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A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA

(NO 30º ANIVERSÁRIO DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA)


Miguel Judas - Oficial da Armada reformado

O mundo vive hoje um processo a que todos chamam Globalização o qual, não sendo o foco deste artigo, nos
abstemos de comentar no que tem de positivo e negativo para os povos.
Também todos associamos esse fenómeno à expansão imperial, económica, política e militar, dos EUA, dando a esse
epíteto as cores e os tons, mais carregados ou suaves que queiramos, conforme a perspectiva de cada um.
Do mesmo modo que procuramos descobrir as razões profundas porque, ao longo da história humana, se foram
formando e ruindo impérios, desde o de Alexandre ao Romano, o Árabe, os impérios mundiais Ibéricos e o Inglês do
século XV ao XIX, assim deveremos procurar as causas profundas do actual poder económico, técnico-científico,
político e militar norte-americano.
Sem a compreensão desses processos teremos dificuldade em situarmos a posição actual de Portugal e melhor
escolher os caminhos que contrariem o nosso prolongado definhamento e nos recoloquem como parceiros valiosos e
necessários na construção cooperativa da Sociedade Humana Global que, através de movimentos contraditórios, se
avizinha.
Na origem do actual sucesso norte-americano encontra-se, em nossa opinião, o seu acto fundador, a Revolução
Americana e a Constituição que a consagrou.
A Revolução Americana de 1776 foi feita por homens livres, ciosos dessa liberdade, que proclamaram a sua
Independência e redigiram a sua Constituição sobre uma folha completamente branca, isenta de qualquer preconceito
ou atadura medievalista, sem brasões, reis, duques ou condes, sem preconceitos religiosos retrógrados ou religiões
dominantes; foi feita por homens que, fundamentalmente, queriam viver do seu trabalho e desenvolver as suas
potencialidades.
O iluminismo rousseauniano aplicou-se directamente sobre um território do qual foram banidas de imediato e
reenviadas para este lado do Atlântico as pretensões aristocráticas; a revolução burguesa instalou-se e frutificou numa
terra virgem de registos de propriedade, isenta de qualquer adubo aristocrático-feudal.
A Constituição que redigiram não precisou de ser largamente carregada de arabescos ou tortuosidades jurídicas; os
direitos não precisaram de ser extensamente enunciados como nas constituições europeias pois já estavam assumidos
por natureza.
Os norte-americanos construíram o seu Estado pelo método da auto-organização social, elegendo e destituindo juízes,
xerifes, deputados e outros representantes dos interesses colectivos que se iam constituindo; o Estado foi sendo
construído a partir do zero, em função da procura interna de instituições.
Conforme Francis Fukuyama refere no seu livro “A Construção de Estados”, “a perspectiva lockiana liberal do Estado,
que predomina nos EUA, não reconhece nenhum interesse público para além da soma dos interesses dos indivíduos
que constituem a sociedade. O Estado é servo das pessoas e não tem quaisquer perspectivas sobre o bem comum para
além do que é democraticamente ratificado por elas”. E, mais adiante, “as populações de países democráticos podem
delegar no estado a autoridade executiva para certas decisões cruciais, mas o Estado não retém qualquer autonomia
fundamental”.
Essa construção não foi, porém, isenta de contradições e dificuldades.
A eliminação generalizada das populações índias e a ocupação dos seus territórios de assentamento, assim como a
utilização extensiva da escravatura pelos colonos do sul, constituíram factores que, a seu tempo, iriam exigir resolução
adequada.
Os factores anti-democráticos introduzidos na sociedade pelos escravocratas e latifundiários dos estados do sul,
contrários ao carácter democrático do país e aos interesses da burguesia industrial empreendedora, levaram Abraham
Lincoln, cerca de 100 anos após a declaração da independência, a declarar que a questão final a ser decidida na Guerra
Civil era “se aquela nação, ou qualquer nação assim concebida, e assim dedicada (à democracia), poderia perdurar
muito".
Foram necessários mais cem anos, até à década de 1960, para que a igualdade jurídica burguesa se impusesse ao
nível de toda a sociedade norte-americana, com o reconhecimento dos direitos civis da população negra.
A sociedade americana é, hoje, a sociedade mais multi-étnica existente na Terra, comportando 12,5 % de afro-
americanos, 12,5 % de hispânicos e 6% de origem asiática, sendo a população branca originária de quase todos os
países europeus (ingleses, irlandeses, alemães, italianos, russos, etc., etc. e, também, portugueses). Neste sentido,
antecipa a futura Sociedade Humana Global e aproveita as suas potencialidades. A questão da nação índia também há-
de ser resolvida, de modo democrático, segundo a sua vontade.
Passemos, também, por cima, deixando para outra ocasião, os aspectos negativos para toda a humanidade das
políticas norte-americanas decorrentes do poder dos monopólios e do militarismo, voltando agora para a história
europeia.
De modo diferente do que ocorreu nos EUA, os povos europeus, se bem que com uma história profunda muito mais
rica, continuam a conservar uma herança social, económica e estatal retrógrada, que lhe atrasa a marcha e diminui o
potencial, constituída por muitos elementos persistentes do velho medievalismo e da estratificação social feudal. Todos

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os avanços foram aqui arrancados a ferros pelas forças mais progressistas dos povos contra o sistema de dominação
de classe e estatal.
Depois do Império Romano, a primeira “União Europeio-Mediterrânica”, e em consequência das invasões bárbaras, a
Europa, com excepção da Península Ibérica no período árabe, mergulhou em mais de mil anos de obscurantismo
religioso e numa extraordinária fragmentação política que correspondia aos interesses da estruturação social dos mais
diversos clãs, tribos e domínios dos invasores. Conforme Engels refere no “Anti-Duhring”, “toda a ideia de igualdade foi
varrida por séculos, levantando-se, pouco a pouco, uma hierarquia social e política tão complicada como até então não
se conhecera; ergueu-se também, pela primeira vez na história, um sistema de Estados predominantemente nacionais,
que se influenciavam e se contrapunham uns aos outros. Foi desse modo que se preparou o terreno para, tempos mais
tarde, (sob o impulso da burguesia), ser possível falar-se da igualdade humana e dos direitos do homem”.
O Renascimento traduz essa gradual ascensão burguesa no seio da sociedade medieval; contudo, o processo da sua
irrupção como classe dominante foi muito irregular nos diversos países europeus:
Em França, só emerge com a Grande Revolução de 1789-1793, tendo sido necessárias mais três revoluções, em 1830,
1848 e 1871, para que os seus objectivos fossem alcançados. No decurso desta última, a Comuna de Paris, de
predominância proletária, espontaneamente entendeu que a construção de uma nova sociedade passava,
inexoravelmente, pelo desmantelamento do velho Estado aristocrático-feudal, hierárquico e dominador da sociedade e
lançou as bases para a supremacia da iniciativa popular. Foi o momento e o lugar onde, na Europa, se procurou criar
uma situação a mais aproximada da Revolução Americana, baseada no Estado subalterno à sociedade e nas iniciativas
individual, comunitária e social. Infelizmente, essa experiência foi paga pelo sangue de dezenas de milhares de
executados.
Na Inglaterra, o poder da burguesia só se vê consolidado com a reforma de 1832, 200 anos após a revolução de
Cromwell, em 1649, e 50 anos depois da “gloriosa revolução” de 1688-1689.
Na Alemanha houve duas revoluções democráticas burguesas (1848 e 1918) e, entre estas, as reformas drásticas dos
anos de 1860 que Bismarck realizou através de “ferro e sangue”.
Na Rússia, depois da revolução gorada de 1905, o domínio político da frágil burguesia só se efectivou episodicamente
entre Fevereiro e Outubro de 1917, tendo nesta data o poder transitado para uma aliança do proletariado com o
campesinato. Só em 1991 esse domínio foi formalmente restabelecido e alargado a todo o vasto conjunto de países
antes integrados na URSS.
Como resultado da sua história anterior, intimamente associada aos cartagineses, a Roma e aos Árabes, portadores do
conhecimento clássico, a Ibéria irrompeu, no século XV como o principal centro civilizacional e progressivo da Europa,
tendo contado, já em 1383-1385, em Lisboa, com a primeira revolução de características burguesas.
A luta permanente que em Portugal se travou entre a corrente burguesa e a corrente feudal passou pela supremacia da
primeira com D. João II para logo definhar com D. Manuel I e arruinar com D. Sebastião, sob a influência do
catolicismo mais retrógrado. Desde então, voltámos a mergulhar sob a supremacia ou forte influência aristocrático-
medievalista, a que tem correspondido todo o longo período de decadência e atraso que se prolongou até ao 25 de
Abril.
A demorada ascensão burguesa que, em Portugal, decorreu em cerca de 600 anos, passou ainda pelas reformas do
Marquês de Pombal, a Revolução Liberal de 1820, a implantação da República em 1910 e a Revolução do 25 de Abril de
1974.
Em 1871, na sua conferência dedicada às “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares”, Antero de Quental
afirmava:
“Por outro lado, se o poder absoluto da monarquia acabou, persiste a inércia política das populações, a
necessidade (e o gosto talvez) de que as governem, persistem a centralização e o militarismo, que anulam,
que reduzem ao absurdo as liberdades constitucionais. Entre o senhor rei de então, e os senhores influentes
de hoje, não há tão grande diferença: para o povo é sempre a mesma a servidão. Éramos mandados, somos
agora governados: os dois termos quase que se equivalem. Se a velha monarquia desapareceu, conservou-se
o velho espírito monárquico: é quanto basta para não estarmos muito melhor do que nossos avós.”
Contrariamente ao que aconteceu nos EUA, a ascensão política da burguesia na Europa, e mesmo o seu domínio,
sempre se fizeram em cenários de partilha do poder político, económico e ideológico com a reacção medievalista, mas
sempre necessitando de um forte apoio ou da iniciativa revolucionária dos proletários assalariados. Em geral, essa
ascensão foi sendo realizada mantendo as estruturas e as práticas do Estado sob a influência dos anteriores poderes.
Esta diferença explica, por um lado, a falta de progressivismo das burguesias europeias e os compromissos
permanentes que mantiveram com a reacção aristocrática-feudal e, por outro lado, a envergadura e influência dos
movimentos proletários.
Como, em maior ou menor escala, se verifica noutros países europeus, também a fragilidade e dependência política da
burguesia portuguesa relativamente aos poderes, práticas e preconceitos ideológicos medievalistas, ficou bem nítida na
sua falta de oposição ao fascismo e a sua quase ausência na Revolução de Abril. Estas foram efectivadas,
essencialmente, pelo proletariado, tendo-se mantido a burguesia nacional numa atitude de dependência relativamente
ao Estado burocrático-administrativista e aproveitando-se dele.
Não seria de admirar, pois, que a Constituição de 1976, pela mão dos constituintes que a aprovaram, do PS, PSD, PCP
e MDP-CDE tivesse premiado o proletariado português, no quadro da “revolução democrática e nacional” ocorrida, com
a perspectiva da transição para o Socialismo.

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Porém, na sua substância, a Constituição tanto poderia proporcionar essa transição democrática e pacífica para o
socialismo, como a consolidação de um regime capitalista moderno e progressivo, liberto das fortes influências
medievalistas ainda persistentes no conjunto da sociedade, no Estado e na economia portugueses.
A consagração de um Poder Local Democrático, do carácter descentralizado do Estado e da Democracia Participativa,
criariam as condições para uma profunda reforma do Estado no sentido da eliminação do seu carácter tutelar sobre a
sociedade e da progressiva substituição das relações hierárquicas impositivas nas instituições, na economia e nas
organizações sociais, por relações de coordenação e cooperação “em rede”, típicas da economia e das instituições das
sociedades burguesas modernas.
A eliminação dos instrumentos de caciquismo local, do latifúndio, do aforamento, da colonia e da parceria, dos
monopólios económico-financeiros, a possibilidade de valorização de bens de produção abandonados ou sub-
aproveitados e o controlo de gestão pelos trabalhadores, proporcionariam, entre outros instrumentos, o
restabelecimento de condições de efectiva concorrência no mercado e a rápida extinção das influências medievalistas
na economia e na sociedade, designadamente a desvalorização dos rendimentos patrimoniais e financeiros face aos
rendimentos empresariais associados à produção material e à inovação.
Contudo, nos anos subsequentes, o poder político e os elementos dominantes da burguesia portuguesa dedicaram-se,
essencialmente, ao desmantelamento e enfraquecimento das organizações e instrumentos de acção do proletariado e à
consolidação do velho Estado tutelar, de carácter administrativista e burocrático. A própria adesão à CEE, agora UE,
pautou-se, ao momento, na perspectiva da burguesia nacional retrógrada, muito mais por uma necessidade de buscar
reforços institucionais estrangeiros na sua ofensiva contra o proletariado do que pela convicção de promover a gradual
união dos povos da Europa num espaço alargado de Liberdade, Paz, Cooperação e Desenvolvimento.
Como resultado da subalternização e inibição dos instrumentos de democracia participativa, designadamente das
estruturas de moradores, das comissões de trabalhadores, do movimento cooperativo, do movimento associativo
popular e das iniciativas de carácter social-comunitário, o Estado centralista consolidou-se e enquistou-se durante todo
o processo de luta pelo seu controlo pelos principais partidos políticos. A “infecção” burocrático-administrativista e
tutelar chegou mesmo a passar do Estado central para as autarquias locais e para o interior dos partidos, com o
reforço do “aparelhismo”, ao ponto de muitos cidadãos, repetindo o que já havia ocorrido no tempo da Legião
Portuguesa, de má memória, se inscreverem em partidos para arranjar empregos.
Na mesma conferência dedicada às “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares”, há já 130 anos, propunha ainda
Antero de Quental:
“Oponhamos à monarquia centralizada, uniforme e impotente, a federação republicana de todos os grupos
autonómicos, de todas as vontades soberanas, alargando e renovando a vida municipal, dando-lhe um
carácter radicalmente democrático, porque só ela é a base e o instrumento natural de todas as reformas
práticas, populares, niveladoras.”
A actual crise de défice democrático na política e na sociedade portuguesa e a actual crise de dinamismo económico do
país já não podem mais, passados 30 anos de funcionamento normal das instituições, ser imputados ao processo
revolucionário de 1975 nem a qualquer atitude “desestabilizadora” do proletariado português.
Essas crises, que já se teriam revelado com muito maior amplitude e profundidade se não fossem cobertas pelo efeito
anestesiador dos fundos estruturais e de coesão da UE, resultaram, fundamentalmente, da recuperação na política, na
economia e na vida social, de uma cultura “bárbara”, baseada na estruturação social em clãs e tribos, e na cultura
medievalista das corporações. Esta carga cultural, fragmentadora e inibidora da iniciativa social autónoma, tem
acompanhado as classes e grupos dirigentes do país ao longo das últimas centenas de anos.
Assim, as mudanças ocorridas ao nível do Estado têm-se limitado a reflectir as necessidades de partilha do poder pelos
grupos de interesses acantonados nos aparelhos partidários, assim como as estratégias de redistribuição dos fundos
pelas mais diversas clientelas.
As únicas estruturas do Estado que têm despertado interesse são as que se dedicam à redistribuição clientelar desses
fundos e das correspondentes empreitadas e fornecimentos; o “resto” do Estado, aquela grande parte dos serviços que
tem de assegurar diariamente as suas funções básicas, tem sido mantida em simples vida vegetativa, levando a que
“as escolas metam água e as pontes caiam”. A regionalização administrativa, constitucionalmente obrigatória, só não
se fez e não se faz pela necessidade de manter uma gestão central e firmemente controlada da redistribuição dos
volumosos fundos da EU, que não são mais do que a versão actualizada, menos trabalhosa e, portanto, mais
entorpecedora, da “pimenta da Índia” e do “ouro do Brasil”. O associativismo inter-municipal, que poderia impor na
prática uma efectiva descentralização e regionalização, encontra-se neutralizado pelas lealdades do tribalismo
partidário.
O aparelho da Justiça, sintomaticamente, continua a manter, para além do seu burocratismo anti-democrático, uma
liturgia herdada da Inquisição, tanto nas vestes como, até, na disposição hierárquica dos diferentes actores, ilustrada
pela posição do acusador ao lado dos juízes e o isolamento “condenatório” do réu. Jurados populares, que nos
habituámos a ver nos filmes americanos, nem falar.
A economia nacional, cuja componente pública se encontra, contrariamente ao prescrito na Constituição, com
dimensão residual e em processo final de liquidação, é, pode dizer-se, desde há muitos anos, essencialmente privada,
demonstrando a sua actual crise estrutural a continuada incapacidade da burguesia portuguesa para a dirigir e
promover. A economia social, cooperativa e comunitária, tem uma dimensão meramente simbólica, não por “falta de
espaço” mas, muito mais, pela estimulada decadência das dinâmicas associativas e comunitárias e pela deriva
“estatista”, burocrático-administrativista, da generalidade das autarquias locais.

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Compreende-se assim que a parceria público-privada que tem vigorado até agora se tem resumido a um processo em
que a parte pública fornece recursos financeiros, próprios e da UE, direitos, activos patrimoniais, infraestruturas gerais,
custos de formação e qualificação, isenções fiscais, etc., e a parte privada, representada exclusivamente pelos grandes
empresários, fornece, salvo raras excepções, maus serviços, falta de competitividade, meras promessas inovadoras,
assim como a contínua descapitalização do país para as off-shore. Tem sido, pode afirmar-se, uma troca desigual,
debilitadora do país e, por isso, contrária aos interesses nacionais.
No nosso ponto de vista, a Constituição da República Portuguesa não só continua actual como é, hoje ainda, neste ano
de 2006, mais válida e necessária do que nunca, se quisermos vencer as crises que atravessamos. Ela contém todos os
ingredientes necessários ao desenvolvimento do país, tanto numa perspectiva burguesa moderna e progressiva como
numa perspectiva dos interesses dos trabalhadores a longo prazo. É, nesse sentido, uma plataforma de convívio e de
cooperação plural entre portugueses que querem um futuro melhor.
Mas, há que reconhecê-lo, essa plataforma tem sido entendida por largos sectores dos grupos dominantes, como um
contrato a não cumprir salvo nos seus aspectos formais mínimos, sempre em função de conjunturais correlações de
forças.
Já vimos que essa abordagem retrógrada e utilitária conduziu Portugal a uma das mais graves crises da sua história
recente. O seu arrastamento e aprofundamento poderão conduzir a actual República a uma crise cuja saída nos poderá
custar a estabilidade e embates evitáveis.
Em nossa opinião, existem cinco motores constitucionais para superar a actual situação:
1º - Desenvolver rapidamente e por em prática, de modo amplo e sistemático, os instrumentos de Democracia
Participativa, a todos os níveis da sociedade, dos partidos políticos, dos órgãos de soberania, do aparelho do
Estado, do Poder Local e da economia, de modo a transferir para a população a informação crítica necessária à sua
intervenção esclarecida e mobilizá-la a intervir activa, organizada e directamente nos processos de decisão e
execução;
2º - Reformar profundamente o Estado conferindo-lhe características democráticas e empreendedoras, ao serviço da
sociedade, capacidade para planear e promover o desenvolvimento sustentado do país, num quadro de grande
descentralização de competências para os níveis regional e local, tornando-se, quando necessário, concorrente
com a iniciativa privada em alguns sectores produtivos e de serviços;
3º - Imprimir ao Poder Local características de Governo Local, com competências de intervenção em muitos domínios
essenciais à modernização e competitividade locais, aproximando-o de um modelo de auto-organização social das
comunidades e relançando o desenvolvimento da economia social e comunitária;
4º - Mobilizar os trabalhadores e as suas organizações representativas para uma intervenção activa, competente e
interessada nos processos de inovação e qualificação e de melhoria geral da competitividade das empresas e das
instituições;
5º - Manter, no plano externo, uma firme política de Paz, de Cooperação e defesa da legítima soberania nacional.
Pondo em marcha estas linhas de orientação retiradas do nosso contrato constitucional, poderemos superar as actuais
dificuldades políticas e económicas, libertar-nos finalmente da herança cultural medievalista e construir uma sociedade
mais autónoma, dotada de espírito de iniciativa e liberta de tutelas opressoras ou inibidoras.
Existe hoje um sentimento generalizado, tanto na comunidade internacional como na sociedade portuguesa, de que a
Democracia Participativa, chame-se ela “exercício da cidadania”, “participação cidadã” ou qualquer outra designação,
constitui a pedra angular que, fechando e edifício democrático, poderá pôr em marcha um vasto movimento de
mobilização popular para a saída da crise.
A candidatura de Manuel Alegre à Presidência da República trouxe para a ribalta, para a primeira linha do processo
político nacional, essa urgente necessidade social e política, manifestada na extraordinária votação recebida. A
Democracia Participativa saiu da “clandestinidade” para onde fora remetida pelos preconceitos “anti-esquerdistas” da
generalidade das classes políticas dominantes, enformadas tanto pelo “medievalismo” como pelo “neo-liberalismo”.
Na Convenção “Novas Fronteiras” realizada a 12 de Março de 2006 em Lisboa, Vital Moreira referiu-se à necessidade de
o Partido Socialista fazer sua a bandeira da Democracia Participativa e instou o Governo a adoptar medidas nesse
sentido. No discurso de encerramento dessa iniciativa, Gomes Canotilho referiu a propósito:
“E precisamente por isso é que as minhas participações nos últimos anos me demonstraram que era
necessário a revitalização da política, começando pelos partidos políticos. Ou seja, a centralidade do nosso
sistema deve continuar a ser esta: a dos partidos políticos. São eles que canalizam a vontade popular, são
eles que dinamizam as ideologias, são os que apresentam propostas de políticas públicas e precisamente
são eles que devem ser considerados dimensões centrais da nossa actividade política, mas não só. É preciso
outro tipo de intervenção na política, é preciso, afinal de contas, aquilo que discutimos hoje: aumentar a
democracia participativa. As leis já todas elas falam de democracia participativa. Desde a acção popular, até
as várias leis sobre o território, todas falam. Mas é necessário criar esta cultura de participação e não ter
medo das pessoas em carne e osso, ou seja, dos cidadãos que se preocupam com as causas da República.
Acreditamos que este Governo está em sintonia com estas dimensões de participação. Precisamente por
isso, é que as Novas Fronteiras estão dispostas a continuar a abrir Novas Fronteiras quanto à dimensão
participativa.”
Assim, considerando os eleitores de Manuel Alegre, os das candidaturas partidárias que mais correntemente a têm
proclamado, designadamente o PCP e o Bloco de Esquerda, e, ainda, os votos em Mário Soares, contam-se cerca de

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2.700.000 eleitores, correspondentes a metade do eleitorado português, que reconhecem a necessidade da sua
implantação generalizada.
As recentes posições presidenciais de Cavaco Silva, designadamente no seu recente discurso de 5 de Outubro, no
sentido de uma maior participação dos cidadãos na vida política e da intensificação das iniciativas sociais autónomas,
mostram que também muitos dos seus eleitores a consideram peça fundamental para a modernização e regeneração
democrática do nosso sistema político. Só os centralistas, que procuram manter os seus privilégios e uma posição
dominante sobre a sociedade, não a apoiarão. São, porém, uma minoria.
Há, contudo, quem pense que a democracia participativa só será boa se servir, através de exercícios pseudo-
democráticos, para convocar o povo para avalizar decisões previamente tomadas em círculos restritos, mantendo
reservada a informação crítica que poderia fundamentar posições esclarecidas e conscientes. A população, de um modo
geral, tende a alhear-se de processos de consulta e participação desestruturados que sancionam factos consumados.
Por isso, essa concepção limitada de democracia participativa também não será suficiente para conduzir aos sucessos
esperados.
A Democracia Participativa implica a transferência para as populações de informação privilegiada sobre os diversos
assuntos em discussão, a formação de uma verdadeira capacidade crítica e de elaboração de alternativas, assim como
a devolução de poderes e recursos para a sociedade.
A Democracia Participativa envolve ainda o reconhecimento de que as formas institucionais hierárquicas e impositivas
se encontram em rápido processo de caducidade, devendo ser substituídas por relações em rede altamente adaptáveis
a cada situação e problema a resolver.
Significa ainda que os instrumentos da Democracia Representativa deverão ser permanentemente escrutinados pelos
instrumentos da Democracia Participativa, isto é, que os órgãos de direcção política da sociedade resultantes de
eleições periódicas deverão incorporar na sua actividade quotidiana os contributos participativos das organizações
sociais representativas das populações, dos trabalhadores, do empresariado e dos diversos grupos de interesse
específicos nos domínios da cultura, do desporto, da educação, da saúde, do ambiente, da solidariedade social, da
economia social, da defesa dos direitos, da justiça, etc.
É necessário alterar radicalmente a prática actual das instituições do poder público que só têm tempo para reunir e
fazer almoços de trabalho com os empresários, designadamente com aqueles que nem sequer representam os
interesses do conjunto da classe empresarial.
É necessário também que essas instituições do poder público não sufoquem a iniciativa popular, tanto pela
concorrência em áreas de actividade essencialmente de iniciativa social, como a cultura, o desporto, os tempos livres, a
solidariedade, etc., como pela alimentação e manipulação do fenómeno do “subsidismo” clientelar. Este fenómeno leva
ao caricato de muitas organizações e colectividades populares mudarem de responsáveis em função da cor política
conjuntural da instituição que administra os subsídios.
No plano da economia e da vida empresarial, tanto no sector público como no privado, só com a participação
interessada dos trabalhadores, no quadro das disposições constitucionais, será possível assegurar o êxito do esforço de
inovação e modernização para a competitividade e assegurar a responsabilidade social das empresas, assim como
evitar as perversões verificadas em larga escala na utilização de estímulos e apoios públicos, na fuga ao fisco, na
descapitalização dolosa e nos abusos ambientais. Ao contrário das empresas internacionais mais modernas e
competitivas que integraram os trabalhadores nos processos de decisão, controlo e inovação, chegando a caracterizá-
los como “capital humano”, a generalidade das empresas portuguesas, privadas ou públicas, com a anuência dos
poderes públicos, continuam a rejeitar qualquer forma de participação dos trabalhadores e a dificultar o seu acesso a
informação fundamental. A destruição, enfraquecimento e desvalorização de muitas das empresas públicas devido a
intencional má gestão por administrações incompetentes e corruptas ligados ao clientelismo, poderiam ter sido
evitados se tivesse sido cumprida a imposição constitucional relativa à participação dos trabalhadores na sua gestão.
Os “Kutuzov” portugueses, em vez de fazerem como o verdadeiro, que incendiou Moscovo para salvar a sua pátria, não
tiveram escrúpulos em “incendiar” as empresas públicas de que eram responsáveis para mais facilmente as
entregarem ao sector privado, o qual, em geral, para além de absorver para si as receitas do Estado antes nelas
geradas, não tem promovido, a partir daí, uma oferta qualificada e competitiva.
Mas há um domínio de actividade onde não podemos deixar de reconhecer um significativo progresso: a Cultura. Aqui,
a prática medieval dos espectáculos populares das fogueiras da Inquisição, recriadas nos Tribunais Plenários pelo
fascismo, foi substituída por algo inspirado na civilização clássica, lamentavelmente da sua fase decadente. Em Roma
dizia-se: “Se o povo está descontente, dêem-lhe circo”. Nós também temos os nossos gladiadores modernos: a
selecção nacional de futebol, o Conde, o Frota e a Cinha. Mas, como estamos em plena revolução tecnológica,
substituímos os polegares por mensagens de SMS. O movimento associativo popular e os homens de cultura que não
estiverem em regime de prudente auto-censura deveriam ter qualquer coisa a contrapor a este estado de coisas.
A partidocracia de espírito feudal, controladora da sociedade e de territórios institucionais, invadiu as organizações
populares de base, no âmbito dos movimentos de moradores, das organizações de trabalhadores, do movimento
associativo popular, de associações de diverso tipo e das modernas ONG’s. A “conquista” partidária dessas
organizações, tais como das Juntas de Freguesia, das Câmaras Municipais, do Governo e muitas outras, não são
encaradas, na maior parte dos casos, como instrumentos de criação de espaços públicos de liberdade e iniciativa, de
devolução do poder à sociedade, mas, antes, como “castelinhos” institucionais que se conquistam e exploram para
benefício pessoal ou de grupo.
A mentalidade feudo-medieval até na arquitectura do espaço físico se encontra presente, na figura dos “condomínios
fechados” ou das “quintinhas” muradas, os novos “castelinhos” de uma média e alta burguesia de ideologia medieval,

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muitas vezes cercados de bairros populares decrépitos. As velhas catedrais medievais foram substituídas pelas
modernas catedrais futebolísticas, “culturais” ou empresariais. Poucos investem em centros de conhecimento, em
Bibliotecas de Alexandria ou em “escolas de Sagres”.
Os movimentos e iniciativas autónomos, livres, criativos e unitários da sociedade, de onde poderia emergir uma
mentalidade autenticamente moderna, republicana, burguesa ou proletária, foram, em grande parte, transformados
em estruturas dependentes do “subsidismo”, da dependência do Estado, tanto central como local.
No entanto, todos admiramos, saudosamente, em serões de deleite intelectual, o espírito libertário e independente de
Agostinho da Silva, exemplo eminente do anti-sebastianismo português.
Com uma sociedade civil tutelada desta forma por toda uma série de hierarquias proprietárias de espírito medieval,
não será de admirar que o sistema político se aliene cada vez mais das expectativas da população e se feche sobre si
próprio em lutas pela liderança e de partilha de recursos entre a cleptocracia.
A Constituição da República Portuguesa tem uma amplíssima base de apoio popular e contém todos os ingredientes
democráticos e programáticos para o êxito de Portugal no mundo moderno. Basta cumpri-la.
No entanto, foi recentemente lançada pela direita portuguesa uma grande operação visando uma próxima e radical
alteração da Constituição da República no sentido da sua “actualização” aos ventos neoliberais que sopram pelo
mundo. Aí se apresentam sectores do CDS, pela sua “substituição por uma nova”, e de alguns elementos do PSD, por
uma “profunda revisão”.
Gomes Canotilho referiu a propósito, no discurso de encerramento da Convenção Novas Fronteiras organizada pelo PS:
“O segundo tópico é este: este é o Governo que obedece à Constituição e que considera não ser problema
nem entrave ao desenvolvimento económico e social a Constituição da República Portuguesa de 1976. Quem
ouvir hoje na televisão, nos debates, nas propostas de revisão, parece que estamos a inventar um novo
paraíso, o paraíso do Leste. O paraíso das novas constituições do Leste. Que têm um mérito, dizem eles, de
não falar de serviços de saúde, e não falar de segurança social, de não falar de direitos dos trabalhadores,
de não falar do Estado Social, de não terem impostos. Praticamente concorrer, desta forma desenfreada,
com impostos baixos. Pois bem, nós acreditamos que o projecto deste Governo continua a manter a base
antropológica da Constituição da República: a pessoa, o cidadão e o trabalhador. Por isso, este é o Governo
que as Novas Fronteiras vão continuar a apoiar.”
Porém, pelo que ficou exposto, a Constituição da República de 1976, mais do que não constituir um “entrave ao
desenvolvimento económico e social”, constitui, designadamente nas formulações da organização económica e sobre a
Democracia Participativa, uma necessidade para o desenvolvimento futuro de Portugal, tanto num quadro de
capitalismo moderno como de aproximação democrática ao socialismo.
Antes de mais, a actual Constituição constitui uma barreira de resistência contra todos aqueles sectores sociais e
económicos, retrógrados e medievalistas, para quem o autoritarismo e a exploração desenfreada dos trabalhadores
constituem as condições necessárias para a manutenção dos privilégios e da tacanhez económica.

Miguel Judas
2006

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