia, do tempo dos primeiros malucos dos anos sessenta e
setenta e de tempos imobiliários. Jaxy seria um grande companheiro
numa viagem mais longa. Tem a avidez do aprender, a simpatia do
seu povo e a chama da sabedoria.
Descemos e retornamos à praia e tomamos o último banho. Jaxy
disse que este seria o ponto para adentrar novamente o continente e
o Parque da Serra do Tabuleiro. Descansamos e tomamos uma
pequena estrada, a 433, entre o mar e a 101, de onde se tem uma

170
vista agravável da serra. Depois, cruzamos esta movimentada
rodovia na direção oeste, até localizar uma trilha pouco visível. A
trilha da aldeia Tekoha Guatá. Estávamos, depois de alguns dias, a
poucos quilômetros de uma experiência nova.
Jaxy nos disse que a aldeia se relocalizou havia uns dois anos.
Antes, estavam um pouco mais no centro do parque, mas agora
estavam numa nova área, mais ao norte.
Enquanto caminhávamos, Avaeté esclareceu um pouco mais
como era o sistema original Guarani. Em essência, o Guarani é
metade nômade, metade fixado. Uma aparente dicotomia, mas a
essência disso é a maneira como as coisas funcionaram por milênios.
O jeito Guarani: sobreviver livremente, em busca de uma terra sem
males.
- Yvy maraney, Pyá, não é uma utopia incessante. Yvy maraney
é viver o aqui e agora, unidos a terra presente, que é nossa mãe e
nos fornece o que precisamos. Mas, se formos mesquinhos e
quisermos crescer e extrair tudo o que a terra tem e quisermos
acumular, ela morrerá. Se ela morrer, nós morremos. Por isso, yvy
maraney é também uma nova terra, sem os males que poderíamos
estar incutindo sobre ela.
“Ao passo que buscamos terras melhores para, de novo, subsistir
temporariamente, deixamos a terra que vivíamos para ser tratada e
curada pela própria terra. Nesta cura, a própria terra se renova. Veja,
somos assim, seminômades, porque a terra e a mata nos querem
assim. A mata é assim porque somos assim. Uma coisa única.
Fazemos isto por cultura. Fazemos isto por natureza. Logo, nossa
cultura e a natureza são um só.”
Estava começando a compreender o radicalismo da idéia.
Pessoas livres, que se estabelecem e migram para proteger aquela
que os protege. Parece que a natureza quer que sejamos assim.
Infelizmente, não estamos agindo muito de acordo. Estamos nos
fixando e nos multiplicando demasiadamente.
- Sempre fomos livres sobre a terra, Pyá. Mas sua apropriação
das matas está impedindo nossa liberdade. Não podemos pescar nos
rios que sempre pescamos, caçar nas florestas que sempre caçamos,
nem podemos morar nas matas em que sempre moramos. Ser dono
da terra é imoral. A terra é que nos tem.

171
Interessante o seminomadismo. Isto faz com que sejamos
adaptáveis, na medida da nossa natureza e da natureza onde
vivemos. Logo, estes povos, por certo, eram povos dinâmicos.
Recriam sua identidade e modo de viver em acordo com o seu modo
de viver e a sua busca. Acho que os “civilizados” fantasiam a
necessidade de preservar os povos nativos para manter sua
“ingenuidade” e “pureza”.
- Pyá, não somos seres intocados para ser conservados em
museus e reduções. Somos povos dinâmicos. Vocês devem nos
ajudar justamente pelo nosso dinamismo. Deixar que ele flua. Um
dinamismo diferente dos jurua. Movimento é parte da cultura
Guarani.
Movimento. Dinamismo. Do grego dúnamis: “potência, força,
poder”. A força do dinamismo nativo. Não a velocidade ou a
voracidade jurua. Acho que é isto que Avaeté gostaria que
experienciássemos nesta aventura.

6
Chegamos à aldeia Tekoha Guatá ao final da tarde. Eu estava
exausto dos vários dias de caminhada pela praia. Excesso de sol,
terrenos difíceis e estas dores e febre. Vez por outra sentia calafrios.
Quando você adentra a aldeia, logo sente a diferença para
Morro do Mirim de Dentro. A aldeia é formada em semicírculo, numa
clareira. De um lado, a mata, concentricamente menos compacta até
tornar-se densa e intocada. É a área de caça e coleta. Do outro,
também concentricamente, as casas, a produção artesanal ou semi-
industrial de vários artefatos, as plantações e, novamente, a mata
densa. Por entre a mata densa, várias trilhas em todas as direções.
Fomos recebidos com alegria e boas-vindas de diversas pessoas.
Circulamos por vários locais da aldeia, desde a casa de reza até
algumas moradias. As casas são feitas de materiais naturais
encontrados na região, mas têm estilos arquitetônicos menos
tradicionais, arredondados, com abóbodas, clarabóias e
respiradouros. Muitas destas construções foram feitas aéreas ou
suportadas pelas árvores. Muitos dos caminhos são aéreos também,
assim construídos para permitir o livre transitar de animais e plantas.

172
A comunidade é bem maior que a de Morro Mirim de Dentro. Ali
vivem algumas centenas de pessoas, junto com algumas poucas
dezenas de brancos. Os brancos são guarda-parques, ecologistas,
biólogos, antropólogos e viajantes diversos. Os Guarani são vistos em
todas as idades, desde crianças brincando livremente, jovens
treinando a caça, a pesca e os rituais, homens e mulheres maduras
trabalhando ou brincando ou conversando e idosos orientando a
todos. Se havia uma palavra para caracterizar aquela gente, ela seria
força. Uma comunidade com força.
Para nossa surpresa, quem nos recebeu mais “formalmente”
foram os guarda-parques. Apresentaram-nos a aldeia como algo
experimental. Principalmente para os próprios brancos. Estavam
experimentando algo novo. Aqui, um sistema colaborativo ajuda no
zelo, manutenção e renovação da reserva natural. Ajuda também na
experimentação de inovações de sistemas construtivos e produtivos.
É colaborativo também na geração e sistematização do
conhecimento, tanto branco, quanto Guarani.
Disseram-nos que a aldeia se relocaliza de tempos em tempos
dentro e nos arredores do parque. A comunidade cultua e revigora os
preceitos dos antepassados e ensinamentos a respeito do mundo
supranatural. Também preserva a organização social e o sistema de
casamentos endogâmicos. Pratica uma economia de reciprocidade
entre as aldeias vizinhas, as comunidades brancas e entre si.
Trabalham em mutirão. Segundo eles, muito menos horas, em média,
do que no sistema jurua. “Veja só: tendemos a classificá-los como
preguiçosos...” – pensei. “É uma idéia estúpida. Mas entendo porque
pensamos assim...”
Os índios orgulhavam-se em dizer que viviam para a aguyje.
Diríamos que é como a procura da perfeição, mas tem mais o sentido
de buscar a transformação e a renovação para amadurecer. Neste
amadurecimento, unem-se cada vez mais os processos naturais,
sociais e culturais. Os pesquisadores brancos chamam isto de
desenvolvimento ecossistêmico. Certa vez, em Araxá, referi-me a um
termo parecido numa conversa com Avaeté. Ele disse que o termo
era pomposo demais. Disse que preferia “princípios da Vida”. Viver
em acordo com os princípios da Vida. A idéia não é nova, mas parece
revolucionária.
Então, uma comunidade Guarani com força busca uma perfeição
dinâmica: um desenvolvimento renovador. Em pleno acordo com os

173
princípios da Vida, da natureza. Pois assim também é o próprio
sistema medicinal praticado aqui. Os Guarani possuem e renovam
um corpo estruturado e dinâmico de procedimentos sistemáticos
para estudar a eficácia das plantas. “É, talvez eu comece a precisar
desse sistema. Minha cabeça dói um bocado.”
Os líderes da comunidade disseram que vínhamos em muito boa
hora. Dentro de dois dias receberiam amigos de outras tribos do
norte e haveria comemoração. Reservaram-nos uma casa na área
branca da aldeia, muito agradável e fresca. Lá descansamos, eu,
Avaeté e Jaxy dos dias de caminhada.
No dia seguinte não pude levantar da cama. Estava com muito
frio, muita dor no corpo, a cabeça estourando e uma fraqueza geral.
Mal conseguia abrir os olhos. Avaeté mandou Jaxy chamar Karay
Katu, o líder e curandeiro da aldeia. Karay chegou, olhou-me
demoradamente e disse a Avaeté que era preciso trabalhar o dia todo
para ajudar na cura:
- Seu amigo Pyá está enfermo do corpo e da alma, Avaeté. A
doença que o toma desde pequeno manifestou-se agora. Há uma luta
dentro dele. Precisamos fortalecer seu lado puro. Vamos trabalhar!
Karay Katu saiu e chamou sua esposa. Ela recolheu chás e
tabaco e trouxe-os na companhia de duas filhas. Chegaram à casa
onde eu estava alojado e puseram-se a aprontar os chás. Foram
preparados dois tipos. O primeiro para que eu bebesse, a intervalos
regulares, muito quente, mas doce, devido ao mel. Eu recebia-o
numa pequena cabaça. A cada vez que o tomava, um fogo ardia-me
por dentro. As mulheres fumavam tabaco, baforando-o na minha
cabeça vez por outra. O segundo chá, feito das demais ervas, era
usado para banhar-me. Fui mergulhado numa banheira com a água
das ervas. Que gelada! Tremia completamente de frio.
Avaeté e Jaxy acompanharam Karay Katu à opy. O líder ainda
chamou dois idosos. Puseram-se a cantar e invocar a minha cura a
Nhanderu Tenonde, o Pai Primordial. Rezavam intercaladamente à
cantoria, fumando o petynguá. Isto durou o dia todo.
Sentia o calor amoroso destas pessoas em prol da minha cura.
Não sabia o que tinha ocorrido, mas tinha fé que aquilo tudo pudesse
me ajudar. Cheguei a perder a consciência e a ter delírios. Comecei a
ver passar pela minha cabeça cenas de destruição, principalmente da
cidade onde morava, da minha casa e de tudo o que havia no meu

174
trabalho. Via as pessoas que havia deixado chorando e fugindo dos
desastres. Milhares de pessoas fugindo de suas casas pelas estradas,
de maneira desordenada e confusa. Via muita fumaça e sentia calor e
frio alternadamente.
Debatia-me, falava sem consciência e ofegava durante aquele
tratamento. A noite chegou e as mulheres retiraram-se da casa.
Chegaram Avaeté, Jaxy e Karay Katu. Aos poucos a fumaça foi
esvaindo-se e o retorno da minha consciência se deu com um último
lampejo de delírio: na direção das luzes das velas, eu vi o vôo de um
gavião. Então, dormi um sono mais tranqüilo.
Acordei somente na manhã seguinte. Tentei avaliar minha
situação. Ainda tinha dor de cabeça, bem como tinha dificuldade em
mover meu corpo. Mas sentia como se um peso me fora retirado de
sobre meus ombros. Avaeté achegou-se e disse:
- Seu corpo tem saudades da velha vida. Mas não se preocupe.
Tudo está bem. Entre os seus e com você mesmo.
- Avaeté, tive muitos sonhos. Sonhos de destruição de tudo o
que havia na minha vida.
Contei-lhe os detalhes. Finalizei com a descrição do vôo do
gavião.
- Um carcará! Isto é um maravilhoso sinal. Sinal de que está
tudo bem! – e soltou uma gargalhada. Depois continuou:
- Sinal também de que você precisa usar bem seu coração.
Abra-se para sentir. Sinta saudade. Sinta amor. Sinta tudo o que é
para sentir.
Entraram a seguir Karay, sua mulher, suas filhas e Jaxy. Todos
tinham sorrisos nos rostos. Demonstravam amabilidade e afeto.
Parecia que haviam feito aquilo como uma missão que lhes foi dada.
E a cumpriam com prazer e amor. Vi o brilho no olhar de cada um. E
notei que Jaxy tinha o mesmo brilho de Karay Katu. Talvez um dia ele
também seja um Karay.
- Avaeté, seu amigo não está curado. Está bem remediado, mas
não curado. Precisa ver uma pessoal especial. Vocês deverão
encontrar a xamã Elisa Moneiro. Nós remediamos o corpo de Pyá. Ela
ajudará remediando sua alma.

175
Karay deu as instruções a Avaeté para localizá-la. Ela vive semi-
reclusa nas montanhas, ao sul da ilha de Santa Catarina. Era bem
próximo e seria fácil tomar um barco até lá.
Depois todos pediram licença para continuar a providenciar as
festividades. De onde estava, podia ver pela janela a movimentação
próxima à opy. Uma enorme fogueira, gente cozinhando,
instrumentos musicais sendo afinados. Tentei avaliar minha situação
para participar daquilo, mas, apesar de bem melhor, sentia fraqueza.
Passei o dia tomando caldos nutritivos enquanto meus companheiros
de viagem engajavam-se nos preparativos.
Havia uma energia muito positiva naquele movimento. Parece
que a vida toda deste povo estava em aproveitar cada dia, para
depois celebrá-lo nas festividades. Gente jovem, adulta e madura
circulando, conversando e trabalhando animadamente. Pelo meio da
tarde começaram a chegar convidados. Eram Guarani, mas também
representantes de outros povos, pelas feições e língua. Já estava
ficando acostumado ao jeito Guarani de falar. Não entendia a maioria
das palavras, mas sabia quando era e quando não era a língua
Guarani.
Havia perto de quinhentas pessoas à volta do fogo quando ele
foi aceso. Avaeté e Jaxy puseram-me numa cadeira e me levaram
para fora. Eu tinha dificuldade para andar. Depois colocaram uma
manta sobre meus ombros. Um dos pesquisadores brancos que vivia
na aldeia trouxe um copo com um líquido alaranjado. Falou com
sotaque inglês carregado, como se fosse escocês ou irlandês:
- Não beba sem antes olhar bem para ela e depois sentir bem
seu perfume. Deixe a bebida tocar sua alma.
Observei a bebida e notei que ela vertia lágrimas nas paredes
do copo. Era alcoólica, certamente. Lágrimas que corriam
lentamente. Levei o copo ao nariz e senti seu perfume. Um perfume
de madeira e um quê de mel. Verti um gole da bebida e identifiquei
inequivocamente:
- Uísque!
- Puro malte das ilhas escocesas! Feitas pelas mãos de gente
pura! Rá, rá, rá, rá! – e bebeu um grande gole de sua bebida
também.

176
A leveza do ar fresco da noite contagiava a todos. De longe,
verifiquei que três músicos aprontavam-se para iniciar a música para
a dança. Um portava um violão, outro jovem um rave, espécie de
violino pequeno e, ainda, uma menina com o takuapu, uma taquara
grossa usada como instrumento de percussão ao ser batido no chão.
Em breve comecei a ouvir os acordes do xondaro. Karay Katu
comandava a dança, exatamente como os passos dados por Avaeté
na festa Mapuche. Dezenas de dançarinos passaram pela roda.
Entravam e saíam animadamente. O meu amigo escocês animou-se
em apresentar-se:
- Esse mundo é muito diferente do meu. Um mundo admirável.
Sou Jeff – falou, estendendo sua mão.
- Olá, sou Pyá. O que você faz aqui?
- Não é fácil explicar. Mas, no final das contas, sou um homem
livre que ajuda os que desejam minha ajuda. Sou um viajante deste
mundo, compreende. Não solitário, pois aqui e ali estou a serviço de
alguém de alma boa. No momento, estou aqui trabalhando pelo
fortalecimento da medicina nativa.
- Você é médico?
- Você quer dizer no sentido estrito? Já fui um dia. Agora, não sei
mais o que sou. Uso meus conhecimentos médicos, mas o que está à
disposição para curar as pessoas por esse mundo é muito maior,
entende?
- Acho que sim. Desde ontem tenho tido uma amostra disto –
afirmei.
- Sim, é verdade. O conhecimento da farmacopéia destas
pessoas é notável. Mas isto não é tudo. Elas tratam você como um
ser integral. Seu corpo e seu espírito. Veja esta celebração. Isto é
cura! – e ergueu seu copo para brindar.
Enquanto as pessoas dançavam e cantavam, tive uma
agradável conversa com Jeff. Perguntei se conhecia Elisa Moneiro. Ele
disse que sim, que era uma mulher admirável. Levou sua vida como
pedagoga durante vários anos, até que foi viver na América Central e
adquiriu todo o conhecimento que tem com os índios de lá. Hoje é
uma xamã respeitada e admirada.

177
Conversamos também sobre as experiências que tomavam
lugar naquela aldeia. Jeff disse que não via todo o alcance que
poderia derivar daquela experiência de colaboração entre índios e
brancos, mas que coisas importantes aconteciam ali. O próprio Jeff
reportava nas redes públicas de conhecimento o que ocorria ali com
ele próprio: o seu aprendizado médico. Havia também aprendizagem
mútua sobre cultivo e manejo da terra, além de algo fora do comum:
presença humana e co-gestão em áreas de proteção ambiental.
- Sabe, Pyá, não há melhor guardião da natureza que os nativos.
Eles monitoram e dão relatos das condições de todo o parque.
Cuidam melhor do que qualquer profissional assalariado. Sabe por
quê? Porque a terra, a mata, é a essência do seu viver. Como eles
dizem, “sem tekoha, não há teko”. Teko é o jeito de viver, seus
hábitos, suas leis, sua cultura. Tekoha é moradia, no sentido amplo,
abrangendo a aldeia, as plantações, a floresta. É teko a base da sua
vida, assim como as cidades são a base da vida ocidental. Sem a
mata, não há morada para o índio.
A dicotomia homem-natureza é fundada na visão de que a
cultura não é natural. Que ela é derivada de seres superiores à
natureza. “Isto é uma farsa!” – pensei, olhando para a dança que
acontecia à volta do fogo. A cultura é a maneira como o homem se
relaciona com a natureza e faz parte dela. Cultura é prática na
natureza. É prática com a natureza. Uma mútua relação, uma faz a
outra, uma está dentro da outra. A sociedade é parte da natureza. A
natureza é parte da sociedade.
É realmente uma experiência radical o que ocorre aqui.
Radicalmente libertária. No senso comum, se o homem destrói a
natureza, ele deve ser erradicado das áreas de preservação.
Qualquer humano. Mesmo os nativos. Acho que isto também é um
tipo de arrogância e apropriação indevida, às avessas.
Foi uma noite memorável. Muita diversão, muita música, comida
e bebida usada de maneira equilibrada. Eu mesmo não tomei mais
que aquele copo de néctar escocês. Quando a lua pôs-se atrás da
floresta, recolhi-me. Estava cansado e com a cabeça levemente
dolorida. Arrastei-me até a porta da casa e atirei-me na cama. Ouvi
ainda os barulhos da festa por algum tempo, bem como as sombras
das pessoas e reflexos das chamas da fogueira. Relaxei com aquele
espetáculo de fogo sobre o fundo branco da parede e transportei-me
para o mundo do sono.

178
Avaeté

Nove

179
1
Dormi uma noite conturbada por causa dos acessos de calor e
frio que alternadamente me ocorriam. Cheguei a acordar, já com a
festa terminada e silêncio na aldeia, pelo mal-estar. Tentei imaginar o
que havia acontecido comigo, que doença havia me acometido.
Esqueci de perguntar a Jeff qual seria seu diagnóstico. Seria fraqueza
pela ausência de algum nutriente? Ou tinha tomado sol demais? Ou
estava infectado com algum vírus? Será que não precisaria algum
tipo de antibiótico? Claro, estes eram raciocínios alopatas. Os nativos
não fazem raciocínios desse tipo. O diagnóstico de Karay Katu era de
que havia algo errado com minha alma. Assim também pensava
Avaeté. Tenhamos fé no sistema nativo.
Acordei com o sol alto. Estava cinqüenta por cento melhor, mas
ainda sentindo fraqueza e dor de cabeça. Karay chegou e me
examinou. Avaeté e Jaxy entraram logo após. Para minha surpresa,
Jeff entrou na casa também, e me olhava de longe. Karay dirigiu-se a
Avaeté e Jeff:
- Pyá não vai melhorar além deste ponto sem ser examinado
pela xamã Elisa. Ele precisa ser levado até ela o mais breve possível.
Perguntei a Jeff o que eu tinha. Jeff foi breve:
- Você tem o que Karay lhe disse ontem. Alma que precisa ser
tratada.
Perguntei se uísque ajudaria, procurando dissipar alguma
desconfiança em relação a Karay com uma brincadeira. Jeff sorriu e
abanou a cabeça positivamente. Depois avaliei minha situação para
sair da aldeia:
- Karay, acho difícil eu conseguir sair daqui. Sinto uma dor de
cabeça que vai me matar se eu ficar muito tempo ao sol. E com
minha fraqueza, não dou dez passos na trilha.
- Você vai precisar de ajuda. Seguirá com Avaeté, Jaxy e um dos
meus. Pegarão um barco no Rio Maciambu e irão até a praia do
Pântano do Sul, na ilha de Santa Catarina.
Esta situação acabava deslocando os destinos de algumas
pessoas. Jaxy acabaria impossibilitado de voltar para sua aldeia. O
companheiro de Karay largaria seus afazeres para levar-me até a
ilha. Nós, que poderíamos passar alguns dias aqui aprendendo e

180
ajudando a comunidade, teríamos que partir rapidamente. Avaeté
desviaria o destino de nossa empreitada por causa da minha doença.
Que chato isto... Por que eu não mantinha uma condição saudável
para aproveitar a aventura e não atrapalhar ninguém?
- Não há tempo a perder. Devem partir em breve – reforçou
Karay Katu.
Recebemos alguns mantimentos e uma garrafa de chá. Recebi
recomendação de tomá-lo quatro vezes por dia. Um índio forte
aprontou-se para nos acompanhar. Eu coloquei uma manta leve
sobre a cabeça, já que o sol estava forte. Despedimo-nos
rapidamente daquela boa gente, desculpando-me por minha
enfermidade e pela necessidade de partirmos. Disseram que
voltássemos em breve e sempre que desejasse.
Começamos a descer a trilha que leva até o Rio Maciambu. Jaxy
e nosso acompanhante me apoiavam para que eu pudesse me
deslocar. O ar estava úmido e quente e isto fazia minha cabeça
latejar. Descer por entre as pedras não era fácil. Levamos quase três
horas até chegar ao rio. Lá, uma canoa descansava sob as árvores da
margem. Entramos todos nela e os três amigos começaram a remar.
Era uma canoa ampla. Assim, consegui deitar-me. Navegamos rio
abaixo e entramos no mar. Estava calmo, mas o leve balanço me
enjoava. Passamos a Ponta do Papagaio, a praia de Naufragados e
uma velha fortaleza. Depois, contornamos a ponta sul da ilha de
Santa Catarina para entrarmos na baía da praia de Pântano do Sul.
Desembarcamos junto à colônia de pescadores. Alguns deles
vieram nos ajudar. Descansamos todos sentados na praia. Depois,
Avaeté ordenou a Jaxy que retornasse com o companheiro índio:
- Jaxy, você deve voltar para Tekoha Guatá. Fique o tempo que
quiser, mas não deixe de retornar logo a Morro do Mirim de Dentro.
Jaxy, com um olhar triste, perguntou a Avaeté:
- Será que eu poderia viajar com vocês? Estou há muito tempo
vivendo em minha aldeia sem conhecer novos mundos, sem receber
visitas de outras gentes. Por favor, deixem-me viajar com vocês!
- Você tem sido um ótimo companheiro. Mas temo que você
passe por perigos desnecessários na sua idade, Jaxy.
- Por favor, eu já sou bem crescido. Ainda não sou adulto, mas
sei me virar.

181
- Disso eu tenho certeza. Faremos desta forma: você deve
retornar a Tekoha Guatá e à sua gente. Lá, converse com seus pais.
Se eles permitirem, nos encontraremos em duas semanas na aldeia
Itajapukai, próximo a Praia Grande. Você acha que consegue?
- Claro, Avaeté. Nem que eu tenha de ir voando! Rá, rá, rá!
Vamos nos encontrar lá. Façam uma boa viagem! Pyá: força e
ternura! – desejou-nos.
Jaxy e o gentil companheiro de viagem partiram de volta na
canoa. Abanamos até os perder de vista na ponta da baía. Depois
conversamos com os pescadores e explicamos nossa situação e
nossa necessidade de localizar xamã Elisa Moneiro. Um amável
pescador tirou da sua garagem um velho carro e levou-nos até a
encosta dos morros onde vive Elisa. Deixou-nos na frente da sua
casa. Agradecemos ao pescador, que saiu com um sorriso e desejo
de boa sorte.
Batemos na porta da casa, cuja varanda continha vários filtros
de sonho ao vento. Ninguém respondeu. Poderia estar para as
bandas da vila ou da cidade. Perguntamos a uma vizinha, que nos
informou que Elisa tinha ido comprar algumas frutas e verduras na
venda próxima e não demoraria. Sentamo-nos junto às escadas da
varanda. Avaeté perguntou sobre como me sentia:
- Enjoado e com frio. Estou precisando de um banho e uma
cama, Avaeté.
- Tome o chá de ervas. Vai aliviá-lo. E trate de abrir sua alma. Só
assim você poderá aproveitar tudo o que Elisa tem para oferecer.
- As pessoas têm sido muito boas, Avaeté. Estou até
envergonhado.
- Nós temos buscado as pessoas boas. E elas sempre estiveram
lá, à nossa espera. Abra-se para elas.
- Mas deve haver algo que possamos fazer para agradecer...
- Apenas seja carinhoso. Eu já lhe disse. Sua retribuição não será
dada a elas.
- Você acha que Jaxy virá ao nosso encontro? – perguntei a
Avaeté.
- É muito provável. Aquele garoto tem determinação e brilho.

182
- Ficarei muito contente com sua companhia. É um bom menino.
- Eu também acho. Não planejei alguém mais na nossa viagem,
mas acho que isto será muito bom. Para mim e para você.
Enquanto esperávamos, a noite chegou. As poucas luzes da
estrada de chão batido iluminavam aqui e ali. De repente, ao longe,
avistamos uma mulher magra, mas de firmeza, trazendo algumas
sacolas. Avaeté foi até ela, imaginando ser Elisa. Eu aguardei. Sentia-
me abatido. Acho que minha feição denunciava isto. Elisa chegou e
abriu a porta. Soltou as sacolas. Ajudou-me a levantar e sentamos na
sua sala de estar.
- Quem os enviou? – perguntou Elisa, num tom muito terno.
- Karay Katu. Meu amigo foi medicado, mas precisa de um trato
na alma – disse Avaeté.
- Meu velho amigo Karay Katu. Estiveram em boas mãos e na
companhia de boa gente. Como é seu nome? Você pertence à tribo
de Karay?
- Ah, desculpe, não nos apresentamos. Eu sou Avaeté. Homem
Guarani de todas as tribos. E este é Pyá, meu companheiro de
viagem.
- O que você tem?
Descrevi os sintomas. Disse como haviam me cuidado na aldeia.
Elisa afirmou:
- Você foi bem tratado. Mas precisamos evoluir para você estar
limpo dessa doença. Faremos três coisas. Primeiro, vou tratá-lo esta
noite com reiki. Isto vai dissipar amarras e fazer fluir melhor sua
energia. Depois, faremos o ritual do temascal para “destampar sua
panela”. Preciso buscar ervas amanhã para isto. Por fim, você terá
que ser batizado com seu nome Guarani. Você ainda não foi batizado,
não é mesmo?
Fiquei intrigado como sabia disto. Confirmei o fato. Avaeté falou:
- Ah, eu sei. Isto será uma tarefa minha. Estou em dívida com
esta tarefa. Teremos que executá-la em breve.
Fiquei lembrando o momento em que recebi meu nome Guarani.
Avaeté me deu ele no Cerro Huyliche. Apenas me chamou de “Pyá”.
Foi sua primeira saudação. Eu o aceitei com naturalidade. Não senti

183
repulsa nem impropriedade no ato de Avaeté. Parecia que sempre
estivera ali.
Elisa e Avaeté me falaram sobre o que ocorre com um jovem
Guarani enquanto ele não é batizado. Pode ficar doente mais
facilmente. Por isso, ser batizado significa fortalecer-se.

2
Alojamo-nos na casa de Elisa, que fez com que nos sentíssemos
muito à vontade. A casa de Elisa é bastante simples, rústica, feita em
madeira e com um avarandado por toda a volta. Está bem incrustada
no meio da mata, tendo poucas outras casas por perto. De todos os
cômodos da casa se pode enxergar o mar. Há várias redes para
dormir.
Elisa contou um pouco de sua vida. Foi professora universitária e
pesquisadora respeitada, chefe de departamento e vice-reitora.
Aposentou-se e, de repente, viu-se na iminência de dedicar-se a algo
profundo, como a entrega a uma missão. Disse que, assim como nós,
ela viajava. Viajou por muitos lugares, até conhecer seu mestre na
América Central. Ele a ajudou a encontrar esse caminho. Viveu lá por
alguns tempos, iniciou-se e graduou-se como xamã. Agora, recebe
aqueles que dela necessitam, procurando tratá-los com dedicação e
carinho.
Avaeté começou a falar sobre a nossa viagem. Enquanto isso,
fui tomar banho. Quando voltei, sentei-me à mesa da cozinha, onde
conversavam e tomavam mate, enquanto Elisa preparava uma canja.
Comemos canja de galinha antes de me recolher. Eu estava um
pouco febril.
Elisa recomendou que fosse para o quarto, mas que não
adormecesse. Sentei-me na cama e passei os olhos por alguns jornais
das semanas anteriores. Não havia muita novidade. Há quase dois
meses na estrada, você rememora a quantidade de lugares por onde
passou e o que aprendeu.
Elisa chegou e avisou que Avaeté já estava deitado. Ligou um
aparelho de som com uma música relaxante e ordenou para que
deitasse de costas. Acendeu alguns incensos e passou a cantar
baixinho, acompanhando a música. Fui entrando num estado muito
agradável. Em certo momento senti um calor na altura da coluna

184
lombar. Virei a cabeça para identificar de onde vinha aquele calor,
mas só conseguia enxergar o espelho. Através dele, notei as mãos de
Elisa flutuando a dois centímetros das minhas costas. Ela sussurrou:
- Meu mestre costumava dizer: “Reiki é a arte de convidar a
felicidade a entrar pelos poros do seu corpo. A felicidade é o remédio
miraculoso para todas as doenças” – e continuou cantando.
Elisa era uma mulher dos seus cinqüenta e poucos anos, magra,
morena como se fosse índia e com olhos verde-água. Parecia mais
magra ainda dentro de seu moletom largo. Sorriso amplo, mas
sereno. Cabelos curtos. Ar tranqüilizante. Acho que só sua presença
já cura.
Senti aquela quentura subir da minha coluna lombar até o
centro de minhas costas e pulmões. Era abrasador e acalentador.
Depois levou suas mãos às omoplatas, e senti uma expansão do meu
tórax e ombros. Senti como se eu pudesse abraçar o mundo, não
para me apoderar dele, mas para envolvê-lo, de modo que ele fosse
eu. Senti uma expansão de mim mesmo, e era uma expansão
dissipadora, como se ao aumentar, estivesse me diluindo. Depois
Elisa subiu as palmas de suas mãos até a coluna cervical e nuca.
Quando chegou aí, tive um relaxamento ainda maior e apaguei por
total a mente. Como se uma chave fosse desligada. Senti uma
iluminação emanando do meu corpo, e eu estava assistindo àquilo. A
iluminação era azul e púrpura, em camadas, sobre um fundo negro.
Senti um fluir de dentro para fora desta energia e, quanto mais ela
fluía, mais revigorado ia me sentindo.
Poderia deixar o corpo flutuar e ele talvez flutuasse. Mas me
foquei na sensação de desligamento da mente e no fluir de uma
energia majestosa. Era algo que tiraria tudo de mim, até me deixar
vazio. Vazio, eu seria apenas o que era, sem a preocupação de ser o
que era ou não era. Sem julgamento de certo e errado. Um aspirador
tomava conta de mim, não para extrair minhas “impurezas”, mas
para extrair o julgamento a respeito delas.
Quando sentia este insight tomar conta, Elisa deu um pequeno
toque no meu pescoço, abaixo da orelha direita, e saiu. A sala estava
com a meia luz de uma vela que se extinguiria em minutos. Antes
disso, extingui-me.

185
3
Acordei ainda fraco, mas sem dor de cabeça. Que maravilha. A
dor de cabeça pesava quinhentos quilos. Sem ela, sentia leveza.
Encontrei Elisa e Avaeté na varanda, tomando mate e apreciando o
mar e disse-lhes:
- Miraculosa!
Elisa me convidou para sentar no chão da varanda. O caminho
já trilhado foi bom, mas agora era preciso aprofundar. Disse que se
surpreendeu com minha resposta ao reiki. Poderíamos naturalmente
avançar. Disse que eu estava preparado.
Precisávamos entrar no temascal. Ele só era realizado para
grupos, uma ou duas vezes por mês. Mas faria uma exceção para
dois novos amigos com energia interior. Era a primeira vez que
alguém me dizia que possuía energia interior. Já fui elogiado como
possuidor de força e bondade. Mas era a primeira vez que alguém
dizia que tinha energia vinda de dentro. O que seria capaz de ser ou
fazer com esta energia interior? Não sabia. Não tinha a menor idéia.
Elisa descreveu o que potencializaria esta energia, para canalizá-lo
como poder autocurador:
“Temascal. O temascal é o recinto e é, também, a atividade. O
recinto é uma pequena tenda fechada ou uma caverna. O recinto é
purificado com fumaça de copal. Fumaça de incenso de resina da
árvore sagrada para o povo nahua. O fumo de copal converte um
lugar de poder em um lugar sagrado.
“Você entra na caverna. A temascaleira coloca pedras aquecidas
em brasa dentro. Eu sou a temascaleira. Eu colocarei sobre elas uma
infusão de plantas medicinais para gerar vapor. Temascal, em dialeto
nahualt é temaz, que significa vapor, e calli, que significa casa.
“Eu conduzo o ritual. O seu objetivo é abrir o corpo. Destampá-
lo. Para isto, você estará sob o poder dos quatro elementos: a terra
onde se apóia; o fogo do calor das pedras; a água de ervas que se
eleva sobre as pedras; e o vapor que representa o ar.
“O seu corpo é purificado pelas essências das ervas…
Elisa pronuncia algumas palavras em nahualt. Novamente
despojam-se as vozes da mente. Elisa conduz cantos. Elisa induz
visualizações e meditação. A noite está iluminada pela lua. Passamos
o dia caminhando em direção ao fundo da lagoa. Elisa disse que no

186
fundo da lagoa, no fundo da trilha da Lagoa da Conceição, haveria
um lugar de cura. Lá chegamos ao final da tarde. A tenda já estava
preparada. As ervas, a temascaleira as carregava.
Entramos no temascal. É como regressar ao ventre materno.
Escuro, quente, seguro, solitário. O ventre da natureza nos recebe
para nos curar. E dali sairemos purificados ao renascer.
Ali, você está em contato direto com o poder da natureza.
Alguém tocava instrumentos de percussão. Alguém cantava canções
emocionantes. É como ser banhado pela mãe terra. As pedras estão
ali, em brasa. As infusões evaporam-se delas. Você vive uma
sensação de harmonia e paz pelo escuro e pelo silêncio. Você não
nota, mas quatro horas podem passar-se.
Sua descarga física e emocional promove uma sensação de
liberdade. Sua sabedoria pessoal é liberta, como a fuga de um
passarinho da gaiola. Você expressa livremente o que deseja. “Um
agradável fluxo de palavras líquidas” vem à sua mente, como se
fossem suas. Não são suas, e você se dá conta que o seu poder
pessoal não é seu... É de Carlos, é de Peter, é de Daniel, é de Elisa, é
de Avaeté. E é, novamente, de Pyá.
Você se pergunta por que há conflito. Por que há falta de amor.
Aqui, no fundo da lagoa, você encontra os monstros, seus e dos seus.
Você transpira ao calor dos dragões e se evapora até o teto do
temascal. E se condensa em experiência de sacrifício, de doação, de
impacto psicológico, e é uma experiência de conexão. De novo, e
ainda assim surpreendente, uma aventura de conexão com o
sagrado.
Enquanto você é vapor, você é um pássaro. É um pássaro que
tudo vê, que a tudo assiste. Que vê a loucura da corrida diária. Que
vê milhares de seres humanos construindo pirâmides, uns sob o
comando de outros, que são comandados por outros, que são
comandados por outros, que são comandados, não sabem por quem.
Pirâmides sobre pirâmides sobre pirâmides.
Ao mesmo tempo, você é o pássaro que vê a aranha tecer sua
teia. Nhandu kya. A teia da aranha. A pequena teia da pequena
aranha. E vê a grandeza e o alcance disto. Nhandu kya. Eu mesmo
sou capaz de falar Guarani. Eu sou Guarani. Eu sou da espécie de
Avaeté. Eu sou da espécie de Jaxy. Eu sou da espécie de todos os

187
Karay. Eu mais que amo a eles. Eu sou eles. Eu não ajudo a eles. Eles
não me ajudam. Eles são a mim. E eu sou a eles.

4
A certa altura, saí do temascal. Fui tomado pela necessidade de
sair do meu transe e caminhar. Fui até a beira da lagoa. Notei que a
água estava completamente parada e como um espelho. Uma brisa
soprava apenas mais ao alto, movimentando a copa das árvores
sobre o morro. Não pensava em nada, apenas olhava para aquele
espelho dourado ouvindo o canto dos pássaros madrugadores.
Caminhei um pouco pela beira e sentei-me sob um salgueiro. Na
outra extremidade, via movimento de pessoas e carros, mas seu som
não chegava até mim. Não havia sons além dos naturais. Não havia
vozes. Não havia roncos. Aspirei o perfume fresco da madrugada.
Deixei meus pensamentos correrem soltos. Por estar ali, sentado sob
uma árvore diante daquela lagoa, lembrei da cena do filme “O
Pequeno Buda”, de Bertolucci. Nela, o Buda encontra-se sentado sob
uma árvore diante de um pequeno lago ou poça d’água. Está
incólume, meditativo. A cena desvenda uma busca. Buda insere sua
mão na água, onde há um reflexo de si mesmo. Apanha sua própria
mão, como que para encontrar-se, desvendar-se. Mas quanto mais
Buda esforça-se para puxar sua própria mão para fora, mais a mão
em reflexo o puxa para dentro do próprio lago. Quando está a ponto
de ser tragado para dentro do lago, tem a iluminação de soltar a
própria mão, momento em que se desvanece a sua imagem refletida,
o lago, a árvore e o cenário.
Para mim, é uma cena significativa. Se sua busca é uma busca
apegada, você estará perdido. Mas se você se desapegar dela, o
paraíso se desvenda. Um paraíso de liberdade.
Fiquei ali durante vários minutos, meditando sobre aquilo, até
que chegou Elisa. Perguntou-me como me sentia. De repente, senti
que não possuía mais a maioria dos sintomas que vinha sentindo nos
últimos dias. Estava revigorado, fortalecido. Tinha apenas uma
sensação de cansaço nas juntas. Elisa disse que isto era maravilhoso
e que estava contente com o ocorrido. Disse que gosta muito de
realizar o temascal, que trazia muita alegria para ela.

188
Ficamos em silêncio, sentados, um ao lado do outro. Comecei a
pensar na forma como você imagina que a iluminação se dá na sua
vida. Você fantasia que ela ocorre como um flash que o transforma
de todo, num momento único. Mas parecia que comigo não era bem
assim. Tudo o que de importante eu vinha aprendendo era como um
processo, em que os flashes são momentâneos, rápidos, pequenos,
como ultra-sons em uma terapia que vai dissolvendo algo. Você não
se ilumina de uma hora para outra. Você aprende aos poucos. Numa
longa caminhada.
A teoria do flash único avassalador não é coerente com o seu
desenvolvimento como ser humano. Todas as experiências o
transformam, o iluminam, se você estiver aberto. E, aos poucos, você
cresce. Não de uma só vez. Aos poucos. Como uma pessoa que
aprende, como uma criança. Como um pyá.
- Você acha que está pronto para ser batizado? – perguntou
Elisa.
- Acho que sim – respondi, olhando diretamente em seus olhos.
- Pois então vou chamar Avaeté.
Avaeté retornou com seu cachimbo aceso. Sentou-se sobre as
raízes do salgueiro e baforou fumaça para o alto. A fumaça subia em
direção aos ramos da árvore. Então falou:
- Você escolheu sentar sob essa árvore e isso é um sinal. Essa
árvore será sua árvore. Ela representa proteção e imortalidade. Assim
será você: aquele que protege e que é protegido, e aquele que
aprenderá enquanto viver, e não morrerá enquanto houver algo a
aprender.
“Descobri seu nome em um sonho, Pyá. Neste momento, eu não
estarei dando-lhe oficialmente esse nome, porque nome não se dá,
nem se tem. Nome se é. O que precisa é ser descoberto. Por isso, o
seu tera kaaguy, o seu nome do mato, Pyá, não lhe foi atribuído. Foi
apenas descoberto.
“Seu batismo, que agora ocorre, é apenas o conscientizar-se disto.
Conscientizar-se do que você é. Que você é seu nome.”
Avaeté levantou-se. Elisa afastou-se três passos. Acendeu uma
vela e começou a cantar baixinho. Avaeté deu três voltas ao redor de
um círculo que incluía a mim e ao salgueiro. Fumava muito enquanto

189
caminhava. Fumou até engasgar-se. Depois escarrou e cuspiu.
Passou a cantar juntamente com Elisa aquela melodia lenta.
Em seguida, Avaeté agachou-se a meu lado e massageou minha
cabeça e ombros. Fez isto vigorosamente para depois baforar fumaça
várias vezes na minha cabeça. Parou diante de mim, novamente de
pé, e disse:
- Pyá. Você é Pyá. Coração, menino. Coração de menino.
Elisa então se aproxima da lagoa, pega em suas mãos água e
borrifa-a sobre nós. Apenas disse:
- Haevei. Assim seja. Que a água que jogo sobre vós seja como o
orvalho que renova a flor.
Avaeté olhou para mim e, ternamente, ordenou:
- Você deve dizer apenas “haevete”. Significa “é bom mesmo
para mim”. É seu agradecimento.
E falei, com lágrimas correndo pela minha face por todo amor
daquela cerimônia:
- Haevete!

5
Descansamos por entre a mata pela madrugada afora até o
meio do dia seguinte. Levantamos todos e nos preparamos para
regressar ao Pântano do Sul. No povoado próximo, tomamos um táxi
de volta, visualizando a Praia da Armação antes de chegar à casa de
Elisa. Descansamos o restante daquele dia, sentados em redes e
tomando mate durante a tarde toda. À noite, prontifiquei-me a assar
carne numa churrasqueira improvisada, onde comemos e bebemos,
celebrando à boa saúde e à felicidade de viver.
Mais tarde, Avaeté avaliou a situação das madeiras do
avarandado de Elisa. Disse que precisavam de uma reforma. Olhou
também para o mato, que tomava conta das cercanias da casa.
Precisava ser limpo. Elisa entendeu e disse a Avaeté que fizéssemos
como achássemos adequado. No dia seguinte providenciamos
materiais e ferramentas e começamos a fazer a manutenção da sua
casa. Primeiro, passamos três dias trabalhando na retirada da
madeira podre e na preparação e colocação de novas madeiras. Em

190
seguida lixamos e envernizamos tudo. Depois partimos de enxada,
pá, facão, serrote e foice para cima do mato circundante até deixar o
terreno limpo. Isto durou mais dois dias. Dos galhos preparamos
pilhas de lenha. A casa ficou com um aspecto muito mais saudável e
habitável.
Ao final, celebramos com um jantar no bairro de Ribeirão da
Ilha. Fomos amavelmente servidos pelo dono do restaurante, amigo
de Elisa, numa mesa ao ar livre, com direito a pôr do sol, ostras
cultivadas no local e espumante. Colocamos algumas roupas leves e
limpas, em algodão. Todos de branco, numa cerimônia de paz.
Conversamos alegremente sobre os mais diversos assuntos,
sobre as histórias de Elisa professora e Elisa xamã, Elisa neta e Elisa
avó. Falamos sobre infâncias e sobre sonhos. Falamos sobre os
planos de partida e os próximos passos. Na manhã seguinte,
voltaríamos à estrada. Prometemos encontrar Jaxy dentro de uma
semana em Itajapukai. Elisa disse que nos levaria até a estrada 101,
no continente, de onde poderíamos seguir como bem desejássemos
nossa viagem.
Partimos para o norte na manhã seguinte, bem cedo.
Despedimo-nos de Elisa, agradecendo todo seu carinho. Olhando nos
olhos de Elisa, lembramos o carinho que recebemos de Karay Katu,
Karay Porã, Madre Córdoba, Pedro Ruca, Miguelina e todos os nativos
e brancos amigos que encontramos pelo caminho. Todos unidos por
uma teia única: a teia do amor.
Conseguimos uma carona de uma caminhonete para seguir
viagem. Na estrada, víamos o movimento intenso de carros, ônibus e
caminhões. Avistamos também algumas praias. E muitos e muitos
arranha-céus pela costa. O motorista aproveitou que olhávamos com
certo atordoamento para aqueles aglomerados urbanos e lascou:
- Vivemos em caixas, não é amigo?
- Perdão? – disse eu, retornando do meu transe.
- Isolados por muros. Não concorda?
- Prossiga... – falei, de maneira que estimulasse seu raciocínio.
- Nossa casa, nosso transporte, nosso trabalho. Saímos
diariamente das caixas onde vivemos para ser transportados por
outras caixas que nos levam à caixa onde trabalhamos.

191
- Ah, compreendo. Acho que concordo. Vivemos um tanto
isolados, não é mesmo?
- Vocês índios é que são felizes. Vivem lá, direto, em contato
com a natureza... – concluiu nosso novo amigo, sem tirar os olhos da
estrada. Agradeci mentalmente por referir-se a “índios” no plural.
Olhei para Avaeté e ele piscou o olho. Entendi sua piscadela
como desejando assumir um papo mais “cabeça” com o motorista.
Iria me livrar dessa, pois eu estava convalescendo. Então Avaeté deu
“corda”:
- Você quer dizer fisicamente, não é, amigo? Em caixas físicas...
- Sim, caixas com muros difíceis de transpor – adicionou.
- Mas, socialmente, vocês não vivem em caixas. Vivem em
pirâmides. Correto?
- Puxa, você tem toda razão. Diga-me: qual o seu nome?
“Ah, Avaeté. Muito prazer. Sou Luís Augusto. Trabalho na empresa
dona deste veículo. Estou levando alguns papéis e amostras até a
matriz. Sabe, sou gerente de operações. Tenho tido a oportunidade
de estudar. Estas coisas, especialização em gestão, MBA, você sabe...
“Pois então, Avaeté. Você disse que vivemos em pirâmides... É o que
eu vivo falando para minha mulher! Sabe como é... Eu gosto de ler
filosofia. Mas ela não é muito ‘chegada’, você entende, não é
mesmo?”
Avaeté novamente olhou para mim e eu sorri. O gerente
continuou:
- Por exemplo, as nossas famílias. Elas são patriarcais. Quem
manda é o pai. Quem provê tudo é o pai. Pai, não no sentido
machista, mas no sentido do chefe da família, seja homem ou
mulher. Ó, viu? Até o nome: chefe de família.
“Outro exemplo: as empresas, organizações em geral, em que
trabalhamos e com que nos relacionamos. São pirâmides.
Hierarquias. Chefes que mandam. Proprietários sobre chefes sobre
chefes sobre chefes sobre trabalhadores.
“E mais. O clube a que pertencemos... é uma pequena pirâmide. O
partido com que simpatizamos... É uma pirâmide. O governo... É uma
enorme pirâmide. A igreja que freqüentamos... É uma tremenda

192
pirâmide. Em qualquer uma delas, crescer significa subir na
hierarquia. Bacana é quem sobe na pirâmide. Mais bacana ainda é
quem tem sua própria pirâmide. Sabem, amigos, acho que não
devíamos ser enterrados em tumbas. Deveríamos ser enterrados em
sarcófagos...” – e regozijou-se intimamente pelo pensamento com um
meio sorriso.
Só para provocar um pouco mais, perguntei:
- O que você tem lido ultimamente, amigo?
- Ah, gosto de Nietzsche, Habermas, Castells. Gosto também de
física quântica. Mas ultimamente tenho me interessado pelo filósofo
da complexidade: Morin. Conhece?
Preferi negar. A corda era para ele se enforcar. Não era para ser
um enforcamento coletivo. Desta vez, eu “tô fora”. De qualquer
maneira, Avaeté cutucou:
- O que o amigo Morin anda falando ao seu ouvido?
- Que o mundo é complexo. Criamos complexidade social
fabricando redes e pirâmides. Estas coisas são muito complexas e
nosso pensamento linear não é mais capaz de alcançar sua
apreensão cognitiva de todo. Criamos estruturas complicadas que
nos afastam da experiência direta.
“Mantemos um sistema muito complexo de vida e de conhecimento
que nos afastam da experiência da vida. Estes sistemas complexos já
não servem mais às pessoas – eles servem-se das pessoas, ainda que
formado por pessoas, para servir a si próprios. Os ‘gigantes’, você
entende?”
Comecei a ficar preocupado com o rumo da conversa. Primeiro,
porque o amigo aí era bem capaz de arrebanhar alguns malucos e
formar alguma seita. “Filosofia em certas mãos, às vezes, é perigoso”
– pensei com ironia. Depois, o cara estava ficando animado demais.
Estava começando aquele desfile de citações e uma prosa toda
remendada e mal amarrada, como é comum na academia. Não
importava. Avaeté estava se divertindo:
- Prossiga amigo, você está indo bem!
- Você é um índio bem informado! – surpreendeu-se o motorista.
- Você ainda não viu nada... – brincou Avaeté, com um tom
cínico.

193
- Sabe como é, amigo... Se você eliminasse toda essa selva de
complexidade, teria contato com a experiência direta.
“Ãhn?” – emiti um som com a cara pasma. De repente, vi-me na
pele daquele homem quando repetia expressões e frases que
pareciam minhas. Por alguns momentos, tive a impressão de, um dia,
já ter conversado com aquele sujeito. Ele prosseguiu sem dar atenção
à minha expressão:
- Na experiência direta, amigo, você reconhece idéias muito
mais verdadeiras da essência de tudo. Você está mais cara a cara
com a verdade. Ninguém lhe diz. Você está lá. Contemplando o todo,
na infinitude do tempo e do espaço...
“Neste lugar você estará bem mais próximo da essência das coisas.
Muito mais próximo do que analisando, separando e focalizando nos
detalhes do aqui e agora. Ao analisar, separar e categorizar, você cria
um sistema hierárquico e complexo de conhecimento que o afasta da
essência. Hierarquias, de uma maneira ou outra, sempre existirão... A
sabedoria está em torná-las mais “flat”. Entende?”
Aquele reflexo de mim mesmo, falando como se fosse um
pregador, me assustou. Ou me enjoou. Comecei a ver como você
pode se tornar um chato, às vezes. Olhei para Avaeté e ele pareceu
divertir-se ainda mais com minha repulsa. Seu danado. Preparou a
situação para me dar uma lição. Preparou uma cama-de-gato.
Admito, uma boa lição. Acabei dando uma risada.
- Rindo de quê, amigo? – perguntou o motorista.
- Ãhn? Nada, não. Desculpe. Estamos muito próximos do nosso
destino. Isto me alegra.
- Hei, amigos, é verdade! Vocês estão muito próximos do seu
destino. Daqui a dez quilômetros deverão saltar. Que pena! Estava
gostando da sua companhia...
Saltamos na estrada e agradecemos a carona. Desejamos boa
viagem e boas leituras. Quando se distanciou, dei um tapa de leve no
ombro de Avaeté, que segurava a boca para não desatar a gargalhar.
Não foi preciso palavra. Tudo estava muito claro.
Logo conseguimos outra carona rumo à costa. Nossa primeira
parada seria nas comunidades Guarani de Ilha da Cotinha e de
Guaraqueçaba. Fazendo paradas por aqui e por ali, seguindo o rumo
norte pela costa do Atlântico, encontramos outras aldeias, como as

194
da Ilha do Cardoso, do Rio Branco, de Sete Barras, do Bananal e de
Aguapeí.
Avaeté recomendou que testemunhássemos o sofrimento, mas
que não sofrêssemos a sua dor. Assim foi feito. Vimos a pobreza e o
abandono. Às vezes, até condições de completa insalubridade. Mas
vimos também a beleza, a sabedoria e a humanidade.
Estava me apaixonando por esta vida na estrada. Nela, você
enxerga através de inúmeras frestas o fluxo da civilização, os
acontecimentos do seu tempo, os rostos de pessoas das mais
variadas espécies. Estava me apaixonando em ser um “largador”, um
tipo suave de beat.
Chegamos, por fim, próximo à aldeia de Itajapukai, partindo de
Praia Grande, pela estrada de chão batido, até chegar às margens do
Rio Aguapeí.
Ao nos aproximarmos da aldeia, a cerca de cem metros dela,
um garoto veio nos receber. Seria um morador? Não. Era Jaxy Pyau. A
lua nova com um sorriso enorme foi quem veio nos receber.

195
Avaeté

Dez

196
1
Já fazia dois dias que Jaxy estava à nossa espera. Quando nos
enxergou, dava pulos de alegria:
- Avaeté! Pyá! Que alegria! Vejam, estou aqui! Vamos viajar
juntos!
Avaeté estava curioso para saber como fez para conseguir a
proeza.
- Ah, Avaeté! Eu parti de Tekoha Guatá no dia seguinte com uma
carona. Falei para Karay Porã que desejava muito aprender com você
e Pyá sobre o mundo. Karay foi muito bacana! Ele disse que
aprenderia mais sobre o teko Guarani com você do que de qualquer
outro modo. Então me desejou boa sorte, deu-me um abraço e
mandou que minha mãe preparasse o que eu necessitasse numa
bolsa. Bem, aqui estou – disse, abraçando Avaeté e a mim com força
e ternura.
- Como estão todos aqui em Itajapukai? – perguntou Avaeté
antes empreender a entrada na aldeia.
- Aqui estão todos bem, Avaeté. Mas creio que há perigos nas
aldeias mais ao norte. Não sei bem o que está acontecendo, mas há
preocupação entre os líderes.
Avaeté tomou a frente para adentrarmos a aldeia. Como
sempre, as primeiras imagens são de crianças brincando e correndo.
Jaxy foi buscar o líder de Itajapukai. Chamava-se Karay Mirim, era o
mais baixo de todos os líderes que encontramos, mas era muito firme
no andar e no falar.
- Avaeté! O grande guerreiro das trilhas! – saudou Karay Mirim.
- Karay Mirim! Que alegria! – respondeu Avaeté à saudação. –
Estes são meus novos companheiros de viagem: Pyá e Jaxy. Ah, este
você já conhece...
- Amigos! Que prazer, honra e inveja! Eu fui companheiro de
viagem desse homem – apontou Karay Mirim para Avaeté. – Aprendi
muito com ele. Assim vocês também devem estar aprendendo –
concluiu.
Ao mesmo tempo, eu e Jaxy respondemos:

197
- Claro!
Convidou-nos a entrar na sua casa. Ofereceu-nos biscoitos
enquanto Avaeté preparou o mate. Conversamos sobre a aldeia e as
novidades. Por fim, Avaeté quis saber das notícias que Jaxy havia
antecipado. Karay esclareceu:
- Avaeté, os conflitos na beira da Amazônia e no sul da Bahia e
norte do Espírito Santo estão irrompendo com força. Há anos se fala
sobre uma bomba social. Ela agora está explodindo. A situação é
mais crítica no sul da Bahia.
- Que comunidades estão sendo afetadas, Karay?
- Pataxó, Tupinambá, Tupiniquim, Guarani, além de quilombolas.
- O que está acontecendo por lá, Karay Mirim? – perguntei eu.
- Venham – disse Karay. – Quero que conversem com cacique
Jozilda, dos Tupinambá.
Levou-nos até outra casa, onde Jozilda estava hospedada.
Cacique Jozilda é uma mulher de corpo forte, pele muito morena e
olhar terno. Veio trazer as notícias do norte e buscar ajuda. Karay
Mirim apresentou-nos e estimulou para que Jozilda contasse o que
está ocorrendo.
- O povo está em um dilema, amigos. Não sabemos se
enfrentamos de frente o conflito de terras que ocorre na nossa
comunidade, assim como com muitos dos povos vizinhos, se
apelamos para o sistema legal ou se pereceremos. Nossa força está
na rede de amizade entre os povos de toda esta região, daqui até o
norte baiano. Estamos conversando e trocando idéias com nossos
irmãos. Conversamos sobre nossas dores. Sabemos onde está nossa
dor. Como somente nós sabemos, somente nós sabemos curar. Não
serão quaisquer intermediários que poderão falar por nós.
Jozilda referia-se aos homens ligados à lei, a instituições
diversas e a pessoas que pretensamente falam em nome dos povos
nativos. Continuou num tom firme:
- Quem provoca o conflito é o branco, pois sabe que na base do
confronto ele vence. Ele tem as armas. Ele tem o poder. Ele tem o
dinheiro. Ele tem o sistema a seu lado. Se o sistema não está a seu
lado, sabe como corrompê-lo. A história tem sido assim. Os brancos
entram em empreitadas e peleias que fazem do índio um joguete. Até

198
nos usam, muitas vezes. Depois, pé na bunda. É como aconteceu
com os Terena e os Guarani, na Guerra do Paraguai. Foram aliciados
para a guerra em cada um dos lados do confronto. Tiveram seus
territórios usurpados pelo Estado vencedor. Troncos e aldeias foram
dissolvidos. Depois, as terras foram entregues pelo Estado a
terceiros. Fazendas foram criadas. Índios que combateram ficaram
sem terra, sem mata, e acabaram escravizados ou transformados em
trabalhadores volantes nos próprios territórios, que passaram a ser
fazendas. Os que não se escravizaram foram reduzidos às pressas
em reservas muito menores. Perderam-se sementes ancestrais de
plantações. Perderam-se valores. Começaram os conflitos entre
índios e fazendeiros pelas demarcações. E as disputas judiciais foram
freqüentemente desfavoráveis aos índios. Como disse certa vez um
líder Terena: “recebemos do governo imperial apenas três botinas
por lutarmos ao lado do exército: “duas no pé e uma na bunda.”
- Conte a eles, Jozilda: quem está no centro dos conflitos hoje? –
estimulou Karay Mirim para que a líder contasse o estado atual das
coisas.
- As coisas estão feias perto das fazendas, das barragens, das
estradas e das cidades...
Virei-me para Avaeté e propus uma generalização destas áreas:
- Senhores: são regiões onde ocorre a expansão da fronteira
agrícola, os investimentos energéticos e de infra-estrutura e as áreas
de expansão urbana.
- Em resumo: onde o branco diz que é “para onde avança o
desenvolvimento” é que há estes conflitos com os povos nativos –
arrematou Karay Mirim. – Quem está envolvido? – questionou.
- Ah, não são poucos. Vêm de todos os lados. Governos,
fazendeiros, grileiros, empresas, mineradoras, igrejas, gente que
polui os rios, moradores de cidades, empreendedores turísticos,
traficantes, garimpeiros e a polícia, a serviço destes. O que tem
ocorrido é invasão e apossamento indevido de terras, obras,
aniquilação da mata, mudança nos rios, poluição, violência,
epidemias, abusos de mão-de-obra. Fazem alguns dos nossos quase
de escravos.
- Há alguém a nosso favor, Jozilda?

199
- Temos tido ajuda de organizações da sociedade civil, entidades
ligadas à igreja, alguns movimentos sociais, do próprio poder público
em algumas circunstâncias e da bravura de alguns líderes
comunitários. Mas a maior força é dos povos irmãos. Alguns povos,
como os Tumbalalá, têm vindo ao nosso encontro para ajudar em
algumas questões...
- Este é o ponto que gostaria de informar-lhe, Avaeté –
esclareceu Karay. – Neste momento está se formando um movimento
para fortalecer a região dos conflitos. Alguns povos do centro e do
norte do continente estão se dirigindo para a região da Amazônia
para uma caminhada pacífica de resistência à sua destruição. Nós,
aqui do sul e sudeste, precisamos reforçar os nossos irmãos do sul
baiano. A idéia de uma caminhada pacífica pelos irmãos índios está
ganhando força. Creio que dentro de poucas semanas estaremos na
estrada.
- Puxa, Karay, notei uma movimentação e uma preocupação nas
aldeias do sul até aqui, mas não imaginei que isso estivesse sendo
preparado – disse Avaeté, com certa surpresa. – Como será a
marcha?
- As aldeias mandarão representantes. Será a “Marcha dos
Guerreiros sem Armas”. Ainda não precisamos a data, mas será em
breve. A marcha visa levar força aos nossos irmãos e trazer alguma
atenção para a necessidade de respeito às culturas e formas de vida
nativas – concluiu Karay.
Passamos mais algum tempo conversando com Karay Mirim e
Jozilda, sob o olhar atento de Jaxy. A situação não era nada boa e,
apesar do caráter pacífico da marcha, sentia-se um tom de
expectativa com o seu desenrolar.
Mais tarde ficamos a sós, eu, Avaeté e Jaxy. Discutimos como
aqueles acontecimentos poderiam afetar nossa viagem.
- Avaeté, acho que é preciso que estejamos engajados neste
movimento. Podemos ajudar de alguma maneira? – indaguei eu.
- Sim, é possível. Vamos olhar o mapa. Quero contar-lhes nossos
próximos passos de viagem.
Avaeté apontou nossa posição atual. De onde estávamos,
iríamos para o norte, passando pelas aldeias do Rio Silveira, Boa
Vista, Nimuendaju, Itariri, Parati, Araponga e Sapukai, esta última em

200
Angra dos Reis. Avaeté disse que levaríamos as notícias sobre a
marcha. Depois de Angra, partiríamos na direção de Araxá.
- Araxá?! – exclamei.
- Sim, meu caro. Agora que você é um Guarani, voltará a Araxá
para se fortalecer ainda mais e dar um passo importante na sua
viagem pessoal. Jaxy sentirá a força da Serra da Canastra. E quanto a
mim, preciso renovar-me no local onde nasci.
Fiquei encantado e ansioso com a idéia de retornarmos a Araxá.
Foi lá que conheci Avaeté. Lá eu tive minhas primeiras experiências
místicas e senti o poder do lugar. Foi neste ponto que se iniciou
minha transformação.
- E depois? – questionei.
- Lá seremos iluminados sobre nossos próximos passos e sobre
o que fazer quanto à marcha.

2
Na aldeia era noite de realização do ritual do avati kyry, ou o
batismo do milho novo. O milho é uma planta sagrada para muitos
povos americanos. Quem o conduziria era Karay Mirim. Iniciou-se no
momento do pôr do sol e só terminaria no dia seguinte. Karay
cantava um longo canto repetido pela comunidade. Alguns músicos
tocavam mbaraka e takuapu. Pelo amanhecer, assim que findasse o
canto comprido, a colheita sobre o altar seria batizada. Depois do
batismo, Karay esclareceu que o amor pelas plantas é o que faz o
espírito delas entrar naqueles que as utilizam. “O milho é o alimento
do corpo. O amor, do espírito” – e Karay deu por encerrada a
cerimônia.
Partimos no dia seguinte. Reabastecemo-nos de alguns
suprimentos e retornamos à praia, de onde seguiríamos até as
próximas aldeias. Às vezes pela praia, às vezes pelas estradas e
trilhas em meio à Mata Atlântica. Em uma semana deveríamos
percorrer as aldeias até Angra dos Reis. De lá, tomaríamos o rumo da
Serra da Canastra.
Encontramos as mais diversas reações nas aldeias. Algumas
delas estavam enfraquecidas, empobrecidas. Não tinham força para
juntar-se à marcha. Outras demonstravam compaixão e vigor para

201
engrossar o movimento. Às vezes ouvíamos o lamento, às vezes
inflamados discursos em apoio. Um líder disse certa feita:
- Nossa terra foi recortada inúmeras vezes por fronteiras e
cercas. Houve guerras pela posse de terras e expulsaram-nos. Por
isso nosso povo vive dividido. Mas, para nós, não pode haver
fronteiras. Precisamos viver e comungar com nossos irmãos de
sangue, aqui e acolá. Precisamos continuar a andar livres, como
sempre o fizemos no passado. Mas temos sido impedidos de viver
deste modo. Ainda assim, precisamos continuar lutando por nosso
jeito de viver e pelo fim de todo tipo de cerca ou muro que nos
impede de vivermos livres.
Outro líder descreveu:
- Continuamos vivendo e lutando pela mata, que é o
fundamento de toda vida e de toda cultura. Nascemos na mata e
fomos por ela criados. Por isso ela está ao nosso lado. Ama-nos e nos
alimenta. Temos certeza que a mata e os animais e toda natureza
estarão conosco nesta marcha. Temos o compromisso de
continuarmos lutando pela natureza. Por isso, nos unimos a todos os
que trabalham por um mundo mais justo e humano, para que haja
diversidade e respeito e para que se erga esta grande morada
chamada “terra sem males”.
É interessante que, apesar dos discursos conclamando uma
marcha, uma luta, a idéia presente não era de confronto. Nos olhos e
nas ações da maioria dos líderes que encontramos havia mansidão,
firmeza e sentido de missão. Como nos disse um Karay: “Vamos para
a cidade para ajudar a pacificar os brancos”.
Passamos a semana viajando entre aldeias e lugares
majestosos. O litoral e a mata na região são lindos, paradisíacos. E
vivíamos os sentimentos contraditórios de estar neste lugar
majestoso e, ao mesmo tempo, viver a aflição de conflitos eminentes.
- A poesia pode ser sua mestra nos momentos de incerteza –
recomendou Avaeté. – Você vive como se desejasse que o conflito
não existisse. O fluir do rio da vida é cheio de forças opostas. Todo
poeta sabe disso e expressa isso em sua poesia.
- Mas é difícil conviver com o sofrimento, Avaeté. Seu sofrimento
e dos outros...

202
- Sofrimento é como dor. Se não existisse, você não saberia que
está doente. Sofrimentos são sinais da alma. Veja a água que desce a
cachoeira. Ela “não pergunta se pode passar”, como diz um dos
poetas desta terra. Quem estiver no caminho da água, perdido,
inconsciente do seu fluir, sofrerá e morrerá.
- Você acredita que o sofrimento nativo é natural, Avaeté? Que
ele teria que acontecer de qualquer forma? Uma conseqüência da
evolução? Da civilização?
- A vida tem seu fluir, Pyá. Você tenta julgar se algo é certo ou
errado, bom ou mau, natural ou não-natural. Isto não é produtivo.
Pense desta maneira: o mundo humano está seguindo o fluxo de um
grande rio. Era um rio dinâmico e sereno e passou a ser muito veloz e
turbulento. Nesta turbulência, muitos nativos pereceram. Hoje, nosso
povo precisa reencontrar seu lugar em relação a este grande fluir.
- Mas e as crenças sobre encontrar a terra sem males? É preciso
desistir dessa busca?
- Você precisa compreender que, mais importante que o porto
de chegada, o que vale é a viagem, Pyá. Yvy maraney é a busca
constante. Você não está atrás dos fins. Os fins é que são os meios.
Entende? Por isso, yvy maraney não é um lugar fixo. É algo dinâmico.
Que precisa, justamente hoje, ser compreendida e redefinida no
contexto da vida humana e de todos os povos que vivem sobre esta
terra. Nossa cultura, qualquer cultura, é um eterno fluir, um eterno
destilar. Maantykyra: maã é “coisa”, tyky é “que destila, escorre”...
Viver uma vida “mantiqueira”. Era o que Avaeté recomendava.
Como aquela serra. Depois de deixarmos a aldeia de Sapukai,
seguimos para noroeste, com destino a Serra da Canastra. Para
chegar a ela, passaríamos pelo Parque Itatiaia, na Serra da
Mantiqueira. Recebeu este nome pelas cascatas e córregos que vêm
das montanhas. No caso, “montanhas que choram”. O eterno fluir.
Enquanto caminhávamos pelas trilhas de mata e montanhas do
parque, Avaeté mantinha um estado animado e alegre. Conversava
conosco, ensinava detalhes sobre as plantas e os animais da região.
E também conversava com os próprios animais e plantas.
“Alô, urubu-rei!”
“Oh, você, sempre-viva, que majestosa!”
“Olá, macaco-prego, como vai você?”

203
“Ipês-amarelos! Que prazer em vê-los,...”
Avaeté tem a incrível capacidade de estar presente. Sabe que
há uma preocupação. Que há necessidade de juntar-se à marcha e do
que isto pode representar. Mas, neste exato momento, está com sua
mente ali, muito consciente daquelas belezas. Este tipo de
aprendizado você só tem vivenciando. É difícil alguém lhe dizer: “Não
viva do passado!” “Esqueça as preocupações.” “Viva o presente!”
Uma coisa é falar. Outra é testemunhar. E viver. E Avaeté é um
precioso amigo, justamente por oportunizar-nos viver isto. Um
verdadeiro amigo. Assim como Jaxy.
Os amigos andaram juntos por quilômetros. Passaram por pés
de serra, fazendas, rios e riachos, cascatas, pequenas cidades,
florestas de serrado, campos, vilarejos, gente jogando futebol, gente
tomando cerveja nos botecos, criançada indo e voltando do colégio,
gente construindo casa, gente sentada na praça, plantações,
estradas asfaltadas e de terra batida, pores do sol, lagoas, açudes,
cavalos, vacas e ovelhas, carroças, carros e caminhonetes,
motoqueiros, viajantes. Viajaram em carona de carro, caminhão,
caminhonete, no lombo de cavalos, a pé, de todo jeito. Até que,
finalmente, avistaram a Serra da Canastra.

204
Avaeté

Onze

205
1
É uma serra que parece uma enorme chapada. Até avistá-la,
percorremos cerca de uma hora desde o camping, situado a oeste de
São Roque de Minas. Pelo caminho, passamos por cascatas de vários
tamanhos. A estrada é de rípio e chão batido. O céu estava de um
azul luminoso e havia algumas nuvens bastante brancas, em razoável
contraste com o céu. O ar, muito limpo. Mais alguns quilômetros
adiante e estávamos diante da nascente do Rio São Francisco. O
“Velho Chico”. Banhamo-nos aqui, onde o velho ainda é criança, e
seguimos adiante, passando por inúmeras escarpas, penhascos e
paredões.
Caminhar pelos campos desta serra é uma experiência
majestosa. Eles estão amarelados em certas partes e muito
verdejantes em outras. Avaeté por vezes abria os braços, como a
abraçar aquela linda paisagem. Era como se abrisse os poros para
deixar aquilo tudo adentrar-lhe. Naquele estado de plena presença,
mirou um ponto atrás de algumas pedras, levantou o dedo para
chamar a atenção e cochichou:
- Vocês viram?
- O quê, Avaeté? – perguntei sobressaltado.
- Um animal. Atrás daquelas pedras. Está nos acompanhando...
Fiquei um pouco assustado, imaginando algo feroz, talvez uma
onça. Jaxy não parecia amedrontado. Perguntou a Avaeté:
- O que você acha que é?
- Uma cauda larga... Certamente é um tamanduá. Isto é muito
bom. Um bom sinal.
- Sinal de quê? – perguntei.
- De proximidade de um lugar de poder. Vamos! Temos que
segui-lo.
E pôs-se a caminhar com certa rapidez na direção em que
apontava. Dizia algumas palavras em voz baixa, como a chamar o
animal e pedir-lhe algo. Não entendia o que dizia, mas repetia as
palavras “kaguare guaxu” vez por outra. Perguntei a Jaxy o que
significavam. Ele disse:

206
- Tamanduá-bandeira. O mais magistral dos tamanduás. Um
animal de poder. Avaeté está pedindo para mostrar o lugar.
Seguimos o pretenso animal por cerca de dois quilômetros e
meio até chegarmos à beirada de um penhasco muito alto, com uma
vista maravilhosa. Mirávamos a direção norte, mas tínhamos à
disposição um visual de praticamente duzentos e setenta graus, pelo
formato do penhasco. Abaixo havia matas, montes, vales e rios.
Respirei fundo e entreguei-me à força daquilo tudo. Avaeté limitou-se
apenas a dizer, sorrindo:
- Aqui faremos acampamento. Será nossa morada nos próximos
dias.

2
Preparamos o acampamento em menos de uma hora. Sob a
sombra de algumas pedras e poucas árvores típicas de cerrado,
arrumamos tudo o que seria necessário. Não demorou a aproximar-se
o fim da tarde e, com ele, o ocaso. Sentei-me na beira do penhasco
para apreciar o espetáculo. Cores púrpuras e alaranjadas iam-se
formando aos poucos. As esparsas nuvens formariam um quadro
ainda mais rico.
Olhei à volta e notei o quanto uma serra ou chapada são
produtoras de vida. A Serra da Canastra divide o terreno em duas
extensões continentais, para sudoeste e para nordeste. Eu olhava
nesta direção, para onde o Velho Chico levaria vida. A serra é como
um ninho permanente de onde surge o sopro vital.
Avaeté e, em seguida, Jaxy sentaram-se à beira do rochedo. Jaxy
subiu pulando e fazendo malabarismos até chegar a uma pedra mais
alta, onde se sentou, orgulhoso de suas proezas. Pelo caminho que
fizemos, esse era sempre o seu comportamento: pulando, correndo,
saindo e voltando à trilha, especulando e mapeando o terreno na
nossa frente. O garoto explodia em vitalidade.
Olhei para Avaeté e depois para o mundo sem fim à nossa
frente. Então comecei a lembrar de quando estivemos aqui. De
quando conheci Avaeté. Então eu disse:

207
- Retornando a este lugar, Avaeté, eu estou fechando um ciclo.
Muito do que sou agora, neste exato momento, começou aqui, anos
atrás.
- Eu também, Pyá. Estou voltando aqui para renovar meu
caminho. Estou aqui para que Nhanderu Tenonde, nosso Pai
Primordial, me dê sinais dos próximos passos.
Rememorei as passagens daquele momento. Lembrei-me quase
literalmente das palavras de Avaeté:
“Este é o lugar onde meu povo, desde os mais imemoriais tempos,
reúne-se para preparar-se para os próximos sóis e luas. A este local
chamamos de ara’exá’ua. Vocês chamariam de Araxá. Para vocês é
apenas o local mais alto de uma região, um terreno plano e elevado.
Um planalto ou chapada. Mas é muito mais que isto...
“O termo ‘ara’, para meu povo, significa o tempo, o dia, a luz, o sol,
mas também o espaço, a terra, o mundo, o céu, o firmamento, o
horizonte. Veja: não é apenas o tempo e o espaço, na sua visão. É
muito mais. Não há uma palavra na sua língua para significar isso. É
como tempo-que-passa-mundo-que-muda-nós-que-participamos.
Lembrei-me também das minhas palavras de encantamento com
aquela visão: “É verdade, Avaeté. Não temos nada que tenha essa
idéia assim de todo.” Avaeté continuou:
“Já ‘xá’, que vem de ‘exá’, significa ver, vista, observar, considerar,
ponderar. Araxá é o que fazemos no nosso dia-a-dia, de observar o
mundo, o tudo, e agir de acordo. Araxá também é o lugar sagrado de
onde avistamos o mundo. Em Araxá estamos mais purificados e
preparados para ver ‘o tudo’.
“Em Araxá vemos a primeira e a última luz do dia. Vemos a primeira
e a última estrela no firmamento. Aqui percebemos como tudo está
interligado e como nós, povo Araxá, estamos ligados a terra, à
natureza, ao tempo. Falo nestes termos porque são os termos que
você entenderá. Mas não nos vemos como separados e interligados.
Nós somos a terra. A terra é os Araxá. Uma só coisa.”
- Avaeté, aquelas lições mudaram minha forma de ver o mundo
e minha vida. E, até hoje, a palavra mais impressionante em qualquer
língua que já conheci é “araxá”.
- Sim, eu disse que, na sua visão, isto era como tempo-que-
passa-mundo-que-muda-nós-que-participamos...

208
- Eu nunca havia visto tamanha síntese, tamanha visão.
- Há muita sabedoria em muitas línguas, Pyá. Nem só a Guarani
ou as suas línguas indo-européias. Em quase todas as tradições deste
planeta você poderá notar os sinais da sabedoria e do espírito do
povo através da sua língua. Lembra o que eu lhe falei sobre a palavra
Guarani nhe’em? A mesma para significar “linguagem” e “espírito”?
Pois é da linguagem que vem muito da essência de um povo.
“Por isso, Pyá, se você quer experienciar novas formas de ver e
vivenciar o mundo, uma maneira é experimentar novas linguagens.
Você tem vivido nos últimos meses a vida Guarani, a língua Guarani.
Esteja aberto para inúmeras outras. Ou invente uma!”
- Como assim, “invente uma”? – indaguei, incrédulo da
possibilidade.
- Invente uma língua! Invente palavras e gramáticas para
experimentar novos mundos! Seus mais recentes filósofos estão
começando a ficar cientes disso. “Você não fala sobre aquilo que vê.
Você só vê aquilo sobre o qual pode falar.”
- Impressionante... Dê-me exemplos.
- Ara é o exemplo. Para você, tempo é tempo, espaço é espaço.
São coisas distintas. Mas ara é os dois. Mas não uma simples junção
dos dois. Ara é uma coisa só, o desdobrar eterno. Você não tem esta
noção porque não tem palavras para isto. O mundo sendo tecido
como se tece um cesto... E é a sua mão que o tece!
- Quando você une espaço e tempo, você dá uma noção de
movimento a tudo.
- Exatamente, Pyá. E quando você dá movimento, os “objetos”
deixam de ser “objetos”. As coisas tornam-se “líquidas”, fluídas,
eternas, circulares, e você, partícipe disso.
- Mas alguém já fez experiências com isso, línguas que
promovessem essa visão?
- Há um dos seus que criou uma língua muito divertida que
arranha esta noção. Ele chamava-se Bohm. David Bohm. Criou uma
modificação lingüística muito lúdica chamada “reomodo”. Vá saber
por que optou por um nome tão excêntrico para seu brinquedinho...
Rá, rá, rá, rá, rá! – gargalhou Avaeté, como era do seu estilo.

209
- E como se brinca com a linguagem? Como poderíamos pensar
uma linguagem mais fluída?
- Bem, o começo de tudo é conscientizar-se de que linguagem e
pensamento são coisas únicas. Processos entretecidos. De um modo
muito essencial, o humano é derivado disto: alma-que-flui-pela-
mente-que-sopra-pela-linguagem-que-veicula. Em Guarani, isto seria
nhe’em...
- E em reomodo?
- Não sei... Mas experimentemos. O reomodo trata de criar a
fluidez do pensamento. Objetos não existem.
- Como assim? Sem objetos? Isto é bastante radical.
- Usemos esta idéia radical para cunhar uma língua
experimental. Vamos chamá-la de reonhe’em. Nesta linguagem
inventada, não haverá objetos ou sujeitos separados. Somente
verbos. Os objetos e sujeitos ficarão, por assim dizer, de alguma
forma fluidificados, generativos, freqüentativos. Eles transformam-se
num verbo no gerúndio.
- Estou compreendendo, Avaeté. O gerúndio provoca uma
sensação de algo que ocorre, sem início ou fim determinado. Um
processo contínuo. Agora, dê-me um exemplo.
- Ok. Você vê aquela árvore lá embaixo? Aquela maior?
- Sim. Não sei seu nome, mas vejo que é uma das maiores
espécies do vale.
- É o jatobá. Possui tronco, folhas e frutos duros. Por isso, a
chamamos de yvyra hi'a hatã'i va'e: “árvore com fruta dura”. O que
você conhece do jatobá?
Quem respondeu do alto, de imediato, foi Jaxy:
- O jatobá é uma árvore que vive na Mata Atlântica e no cerrado.
Na mata, ele é enorme. Pode ter a altura de oito a doze homens, uns
sobre os ombros dos outros. Aqui no cerrado, ele é menor e tem a
casca mais grossa.
- Isso mesmo, Jaxy – confirmou Avaeté. – Além disso, posso lhe
dar inúmeras outras informações. A madeira é forte e por isso é
usada para fazer casas, móveis e ferramentas. Seus frutos são
comestíveis. Os animais o usam como vivenda e alimento. Da casca

210
se faz um chá que é fortificante e atua contra várias doenças. E assim
por diante. Só que, para que você pudesse ficar satisfeito, teria que
lhe fornecer um sem número de detalhes, se ele é assim ou assado, o
porquê de ter ficado assim ou assado, de onde veio, para onde vai,
etc., etc., etc. Essa é a sua linguagem dos detalhes e dos objetos. Já
em reonhe’em...
- Em reonhe’em o jatobá seria?... – estimulei para que seguisse.
- “Jatobando”!
- Uau! – exclamou Jaxy. – Que palavra!
- “Jatobando” é a compressão mais admirável que poderia haver
para descrever aquela árvore. “Jatobando” sintetiza tudo o que foi, é
e será aquele jatobá, lá embaixo. “Jatobando” são todas as conexões
temporais que fizeram aquele específico jatobá ser o que ele é. A
água e a terra que o nutriu. O sol que o energizou. A semente que o
gerou. O jatobá-mãe que gerou sua semente. O animal que trouxe a
semente para cá. As condições climáticas que o fizeram adaptados
ao cerrado. Todos os jatobás que morreram neste processo para que
este mesmo vivesse. Assim, assim, assim, desde um passado
imemorial.
“‘Jatobando’ é também todos os seus tentáculos conectivos com o
futuro. São seus frutos vindouros. Suas sementes. Aqueles animais
que dele farão morada ou alimento. O terreno sobre o qual vive,
viverá e manterá imune à erosão. A sua sombra. A proteção a todas
as plantas que sob ele viverão. As mutações genéticas que sofrerá.
Os novos seres vivos que dele evoluirão. As idéias filosóficas que, ao
admirá-lo, surgirão. Os seres humanos que o celebrarão e o
sacralizarão. “Jatobando” é tudo isto e muito mais, e é a nossa
participação no processo de estar “jatobando”. Compreende, Pyá?
- É uma idéia muito maluca, Avaeté. Isso cria uma noção muito
diferente de realidade...
- Em Guarani, temos uma noção deste dinamismo através da
palavra yvyrapuera. Yvyra é árvore. Mas yvy é “terra” e -ra é “o que
será”, o futuro. Então, literalmente, yvyra é “o que será terra”. “Ao
pó voltarás...” Lembra?
Fiz uma interjeição positiva e aguardei atento para que
continuasse.

211
- Por fim, o sufixo -puera significa “o que foi”, o passado. Logo,
yvyrapuera tem o sentido de “o que foi árvore”. O que, no fim das
contas, significa “o que foi e será terra”. Yvyrapuera é traduzido
grosseiramente como “pau podre”. Aquele que se encontra nas
matas. Mas, para nós, yvyrapuera encerra muito dinamismo,
eternidade, circularidade. A eterna fluidez da mata. Terra, árvore,
pau podre, terra.
- Puxa, Avaeté! É uma noção de dinamismo que, digamos,
rompe com os limites do objeto. Isto representa uma queda das
fronteiras daquilo que uma coisa “é”. Aquele jatobá deixa de ser
somente aquele objeto jatobá, lá, e passa a ser muito mais.
“Jatobando” é como uma compressão do tempo e do espaço que faz
aquele jatobá individual, lá, ser um tipo de “nada” infinitesimal e, ao
mesmo tempo, estar ligado a tanta coisa, a tantos processos, até que
no início e no fim de tudo,...
- Diga, Pyá...
- Volta a estar ligado a...
- Vamos, prossiga...
- Esta coisa tão grande, tão primordial, isto que se chama...
- Nhanderu Tenonde, para os Guarani – disse Jaxy.
- Deus, para os cristãos – disse Avaeté.
- Vida, em qualquer povo – disse eu.

3
Começo a entender como o linguajando, a nhe’em de um povo,
é capaz de ligar o mundo e o sagrado. Se você derruba um muro, o
muro de cada objeto distinto, todos os demais muros caem em
seqüência. E você, despido de você mesmo, encontra o sopro da
vida, encontra a alma e, no fim, encontra a Deus. E depois a você
mesmo novamente. Eternamente. Efemeramente.
- “Pyazando”. Eu sou “Pyazando”. Sou o alimento que comi
ontem. Sou o ar que agora respiro. Sou a trilha que seguirei amanhã.
Sou a camada de ozônio. E a sua ausência. Sou todos aqueles que me
tocam e todos aqueles a quem eu toco. Sou minhas origens e meu
destino. Sou meu povo e minha língua. Com minha língua toco a

212
todos os seres, toco minha mente e minha própria língua. E ela,
dentro de si própria, cria um mundo completamente novo.
Um mundo completamente novo. Não onde não há conflitos.
Sim, haverá conflitos. Mas aonde os conflitos se dissolvem. Onde
sofisticando é simplificando. Onde abrindo-se, você está protegendo.
Onde separando-se, você se inteira. Onde ajudando é ajudar e ser
ajudado. Onde uma vida significativa, criativa, com objetivos a
cumprir, é, ao mesmo tempo, uma vida fluída, sem obrigações nem
fins a alcançar. Onde civilizando, “nativando”, humanizando e
“naturezando” podem ser a mesma coisa, ainda que distintas,
coexistentes e harmoniosas. Onde salvando é salvar a si próprio e,
por isso mesmo, salvar o mundo. Onde libertando-se é libertar. Onde
mentando é “almando”. Onde se pode ser certo, correto, direito,
perfeito e, ainda assim, ser livre para ser imperfeito, inacabado; livre
para não seguir regras preestabelecidas; livre para experimentar,
transgredir e criar. Onde o absoluto é efêmero e o efêmero, ainda
assim, é. Mesmo sem ser absoluto.
Neste lugar, você toca o conflito com a sua língua. Ela é a
varinha mágica. E... Puff! O conflito se dissolve! Branco, índio. Que
categorias mais bizarras. No final das contas, “brancando” é
“indiando”. E vice-versa.
– Agora já conhecemos o caminho para Araxá. Voltaremos aqui
amanhã e vamos visualizar o que está por vir – disse Jaxy.
Saí instantaneamente da minha viagem. A frase era esperada,
mas não o emissor.
- Foi você que disse isso, Jaxy?
- Foi. E, ao mesmo tempo, acho que não. Agora fiquei confuso
com sua pergunta, Pyá... Ah, lembrei! Avaeté foi dançar ao redor
daquele capão de mato e pediu-me que, no momento certo, dissesse
exatamente isto: “Agora já conhecemos o caminho para Araxá.
Voltaremos aqui amanhã e vamos visualizar o que está por vir.” Não
sabia quando seria o “momento certo”, mas fiz quando tive vontade.
O que estas frases significam, Pyá?
- Significam que dormiremos, sonharemos e precisaremos nos
lembrar dos sonhos no dia seguinte. Voltaremos aqui amanhã à noite
com eles para compreender nosso destino.

213
4
Da beirada do rochedo até o local do nosso acampamento eram
poucos metros. Mas os segundos que os separavam revelaram-se
uma eternidade. Enxerguei uma luminosidade vinda do capão, ao
longe. Avaeté dançava uma dança luminosa, fosforescente. Ele
dançava muito rapidamente e, da sua dança, brotava um rio
luminescente, como a lava de um vulcão. O rio fluía em direção aos
penhascos e, ao invés de cair como uma cascata, dissolvia-se em
milhares de córregos de luz em várias direções. Um dos córregos
fluía até o horizonte, a leste. Avaeté começou a dançar mais
rapidamente, tão rápido que quase não se viam seus passos, apenas
um desenhado contínuo. Aquele fluxo que corria para leste dilatou-se
e trouxe o sol da manhã. O sol saiu muito rápido. Aquilo tudo
começava a me assustar. O sol seguiu com a rapidez de um dia que
vira um minuto. De repente já era o entardecer, a hora em que
Avaeté recomendou que regressássemos aos rochedos. Tive medo e
pensei no medo de Jaxy. Ele estava também ao meu lado, surpreso,
mas não amedrontado. Peguei seu braço e escondemo-nos atrás do
tronco de um ipê amarelo. De lá, vi o anoitecer chegar, agora mais
lento, dado que Avaeté agora dançava mais lentamente. Quanto mais
anoitecia, mais aquele rio que emanava da dança de Avaeté
iluminava a noite. De súbito, percebi duas pessoas junto ao rio de luz:
uma em cada margem do rio de luz. Não saí de onde estava, mas
meu olhar foi capaz de focalizar dois seres em conflito. Dois
adversários. Dois rivais. Olhei para Jaxy e ouvi-o sussurrar:
- Rivais, Pyá. Rívus, “rio”. Rivális, “do rio”.
Rivais: os que estão em margens opostas do rio! Que idéia!
Resolvi olhar ainda mais de perto... E os rivais eram eu! Eu, eu
mesmo e os conflitos. Meus conflitos. Os rivais e o rio. Tudo uma
coisa só. Como disse Avaeté!
Avaeté agora dançava à velocidade da luz, engrossando
espantosamente aquele rio. Repentinamente, aquele ipê amarelo sob
o qual nos protegíamos, transformou-se numa mulher. Uma linda
mulher. Procurei por Jaxy. Jaxy correu na direção de Avaeté para
aprender a sua dança. Começou a dançar junto. Mais luz tornou mais
caudaloso aquele rio. Virei-me para aquela mulher, que começou a
beijar-me o pescoço, o peito, as coxas. Arrancou minhas roupas.
Despiu-me completamente sob aquele céu estrelado. Nossos corpos
iluminados pelo rio de luz. Deitou-me no chão. Colocou-se sobre meu

214
corpo. Encaixou seu ventre no meu e passou a se movimentar com
vigor e, ao mesmo tempo, com suavidade. Era maravilhoso e
cadenciado, como uma música eletrônica. Ela começou a cantar
baixinho. De repente, a música que cantava e que embalava a dança
de Avaeté e Jaxy tornou-se mais rápida, assim como o movimento
daquela linda mulher. Oh, eu estava a ponto de morrer de tesão e de
amor... E aquela deusa cantava mais e mais alto... E eu a ponto de
gozar... Até que distingui, no seu cantar, dentro do meu ouvido, uma
palavra que se repetia... Rheo... Rheo... Rheo... Entrava nos meus
circuitos e traduzia-se... Deslize... Dilua-se... Flua... E mais alto...
Rheo... Rheo... Rheo... Perca-se... Derrame-se... Dissolva-se... Quase a
ponto de explodir de amor, olhei para mim mesmo e já não me
distinguia daquela mulher. Meu último gesto foi olhar para o rio e ver
os rivais retribuindo meu olhar. Por fim, enquanto eu gozava o amor
daquela mulher, os rivais pularam dentro d’água e tudo se acabou.

5
Acordei sobressaltado sob um céu azul claro do início da manhã,
salpicado por flores amarelas. Sentei-me e olhei à volta. Avaeté e
Jaxy estavam ainda deitados, mas não estavam mais adormecidos.
Desconfiado de que aquelas imagens da noite anterior fossem sonho
ou viagem da minha cabeça, perguntei:
- Avaeté, há quantas noites estamos aqui na serra?
- Aqui, onde? Neste acampamento?
- Sim, desde que você avistou o tamanduá?
- Em que escala de tempo? – perguntou, com uma ponta de
ironia no sorriso.
- Ora, Avaeté, na escala real! – repliquei.
Avaeté continuou seu sorriso, mas falou num tom sério:
- É a primeira noite, por quê?
- Ah! É que eu tive um sonho muito maluco...
- Por certo sua visão é significativa – afirmou Avaeté,
extinguindo o sorriso. – Pense nela enquanto trabalhamos...
- Trabalhar? O que faremos, Avaeté?

215
- Precisamos achar uma planta de poder.
- Por que precisaremos dela, Avaeté? – perguntei.
- Hoje será uma noite especial, Pyá. Precisamos estar com o
poder pessoal revigorado. O lugar está fazendo seu efeito. Seu
estado de espírito também. Sua visão ajudou. Agora precisamos nos
fortalecer ainda mais com uma planta sagrada. Desceremos ao vale
para encontrar a árvore paricá.
Tendo dito isto, Avaeté fez uma descrição para mim da árvore.
Disse que eu deveria colher algumas folhas, nem muito jovens nem
muito desgastadas. Depois chamou Jaxy e, em particular, também fez
uma descrição. Incumbiu-o de apanhar as sementes que se
depositam nas vagens. Quanto a ele próprio, iria à procura da casca
do caule.
Fiquei imaginando que usos teriam aquelas três partes da
planta. Provavelmente provocariam visões ou alucinações de diversas
formas, mas confiava, como sempre, na administração de ervas por
Avaeté.
Avaeté recomendou que saíssemos por três rotas distintas.
Avaeté seguiu para o leste. Eu saí para o norte e Jaxy caminhou para
oeste. Deveríamos regressar até o meio da tarde para haver tempo
de preparar as ervas.
A trilha começava esparsa, com arbustos e árvores baixas e de
tronco retorcido. Aos poucos, à medida que descia em direção à parte
mais baixa do vale, havia maior quantidade e variedade de plantas,
reduzindo a insolação sobre a trilha, mas não impedindo seu curso.
Você olha para a mata e vê a maior variedade existente aqui e nota
que é porque há mais umidade. Esta variedade cobre o espaço,
retendo a própria umidade e impedindo a desertificação. Um círculo
de sustentação da vida.
Mas você se dá conta que não é uma sustentação estática. Se
você voltar daqui a vinte anos a este lugar, ele estará diferente. As
árvores que hoje são maduras terão caído... Hum, como aquela que
estou vendo agora. Caída, podre, morta e... Ao mesmo tempo...
Olhando um pouco mais de perto... Cheia de vida. Liquens, fungos e
pequenas plantas brotando de um tronco podre. Olhei para aquela
mata toda e repeti a palavra que Avaeté me ensinou: yvyrapuera.

216
Imaginei aquela mata toda como se estivesse num filme em
câmera rápida. As sementes brotando, as plantas crescendo,
atingindo o cume, caindo, apodrecendo, brotando, crescendo, caindo,
apodrecendo, ainda mais rápido, brota-cresce-cai-apodrece-brota-
cresce-cai-apodrece sem fim, muito, muito rápido, comprimindo o
tempo, comprimindo o tempo...
Um fluxo verde constante, que se desloca em direção ao sol e
que se desloca também na direção do curso do rio. Mas também vejo
um fluxo constante de branco, em direção à nascente. São nuvens,
ventos e sementes voando serra cima. E um fluxo constante de
transparência cristalina serra abaixo. São rios de várias cores. Rios de
um fluxo muito intenso... Já não consigo mais distinguir objetos... Não
existe mais “aquela árvore”, muito menos “aquela nuvem”. Só se
distinguem fluxos, processos. O fluxo verde, o fluxo branco, o fluxo
cristalino. Somente eu, naquele filme, parecia que não me havia
transformado. Estava à velocidade de sempre, caminhando por
aquela trilha, assistindo.
Pensei em como conseguiria apanhar as folhas de paricá
naquela correnteza. Pensei em pescá-las. Foi o que tentei. Tinha em
minha mochila fio, um pequeno bastão e improvisei um anzol. Mas
seria necessário um peso para usar como chumbada. Procurei por
uma pedra, mas não havia. Também as pedras estavam fluídas. Eram
um rio negro e cinza e âmbar. Não teria sucesso em obter uma pedra
naquelas circunstâncias. Então desisti de pescar e pensei em
entregar-me àquele fluxo, mergulhar nele e apanhar alguma folha no
próprio fluir. Despi-me, coloquei minha faca entre os dentes e
mergulhei.
Era difícil mirar alguma folha de paricá em específico, porque
eram milhares de formas de plantas e folhas, aparecendo e
desaparecendo muito rapidamente. De repente, focalizei e firmei
meus olhos sobre o fundo do rio e distingui o que necessitava: uma
folha espalmada de paricá. Mergulhei até o fundo, peguei minha faca
e parti sua bainha. No momento em que a folha desprendeu-se do
galho, o filme parou. E voltou ao “normal”.

217
6
Encontramo-nos no acampamento com o sol bastante alto.
Estava quente e soprava apenas uma brisa muito suave, criando
pequenas ondas sobre o campo.
Avaeté recolheu o material que eu e Jaxy havíamos coletado e
colocou-os dentro de um círculo. Dividiu-o em três partes e colocou
cada um dos materiais nestas divisões de cento e vinte graus. Depois
acendeu seu cachimbo e baforou sobre eles.
Avaeté nos disse que tínhamos ali à disposição as três formas
de uso do paricá. As sementes, as folhas e a casca. As sementes
seriam moídas e, eventualmente, misturadas a alguma bebida.
Deveriam ser moídas e torradas. As folhas seriam secas ao fogo e
também moídas. Resultaria num pó para ser fumado no petynguá. Da
casca cortiçada seria feito um pó para ser aspirado.
Perguntei se usaríamos todos os componentes no ritual. Avaeté
respondeu severamente:
- Não, nunca! Cada um de nós usará aquele para o qual estiver
preparado.
Avaeté deu as instruções para a preparação de cada um dos
materiais. Depois ordenou a cada um de nós para que os preparasse
individualmente. Eu fiquei responsável pela preparação do pó da
casca. Jaxy secaria, torraria e moeria as folhas. Avaeté trataria das
sementes.
Ficamos ali, à volta de um fogo preparado para as lidas com as
plantas. Silenciosamente, horas que pareciam dias passaram-se.
Quando estavam todas prontas, já era final de tarde. Avaeté disse
para tomarmos banho no córrego para purificar-nos.
Depois do banho refrescante, sentamo-nos à beira do mesmo
penhasco da noite anterior e começamos tomando mate. Avaeté
rompeu o silêncio momentâneo:
- Hoje será noite de revelações para você e para mim, Pyá. Jaxy
será nosso guardião. Nada será a Jaxy revelado, mas sua presença
manterá nosso balanço e a razão de retornarmos.
Entendi que Jaxy seria o guardião da nossa presença no mundo
“normal”. Ele estaria ali à nossa espera, visando dar-nos ciência da
necessidade de retornar do transe ou das visões.

218
O sol pôs-se majestosamente. A oeste havia muita claridade. Em
oposição, a leste, havia algumas nuvens mais escuras. Avaeté disse
para nos aproximarmos do fogo.
A cerimônia começou com Avaeté baforando novamente sobre o
paricá. Disse algumas palavras xamânicas em Guarani e começou a
preparar o pó resultante das folhas. Colocou-o dentro do cachimbo,
socando bem e começou a fumá-lo. A fumaça da sua baforada
elevava-se alto, só desfazendo-se a cerca de dez metros de altura.
Fechou os olhos e começou a cantar uma canção repetitiva e
ritmada, batendo no chão com o takuapu.
Depois fez Jaxy aspirar um pouco do rapé feito do caule. E
continuava sua canção, fazendo uma ou outra alteração
aparentemente aleatória no compasso. A música começou a parecer
meio sonolenta. Neste momento Avaeté administrou-me uma porção
de cachaça com o pó das sementes do paricá.
Dentro de pouco tempo eu estava começando a ter visões e
sensações muito estranhas. Senti um grande inchaço no nariz, como
se ele estivesse crescendo desproporcionalmente. Ele cresceu e foi
tomando conta da boca. Meu rosto tornou-se afunilado pelo meu
nariz-boca. Meus olhos aguçaram-se e comecei a ter visões. Primeiro
comecei a ver o céu trocar de cores, passando a amarelo, azul,
púrpura, vermelho, alternadamente, em ondas coloridas como uma
aurora boreal. Cada vez que via o espectro passar, era como se um
ciclo de tempo estivesse se passando, um dia ou um ano, não sei. O
ciclo passou a ficar cada vez mais rápido, até o ponto em que as
cores que se alternavam foram modificando e eu não distinguia mais
um ciclo, mas um constante e aleatório pulsar de cores. Era uma
sensação exultante, maravilhosa, apesar de estar ali, no meio da
incerteza e da confusão.
Olhei para meus amigos e tive uma visão assombrosa. Jaxy era
Jaxy, estava inerte, mas bem postado. Já Avaeté transformara-se num
tamanduá-bandeira. Um tamanduá de luz. Seu corpo tinha contornos
em forma de luz, como os contornos que emprestam as luzes
natalinas a árvores e prédios. Era um tamanduá brilhante, mas ainda
sim, um tamanduá que fumava um cachimbo. Avaeté continuava a
fumar o paricá. Mirei bem a sua tromba e imaginei que o inchaço do
meu nariz também tenha me transformado... Num tamanduá! Eu
também era um tamanduá iluminado. Já não podia mais tomar minha
bebida, mas acreditava também que não era preciso.

219
Avaeté então começou a balançar sua cauda. Indicou para que
também fizesse o mesmo. Abanei-a lentamente e, depois,
cadenciadamente, até entrar no ritmo da cantoria de Avaeté. Quando
isto aconteceu, a luz que emanava da minha cauda passou a entrar
em contato com as luzes do céu. Era maravilhoso. Eu sentia-me em
completa sintonia com o céu, com suas cores e energia, e com o
ritmo ditado por Avaeté. Sentia uma sensação de pertencimento e de
liberdade. Avaeté então começou a recitar, num ritmo poético, algo
que não era um poema, mas alguma outra forma de discurso
melódico:
“Pyazando tamanduando.
Tamanduando universando.
Descobrir não ilhando.
Revelar contendo-continente.
Pelo fluir do Orinoco.”
Instantaneamente uma melodia passou a processar-se dentro
da minha cabeça.
“Navegar, navegar, orenocando
Praiando, atlanticando, mediterrando,
Celtificando, babiloneando, fertilizando
Pegar, largar
E aqui estamos nós, nós e eles...”
Olhei para mim novamente e eu pegava fogo. Eu era um
tamanduá em chamas, ardente, que apertava a mão de Avaeté. No
momento que sacudi a mão de Avaeté, num movimento repentino,
todo o cenário sumiu. Estávamos novamente só eu e Avaeté, com
nossos corpos reais. Parecia tudo “normal”, mas senti que ainda
estava em transe quando Avaeté pronunciou algumas palavras. Elas
estavam como sendo pronunciadas dentro da minha cabeça. Avaeté
fez uma pergunta:
- Pyá: devo marchar?
Não sei se compreendi a totalidade do significado da pergunta
de Avaeté, mas apenas tive vontade de responder:
- Da mesma maneira que o Orinoco marcha para o oceano.

220
- Isto é bom – respondeu Avaeté. – Qual é sua pergunta?
Pensei um pouco e achei que estava a ponto de fazer a pergunta
da minha vida, e da minha morte, a pergunta total:
- Qual é o meu caminho, Avaeté?
- Seu caminho é tornar-se um guerreiro txucarramãe. O
guerreiro sem armas. E você levará consigo seu protegido.
Dito isto, ouvi o canto lamentoso de um pássaro. Perguntei a
mim mesmo o que era e eu mesmo, com a voz de Avaeté, respondi:
“Este é o canto do kuchiu. O kuchiu canta em lamento por algo que
está por acontecer.”
Uma tristeza se abateu sobre mim. Entendi perfeitamente o que
significava o canto daquele kuchiu. Era o prenúncio de que Avaeté
me deixaria. Era o prenúncio de que Avaeté tomaria um rumo e eu,
outro. Era o prenúncio de que eu estaria sem a presença
reconfortante, amiga e orientadora de Avaeté. Era o prenúncio de
que Avaeté achara que já fizera o bastante por mim. Era o prenúncio
de que teria que me tornar um adulto. Era o prenúncio da separação.
Tomado daquela tristeza profunda, Avaeté saiu de dentro da
minha mente, mas ainda assim falou através da minha boca: “Não se
separa o que é uno. Não tenha medo nem tristeza. Tudo o que eu
sempre quis ensinar a você, você aprendeu porque foi um bom aluno.
Foi capaz de aprender não apenas de mim, mas do todo, da natureza,
dos irmãos. Por isso, escute atentamente a sua última lição esta
noite.”
E dissemos juntos numa voz muito mais firme: “Não pretenda
mudar o mundo. Primeiro, viva uma vida livre e, com sua liberdade,
aí sim, você poderá mudar o mundo.”
E, dito isto, olhei para Jaxy, que dormia. Adormeci também o
sono da vida livre.

221
Avaeté

Doze

222
1
As notícias sobre a situação no sul da Bahia não eram
animadoras. Cerca de cinco mil pessoas punham-se em marcha em
direção ao local dos conflitos. O povo que sofria as maiores
conseqüências da exploração de terras e matas era o Tupiniquim.
Havia informações de que, assim que se iniciou a marcha, o clima
cresceu em hostilidade e houve mortes.
Em outras épocas, a invasão de terras indígenas não tinha maior
repercussão pública. Porém, hoje, o processo de união entre
comunidades, lideranças, sociedade civil e movimentos sociais é mais
sincronizado. Isto de um lado. De outro, o poder de governos locais,
fazendeiros e empresas é mais bem articulado. Também o é entre o
crime organizado.
A região está ardendo em chamas. Literalmente, pois a mata
está sendo queimada pela urgência em implantar agronegócios para
suprir, em escala mundial, mercados de alimentação, energia e
extração de materiais em estado mais ou menos bruto. A situação é
mais crítica no interior da Amazônia. Mas o sul da Bahia não perde
muito longe.
A marcha ultrapassou a região do Rio Doce e dirige-se para o
norte. Indígenas, quilombolas, líderes de pequenas comunidades,
representantes de setores da sociedade civil, como os “cientistas
pela responsabilidade mundial”, ONGs diversas e movimentos sociais
e religiosos têm se juntado ao longo do caminho. A tensão é
crescente.
Comecei a temer pela decisão de Avaeté. Comecei a imaginar
que um massacre poderia ser iminente. Nestes tempos de
convivência com meu amigo, passei a dar-me conta da capacidade
de liderança de Avaeté. Era conhecido e reconhecido por todo o
continente. Dificilmente não se colocaria na linha de frente para
articular e negociar. Temia pela sua vida.
- Avaeté, não estou gostando de você ir nessa marcha. Temo
que algo ruim possa acontecer...
- Não há com o que se preocupar, Pyá. Quando você escolhe a
vida na estrada, você cria um compromisso com os irmãos da
estrada. Meu caminho é estar com esta gente.

223
- Mas você e muitos outros poderão perder a vida.
- “Perder” ou “ganhar” não se aplicam ao nosso novo
entendimento sobre o mundo. A Vida não lhe pertence. Você é que
pertence à Vida. Neste caso, foi a Vida quem escolheu que eu
seguisse nesta marcha e você seguisse na direção da sua liberdade.
- Você tem certeza, Avaeté? E se você morrer, o que será
daqueles que você cativou, daqueles que o amam? O que será de
mim, Avaeté? Eu preciso de você me guiando nesta vida...
- Você estará bem. Estará nas mãos da Vida e dos irmãos de
estrada. Não se apegue, Pyá. A liberdade está no desapego.
- Então me deixe ir com você! – bradei, numa outra tentativa de
não me afastar do meu benfeitor.
- Isso não será possível, Pyá. O seu destino está traçado, assim
como o meu. Mas não se preocupe. Vou me cuidar, assim como
cuidarei dos meus irmãos. Talvez nos encontremos em breve.
- Como assim, Avaeté?
- Vou tratar dos assuntos da marcha durante o tempo
necessário. Depois disso, irei ao seu encontro. Até lá, você e Jaxy
percorrerão o caminho que eu lhes disser. Estarão em mãos amigas.
Avaeté sugeriu que nossa viagem prosseguisse pela Chapada
Diamantina, Serra da Capivara, Sete Cidades, Lençóis Maranhenses
e, depois, para o norte, até o Monte Roraima. Mostrou-me no mapa
os locais. Disse que eram locais de poder. Prometeu encontrar-nos
em Lençóis Maranhenses, ou a seguir, no Monte Roraima.
Assim que disse isto, vasculhou na sua bolsa alguma coisa.
Depois de remexer o fundo, retirou um pedaço de couro enrolado
como se fora um pergaminho. Entregou-me como quem entrega um
tesouro próprio e me ordenou:
- Você deve guardar este pedaço de couro como quem guarda a
vida de um amigo. Ele nunca esteve nas mãos de mais ninguém, mas
é chegada a hora de repassar-lhe.
- O que é isto, Avaeté? – perguntei curioso. Estava amarrado
com um barbante, também de couro, com uma inscrição exterior:
mbegueguata.

224
- “O segredo dos viajantes.” Este é meu amuleto e, ao mesmo
tempo, o tesouro que deve ser revelado e, a seguir, enterrado junto
comigo, logo após minha morte. Só abra-o e leia-o se eu não
encontrá-los nos locais que recomendei. Se eu não os encontrar,
abra-o, leia-o e envie mensagens com o conteúdo para todos os
amigos. Por fim, enterre-o junto ao meu corpo – sentenciou Avaeté.
Olhei para aquele pedaço de couro com melancolia. Tentei, mas
não havia margem para negociar uma mudança de planos com
Avaeté. Comecei a sentir uma queimação no estômago pela aflição.
Era uma agonia pelos riscos que Avaeté corria e pelo desconhecido
de estar a sós, eu e Jaxy, na vida da estrada.
Comecei a sentir uma solidão profunda. Uma sensação de vazio,
de falta de perspectivas, da falta da chama que era a companhia
daquele amigo. Passei o dia olhando para o nada, chutando pedras
no chão e com ar preocupado. Avaeté apenas limitou-se a dizer:
- Não sinta solidão. Solitário você vivia na sua vida anterior.
Fechado dentro dos próprios muros. Os jurua são solitários. Bilhões
de seres solitários. Agora, você tem um sopro de liberdade no
coração. Com ele, você tocará aqueles que estão com as janelas
abertas. Aproveite!
Procurava alento nas palavras de Avaeté, mas sentia o gosto
amargo da despedida na ponta da língua. Melodias tristes de
despedida passavam pela minha cabeça: “Adeus, céu azul.” Na
caverna mais profunda, no fundo do lago, medo, apego e desapego.
“Você consegue ver o medo que eles têm? Adeus, adeus.”
Desarmamos o acampamento e seguimos o rumo de retorno a
São Roque de Minas. De lá, seguiríamos direções separadas. Avaeté,
para o leste. Eu e Jaxy, para o norte. Foi triste o percurso. Eu tinha
um mau pressentimento. Achava que poderia nunca mais encontrar
Avaeté, apesar da sua promessa de encontrar-nos e da sua
confiança. Sentamo-nos num bar, no centro da cidade. Pedimos uma
dose de aguardente. Cada um de nós dois tomou a sua dose de uma
única vez. Como que para dar coragem para cada uma das odisséias
pessoais que enfrentaríamos a seguir. Não tinha mais palavras a
dizer. Se as dissesse, explodiria em lágrimas. Avaeté rompeu o
silêncio:
- Não estamos nos separando, Pyá. Nossas almas sempre
estiveram e, agora mais que nunca, estão entretecidas para o resto

225
dos tempos. Minha alma, sua alma e a de Jaxy são uma só. Eu sou
você. Você é eu. Não se esqueça disto.
Abraçamo-nos os três terna e firmemente. Longamente. Eu
estava em lágrimas. Avaeté despediu-se:
- Adeus, “coração de menino”. Adeus, “lua nova”.
E pegou sua bolsa, seguindo na direção da estrada 50, sem
esperar palavra. Eu apenas disse baixinho:
- Adeus, “gente boa”. Que a Vida o conserve.

2
Eu e Jaxy conseguimos carona da cidade até a estrada 262. De
lá, seria preciso conseguir outra forma de cruzar as paisagens de
cerrado até chegar ao nosso próximo destino: a Chapada Diamantina.
Apesar de meu corpo estar seguindo este curso, fiquei imaginando a
viagem e os desafios que Avaeté teria que enfrentar. Contavam-se
que coisas desumanas estariam ocorrendo por lá. Seqüestros,
desaparecimentos, confrontos armados, caos. Grileiros, jagunços e
“cabras mandados” agindo em nome de grupos instituídos
“legalmente”. Os “bacanas” não poderiam sujar as mãos.
Meu entorpecimento foi quebrado por aquele garoto de energia:
- Pyá, devemos encontrar alguém em especial na Chapada
Diamantina?
Aquela pergunta foi como se o presente desse sinal de sua
existência. Tentei ficar o mais consciente possível do momento atual,
pois a partir de agora não seria mais responsável apenas por mim
próprio, mas também pelos destinos daquele jovem índio. Respondi a
Jaxy:
- Não tenho certeza, Jaxy. Avaeté foi vago quanto a quem
encontraríamos na Diamantina. Disse apenas para confiar que, no
momento certo, encontraríamos as pessoas certas.
- Bem, então não há porque se preocupar, Pyá. Você parece
aflito...
- Você não está, Jaxy? Com o nosso destino, com o destino de
Avaeté?

226
- Não, Pyá. Não, mesmo. Se Avaeté disse para não se preocupar,
porque deveria? Eu estou curtindo demais tudo o que estamos
vivendo...
De repente, tive a sensação de que perdi um benfeitor para
achar um pequeno mestre...
Eu e Jaxy já estávamos muito hábeis em conseguir carona. Era
uma espécie de prazer diário encontrar desconhecidos e conversar.
Sempre nos perguntavam aonde ir e fornecíamos uma idéia geral dos
objetivos mais próximos e uma idéia mais concreta do objetivo mais
amplo. No final das contas, queríamos chegar em cerca de uma
semana a Ibicoara, no sul da Chapada Diamantina.
Transitamos por várias estradas: 354, 176, 135, esta última em
mau estado. Da 135 saímos da rodovia na direção de Curumataí.
Tudo por estas bandas é zona histórica dos garimpos e da mineração
de preciosos. Resolvemos ficar uns dois dias no Parque das Sempre-
Vivas. Aqui você pode admirar a quantidade enorme de flores.
Localizado também numa serra, a do Espinhaço, é berço de inúmeros
rios e riachos. Os banhos de cachoeira não poderiam faltar.
Na região encontram-se a mata mais densa dos vales e os
campos rupestres serranos. Os campos são cheios de flores e, em
especial, de sempre-vivas, cuja colheita é uma tradição dos
moradores dos arredores. Caminhamos muito por entre estes
campos, até chegar a alguma borda de onde se pudesse mirar o
horizonte. Antes de achar o local ideal para acampar, tive a
impressão de ter visto um tamanduá-bandeira. “Isso é bom!” Quase
ouvi a própria voz de Avaeté.
Era o final do dia. O entardecer com suas cores esmaecidas me
atraem muito. O crepúsculo é este momento, mas é também uma
metáfora. Uma metáfora para o limiar existente entre estar acordado
e estar dormindo. Entre o consciente e o inconsciente. Entre o dia e a
noite. Entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Entre a luz e
as trevas.
O momento chama por colocar a mente neste limiar. O limiar
que a meditação pode proporcionar. Há muitos anos não medito, mas
senti uma inequívoca vontade de fazê-lo. Sentei-me
confortavelmente sobre uma pedra plana e, equilibradamente,
coloquei meu corpo na direção norte.

227
Tentei acalmar a mente, mas ela estava como que passando por
corredeiras. Resolvi começar com um foco. Aquilo que me afligia.
Aquilo que me toca os sentimentos. A perda de um amigo.
Pensei: “O que significa perder um amigo?” Passei por rever as
imagens do meu grande amigo. Rever passagens. Rever momentos.
Através destas imagens transcorriam pensamentos, frases, palavras.
Em alta velocidade. O turbilhão de pensamentos e palavras. Parecia
que não me levaria onde poderia haver iluminação.
De repente, dos espaços entre as palavras, dos silêncios e
vazios existentes nas frestas, uma voz sem palavras disse:
“Você não me encontrará em imagens físicas. Você não me
encontrará em passagens. Você me encontrará em outras forças.”
Aquilo me deixou abismado e silencioso. A voz que se elevou
por entre as palavras cessou o turbilhão. Na passagem por este
limiar, abaixo dele, enxerguei um fluxo de água corrente escura. Não
suja ou turva. Apenas escura. Ouvi o amigo perguntar:
“Você quer ver como é?”
Então ele aponta e mergulha no poço de água escura. Então,
você mergulha... Na verdade, não, você não mergulha. Você vê,
estando dentro e fora, e talvez nem dentro nem fora, mas vê que
existe um poço e um labirinto de águas escuras. Este labirinto são
galerias subterrâneas. Galerias e galerias e galerias ricamente
conectadas, que sobem e descem, vão para cá e para lá, abrem-se e
escondem-se.
São galerias ricamente conectadas. Você não é o observador.
Você também não é uma galeria, nem um conjunto delas. Você não é
o fluxo de água. Você é o fluxo e as galerias, e os outros seres
humanos também o são, unificados. A água sobe, sai de um bueiro,
entra num buraco, jorra através da chuva, sai e entra onde há luz
consciente. Você é a água, o canal e o observador do fluxo. Ela
penetra nas entranhas das galerias, no escuro do inconsciente. E o
complexo emaranhado de galerias e lençóis faz fluir toda água.
“Embaixo” é um lugar escuro, inconsciente. Dele brotam
nascentes. Na nossa ingênua primazia do consciente, apontamos
uma nascente. Mas ela nasceu antes. Nasceu no obscuro. Onde
também há nascentes, que brotam de inúmeras outras galerias. Não
há nascentes em absoluto. Só há o eterno.

228
Apenas uma pergunta surgiu no final de tudo. “Quem é, o que é,
afinal de contas, este meu amigo que foi para o mundo obscuro?” E
apenas uma expressão reonhe’em restou: “Avaetendo”.

3
- Jaxy, você não tem saudades dos seus parentes da aldeia? –
puxei assunto enquanto alimentávamos a fogueira do nosso
acampamento.
- Sinto, Pyá. Sinto falta das mães e dos pais da aldeia. Sinto falta
também dos cães, nossos amigos protetores. Você sabe, brincamos
muito na aldeia. Mas não tem importância, não. Aqui, com você e
Avaeté estou aprendendo muito sobre reko, sobre o bom modo de
proceder. Tenho certeza que, com vocês, posso ser um Guarani
verdadeiro.
- Fico feliz que você esteja feliz. Você alegra muito nossa
aventura.
- Alegro-me em poder compartilhar isto e ajudar, no que eu
puder. Na aldeia, eu já ajudava a cuidar de todos os meus
irmãozinhos menores. Desejo ajudá-los aqui, também.
- Conte-me mais sobre sua vida na aldeia, Jaxy – estimulei.
- Nossa vida é muito boa enquanto somos crianças. Corremos e
brincamos livres pela aldeia e pela mata. Brincamos e tomamos
banho no rio. Fazemos brincadeiras imitando os adultos. Brincando
de caçar. E, aos poucos, somos iniciados em todos os aspectos da
vida adulta, como cantar, dançar, tocar instrumentos musicais,
participar nos rituais. E somos iniciados, mais tarde, na manutenção
da tekoha, da nossa vivenda, sempre em mutirão. Sabe, Pyá,
mutirão, de potyroina: “muitas mãos trabalhando juntas”.
- Você também é um Guarani eté, como nosso benfeitor, Jaxy. É
bom tê-lo por perto. Estaremos sempre juntos na empreitada. Agora
estamos a sós. Nosso companheiro nos deixou. Precisamos cuidar um
do outro.
- E a Vida cuidará de nós, não é Pyá?
- E a Vida cuidará de nós. Cada vez tenho mais fé nisto.

229
Conversamos mais sobre a vida de Jaxy e eu contei um pouco
de como era minha vida antes de empreender a aventura desta
viagem. Jaxy achou muitas coisas um tanto diferentes, mas não as
rejeitou ou criticou. Apenas ouviu curiosamente.
No dia seguinte, partimos para Ibicoara. Retomamos a estrada
135 e, de carona em caminhão, seguimos até a estrada 116 até
chegar às beiradas da grande cidade de Vitória da Conquista. O nome
da cidade faz lembrar de coisas amargas para os nativos Mongoyó,
Ymboré e Pataxó. Bandeiras, europeus, conquista, territórios, vitória,
derrota e subjugo. Pretendemos não ficar na cidade, mas continuar
pela 407. Por todo o caminho, entremeavam-se campos rupestres,
fazendas de gado, paisagens mais secas de cerrado e matas de vales
e encostas de serra. Em breve chegaríamos a Ibicoara.
Nossa carona nos deixou na 142, de onde seguimos um trecho a
pé até encontrar uma caminhonete de turistas com destino à cidade.
Subimos na cabine e conversamos com o guia turístico, um homem
baixo de cerca de cinqüenta e poucos anos de idade, de pele tostada
e um pouco enrugada pelo sol. Seus cabelos longos e escassos
denunciavam um velho companheiro de estradas.
Não sabia por onde começar para descobrir alguém que
pudesse ser das amizades de Avaeté. Conversamos assuntos mais
genéricos sobre o que fazíamos e como estavam as coisas pela
Chapada. Perguntei se conhecia alguém na cidade que mantivesse
amizade com nativos, mas não soube precisar. Disse que conhecia a
maioria das pessoas por estas bandas, à exceção de alguns
moradores reclusos ou “diferentes”, como se referiu.
Perguntei que tipo de “seres diferentes” havia em Ibicoara.
Informou-me que havia um ou outro artista, um ufólogo, um
antropólogo aposentado e um alienista.
- Alienista? – perguntei, espantado com o uso do termo.
- Bem, é como se apresentou numa das raras aparições públicas
– informou o guia.
- Mas ele “toca” algum manicômio na região?
- Não, veio para cá em busca de paz e tranqüilidade. Trata de
um ou outro raro paciente. O senhor sabe, não é, psicoterapia. Tem
gente que precisa. O pessoal aqui de Ibicoara, não. Nem os turistas.

230
Quem vem se tratar é oriundo da cidade grande. Também já o vi na
companhia de índios. Mas não sei quem são...
Resolvi fazer visitas a algumas destas pessoas “diferentes”.
Comecei visitando, nos arredores da pequena cidade, dois artistas
plásticos que compartilhavam um atelier. Não encontrei ninguém que
algum dia conhecera Avaeté, mas deparei-me com esculturas e
pinturas majestosas. Foi uma tarde agradável na companhia de
pessoas arejadas.
Resolvemos passar a noite numa pequena, mas confortável
pousada. Conversamos com os donos, mas não obtivemos maiores
informações sobre pessoas que tivessem relacionamento com
nativos. Nossa próxima visita seria ao antropólogo e ao alienista. O
dia seguinte seria dedicado a esta busca.
Tomamos café no dia seguinte e rumamos em seguida para a
casa do suposto antropólogo. Recebeu-nos com muita dedicação.
Usava um cachimbo permanente no canto direito da boca. Mas foi
taxativo ao dizer que jamais convivera com qualquer nativo. Visitara
e estudara inúmeros aldeamentos de diversos povos e convivera com
eles por alguns tempos, mas nunca se tornou amigo permanente de
nenhum deles. Nem mesmo recebera a visita de quaisquer nativos
algum dia. Duvidou que pudesse encontrar alguém que conhecesse
meu suposto amigo pois, segundo seus relatos, não é típico dos
Guarani o comportamento estradeiro que descrevi como pertencendo
a Avaeté. Agradecemos a acolhida e partimos para a última
possibilidade. O alienista.
Fomos até sua casa, que ficava mais afastada das demais,
próximo a uma região de mata. Aproximamo-nos da porta e batemos.
Era por volta do meio dia e um homem de camiseta e bermudas nos
recebeu:
- Em que posso ajudá-los?
- O senhor é o “alienista”?
- Eu mesmo. Engraçado como o povo daqui gosta de se apegar a
certos rótulos... Não tem importância. Isto é culpa minha. O que
desejam?
- Eu sou Pyá. Este é Jaxy. Estamos à procura de um amigo de
um amigo nosso.

231
- Entendo. Um jurua com nome Guarani, acompanhado de um
jovem índio... Hum, vocês são amigos de Avaeté, não é mesmo?
- Sim! O senhor o conhece?
- Não me chame de “senhor”, apesar da minha barba branca.
Nem de Papai Noel. Chamem-me apenas por Tiago. Sim, meu velho
amigo Avaeté! Sejam bem-vindos amigos de um velho amigo!
Tiago contou que conheceu Avaeté no Peru. Durante uma
viagem, Avaeté aproximou-se de Tiago e começaram a conversar.
Criou-se uma amizade durante os dias seguintes, com Avaeté como
espécie de guia de viagem pelas terras peruanas. E que guia. Acho
que eu estava em total acordo com isto.
Depois disso, Tiago abandonou a cidade onde morava e mudou-
se para a Chapada Diamantina. Deixou de ser um terapeuta
especializado. Passou a trabalhar com todo tipo de linhas alternativas
disponíveis. Acabou por adquirir tal visão ampliada do que é doença
mental que, hoje em dia, nem mais acredita que os termos “doença”,
“mente” ou “terapia”, como são comumente conhecidos, aplicam-se
ao que ele faz. Diz ser uma espécie de xamã, sem sê-lo de fato.
- A língua inglesa é útil neste caso para explicar minha nova
visão. Note a origem comum das palavras: heal (curar), health
(saúde) e whole (todo). Elas vêm de um termo ancestral comum,
hale, que significa “todo, inteiro”. Assim como holy: “sagrado”.
- Impressionante – disse eu. – Estar saudável, curado, é estar
inteiro.
- Sim. E veja também as palavras “medicina” e “meditar”.
Também têm um ancestral comum, que se relaciona com a palavra
“medida”. “A medida correta das coisas.” O equilíbrio interno das
coisas. É isto que eu ajudo a encontrar. O ser inteiro, que é um ser
saudável, equilibrado.
- Entendo. E sua transformação tem a ver com você ter
conhecido Avaeté? – perguntei eu, achando o “papo” muito familiar.
- Em grande medida, sim. Ele foi uma espécie de catalisador
disto que sou hoje. Ah, desculpe, estava enchendo seus ouvidos com
uma ladainha pessoal que talvez não seja do seu interesse. O que
vocês desejam?

232
- Para ser honesto, nada em especial. Se puder nos conceder
alguns dias de companhia e parceria, pretendemos ficar aqui na
Diamantina por algum tempo.
- Claro! Sejam meus hóspedes. Como já o fui em inúmeras
oportunidades dos amigos de Avaeté espalhados por este mundo. Se
desejarem, os levarei a conhecer maravilhas desta região. Isto será
um prazer.
Acomodamo-nos na sua casa, felizes finalmente por encontrar
esta boa alma que nos acolheu. Avaeté não está aqui para nos guiar,
mas suas pegadas nos acolhem. Isto não é maravilhoso? Espero que
esteja bem. A estas alturas, já está na região dos conflitos.

4
Mais tarde, Tiago nos mostrou um mapa detalhado da região,
com seus relevos, vegetações e trilhas.
- Cruzaremos de sul a norte a Chapada Diamantina, através da
trilha da travessia que, no fundo, é um troncal de ligação de uma
intrincada teia de trilhas. Ela começa aqui perto de Ibicoara, no
chamado Baixão, e terminaremos no Vale do Capão, perto de
Palmeiras. De lá, visitaremos ainda a Gruta Azul e o morro do Pai
Inácio. No total, mais de centro e trinta quilômetros de trilhas nos
aguardam.
- Puxa! Serão pelo menos sete dias de caminhada. Isto é o
máximo! - bradou Jaxy.
Tiago adicionou:
- Ou mais, se quisermos desfrutar as belezas da Chapada. Há
alguns meses não faço esta trilha. Será muito bom retornar a estes
lugares mágicos.
Tivemos até o final do dia para a preparação da travessia. Seria
necessário sair cedo no dia seguinte. Combinamos a partida para
antes do amanhecer.
A madrugada estava fresca. Saímos de Ibicoara caminhando
pela estrada. Um ou outro morador vinha até a janela ver quem eram
os transeuntes matutinos. Logo depois da saída da cidade você entra
em um vale iluminado. Em seguida, toma o atalho para a Cachoeira

233
do Buracão. Linda, tanto por cima quanto por baixo. A queda d’água
é alimentada por um rio de beleza negra e espumante. O acesso
inferior da cachoeira é através de um cânion venturoso.
Tiago é um camarada do tipo bom companheiro de viagem.
Falante sem excessos, equilibra, nos seus discursos, sua visão
pessoal das coisas com uma noção muito clara de realidade. Educado
e letrado, é capaz de ilustrar seus pontos de vista com relances de
sua cultura. Nem parece aquele personagem recluso que pintaram na
nossa chegada a Ibicoara. Nisso, vai se mostrando também um
excelente guia da região, pelo seu conhecimento do local:
- Sabe, Pyá, converso muito com algumas pessoas. Mas só as
pessoas certas. Elas me contam as histórias. Toda esta região viveu
da extração de pedras durante alguns anos. Na verdade, não foram
muitas décadas, de modo que o garimpo veio e se foi. Por isso é
chamada Diamantina. Por causa do garimpo de diamantes. Você
ainda pode ver seus resquícios próximo a Igatu.
Descansamos um tanto, tomando aquele banho que refresca do
calor e o energiza para por o pé na estrada. Retornamos do atalho e
seguimos chapada acima próximo ao Riachão. Andamos no meio do
vale durante horas, até que se estreita, em função da proximidade da
Serra do Sincorá, a leste, e das Gerais de Mucugê, a oeste. Antes que
o vale se tornasse mais fechado, próximo à Cachoeira da Fumacinha,
armamos acampamento.
No dia seguinte, continuamos no rumo norte, passando por mais
cachoeiras, buracões, paredões, campos, aclives, pequenos passos e
declives. E novamente ficamos na companhia das sempre-vivas.
Tiago nos contou que os descampados a oeste são terras cheias
de lendas e fonte de inspiração para poetas, contadores de causos e
inventores de histórias de todos os tipos. Os mais freqüentes são os
ligados à existência de campos de pouso de ÓVNIS e os relacionados
às energias do lugar, em função do relevo e da presença de cristais e
pedras preciosas.
Bem, quanto às energias, melhor repô-las à beira dos rios e
riachos. Água fresca o faz sentir-se fluidificado, desobstruído.
Comemos algo leve e, sob recomendação de Tiago, caminhamos um
pouco e logo depois recostamo-nos à sombra das árvores:

234
- Alimentar-se, caminhar trezentos passos e fazer a sesta, de
lado, por vinte minutos. Truques da medicina aiurvédica – disse
sorrindo.
Jaxy me disse que estava surpreso com o conhecimento médico
de Tiago. Eu estava também admirado. Referia-se a noções de saúde,
tanto das bandas do oriente, quanto xamânicas de várias vertentes,
quanto ocidentais. Reconhece ervas pelo campo para os mais
variados usos.
Neste clima de amizade e relaxamento, passamos as horas e os
dias caminhando nas trilhas, terrenos de arenito, de terra vermelha e
por entre campos de flores; escalando terrenos acidentados,
paredões, escarpas e gargantas; explorando poços, cavernas e
grutas, muitas com maravilhosos salões repletos de estactites,
estalagmites e cristais; nadando em rios cristalinos ou escuros – não
importava, refrescavam da mesma maneira; tomando banho em
grandes cachoeiras ou pequenas quedas d’água; subindo montes e
admirando a vista maravilhosa dos vales; enfim, curtindo.
Pelo caminho iam ficando algumas poucas casas de agricultores,
as estradas, as pontes, os viajantes e trilheiros, as pequenas cidades,
as ruínas do garimpo, as inscrições rupestres ancestrais e um ou
outro incêndio na mata.
As noites passavam-se também, à beira ou não de fogueiras, às
vezes sob chuva, às vezes sob céu estrelado. Conversávamos sempre
de maneira animada. Contei sobre nossas aventuras e sobre nossas
conversas, entre eu, Avaeté e Jaxy. Tiago finalmente perguntou:
- O que é feito de Avaeté? Estamos há vários dias na trilha, mas
vocês quase não têm me contado sobre o que está fazendo Avaeté
agora.
- Não é muito agradável contar-lhe o que está acontecendo.
Avaeté foi juntar-se ao pessoal da “Marcha dos Guerreiros sem
Armas”.
- Eu sei dessa marcha. Ela está nos noticiários. A coisa está
muito quente por lá – informou Tiago.
- O que você sabe?
- Ela havia recém chegado aos locais dos confrontos quando
saímos de Ibicoara. Noticiou-se que, já na chegada, houve trocas de
tiros e certa dispersão, com muitos embrenhando-se nas matas.

235
- Você sabe se houve mortes?
- Não souberam precisar, mas houve algumas, pois os
participantes foram recebidos em emboscadas.
Aquilo reacendeu o isqueiro em meu estômago. Lembrava-me
vez por outra de Avaeté, mas procurava não pensar muito.
- Então foi por isso que evitaram falar em Avaeté? Quero dizer,
no que ele estava fazendo agora?
- Sim. Estamos preocupados – respondeu Jaxy.
- Conhecendo Avaeté, duvidava que ele não se metesse nesse
negócio. Por isso que vocês estão continuando essa aventura
sozinhos.
- Exatamente – respondi. – Ele recomendou que seguíssemos
adiante e que nos encontraria mais adiante.
- Compreendo. Bem, acho que vocês devem tranqüilizar-se. Ele
com certeza os encontrará. Avaeté é muito astuto, sabe se virar bem.
Caso contrário, se ele não aparecer em breve, de uma forma ou de
outra, vocês estarão na sua companhia.
- É isso – afirmou Jaxy. – De qualquer maneira seu espírito está
conosco, não é mesmo Pyá?
Era verdade. O espírito de Avaeté estava presente de inúmeras
maneiras. Pelas suas pegadas e pelas lembranças que ele deixou nos
lugares por onde passaremos. Por aqueles que ele conquistou e que
retribuirão a nós, seus seguidores. Pelas lições e lembranças. Pela
transformação que gerou em cada um de nós. Por nos ajudar a
revelar quem, de fato, somos.
Nossa última noite na Diamantina foi no alto do Morro do Pai
Inácio. Subindo, escalando e nos apoiando nas pedras e árvores
retorcidas, chegamos ao seu cume de 1.120 metros de altitude. O sol
poente alaranja as matas dos vales e os morros chapados das
redondezas. A chuva freqüente deixa poças pelos caminhos de pedra
de arenito, siltito e basaltito. As poças revelam reflexos celestes.
Ficamos a apreciar a vista em estado de araxá, como sugeriria
Avaeté. Mas ele não me saía da cabeça:
- Sabe, Tiago, às vezes sinto uma sensação de culpa por estar
aqui, neste estado de êxtase e contentamento, sabendo das

236
dificuldades de Avaeté, ou do seu povo, ou de todos aqueles que
sofrem.
- Vou contar-lhe uma história, Pyá. É uma velha e conhecida
história, mas creio que vale recontá-la. Certa vez um monge e seu
discípulo caminhavam em direção à aldeia vizinha, quando se viram
na iminência de atravessar um riacho. Ao chegar à margem, notaram
uma linda moça, que tinha dificuldades em cruzá-lo. O monge
ofereceu auxílio, pegou-a no colo e ajudou-a a cruzar o riacho. Depois
cada um tomou seu caminho, sob a estupefação do discípulo. De
imediato, este não falou palavra. Porém, aquela linda moça não saía
de sua cabeça. Não saía também o conflito que surgiu em sua mente,
pois seu mestre dizia para não aproximar-se ou tocar uma mulher e,
ainda assim, tomou em seus braços aquela moça. Não se contendo,
questionou o mestre como poderia ter feito aquilo. O mestre apenas
disse: “Eu tomei aquela moça em meus braços e deixei-a do outro
lado do riacho. Você ainda a está carregando.”
Fiquei em silêncio por alguns momentos elaborando aquelas
palavras. É certo que Tiago tem razão quanto a deixar que Avaeté
cuide de seus assuntos e que nós sigamos o caminho sugerido por
ele. Se assim foi decidido, não há mais porque pensar no assunto.
Apenas fazer o que é preciso.
Conscientemente eu sabia disso, mas meus sentimentos vinham
à tona em forma de uma espécie de culpa. É como um senso de
responsabilidade que eu deveria ter, uma necessidade de estar junto
naquela batalha, junto aos meus companheiros.
Conversamos um pouco sobre isto. Via que Jaxy tinha uma rica
simplicidade, um rico desapego, o que o fazia estar atento, mas não
apegado à própria preocupação.
- Elabore seus pensamentos e sentimentos, Pyá. Isso será
saudável.
- Sinto culpa, Tiago. Uma culpa não racional. Um sentimento que
não consigo afastar.
- A culpa é positiva, Pyá. Isto mostra que você é responsável.
Mas ela também é destrutiva, se transformar-se em apego. Se
alguém está apegado, seu corpo não está no mesmo lugar que sua
mente. Você fica ausente do lugar onde você é mais necessário: o
presente.

237
- Compreendo. Se você está ausente, não está íntegro, está
fragmentado. E, fragmentado, cometerá maus atos.
- Sua ausência e a tentativa de estar presente mental ou
espiritualmente ao lado de Avaeté tenta curar, no fundo, uma espécie
de negligência...
- É isso, Tiago. Essa palavra que você usou. Acho que ela toca o
âmago. Quero compensar uma negligência minha. Uma falha minha.
Uma imperfeição.
Ditas estas palavras, lembrei-me de diálogos que tive com
Avaeté. Certa vez me disse que perfeição ou imperfeição não são
palavras adequadas para se referir à Vida ou à natureza ou mesmo à
humanidade. Conversamos sobre a impropriedade da necessidade da
certeza, da correção, da perfeição ou da eficiência, todas as palavras
que passaram a ter um sentido muito duvidoso quando passaram a
referir-se a medidas externas do que isto seja. Estas medidas, muitas
vezes ditadas e não refletidas perante a verdadeira medida interna
das coisas, tornaram-se destrutivas e fragmentárias.
A mente eficiente que tem nos levado ao caos. A busca da
verdade. “A” verdade. “A” única verdade. “O” único caminho. The
only one right way.
“Num mundo livre, isto não faz sentido, não é mesmo, Tiago?”
Os diversos sistemas de viver, os teko, são tão variados quanto o
número de formas de vida. Não há um perfeito. Não há um único. Na
variedade existe a riqueza. “Você, Pyá, com sua responsabilidade e
sua liberdade, pode encontrar criativamente uma maneira de viver.”
Assim como os inúmeros povos e seres que vivem e viveram neste
planeta. Com sua liberdade, você pode criar. Com sua
responsabilidade, você pode evitar destruir. Com ambas, você deixa
a liberdade dos outros existirem. Você deixa. Você larga. Você se
torna um largador. Você cria sem destruir. Você cria e deixa criar.
Você protege o caminho dos outros. Você dá espaço.
- Acho que posso assumir a responsabilidade de criar o que eu
estou aqui para criar e deixar Avaeté criar o que ele precisa criar –
disse eu, finalmente.
- Creio que é um bom começo, Pyá. Siga seu caminho. Ele
certamente reencontrará o de Avaeté. Ciente de que jamais se
separaram.

238
Já estava escuro há um bom tempo, mas nossa vista já estava
bem acostumada à noite. Quando você convive e visita a noite mais
freqüentemente, seu olhar se acostuma, e já não há mais uma visão
indistinta. Você distingue árvores, relevos, céu, terra, sombras e luz,
sons e cheiros noturnos. Você deixa de temer os seres obscuros,
porque a maioria deles é pertencente apenas à sua imaginação ou
fantasias.

5
Pela manhã acordei numa espécie de leveza. Não conseguia
descrevê-la, apesar de inconfundível, mas sabia de onde vinha. Vinha
de uma nova postura. Com ela, seria possível emanar energia
positiva que, tinha certeza, se estenderia a quilômetros de distância.
Chamei Jaxy e Tiago, informando a eles que seria nossa última
manhã juntos.
Senti vontade de contar a Tiago sobre todos os benfeitores que
encontramos no caminho. Neste curto caminho que iniciei com
Avaeté, já colecionamos um sem número de almas bondosas que nos
ajudaram a crescer interiormente. Disse a Tiago que ele era mais
uma destas almas. E que eu estava imensamente agradecido.
- Não me agradeça – disse Tiago. – Isto é retribuição. Por todas
as almas bondosas que eu também encontrei.
Abraçamo-nos à beira da estrada e demos um “até breve” a
cada outro. Tiago ainda deu-me instruções sobre como chegar a Sete
Cidades. A partir de agora, a viagem passaria por outra paisagem. A
caatinga.
- Sigam para o norte, para Sento Sé e Remanso, na Represa de
Sobradinho, e depois para noroeste. Não deixem de passar na Serra
da Capivara. Depois, a Transpiauí os levará a Sete Cidades. Vá, meu
amigo. Siga seu caminho. E mandem notícias. Suas e do nosso
amigo.
- Adeus, Tiago. Que a Vida o conserve.
- Adeus, Pyá. Adeus, Jaxy.
E rumamos para o sertão.

239
Avaeté

Treze

240
1
Tomei em minhas mãos o pedaço de couro que Avaeté me
confiou. Segurei-o bem firme como que a apertar a mão de meu
amigo. Guardei-o novamente em minha mochila e seguimos viagem.
Da janela do ônibus, eu e Jaxy íamos nos dando conta da crescente
secura da paisagem. Íamos, aos poucos, deixando matas irregulares
do cerrado para ingressarmos numa área mais agreste, mais
poeirenta, mais quente. Também as pessoas se transformavam.
Passavam a usar mais chapéu, a ter a pele mais queimada e
enrugada, usando sandálias de couro ou de borracha. Estas últimas,
produzidas na base de dez pares por segundo.
Ouvia-se o rádio de um ou outro viajante. Pagode, axé, baião,
xaxado, xote. “Minha vida é andar por este...” Mundão velho sem
fronteiras. Quilômetros e quilômetros de estradas, rodoviárias,
lugarejos e gente simples.
- Veja só, Jaxy, as pessoas. Você não encontra uma beleza
simples nelas?
- Desculpe, Pyá, mas não entendo bem o que é isso, simples ou
não simples. O que você quer dizer com isso?
Dei-me conta da mancada imediatamente. Simples ou
sofisticado são noções minhas, não de Jaxy. Abandonei a idéia de
imediato:
- Ah, bem, quero dizer apenas que elas são diferentes de todas
as que já vimos em nossa viagem.
- Já estudei sobre eles, Pyá. Vocês os chamam de sertanejos e
caboclos. São tipos mestiços, mistura de branco com índio.
- O que mais você sabe sobre eles, Jaxy?
- Tudo o que todos sabem no modo de estudo dos jurua, eu
acho. Mas, no meio desta “massa de gente indistinta”, como vocês
acham que elas são, há pessoas de muitas tribos que viveram por
aqui, Pyá.
- Imagino que sim, Jaxy. Imagino estas terras, num certo
momento, começando a ser cortadas por estradas de vaqueiros que
vieram do litoral, talvez brancos pobres, entrando no agreste e no

241
sertão, encontrando os nativos e mestiçando-se. Também se
mestiçaram pelas bandeiras, que caçaram os nativos para escravizar.
- Aqui havia os Pimenteira, Cariri, Icó, Sucuru, Calabaças,
Coremas, Payayá, Sapuya, Massacará e incontáveis outros. É o que
me contou Karay Porã. Hoje, há meia dúzia em algumas terras
indígenas demarcadas.
Seguimos olhando pela janela e para aquela gente companheira
de viagem. A cada rodoviária, muitos desciam, muitos subiam. De
Sento Sé, cruzamos a enorme represa de Sobradinho e seguimos por
Remanso, por um misto de paisagem verde, serrana e desértica. A
secura vai aos poucos sendo denunciada pela presença do
mandacaru e do xique-xique.
Bastante tempo depois chegamos a São Raimundo Nonato.
Paramos na cidade apenas o tempo suficiente de obter outro
transporte até o Parque da Serra da Capivara. Tínhamos curiosidade
em saber por que Avaeté nos recomendou a Serra da Capivara.
Não tardou em descobrirmos. No parque há uma espécie de
museu a céu aberto, com lindas formações e, principalmente, onde
há sítios arqueológicos e paleontológicos em profusão. Através deles,
imaginam-se presença humana muitíssimo antiga, além de animais
ancestrais.
O que é especialmente admirável, além da magistral caatinga,
são as inscrições e desenhos rupestres. Um guia local disse,
entretanto, que tanto uma quanto outra destas belezas sofreram
desgastes acelerados em tempos recentes. A mata e os animais
acabaram sendo quase extintos da região, colocando em risco os
próprios sítios.
Mas o poder emana de tudo, ainda. Não pretendíamos acampar
na área, por isso, aproveitamos o dia recebendo as energias e
influências de homens e mulheres que viveram há milhares de anos.
- Você não tem a sensação de que pode quase tocar as pessoas
que fizeram estas inscrições rupestres, Jaxy?
- É verdade. É como se o pincel, ou o que quer que a criatura
que fez estas pinturas tenha usado, recém tivesse feito estes traços.
Como será que viviam? O que pensavam?
- Não temos muita noção, Jaxy, mas dizem que este lugar árido
foi floresta um dia.

242
- Uma beleza diferente, mas, ainda assim, uma beleza divina...
Talvez celebrassem isto.
- É provável. Vamos. Está ficando tarde e precisamos voltar à
cidade – disse eu, já que a noite se aproximava.
Retornamos à cidade de cerca de 30.000 habitantes.
Localizamos uma pousada simples e barata, mas aconchegante.
Tomamos banho e jantamos no local. Logo a seguir, resolvemos
descansar junto a uma varanda, com sofás e redes. O dono logo em
seguida nos chamou:
- Sr. Pyá? Há uma mensagem para o senhor.
Mensagem? Quem teria nos descoberto neste local. Desconfiei
que pudesse ser de Avaeté. Corri até o balcão. Abri rapidamente:
“Pyá:
Escrevo a pedido de Avaeté. Ele me pediu que enviasse esta
mensagem alguns dias atrás. Pede que relate os acontecimentos a
respeito da marcha. Tem havido sangrentos confrontos nos últimos
momentos. Cerca de trezentas pessoas foram mortas e mais de mil
feridas até agora. Mas o número certamente crescerá. Veja as
imagens no vídeo anexo. [...]”
As imagens eram pavorosas. Um arrepio sombrio subiu por
minha espinha e couro cabeludo. Milícias haviam atacado
acampamentos de integrantes da marcha, sem poupar mulheres nem
crianças. Explosões, incêndios e cadáveres apareciam nas imagens.
“Os eventos que culminaram no massacre começaram com uma
tentativa de dispersar a marcha antes que chegasse ao ponto central
dos conflitos de terras no sul da Bahia. Os participantes
embrenharam-se nas matas para proteger-se. Como o caso ganhou
notoriedade, mais pessoas de várias etnias agregaram-se, formando
um contingente de cerca de 10.000 pessoas dirigindo-se e
acampando ao redor da região. Pelo temor de perder o controle da
situação, milícias ligadas extra-oficialmente aos fazendeiros e
corporações fizeram ataques surpresa aos acampamentos,
provocando o massacre. [...]”
Fiquei aterrorizado com o que acontecia. Pensava em Avaeté,
mas também em todas aquelas pessoas.

243
“[...] Ataques concomitantes ocorreram também às aldeias e
comunidades de origem dos participantes da marcha. A autoria
destes ataques não foi assumida, mas suspeita-se de uma ação das
mesmas milícias. [...]”
Pelos relatos, o clima parecia de guerra civil. O evento, que era
para ser uma mobilização pacífica, acabou tornando-se um conflito
armado. Acabaram no meio do fogo cruzado mulheres, crianças e
anciãos.
“[...] Os feridos, além dos mais velhos, mulheres e crianças,
estão sendo encaminhados para uma zona global neutra, próximo a
São Luís do Maranhão. Aqueles que não estão rumando na direção de
São Luís estarão se juntando a outro movimento, com destino à
Amazônia. Veja outras imagens. [...]”
As imagens de várias aldeias pelo continente eram horríveis.
Casas em chamas, pessoas mortas pelo chão, caos. Os alvos dos
assassinatos foram principalmente as lideranças. Temi por alguns
daqueles que conheci durante nossa viagem. Temi pela vida de
Avaeté.
“[...] Avaeté manda dizer que seu paradeiro e condições são
desconhecidos. Manda dizer também para não se preocuparem e
para que cuidem do seu tesouro. E que vocês serão necessários na
ajuda aos feridos. Pediu para que sigam em direção a São Luís. Isto é
só.
Atenciosamente,
Um amigo.”
- Jaxy, isto é terrível. Como saberemos do paradeiro de Avaeté?
- Não sei, Pyá. Eu nunca vi nem imaginei atrocidades como
estas.
- Aproveitaram que as aldeias estavam desguarnecidas e
atacaram. Que covardia!
- Por que isso acontece, Pyá?
- Eu não sei, Jaxy. Um ódio injustificável.
Injustificável, seguramente. Inexplicável, talvez não. Depois do
enfraquecimento e incapacidade de sobrevivência dos Estados
nacionais e regionais, criaram-se forças paramilitares para defender

244
interesses particulares. Assim ocorreu com proprietários de terras,
corporações e criminosos. Mesmo não ligadas diretamente a estes
grupos, as milícias são custeadas por eles como serviço terceirizado
de defesa.
Como os grupos comunitários e os governos locais estão em
ascensão, incomodam cada vez mais aos grandes proprietários de
terras. Um acirramento do conflito era uma questão de tempo.
Eu estava arrasado. Jaxy chorava por sua aldeia. Depois me
perguntou:
- O que faremos, Pyá?
- Não podemos ficar aqui parados. Faremos o que Avaeté
recomendou. Precisamos ajudar de alguma forma. Mas precisamos
também descobrir o paradeiro de Avaeté.
- Como podemos ajudar?
- Não podemos correr perigo de vida. Avaeté não apoiaria isto.
Não estamos preparados. Devemos evitar o local dos conflitos. Creio
que devemos ir ao encontro dos feridos na região de São Luís.

2
Partimos na manhã seguinte para a região de São Luís.
Tomamos um ônibus que seguia para o norte, em direção a Teresina,
e depois seguia pelas estradas 316 e 135 até São Luís. Cerca de
duzentos quilômetros antes do destino, começamos a ver os sinais da
tragédia. Pessoas vindas das regiões em conflito deslocavam-se por
centenas de quilômetros até ali. Vinham de várias maneiras
possíveis, em veículos automotores, carroças ou a pé. Transportavam
os feridos para aquela que seria a única zona pacífica no momento.
As cenas eram terríveis. Pessoas com queimaduras sérias, com
membros quebrados ou extirpados e feridas sangrentas. Havia dor e
desespero. Mulheres e crianças marchavam chorando. Choravam por
suas aldeias, por seus entes queridos, por seus amigos, pela sua vida,
pela injustiça e pela falta de perspectivas. Diziam que havia gente
presa e desaparecida.
Próximo a São Luís a situação ia se tornando caótica. Apesar da
presença de entidades de ajuda global, o número de necessitados

245
crescia a cada dia. Havia hospitais de campanha para tratar dos
feridos. Os demais eram encaminhados para ginásios, escolas e
acampamentos. Alimentação também era provida, vindo tanto do
interior do continente como de fora. A população local auxiliava como
podia. Muitas vezes, seu maior apoio eram o carinho e a alegria no
cuidado com as pessoas.
Procuramos de imediato colocação para ajudar nos hospitais
improvisados. Passamos a fazer de tudo um pouco. Ajudávamos na
logística, na organização dos medicamentos e suprimentos, no
controle das informações dos pacientes e, quando necessário, como
auxiliares no atendimento aos enfermos. À noite, servíamos de
companhia a alguns pacientes.
Nas conversas, descobrimos os detalhes do que aconteceu.
Cenas sórdidas nos eram descritas, envolvendo abusos, torturas,
violência física, moral e sexual. Mulheres e até crianças foram
estupradas. No caso das aldeias, casas e plantações foram
queimadas e destruídas.
Nem todos os mortos puderam ter o destino que seus entes
queridos desejavam. Muitos corpos não foram encontrados. Entre os
localizados, poucos puderam rumar para suas comunidades de
origem. A maioria seguia para São Luís, onde estão sendo sepultados,
ou foram enterrados nos próprios campos de batalha.
Há muitos desaparecidos e poucas são as informações sobre o
seus paradeiros. Conversamos com pessoas de aldeias que visitamos
e, aos poucos, fomos entrando em contato com pessoas que
conhecemos e que nos acolheram em nossa viagem. Uma delas nos
disse:
- Acabaram com muitos de nós. No meu grupo éramos trinta.
Sobraram dois.
Eram de muitas etnias. Estavam ali, com corpos rasgados e
alma dilacerada. Grandes famílias desfeitas. Um a um dos
sobreviventes eram tratados por equipes locais e estrangeiras e por
xamãs. Casas de reza improvisadas foram erguidas para que
houvesse orações e cantos pelos enfermos. Toda espécie de ervas e
chás eram providenciados.
Sempre que podíamos, íamos de cama em cama conversar com
os feridos. Naquele cenário horroroso e lamentável, entrávamos em
contato com a descrição e os resultados daquelas repugnantes

246
batalhas. De repente, Jaxy passou por uma das camas e reconheceu
um homem ferido no abdômen. Senti seu rosto torcer-se de pavor e
tristeza:
- Karay Porã! Meu querido Karay! – e pegou sua mão e desatou a
chorar copiosamente.
Era Karay Porã, líder da aldeia de Morro Mirim de Dentro, a
aldeia de Jaxy. Olhei para aquele homem desfigurado e moribundo e
vi nele todos os Karay, todos os xamãs, todos os sábios e todos os
amigos de todas as aldeias que nos acolheram e de todas as demais
aldeias deste continente. Vi, no seu sofrimento, a perda da atenção,
do cuidado, do carinho e da sabedoria que se iam com estes homens
e mulheres que cuidaram de nós e que trataram de cultivar e manter
sistemas de vida que poderiam servir de exemplos para o mundo. Vi
esvair-se uma riqueza sem fim, como o sangue que se esvaia daquele
corpo. Vi os guardiões da vida derrotados. Como uma capivara
atropelada, morta na beira de uma estrada.
Jaxy chorava como quem chora a morte de um pai. Suas
lágrimas misturavam-se no chão ao sangue derramado por Karay
Porã. Tudo o que poderia ser feito havia sido com aquele homem. Ele
estava nos últimos suspiros. De repente, entreabriu os olhos. Seu
rosto estava desfigurado e inchado. Jaxy falou com voz terna:
- Meu bom e sagrado líder. Você é seu nome e, assim sendo, é a
medida de si mesmo, meu Karay.
Imaginei que as palavras de Jaxy foram, de alguma maneira,
ritualizadas, pois havia uma reverência amorosa nelas.
- Tupã o proteja, meu filho – respondeu Karay Porã, com voz
fraca.
Perguntei a Karay, desolado:
- Por que isso tudo, Karay? Por que esse horror, essas
atrocidades?
Apesar da debilidade de Karay, passou a falar com firmeza:
- Não fique desconsolado, Pyá. Apesar da tristeza do que está
acontecendo, isto tudo tem um caráter simbólico e educativo. Este
evento é a síntese do que vem acontecendo há muitos anos. É como
que o ápice de um mundo em colapso. Um pingo que sintetiza, um

247
momento que condensa, um acontecimento que comprime uma
marcha, um movimento. O movimento de séculos.
Impressionei-me como Karay, naquelas circunstâncias, pudesse
ter tal visão tão transcendente daquilo tudo. Imaginar que deveria
estar sentindo tristeza, melancolia, desespero ou ódio. Mas não
transparecia nada disso. Perguntei-me como poderia aquilo. Karay
falou:
- Quando você vê a sua morte, Pyá, você vê sua liberdade.
Quando você a vê, nos olhos do seu rival, você fica diante do seu
próprio reflexo. Este é o momento em que se diferencia um homem
comum de um guerreiro. Para o guerreiro, este é o momento em que
tudo se dissolve definitivamente. Não há mais bom nem mau. Não há
mais separação ou integração. Não há mais quantidades a serem
contabilizadas. Apenas o fogo que tudo queima e tudo transforma.
Esta é a liberdade suprema.
Eu e Jaxy ouvíamos atentos a voz daquele homem sábio. Parecia
que tratava de dar-nos sua última grande lição.
- Estou lhes falando como um guerreiro que sou, porque meus
benfeitores assim designaram. Um guerreiro não é aquele que vive
da guerra. Um guerreiro não é um herói que a todos os males vence.
Um guerreiro é um homem comum que não é comum. E não é
comum porque foi capaz de viver a liberdade até a sua morte. Que é
quando encontrará a liberdade sem medidas.
Então se dirigiu a mim:
- Seu benfeitor, Pyá, colocou-o no caminho do guerreiro. Esse é
um caminho sem volta. No caminho do guerreiro, você está na
constante busca da iluminação e da liberdade. Não a liberdade
relativa, de poder fazer aquilo que bem quiser. Você estará sempre à
busca da liberdade verdadeira, aquela que existe somente dentro de
você mesmo. Avaeté é o maior exemplo do que pode ser um
verdadeiro guerreiro. Não pelas suas atitudes exteriores. Mas pelo
seu caráter interior. Tudo o que você vê como manifestações e
comportamentos de Avaeté não é uma fachada arquitetada. São as
manifestações de uma vida interior rica e livre. Assim como ser um
viajante de verdade não é uma atitude exterior. É um profundo
aspecto do seu próprio interior. E ninguém é isto na sua forma mais
exemplar do que Avaeté.

248
Apesar de estar com meu amigo presente na memória
constantemente, passei a pensar nele de maneira muito
transformadora. Sentia-o, agora, mais que nunca, uma parte de mim
mesmo. Senti um contentamento interno ao perceber que, se por
acaso Avaeté estiver morto, ele na verdade jamais morrerá enquanto
viver em mim. Avaeté não é mais apenas um grande amigo. Ele é
uma parte indistinta de mim mesmo. Karay continuou:
- Sinto que se ele estiver, agora, cara a cara com a sua própria
morte, ele estará pronto. Assim como eu, neste exato momento. Não
sei do seu paradeiro, mas sinto que há poucas esperanças de
encontrá-lo com vida. Só há um lugar onde isto pode ocorrer. Esse
lugar é num ponto alto, numa confluência de fronteiras, de difícil
acesso. Você sabe onde é. Se você deseja vê-lo, tem que ir a esse
lugar e saber. De qualquer maneira, Pyá, se Avaeté está ou não
morto, continue seu caminho.
Então se virou para Jaxy:
- Um dia você também terá um benfeitor, Jaxy. Ainda é muito
jovem, não é capaz de compreender o que é o caminho do guerreiro.
Mas tem a chama e isto me conforta. Daqui a alguns anos você
receberá o bastão. Receberá o teko de um guerreiro.
De repente, sua voz ficou muito fraca. Suas últimas palavras
foram as seguintes:
- Foi um prazer ter conhecido e vivido com vocês. Sigam em paz
e no caminho do coração. No país azul nos encontraremos.
E cerrou os olhos, dando o seu último suspiro.

3
Eu e Jaxy rumamos para a casa de rezas. Pessoas de muitas
tribos rezavam ou cantavam, cada uma à sua maneira. Jaxy se
sentou no chão e rezava e cantava um lamento em Guarani. Rezei da
forma que eu sabia pelo espírito de Karay Porã e de todos os que se
foram naqueles dias sangrentos. Passamos a noite na opy.
No dia seguinte, acompanhamos o enterro de algumas pessoas,
entre elas Karay Porã. Este líder deixa órfãos vários filhos da aldeia
de Morro Mirim de Dentro e vários filhos adotivos, eu entre eles. Logo

249
após o enterro, reuni-me com Jaxy para determinarmos quando
partiríamos para Monte Roraima:
- Nosso Karay disse que se desejarmos encontrar Avaeté, isto
seria em um lugar alto, uma “confluência de fronteiras, de difícil
acesso”. Só pode ser o Monte Roraima, Jaxy. No caminho,
provavelmente encontraremos aqueles que marcharam e refugiaram-
se na Amazônia.
- Estou com saudades de Avaeté, Pyá. Avaeté não pode morrer!
- Eu também sinto muito sua falta, Jaxy.
- Quando partiremos?
- Ajudaremos aqui por mais três ou quatro dias e depois nos
abasteceremos para a longa travessia até nosso destino.
Assim foi dito e assim foi feito. Sem ter mais notícias de pessoas
conhecidas, só notávamos a chegada de mais e mais refugiados e
feridos que vinham do sul da Bahia. O hospital de campanha e os
acampamentos dos refugiados estavam lotados. Ajudamos como
pudemos, dormindo poucas horas por noite, ainda por quase uma
semana, quando decidimos que era hora de partir. Passamos a última
tarde e noite com os preparativos. No dia seguinte, bem cedo,
colocamos o pé na estrada para encontrar Avaeté.

250
Avaeté

Quatorze

251
1
Desta vez, colocar o pé na estrada tinha uma conotação
diferente. Não iríamos em busca do asfalto ou da estrada de terra,
mas da estrada de ferro. Compramos passagens para nos embrenhar
pela Amazônia, pelo menos até Marabá, na beira do Rio Tocantins,
junto à represa de Tucuruí.
Na sua idéia de penetrar a Amazônia, você acha que, de uma
hora para outra, vai topar com uma mata impenetrável, onde você só
consegue ir adiante pelo rio. Mas a coisa não é bem assim.
Quem nos ajudou a entender isto, bem antes de chegar ao local
onde as coisas acontecem, foi um jornalista que estava a caminho de
Paraupebas. O conhecemos a bordo da classe econômica do trem de
passageiros. Era distinto da maioria, menos pelas roupas do que
pelos óculos e pelo bloco de anotações.
Não se identificou, mas foi uma ótima companhia de viagem.
Primeiro, trocamos impressões sobre os acontecimentos do sul da
Bahia. Ele esteve presente em São Luís para buscar informações
sobre os fatos e conectá-los às suas investigações sobre a situação
na “fronteira agrícola” amazônica. Para ele, o que aconteceu no sul
da Bahia deve acontecer ainda multiplicado várias vezes, na medida
em que o “desenvolvimento” chegar ao coração do norte do
continente.
- Falo “desenvolvimento”, assim, entre aspas, porque é um tipo
de progresso do Século XIX. Veja como as coisas acontecem –
chamou a minha atenção e de Jaxy para sua explicação.
“A primeira coisa que se faz é rasgar tudo com estradas. Rodovias e
ferrovias. Rasgar é uma palavra bastante literal. São rasgados
ecossistemas e suas gentes. Você divide tudo com a estrada,
afetando populações nativas, animais, entrelaçamento de vegetação
e cursos d’água. É como uma cerca, uma barreira, que você coloca
ao longo de quilômetros e quilômetros.
“Analisemos, em específico, o caso da ferrovia. Típico transporte da
idade do ferro. Sabia que esta estrada em que viajamos é como uma
bomba de sucção? Pois é, você pode pensar assim. Ela é uma bomba
de sucção que extrai da sua volta minério de ferro e muitos outros
metais, além de madeira, cimento, combustível, fertilizantes,
produtos siderúrgicos e agrícolas, principalmente soja. Mas, note

252
bem, é uma bomba de dois sentidos. Porque ela também leva, no
sentido inverso, contingentes enormes de carne humana. Carne
humana miserável, que precisa do emprego barato que existe no
interior da bomba.”
Rapaz, que imagem. Esta lombriga sugadora de mil quilômetros
de comprimento alimenta lombrigas asiáticas que, por sua vez, nos
alimentam de tudo o quanto é maravilhoso: carros, eletrodomésticos,
comida. Tudo bem embaladinho, com bastante papel e plástico. E as
lombrigas se alimentam de quê? Do metal que tem debaixo da terra,
da mata e da carne humana.
Enquanto nos deslocávamos pacientemente por aquela estrada
sem fim, olhávamos para os passageiros, famílias inteiras pobres,
comprando um prato de comida barato pelas paradas do trem, a
única alimentação possível. Um prato tinha que servir para quatro
pessoas. Elas iriam, nos destinos, sonhar com uma vida nova em
cidades novas inchadas de miséria. Nosso amigo jornalista seguiu,
fazendo a parte do guia turístico daquelas atrações deprimentes:
- As pessoas sonham trabalhar nas mandíbulas do verme. Você
pode vê-las ao longo destas terras. São, por exemplo, fornos high-
tech ou primitivos queimando mata. Esta mata é retirada por
motoserras e tratores da volta das estradas. Você vê também as
enormes áreas de plantio e pastagem que depois se instalam no
lugar. Note a quantidade enorme de fazendas aqui neste mapa.
Apresentou-nos um mapa dinâmico mostrando o que vem
acontecendo com a área. Vistos de cerca de trezentos quilômetros
afastado da crosta terrestre, parece realmente que vários vermes
estão devorando a região. O padrão que deixam é de áreas raspadas
se alastrando perpendiculares a infinitas estradas. Vêem-se também
imagens diurnas de massas de fumaça, e noturnas com pontos
laranja e vermelho ardendo nos mesmos lugares.
- Meu amigo, o massacre do sul da Bahia é um massacre visível.
Este aqui, que é várias vezes mais potente, não aparece porque
ainda é silencioso. Mas creio que não o será por muito tempo. Pelo
menos é para isto que trabalho.
Ele descreveu-nos por horas e horas coisas que estão abaixo da
superfície dos acontecimentos, falando da história, dos padrões e do
que motiva todo esse processo, tudo de uma maneira muito
dinâmica. Disse-nos, ainda, que é difícil trabalhar honestamente com

253
esta visão, pois a imprensa e as pessoas em geral não estão
interessadas em entender profundamente as coisas. Elas apenas
querem consumir manchetes e tirar conclusões definitivas e
apressadas. Ninguém tem tempo nem disposição para levantar o
tapete. Correm o risco de enxergar seu próprio rabo sob ele.
De repente, olhei para o lado e vi Jaxy chorando. Ele estava com
o olhar vidrado para fora da janela, a cabeça encostada no vidro e
com as lágrimas rolando pelo rosto e peito.
- O que foi, Jaxy? O que aconteceu? – perguntei, surpreso com a
sua expressão.
- Você não imagina, Pyá, o que significam estas manchas na
terra. Com elas, desaparecem milhões de vidas. E com a morte de
toda esta vida, vão-se meus irmãos...
Jaxy olhava o mapa e acariciava cada mancha esbranquiçada de
terreno. Aquelas áreas eram como que manchas na pele de um ser
vivo, como se fossem o câncer. Sob seus dedos imaginava milhões de
plantas, dezenas de milhares de animais e incontáveis vidas
humanas que acabavam aniquiladas, expulsas ou reduzidas. Jaxy
pensava nos irmãos índios, na sua sabedoria, seu patrimônio, sua
riqueza, seus sistemas de vida, sua cultura, seus cantos, suas
alegrias, sua feliz ingenuidade. Tudo isto destruído pela completa
falta de coração e consciência de um gigante verme onipotente.
Senti sua tragédia pessoal mais minha do que nunca. Sentia-me
irmão dos irmãos de Jaxy. Enxerguei-me segurando nos braços estes
irmãos. Vi Avaeté nos meus braços. E abracei Jaxy para nos
confortarmos.

2
Marabá é uma cidade de 200.000 habitantes que, meio século
atrás, não passava de 12.000. O povo é de uma alegre morenice. Não
se importa muito com elucubrações a respeito do fim da floresta.
Apenas vive. Fomos até a praia para esticar as pernas daquela
viagem que parecia sem fim. Dormimos onde conseguimos e
zarpamos na manhã seguinte para a estrada 230, a Transamazônica.
Nossa carona era de uma 4 x 4 antiga. É uma estrada medonha.
De terra e com pontes de madeira, tem trechos intransitáveis por

254
quilômetros devido à lama. Nossa carona nesta viagem era feita de
um viajante acompanhado do seu irmão. Prometeu que seriam vários
dias de travessia. Perguntei se tinha notícias dos acontecimentos das
últimas semanas. Disse que pouca coisa.
- Já vivo rodeado de informações demais. Não tenho disposição
para jornais.
Informou que ele e o irmão eram investigadores particulares,
mas que no momento estavam desfrutando suas férias. Falei-lhes um
pouco sobre o que estava acontecendo e o que testemunhamos em
São Luís, mais em conta de manter uma conversa do que de fazer um
relatório detalhado dos acontecimentos. Informei que talvez
houvesse movimentações na direção da Amazônia, de modo que
poderia haver caminhantes pela estrada.
- Duvido, amigo – retrucou o investigador. Esta estrada é muito
visível. Se seus amigos de marcha são espertos, estarão se
deslocando dispersos para algum ponto de encontro. Deslocar-se por
aqui não é uma boa idéia para um movimento desse tipo. A estrada
estaria toda bloqueada por quem não iria gostar da coisa.
Não tardamos em notar isto. Poucos quilômetros antes de uma
cidade chamada Parajá, um grupo de homens armados parou nossa
caminhonete. Tivemos que fazer com que Jaxy se escondesse para
não levantar suspeitas. Foram alguns momentos de respiração presa
e susto. Os homens, por fim, acreditaram que éramos pescadores,
por todo o material que havia no carro, e deixaram-nos seguir
viagem.
Comecei a achar aquilo um pouco assustador e comecei a ficar
preocupado com nossas andanças por estas terras. O investigador
alertou:
- Amigo, esta é uma terra sem lei. Ou melhor, as leis daqui são
diferentes. Fique atento.
Conversamos um pouco sobre a realidade daquele lugar. Os
irmãos nos informaram um pouco do que ocorre:
- Os primeiros a se apossar da terra são os madeireiros. Eles
abrem estradas floresta adentro e extraem as árvores mais
valorizadas. Esta é a atividade de maior ganho, empregando muita
gente. Isto acontece durante cerca de cinco anos. Depois disso, a
mata, que já não possui mais madeira valiosa, mas que ainda é

255
densa, é repassada a fazendeiros, muitos com ligações com os
próprios madeireiros. Os fazendeiros, então, põem fogo na floresta
para plantar soja ou pasto para o gado. O número de trabalhadores
diminui. Enquanto isso, providenciam-se títulos de terras
clandestinos. Ãhn? Você perguntou sobre o que acontece com os
animais? Pouca gente sabe. Acho que evaporam...
- É sempre assim que acontece? – perguntei, lembrando das
imagens de gigantescos tratores derrubando a floresta.
- Não. Às vezes eles não têm tempo de retirar a madeira mais
valiosa. Tocam fogo direto. Outras vezes, a derrubada é feita por
imensos bulldozers que, aos pares e com uma corrente entre eles,
derrubam a floresta. Depois, fogo.
Rumávamos por aquela estrada desoladora escutando rádio e
conversando. Tempos depois, comecei a sentir uma secura intensa e
irritação na garganta. Imaginei que era por causa do tempo ou do
diesel do motor, mas descobri que era outro o motivo:
- A zona de queimadas está bastante próxima da estrada neste
trecho, amigos. Veja, há até uma bruma.
Era verdade. O sol estava mais fraco e tinha uma luminosidade
laranja-esbranquiçada. Os irmãos ficaram um pouco surpresos com
esta proximidade da fumaça. Disseram que a expansão da zona
agrícola há muito já havia adentrado perpendicularmente à estrada.
Pouca floresta restava às margens da rodovia. Perguntaram se
gostaríamos de testemunhar a queimada. Dissemos que sim.
Pouco adiante, dobramos à esquerda e entramos em uma
estrada precária. Rodamos cerca de uma hora até enxergar alguns
focos. De longe, parece fumaça de cogumelos atômicos curvados
pelo vento. De perto, enxergamos a floresta ardendo rapidamente,
mais rápido que imaginava. Árvores de várias alturas iam-se
consumindo.
Jaxy, assim como eu, nunca havia testemunhado de perto uma
queima de floresta tão gigantesca. Estava transtornado. A fuligem
colava nos nossos rostos pelo suor, transfigurando-os. De repente,
Jaxy apontou para uma árvore em chamas, com quase trinta metros
de altura. Era uma castanheira agonizante. É uma espécie símbolo da
região e sagrada para muitos povos. Jaxy, em lágrimas pretas,
apenas lamentou:

256
- Meus irmãos estão ardendo no interior daquela castanheira...

3
Nesta viagem longa e morosa, temos tempo de sobra para
remoer e rememorar a vida. Desde que Avaeté me convidou para
esta aventura, eu experimentei muitas formas diferentes de olhar
para as coisas e muitas maneiras diferentes de sentir. Várias
experiências de vida me foram proporcionadas pelo meu amigo.
Agora, eu estou aqui, vivendo uma nova experiência: a violência a
acontecer diante dos meus olhos.
Você tem sentimentos controversos. Sente, por um lado, a
impotência de reagir a isto. Você deseja que as coisas sejam mais
justas, mas não tem os instrumentos para tal. Sente que a injustiça
irá adiante. E fica com raiva por isto.
De outro lado, seu julgamento apressado faz você acreditar que
tenha que se dedicar a alguma causa estabelecida. Algum “-ismo”
que o una a outros que também estejam inconformados.
Ambientalismo, socialismo, empreendedorismo, estadismo,
liberalismo, mecanicismo, cientificismo, racionalismo, biologismo.
“Ideologia-a-a, eu quero uma para viver...”
Escolhemos para passar aquela noite à beira de um dos rios da
região. Armamos acampamento e preparamos fogueira.
Estabelecemo-nos junto à curva do rio. Os investigadores puseram-se
a pescar. Eu e Jaxy fomos fazer reconhecimento da área.
Como um guerreiro sem armas veria a situação? O que faria? O
que faria Avaeté? Quase consigo tocar seu pensamento: “Um
guerreiro sem armas reconhece o conflito e se reconhece nele.
Depois, transcende-o.”
Encontramos um local alto para contemplar a região. O rio
onde estamos acampados serpenteia por quilômetros. Suas águas
são escuras. Correm, ainda em paz, para o norte.
- Jaxy, um guerreiro sem armas luta contra seu desejo de
vingança, contra sua vontade de fazer justiça unilateral. Um guerreiro
sem armas reconhece as forças que existem no mundo e reconhece
seu próprio caminho.

257
- O que você quer dizer com isso, Pyá? Fala sobre o que
deveríamos fazer a respeito destes massacres diários?
- Sim, esta violência que temos testemunhado. A gente se
sente responsável. Acha que precisa fazer alguma coisa. Ao mesmo
tempo, se vê impotente para mediar ou julgar o conflito.
As águas daquele rio vão se engrossando ao longo do seu
caminho. Encontram-se com outros rios e riachos. Muitos de águas
barrentas que, ao encontrarem-se, correm lado a lado até
entrelaçarem-se, o turvo com o barrento, trazendo à vista um novo
tom.
- Talvez não seja isso que deva ser feito, Pyá – alertou Jaxy.
- Você tem razão. A gente acha que tem que agir bem aqui, no
local do conflito. Mas isto tudo são apenas os sintomas de muitas
coisas que estão sob a superfície.
- Temos que achar nosso caminho neste mundo, não é mesmo
Pyá?
- É, precisamos fazer isto. Nosso lugar, meu, seu, de Avaeté,
não é aqui, no fervor dos acontecimentos, mas nas suas raízes. Nossa
responsabilidade deve ser uma responsabilidade esclarecida.
Aquelas águas caudalosas, que vão se engrossando pelo
encontro de outras águas, vai finalmente encontrar o mar. O mar
verde as receberá e se entrelaçarão. Na parte de cima, ondas de
poder poderão até derrubar árvores. A estrondosa onda, a pororoca,
há milênios vive das forças do fluxo das águas.
- Compreendendo a natureza profunda deste mundo, Jaxy,
compreenderemos que o mundo saberá cuidar de si mesmo, sem a
necessidade de o controlarmos. Nosso papel é cooperando,
influenciando e agindo de maneira não-violenta em outros níveis.
- Meus antepassados há séculos sonham com a pacificação dos
brancos – lamentou Jaxy.
- Essa pacificação só ocorrerá com esclarecimento. O
esclarecimento que liberta e pacifica.
Ficamos ali por horas a conversar sobre o mundo e sobre
reconhecer o próprio papel nele. Perdemos totalmente a noção do
tempo. Não sentimos o cair da noite nem mesmo a picada dos
mosquitos. Quando nos demos conta, era escuro e estávamos com a

258
pele completamente empipocada. Retornamos ao acampamento para
nos abrigar ao fogo e comer peixe.
No dia seguinte, partimos novamente por aquela estrada
poeirenta, barrenta e fumacenta. Estivemos nela por horas e dias.
Dias que pareciam desoladoramente extensos. Às vezes sentia enjôo,
sem saber se era pelo cheiro de diesel e outros “cheiros” da estrada,
ou se eu estava de alguma forma debilitado. Precisava descansar em
uma cama abrigada para compensar os vários dias nos bancos duros
daquele veículo.
Alegramo-nos um pouco quando avistamos as placas com a
distância até Itaituba informando menos de duzentos quilômetros
para o destino. De Itaituba pretendíamos tomar um barco e subir os
rios Tapajós, Amazonas e Trombetas, até chegar à localidade de
Porteira.
Ao chegar a Itaituba, nos despedimos daqueles irmãos que nos
ajudaram a chegar ali. Desejaram-nos sorte e, antes que partíssemos,
recomendaram:
- Sabemos que pretendem ir até a região do Roraima. Tenham
cuidado. A coisa aqui, no sul e sudeste da Amazônia, está
complicada. Mas lá, no norte, passou a ser um lugar pior. Há
municípios que chegam a ter mais de 2.000 focos de queimadas por
ano. Mais de metade da floresta já se foi. E a violência pode ser mais
cruel. Cuidem-se e boa viagem, amigos.
- Obrigado pelo conselho. Boa viagem, investigadores. Sigam
em paz – dissemos, despedindo-nos.

4
Nossa passagem por Itaituba durou uma tarde e uma noite. O
suficiente para recuperação daquela jornada transamazônica.
Jantamos num boteco próximo ao cais e dormimos numa paragem
para viajantes. A cama foi um presente. Apesar de feita de palha, foi
maravilhosa para recuperação das costas. No dia seguinte, partiria a
chalana para Santarém, através do Rio Tapajós.
Chegamos ao cais do porto bem antes da partida da condução
fluvial. O barco possuía uma área central com redes e bancos, uma
área superior apenas com bancos e uma área inferior com

259
instalações precárias. Famílias numerosas se deslocavam por aquele
meio de transporte, descendo o Tapajós.
Pelo curso do rio havia ilhas, igarapés, bancos de areia e praias.
Dezenas de comunidades ribeirinhas se destacavam na paisagem,
tanto de dia como de noite. Nomes pitorescos como Lago do Limão,
Brasília Legal, Sumaúma e até Fordlândia desfilavam pela beira do
rio.
Você acompanha tudo isto deitado numa rede, sendo embalado
pelo balançar da chalana. Seguido chove. É uma chuva por vezes
intensa, mas tranqüila.
Conversava com Jaxy sobre o ir e vir daquela gente cabocla
através do rio. Toda a Amazônia se desloca desta maneira. Alguns
poucos voam. Outros poucos se aventuram pelas estradas. E por falar
nisso, por quais estradas andaria Avaeté? Coloquei a mão dentro da
minha mochila para certificar-me de que o tesouro que Avaeté me
confiou ainda estava lá. Sim. Estava lá. Lembrar de Avaeté e da
possibilidade de ele estar passando por dificuldades me trouxe um
gosto amargo na boca. Ou seria azedo? Não, acho que o azedume da
minha boca é de enjôo. “Uh, acho que estou passando mal, Jaxy.”
Comecei a visitar as bordas do barco com maior freqüência.
O pôr e o nascer do sol no rio são lindos. Um roxo-alaranjado
colore o céu. Mas eu não estava em condições de apreciá-los. Nem
chá parava no estômago. Tudo era devolvido ao rio. Na medida em
que avançávamos por aquelas águas, meu estado foi piorando e
passei a sentir calafrios, tremores e dores de cabeça. A febre subiu.
Mas, depois de algum tempo, baixou.
O fato é que aqueles sintomas iam e vinham. Às vezes parecia
bem. Outras vezes, eles voltavam. Algumas pessoas disseram que
poderia ser malária. Imaginei o mesmo, porque, acompanhado disto,
havia fraqueza, aspectos de desidratação e pressão baixa.
Chegamos a Santarém e a primeira providência foi buscar um
posto médico. O diagnóstico parecia inequívoco. O doutor orientou-
me para o uso de um determinado medicamento que deveria ser
administrado sem interrupção. Prontifiquei-me a seguir suas
orientações e seguimos novamente para o cais. Precisávamos
alcançar Porteiras, a última posição navegável subindo o rio
Trombetas.

260
Deixamos a movimentada Santarém encontrando o grande Rio
Amazonas. Depois, saímos para o Trombetas para chegar à
localidade de destino, o que implicaria ainda em mais duzentos e
sessenta quilômetros.
Se o Amazonas é gigante, o leito do Rio Trombetas é, por sua
vez, mais estreito e dividido por várias ilhas finas e compridas. Vários
barcos enormes de carga são vistos navegando por aqui,
principalmente portando minério.
Navegando por este rio, tive a impressão de me sentir melhor.
Mas foi uma impressão passageira. De súbito, um vento oeste fez a
chalana balançar forte e isto me enjoou novamente. Voltei a ter
sintomas fortes da enfermidade. Comecei a me sentir fraco. Jaxy
lembrou os sinais da natureza:
- Não gosto disso, Pyá. O vento está soprando na direção oeste,
do lado que o sol se põe. É a direção da extinção, da partida, do
perecimento. É o sinal da morte.
- Não se preocupe, Jaxy. Eu sobreviverei. Creio que a medicação
ainda não fez efeito completo.
- Eu não acredito por completo na medicina jurua. Você precisa
ser examinado por um xamã.
- Eu sei, Jaxy. Mas precisamos chegar logo ao Monte Roraima.
Assim que encontrarmos Avaeté, poderemos ir ver um xamã.
- Está bem. Mas que fique registrado que eu o avisei.
Ele ficou um pouco preocupado com minha postergação. Pensou
um pouco, olhou para o rio e disse:
- Pyá, você precisa se conservar e ajudar os outros a conservá-
lo. Hoje minha vida depende da sua e talvez a sua da minha. Nosso
futuro depende de deixar-nos cuidar uns dos outros. Eu gostava e
admirava demais Avaeté, e isto ainda acontece, mas nestes dias
todos encontrei um novo benfeitor. Este benfeitor é você, Pyá. Você é
um tremendo amigo.
Fui tomado de surpresa por aquela declaração. Sentia-me
responsável por Jaxy e procurava ser um bom companheiro de
viagem. Mas só agora começava a compreender que também já
vivemos algumas aventuras juntos e, em todas elas, um dependia do
outro. Começamos a ser mais do que simples companheiros de

261
viagem. Éramos amigos, como se fôssemos irmãos, quase que como
pai e filho.
Abracei forte Jaxy e disse:
- Nós vamos achar o caminho que nos levará de volta a Avaeté.
Seguiremos juntos. E quando isto acontecer, seremos uma família.
Uma família que visita seus outros muitos familiares, em aventuras
por este mundo afora.

5
Porteira é como a porta de entrada para um destes muitos fins-
de-mundo que existem. Dali, o negócio era pegar carona em algum
dos raros caminhões que seguem pela 163 e Perimetral Norte. A
estrada é praticamente uma trilha perdida na floresta, que ruma para
o norte ao longo do Trombetas e faz uma curva acentuada para
oeste, cruzando o rio. Dali, asfalto só muitos quilômetros adiante,
depois de Caroebe. A viagem foi difícil, tanto pela estrada, quanto
pela solidão e medo que o sentimento de isolamento passa, assim
como pelos acessos cada vez mais freqüentes de fraqueza e dores
que a doença trazia. Sentia que estava numa corrida contra o tempo,
pois precisava chegar ao Monte Roraima o mais breve possível. Tinha
certeza que a presença de Avaeté iria me fazer melhorar.
Às vezes, sofria um “apagão”. Não sei se desmaiava ou dormia.
A verdade é que a viagem foi ficando entrecortada. Às vezes tinha
razoável consciência do transitar, da estrada, dos acontecimentos.
Outras vezes, não sabia se o que via era sonho, realidade ou uma
mistura tenebrosa de ambos.
Disse a Jaxy que precisávamos chegar primeiro a Boa Vista. De
lá, precisaríamos informações sobre alguma caravana de viajantes
que chegasse ao Roraima. Sabia que teríamos que caminhar um bom
trecho a pé, e isto me preocupava, pois não sabia se teria condições
para fazê-lo.
Três dias depois de passar por Porteira, chegamos a Boa Vista.
Não foi difícil localizar um ponto de informações sobre expedições ao
nosso destino. Além disso, tivemos a sorte de nos unir a uma
expedição que partiria em dois dias. Jaxy providenciou algumas
provisões enquanto eu recebia algum tratamento no hospital. O
diagnóstico continuava sendo o de malária e fui ordenado a fazer

262
repouso. Fingi que obedeceria e saí de lá com mais uma carga de
químicos.
Na hora e local indicados, encontramos o pequeno grupo de
viajantes que incluía tipos diversos. Nosso deslocamento incluía
acesso a algumas aldeias até a aldeia de Paraytepui. De lá, os nativos
Pemón nos ajudariam na rampa de acesso ao monte.
Consegui me manter relativamente altivo, para que o grupo não
percebesse sinais de que estivesse enfermo. Não gostaria de ser
deixado para trás àquelas alturas. Precisava, e muito, encontrar
Avaeté.
A trilha é de savana, com um terreno irregular que castiga o
viajante. A caminhada até a base do morro seria de vinte e dois
quilômetros, exigindo dois dias até lá. Depois, até o cume, mais dez
horas.
Minha primeira queda aconteceu quando já havia se passado
seis horas de caminhada. Os companheiros de viagem perguntaram
se havia algo errado. Eu disse que havia tido uma queda de pressão
pelo calor e que não se preocupassem. Os nativos Pemón que nos
acompanhavam permaneceram quietos, com olhar desconfiado. Acho
que tinham uma noção mais concreta do que se passava, mas não
interferiram.
A paisagem é linda, apesar da camisa enrolada sobre a cabeça
que usava como proteção, impedindo uma visão mais panorâmica. Às
vezes tinha alguns calafrios, mas procurava me manter impassível. A
caminhada à tarde é mais dura e começava a sentir uma fraqueza
crescente que dificultava até contornar uma pedra ou árvore
retorcida pelo caminho.
Voltei a cair e praticamente perder a consciência por alguns
segundos. Jaxy me segurou para que não me espatifasse no chão.
Uma fratura não era aconselhável, pelas dificuldades do terreno e por
impedir-nos de chegar ao cume.
Tentei me recuperar o mais brevemente possível para não
atrapalhar a caminhada. Um dos viajantes perguntou por que estava
determinado a chegar ao cume naquelas condições. Para economizar
energia, apenas respondi:
- Vou ao encontro do meu amigo índio.

263
- Você marcou um encontro no topo do Roraima? Por que não
escolheu um local de mais fácil acesso?
- Ele estará lá. Aquele é o lugar – resumi, sem maiores
explicações.
Mais alguns quilômetros de caminhada e paramos para montar
acampamento. Armaram-se as barracas e preparou-se o fogo.
Enquanto a madeira ardia, eu procurava aconchego e calor. Então,
logo após o jantar, o líder da expedição anunciou:
- Vou lhes contar uma lenda sobre este local. Aqui, no Monte
Roraima, tem seu lugar a morada de Macunaíma. Ela começa assim:
“O sol e a lua eram dois seres apaixonados, mas que nunca
conseguiam se encontrar. Milhões de anos viveram desta forma.
Sempre a iluminar, dia e noite, os mais recônditos lugares da terra.
Dentre estes lugares, uma montanha enorme e azul. Sobre ela, vales
e um lago de água cristalina, que escondiam os mistérios da
natureza.”
Uma lua era visível por trás das árvores. Todos ouviam em
silêncio e atentos.
“Certo dia o sol atrasou-se em sua trajetória e um encontro em forma
de eclipse, tão ansiosamente aguardado, ocorreu. Os raios de ambos
entrelaçaram-se e refletiram no misterioso lago. Deste encontro
sobrenatural nasceu o guerreiro Macunaíma.
“Macunaíma era um garoto hábil. Nascido no Monte Roraima, possuía
magias, cresceu forte e tornou-se bravo. Era justiceiro, mas não
usava armas.
“Pois bem,” – prosseguiu o líder – “eis que próximo à montanha havia
uma árvore diferente. A Árvore de Todos os Frutos. Dela nasciam
todas as frutas tropicais. Mas ninguém estava autorizado a apanhá-
las. Somente Macunaíma colhia os frutos, dividindo-os entre todos.
“Porém, houve dia em que a ambição tomou conta dos homens da
tribo. Acabaram mexendo na árvore, arrancando os frutos,
quebrando os galhos, extinguindo folhas e cascas. As sementes,
tomaram todas para plantar, já que queriam eles próprios ter suas
árvores e eles mesmos colherem os próprios frutos.

264
“Acabou que a árvore sagrada perdeu a sua magia. Macunaíma se
enfureceu. Como forma de justiça, queimou a mata e petrificou a
árvore. Da imensa floresta verde, só restaram cinzas.
“E então, até hoje, no Monte Roraima, existe a árvore petrificada
como símbolo desta história. E Macunaíma repousa lá – no topo do
monte.”
Todos se regozijaram com aquela história. Falavam do que ela
representava nos dias atuais. Eu fiquei lembrando as muitas
histórias, lendas e mitos de muitos de nós, povos existentes sobre a
face deste planeta, em que a justiça natural volta-se contra aqueles
usurpam a terra. A expulsão do éden.
Um dos viajantes comentou:
- Acho que esse amigo com seu pequeno companheiro índio
estão à procura de Macunaíma – falou em tom de humor, no que os
demais sorriram.
Eu reservei-me o direito de sentir saudades do meu amigo
Avaeté e ficar em silêncio. Puxei minha coberta e procurei sonhar
com o monte azul.

265
Avaeté

Quinze

266
1
A noite mal dormida definitivamente não foi azul. Acordei-me de
manhã com dor de cabeça intensa, um pouco de febre e muitas dores
pelo corpo. Fiquei imaginando se conseguiria até mesmo levantar.
Não podia haver alternativa. Levantei num impulso e quase caí tonto.
Jaxy, já de pé, perguntou-me se eu estava bem. Respondi em voz
baixa o que tinha que ser respondido:
- Preciso estar bem. Ainda temos dois dias até chegar ao cume.
- Você precisa agüentar firme, Pyá. Parece muito abatido. A
expedição poderá deixá-lo para trás. E, sem você, eu não
prosseguirei.
- Cada minuto, cada hora, uma batalha. Vamos em frente.
Comemos algumas frutas, chá e biscoitos para partir para mais
um dia de caminhada. Um dos companheiros Pemón chegou próximo
e falou:
- Você não tem malária, amigo. Os doutores brancos sempre
confundem. O que você tem é o “mal de manso”.
- “Mal de manso?” Como assim? Então a medicação que estou
tomando não serve?
- Não amigo. De nada. Precisa consultar um xamã. Se tivesse
dito, teríamos conversado com ele na aldeia. Agora é tarde. Rezemos
para haver um no topo. Senão você estará em perigo.
Apanhei os químicos que me acompanhavam e joguei-os no
fundo da mochila. Droga! Não estavam servindo de nada. Eu só
contava com meu sistema imunológico.
Preparamo-nos para a partida em mais um dia pela trilha em
savana. O calor era insuportável. Havia trégua apenas quando
surgiam nuvens, muito comuns por estas bandas. Apesar das
dificuldades da caminhada durante a manhã, consegui passar
incólume. Mas à tarde a coisa se tornou mais difícil.
Partirmos logo após um descanso do almoço. Havia, porém, um
sol de rachar. Comecei a perder a consciência apenas uma hora após
o reinício da caminhada. De uma hora para outra, estava estatelado
no chão. Só descobri isto quando dois ou três companheiros de
expedição lançaram-me água de seus cantis. Perguntei o que havia

267
acontecido e onde estávamos. Suas expressões não foram
animadoras:
- Esse homem não poderá prosseguir. Não terá forças para subir
ao cume. Atrasará o grupo. Porá em risco os demais. Ele terá que
regressar até a aldeia.
Pulei bravo com aquela decisão tomada à revelia da minha
vontade:
- De jeito nenhum. Preciso chegar ao cume. Alguém está à
minha espera lá em cima.
- Mas você não tem condições. Está enfermo. Tem que ser
tratado.
- Estarei bem. Podem seguir adiante. Apenas indiquem-me o
caminho. Não desejo atrasá-los. Seguirei logo adiante.
- Isso não é possível. Todos devem ir juntos.
Enquanto este diálogo prosseguia, os três membros nativos da
expedição conversaram entre si. Um deles falou:
- A expedição não necessita de três guias índios. Eu seguirei
com o jovem branco e seu pequeno amigo índio. Os demais seguirão
à frente.
Aliviou-me aquela decisão. O grupo, ansioso, prosseguiu logo a
seguir. Demoramo-nos cerca de meia hora para que eu pudesse me
recuperar. Depois nós prosseguimos, em passo lento. Agora éramos
apenas eu, Jaxy e o companheiro Pemón.
Uma pena estar indisposto para apreciar a paisagem. A única
vista que apreciava era a trilha e meus passos sobre ela. Jaxy falava
de formações impressionantes. Pedras “do segredo” equilibradas
pelo desgaste erosivo. Camelos. Olhei à volta e era como se fossem
alucinações. Pareciam seres espaciais. Robôs saídos da guerra nas
estrelas.
Sentia que minha vista não estava cooperando também.
Estava começando a ter perda de visão. O que enxergava já não
possuía mais o mesmo contraste e nem as mesmas cores. Pedi a Jaxy
que encontrasse um bastão comprido. Ele passou a segurá-lo por
uma ponta e eu pela outra. Assim, Jaxy poderia guiar-me pela trilha.

268
Em determinado momento, os dois companheiros de
caminhada avistaram a chapada grande que formava o Monte
Roraima. Descreveram-no como de uma beleza sem igual. O sol
punha-se a oeste, sob as nuvens, emprestando ao azul do monte
tonalidades brasis. Minha visão de longe era péssima. Comecei a ter
que imaginar o que os amigos descreviam, como os vários montes
com aspectos sobrenaturais à volta, os chamados tepuis.
Àquelas alturas, o grupo já estava se preparando para
acampar. Depois disso, ainda seguimos por mais três horas de
caminhada até alcançar o acampamento. Nossa chegada provocou
certo silêncio. Eu estava exausto. Não houve palavra proferida. Eu
apenas tomei uma xícara de caldo quente. Logo a seguir, deitei-me,
sentindo muito frio.

2
Depois de uma noite muito entrecortada de sono, acabei
acordando um pouco mais tarde. Mal distinguia os vultos, mas notei
que só havia dois. Àquela hora, todos já haviam partido para o
ataque ao cume. O companheiro Pemón esteve ausente nas
primeiras horas da manhã. Estava procurando chás. Quando
regressou, preparou uma infusão com algumas ervas e ofereceu-me:
- Tome. Essas ervas não o curarão da enfermidade nem da falta
de visão. Mas o ajudarão a manter-se forte para a subida. Beba tudo.
Fiz o que recomendou. Logo após, apressamo-nos em levantar
acampamento e seguir adiante. Começaria a subida da rampa de
acesso final, curta e íngreme. Pelo caminho há muitas pedras, mas,
no geral, é uma trilha segura.
O monte é aplainado no topo, formando uma mesa de cerca de
quinze por cinco quilômetros. De longe, avistam-se seus paredões
verticais de arenito com mais de quinhentos metros de altura.
Em condições normais, a subida ao cume levaria cerca de dez
horas. Mas era provável que levássemos até quinze. Tive que ser
orientado em todo passo ou pequena escalada necessária. Jaxy ia
adiante, orientando-me. O índio Pemón atrás, cuidando para que eu
não caísse.

269
Uma fraqueza intensa me acossava. Quando me sentia tonto,
precisava sentar, descansar e tomar água. Isto ocorria
freqüentemente. Procurava buscar forças dos lugares mais recônditos
do meu corpo. Com pouca visão, ia mergulhando, aos poucos, numa
escuridão cada vez mais profunda.
“Não posso desistir. Não posso desistir. Preciso chegar ao fim.
Preciso chegar ao fim.” De repente, escorreguei e caí para frente,
batendo a testa em uma rocha. Perdi a consciência novamente por
alguns segundos. Quando voltei a mim, estava sendo erguido por
meus companheiros de viagem, com o rosto ensangüentado.
“Droga!”
Meus companheiros providenciaram uma bandagem com o
tecido de uma camiseta para estancar o sangramento. O local
começou a inchar, mas não havia nada frio que pudesse ser colocado
sobre o ferimento. Tratamos de prosseguir para evitar uma escalada
noturna ou a necessidade de passar a noite na trilha.
Passaram-se os minutos e as horas em um sofrimento físico
extremo. Procurava me concentrar e meditar, sorvendo aquelas
dores como se fossem algo importante que meu corpo precisava
aprender. Às vezes, tornavam-se quase insuportáveis. Mas procurava
respirar e deixar tudo aquilo ter sua fluência. Concentrava-me na
imagem de Avaeté para me dar forças.
Algumas horas já haviam passado desde que Jaxy anunciara o
final da tarde. Começava a fazer frio e ainda faltavam cerca de duas
horas até o topo. Prosseguimos sob um vento forte e gelado ainda
por aquele tempo, até que o companheiro Pemón avistou fogueiras:
- Vejam! Estamos próximos. As fogueiras dos acampamentos
estão começando a ficar visíveis. Vamos!
Seguimos com mais ímpeto, mas havia ainda a perigosa
travessia de uma cachoeira. Teríamos que desligar as lanternas para
fazê-la, o que tornava as coisas ainda mais complicadas. Ingressamos
na sua travessia, que tinha que ser feita vagarosa e cuidadosamente.
Ficamos encharcados de uma água fria, com efeitos intensificados
pelo vento. A exaustão era enorme. Meus companheiros e eu
estávamos com fome e extenuados, mas não poderia haver vacilo
neste ponto. Escorreguei sobre uma pedra com limo e tive que ser
seguro pelos aliados para não ser tragado pela correnteza. Depois de

270
momentos aterrorizantes, conseguimos atravessar completamente o
obstáculo. Faltariam, então, poucos metros até o plano superior.
Chegamos, finalmente, ao cume, cerca de dezesseis horas
depois da partida. Abraçamo-nos naquela escuridão, sem poder
apreciar a paisagem. Depois de nos congraçarmos, seguimos pelo
planalto até localizar nosso acampamento.
Todos já estavam dormindo. Sentamos junto à fogueira para que
nos secássemos e comemos os restos da comida do jantar. Depois
disso, com dores extremas no corpo, fomos descansar.

3
Pelas fogueiras da noite anterior, podiam-se notar sobre o
planalto do Monte Roraima mais de quinze acampamentos. Tínhamos
que ir a cada um deles verificar se Avaeté estaria em algum deles, ou
se alguém sabia do seu paradeiro. Enquanto subíamos o morro,
fizemos as contas dos dias e imaginamos que, por certo, Avaeté
estaria no topo naquele momento. Não sabíamos se ele estava bem
ou não. Se estivesse, certamente nos encontraria antes que o
encontrássemos. Mas ele poderia estar ferido ou com alguma
enfermidade. Por isso, era preciso sair à sua procura.
Saímos eu e Jaxy para uma varredura aos acampamentos. Jaxy
ia à frente, guiando, e eu atrás, tateando o solo com um cajado. Cada
um dos acampamentos possuía entre três e vinte pessoas.
Na nossa chegada ao primeiro dos acampamentos,
perguntamos pela presença de um índio Guarani maduro.
Descrevemos seus traços físicos e comportamentais, mas ninguém
sabia do paradeiro de tal pessoa. Agradecemos e seguimos então
adiante, fazendo o mesmo conjunto de descrições e perguntas a
respeito do paradeiro de Avaeté. A resposta também foi negativa.
Apesar das procedências diversas, ninguém tinha ouvido falar em tal
índio.
Passamos, assim, de acampamento em acampamento, sem
obter nenhuma pista. O relato mais próximo que obtivemos foi de
uma expedição exploratória da Amazônia, em que os viajantes
encontraram alguns grupos pequenos de participantes da marcha
que, expulsos da região do sul da Bahia, rumavam para a reserva
indígena Mundurucu.

271
Perguntei qual o motivo de tal deslocamento. Os viajantes nos
informaram que os grupos viajavam para locais onde havia novos
conflitos em potencial. No caso da reserva Mundurucu e de muitas
outras Amazônia afora, há conflitos entre os índios e mineradores,
estes últimos interessados na extração de minerais do subsolo das
reservas.
Agradecemos pelas informações e seguimos adiante.
Conversamos com vários grupos, de várias etnias. Havia pessoal da
América do Norte, da Europa, do extremo norte e oeste da América
do Sul. Em determinado momento, encontramos um grupo de feições
distintas da maioria dos viajantes ali presentes. Quem chamou a
atenção para o fato foi Jaxy:
- Pyá, você notou esse último grupo que contatamos? Pareciam
estranhos.
Era verdade. Jaxy descreveu-os como tendo aparência de
jagunços e, diferentemente da maioria dos demais, portavam armas.
Mostraram-se demasiadamente solícitos e atenciosos. Disseram que
nos ajudariam a procurar nosso amigo e que, se, por acaso, nós o
encontrássemos, deveríamos comunicar-lhes, pois, assim, poderiam
ficar mais tranqüilos e cessar sua própria busca.
Resolvemos nos afastar daquele grupo e continuar a busca mais
adiante. Passamos por um sem número de pessoas, sem deixar de
questionar ninguém pelo paradeiro de Avaeté. Já se aproximava o
final da tarde e começávamos a perder as esperanças de encontrá-lo.
Será que teve algum contratempo? Será que, por algum motivo, se
atrasara? Ou teria algo mais grave acontecido? Começamos a ficar
entristecidos com a perspectiva de não encontrar Avaeté.
Já não havia muito mais a fazer. Falei a Jaxy:
- Só nos resta uma coisa a fazer, Jaxy. Esperar um sinal de
Avaeté...
- Mas isso poderá levar tempo. Você não pode ficar muito tempo
aqui, Pyá. Precisa ser tratado.
- Eu sei, Jaxy. Mas precisamos esperar algum sinal. Eu tenho
uma forte intuição de que teremos, em breve, algum sinal sobre o
paradeiro de Avaeté.
- Mas como esse sinal vai nos encontrar?

272
- Eu tenho uma idéia. Está próximo do anoitecer. Venha. Guie-
me até o ponto mais a oeste do monte.
Seguimos na direção que eu indiquei, com Jaxy à frente
orientando sobre o caminho. Chegamos à beira do penhasco e
sentamo-nos próximo a uma das muitas quedas d’água do monte.
Ficamos ali, numa reentrância em forma de caverna, em silêncio,
como recomendam os deuses da montanha. Havia apenas o barulho
constante da cachoeira.
Fizemos fogo para nos aquecer. A temperatura havia caído
muito. Recostei-me para descansar. Estava exausto e à beira de cair
completamente em função da doença, mas precisava de algum sinal
do paradeiro de Avaeté.
Ficamos ali por algumas horas. O sol se pôs no oeste e a noite
chegou sem estrelas, pelo repentino nublar. Jaxy adormeceu sem
sentir. Estava exausto também. Cansado física e emocionalmente. Eu
ainda fiquei acordado, enxergando apenas brilhos e sombras
desfiguradas da fogueira.
De repente, uma inesperada voz me tirou do meu estado:
- O garoto já dormiu. Precisamos conversar, Pyá.
Uma voz completamente desconhecida. Mas era de alguém que
nos conhecia. Seria alguém com notícias de Avaeté? Ou alguém à sua
procura, desejando fazer algum mal?
- Quem é você? O que deseja? – questionei.
- Fique calmo. Sou um amigo. Você recebeu minha mensagem
em São Raimundo Nonato.
Recordei instantaneamente a mensagem e as imagens que
continha. Era o amigo de Avaeté que nos deu orientações sobre o
que fazer quando estávamos na serra da Capivara.
- Como é seu nome? Quem é você, realmente?
- Não posso me identificar. Acredite, terá que confiar em mim. É
para o seu e o meu bem. Estão à caça das pessoas que participaram
da marcha.
Aquele homem corria perigo, assim como Avaeté. Fiz menção de
perguntar a respeito dele, mas, antes disso, fiz uma avaliação em
retrospectiva do tom de sua voz. Passado o susto e com dificuldades

273
para enxergar, me restava ter uma atenção consciente aos sons. Seu
tom de voz era melancólico, taciturno e fúnebre. Aquilo parecia
terrível. Algo que talvez jamais desejasse ouvir estava por ser dito.
- Avaeté, o nosso grande amigo. Ele está morto, Pyá.
Aquele foi o soco no estômago mais potente que jamais levei na
vida. Coloquei a mão na boca com muita força para conter um grito
muito alto e grave, mas o grito pulou através dos meus olhos e caiu
sobre meu peito e chão, umedecendo-os:
- Nãããããããooooooo!!!

4
Isso não pode estar acontecendo. Avaeté não pode estar morto.
Avaeté jamais poderia morrer! Aquela voz fúnebre está mentindo!
Não pode ser verdade que meu amigo Avaeté, aquele me trouxe à
vida, tenha se ido!
- Pyá, vou falar uma vez só e não me peça mais detalhes. Muitos
líderes nativos foram assassinados no movimento. Foram caçados,
seqüestrados e torturados até a morte. Eu, pessoalmente, vi os
corpos de muitos deles. Avaeté conseguiu escapar e esconder-se na
mata. Antes que fizesse isso, pediu-me que enviasse aquela
mensagem a você. Eu estava em sua companhia a maior parte do
tempo, mas precisamos nos separar para poder escapar. Até que,
num dia, do meu esconderijo, já faminto e cansado por todos aqueles
dias escondido, vi os jagunços carregando um homem morto
completamente desfigurado. Não foi possível identificá-lo à distância,
mas um sinal inequívoco demonstrou ser aquele o meu companheiro
de lutas, o grande e bom Avaeté. Segurava seu cachimbo, o
petynguá, com seu símbolo característico.
Descreveu-me o símbolo. Reconheci-o imediatamente.
Desanimei completamente e chorei como uma criança que,
subitamente, fica órfã. O que eu vou fazer agora da minha vida?
Como poderei viver sem meu benfeitor, sem meu guia, sem meu
mestre? A voz deixou suas últimas palavras:
- Avaeté, antes de nossa separação, me pediu que, se algo
desse errado, eu devesse encontrá-los e fazer um último trabalho. É o
que eu estou aqui para fazer. Não se mexa, Pyá, nem fale mais

274
palavra. Tudo o que você precisava saber, já sabe. Jamais diga que
você me encontrou. Tudo o que você precisa saber agora é que
precisa ter fé, pois, do fundo desse poço, você se reerguerá
renovado.
A voz prosseguiu dizendo que realizaria um ritual que envolvia a
defumação de nossos corpos, meu e de Jaxy, e do local onde nos
encontrávamos. Pegou algumas ervas que carregava consigo,
amassou-as e iniciou uma reza em forma de canto, numa língua
completamente desconhecida. Pegou um pedaço de madeira em
brasa e colocou-o sobre uma pequena bandeja, que também
carregava consigo. Pôs as ervas sobre a brasa e uma fumaça branca
começou a subir até o teto da caverna.
Eu estava arrasado, segurando minhas entranhas, deitado em
posição fetal, com lágrimas constantes correndo até o chão da
caverna. O ser que nos trouxe os sinais fúnebres de Avaeté começou
a defumar a caverna com uma dança e uma cantoria. Passava aquela
bandeja pelas paredes da caverna. Quando achou suficiente, passou
a defumar o corpo de Jaxy, que continuava dormindo. Proferiu
algumas palavras, das quais algumas eu identifiquei:
- Sonhe, Jaxy, o sonho dos guias. Sonhe, pequena lua nova, o
sonho da luz-mestra. Sonhe, Jaxy, o sonho dos mestres dos caminhos
deste mundo. Sonhe com a grande roda mágica. Através dela, você
saberá para onde rumar...
A fumaça que tomava conta do ambiente vinha de ervas sobre a
bandeja e também do interior da fogueira. A fumaça que saía de
ambas era, de certa forma, entorpecedora. Estava sentindo
formigamento no corpo e uma leveza interior. Então a voz se
aproximou de mim e começou a defumar meu corpo. Cantava,
dançava e rezava. Por fim, proferiu algumas palavras novamente
compreensíveis:
- Sonhe, Pyá, o sonho da extinção dos conflitos. Sonhe, menino
Pyá, o sonho da transcendência, da sabedoria, da pacificação da
alma. Sonhe, coração de menino, o sonho do círculo eterno da
renovação...
E aquelas foram as últimas palavras que ouvi.

275
Avaeté

Dezesseis

276
1
Não sabia se estava acordado, sonhando ou vivendo em outro
mundo. Por entre um fio de consciência notava um teto com caibros
e forro feito de juta e outras fibras tramadas. Havia também tecidos
coloridos. Aquela visão, como se fosse um cone de consciência que
só notava aquilo, foi a primeira noção perceptível de existência.
Aos poucos, outros elementos foram se unindo àquelas imagens,
como algo em movimento à volta do cone. Com o movimento, via
nuvens brancas que subiam ao teto. Depois daquelas nuvens, havia
períodos de nada. Isto ocorria intercaladamente, por várias vezes, até
que observei que poderia sentir aquela fumaça como uma espécie de
ardência no meio do cone. Sentia, depois disso, uma espécie de
prolongar da sensação de ardência, não mais como uma ardência,
mas como um calor. Às vezes agradável, às vezes abrasantemente
desconfortável. Não sabia como controlar aquelas sensações. Sentia
junto com aquele queimor um pesar, um dolorido geral. O cone tinha
um corpo. Um corpo dolorido.
Uma a uma, após um tempo incomensurável, fui notando novas
fontes de sensações, como o ouvir do movimento em torno do cone e
uma sensação deliciosa e refrescante, quando algo que escorria para
dentro. Até que chegou o dia em que o movimento esperou uma
reação do corpo que via o cone:
- Como você se sente? – perguntou a voz.
A voz não tinha correspondente no cone. Ela estava além dele.
O mundo se escureceu sem mais movimento. Até que a voz voltou a
se pronunciar. “Como você se sente?”
Numa reação instintiva, toquei com as mãos meus quadris e
pernas e percebi uma sensação recíproca entre mãos e corpo. Notei
uma espécie de separação entre o “você” a que a voz se referia e a
própria voz. Então, também instintivamente, virei a cabeça na
direção de onde vinha a voz e vi alguém:
- Você consegue falar? – perguntou.
Acho que meus olhos responderam de alguma maneira, pois a
voz, que agora possuía um corpo, uma origem, resignou-se:
- Você vai ficar bom logo. É só ter paciência.

277
E o movimento deixou um vazio silencioso onde havia antes ali
um corpo com uma voz.

2
Os sentidos vinham se recuperando aos poucos, ao passo que
comecei a perceber que o movimento tinha uma ciclicidade. Ocorria
alternadamente, na intensidade do colorido do cone e também numa
espécie de escuridão parcial. Daquela ciclicidade, me dei conta do
tempo. Percebi a seqüência, o fluxo com o que o movimento se
desenrolava, a alternância entre prazer e dor. De que antes do prazer
houve a dor. E que antes da dor houve o prazer. E, aí, comecei a
lembrar de coisas.
Não sabia se eram lembranças vividas ou sonhadas. Talvez
ambas. Lembrei do sol nos meus olhos. Lembrei que ele piscava.
Piscava por causa de folhas e ramos de árvores que desfilavam ao
largo. Lembrava que também havia intercalação de sol e de uma
luminescência fraca. A lua. Sol e lua e sol e lua e o piscar sob a
sombra das árvores. Havia solavancos e um som quaternário que
vinha de sobre minha cabeça deitada. Depois dos vários ciclos de
solavancos, as árvores afastaram-se perpendicularmente ao caminho.
Os solavancos foram substituídos por um ondular constante.
Aquelas imagens começaram a se povoar, dentro da minha
cabeça, com sons, palavras e linguagens. Entoações de certa
concretude como “cavalo”, “carroça”, “estrada”, eram pronunciadas
na fase dos solavancos, e após, “canoa” e “rio”, na fase das
ondulações.
Com o tempo, recuperei a memória de sons ligados a aspectos
mais conceituais, como “ajuda”, “doença”, “direção” e “cura”. E
também sentimentais: “por favor”, “amigo”, “melhorar”,
“sofrimento”. E por fim, a lembrança dos nomes próprios que se
dispunham em seqüência: “Roraima”, “Amazonas”, “Içá”,
“Putumayo”, “Imbabura”, “Ibarra”, “La Esperanza”.
As memórias foram tomando um sentido de todo. A seqüência
dizia respeito ao movimento, à disposição no tempo e no espaço.
Havia um “onde” e um “quando”. O todo de que me apropriava era
que fora transportado de um local onde antes não havia consciência,
Roraima, em carroça, até um rio, o Amazonas, e depois através dele,

278
subindo em canoa até outros rios, como Içá e Putumayo. Adentramos
a Amazônia para “oeste”, noção razoavelmente complexa, até chegar
a uma região serrana, de cordilheiras, e depois até encontrar o
Vulcão Imbabura, a cidade de Ibarra e, por fim, o pueblo de La
Esperanza.
Ao longo do caminho, muitas vozes intercalavam-se. Duas delas
eram constantes. De quem seriam aquelas vozes? Notando o meu
relativo estado de consciência, a voz de outrora voltou a perguntar:
- Como você se sente?
Outra voz, fraca, respondeu em forma de questionamento:
- Onde estou?
E a voz de outrora, de um homem de chapéu marrom de abas
estreitas e óculos, respondeu:
- Este lugar é Pukyu Pamba, também conhecida como Hacienda
San Clemente.
- A que distância estamos do Vulcão Imbabura?
- Poucos quilômetros. Quando você estiver mais forte, irá até
aquela janela e admirará todo o seu poder ao amanhecer.
- Quem é você? - perguntei.
- Um amigo. Amigo de um amigo. Meu nome é Sumak Mashi. É o
nome pelo qual sou conhecido aqui no meu povo. Os Caranqui. Na
língua geral, chamam-me Don Laurencio.
- Don Laurencio. É um prazer...
- Pyá. Eu já sei. Você é muito bem vindo aqui. É um milagre que
tenha chegado vivo. Deve isto a seus amigos.
- Meus amigos?
- Sim. Jaxy Pyau e o outro, que não deixou nome. Esse já se foi.
Um novo vetor de consciência se abriu. Jaxy Pyau. Jaxy Pyau era
meu companheiro de viagem! Todo um passado se descortinou. Eu e
ele estávamos viajando!
Fui então lembrando que havia um “antes de Roraima”. Que,
antes de Roraima, havia uma viagem. Mas não era apenas viajando.
Era também procurando... Então, uma imagem visual intercalou e

279
desintercalou Jaxy e outra pessoa, como quando você envesga o
olhar... A outra pessoa era... Era Avaeté! E lembrei-me da triste
realidade. A realidade mais profundamente triste que poderia reaver.

3
Foram vários dias de tratamento. Eu recebia defumações,
infusões, caldos, cânticos e rezas. Tinha altos e baixos. Nos altos, eu
tinha a lembrança de Jaxy. Nos baixos, a de Avaeté. Nestes, eu me
sentia de tal forma exaurido da vontade de viver, com tal indiferença,
que não havia mais ligação, esperança ou destino. Apenas esperar o
definitivo apagar-se.
Mas era, por outro lado, uma ciclicidade de altos e baixos
paradoxalmente ascendentes. Os baixios passaram a não ser tão
fundos, e os altos, cada vez mais elevados. Sentia que poderia, em
um momento qualquer, praticamente tocar o cume do Imbabura. A
primeira vez que senti esta possibilidade foi com a visita de meu
jovem amigo:
- Pyá! Olhe para você. Está melhorando! Isto é esplêndido!
Falou isto subindo ofegante as escadas que terminavam no
lastro de minha cama. Achei estranho Jaxy chegar a mim como se
não houvesse muito tempo que não me via. Inquiri:
- Você não vem me dar um abraço? Estou com saudades de
você, Jaxy.
Jaxy me olhou desconfiado. Apenas limitou-se a dizer:
- Você realmente está melhor. Agora se dá conta que existe o
verbo “abraçar” – e deu uma gargalhada que achei familiar.
- Como assim? Não entendi – falei ironicamente contrariado.
- Eu o abraço diariamente, Pyá. Mas você esteve este tempo
todo inerte. Agora você está voltando à vida – limitou-se a dizer isto e
voltou para seus afazeres.
Jaxy ajudava na manutenção da fazenda. Notei isto desde a
primeira vez em que a janela do meu quarto fora finalmente aberta.
Uma senhora vestida em trajes andinos olhou para mim com olhos
profundamente castanhos e deixou entrar os raios da manhã. Ao
longe, via Jaxy, Don Laurencio e mais dois jovens carregando pasto,

280
guiando cavalos e lhamas e juntando lenha. Aquela senhora era a
esposa de Don Laurencio, uma pessoa querida que atendia por Doña
Rosaura.
Àquele cuidado precisava responder com o esforço para curar-
me daquela enfermidade. Aos poucos, senti vontade de me sentar,
depois de levantar e ir até a janela e, por fim, descer as escadas.
Quando desci, um novo mundo descortinou-se. Era entardecer e
consegui visualizar, através da imensa janela da varanda, uma
multidão de luzes acenderem-se lá embaixo, no vale, com um lago ao
fundo. Era a cidade de Ibarra e, mais acima, o povoado de La
Esperanza. Mais para a direita existe uma laguna: Yahuarcocha. Notei
isto tudo pelo mapa que havia junto à lareira. Sentei-me junto a ela
com um cobertor sobre as costas, tomando um álbum de fotografias
deixado displicentemente sobre uma cômoda lateral. Abri-o e vi um
desfilar de pessoas das mais variadas colorações e origens,
abraçados à família que residia naquela casa de amizade. Notava
como aquela família poderia ser feliz, com seu ar visivelmente alegre,
humano e tocante, trocando energias com aqueles seres estranhos,
viajantes por certo. Aquela era uma espécie de casa de paragem
para viajantes. Também uma casa de cura.
Vários recados dos viajantes viam-se em outros álbuns ou
colados às paredes e murais. Àquele lugar, outra espécie de fim-de-
mundo, convergiam energias de lugares distantes como Ártico,
África, costa do Pacífico e Oceania.
Fui retirado daquele absorvimento pelo chamado ao jantar. Era
a primeira vez, depois de muito tempo, que iria me alimentar à mesa.
Acompanhado de uma família. Don Laurencio sugeriu que me
sentasse à cabeceira, logo a seu lado. Logo se juntaram Doña
Rosaura, mais Jaxy e os dois jovens, filhos do casal.
O jantar consistia de uma sopa de milho de entrada, depois
pratos diversos, como quinoa, tortillas, fritada de porco, humitas,
saladas e suco de maracujá. A família estava muito silenciosa
enquanto se alimentava, olhando alternadamente para o próprio
prato e para mim, como a me observar. Fiquei em dúvida se o
silêncio durante as refeições era costume ou se era por haver um
estranho à mesa. De qualquer forma, fomos sorvendo aquele jantar
delicioso. Assim que os pratos salgados foram retirados, fitei Don
Laurencio e fiz menção de puxar assunto, no que fui estimulado.
Comentei, então:

281
- Don Laurencio, Doña Rosaura, desejo agradecer imensamente
a hospitalidade com que venho sendo recebido em seu lar. Sei que
mereci cuidados especiais pela minha enfermidade e isto não deve
ter sido fácil. Senti a vida esvair-se totalmente de meu corpo e,
agora, estou aqui, tendo o prazer de um maravilhoso jantar.
Don Laurencio respondeu:
- Meu caro, Pyá. Este é o lugar certo para isso. Você foi trazido
para cá por que assim foi designado. Não fique constrangido. Nossa
família tem o maior prazer em recebê-lo aqui com seu amigo, Jaxy.
Ajudá-lo é minha dívida de gratidão com nosso infelizmente finado
amigo.
Falava de Avaeté. Ele também deixou amigos por aqui. Ao citá-
lo, baixamos todos os olhos. Depois de alguns instantes, Doña
Rosaura serviu-nos a sobremesa. Era geléia de amora feita em casa.
Don Laurencio continuou:
- Este local, Pukyu Pamba, é uma terra ancestral. Nestas terras,
onde está situada esta fazenda, comunitária como todas as deste
vale, vivem há centenas de anos este povo andino chamado
Caranqui. Vivemos aqui, sob as sombras e a proteção da sagrada
montanha de Imbabura.
“Aqui, nestas encostas, se cultivam plantas de clima frio, como trigo,
cevada e batatas. Já nos terrenos mais baixos, mais próximos do
pueblo, cultiva-se milho. Nosso povo também produz artesanato em
profusão, como cerâmica, bordados e tecidos.”
Enquanto sorvíamos a deliciosa sobremesa, aquele homem de
pele morena e lisa, rosto arredondado e alegre, continuou
descrevendo tudo o que ocorria naquela fazenda, com aquele povo e
com os animais que ali viviam. Demonstravam viver uma vida feliz,
tanto pela manutenção dos costumes, quanto pela convivência com
viajantes, que vinham para os mais variados propósitos, de apenas
relaxar numa região de grandiosa beleza, conviver com pessoas que
cultivam hábitos nativos e conectados a terra, escalar a montanha ou
contribuir para a melhoria da vida nestas paragens.
Don Laurencio falou da rotina da casa e dos habitantes do
povoado. Informou que, no dia seguinte, por ser sábado, haveria uma
pequena apresentação do grupo de jovens músicos locais.
Recomendou que eu devesse tratar de esticar as pernas durante o

282
dia para podermos ir até o galpão comunitário para assistir à
apresentação.
Concluído o jantar, passamos todos à sala, onde todos, além de
Don Laurencio, falaram sobre seus hábitos e rotinas na casa e no
povoado. Doña Rosaura e os dois jovens comentaram, alegre e
intercaladamente, sobre a vida neste lugar. O orgulho era notado a
olhos vistos. Você realmente sente-se muito bem acolhido neste
lugar.
Jaxy falou sobre o como se integrou àquela rotina durante as
últimas semanas, tempo desde que aqui chegamos. Perguntei,
interessado, se estava se portando bem, e Don Laurencio foi enfático
em elogiar Jaxy:
- É um jovem notável. Aprende muito rápido, é inteligente e tem
ótimo senso de orientação.
- É verdade, Pyá. Até já subi sozinho a montanha. A cavalo, é
claro. Precisamos subir a montanha, Pyá. Dizem que o amanhecer no
cume é deslumbrante.
- Puxa, Jaxy. Não vejo a hora de reaver minhas forças e
podermos fazer isto. Eu realmente preciso fazer isto. Ir ao topo. Você
precisa me contar tudo o que aconteceu desde minha queda. Talvez
você possa fazer isto quando estivermos a caminho do vulcão. E, lá
em cima, preciso encontrar alguém... – disse, baixando o tom de voz.
- Eu sei, Pyá – disse Jaxy, também com tom triste.
Ficamos em silêncio alguns momentos. Então, agradeci o
delicioso jantar e a agradável conversa e pedi licença para me retirar
ao meu quarto. Estava cansado, de modo que subi as escadas e,
quase instantaneamente, adormeci.

4
Sentia-me incrivelmente melhor no dia seguinte. Minhas pernas
não estavam mais tão fracas e eu podia até mesmo sentir a manhã,
ao ar livre, caminhando por entre os jardins e as pastagens da
fazenda. Conseguia ter uma vista muito mais ampla de todo o vale,
das montanhas e do grande vulcão na direção sudoeste. Caminhei
por entre caramanchões e árvores, até chegar ao galpão aberto onde
Doña Rosaura assava pães. Ela me permitiu que a ajudasse na

283
preparação. Depois de prontos, entramos na casa principal para
tomar café da manhã.
Enquanto tomávamos a refeição, a família continuava a
descrição dos seus hábitos. Contaram-me que as mulheres eram as
principais transmissoras da tradição, através das danças e cantorias
em forma de coplas, as canções populares. Falaram-me também
sobre a principal festa da tradição, o Inti Raymi, que, por sinal, estava
próximo. Ocorria no solstício de verão do hemisfério norte, que é
quando se comemora o ano novo. A Festa do Sol, na tradução,
venera o milho, símbolo do trabalho e da ligação do homem com a
natureza. O sol transforma-se em milho e, este, em gente.
Para a festa, que traz pessoas de várias localidades, as
comunidades preparam alimentos festivos, como o mote, a colada e
a chicha. O Inti Raymi representa a renovação, a purificação e a
revitalização da ligação com a natureza. É o momento em que ela
oferece seus frutos, ou seja, a época da colheita.
Ocorre uma explosão de cores, músicas, tradições e feliz
congregação. Como é aberta a todos, congrega indígenas e não-
indígenas, regionais e estrangeiros, portando coloridas roupas típicas,
chapéus, pequenos palas, vestidos, dançando com pés no chão,
alguns portando máscaras que representam, entre outras coisas, o
tempo.
Enquanto descreviam, imaginei a festa ocorrendo e senti
saudades de estar ao relento, acampado, sentindo o frio da noite,
aquecendo-me junto à fogueira e dançando danças com os amigos.
Senti saudades de estar em contato. Mencionei este sentimento.
Doña Rosaura comentou:
- Você ainda levará algum tempo para estar bem novamente
para voltar à estrada. Nossos xamãs cuidaram bem de você,
limpando-o e purificando-o. Agora, a natureza fará o resto. Sua
renovação completa está a caminho. Poderá ficar conosco pelo
tempo que desejar, trabalhar aqui e aproveitar o lugar. Mais tarde,
quando estiver preparado, voltará à estrada.
- E quando será isto, Jaxy? – olhei para meu amigo, querendo
saber como se sentia.
- Quando você assim desejar, Pyá – falou amistosamente Jaxy.

284
O dia foi de exploração dos arredores da fazenda, com seus
currais, hortas, pomares e animais. Conheci gaiolas cheias de cuye,
pequenos roedores que são uma espécie de iguaria local. O ar local
era renovador e fresco. O sol, cálido, dando a coloração morena ao
povo que tem faces rosadas e pele muito lisa.
À noite, após o jantar, fomos convidados a ir até o galpão
comunitário, onde havia um grande salão aquecido por uma lareira.
Jovens vestidos em trajes típicos aguardavam a platéia, sentados
com seus instrumentos à mão. Alguns locais e viajantes reuniram-se
para apreciar a atuação. Nas mãos dos jovens, instrumentos musicais
nativos aliados a violões, violinos e tambores. De sua atuação saíam
ritmos andinos típicos e outros, com toque caracteristicamente
regional. Foi uma noite alegre, em que todos nos arriscamos a dançar
em rodas junto às pessoas. Conhecemos várias delas e conversamos
por horas. Até que se tornou hora de dispersar e ir para as casas.
À medida que se passam as horas e os dias neste lugar, você
começa a sentir também vontade de fixar-se com esta gente ligada.
Ligada na sua terra e ligada na grande Terra. Você vê que vivem uma
vida simples e sagrada ao mesmo tempo. Pessoas que celebram as
coisas que trazem paz e conexão.
É claro que a estrada também o atrai. Talvez seja isto que eu
acabei encontrando nesta aventura. Uma espécie de
seminomadismo. Um jeito diferente de poder ser. Uma forma de viver
num equilíbrio dinâmico entre ficar e partir. Entre fixar-se e
aventurar-se. Entre conhecer o novo e reconhecer o sagrado.
E mais dias passaram-se e fui recuperando minha vitalidade. Ia
elaborando aquela doença e ia elaborando também a morte de
Avaeté. O homem que me ensinou este estilo de vida e me ensinou
sobre o sagrado e sobre a conquista interior, que não está mais aqui,
mas que é parte inseparável de mim. E de muitos a quem tocou na
sua vida. Entregou a todos quanto possível seu legado. E entregou-o
também a mim. E por isso, tornava-me um ser rico. Rico da vida que
recebi como herança. Enriquecido de espírito e sentimento.
Quando consegui concluir a maioria das tarefas que eram feitas
na fazenda, encontrei-me preparado para escalar o Imbabura.
Comuniquei isto a Don Laurencio. Ele disse, então, que iríamos
dentro de dois dias. Naqueles dois dias, só pensava em poder subir
àquele ponto mais alto para descobrir ainda algum segredo que a
Vida pudesse me ofertar. Até que a madrugada marcada chegou.

285
5
Apanhamos mochilas com alimentos, água e abrigos para
alcançar o topo do Imbabura e passar a noite no cume. Deixamos a
casa eu, Don Laurencio, ou melhor, Sumak Mashi, Jaxy e os dois
filhos. O mais velho chamava-se Atik e o mais novo, Tupac. Seguimos
pela trilha que parte do fundo da casa, até localizar uma estrada por
aonde os pastores e pastoras conduzem seus rebanhos de ovelhas ou
lhamas.
Estava escuro e a lua ainda brilhava fracamente próximo ao
horizonte formado de montanhas. Seguimos em silêncio, com Jaxy e
eu ao final da fila. Nos primeiros passos, o corpo vai-se aquecendo
com a ascensão da trilha, até que você entra numa espécie de piloto
automático. Sua mente libera-se e você tem pensamentos
relaxantes.
Lembrei-me, então, do sonho daquela noite. Era a primeira vez
que me lembrava de um sonho, depois de muitos e muitos dias. No
meu sonho, havia uma criança à beira de um rio. Ela estava
agachada, mirando o movimento. Então ela levantou-se e, ao
levantar-se, ficou de um tamanho gigante. Sua vista mirava por cima
das árvores da floresta e por cima dos cumes das montanhas. Mirou
longe, em um lugar inimaginavelmente distante. Depois, voltou a
agachar-se, e ficou pequena novamente. Passou a tocar o chão e
encontrou folhas, raízes e sementes de plantas. Mas coletou apenas
as sementes. Olhava para elas, uma a uma, e lançava-as no rio. Fez
isto por horas. Depois olhou para mim, mostrou-me uma semente e o
sonho acabou-se.
Fiquei tentando imaginar o significado daquilo. Parecia, à
primeira vista, uma ação inócua, lançar sementes ao rio. Elas, por
certo, apodreceriam ou jamais fixariam raízes. Pensei mais um pouco,
mas não via significado naquilo. Dei de ombros e segui caminhando.
À medida que subíamos, o sol, mesmo ainda escondido,
iluminava levemente a trilha. Aos poucos, a visão mais alta sobre o
vale mostrava a vegetação, o relevo e o início do movimento
matutino das casas nas encostas.
A luz do dia que se aproximava inspirou-me a perguntar a Jaxy
sobre a travessia desde Roraima até Pukyu Pamba. Não havíamos

286
conversado sobre aquilo, mas devia minha vida àquela aventura,
empreendida pelo meu jovem amigo e por aquele desconhecido que
viera me trazer notícias do meu benfeitor.
- Sabe, Pyá, foi uma aventura e tanto. Temi por sua vida e não
via a hora de chegarmos ao lugar onde o mensageiro indicava como
nosso destino final. Disse que em San Clemente, ou melhor, em
Pukyu Pamba, você poderia ser curado dos seus males e onde
estaríamos seguros.
- Sabe, Jaxy, me lembro de poucos detalhes. Apenas de sentir
estar sendo transportados por estradas, trilhas e rios.
- Esta passagem daria um livro de histórias, Pyá. Mas posso lhe
dizer que tudo acabou bem. Só para que você tenha uma idéia. Pelo
caminho, fomos atacados por abelhas e, como se isto não bastasse, a
canoa onde você era transportado soltou-se e você ficou só e à
deriva.
- Mas como fui resgatado? – perguntei, curioso e assombrado.
- Não há explicações apenas no mundo dos homens. Você deve
sua vida a Tupã, Pyá.
- Devo minha vida a milhares e milhares de seres e deuses, meu
caro amigo Jaxy...
Seguimos ascendendo pela trilha, às vezes parando para tomar
água e, mais freqüentemente, para tomar ar. A atmosfera ia ficando
cada vez mais rarefeita pela altitude.
Voltei a pensar em todos os seres que me salvaram durante
toda a minha vida. Eles todos se fundiam numa só imagem. Avaeté.
Teriam estes seres todos, em seus propósitos de vida, a finalidade de
me salvar, ou de salvar a tantos quantos pudessem? Mais que isto,
um propósito profundo seria algo necessário, até mesmo
indispensável, na vida de uma pessoa?
- “A finalidade da vida é viver” – disse Sumak Mashi, como se
também lesse pensamentos.
- Ãhn? – resmunguei, sendo retirado do meu torpor.
- “A finalidade da vida é viver.” Você não acha, Pyá? Veja como
é rica a vegetação ao longo da trilha – e apontou para algumas
plantas em forma de arbusto.

287
Aproximou-se de uma delas e mostrou suas folhas. Parecia um
arbusto qualquer. Mas não era.
- Esta é a quina roja – disse ele. – Este arbusto milagroso ajudou
a salvar sua vida, Pyá. Foi uma das ervas que você tomou na sua
recuperação.
- É mesmo?! – exclamei, tendo uma vontade irresistível de
ajoelhar-me diante dela e agradecer sua existência. – E qual é sua
indicação?
- A quina roja é tradicionalmente empregada como tonificante,
antitérmico, antiinfeccioso, antimalárico e na convalescença. Mas
também pode ser digestivo, aperitivo, anti-séptico e cicatrizante.
- Puxa, a quanta finalidade essa plantinha se serve! – exclamei,
acariciando suas folhas.
- Não, Pyá, não são estas as finalidades desta plantinha. Como
eu lhe disse, o seu propósito de vida é viver. Servir para propósitos
humanos é uma questão nossa, dos humanos. Quanto a ela, atender
a um propósito humano a ajuda a viver e perpetuar-se, mas não é
sua finalidade de vida, compreende?
Abanei com a cabeça afirmativamente, sem, é claro, entender
profundamente todas as implicações daquela poderosa afirmativa. “A
finalidade da vida é viver.” Teria que ter todo o tempo da subida ao
Imbabura para entender um pouquinho do tudo que aquilo
significava.
À medida que subíamos, notávamos cada vez mais descortinar-
se a vasta imensidão das encostas daquele vulcão de 4.600 metros
de altitude. Parávamos de quando em quando para apreciar a visão e
as localidades, seus povoados, fazendas, plantações e formas de
vida. Apreciávamos as várias plantas ao longo do caminho, com seus
usos medicinais e utilitários, como, por exemplo, tingir tecidos.
Sentia-me bem, fortificado, renovado. Fazia-me bem aquela
caminhada vulcão acima. Uma sensação de alívio também fazia
parte. Estava aliviado, leve. Aliviado daquela enfermidade. Mas havia
também uma sensação de alívio com relação a Avaeté. Não sabia o
porquê, mas pensava nele de forma leve. Por que seria?
Acho que começava a compreender que Avaeté foi meu
benfeitor para que eu reconhecesse que não importam as finalidades.
Não importam os propósitos. Importa é viver. Viver com toda

288
intensidade. Ser, com toda a força, o que você foi feito para ser.
Avaeté viveu assim, até morrer. E ele passou este tempo todo comigo
ensinando-me isto. E agora eu estou aqui, sentindo a intensidade do
viver, sem um propósito, sem uma finalidade, mas fazendo deste
meu novo meio de vida uma maneira valiosa e honesta de viver
intensamente. Sabendo que não precisa haver propósito, você abre
mão do controle, da razão, e entrega-se a este fluxo de sabedoria
maior que é a Vida. Você cede lugar a ela. E ela retribui entregando a
você, de presente, a plenitude e a leveza de ser.
Dormimos aquela noite num estábulo muito organizado e limpo,
tomado emprestado de uma família da comunidade. Alimentamo-nos
frugalmente e fui dar alguns passos na direção da noite. Luzes
cintilavam lá embaixo, na cidade, e acima de nossas cabeças, no céu.
Uma lua nova subia de trás de algumas montanhas. As estrelas
apareciam aos milhares, em forma de uma bela poeira cintilante sob
a abóboda celeste. O ar estava gelado, mas refrescante ao ser
aspirado. Fiquei sentado a admirar aquelas belezas incansáveis, até
que senti sono e me rescostei abrigado, como os demais.

6
Acordamos alegres e muito dispostos a seguir adiante na subida
à montanha. Tomamos um café temperado por muita conversa e
saímos imediatamente para a estrada. Já era manhã e víamos o
movimento de pastoreio de crianças e jovens. Todos sorriam com a
nossa passagem. Sorríamos também.
Estas trocas de sorrisos e de olhares me fizeram lembrar o meu
sonho. O sonho da criança que atirava sementes ao rio. Lembrei-me
de que aquela criança, ao olhar para mim, também sorria. Lembrei-
me, também, de lembranças mais distantes, de quando vivia na
cidade grande, na “terra das luzes”, como falam os nativos. Você
passa por milhares de pessoas no transcorrer de um dia sem dar nem
receber um sorriso. Não é culpa das pessoas, é claro. O sistema de
vida é que produz isto.
Nossa história, a história dos jurua, é uma história de
apartamento, de separação. Não olhar para o outro e não sorrir é o
resultado mais direto. Avaeté foi o homem que foi capaz de tirar-me

289
deste sistema. Deu-me uma vida onde poderia olhar para os outros,
sorrir e obter retribuição.
Avaeté era aquela criança na beira do rio. Ele tomou sementes
que não sobreviveriam ou que se fixariam e deu a elas uma vida
nova. Uma vida transformadora. Uma vida itinerante, onde a própria
semente precisaria se reinventar para sobreviver no fluxo.
Lá na frente, no fluxo, você não retorna. Não retorna a uma
cruzada romântica. Não retorna a ser como foram nossos
antepassados. Você vai para algo novo e religado. Neste lugar novo,
você não faz “mais”. Nem é “mais”. Neste lugar novo, você faz
menos.
Neste novo lugar, mais do que fazer inclusão, você deixa de
excluir.
Neste novo lugar, mais do que salvar a natureza, você deixa de
destruir.
Neste novo lugar, ao invés de achar tempo para fazer, você
acha tempo para não fazer.
Nele, mais do que buscar o todo, deixamos que o todo se
apodere de nós. Porque ser inteiro é ser in-tactum: não partido, não
cortado, não tocado. É deixar de apartar-se para criar novamente
raízes. Raízes que não o fixam, mas que o religam ao grande fluir, ao
grande movimento.
Religar, aqui, não é voltar para trás. Nada volta para trás no
grande fluxo. Mas o grande fluxo circula. Nossa religação tem outro
sentido. Você se religa ao porvir. Você se religa ao futuro. Planta suas
sementes no rio.
É por isso que Avaeté olhou para mim no rio. Para que eu
aprenda, um dia, a também jogar sementes ao rio. Algum dia serei
capaz de fazer isto?
Naquelas paradas que você dá para recuperar o fôlego
montanha acima, além de tomar ar e água e até mesmo comer algo,
você senta no chão cheio de capim alto e pode ficar quase
imperceptível ali. Sentado, você aproveita o momento para curtir a
vista. Sentado, você vaga. Vaga o caminhar. Vaga a mente. Vaga
tudo. Fica cheio do vagar. Vagabundo. De vacáre: “estar vazio,
desocupado, ser livre” e -bundus: “cheio de, rico de”. Que idéia
paradoxalmente maravilhosa. Estar cheio do vazio! Exatamente como

290
falam os orientais. Sem as culpas e cargas de significados negativos
da palavra. Uma vida vagabunda. Uma vida vivida livre.
Isto! Minha finalidade é viver. Viajar é apenas o meio.
Vagabundear como um meio de viver plenamente. Um novo mundo
pertencerá (sem ser sua propriedade) aos vagabundos que sabem
viver felizes do pouco, que sabem viver nas frestas e arrabaldes e
que trabalharão cada vez menos. Estes não salvarão o mundo, mas
poderão ser os sobreviventes. Não serão os mais belos, mais
intelectuais, mais fortes, mas, como as baratas, serão os que
permanecerão.
Só chegamos ao cume ao entardecer. Estava frio e ventoso, um
vento norte, mas o céu estava azul e límpido. Estávamos exaustos,
mas energizados e renovados com a aventura. Chegamos ao ponto
mais alto e abraçamo-nos num abraço coletivo de regozijo e alegria.
Estava se acabando aquela jornada de amizade e companheirismo.

7
Armamos o acampamento num local abrigado, mas de vista
espetacular. Dele, mirávamos o norte, a direção dos ventos. Sumak
Mashi disse que o vento norte o fazia lembrar os ancestrais. Começou
a contar várias daquelas histórias, mas emocionou-se especialmente
com a que o fazia lembrar-se do seu pai e do seu avô:
“Meu pai costumava me contar que descobriu o nome que me daria
quando um viajante subiu com ele e meu avô este vulcão. O viajante
perguntou a meu avô como era, na nossa língua, as palavras para
‘homem bom’. Ele pensou e lhe disse: ‘Sumak Mashi’. E, no mesmo
instante, o filho de meu avô, meu pai, reservou este nome para
mim.”
Sumak Mashi era realmente um homem bom. Você vê estes
sinais nos seus olhos. São sinais que viviam presentes em Avaeté e,
agora, que os vejo em Jaxy. Neste momento, sem que ele estivesse
entendendo, abracei-o ternamente. Apenas me limitei a esclarecer:
- Jaxy, em um homem bom, você vê a transparência e a
profundidade do olhar. Isto não é maravilhoso? Na transparência você
pode enxergar os seus segredos profundos.

291
O sol estava se pondo. Pensei então que todo o homem bom
tem segredos que, no fundo, não são segredos. Revelam-se um
tesouro acessível a qualquer ser humano aberto. Então tomei na
minha bolsa o pedaço de couro de Avaeté e o desenrolei. Nele estava
escrito:

Mbegueguata (ou, O segredo dos viajantes)

Como podem os jurua


Seu paraíso algum dia encontrar
Se com passos apressados matam flores
Daquele justo jardim que buscam deslindar

Como podem os jurua


Seu éden algum dia revelar
Se com mãos nervosas derramam o sangue
Daqueles mesmos que direções vivem a apontar

Como podem os jurua


À terra sem males algum dia chegar
Se na sua agoniada obstinação não compreendem
Que esse mesmo caminho por onde estão a transitar
É ele próprio yvy maraney.

292

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