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‘0 DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO NY / ERNST MAYR FUNDAGAO UNIVERSIDADE DE BRASILIA Reitor Lauro Morhy Vice-Reitor ‘Timothy Martin Mulholland EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASILIA Diretor Alexandre Lima Conse Boron. Pee VOLVIMENTO DO , MENT* Presidente ‘0 BIOLOGICO Emanuel Araiijo DIVERSI IDADE, EVOLUCAO E Alexandre Lima | HERANCA : es Alvaro Tamayo tog OR ‘Aryon Dall'Igna Rodrigues 3 “oe. Dourimar Nunes de Moura waciaducao Biblotecs cteT— Puce Emanuel Aratjo Ivo Martinazzo } Buridice Carvalho de Sardinha Ferro dove fers Técnica Lath José Maria G, de Almeida Jr, er Liicio Benedito Reno Salomon Marcel Auguste Dardenne sylvia Ficher Vilma de Mendonca Figueiredo | Volnei Garrafa AY Direitos exclusivos para esta edigio EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASILIA M ur4ol SCS Q.02 - Bloco C - N°78 - Ed. OK - 2° andar ‘ “ 70300-500 - Brasflia - DF Ex.2& a Fax: (061) 225-5611 Copyright © 1998 by Ernst Mayer ‘Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicagdo poders ser armazenada ou reproduzida por qualquer meio sem a autorizagio por escrito da editora. Impresso no Brasil SUPERVISAO EDITORIAL AIRTON LUGARINHO PREPARAGKO DE ORIGINAIS ‘Winata GONCALVES ROSAS SALTARELLI REVISKO WILMA G, ROSAS SALTARELLIFGILVAM Cosmo ixoice [FATIMA REIANE DE MENESES F WILMA G. ROSAS SALTARELLT [EDITORAGAO ELETRONICA, RAIMUNDA Dias cara RESA “SUPERVISAOGRAFICA ELMANO RODRIGUES PINHEIRO ISBN: 85-230-0375-4 Ficha catalogréfica élaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasflia M474 Mayr, Emst Desenvolvimento do pensamento biologico : diversida- de, evolugdo e heranga / Ernst Mayr; tradugao de Ivo Mar- tinazzo — Brasflia, DF : Editora Universidade de Brasflia, 1998 1107p. ‘Tradugio de: The Growth of Biological Thought Inclui Bibliografia, 1. Biologia. 1. Titulo, cpu: 57 onvs rowno 42/5 INDIGAGAD fieen felbeL__| Para Gretel SUMARIO Prefiicio, 11 1. Introdugio: Como escrever a historia da biologia, 15 Subjetividade e viés, 23 Por que estudar a hist6ria da biologia?, 34 2. O lugar da biologia nas ciéncias e sua estrutura conceitual, 37 ‘& natureza da ciéncia, 37 Métodos na ciéncia, 41 A posigio da biologia ‘dentro das cigncias, 49 Como e por que a biologia é diferente”, 53 Caracteristicas especiais dos organismos vivos, 70 Redugio ¢ biologi, 78 Emergéncia, 83 A estrutura conceitual da biologia, 87 Uma nova filoso- fia da biologia, 94 3.0 meio intelectual da biologia em transformagio, 105 ‘Antiguidade, 106 A imagem crit do mundo, 113 A Renascenga, 116 ‘A descoberta da diversidade, 122 A biologia no Huminismo, 130 © surgimento da ciéncia, do século XVII a0 século XIX, 132 Desdo- bramentos divisores no século XIX, 135 A biologia no século XX, 143 Os principais perfodos da hist6ria da biologia, 148 A biologie « filoso- fia, 152 A biologia hoje, 155 Parte I: A diversidade da vida 4. Macrotaxionomia, a ciéncia da classificagao, 175 ‘AristOteles, 177 A classificago das plantas pelos antigos ¢ pelos herba- Listas, 182 Classificagao descendente por divisto I6gica, 187 Os zoolo- sistas pr6-lineanos, 198 Cart Lineu, 201 Buffon, 210 Um novo impulso fa classificagio animal, 212 Os caracteres taxiondmicos, 215 Classib- ‘cagHo ascendente por agrupamento empirico, 221 Perfodo de transigto (1758-1859), 226 Classificagdes hierérquicas, 237 5, Agrupamento segundo ascendéncia comum, 241 © declinio da pesquisa macrotaxiondmica, 250 Fenstica numérica, 254 Cladistica, 259 A metodologia tradicional ou evolutiva, 267 Novos cemnorem caracteres taxiondmicos, 269 A epistemologia da classificagio, 272 Facilidade de recuperagio de informagGes, 273 Estado atual e o futuro da sistemdtica, 277 O estudo da diversidade, 279 6. Microtaxionomia, a ciéncia das espécies, 285 Os primitivos conceitos de espécie, 288 O conceito essencialista de espécie, 290 O conceito nominalista de espécie, 299 G conceito darwini- ano de espécie, 301 O surgimento do conceito biolégico de espécie, 306 ‘Anova sistemidtica, 312 A validade do conceito biolégico de espécie, 315 Aplicago do conceito biolgico de espécie aos taxa multidimensionais, de espécies, 323 O significado de espécie na biologia, 333 Parte Il: Evolugao 7. Origens sem evolugao, 341 O impacto do cristianismo, 347 O advento do evolucionismo, 349 O Iluminismo francés, 362 Desenvolvimento em outras partes da Euro- pa, 380 A heranga do periodo pré-lamarckiano, 383 8. A evolugao antes de Darwin, 385 Lamarck, 385 Franga, 405 Inglaterra, 415 Alemanha, 432 A estagnacdo pré-darwiniana, 437 9. Charles Darwin, 441 Darwin e a evolugio, 447 Alfred Russel Wallace, 466 A procrastinagao de Darwin, 469 10. A evidéncia de Darwin para a evolucao para a descendéncia comum, 477 A evidéncia da evolugio da vida, 478 A evidéncia da descendéncia comum, 487 11. A causa da evolugio: selecdo natural, $33 AA l6gica da teoria da selego natural, 535 Os componentes mais impor- tantes da teoria da selegdo natural, $38 A origem do conceito de selego natural, 545 O impacto da revolugio darwiniana, 559 A résisténcia & selego natural, 569 Teorias evolucionistas alternativas, 585 Progresso evolutiva, regularidade e leis, 592 12. A diversidade ¢ a sintese do pensamento evolucionista, 597 O neodarwinismo, 598 A crescente divisio entre os evolucionistas, 601 Os avangos na genética evoluciondria, 613 Os avangos da sistemética evolucionéria, 623 A s{ntese evolucionista, 631 13, Desenvolvimentos pés-sintese, 637 A genética de populagées, 639 A biologia molecular, 640 Selegdo natu- ral, 652 Os modos de especiagio, 669 Macroevolucdo, 676A evolucéo do homeni, 691 Problemas néo resolvidos da biologia evolucionista, 696 Evolugio no pensamento modemo, 697 Parte III: A variagdo e sua hereditariedade 14. Teorias primitivas e experimentos de cruzamento, 70S As teorias da hereditariedade entre os antigos, 707 Novos comegos, 710 Os precursores de Mendel, 713 15, Células germinais, veiculos da hereditariedade, 727 A teoria celular de Schwann e Schleiden, 730 O significado do sexo da fertilizagio, 733 A base material da variagdo e da hereditariedade, 743 Os cromossomos e o seu papel, 749 16. A natureza da hereditariedade, 759 Darwin e a variagao, 759 Hereditariedade ténue ou hereditariedade séli- da, 766 August Weismann, 778 Hugo de Vries, 788 Gregor Mendel, 792 17. O florescimento da genética mendeliana, 811 Os redescobridores de Mendel, 811 O perfodo cléssico da genética mendeliana, 816 A emergéncia da genética moderna, 830 18, As teorias do gene, 867 ‘As teorias concorrentes da hereditariedade, 874 A explicagio mendelia~ nna da variagao continua, 881 19. A base quimica da hereditariedade, 901 ‘A fortuna errante da teoria écido-nucléica da hereditariedade, 909 ‘A descoberta da dupla-hélice, 916 A genética no pensamento.mo- deo, 920 20. Epilogo: por uma ciéncia da ciéncia, 925 Os cientistas e 0 meio cientifico, 926 A maturagio das teorias e dos Gonceitos, 936 As cigncias eo meio externo, 946 O papel dos avangos técnicos na pesquisa cientifica, 952 Progresso em ciéncia, 954 Notas, 957 Bibliografia, 1003 Glossério, 1083 {ndice, 1087 PREFACIO ‘Muitos aspectos da modema biologia, particularmente as vérias con- trovérsias entre diferentes escolas de pensamento, nfo podem ser plena- mente entendidos sem um.conhecimento dos antecedeptes histéricos dos problemas. Sempre que eu expunha esse particular aos meus alunos, eles ‘me perguntavam em que livro poderiam ler sobre tais matérias. Para meu embarago, eu tinha de ‘admitir que nenhum dos volumes publicados cobria essa necessidade, Por certo, existe muita literatura sobre a vida dos biolo- gistas e suas descobertas, mas esses escritos so invariavelmente inade~ ‘quados, tanto no que concerne a uma anélise dos problemas maiores da biologia, como a uma hist6ria dos conceitos e idéias em biologia. Con- quanto algumas das hist6rias de disciplinas biol6gicas particulares, como a genética e a fisiologia, sejam indubitavelmente hist6rias de idéias, nada existe de aproveitavel no sentido de cobrir a biologia como um todo. Pre- encher essa lacuna na literatura constitui 0 objeto do presente trabalho. Este volume nio 6, ¢ isso precisa ser sublinhado, uma histéria da biolo- gia, e no pretende substituir hist6rias da biologia existentes, como.a de Nordenskidld. A énfase € posta nos fundamentos e na evolugio das idéias dominantes da moderna biologia;-em outras palavras, trata-se de uma hist6ria evolutiva, nfo puramente descritiva. Uma tal abordagem justifica, e mesmo impée, a negligéncia de certos desdobramentos temporétios na biologia, que nao deixaram nenhum impacto na subseqilente hist6ria das ideias. ‘Quando pela primeira vez. concebi o plano de escrever a historia das idéias da biologia, a meta parecia-me proibitivamente remota. Os primei- ros anos (1970-1975) foram dedicados a leitura, a apontamentos, a prepa- Tago de um primeiro esbogo. Cedo, tornou-se evidente que o tema era muito vasto para um tinico volume, € entio decidi preparar primeiro um volume sobre a biologia das causas “sltimas” (evolutivas). Mas mesmo esse objetivo limitado é uma empresa desesperadoramente vasta, Se en- fim tive sucesso, foi porque pessoalmente ja havia realizado quantidade considerével de pesquisa sobre a maioria das éteas cobertas por este vo- lume. Isto significa que eu j4 estava razoavelmente familiarizado com os problemas € com boa parte da literatura das éreas envolvidas. Espero poder tratar da biologia das catisas “prdximas” (funcionais) num volume posterior, que cobriré a fisiologia em todos os seus aspectos, biologia do crescimento € neurobiologia. Quando uma disciplina biolégica — por exemplo a genética ~ trata ao mesmo tempo das causas iiltimas e proxi- mas, apenas as causas tltimas vem consideradas no preseite volume. Ha duas dreas di. biologia que poderiam ter sido inclufdas (pelo’ menos ém parte) neste volume, mas no o foram: a hist6ria conceitual da ecologia e a da biologia comportamental (particularmente a etologia). Felizmente, essa omissd0 no serd tio lamentével, como de outro modo o seta, tendo em conta que diversos volumes de outros autores, abordando a historia da ecologia’e w da etologia, esto neste momento em plena preparagao. O historiador profissional provavelmente nfo ter4 muito a aprender conros Capitulos'l e 3; de fato, ele pode consider’-los algo amadoristico. Tuntei esses dois capftulos em beneficio dos ndo-historiadores, na certeza de que isso os ajudaré a encarar os desdobramentos puramente cientificos ‘os outros capitulos com uma percepgao mais profunda. + Sou devedor de uma imensa gratidao pata com numerosos individuos e-ihstituigées: Peter Ashlock, F. J. Ayala; Johir Beatty, Walter‘Bock, Robert Brandon, “Arthur Cain, Fred:Churchill, ‘Bill ‘Coleman, Lindley Darden, Max -Delbrtick,: Michael :Ghiselin;:Jotin Greene, Carl ‘Gustav Hempel, Sandra Herbert, Jon Hodge; David Hull; David Layzer, E, B. Lewis; Robert Mertoh, 3:-s%'Maore, Ron Munson? Edward Reed, Phillip’ Sloan, Frank Sulloway, Mary Williams'é outros Téram’6s esbogos e varios capitulos, ‘apontatam rerros’ €”omiss®es,'e"fizeram muits ‘sugestbes construtivas, ‘Nem'sempre eu-segui'os seus vontséllios; e sou por isso 0 tinico responsé- vel pelos erros remanescentes € pelas deficiéncias. A P. Ax, Muriel Blaisdell e B. Werner sou devedor pelas'preciosas informagées factuais. ‘Gillian Brown, Chery Burgdorf, Sally ‘Lotti Agnes I: Martin, Mau- ren Sepkoski‘e:Charlowe: Ward datifografaram inumerdveis tascinhos, e ajudaram na’ bibliografia:: Walter’ Borawskino- apenas ‘datitografou ‘as versSes preliminares, inas:também'a. c6pia final do manuscrito € da bi- bliografia,-e preparow 0 manusctito do fndice.” Randy Bird'célabotou no preenchimento das lacunas,‘nas eferéncias. Susan Wallace revisou o ma- nuscrito e, no’ proceso, eliminoumurnerosas inconsisténcias, redundancias ¢: infelicidades estilisticas, Todas’ essas pessoas ‘contribiifram’ matetial- | mente para a qualidade do produto final: Obviamente, ‘grande é o meu dever de gratidao'para'com elas,’ © Museu de Zoologia Comparada, mediante a cortesia do seu diretor, professor A.W. Crompton, proporcionou espago para o trabalho, apoio de secretatia e facilidades bibliotecdrias, mesmo apés eu me aposentar. Perfodos de pesquisa no Instituto de Estudos Avangados (Princeton, pri- mavera de 1970), na biblioteca do Instituto Max Planck de Biologia (Tubingen, 1970), uma bolsa como membro sénior da Fundago Alexan- der von Humboldt (Wirzburg, 1977), uma bolsa concedida pela Funda- go Rockefeller (Villa Serbelloni, Bellagio, 1977), e uma doagio (No, GS 32176), pela Fundagao Nacional da Ciéncia, facilitaram grandemente o meu trabalho, ‘Sempre que nao se podia dispor do apoio de secretaria, minha mulher assumia esse trabalho, transcrevia ditados, selecionava literatura, e ajuda- va de mil formas no trabalho do manuscrito, Impossfvel reconhecer ade- quadamente a sua inestimavel contribuigdo para este volume. Ernst Mayr Museu de Zoologia Comparada Universidade de Harvard 1, INTRODUCAO: COMO ESCREVER A HISTORIA DA BIOLOGIA ‘Tudo o que muda no tempo tem, por definigdo, uma histéria ~ 0 Uni- verso, os paises, as dinastias, a arte e a filosofia, ¢ as idéias. Também a cigncia, jé desde a sua origem nos mitos e nas filosofias primitivas, expe- rimentou uma coristante mudanga hist6rica, e por isso constitui um tema legitimo para o historiador. Tendo em vista que a esséncia da ciéncia é 0 Processo continuado de solugdo de problemas na busca de um ehtendi- ‘mento do mundo em que vivemos, uma hist6ria da ciéncia é antes de tudo uma hist6ria dos problemas da ciéncia e de sua solugio, ou de solugSes tentadas. Mas ela é também uma historia do desenvolvimento dos princf- ios que formam a estrutura conceitual da cigncia, Como as grandes con- trovérsias do passado muitas vezes se estendem até a ciéncia moderna, muitos problemas atuais nao poderio ser plenamente entendidos sem uma compreensdo da sua hist6ria. Historias escritas, como a prdpria ciéncia, necessitam constantemente de revistio. Interpretagdes errdneas de um autor antigo eventualmente se tomam mitos, aceitos sem discussio e transmitidos de geraco em gera- Go. Um particular empenho meu tem sido expor e eliminar o maior né- ‘mero possivel desses mitos ~ sem todavia, assim espero, criar em demasia outros novos. De qualquer maneira, a razao principal por que as hist6rias sofrem constantemente a necessidade de revistio consiste em que, em qualquer tempo determinado, elas meramente refletem o estado atual do conhecimento; elas dependem da maneira como o autor interpretou 0 corrente zeitgeist” (espfrito do tempo) da biologia, da sua propria estrutu- ra conceitual € de conhecimentos. Dessa forma, a atividade de escrever hist6ria € necessuriamente subjetiva e efémera." Quando comparamos entre si publicagbes sobre hist6ria das ciéncias, toma-se de relance evidente que historiadores diferentes tm conceitos perfeitamente diversos sobre a ciéncia, bem como sobre o escrever hist6- tia. Ultimamente, todos eles procuram retratar 0 aumento do conheci- * 0 tradutor achow por bem manter ao longo do'livro, como acontece no original em inglés, 0 termo zeitgeist com a cortespondente expressio em portugues ~ “espfrto do {empo”. E © mesmo acontece com outros termos estrangeiros usados pelo autor na obra cviginal. (N, do R.T.) 16 O DESENVOLVIMENTO DO FENSAMENTO BIOLOGICO mento cientéfico e as flutuagdes dos conceitos interpretativos, Mas nem todos os historiadores da ciéncia tentaram responder as seis questdes Drincipais que devem ser encaradas por qualquer um que se proponha descrever 0 progresso da ciéncia, de modo critico e compreensivo: Quem? Quando? Onde? O qué? Como? e Por qué? Tomando como base @ escolha feita pelos autores dentre essas questdes, a maioria das hist6rias que conhego pode ser classificada da maneira seguinte (Cf, Passmore, 1965: 857-861), embora se deva reconhecer que quase todas as histérias siio uma combinagio das vérias abordagens ou estratégias. Historias lexicograficas Estas so mais ou menos hist6rias descritivas, com uma forte énfase nas questdes sobre O qué? Quando? e Onde? Quais foram as principais atividades em determinado perfodo do pasado? Quais foram os centros de cigncia em que os cientistas prineipais trabalharam, e como eles influen- ciaram o curso do tempo? Ninguém poderd contestar o valor de tais hist6- rias, Uma correta apresentagao dos fatos verdadeiros é indispensével, Porque. grande parte da hist6ria tradicional da ciéncia (e dos seus textos Padrdo) € permeada de mitos e de anedotas espiirias. Todavia, uma histé- ria puramente descritiva fornece apenas parte da historia Histérias cronolégicas ‘Uma considerago da seqliéncia do tempo é crucial para toda espécie de historiografia. Por certo, pode-se fazer da cronologia o eritério princi- Pal de organizagio, e alguns autores assim o fizeram. Eles indagaram, Por exemplo, o que aconteceu em biologia entre 1749 e 1789, ou entre 1789 e 1830? Hist6rias cronolégicas apresentam uma seqiiéncia de se- Ges cruzadas ao longo do conjunto dos desdobramentos em todos os ramos da biologia, Isso ndo € apenas uma aproximagio legitima, mas também muito reveladora. Ela cria uma sensibilidade para 0 zeitgeist e ara o conjunto das influéncias contemporaneas. Ela permite investigar como os desenvolvimentos em outros ramos da ciéncia puderam influen- ciar a biologia, e mesmo como, no seio da propria biologia, os avangos efetuados por experimentalistas afetaram 0 pensamento dos naturalistas, © vice-versa. A compreensiio de muitos problemas no desenvolvimento COMO ESCREVER A HISTORIA DA BIOLOGIA ” ibordagem cronolégica. da biologia é grandemente facilitada por essa at Mas, todavia, ela padece do inconveniente de atomizar todo problema cientifico maior. Historias biogrdficas ‘O empenho dessas obras é no sentido de retratar os progressos da cién- cia através das vidas dos principais cientistas. Essa aproximagdo também 6 legitima, uma vez que a ciéncia é feita por pessoas, e impacto de cien- tistas individuais como Newton, Darwin e Mendel foi muitas vezes de natureza quase revolucionéria. Mas, de qualquer maneira, essa aborda- gem compartilha uma séria fragilidade com a abordagem puramente cro- nol6gica: ela atomiza cada problema cientifico maior. O problema das espécies, por exemplo, deveria ser discutido sob Plato, Aristételes, Ce- salpino e os herbalistas, Buffon, Lineu, Cuvier, Darwin, Weismann, Nigeli, de Vries, Jordan, Morgan, Huxley, Mayr, Simpson, e assim por diante. Todavia, essas discusses sobre o mesmo problema ficam separa- ddas umas das outras por muitas pdginas, senio por capftulos. Historias culturais e sociolégicas Essa aproximagiio sublinha 0 aspecto que a ciéncia é uma forma de atividade humana, e por isso insepardvel do meio intelectual e institucio- nal da época, Trata-se de um ponto de vista particularmente fascinante para agueles que chegam a histria da ciéncia pelo caminho da histéra ‘geral, Eles podem levantar questdes tais como: por que a ciéncia briténi- a, de 1700 a 1850, era tio fortemente experimental ¢ mecanicista, en- quanto a ciéncia francesa contemporinea tendia a ser matemética e racionalista? Por que a teologia natural dominou a ciéncia na Inglaterra por 75 anos a mais do que no Continente? Em que medida a teoria da selegdo natural de Darwin foi um ponto da revolugio industrial’ "Mesmo que © historiador de biologia opte por néo adotar essa apro- ximagilo, ele deve estudar cuidadosamente o ambiente cultural e intelec- tual de um cientista, se quiser determinar as causas do aparecimento de novos conceites. Isso é de evidente importincia no presente trabalho, uma vez que um dos objetivos maiores do meu esforgo 6 investigar as raz6es das mudangas nas teorias biolégicas. O que possibilitou a um pes- 18 (ODESENVOLVIMENTO DOPENSAMENTO BIOLOGICO quisador fazer uma descoberta que escapou aos seus contemporineos? Por que ele rejeitou as interpretagdes tradicionais para desenvolver uma nova? De onde Ihe veio a inspiragao para essa nova abordagem? Sio questoes que devem ser levantadas, As mais antigas hist6rias da ciéncia, particularmente as de disciplinas cientificas especiais, foram escritas por cientistas atuantes, que tinham por certo que o eld da mudanga cientifica provinha do interior do proprio campo (influéncias “intemnas”). Mais tarde, quando a hist6ria da ciéncia se tornou mais profissional, e os historiadores e socidlogos comegaram a analisar 0 progresso do pensamento cientifico, elas tenderam a acentuar a influéncia geral do meio intelectual, cultural e social da época (influén- cias “externas”). Ninguém ousaria por em diivida que ambas as espécies de influéncias existem, mas hd uma grande medida de desacordo sobre a sua importancia relativa, particularmente em relagio a desenvolvimentos especificos, como a teoria da selegio natural de Darwin, Muitas vezes até & bem dificil distinguir fatores externos de fatores, intemnos. A Grande Cadeia do Ser (scala naturae) era um conceito filos6- fico que exerceu claramente um impacto na formagio dos conceitos, no caso de Lamarck e de outros evolucionistas primitivos. Nao obstante, Atistételes havia desenvolvido esse mesmo conceito, com base em ob- servagbes empiricas dos organismos. Mas, por outro lado, ideologias universalmente aceitas situam-se entre os fatores externos mais inquesti ondveis. O dogma cristo do criacionismo e a questio de um plano, pro- cedente da teologia natural, dominaram 0 pensamento biolégico durante séculos. O essencialismo (desde Platio) é outra ideologia todo-poderosa. Interessante notar que a sua temogo, por obra de Darwin, foi largamente devida a observagées de criadores de animais e de taxionomistas — isto é, a fatores internos. Os fatores externos nao se originam necessariamente da religifo, da filosofia, da vida cultural ou politica, mas ~ no que concemne a biologia — eles podem ter origem numa ciéncia diferente. O fisicalismo externo (in- cluindo 0 determinismo ¢ 0 extremo reducionismo), que prevalecia no pensamento ocidental apés a revolugio cientifica, influenciou fortemente a formagio teérica em biologia, por muitos séculos, muitas vezes, inclu- sive, exatamente contra aquilo que hoje € evidente. A l6gica escoléstica, para citar outro exemplo, dominou 0 método taxiondmico, desde Cesalpi no até Lineu. Tais exemplos, que poderiam ser acrescidos de muitos ou- tos, documentam sem diivida a importincia de influéncias externas na formagio de teorias biolégicas. Serio analisadas detalhadamente nos capitulos competentes. (COMO ESCREVER A HISTORIA DA BIOLOGIA 19 Importa ter presente que os fatores extemnos influenciam a ciéncia de duas maneiras completamente diferentes: eles podem ou afetar por com- pleto o nivel da atividade cientffica, num dado lugar e num dado tempo, ou afetar e até dar origem a uma particular teoria cientfica. Com muita frequiéncia, no passado, esses dois aspectos andaram juntos, resultando em muita controvérsia sobre a importancia relativa de fatores externos versus internos. O efeito' das condig6es circunstantes sobre 0 “nfvel” das atividades cientfficas sempre foi considerado, desde quando existiu uma histéria da ciéncia. Especulou-se infinitamente sobre as razSes que levaram os gre- g0s a terem tanto interesse pelas questdes cientificas, e por que durante o Renascimento houve um ressurgimento da ciéncia. Qual foi o efeito do Protestantismo sobre a ciéncia (Merton, 1938)? Por que durante 0 século ‘XIX a ciéncia conheceu um tdo vasto florescimento na Alemanha? Em. alguns casos, podem ser especificados importantes fatores. externos, como, por exemplo (segundo destacou Merz, 1896-1914), a substituigzo, em 1694, do latim pelo alemo na Universidade de Halle, e a fundacao, em 1737, de uma Universidade em Gdttingen, onde a Wissenschaft (Ciéncia)” desempenhava um importante papel. Mudangas institucionais de toda sorte ~a fundagao da Royal Society inclusive -, eventos politicos, como as guerras, ¢ o langamento do Sputnick, bem como necessidades tecnolé- gicas, tiveram um efeito ora estimulante ora depressivo sobre o nivel da atividade cientifica, Todavia, isso ainda deixa em aberto a questo alta- mente controvertida sobre em que medida tais fatores externos favorece- ram ou inibiram teorias cientfficas “especfficas”. Em anos recentes, historiégrafos marxistas, em particular, formularam tese segundo a qual ideologias sociais influenciam as idéias de um cien- tista, © que « histGria da ciéncia, como até agora praticada, negligenciou completamente 0 contexto social. © resultado foi, segundo acreditam, uma hist6ria burguesa da ciéncia, que é totalmente diferente daquilo que seria uma hist6ria proletéria da ciéncia. O que faz falta em vez disso, dizem eles, é uma hist6ria “radical”. Essa exigéncia remonta em dltima instiincia A tese de Marx, segundo a qual idéias dominantes nao podem ser separadas de classes dominantes. Por isso é que uma hist6ria burguesa da cigncia sera completamente diferente de uma histéria proletéria da ciéncia, + Ver nota do revisor téenico & pég. 15, 20 ‘O DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO Seja como for, a tese de que existe uma maneira proletéria de escre- ver a histéria da ciéneia estd/em conflito com trés grupos de fatos: pri meiro, as massas no estabelecem teorias cientfficas que sejam diferentes daquelas da classe cientifica. Se alguma diferenca existe, ela reside em que o “homem comum” muitas vezes retém idéias que jé foram hd muito tempo descartadas pelos cientistas, Segundo, hé uma grande mobilidade social entre os cientistas, onde de um quarto a um terco de cada nova safra de cientistas provém das classes socioecondmicas mais baixas, Ter- ceiro, a ordem de nascimento dentro de uma classe social tende a ser muito mais importante na determinagdo daqueles que dio origem a idéias novas e revoluciondtias, do que 0 fato de uma classe particular (Sulloway, MS). Tudo isso estd em conflito com a tese de que 0 ambiente socioeco- nGmico exerce um impacto dominante no nascimento de idéias e concei- tos cientificos particularmente novos. Cabe evidentemente aos autores dessas proposigdes a tarefa de fornecer provas, ¢ isso tanto mais quanto falharam em apresentar alguma evidéneia concreta, qualquer que seja (veja Capftuto 11) Evidentemente, ninguém vive num vacuo, e todo aquele que Ié vo- razmente, como por exemplo o fez Darwin apés o seu retorno da viagem do Beagle, sujeita-se a ser influenciado por suas leituras (Schweber), 1977). Os cademnos de notas de Darwin so exemplo evidente da justeza dessa inferéncia. Todavia, como sublinha Hodge (1974), isso por si s6 nfo prova a tese dos marxistas que “Darwin e Wallace estenderam 0 ethos do laissez-faire capitalista da sociedade a toda a natureza”. Até agora, parece que a influéncia de fatores sociais no desenvolvimento de rogressos especificos em biologia tem sido negligencidvel. O inverso, obviamente, no é verdadeiro. Mas o estudo do impacto da ciéncia sobre a teoria social, sobre instituigdes sociais e sobre a politica pertence aos dominios da hist6ria, da sociologia e da ciéncia politica, e nao ao da his- t6ria da ciéncia, Concordo com Alexander Koyré (1965:856), no sentido que € fatil “deduzir a existéncia” de certos cientistas € ciéncias da ‘sua circunstincia. “Atenas no explica Plato, assim como Siracusa nfo ex- plica Arquimedes, ou Florenga Galileu. Procurar explicagSes nessa linha € uma empreitada inteiramente fitil, e Zo fitil como tentar predizer a evolugao futura da ciéncia, ou das ciéncias, como uma fungdo da estrutu- ra do contexto social”. Thomas Kuhn (1971: 280) observou igualmente que 0 historiador parece invariavelmente emprestar “excessiva énfase a0 papel do clima circunstante de idéias extracientificas” (veja também Passmore, 1965). (COMO ESCREVER A HISTORIA DA BIOLOGYA 21 Histérias de problemas Ha‘mais de cem anos, Lord Acton aconselhou 20s historiadores: “Estudai problemas, no perfodos”. Esse conselho € particularmente apropriado para a hist6ria da biologia, que se caracterjza pela longevidade dos seus problemas cientfficos. Muitas das grandes controvérsias do s6- culo XIX e comego do século XX dizem respeito a problemas jé conheci- dos por Arist6teles. Tais controvérsias perduram de geragao a geragio, de século a século, Elas so processos, nao eventos, ¢ s6 poderio ser ple- namente compreendidas por meio de um tratamento hist6rico. Como R. G. Collingwood disse da histéria (1939:98), ela “se refere no a eventos ‘mas a processos. Processos sao coisas que nao comegam e terminam, mas que se imbricam umas com as outras”. Isso deve ser particular-mente sublinhado em face das posigdes estéticas dos positivistas légicos, que pensavam que a estrutura Iégica era o real problema da ciéncia: “A filosofia da ciéncia € concebida (por eles) primariamente como uma andlise cuidadosa e detalhada da estrutura I6gica e dos problemas con- ceituais da ciéncia contemporinea” (Laudan, 1968). Atualmente, a maio- ia dos problemas cientificos so melhor entendidos pelo estudo da sua hist6ria do que da sua l6gica. De qualquer maneira, é preciso lembrar que 4 histéria dos problemas nao substitui a hist6ria cronol6gica. As duas abordagens so complementares. Na aproximagio problemitica, a énfase principal situa-se na hist6ria das tentativas de solugao dos problemas - por exemplo, a natureza da fertilizagio, ou o fator diretivo na evolugao. E apresentada a hist6ria nfio apenas das tentativas bem-sucedidas, mas também das tentativas fracas- sadas, na solugdo desses problemas. No tratamento das maiores contro- vérsias nese campo, faz-se esforgo no sentido de analisar as ideologi (ou dogmas), tanto quanto a particular evidéncia com que os adversérios sustentaram as suas teorias contrérias. Na hist6ria dos problemas, a énfa- se concentra-se no cientista atuante e no seu mundo conceitual. Quais foram os problemas cientificos do seu tempo? Quais foram os instru- ‘mentos conceituais ¢ técnicos de que dispunha na sua busca de uma solu- Go? Quais foram os métodos que ele pode utilizar? Que idéias predominantes na sua época orientaram a sua pesquisa e influenciaram as suas decis6es? Questdes dessa natureza prevalecem na aproximago da hist6ria de problemas, Foi essa a abordagem que eu escolhi para o presente livro. O leitor pode estar certo do fato que esta ngo & uma histéria tradicional da ciéncia, Devido & sua concentragdo na hist6ria dos problemas ¢ dos conceitos n ( DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO cientificos, ela necessariamente desconsidera os aspectos biogréficos e sociolégicos da histéria da biologia. Ela poderé, assim, ser utilizada con- juntamente com a hist6ria geral da biologia (como a de Nordenskidld, 1926), com 0 Diciondrio de biografia cientifica, e com hist6rias dispont- yeis sobre Areas especiais da biologia. Tendo em vista que eu sou um bidlogo, sou mais bem qualificado para escrever uma histéria dos pro- bblemas e conceitos da biologia do que uma hist6ria biogrdfica ou socio- légica. E proprio da esséncia da hist6ria dos problemas indagar o “porqué”. Por que foi na Inglaterra que a teoria da selegdo natural se desenvolveu, de fato independentemente, por quatro vezes? Por que a genufna genética da populac&o apareceu na Riissia? Por que os esforgos explicativos em genética, de Bateson, eram quase uniformemente errados? Por que Cor- rens se perdeu em toda sorte de problemas periféricos, e por isso to pou- co contribuiu para maiores avangos em genética, apés 1900? Por que @ escola de Morgan dedicou pof tantos anos os seus esforgos na consolida- io da ja bem-estabelecida teoria dos cromossomos da hereditariedade, em vez de abrir novas fronteiras? Por que de Vries e Johannsen foram tio ‘menos exitosos na aplicago evolucionista das suas descobertas, do que no seu trabalho direto em genética? As tentativas de respostas para essas perguntas requerem a coleta ¢ o exame atento de muitas evidéncias, ¢ isso ‘quase sempre conduz a novas aberturas, mesmo que a respectiva questo resulte invdlida, Respostas 2s perguntas “por que” sfo inevitavelmente algo de especulativo e subjetivo, mas elas obrigam a um ordenamento das observagdes € ao teste constante de conclusdes consistentes com 0 méto- do hipotético-dedutivo. ‘Agora que a legitimidade das questOes do porqué foi estabelecida mesmo para a pesquisa cientifica, particularmente na biologia evolutiva, no serd dificil admitir a legitimidade dessas perguntas na historiografia. Na piog das hipsteses, a andlise detalhada exigida por tal pergunta poderé evidenciar que as pressuposigdes latentes na questo estiio erradas. Mas ‘mesmo isso pode significar um avango do nosso conhecimento, Ao longo deste volume, esforcei-me por analisar cada problema to profundamente quanto possfvel, e por dissecar teorias e conceitos hetero- géneos nos seus componentes individuais. Nem todos os historiadores tiveram consciéneia da complexidade de muitos conceitos biolégicos ~ em realidade, de como é complexa a estrutura da biologia como um todo. Em conseqiiéncia disso, alguns relatos excessivamente confusos da hist6- ria da biologia tém sido publicados por autores que ndo entenderam que ‘COMO ESCREVER A HISTORIA DA BIOLOGIA 23 existem duas biologias, uma das causas funcionais, outra das causas evolutivas. Da mesma forma, alguém que venha a escrever sobre “a teo- ria da evolugéo de Darwin" no singular, sem distinguir as teorias da evolugdo gradual, descendéncia comum, especiagio, eo mecanismo da selegdo natural, serd simplesmente incapaz de discutir o assunto com competéncia. Grande parte das maiores teorias biol6gicas ~ quando fo- ram apresentadas pela primeira vez — no passava de tais compostos. A sua hist6ria e 0 seu impacto nfo poderdo ser compreendidos, a menos que 0s seus varios componentes sejam separados e estudados indepen- dentemente. Eles muitas vezes pertencem a linhagens conceituais muito diferentes. Estou plenamente convencido de que nao é possfvel entender 0 cres- cimento do pensamento biolégico sem uma compreensio da estrutura conceitual da biologia. Por essa razo, procurarei apresentar as idéias e os coneeitos da biologia de uma forma bastante detalhada, Isso foi particu- larmente necessério no tratamento da diversidade (Parte 1), porque nao existe nenhum outro tratamento adequado, ou estrutura conceitual, relati- vo a ciéncia da diversidade. Estou consciente do perigo que algum critico possa exclamar: “Mas isso € um livro-texto de biologia, historicamente arranjado!” Talvez seja isso mesmo que uma hist6ria dos problemas da biologia deva ser. Talvez, a maior dificuldade a ser superada por uma concepgio histérica da biologia seja a longevidade das controvérsias, Muitas das discusses ainda em voga tiveram a sua origem hé geragdes & mesmo ha séculos, algumas delas remontando até os gregos. Uma apre- sentagéo mais ou menos “intemporal” dessas questOes 6 mais construtiva, nesses casos, do que uma apresentagdo cronolégica. Tentei fazer de cada uma das maiores segdes do presente volume (Diversidade, Evolugio, Heranga) uma unidade acabada e independente. Igual separagio foi tentada em cada problema em particular, no interior dessas tr@s dreas maiores. Isso conduz a certo mimero de superposigées & redundéncias, porque existem muitas conexdes cruzadas entre os diver sos tépicos, ¢ cada jungio tépica passa pela mesma seqiiéncia de meios intelectuais interdependentes no tempo. Esforcei-me especialmente por um equilforio entre certo niimero de duplicagdes inevitéveis e convenientes referéncias da transigdo para outros capitulos. Subjetividade e viés Uin bem-conhecido teérico soviético do Marxismo referiu-se uma ‘Vex aos meus escritos como sendo “puro materialismo dialético”. Nao on ODESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO sou um marxista, e no conheco a tiltima definigto do materialismo dia~ Iético, mas devo admitir que compartilho algumas das idéias anti- reducionistas de Engels, tais como expressas no Anti-Diihring, € que sou grandemente atraido pelo esquema hegeliano da tese-antitese-sintese. ‘Além disso, acredito que uma antitese & mais facilmente provocada pela formulagio categérica de uma tese, e que a questio € mais prontamente resolvida por tal confronto de tese e ant{tese irredutiveis, e que a sintese final 6 por isso alcangada de forma mais répida. Muitos exemplos disso podem ser encontrados na histéria da biologia. Esse ponto de vista dominou a minha exposicio. Sempre que possf- vel, tentei a sintese de posigdes contrérias (a menos que uma delas seja claramente errada). Quando a situacao € simplesmente insolivel, descre- ‘yo os pontos de vista opostos em termos categéricos, por vezes até unila~ terais, de modo a provocar uma réplica, desde que justificavel. Por detestar fazer rodeios, fui taxado As vezes de dogmético. Penso que este € um epfteto errado para a minha atitude. Uma pessoa dogmatica insiste em estar certa, sem consideragio pela evidéncia contréria. Essa nunca foi a minha atitude e, na verdade, orgulho-me pelo fato de ter mudado de opi- nifio em freqiientes ocasides. Em todo caso, verdade € que a minha tética consiste em fazer afirmagdes categ6ricas ¢ radicais. Se isso € ou no uma falha, no mundo livre do intercambio de idéias cientificas, € ponto discu- tivel. Segundo a minha particular maneira de sentir, isso conduz mais rapidamente & solugdo definitiva dos problemas cientfficos do que a uma posigao hesitante e cautelosa. Por certo, concordo com Passmore (1965) no sentido que hist6rias sempre sto polémicas, Tais hist6rias despertam contradigGes, € desafiam o leitor para uma contestago. Pelo processo dialético, isso apressa uma sintese da perspectiva. A adogo, sem ambi- gilidade, de um ponto de vista definitivo no deverd ser confundida com subjetividade. ‘A adverténcia tradicional aos historiadores sempre foi no sentido de serem estritamente objetivos. Esse ideal foi bem expresso pelo grande historiador Leopold von Ranke, quando disse que 0 historiador deve “mostrar como realmente foi”. A hist6ria era encarada por ele como a cuidadosa reconstrugao de uma série de eventos passados. Tal objetivida- de é inteiramente apropriada quando se tenta responder s perguntas so- bre “quem”, “o qué”, “quando” e “onde”, embora se deva acentuar que, mesmo ao apresentar fatos, o historiador é subjetivo, porque ao destacar 08 fatos ele utiliza julgamentos de valor, ¢ 20 decidir sobre quais so aceitaveis e como relacioné-los uns com os outros é seletivo, ‘COMO ESCREVER A HISTORIA DA BIOLOGIA 2s A subjetividade entra em cada fase de um relato de histéria, especi almente quando se procuram explicagdes © quando se pergunta 0 “porqué”, como é necessério numa hist6ria de problemas. Nao se pode chegar a explicagées sem usar 0 prdprio julgamento pessoal, ¢ isso € inevitavelmente subjetividade. Um tratamento subjetivo & usualmente ‘muito mais estimulante do que um julgamento frio ¢ objetivo, porque tem maior valor heurfstico. Em que medida a subjetividade permitida, e quando ela se toma um és? Rad! (1907-08), por exemplo, tinha um tio forte preconceito antidarwiniano que nfo era nem mesmo capaz de apresentar a teoria de Darwin adequadamente. Isso claramente foi longe demais. A subjetivida- de & apta a tornar-se viés sempre que € envolvida a avaliagio dos cien- tistas sobre os perfodos anteriores. Aqui os historiadores tendem a ir @ um ot a outro extremo, Ou adotam puramente uma aproximagdo retros- pectiva, em que se avalia 0 passado inteiramente & luz dos conhecimentos f compreensio atuais, ou entio suprimem por completo uma interpreta- {gio e descrevem os eventos passados estriamente em termos do pensa- Trento daquela época. Parece-me que nenhuma dessas aproximagoes ¢ inteiramente satisfat6ria. Um procedimento mais adequado seria combinar os melhores as- peotos das duas abordagens. Ele procuraria antes de tudo reconstruir 0 Jneio intelectual do perfodo, tio fidedignamente quanto possivel. Mas ndo seria satisfat6rio tratar as controvérsias passadas estritamente em termos da informago e opacas como o eram quando surgiram, Em vez disso, o conhecimento moderno deverd ser usado sempre que ele ajudar & entender as dificuldades do passado, Somente uma aproximagio desse tipo nos habilita a determinar as razSes das controvérsias e 0 fracasso em resolvé-las. O que é uma dificuldade seméntica (por exemplo, 0 uso da mesma palavra em sentidos diferentes), ou uma discordncia conceitual (como pensamento essencialista versus pensamento de populagio), ou tum erro primario (como a confusdo entre causas tiltimas ¢ causas proxi- ‘mas)? Um estudo das controvérsias passadas é particularmente esclarece- dor, se 08 argumentos € as objegdes forem analisados em termos do nosso conhecimento atual, Os problemas seménticos so particularmente tediosos pelo fato de serem tio amitide desconhecidos. Os gregos, por exemplo, tinham um vocabulério técnico muito limitado, ¢ muitas vezes usavam 0 mesmo termo para coisas e conceitos bem diferentes. Tanto Plato como Arist6- teles usaram o termo eidos (e Aristételes, pelo menos, usou-o em diver- 26 ‘ODESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO. sos sentidos), mas o sentido principal do termo é totalmente diferente nos dois autores. Plato era um essencialista, enquanto Aristételes 6 era ape- nas num sentido bem limitado (Balme, 1980). Aristételes usou o termo genos ocasionalmente, como um substantivo coletivo (correspondendo a0 genero dos taxionomistas), mas muito mais freqlientemente no sentido de espécie. Quando Aristételes foi redescoberto, na alta Idade Média, ¢ traduzido para o latim e outras Ifnguas européias ocidentais, os seus ter- mos foram traduzidos em termos “equivalentes”, dispontveis nos dicio- nérios medievais. Essas tradugdes equivocadas tiveram uma infeliz influéncia no nosso entendimento do pensamento aristotélico. Alguns autores modems tiveram a coragem de usar termos modernos para re- velar 0 seu pensamento, termos que Aristételes teria usado de boa mente se fosse vivo hoje. Lembro o uso da expresso “programa genético”, de Delbriick, para esclarecer'a intengao de Aristételes quando usa a palavra eidos na descrigio do desenvolvimento individual. Da mesma forma, poder-se-ia utilizar “teleonomia”-(em vez. de “teleologia”), quando Aris- (Gteles discute a diregdo orientada, controlada por uma eidos (programa). ‘Nao vai nisso anacronismo, mas € simplesmente uma forma de tomar mais claro 0 que um autor antigo pensava, mediante o uso de uma termi- nologia sem ambigtiidade para um leitor moderno. Todavia, seria totalmente impréprio usar interpretagées modemas para jufzos de valor, Lamarck, por exemplo, nio estava assim tio errado como parece aos familiarizados com o selecionismo ¢ com a genética mendeliana, quando relacionava em termos dos fatos por ele conhecidos € das idéias dominantes na sua época. A expressio “interpretago liberal da hist6ria” foi introduzida pelo historiador Herbert Butterfield (1931), para caracterizar 0 habito de alguns historiadores constitucionais ingleses de encararem 0 seu objeto como uma ampliaciia progressiva dos direitos humanos, onde bons liberais “progressistas” esto sempre em luta contra conservadores “retrégrados”. Butterfield, mais tarde (1957), aplicou o termo whiggish” (liberal) a essa espécie de hist6ria da ciéncia, em que todo cientista ¢ julgado peto alcance da sua contribuigao para 0 estabele- cimento da nossa interpretagdo corrente da ciéncia. Em vez de avaliar um cientista em termos do ambiente intelectual em que ele atuou, passa-se a avalié-lo estritamente em termos dos conceitos atuais. Nessa abordagem ignora-se completamente 0 contexto dos problemas ¢ conceitos em que * Ver nota do tevisortécnico & pig. 15, (COMO ESCREVER 4 HISTORIA DA BIOLOGIA 2 se movia o cientista antigo, A hist6ria da biologia est cheia dessas inter- pretagGes livres, distorcidas, whig* Sempre que hé uma controvérsia cientifica, os pontos de vista da parte perdedora so mais tarde, quase sempre, deturpados pelos vitorio- sos. $40 exemplos disso o tratamento de Buffon pelgs lineanos, de La- marck pelos cuvierianos, de Lineu pelos darwinianos, de biometristas pelos mendelianos, assim por diante. © historiador de biologia deve esforgar-se por apresentar um relato melhor balanceado. Muitas teorias, hoje rejeitadas, como a da hereditariedade dos caracteres adquiridos, esposada por Lamarck, pareciam formalmente to consistentes com os fatos que os autores nao softiam erfticas por haverem adotado essas teo- rias dominantes, embora hé tempo se tenham revelado erradas. Quase sempre, aqueles que sustentaram uma teoria errénea tinham aparente- mente razbes validas para assim proceder, Eles tentavam enfatizar alguma coisa que foi negligenciada pelos seus oponentes. Os pré-formacionistas, por exemplo, empenharam-se em acentuar algo que mais tarde foi ressus- citado, como 0 programa genético. Os biometristas defenderam os con- ceitos darwinianos da evolugio gradual, contra 0 saltacionismo dos mendelianos. Em ambos os casos, idéias corretas foram misturadas com idéias errOneas, e juntas pereceram com os erros. No meu caso, pretendo dar especial atengdo aos menosprezados (sejam eles pessoas ou teorias), porque, pelo passado, eles foram muitas vezes tratados deslealmente, ou 20 menos de modo inadequado, © caminho da ciéncia nunca é linear. Sempre hé teorias que rivali- zam entre si, e grande parte da atengio dedicada a um periodo poderd ser dirigida a questdes periféricas, que eventualmente acabam por se revela- rem estéreis. Tais desdobramentos, porém, muitas vezes iluminam mé Ihor o zeitgeist de uma época do que os avangos diretos da ciéncia. Infelizmente, a falta de espago impede um tratamento adequado de mui- tos desses desenvolvimentos. Nenhuma hist6ria pode permitir-se tratar de cada causa perdida e de cada desvio. Contudo, existem excegdes. Algu- ‘mas falhas e erros do passado revelam, de modo muito adequado, aspec- tos do pensamento contempordneo, que, caso contrério, perderfamos de vista. O quinarianismo de Macleay e de Swainson, por exemplo, que foi totalmente eclipsado pelo Origem das espécies, representou um esforgo sincero de reconciliar a diversidade aparentemente castica da natureza com a entdo convicgdo dominante de que deveria existir alguma ordem “mais elevada” na natureza. Ele também revela a permanéncia ainda po- 28 O DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLGICO derosa do velho mito que toda ordem no mundo é em viltima insténcia numérica, Por mais equivocada e efémera que tenha sido a teotia do qui narianismo, ela contribui, sem embargo, para 0 nosso entendimento do pensamento da sua época. O mesmo pode ser dito de quase toda teoria ou escola do passado, que ndo so mais consideradas validas. Os interesses de um historiador, necessariamente, influenciam a sua deciséo quanto a quais questdes merecem ser tratadas com maior detalhe, e quais outras apenas sumariamente. Inclino-me a concotdar com Schuster, que disse no The progress of Physics (1911) Prefiro set francamente subjetivo, ¢ advirto-lhes de antemdo que 0 meu relato seri fragmentério, e em grande medida evocative daqueles as- ectos que se coadunaram com as minhas préprias e pessoais convie- ges. Historiadores versus cientistas Dois grupos de eruditos, com pontos de vista e formagio inteira- mente diferentes — historiadores e cientistas -, tém reclamado para si 0 direito de uma historia da ciéncia. As suas respectivas contribuigdes sto a seu modo diferentes, ditadas pela diversidade dos seus interesses e com- peténcia. Um cientista tende a selecionar, para anilise e discussio, pro- bblemas bastante diferentes do que seria os de um historiador ou socidlogo. Por exemplo, em relatos recentes sobre a evolugio, produzi- dos por virios evolucionistas, H. Spencer quase no recebeu nenhuma atengio, HA boas razbes para essa negligencia. Spencer niio apenas era vago e confuso, mas as idéias que ele defendia cram as de outros, ¢ jé obsoletas quando ele as assumiu. Que as idéias copiadas de Spencer eram bem populares e influentes, em relagiio ao piiblico em geral, isso é sem divida uma verdade, mas nao compete ao historiador cientista invadir 0 dominio do sociélogo. Falta usualmente aos biologistas a competéncia para tratar de hist6ria social. Por outro lado, seria perfeitamente ridiculo pretender que um historiador social apresentasse uma andlise competente de conquistas cientificas. A histéria da ciéncia requet inspiragdo, infor- mago e apoio metodolégico, tanto da cincia como da histéria, e, em contrapartida, contribui com as suas descobertas para aibos os campos. Existem razées vélidas para 0 interesse, tanto de historiadores como de cientistas, na hist6ria da ciéncia. Os gregos nio possufam uma ciéncia, ‘COMO ESCREVER A HISTORIA DA BIOLOGIA 29 como a definimos hoje, e aquela que eles manipulavam era praticada por filésofos e por fisicos. Depois da Idade Média, houve uma continua ten- déncia & emancipagdo da ciéncia em relagGo a filosofia e ao zeitgeist” geral. No perfodo da Renascenga, e durante 0 século XVIII, as idéias cientfficas eram fortemente influenciadas pela atitude dos cientistas em face da religido e da filosofia. Um cartesiano, um cristao ortodoxo, ou um defsta teriam inevitavelmente conceitos diversos sobre cosmologia, gera- Fo, e demais aspectos relativos a interpretagao da vida, da matéria, e das origens. Nada assinalou de modo mais definitivo a emancipagdo da cién- cia em face da religifo e da filosofia do que a revolugio darwiniana, Desde aquele tempo, tomou-se praticamente impossivel dizer, com base em publicagGes cientfficas de um autor, se ele era um cristio devoto ou um ateu, Exceto em relagdo a alguns fundamentalistas, isso é verdadeiro ‘mesmo para os escritos dos biologistas sobre o assunto da evolugio. Essa tendéncia & emancipagdo da ciéncia teve um considerdvel efeito sobre a historiografia da ciéncia. Quanto mais longe retrogredirmos no (empo, tanto menos importante se toma o acervo dos conhecimentos cientfficos do perfodo, e tanto mais importante a atmosfera intelectual dominante. No que tange 2 biologia, s6 apés mais ou menos o ano de 1740 os problemas cientfficos comegam a afastar-se das controvérsias intelectuais gerais da época, E indiscutfvel que os historiadores so parti- cularmente bem qualificados para tratar do perfodo mais antigo da hist6- ria da biologia. De qualquer maneira, a hist6ria de disciplinas biolégicas especiais dos séculos XIX ¢ XX foi inteiramente dominada por cientistas, até a sua profissionalizagio em época bem recente. Isso fica bem ilustra- do pelas histrias recentes de dreas de biologia especiais, como as de Dunn, Stubbe e Sturtevant, em genética; de Fruton, Edsall e de Leicester, em bioguimica; de Needham e de Oppenheimer, em embriologia; de Baker e Hughes, em citologia; de Stresemann, em ornitologia; isto s6 para mencionar uns poucos nomes na vasta literatura. Elas demonstram a qualificagao dos cientistas para a pesquisa histérica O vies dos ciemtistas fisicos Muitas histérias gerais da “ciéncia” foram escritas por historiadores da fisica, os quais nunca superaram inteiramente a atitude paroquial de nota do revisor téenico & pig. 15. 30 ODESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO considerar que qualquer coisa que nio for aplicével em fisica ndo & cién- cia, Cientistasfisicos tendem a avaliar os bi6logos numa escala de valo. res que depende da medida em que biélogo uilizou “leis”, mensuragdes, experimentos, ¢ outros aspectos da pesquisa ciemtifica, allamente consi, derados nas cigncias fisicas. Como resultado, os julgamentos sobre 2s reas de biologia emitidos por certos historiadores das ciéncias fisicas encontréveis nessa literatura, so tio burlescos que no se pode sento sorrir. Por exemplo, sabendo que Darwin desenvolveu a sua historia da evolugdo baseando-se largamente nas suas observagdes como naturalista 86 podemos ficar estupefatos diante desta afirmaglo feita por um bem conhecido historiador de Newton: © naturalista € certamente um observador treinado, mas as suas observa 0es diferem das de um guarda florestal apenas em grat, ndo em espé- cie; a sua tinica qualificagio esotérica consiste na familiaridade com nomenclatura sistemética, Esse tipo de pensamento fisicalista distorcido 6 inteiramente deslocado no estudo da biclogia evolutiva, como veremos no Capitulo 2. A forma- so de teorias e a sua histéria na biologia evolutiva e sistemética requerem uma aproximagdo radicalmente diferente, aproximagio essa que de alguma forma mais se assemelha & adotada por um historiador da arqueologia, ou por um intérprete da moderna histéria do mundo. Outros viéses ‘Nio apenas 0 fisico, mas qualquer especialista, com toda naturalida- de, considera que 0 seu dominio particular de pesquisa 6 0 mais interes sante de todos, e 0 seu método 0 mais produtivo. Em conseqiiéncia disso, ‘muitas vezes instaura-se entre os campos uma espécie de chauvinismo invejoso, e mesmo no interior de um campo como a biologia. £ chauvi nismo, por exemplo, quando Hartmann (1947) dedicou 98% da sua grande Biologia geral & biologia fisiolégica, e apenas 2% a biologia evolutiva, E chauvinismo quando certos historiadores atribuem a ocorréncia da sintese evolutiva inteiramente as descobertas da genética, ignorando completamente a contribuigao feita pela sistemética, pela paleontologia e ‘outros ramos da biologia evolutiva (Mayr e Provine, 1980). Existe as vezes também um chauvinismo nacional dentro de um campo que tende a exagerar, ou entéo adulterar, a importancia de cien- (COMO ESCREVER A HISTORIA DA BIOLOGIA at tistas do pafs do proprio escritor, ¢ minimizar ou ignorar cientistas de ooutras nagdes. Ndo se trata necessariamente de um patriotismo deslocado, mas € muitas vezes o resultado de inabilidade na leitura das linguas em que contribuigdes importantes de cientistas de outros pafses foram publi- cadas. No meu préprio trabalho, estou plenamente consciente da proba~ bilidade da introdugao de distorgdes, devidas 4 minha inabilidade em ler Anguas eslavas ou japonés, Armadithas e dificuldades ‘A maior dificuldade no esforgo de identificar 0 vasto mémero de problemas da biologia e de reconstituir o desenvolvimento da sua estru- tura conceitual reside na quantidade imensa de material a ser estudado. Este consiste, em principio, no inteiro acervo dos conhecimentos em bio- logia, incluindo todos os livros e artigos de periddicos publicados por bidlogos, as suas cartas e biografias, informagdo sobre as instituigbes a que pertenceram, a hist6ria social contemporinea, e muito mais, Nem o mais consciencioso historiador seria capaz de cobrir mesmo s6 um déci- mo de um por cem de todo esse material. A situagdo ¢ agravada pela aceleragdo exponencial da proporgio de produgdes cientificas atuais. Num perfodo de anos espantosamente curto, publicam-se hoje em dia mais trabathos (e paginas!) do que em toda a precedente histéria da cién- cia. Os préprios especialistas se queixam que ja no conseguem dar conta da avalanche de publicagdes de pesquisas no seu campo espectfico. Curio- samente, 0 mesmo se aplica 3 tarefa de escrever historia. H4 hoje, nos Estados Unidos, talvez cinco vezes mais historiadores de biologia do que hf apenas vinte e cinco anos. Mesmo tendo buscado corajosamente ler as publicagoes mais im- portantes, sei que os especialistas encontrario numerosas omissées na minha abordagem, e presumivelmente ndo raros erros. O plano primeiro da maior parte do manuscrito foi assentado entre 1970 e 1976, ¢ a litera- tura mais recente nem sempre foi incorporada tio adequadamente como seria desejvel. A minha tarefa teria sido totalmente imposstvel, nil fos sem a riqueza e a exceléncia da moderna literatura secundéria, A literatu- ra mais antiga era muitas vezes bastante superficial, onde os autores, uns «aps 0s outros, copiavam os mesmos mitos e erros, como se descobre a0 consultar as publicagdes originais. Obviamente num volume como o Presente, que poder conter mais de vinte mil t6picos de informagao in- 32 (ODESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO dividual, 6 impossivel verificar cada passo na fonte original. Consideran- do que 0 meu trabalho ndo é uma histéria lexicogrética, um erro factual ocasional nio seria uma fatalidade. O meu objetivo maior tem sido sinte~ tizar uma enorme literatura, com énfase consistente na interpretagio ¢ na anflise das causalidades. A oportunidade ‘Uma critica muitas vezes levantada contra os historiadores da cién- cia, e no sem razio, é que eles se preocupam quase exclusivamente com 1 “pré-hist6ria” da ciéncia, isto 6 com periodos cujos eventos so gran- demente irrelevantes para a ciéncia modema, Para evitar essa censura, procurei trazer a hist6ria para to perto do presente quanto poss{vel a um ndo-especialista. Em alguns casos, por exemplo a,descoberta, nos iltimos cinco a dez anos, de numerosas familias de DNA na biologia molecular, as conseqliéncias conceituais so ainda muito incertas para merecerem consideracao. Nao concordo'coma afirmagio de um historiador recente, no sentido que “o objeto da hist6ria da ciéncia sfo a investigacdo e as disputas que foram encerradas, muito mais do que os resultados presentemente em vigor”. Isto é simplesmente um erro. A maioria das controvérsias cientifi- ‘eas estende-se por perfodos de tempo muito mais longos do que geral- mente se pensa. E mesmo as discuss6es de hoje tm usualmente ra(zes que se langam distantes no tempo. E precisamente o estudo histérico de tais controvérsias que muitas vezes contribui materialmente para 0 escla- recimento conceitual, tomando assim possfvel a solucd0 conclusiva. Analogamente ao campo da hist6ria do mundo, onde a “hist6ria corrente” € reconhecida como um espago legitimo, h4 uma “hist6ria corrente” na histéria da ciéncia. Nada mais equivocado do que admiti que a hist6ria da ciéncia trata apenas de tentativas abortadas. Ao contrério, pode-se chegar ao ponto de considerar pré-hist6ria os relatos de resultados hé muito tempo fracassados, dos séculos remotos e de milénios, Mantém-se o smbolo em inglés ~ DNA ~ para o dcido desoxiribonucléico (ADN, em pportugués). (N. do RT.) ‘COMO ESCREVER A HISTORIA DA BIOLOGIA 33 Simplificagao Um historiador que venha a cobrir uma érea to vasta cbmo se pro- peo presente volume € obrigado a apresentar um relato muito enxuto, O leitor deve estar prevenido de que a aparente simplicidade de muitos dos desdobramentos é bem decepcionante. Assim, devem ser consultados relatos detalhados, que se concentram em desenvolvimentos especiais ou em perfodos curtos, se se quiser apreciar 0 pleno sabor das muitas cor- rentes cruzadas, falsos pontos de partida, e hipSteses malsucedidas, que prevaleceram num dado perfodo. Os desenvolvimentos, virtualmente, nunca foram tio lineares € Iégicos como parecem ser mum relato retros- pectivo simplificado. £ particularmente dificil enfatizar adequadamente 0 poder muitas vezes paralisante de conceitos arraigados, quando confron- tados com novas descobertas, ou novas concepe6es. Comete-se também facilmente 0 erro de rotular certos autores como vitalistas, pré-formacionistas, teleologistas, saltacionistas ou neodarwinis- nos, como se essas eliquetas se referissem a tipos homogneos. Nos dias de hoje, tais categorias consistem em individuos em que nem dois dentre eles t8m exatamente os mesmos pontos de vista. Isso é particularmente verdadeiro para os epitetos de “lamarckianos” e “neolamarckianos”, al- guns dos quais no tiveram nada em comum entre si, a nio ser a crenga ‘numa heranga dos caracteres adquiridos, Assungdes tdcitas Uma ulterior dificuldade para o historiador 6 apresentada pelo des- conhecimento de muitos cientistas sobre 0 seu préprio arcabougo de idéi- as, Raramente eles sabem articular ~ quando chegam a cogitar disso ~ quais verdades ou conceitos aceitam sem discussiio, e quais outros sto por eles totalmente rejeitados. Em muitos casos, 0 historiador $6 pode estabelecer uma ordem mediante a reconstrugo completa do meio inte- lectual da época. E, ainda, um entendimento dessas assungdes técitas pode ser necessério para responder a questdes anteriormente enigméticas. Em ciéncia, tratamos sempre com prioridades e sistemas de valor; eles determinam a diregao de novas pesquisas, quando completada uma parte prévia da investigacdo; eles determinam quais teorias 0 pesquisador esta mais ansioso por confirmar ou refutar; determinam também, sim ou nao, se ele considera exaurida uma érea de pesquisa. E mesmo um estudo dos

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