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Quando primeiro chegou à Serra Branca, sabia o que procurava. Só não sabia o que lhe
aconteceria. Recostou suas pesadas malas no canto da estrada, olhou em volta e do bolso de trás de
sua calça tirou um cilindro de papel. Abriu-o, retirou-lhe um vermelho-pardo ramo de flores de
Canabis sativa e passou a tratá-lo com astúcia na palma de sua mão. Do bolso dianteiro, pegou um
bolo amaçado de papéis para cigarro, apertou a erva desmanchada dentro da Colomy, buscou na
calça um isqueiro que pôs em chamas no movimento de ascensão do braço e forçou em seu
diafragma um forte trago da aveludada fumaça da maconha. Mais alguns tragos, olhou em volta,
pegou seu telefone celular e digitou-lhes mensagens binárias. Alguns outros poucos tragos e o
aparelho vibra em sua mão. "Já estou a caminho...". Tinha certeza que não estaria só. Há anos se
correspondiam por mensagens eletrônicas. Participaram já de diversas ações coletivas. Trocavam
seus escritos. O tipo de relação que mantinham nunca lhe foi parecida. Queriam-se tão bem. E
tendiam ao infinito...
Mais dois tragos e pôs-se a pensar sobre o que lhe passara pela mente. Seus escritos, tão
pessoais, se coletivizavam. E criavam, assim, suas novas relações. Não que a escrita lhe fosse
profissão imposta, muito menos compelia-se a escrever para extravasar sentidos. Mas hoje em dia,
todos aqueles e-mails, sms, páginas em wiki... E por vezes agora se encontravam. Por vezes para
festejar, por vezes para escrever. Percebeu que suas escritas eram tão diversas como as pessoas com
quem as escrevia. Em suas relações mais pragmáticas, a solidez da vida ditada, seus textos
percorriam caminhos de luta, traziam a revolta da violência sofrida. Lembrou de Imperatriz, no
Maranhão, quando o assassinato de jovens de favelas da periferia suscitou textos tão assíduos e
agudos como eram os adjetivos das relações que mantinha por ali. De Águas Claras, o delírio das
afecções causadas pelas diversas ocupações de prédios públicos que fizeram na região. Relatos de
vivências construídos coletivamente, com celulares, computadores, papeis, canetas. Com olhares,
com toques, sorrisos. Com atenção, com carinho, com cuidado. Amor. A plenitude lhe viera à alma.
Das insanidades dos desejos incontrolados, por tornarem-se relatos, levaram tantos à clareza dos
sentimentos. No horizonte podia ver alguém se aproximando. Não sabia quem era. Mas o sorriso
compôs-lhe a face. Sabia que amava aquela pessoa. Em seus olhos, uma tênue camada líquida não
permitia que a visse, mesmo se aproximando. Àquela altura, não sabia mais nem quantas se
aproximavam. Abraçaram-se, e novamente fizeram-se um.
Conjuntamente, escritos que se dão baseados no afeto, no conhecimento mútuo, nas trocas
necessárias, nas intensidades de sentimentos em seus mais diversos meios. Com as mais diversas
formas. Sub>escritos. Escritos criam fervorosas relações; sub>escritos, sub>relações. Sub>relações
em listas de e-mails, em festividades, em rodas de samba, em casamentos, em agrupamentos, em
encontros, em desencontros entre quatro paredes, em florestas, em movimento. Em nomadismo. Em
quantidade indistinta, nunca podendo ser um, e a partir daí podendo ser todos. Que não depende
mais do outro. Depende do corpo. Do outro. De cuidá-lo e respeitá-lo em seus limites de
cartografias sentimentais. Sub>redes, com suas sub>relações, mesmo em número pequeno, são
infinitas em seu potencial, como a fissão do núcleo atômico. Resta à essas sub>redes se
perguntarem: o que queremos com isso?
Sub>relações de afeto, nessas sub>redes virais, devem, anterior à tudo, existir o exterior. No
corpo que não lhe pertence, mas que necessita de seu cuidado. Tendemos ao infinito e o infinito não
cabe em um corpo único, é preciso velar pelo outro. Ter-lhe como seu sem lhe pertencer. É preciso
clareza em como nos deixamos envolver. Buscas bons encontros? Como evitar que seus antagônicos
expludam os corpos e dissolvam sub>redes e suas sub>relações? O carinho para com o próximo, a
compreensão de seus limites, de seus desejos, de suas vontades. Desejo liberto em convívio com
outros desejos, libertos, sem tirar-lhes as liberdades. Pois a liberdade não pode ser exclusiva, uma
vez que só existe quando planetária.
Vícios relacionais devem ser superados. Quais bio-vícios sustentam a família nuclear? A
hétero-normatividade? A sexualidade como ultra-desejo imposto? As relações tristes? A falta de
sinceridade? A competição, sempre pregada pelos meios de comunicação em massa, não é o
essencial na vida humana. A sentimento da vitória não é o mais nobre que carregamos. O trabalho
não é a base de análise da vida. As trocas, sim, nos compõe. Troca de carícias e carinhos, troca de
abraços, troca de beijos, de olhares, troca de sorrisos, de cheiros, troca de presentes, troca de
apertos, troca de fluídos, troca de bits, troca de informação. E a troca envolve os meios: o corpo, o
ar, os instrumentos e outras tecnologias responsáveis pela destruição irrecuperável da natureza. Se a
natureza não for enxergada como exterior, como outro, em nossas sub>existências, todas as nossas
outras sub>relações já são comprometidas. Sub>redes de relações informais. O devir-outro no
bairro, sem desubjetivação. A nova geopolítica do capital se encontra nas periferias. Pois a riqueza é
outra. O capitalismo sabia disso? O neo-liberalismo não. As sub>hierarquias não devem ser
atribuídas. Devir-chefe, devir-escravos. O direito é para ser aconchegado nas próprias mãos.
Sub>redes que reproduzem a falha narrativa do desejo. Bem como as competições e vitórias
ditadas, os desejos foram desmontados de nossos relatos. Desejos, contudo, não deixam de existir.
Apenas o existem em massa, não no exterior, mas na mais egoísta interioridade, desejos mesquinhos
cultivados em tubos de televisores e livros ao longo de séculos e décadas, desejos destruidores
quando executados. Falsos relatos que compõe as experiências humanas mais íntimas, fruto do
catolicismo secular e do neoliberalismo arrebatador. Aleluia! Compor sub>relatos do desejo com
clareza é essencial para compreender melhor o eu no outro. Sub>relatos que produzam afetos livres.
Livres de preconceitos. Livres de tristeza. Livres de maus encontros. A falta de clareza e
amadurecimento sentimental nessas sub>redes a afastam de sua maior potência: a de expandir, com
uma velocidade e eficácia viral, diferentes afectos. Como sub>redes pretendem estender sua
sub>versão dos relatos contemporâneos? Repetir os mesmos afectos sempre propagados?
Deu mais dois tragos no baseado e jogou a ponta no acostamento. Continuou andando rumo á
praça central da cidade. Estava feliz por não mais carregar a angústia entre suas costelas. Era a outra
e o outro; era a natureza, o exterior, pois já não mais se deixava ser pilar da moral. Cuidava desse
exterior com o mesmo carinho que sempre quis consigo. Para o sistema moral imposto, sua atuação
dentro dos terrenos expansórios do capitalismo possuia um nome: esquizofrenia. Mas sabia bem o
que acontecia.
Antes pouco podia se produzir em narrativas sobre sexo e desejo, por falta de acesso à
ferramentas capazes de manifestá-las. A cultura digital propicia a proliferação dessas narrativas.
Nem todas narrativas rompem com o sistema padrão, coisificação do desejo. O desejo deseja
sempre mas nem sempre é livre. Os cárceres do desejo reduzem-no a um programa de cópia e
repetição. A indústria pornográfica reproduz o sistema identitário do desejo, por mais desvios que
proponha; situa na objetificação do corpo do outro o seu padrão. Tornar visível as várias narrativas é
contribuir para o crescimento do desejo que, assim como os relacionamentos, nunca tem fim em si
mesmo e se multiplica quando há saída. Da mesma forma se dão os relatos colaborativos das
sub>versões sociais. Sub>relatos que entrelaçam sub>relações. A proliferação dessas narrativas,
sub>relatos, grafites, histórias, poemas, danças, quadrinhos, retratos, aos poucos vao ganhando
visibilidade e contribuem e se manifestam como mais uma forma de resistência aos sistemas de
doma da nossa sociedade. Tomemos como exemplo de resistência a proliferação de narrativas que
produz os sistemas de saúde públicos. Se até pouquíssimo tempo atrás todo o desvio da sexualidade
hétero-cristã era considerada perversão sexual, hoje essa discussão ganha outros sentidos,
atenuando o julgamento sobre sujeito, ampliando a discussão sobre desejo. Além, a internet é um
instrumento que promove outros tipos de sexualidade, como intermediadora do contato com a
produção alheia ou mesmo a máquina-rede, aparelho de guerra, como fetiche. A própria internet
criou outros – e próprios - estratos de desejo.
“sub>afetxs”
de Vitória Mário
com diálogos de
Fabiane Borges e Ricardo Ruiz
Versão X.X.Y
“... país [de] região privilegiada,
onde a natureza armou sua mais portentosa oficina”.
Euclides da Cunha - Os Sertões
Personagens
Adriana – É uma jovem alta, inteligente e bonita. Vive junto com Raquel e é prostituta. São
namoradas. Se parece bastante com Zezé Mota nos tempos de Xica da Silva. É uma jovem
sonhadora que acredita no amor e quer montar um salão de estética no Rio de Janeiro. Tem uma
filha, Yamandu, de 11 anos, que veio à vida no aniversário de 16 anos da mãe.
O Pajé – É um cara de uns quarenta e dois anos. Ele é uma pessoa que encontra a alegria em
pequenos detalhes. Sonha em um dia se enveredar pelos campos do ciber-xamanismo.
Sequências
Sol de 16h00. Floresta densa e rios. Algumas clareiras. Muito barulho causado pela
precariedade da aeronave. Conversas se dão pelo sistema de rádio do avião.
- (Voz de Raquel em off): Mais uma oficina de metareciclagem.... meu Deus... já foram
tantas nesses últimos anos... várias oficinas aconteceram... Já não aguento mais. Queria voltar para
casa. Ah, que falta sinto dos braços de Adriana.... Quanto carinho e compreensão encontro alí...
hehehe... pra se despedir ela fez inhame... ela sabe que eu adoro inhame... preciso voltar logo... não
posso deixá-la sozinha....
Dez computadores instalados com sistema Linux. Cerca de 30 índios terena estão na
construção que abriga o telecentro, está muito quente. Raquel se apresenta, começa a falar sobre
metareciclagem, explica diferenças entre sistema livre e proprietário, pede para os terenas contarem
qual sua relação com computadores, se já viram internet antes, pede para todos se aproximarem do
computador aberto que está à sua frente, fala sobre hardware aberto, e nota que um dos jovens não
enxerga; ela pega sua mão e começa a tocar na placa mãe: Buriti sorri, ela nota seus dentes
perfeitos, se enternece.
Nota que o pajé também está na sala, mas não se aproxima do computador, fica todo tempo
com os olhos fechados. Buriti solta da mão de Raquel e volta para o lado do pajé com
despreendimento. Os jovens índios começam a rir e puxar os fios, Raquel deixa que abram todo o
computador.
Raquel (repetir varias vezes):
- É como um corpo! Como nosso corpo!
Seq. 2 – Noite, parte de fora da aldeia, fogueira no espaço existente entre algumas das
várias habitações.
Quarto dia de oficina. Raquel se prepara para partir na manhã seguinte. Todas e todos estão
muito alegres. Raquel está sentada um pouco mais afastada da festa. Pensa em quantas alegrias
havia vivido naqueles dias junto àquelas pessoas. Todos na fogueira, podia ver, bailavam como
sendo um. Um só corpo, um só fluído, uma só alegria, um só amor.
Pensou no quanto havia sido especial seu encontro com o jovem Buriti, garoto que em
poucos dias completaria 18 anos, cego por acidente, com tantos outros sentidos desenvolvidos.
Durante as oficinas, ele era o que mais tocava, o que mais perguntava, o que mais cheirava, o que
mais acariciava, o que mais ouvia...
Buriti se aproxima pelas costas de Raquel, deixando-a surpresa. Abraça-lhe e mantém-se
abraçado com o queixo encostado nas costas da metarecicleira. Vozes, cantorias e alegrias ao fundo:
Créditos.
(Música: Mistério do Planeta, Novos Baianos.)