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Entre normas e fatos, o direito de decidir: O debate sobre o aborto à luz dos princípios

constitucionais

Roberto Chateaubriand Domingues1

I – Introdução II – O aborto e o Direito I.I – Aspectos históricos II.II – Definição do conceito de aborto II.III –
O aborto na legislação brasileira II.IV - Hipóteses permissivas de interrupção voluntária da gravidez II.V -
Aspectos morais e reflexos sociais do aborto III – Princípios Constitucionais III.I – Teoria Geral dos princípios
III.II – Distinção entre Princípios e Regras III.III – Classificação, eficácia e aplicação dos princípios
constitucionais III.IV - Conflito de princípios e sua resolução IV - Limites e possibilidades da descriminalização
do aborto no Brasil IV.I – Espaço público e discussão sobre o aborto IV.II – Princípios e Garantias
Constitucionais e a questão do aborto IV.II.I – Direito à Vida IV.II.II – Dignidade da Pessoa Humana V -
Considerações finais VI – Referências Bibliográficas

I - Introdução

O debate sobre o aborto no Brasil se concentra, basicamente, no âmbito do Direito


Penal, tendo em vista ser a interrupção voluntária da gravidez tipificada como crime contra a
vida, previsto no Código Penal Brasileiro. A partir da crescente constitucionalização das
normas infra-constitucionais, sejam elas penais ou cíveis, esta discussão passa a demandar
maior atenção, em especial com o deslocamento da análise da questão para além das normas
penais incriminadoras, utilizando-se, para tanto, da interpretação sistemática dos princípios
informadores da República Federativa do Brasil, presentes na Constituição de 1988.
Faz-se necessário e urgente o debate acerca do balanceamento de princípios e valores
que se mostram presentes na questão do aborto, tais como a defesa da vida, da liberdade e da
dignidade da pessoa humana, bem como a laicidade do Estado, visando possibilitar o desenho
de um novo delineamento teórico sobre o tema.
O presente trabalho objetiva possibilitar a ampliação do debate jurídico acerca da
descriminalização da prática do aborto no país tendo em perspectiva os princípios
constitucional que (in)formam o ordenamento jurídico brasileiro.
Desta forma pretende-se contribuir para a ampliação da base jurídico-argumentativa
dos movimentos sociais que trabalham com saúde sexual e reprodutiva qualificando a sua
participação nos espaços públicos de discussão sobre o aborto no Brasil, tendo em vista a
tramitação de PL sobre o tema no Congresso Nacional, bem como colaborar com a reflexão
teórico-racional sobre aborto no Brasil pelos operadores do Direito visando a inclusão das
questões relativas à saúde sexual e reprodutiva na agenda profissional destes atores sociais e,
por via de conseqüência, possibilitando a sua participação ativa e qualificada neste debate

1
Graduado em Psicologia pela UFMG (1986) e em Direito pela Escola Superior Dom Helder Câmara (2007).
Ativista em Direitos Humanos com atuação no Grupo de Apoio e Prevenção à Aids de Minas Gerais (GAPA-
MG)

1
nacional.
Para tanto se faz necessário discutir as diversas representações acerca da interrupção
voluntária da gravidez e seus desdobramentos sociais, morais e, sobretudo, jurídicos, de modo
a construir hipóteses capazes de enfrentar satisfatoriamente o tema.
Percebe-se a urgência de se ampliar o debate, trazendo para a arena pública o maior
número possível de participantes de modo a validar e legitimar possíveis decisões que
afetarão a vida de milhões de brasileiros. Todavia, para tanto, se faz necessário, construir uma
base argumentativa minimamente comum, capaz de sustentar a calorosa discussão sobre o
tema, sob pena de encastelamento das posições e da impossibilidade de se encontrar soluções
pacíficas para a questão.
Vemos que a base argumentativa necessária para esta empreitada, tendo em vista a
imperativa ruptura de posições cristalizadas e cristalizantes, encontra-se situada na
aproximação do tema com o Direito Constitucional e as soluções possíveis apresentadas pelo
balanceamento de princípios e valores ali sediados. A utilização deste valioso recurso para
saneamento de conflitos sociais e jurídicos pode significar a estratégia necessária para a
construção de consenso ou acordo sobre a questão do aborto no Brasil.
Todavia avoluma-se o desafio, pois ao deslocar o debate sobre o aborto para sede
constitucional são introduzidas importantes variáveis que demandam operações mais
delicadas e sofisticadas para o tangenciamento de soluções possíveis.
Ao contrário de regras positivadas cujos conflitos são passíveis de resolução a partir
da aplicação de uma em detrimento das demais atinentes ao mesmo campo, em um claro
processo de invalidação de uma regra diante da outra, os princípios, no caso de colisão,
devem ser sopesados diante do caso concreto afastando a sua incidência, operação esta que
não equivale à invalidade daquele não utilizado, mas somente a opção pelo o mais adequado
no momento histórico vivido.
No caso da interrupção voluntária da gravidez percebe-se a incidência de princípios
constitucionais aparentemente conflitantes que demandam a aplicação de técnicas de
interpretação apropriadas para que se possa obter um resultado mais adequado aos casos
concretos que se apresentam, sobretudo, em função do tensionamento provocado pelos grupos
sociais que se enfrentam seja pela proibição do aborto, seja pela sua descriminalização no
Brasil.
Estes segmentos da sociedade, divididos em grupos claramente delimitados, ao
buscarem a fundamentação de seus argumentos em posições político-ideológicas ou religiosas
utilizam interpretações acerca dos mesmos princípios constitucionais que os conduzem a
2
conclusões distintas e até mesmo antagônicas. Assim, ao se discutir a defesa da vida ou da
dignidade da pessoa humana, por exemplo, diante da complexa questão do aborto, mostra-se
possível a elaboração de conclusões aparentemente válidas e legítimas, todavia,
contraditórias, impossíveis de conviverem harmonicamente em uma mesma ordem jurídica.
Neste sentido, faz-se imperativo o debate destes fundamentos colocados em xeque na
esfera pública pelos atores sociais envolvidos na questão do aborto, direta ou indiretamente,
tendo em perspectiva um sistemático e criterioso esforço de interpretação dos princípios
constitucionais incidentes no caso concreto. Somente desta maneira pode-se encontrar saídas
possíveis e válidas para o confronto de posições que a este grave e urgente problema social
encerra.
Percebe-se, ainda, a partir de observação empírica, sem amparo de embasamento
técnico que possa lhe oferecer, até o momento, status de conhecimento com rigor científico,
que o mesmo embate vem sendo estabelecido entre a realidade fática, a esfera policial-
administrativa e a judicial.
O número de abortamento voluntário clandestino e ilegal no Brasil supera, de forma
irrefutável, o número de casos que chegam até ao Judiciário para o devido processo de
julgamento, demonstrando um certo descompasso entre a Lei posta pelo Código Penal vigente
e a possível conformação da prática ilícita de aborto em caso concreto a ser apreciado na
esfera judicial.
A análise rigorosa acerca deste suposto descompasso pode vir a se revelar como um
precioso instrumento para a compreensão da gênese de um novo entendimento sobre o aborto
no Brasil que, articulada a elementos substanciais oferecidos pela moderna Hermenêutica
Constitucional pode ser capaz de operar significativas transformações no ordenamento
jurídico pátrio, oferecendo, assim, respostas mais consistentes a um problema que transcende
ao campo do Direito Penal e afeta milhares de cidadãos brasileiros, especialmente, mulheres.
Busca-se, portanto, empreender a discussão sobre o aborto no Brasil à luz dos
princípios constitucionais mantendo-se em perspectiva o entendimento de que estamos diante
de autênticas normas jurídicas, historicamente determinadas e que trazem em seu bojo a
precípua função normogenética, atuando, antes de tudo, no processo de criação do Direito.
Tendo em vista o desenvolvimento do presente trabalho utilizou-se o método de
revisão teórica, tendo em perspectiva os princípios constitucionais, em especial aqueles
relativos à defesa da vida, da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da laicidade do
Estado, que em confronto com a realidade do tema possibilitou o vislumbre de alternativas
jurídicas capazes de subsidiar o debate jurídico e político em vista da efetividade da norma
3
penal. A partir de tal método pôde-se obter o encadeamento lógico de teorias atinentes ao
tema pesquisado até o presente momento, bem como o seu cotejamento com dados
epidemiológicos disponíveis na Rede Pública de Saúde, especialmente nos serviços de
atenção à mulher do Estado de Minas Gerais.
Objetivando oferecer o encadeamento lógico do raciocínio trilhado pelo autor o texto
será apresentado em quatro capítulos, sendo que o primeiro versará acerca do marco teórico
que norteou a elaboração de todo o trabalho, a saber, a contribuição de Ronald Dworkin para a
teoria dos princípios e os ensinamentos de J. Habermas sobre a teoria do discurso como base
para a fundamentação do Direito.
O segundo capítulo apresenta, em linhas gerais, o debate sobre o aborto no Brasil a
partir de seus aspectos históricos, morais, biológicos e seus reflexos na sociedade,
especialmente no tocante às mulheres, sujeitos sociais primariamente afetados por essa
questão, passando pela legislação brasileira que regula os casos possíveis de interrupção da
gravidez e as sanções decorrentes do descumprimento das normas penais incriminadoras.
No terceiro capítulo discute-se o papel dos princípios constitucionais dando-se ênfase
ao indiscutível processo de constitucionalização das normas infra-constitucionais a partir do
entendimento dos princípios como normas e à importância da Hermenêutica constitucional
diante de conflitos de princípios, sobretudo como meio para a sua resolução.
O quarto capítulo destina-se a debater os limites e possibilidades da descriminalização
do aborto no Brasil tendo em perspectiva os princípios constitucionais em conflito nesta
discussão. Pretende-se, ainda, refletir sobre a técnica de balanceamento de normas buscando
alcançar uma resolução razoável frente às colisões de princípios que se apresentam quando a
questão é a interrupção voluntária de uma gestação.
Na conclusão busca-se oferecer um primeiro esboço de alternativas que possam
auxiliar a desvelar aqueles princípios mais preponderantes diante desta complexa e intrincada
questão, que vem se colocando na ordem do dia entre detratores de defensores do direito ao
aborto, de modo a justificar uma possível alteração na legislação pátria.

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II – O aborto e o Direito

II.I– Aspectos históricos

A interrupção voluntária da gravidez se traduz em uma prática conhecida pelas


mulheres desde tempos imemoriais, todavia, nem sempre passível de discussões ou polêmicas
morais como, da mesma forma, sujeita a normas penais incriminadoras.
A maneira como o aborto foi encarado ao longo da história encontrou variações,
abarcando tanto a indiferença quanto a um grave atentado à sociedade e a Deus.
No mundo greco-romano o aborto era uma prática corriqueira, tendo em vista o fato
de que a gravidez era um fenômeno adstrito ao corpo feminino e que à gestante cabia dispor
do feto livremente, pois ele fazia parte de seu organismo. Assim sendo, em nenhum
documento trazia a condenação à prática de interrupção da gravidez que passou a ser proibida
a partir das leis criadas por Licurgo no século VII a.C.2
O aborto voluntário, na história ocidental, conheceu períodos e culturas nas quais a
sua permissão encontrou justificativas diversas como o controle da natalidade visando o
equilíbrio entre a população e os meios de subsistência disponíveis à época. Para Aristóteles,
o aborto era possível desde que o feto ainda não tivesse adquirido alma, sendo aconselhável e
até mesmo estimulado tendo em perspectiva esses fins3. O medo da desonra da mulher,
passando, inclusive, pelas estratégias eugênicas, ao autorizá-lo nos casos em que estivesse
presente o risco do nascituro apresentar graves ou irreversíveis anomalias físicas ou mentais
figuravam como argumentos e razões permissivas ao abortamento.
Por sua vez, a proibição do aborto encontrou, ao longo da história, motivações
também díspares, lastreando-se em tanto opções políticas de incentivo ao aumento do
contingente populacional quanto em motivações morais e pretensamente científicas a partir da
representação do feto enquanto titular de direitos desde a sua concepção4. Na legislação
babilônica, por exemplo, o aborto foi tratado como um delito contra a propriedade e na
civilização hebraica só era punido se provocado de forma violenta5.
É importante ressaltar que tais argumentos, não obstante a sua base moral, não
necessariamente, encontram equivalência em doutrinas religiosas também contrárias ao

2 Moisés, Elaine Christine Dantas et al. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. Ribeirão Preto. São Paulo: FUNPEC, 2005.
3 Moisés, Elaine Christine Dantas et al. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. Ribeirão Preto. São Paulo: FUNPEC, 2005
4 Mori, Maurizio. A moralidade do aborto – Sacralidade da vida e o novo papel da mulher. Brasília: Ed. UNB, 1997
5 Moisés, Elaine Christine Dantas et al. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. Ribeirão Preto. São Paulo: FUNPEC Editora, 2005.

5
aborto. Porém, é inegável que eles apresentam grande proximidade com discurso religioso, ao
se apegarem em argumentos que priorizam a vida humana como valor supremo e divino, mas
se distanciam dele na medida em que tendem a aceitar hipóteses flexibilizadoras como nos
casos de risco de vida da gestante ou de gravidez resultante de violência sexual.
Foi a partir do cristianismo que o aborto passou a ser considerado uma prática passível
de repressão com a Igreja Católica preconizando a condenação daqueles que o praticavam,
sugerindo como punição a pena de morte tanto para a mulher quanto para aqueles que a
auxiliavam6.
Todavia, nem sempre a Igreja Católica assim procedeu. A história demonstra que o
entendimento sobre a questão variou no tempo e apenas nos últimos 150 anos o aborto passou
a ser severamente condenado, em todas as suas formas. Isto não significa que houve
momentos de tolerância com relação à interrupção da gravidez pelo catolicismo, mas apenas
uma maior debate sobre a questão no seio da doutrina católica.
São Tomás de Aquino, grande filósofo católico do Séc. XIII afirmava, de forma
categórica, que não se poderia falar em alma intelectual ou racional no momento da
fecundação, advogando contra a idéia de animação imediata. Portanto, não haveria de se falar
em alma humana a não ser em um período posterior de desenvolvimento fetal. Embora este
entendimento não portasse o condão de afastar a condenação e a pecaminosidade do aborto,
fosse esse precoce ou tardio, considerado desde sempre grave pecado, é inegável o seu efeito
com relação ao tema, já que não cabia a representação de “homicídio antecipado”.
Na Idade Média, a partir da perspectiva católica, o termo “homicídio” era utilizado
para designar qualquer crime contra a ordem natural da procriação, até mesmo a
contracepção. Assim, igualavam-se em reprovação a masturbação, a contracepção e o aborto,
uma vez que todas estas praticam atentavam contra a dignidade e santidade da vida humana
em si7.
Apenas na segunda metade do século XVII, a partir do decreto papal editado por Pio
IX é que se observa uma alteração no entendimento da Igreja Católica que passou a punir com
a excomunhão também aqueles que praticassem o aborto prematuro, sugerindo adesão à idéia
de animação imediata, atual posição oficial da Igreja Católica.
Cabe ressaltar que tal mudança de posicionamento que rompeu com a concepção
tomista de vida deu novo fôlego às representações de ‘homicídio’, pois ao se admitir a
existência de vida desde a concepção o aborto, inclusive aquele praticado no início da

6 Moisés, Elaine Christine Dantas et al. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. Ribeirão Preto. São Paulo: FUNPEC Editora, 2005.
7 Dworkin, Ronald. Domínio da Vida – Aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2003

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gravidez, passa a ser equiparado ao assassinato de uma criança, argumento impossível de ser
utilizado ao se trabalhar com a idéia contrária à animação imediata8.

II.II – Definição do conceito de aborto

Diferentes definições e conceitos são utilizados para descrever gravidez e aborto,


algumas vezes por desconhecimento, outras tantas por razões políticas, especialmente nos
casos em que a confusão gerada auxilia na manipulação do debate sobre a questão.
Para que se possa construir um espaço profícuo de discussão de idéias se faz
necessário a utilização de consensos mínimos, sobretudo, no tocante a conceitos e definições
dos termos que pautarão o debate, caso contrário se inviabiliza o projeto dialógico,
estabelecendo-se não mais do que monólogos ideológicos.
Muitos dos entraves e mal-entendidos poderiam ser evitados ou minimizados se os
diversos atores do debate sobre aborto utilizassem as mesmas definições ou estivessem, ao
menos, atentos e disponíveis para reconhecer a legítima existência de diferentes definições,
apontando, inclusive, qual delas encontra-se sustentando o debate em curso.
Mesmo texto científicos, aparentemente afastados do debate moral ou político que
envolvem a questão, acabam traindo a pretensa neutralidade tão cara às ciências, quando
tentam formular um conceito de aborto, veiculando termos como ‘morte’ do feto9, por
exemplo, levando a confusão entre morte e vida biológica com morte e vida jurídicos, como
se fossem intercambiáveis e a sua indistinção resultasse na mesma conclusão conceitual. Tal
distinção, aparentemente semântica, apresenta reflexos distintos, sobretudo na seara do
Direito. Segundo Spolidoro:

“Ao se afirmar a possibilidade de ‘morte do feto’, tem-se a


caracterização da interrupção do ciclo gravídico, quanto ao
aspecto biológico exclusivamente; pois para o Direito Penal, ao se
falar de morte jurídica, far-se-ia imprescindível houvesse a vítiva
alcançado o nascimento com autonomia biológica.”10

Embora não se pretenda, neste espaço, alcançar tal consenso, para a consecução dos
objetivos aqui propostos se torna imprescindível a utilização de uma definição acerca do
termo aborto. Para tanto, tendo em vista o início do debate, optou-se por lançar mão do
conceito advindo da literatura médica na qual o termo alcançou níveis mundiais de aceitação.

8 DWORKIN, Ronald. Domínio da Vida – Aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2003
9 SEMIÃO, Sérgio Abdalla. Os direitos do nascituro – Aspectos cíveis, criminais e do Biodireito. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.
10 SPOLIDORO, Luiz Claudio Amerise. O aborto e sua antijuridicidade. São Paulo, Lejus:1997

7
Inicialmente, cumpre ressaltar a origem etimológica da palavra aborto de modo a
clarificar o seu significado, buscando apontar, desde já, algumas impropriedades com relação
ao emprego do vocábulo ‘morte’. De acordo com Spolidoro:

(...) a palavra aborto, originária do latim abortus, preposição que


se emprega antes das palavras iniciadas por vogal, exprimeindo a
idéia de afastamento, mais ortus, substantivo masculino que indica
nascimento, origem ou mesmo como adjetivo, nascido, oriundo,
proveniente, formando, desta forma,a palavra ab+ortus = não
nascimento.11

Sob o ponto de vista médico, aborto é entendido como a interrupção da gravidez, de


forma voluntária ou não, antes que sejam completadas 20 semanas de idade gestacional, com
o feto apresentando peso inferior a 500 gramas. Tais parâmetros visam oferecer um padrão
mínimo, ainda que aproximado, da viabilidade fetal extra-uterina.
Para os obstetras o produto da concepção é considerado viável apresentando um prazo
mínimo entre 22 a 28 semanas, sendo que para o limite mínimo se faz necessário considerar
cuidados médicos hospitalares de modo a garantir a sobrevida no mundo fora do útero
materno. Têm-se, portanto, como média para ser firmada a viabilidade extra-uterina, 25
semanas ou seis meses e uma semana. Antes desse prazo o feto não terá alcançado
desenvolvimento suficiente para a sobrevida humana, de acordo com a lição do professor
Odon Ramos Magalhães12.
Todavia, se faz imprescindível salientar que com os saltos tecnológicos e avanços
científicos que acompanham a medicina na contemporaneidade, a cada dia torna-se mais
palpável a possibilidade de garantia da sobrevivência biológica do feto em período anterior à
26ª semana de gestação. Porém, esta garantia de sobrevida não implica, obrigatoriamente, na
necessária observância da qualidade de vida do recém-nascido. É voz corrente entre os
neonatalistas que os procedimentos utilizados para manter viva esta criança implicam na
redução de sua qualidade de vida, sobretudo se comparado àquelas que completaram, a
contento, o ciclo gestacional.
Segundo preleciona Luiz Cláudio Amerise Spolidoro, até a vigésima quinta semana de
gestação, o produto da concepção encontra-se em estado potencial:

“(...) pois a viabilidade está por se realizar e, assim

11 SPOLIDORO, Luiz Claudio Amerise. O aborto e sua antijuridicidade. São Paulo, Lejus:1997
12 Enciclopédia Saraiva de Direito, 1978, 14/328. apud SPOLIDORO, Luiz Claudio Amerise. O aborto e sua antijuridicidade. São Paulo, Lejus:1997

8
ocorrendo, com nascimento e constatação da sua autonomia
biológica, têm-se a constatação de sua condição de vida
meramente biológica para a vida biológica jurídica, dada a
aquisição do atributo vida, personalidade civil e condição, por
conseqüência de pessoa.”13

Ainda a título de delimitação do conceito trabalhado no presente trabalho se faz


necessário distinguir aborto espontâneo e provocado.
De acordo com Elaine Moisés, aborto espontâneo decorre de um processo natural da
gestante em razão de alterações patológicas maternas ou fetais, sem que haja nenhuma
interferência de meios de indução externo, podendo ser considerado evitável ou inevitável a
partir da presença ou não da dilatação do colo uterino14.
Já o aborto provocado, criminalizado pelo ordenamento jurídico pátrio, refere-se à
interrupção da gravidez causada por intervenção externa e intencional15, com ou sem o
consentimento da gestante, podendo ser praticado tanto por ela quanto por terceiros,
constituindo, nesses casos, um injusto penal.

II.III – O aborto na legislação brasileira

No Brasil a interrupção voluntária da gravidez é considerada um ilícito penal,


tipificado nos artigos 124 e seguintes do Código Penal Brasileiro, sendo considerado um
crime contra a pessoa. A interdição do aborto provocado voluntariamente pela gestante ou
com o seu consentimento vigora expressamente no ordenamento jurídico brasileiro desde a
promulgação do Código Penal de 1890, muito embora fosse, antes desta data, repudiado
moralmente. É importante ressaltar que até esta época ainda campeavam as dúvidas relativas a
ausência de alma antes do terceiro trimestre de gestação, não havendo consenso sobre a
existência deste tipo de crime propriamente dito, o que não afastava a condenação do ato
como imoral e atentatório aos preceitos religiosos que informavam as normas penais vigentes.
Esta proibição foi acolhida pelo texto penal de 1940, permanecendo em vigência até
os dias atuais, independentemente das profundas transformações sociais ocorridas no país
durante o século XX, bem como alheia aos avanços científicos que redesenharam o
conhecimento acerca do processo gravídico e, por via de conseqüência, sobre o que se pode
considerar vida, tanto biológica quanto juridicamente.

13 SPOLIDORO, Luiz Claudio Amerise. O aborto e sua antijuridicidade. São Paulo, Lejus:1997
14 MOISÉS, Elaine Christine Dantas et al. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. Ribeirão Preto. São Paulo: FUNPEC Editora, 2005.
15 FAÚNDES, Aníbal e Barzelatto, José. O drama do aborto – em busca de um consenso. Campinas, SP: Ed. Komedi, 2004.

9
Embora na própria organização do texto penal codificado tenha sido estabelecida a
distinção entre o crime de aborto e o homicídio, este disposto no Código Penal no artigo 121 e
as práticas relativas ao primeiro, tipificadas nos artigos 124 e 126, percebe-se que o bem
jurídico tutelado é a vida humana, ainda que a definição legal de vida no ordenamento
jurídico pátrio não esteja desta forma expressa16.
Decorre, daí, o primeiro problema a ser enfrentado ao se discutir a questão do aborto
para além do disposto no Código Penal Brasileiro, sobretudo à luz dos princípios
constitucionais.
O legislador optou por elencar o crime de aborto junto àqueles relativos aos crimes
contra a pessoa, mais especificamente, no capítulo que trata sobre os crimes contra a vida.
Assim sendo, torna-se desnecessário, ao menos em sede penal, a discussão sobre a validade
desta norma. A interrupção voluntária da gravidez está tipificada como ilícito penal, passível
de pena17.
Todavia, à esta classificação são endereçadas críticas, a partir do entendimento de
existência de vício legislativo no trato da matéria. Como aponta Spolidoro:

“o aborto não é um crime contra a pessoa, subclasse dos


crimes contra a vida, mas sim ‘interruptivo da gestação’ e, que,
em decorrência disso, estaria a merecer tratamento em Título e
Capítulo próprios.”18

Segundo este autor, em estudo comparado de legislações penais internacionais,


diversos são os países em que o aborto constitui um delito social e é colocado dentre os
crimes contra a integridade e sanidade da estirpe, como é o caso do Código Penal Italiano19.
Também no Brasil o conceito de vida, em especial, o começo da vida, não se apresenta
de forma unânime ou pacificada no meio jurídico, tornando, assim, o debate sobre o tema
ainda mais complexo.
Ao se analisar a norma penal incriminadora relativa ao homicídio percebe-se, com
clareza, o endereçamento do comando legal que descreve como crime matar alguém.
Evidencia-se como sujeito passivo deste crime a pessoa humana sem que seja necessário
nenhum debate técnico ou filosófico, ou seja, trata-se de um sujeito com vida, portador de

16 PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol. 2 – Parte Especial. 3ª Edição revista e ampliada. São Paulo: Ed. RT, 2004
17 PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol. 2 – Parte Especial. 3ª Edição revista e ampliada. São Paulo: Ed. RT, 2004
18 SPOLIDORO, Luiz Claudio Amerise. O aborto e sua antijuridicidade. São Paulo, Lejus:1997
19 SPOLIDORO, Luiz Claudio Amerise. O aborto e sua antijuridicidade. São Paulo, Lejus:1997

10
todos os direitos a ele inerentes, garantidos constitucionalmente20.
No tocante ao aborto aponta-se como sujeito passivo do crime previsto o feto, o que
não autoriza, de imediato, a sua identificação como pessoa humana, pleno titular de direitos. A
pluralidade de concepções e entendimentos sobre a natureza jurídica do embrião ou do feto
estabelece a abertura necessária para o debate acerca da descriminalização do aborto.
Ao se pensar o embrião ou o feto como pessoa, titular de direitos desde concepção,
têm-se, em princípio, a cristalina certeza sobre o imperativo acerca da manutenção da norma
penal incriminadora no ordenamento jurídico brasileiro, já que a Constituição Federal
preleciona, em seu artigo 5º, ser a vida um direito inviolável da pessoa humana. Têm-se,
assim, constituído o argumento de que o crime de aborto, em última instância, equivaleria a
uma forma de homicídio, mesmo que esta denominação soe imprópria tecnicamente21.
Por outro lado, ao problematizar o conceito de vida e de pessoa, têm-se tal certeza
mitigada a partir do entendimento do feto como um projeto humano que apresenta uma
expectativa de direito, mas ainda não constituindo um sujeito titular pleno deles. Nesta
perspectiva, o valor de vida atribuído ao feto estaria adstrito aos limites oferecido a um ser
vivo, sendo, portanto, passível de flexibilização diante da premência de valores outros
apresentados pela mulher, no caso a gestante, como a dignidade da pessoa humana e
liberdade22.
Este debate já vem sendo travado em esferas distintas ao Direito, especialmente após o
avanço científico que possibilitou o conhecimento mais acurado sobre a reprodução humana e
a determinação do momento em que o embrião desenvolve características capazes de lhe
conferir estatuto de ser humano.
No âmbito do Direito Civil, de modo não menos inquietante, este debate também se
faz presente, sobretudo com relação à interpretação do artigo 2º do Código Civil, in verbis,“A
personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei pôe a salvo, desde a
concepção, os direitos do nascituro.”
Depreende-se da parte final do referido artigo que a lei tutela desde a concepção são os
direitos sob estado potencial que decorrem em aparência na viabilidade do nascimento com
vida e, com isso, por parte do produto da concepção a atributividade da personalidade civil.
Nas palavras de Spolidoro:

20 PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol. 2 – Parte Especial. 3ª Edição revista e ampliada. São Paulo: Ed. RT, 2004
21 MORI, Maurizio. A moralidade do aborto – Sacralidade da vida e o novo papel da mulher. Brasília: Ed. UNB, 1997
22 MORI, Maurizio. A moralidade do aborto – Sacralidade da vida e o novo papel da mulher. Brasília: Ed. UNB, 1997

11
“O que o legislador põe em proteção é a possibilidade de
conclusão do ciclo gravídico, sem interrupção e não a garantia de
‘vida’ biológica ou jurídica aoproduto da concepção, uma vez que
esta não nasce do ato impositivo da lei ou do homem mas sim,
como elemento atributivo de todo produto da concepção que nasça
com vida.”23

II.IV - Hipóteses permissivas de interrupção voluntária da gravidez

O ordenamento jurídico brasileiro prevê algumas hipóteses permissivas de aborto


dispostas no Código Penal em seu art. 128, embora correntes doutrinárias advoguem que se
trata, exclusivamente, de ausência de punição diante de casos específicos, permanecendo a
conduta tipificada24.
Tal entendimento revela uma interpretação literal do texto legal sem levar em
consideração possíveis impropriedades legislativas, uma vez que as hipóteses previstas pela
lei penal referem-se ao desaparecimento da ilicitude do fato, sendo mais correto a expressão
‘Não há crime’ ao invés de ‘Não se pune’.
De acordo com o Código Penal, in verbis:

Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:

Aborto necessário

I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

Aborto no caso de gravidez resultante de estupro

II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de


consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante
legal.

Na primeira hipótese tem-se o caso de aborto necessário, também designado como


aborto terapêutico e apresenta como elementos essenciais para a sua caracterização o iminente
perigo de vida da gestante associado à inexistência de qualquer outro meio que possibilite
salvar a sua vida. Vê-se, portanto, que não se trata apenas de cuidar da saúde da mulher, mas,
sobretudo, que ela esteja de fato em risco de morte.
Este tipo de aborto é legalmente permitido, embora com o crescente avanço da ciência
bio-médica, perceba-se uma tendência de diminuição de casos, uma vez que alternativas
diversas surgem no cenário compatibilizando a gestação e a vida da mulher.
Cumpre ressaltar que este dispositivo legal, ainda que de forma transversa, demonstra
23 SPOLIDORO, Luiz Claudio Amerise. O aborto e sua antijuridicidade. São Paulo, Lejus:1997
24 SPOLIDORO, Luiz Claudio Amerise. O aborto e sua antijuridicidade. São Paulo, Lejus:1997

12
a retomada de rota do legislador, na medida em que se reconhece que o produto da concepção
possui vida meramente biológica e adquirindo existência jurídica a partir do nascimento com
vida, de acordo com o que preceitua o art. 2º do Código Civil. Em outros termos, é o
reconhecimento de que a tipificação do aborto, tal qual figura no Código Penal, se presta a
tutelar a vida em estado potencial, meramente biológica, tanto que perde em prevalência se
confrontada com a vida jurídica da mãe, havendo claro e inequívoco reconhecimento da
diferenciação que existe entre a vida biológica e a jurídica25.
A segunda hipótese prevista no Código Penal é também denominada de aborto
sentimental e trata de casos de interrupção de gravidez resultante de estupro e fundamenta-se
no direito à honra, à integridade física e psíquica da mulher e à segurança social, pois o
estupro é delito previsto no Código Penal em seu artigo 213.
De acordo com a lição de Moisés,

“Considera-se moralmente aceitável interromper a gravidez


quando a mulher grávida não consentiu de nenhum modo
engravidar. Segundo Hungria ‘nada justifica que se obrigue a
mulher estuprada a aceitar a maternidade odiosa, que dê vida a
um ser que lhe recordará perpertuamente o horrível episódio da
violência sofrida’.”26

Não obstante ser inquestionável o direito albergado neste dispositivo legal torna-se
imprescindível problematizar o aspecto paradoxal que ele nos apresenta, especialmente por
estar situado em um Capítulo do Código Penal que dispõe sobre os crimes contra pessoa e o
seu bem dado como mais relevante, ou seja, a vida.
Como já foi mencionado acima, o sujeito passivo do crime de aborto é o feto, uma vez
que é, segundo o diploma legal em apreço, a sua morte, provocada por ação dolosa, externa e
violenta, o pressuposto básico do injusto penal. Como se pode aferir, segundo a letra da lei, o
feto é tratado como pessoa, indiferentemente se a sua personalidade jurídica irá ser adquirida
com o nascimento com vida. Tem-se, como já afirmado, uma indistinção entre vida biológica
e jurídica.
Relevante também se mostra a atribuição, ao aborto sentimental, de característica de
excludente de ilicitude, tendo como base de sustentação a idéia de estado de necessidade
especial27. Como leciona Prado:

25 SPOLIDORO, Luiz Claudio Amerise. O aborto e sua antijuridicidade. São Paulo, Lejus:1997
26 MOISÉS, Elaine Christine Dantas et al. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. Ribeirão Preto. São Paulo: FUNPEC Editora, 2005.
27 NORONHA, Magalhães. Curso de Direito Penal. Apud SPOLIDORO, Luiz Claudio Amerise. O aborto e sua antijuridicidade. São Paulo, Lejus:1997

13
“No aborto sentimental ou humanitário o mal causado é maior do
que aquele que se pretende evitar. De conformidade com a teoria
diferenciadora em matéria de estado de necessidade – que faz
distinção entre bens em confronto -, haverá a exclusão de
culpabilidade da conduta pela inexigibilidade de conduta diversa.
O fundamento da indicação ética reside no conflito de interesses
que se origina entre a vida do feto e a liberdade da mãe,
especialmente as cargas emotivas, morais e sociais que derivam
da gravidez e da maternidade, de modo que não lhe é exigível
outro comportamento”.28

Cabe ressaltar que a autêntica base eximente da ilicitude atribuída à prática do aborto,
para além do exercício regular de um direito no tocante à ação dos profissionais de saúde
(médico e sua equipe), é o consentimento da gestante ou de seu representante, pois será este
que faz surgir o direito de agir do médico29.
Isto posto, resta indagar a razão pela qual o feto, cuja ‘vida’ é tutelada pela legislação
pátria, passa a ser preterido, seja em termos de importância ou valor, frente a honra e a
integridade física ou mental da mãe em circunstâncias, ainda que eivada de gravidade pelo ato
de violência, se nem mesmo figura como sujeito, ativo ou passivo, do delito praticado, que
autorizaria legalmente o aborto? Em que medida o consentimento do ofendido, no caso a
mulher, autorizaria a agressão a um bem jurídico tutelado pela norma penal, absolutamente
alheio às circunstância em questão?
Se de fato o legislador estava a se referir ao produto da concepção como pessoa
humana, qual é o argumento moral que sustentaria a opção pela sua ‘morte’, sem a devida
observância de todos os direitos que lhes seriam inerentes, em decorrência de um delito
praticado por terceiros. Segundo preleciona Spolidoro:

“Se para o legislador penal o feto é pessoa e concorre em


igualdade com o mesmo conceito de vida com aqueles que
nasceram com vida, sua remoção do ventre materno, em razão de
um sentimento, ato de mera subjetividade humana, sem que ele
seja sujeito ativo de um delito, mas conseqüência involuntária até
mesmo do seu conceito delitual, assim como se fez para a
ofendida, ao produto da concepção deveriam ser conferidos todos
os direitos e garantias fundamentais, como prescrito pela
Constituição”.30

Nesse sentido a permissão da interrupção da gravidez resultante de estupro revelar-se-

28 PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol. 2 – Parte Especial. 3ª Edição revista e ampliada. São Paulo: Ed. RT, 2004
29 PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol. 2 – Parte Especial. 3ª Edição revista e ampliada. São Paulo: Ed. RT, 2004
30 SPOLIDORO, Luiz Claudio Amerise. O aborto e sua antijuridicidade. São Paulo, Lejus:1997

14
ia uma discriminação atentatória aos Direitos Fundamentais que ofenderia, de uma só vez os
direitos à vida, à liberdade, à igualdade e à democracia.
Todavia não parece ser esse o entendimento majoritário, seja da doutrina, seja da
sociedade como um todo, o que sugere certa inadequação do aborto como crime contra a vida
e, sobretudo, o juízo do feto como pessoa, estremando-o da idéia de potência já frisada acima.
A hipótese permissiva de aborto prevista no art. 128, II do Código Penal vigente,
sugere, associado ao referido acima, uma valoração moral da conduta que autorizaria a
suposição de que, nesse caso, a mulher poderia rejeitar uma “certa” vida que, ao que as
evidências indicam, apresenta grau de importância menor do que aquela fruto de uma relação
consentida, esta sim, verdadeiro objeto de tutela do Direito.
Em contraponto, seria endereçado à mulher um juízo que lhe imporia o dever de
suportar a vida que traz no ventre sempre que esta fosse coincidente com o que,
supostamente, é compreendido como ‘vida legítima’. De acordo com as autoras do Dossiê
Aborto, estaria em jogo, nessa operação, uma espécie de punição social relativa à
irresponsabilidade feminina que não soube evitar a gravidez e, portanto, deve assumir o seu
ônus.31

II.V - Aspectos morais e reflexos sociais do aborto

A partir do exposto até aqui tornou-se mais evidente a base fundante dos
argumentos que sustentam a lógica do aborto como ‘homicídio’, ainda que o Código Penal
Brasileiro disponha de outra forma. A vida defendida deste ponto de vista adquire significado
distinto daquele que lhe é atribuído pela biologia, uma vez que busca sua fundamentação na
transcendência divina que dispõe a vida humana como uma dádiva de Deus, cujo controle,
seja de seu início, seja de seu fim, estaria interditado à vontade dos homens32.
Apresenta-se ao debate uma nova dimensão do problema, tornando-o ainda mais
complexo.
O Estado Democrático de Direito pressupõe, como substância de sua existência, a
separação entre Estado e Religião, não sendo admitido disputas operadas em um campo
marcado pelo inexplicável ou transcendente, sob pena de se tornar refém de argumentos que
se fundam em uma autoridade auto-entronizada e infalível. O rompimento com a lógica do

31
MARTINS, Alaerte L. e MENDONÇA, Lígia C. Dossiê Aborto – Mortes Preveníveis e Evitáveis. Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e
Direitos Reprodutivos. Belo Horizonte, 2005.
32 MORI, Maurizio. A moralidade do aborto – Sacralidade da vida e o novo papel da mulher. Brasília: Ed. UNB, 1997

15
Estado Laico faz ruir o edifício da democracia e da liberdade, fundado na pluralidade de
atores, cuja convivência se torna possível a partir do debate de posições divergentes,
minimamente inteligíveis33.
Embora seja absolutamente possível, ao menos no plano abstrato e hipotético, uma
comunidade livre e autônoma, se fundar e se organizar segundo preceitos e definições
religiosas, têm-se que, diante da realidade contemporânea e da evidência que aponta para a
conformação social marcada pela diversidade e pluralidade de pensamentos, crenças e
opiniões, esta probabilidade se mostra bastante remota. Nesse cenário, fragmentado por
definição, as tensões sociais são inevitáveis, tanto quanto são legítimas, exigindo-se do Estado
uma prestação de proteção aos mais variados atores que se expressa e, tão-somente assim se
realiza, a partir de sua posição isenta diante das inúmeras possibilidades de crenças e posições
ideológicas.
Nesta perspectiva, no momento em que a vida passa a ser um valor absoluto e
supremo, oferecido por uma divindade transcendente, extingue-se a possibilidade de se
estabelecer qualquer debate, pois as bases constituintes deste cenário é uma argumentação
excludente e autoritária, incapaz de oferecer um ambiente favorável à expressão de posições
divergentes ou dissonantes ao que é posto por ela.
Ao se atribuir à vida importância totalizante e inquestionável perde-se a capacidade de
se observar o caráter prima facie apresentado pelos direitos fundamentais, inclusive, pelo
direito à vida, tornando impossível sua confrontação por outros valores de grandeza
semelhante34.
Não obstante o fato de escapar ao escopo do Direito faz-se imprescindível reflexão
sobre a realidade circundante, afetada diretamente pela incriminação da prática do aborto, de
modo a ampliar a discussão, mesmo porque o assunto é delicado, e exige uma análise sobre
vários ângulos: político, social, jurídico, moral, religioso e filosófico.
O aborto clandestino é um grave problema de saúde pública, reconhecido pela
comunidade internacional em conferências promovidas pelas Nações Unidas na década de 90,
sendo a clandestinidade vinculada ao caráter de ilicitude que recobre tal prática.
Via de regra, em função da penalização da prática de aborto, este tende a ser realizado
sob condições precárias, em ambientes que não apresentem os mínimos padrões sanitários e
por pessoas sem capacitação técnica resultando, geralmente, em seqüelas à saúde da mulher e,

33 GALDINO, Elza. Estado sem Deus – A obrigação da laicidade na Constituição. Belo Horizonte: Ed. Del Rey, 2006.
34
ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios Constitucionais. 2ª tiragem. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 2003.

16
muitas vezes, sua própria morte35.
Segundo a Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos
Reprodutivos (Rede Feminista de Saúde), calcula-se que cerca de 20 milhões de abortamentos
ilegais sejam realizados a cada ano em todo o mundo, significando dizer que 44% dos abortos
realizados são clandestinos. Só na América Latina e Caribe, estudos indicam que cerca de 4
milhões de abortos não permitidos por lei sejam realizados anualmente, o que representa 95%
dos abortamentos. Segundo a Organização Mundial da Saúde, 21% das mortes relacionadas
com a gravidez, o parto e o pós-parto nesta região têm como causa as complicações do aborto
inseguro36.
Estudos do Fundo de População das Nações Unidas revelam que anualmente cerca de
6 mil mulheres morrem na América Latina em conseqüência de complicações de abortos
clandestinos, bem como inúmeras outras sofrem danos às vezes irreversíveis à sua saúde.
Embora o número preciso de abortos provocados seja difícil de calcular em função da
clandestinidade imposta à esta prática devido a sua criminalização, estima-se que cerca de 1
milhão de brasileiras – adolescentes e mulheres – que engravidam sem planejar recorram ao
aborto clandestino todos os anos, fazendo com que a interrupção da gravidez constitua a
quinta maior causa de internações na rede pública de saúde sendo a terceira causa de morte
materna no país37.
Mesmo diante de todos os riscos impostos pelo aborto ilegal e inseguro percebe-se que
as mulheres continuam a praticá-lo e o fazem por razões diversas, que vão da falta de acesso a
programas de planejamento familiar, até às relações sexuais não voluntárias ou não desejadas,
caracterizadas por violência sexual, coerção nas relações sexuais e/ou gravidez forçada38.
Vê-se, assim, que a condenação da mulher que aborta representa, em última instância,
uma dupla punição imposta a ela, uma vez que se encontra com uma gravidez indesejada,
resultado da incapacidade da sociedade de prover condições de educação, cidadania e
planejamento reprodutivo. Geralmente são mulheres de baixo poder aquisitivo que enfrentam
as mais graves conseqüências da ilegalidade e buscam, sem alternativa, práticas clandestinas
mais baratas e, conseqüentemente, mais inseguras, com menos recursos técnicos de qualidade.
A proibição legal, ou religiosa do aborto, tem demonstrado ser incapaz de reduzir a

35
MARTINS, Alaerte L. e MENDONÇA, Lígia C. Dossiê Aborto – Mortes Preveníveis e Evitáveis. Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e
Direitos Reprodutivos. Belo Horizonte, 2005.
36
MARTINS, Alaerte L. e MENDONÇA, Lígia C. Dossiê Aborto – Mortes Preveníveis e Evitáveis. Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e
Direitos Reprodutivos. Belo Horizonte, 2005.
37
MARTINS, Alaerte L. e MENDONÇA, Lígia C. Dossiê Aborto – Mortes Preveníveis e Evitáveis. Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e
Direitos Reprodutivos. Belo Horizonte, 2005.
38
MARTINS, Alaerte L. e MENDONÇA, Lígia C. Dossiê Aborto – Mortes Preveníveis e Evitáveis. Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e
Direitos Reprodutivos. Belo Horizonte, 2005.

17
taxa total de abortos, principalmente em países em desenvolvimento, tendo como efeito direto
o aumento das taxas de abortos clandestinos e inseguros e, por via de conseqüência, da
mortalidade materna39.
Tendo em vista este estado de coisas foram colocados em marcha projetos de revisão
da norma penal incriminadora relativa ao aborto, de matizes e interesses diversos, que visam
legalizar o aborto no Brasil, prevendo a liberalização do aborto até a 12ª semana da gravidez,
sem que a gestante apresente qualquer justificativa, como é o caso do anteprojeto de Lei que
altera a parte especial do Código Penal Brasileiro e do PL 1.135/91, de autoria do ex-deputado
Eduardo Jorge e da ex-deputada Sandra Starling.
Tais iniciativas vêm sendo acompanhadas com relativa atenção pela sociedade
brasileira, em especial pelas mulheres, de acordo com os resultados da pesquisa CCR –
Ibope/2003, embora demande maior densidade na arena política da sociedade40.
A pesquisa foi realizada pela CCR (Comissão de Cidadania e Reprodução) e pelo
Ibope (Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística) com uma amostra representativa
da população adulta brasileira, abarcando 2.000 entrevistas em 145 municípios brasileiros41.
Segundo a pesquisa CCR - Ibope as taxas de apoio ao aborto legal vigente e de
demanda para ampliação da permissão ao aborto são maiores entre os entrevistados que
acompanham o debate sobre a questão, assim como entre moradores das grandes cidades e
das capitais, reafirmando que quanto mais informados e mais preparados para a questão, mais
os brasileiros apóiam o aborto legal atual e mais demandam a ampliação da legislação para a
permissão do aborto42.
O debate sobre interrupção voluntária da gravidez tende a se concentrar na polarização entre
os grupos contrários ao aborto, denominados de Movimento Pró-Vida, assim identificados por
defenderem o direito à vida do embrião, e aqueles que defendem a livre determinação dos
sujeitos afetados pela gravidez. Ainda que nem sempre esteja verbalizada, encontra-se
presente a clássica dicotomia entre argumentos religiosos e laicos43. Os primeiros sustentam a
primazia da vida como valor supremo e sagrado, dádiva divina e os últimos advogam o direito
de escolha como direito humano fundamental, sustentado pelos princípios éticos relativos à
integridade Corporal correspondente ao direito à segurança e ao controle do próprio corpo; à
igualdade, já todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos, bem como a

39
MARTINS, Alaerte L. e MENDONÇA, Lígia C. Dossiê Aborto – Mortes Preveníveis e Evitáveis. Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e
Direitos Reprodutivos. Belo Horizonte, 2005.
40 BERQUÓ, Elza e LAGO, Tânia. O debate sobre o aborto no Brasil. Revista de Saúde Sexual e Reprodutiva IPAS BRASIL. Ed. 8 - Novembro, 2003. Rio de Janeiro, 2003
41 BERQUÓ, Elza e LAGO, Tânia. O debate sobre o aborto no Brasil. Revista de Saúde Sexual e Reprodutiva IPAS BRASIL. Ed. 8 - Novembro, 2003. Rio de Janeiro, 2003
42 BERQUÓ, Elza e LAGO, Tânia. O debate sobre o aborto no Brasil. Revista de Saúde Sexual e Reprodutiva IPAS BRASIL. Ed. 8 - Novembro, 2003. Rio de Janeiro, 2003
43 MORI, Maurizio. A moralidade do aborto – Sacralidade da vida e o novo papel da mulher. Brasília: Ed. UNB, 1997

18
igualdade de direitos entre mulheres e homens em relação a estes dois campos; à
individualidade, que implica no respeito à capacidade moral e legal das pessoas, ou seja,
direito à sua autodeterminação e, por fim, à diversidade, princípio referente ao respeito pelas
diferenças entre as mulheres, em termos de valores, cultura, orientação sexual, condição
familiar e de saúde e quaisquer outras condições44.

44
MARTINS, Alaerte L. e MENDONÇA, Lígia C. Dossiê Aborto – Mortes Preveníveis e Evitáveis. Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e
Direitos Reprodutivos. Belo Horizonte, 2005.

19
III – Princípios Constitucionais

III.I – Teoria Geral dos princípios

O estudo dos princípios vem se destacando dentre as questões de relevo da Ciência


Jurídica, apresentando incontestes reflexos para a compreensão do Direito, sobretudo ao
impor um novo olhar teórico sobre o conceito de norma, interpretação e eficácia do sistema
constitucional.
A doutrina tradicional, ao longo dos tempos, vem formulando múltiplas funções e
abordando a problemática da caracterização e natureza dos princípios, porém não lhe
reconhecia sua natureza normativa, constituindo espécie do gênero norma de Direito.
Antes deste efetivo reconhecimento os princípios eram identificados tão-somente em
razão de sua generalidade, indeterminação, que os colocava em posição hierárquica muito
elevada, o que lhes indicava função fundamentadora e interpretativa do sistema jurídico. Em
outros termos, não obstante o caráter de importância reservado aos princípios a sua
juridicidade era limitada, cuja função seria programática, meramente iluminadora das reais
normas jurídicas.
Em linhas gerais, pode-se traçar o processo de normatização dos princípios a partir de
uma linha histórica cujo marco inicial coincide com o jusnaturalismo.
Para o jusnaturalismo os princípios situavam-se numa dimensão ético-valorativa,
sendo claramente identificados com o direito ideal e com os postulados de justiça, baseados
na reta razão. Os princípios eram tidos como verdades objetivas derivadas da lei divina e
humana, cuja função precípua seria suprir as lacunas do ordenamento jurídico utilizando-se,
para tanto, do recurso a uma lei natural, eterna e imutável, absolutamente autônoma frente ao
sistema normativo posto.
Nesta perspectiva, os princípios são conceitos metajurídicos, dispostos em posição
superior às leis ditadas pelo Direito Positivo que, em função disso, não admitem nenhuma
contrariedade, uma vez que representam a expressão inequívoca do direito natural.
A crença em pretensões humanas legítimas que não decorreriam de normas emanadas
pelo Estado perseverou no tempo e dominou a filosofia jurídica, mantendo-se prevalente do
século XVI até final do século XIX, momento em que cedeu espaço ao juspositivismo.
A partir do entendimento do direito natural como algo anticientífico e metafísico os
princípios passam a compor o ordenamento jurídico, todavia sem apresentar caráter

20
normativo, exercendo função meramente supletória, a fim de garantir a plenitude do
ordenamento diante de lacunas que pudessem ameaçar o edifício jurídico, construído a partir
da crença no poder do conhecimento científico, no caso a Ciência Jurídica.
Baseada nos princípios do positivismo filosófico, o Direito passa a ter como meta a
busca pela objetividade científica, enfatizando, sobremaneira, a realidade observável em
detrimento às especulações filosóficas.
Forja-se, assim, a separação entre Direito e moral, passando aquele ser identificado
com a norma emanada pelo Estado, dotada de imperatividade e coercibilidade. Nesta
perspectiva, segundo Luiz Roberto Barroso:

“A Ciência do Direito, como todas as demais, deve fundar-se em


juízos de fato, que visam ao conhecimento da realidade e não em
juízos de valor, que representam uma tomada de posição diante da
realidade. Não é no âmbito do Direito que se deve travar a
discussão acerca de questões como legitimidade e justiça”.45

Desta forma, os princípios passa a ser entendido como um instrumento legal de


integração do ordenamento jurídico, porém despido da função corretiva de injustiças. São
atribuídos a eles o papel de diretriz superior a ser observada pelas regras jurídicas como
produto das induções que se sobressaem das próprias leis.
O juspositivismo não consegue superar o forte golpe proferido pela ascensão do
Nazismo, quando, à título de obediência irrestrita às leis e ao Estado, foram justificadas
indizíveis atrocidades . Assim, ao término da Segunda Guerra Mundial, a concepção de um
ordenamento jurídico alheio a valores éticos, fundamentado exclusivamente em aspectos
formais da lei emanada por autoridade competente, não encontra mais abrigo em nenhum
modelo de pensamento afinado com a dinâmica e demandas da história contemporânea.
Como leciona Luiz Roberto Barroso:

“A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso do


positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda
inacabado de reflexões sobre o Direito, sua função social e
interpretação. O pós-positivismo é a designação provisória e
genérica de um ideário difuso no qual se incluem a definição das
relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada
nova hermenêutica constitucional, e a teoria dos direitos
fundamentais, edificada sob o fundamento da dignidade da pessoa

45
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6ª Edição, atualizada e ampliada. São Paulo: Saraiva, 2004.

21
humana”.46

No pós-positivismo, resultado direto da superação dialética dos modelos jurídicos


tradicionais, torna-se imperativo a necessidade do reconhecimento do caráter normativo,
vigente e eficaz dos princípios jurídicos, que contém uma pauta axiológica, agasalhando os
valores da sociedade. Em um mundo inegavelmente plural, marcado por tensões dialéticas
que demandam respostas múltiplas às questões apresentadas, os princípios são proclamados
normas jurídicas, podendo, assim como as regras, imporem obrigação legal.
Neste contexto os princípios jurídicos passam a exercem fundamental importância no
sistema jurídico, bastando observar que, segundo lição de Celso Antônio Bandeira de Mello,

“violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma


norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um
específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de
comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou
inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido,
porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão
de seus valores fundamentais.” 47

Em sede constitucional, os princípios adquiriram força vinculante, impondo dever de


observância aos seus ditames, a todos aqueles que a ela se submetem, seja o Poder Público ou
particulares. Rompe-se, assim, de forma definitiva, com a concepção de que as normas
constitucionais poderiam ser classificadas como preceptivas e programáticas, sendo a essas
últimas negadas o caráter de força de lei. Conforme preleciona Edilsom Farias, “as normas
(princípios ou regras) constitucionais independentemente de sua estrutura, possuem igual
força normativa obrigatória e ‘vinculam o legislador e o intérprete da Constituição e em geral
a todos’”.48

III.II – Distinção entre Princípios e Regras

Pelo exposto acima, verifica-se que tanto as regras como os princípios devem ser
compreendidos como normas, sobretudo, por que ambos dizem o que deve ser, podendo,
portanto, ser formulados com a ajuda das expressões deônticas básicas da ordem, da

46
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6ª Edição, atualizada e ampliada. São Paulo: Saraiva, 2004.
47 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de Direito Administrativo. São Paulo: Ed. RT, 1980.
48 FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de Direitos – A honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. 2ª edição atualizada.
Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 2000.

22
permissão e da proibição.
A distinção entre regras e princípios pode ser formulada como uma diferenciação entre
dois tipos de normas, que se revelam, no tocante ao ordenamento jurídico, enquanto gênero
que apresenta aqueles como suas espécies.
Segundo a doutrina tradicional existem vários critérios para a distinção entre regras e
princípios, sendo que, de um modo geral, os critérios relativos à generalidade e abstração se
mostram os mais prevalentes. De acordo com estes critérios, os princípios são normas com
um grau de generalidade e abstração relativamente alto enquanto as regras, ao contrário,
seriam normas que apresentariam as mesmas características apenas com um nível
relativamente mais baixo.
Nesta perspectiva, os princípios se revelariam pilares do sistema jurídico dotados de
capacidade para lançar efeitos de sentido sobre diversas normas, balizando a interpretação do
conjunto normativo. Segundo Daniel Sarmento,

“[os princípios] revestem-se de um grau de generalidade e de


abstração superior ao das regras, sendo, por conseqüência,
menor a determinabilidade do seu raio de aplicação. Ademais, os
princípios possuem um colorido axiológico mais acentuado do
que as regras, desvelando mais nitidamente os valores jurídicos e
políticos que condensam.”49

Corrobora este entendimento a elaboração teórica proposta por Dworkin que


aponta para a proximidade dos princípios com a idéia de justiça. Segundo este autor, os
princípios representariam padrões que devem ser observados, não apenas por assegurarem
situações consideradas desejáveis, mas por serem uma exigência da justiça.50
Além do exposto, o critério mais referido pelos mais diversos autores e
apontado como sendo o mais adequado é o baseado na dimensão, pois a diferença entre
princípios e regras não é apenas gradual, mas também qualitativa. Enquanto as regras
possuem somente a dimensão da validade, os princípios possuem ainda a dimensão da
importância, do peso ou valor. Com isso, quer-se dizer que as regras suscitam apenas
problemas de validade, ou seja, na hipótese de conflito entre elas, uma não será válida e,
portanto, deverá ser excluída ou abandonada. Esta exclusão dar-se-á segundo os critérios
para a solução de antinomias estabelecidos por outras normas existentes no próprio

49
SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, 2003
50
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a sério. Ed. Martins Fontes: São Paulo, 2002

23
ordenamento jurídico.51
De acordo com Humberto Ávila52, a partir da evolução doutrinária, pode-se apontar
quatro critérios utilizados para distinguir princípios e regras, a saber, critérios do caráter
hipotético-condicional, do modo final de aplicação, do relacionamento normativo e do
fundamento axiológico.
O critério baseado no caráter hipotético-condicional apresenta como base o fato das
regras possuírem, de forma clara e precisa, uma hipótese e uma conseqüência que
predeterminam a decisão, devendo ser aplicadas ao modo se, então. Já os princípios
indicariam o fundamento a ser utilizado pelo intérprete da norma visando identificar a exata
norma a ser aplicada diante do caso concreto.
O caráter do modo final de aplicação se traduz no imperativo que indica ser a regra
aplicada mediante o modo absoluto “tudo ou nada” e os princípios de modo gradual, sendo
possível a aplicação “mais ou menos”.
Já o critério do relacionamento normativo apóia-se na identificação de conflitos
normativos reais ou aparentes, sendo os primeiros solucionáveis a partir da declaração de
invalidade de uma das regras aplicáveis ao caso ou a partir da criação de exceções,
previamente imaginadas e os segundos revelariam relacionamentos entre princípios
imbricáveis entre si, cuja solução se daria a partir de ponderação que atribui uma dimensão de
peso a cada um dos princípios colidentes.
Por último, o critério do fundamento axiológico que atribui este apenas aos princípios,
negando tal caráter às regras, no momento de tomada de decisão.
Segundo este autor, todos estes critérios apresentam qualidades importantes para a
Ciência do Direito, todavia, não devem ser utilizados sem crítica ou ponderações, sobretudo,
em função da finalidade precípua atribuída à distinção entre essas categorias normativas.
Conforme preleciona:

“A distinção entre categorias normativas, especialmente entre


princípios e regras, tem duas finalidades fundamentais. Em
primeiro lugar, visa antecipar características das espécies
normativas de modo que o intérprete ou o aplicador,
encontrando-as, possa ter facilitado o seu processo de
interpretação e aplicação do Direito. Em conseqüência disso, a
referida distinção busca, em segundo lugar, aliviar,
estruturando-o, o ônus da argumentação do aplicador do
Direito, na medida em que uma qualificação das espécies
51
ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios Constitucionais. 2a. Tiragem. Porto Alegre : SAFE, 2003
52
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5ª edição, revista e ampliada. São Paulo: Ed. Malheiros, 2006.

24
normativas permite minorar – eliminar, jamais – a necessidade
de fundamentação, pelo menos indicando o que deve ser
fundamentado.”53

Nesse sentido, o caráter hipotético-condicional deve ser problematizado por ser


mostrar impreciso e, de certa maneira, inconsistente, senão, vejamos.
Em primeiro lugar, a existência de uma hipótese de incidência revela-se, não mais, do
que uma mera formulação lingüística que pode ser alterada de acordo com aquele que a opera.
Desse modo, o que, a primeira vista, sugere ser uma regra pode ser interpretado como um
princípio e vice-versa, seja no ato de sua elaboração legislativa, seja em sua aplicação diante
um caso concreto.
Neste diapasão, um princípio pode, perfeitamente, tanto possuir uma hipótese de
incidência quanto conseqüências normativas, uma vez que esta espécie de norma, ao atribuir
relevância a um determinado fim sugere a adoção de comportamentos para a consecução deste
objetivo, ainda que não descreva, objetivamente e em espécie, quais deverão ser tais
comportamentos, cabendo à sua interpretação revelá-los.
Segundo Humberto Ávila, “o ponto decisivo não é, pois a ausência de
comportamentos e de conseqüências no caso de proncípios, mas o tipo da prescrição de
comportamentos e conseqüências, o que é algo diverso.”54
Em segundo lugar, ao se afirmar que os princípios se apresentam como o primeiro
passo direcionador rumo a uma decisão, apenas parte da assertiva se mostra correta, pois não
demonstra, exatamente, qual é o fundamento do que significa ‘primeiro passo’. Além disso,
sugere que, uma vez dado primeiro passo, caberia às regras o ‘último passo’, o que não
corresponde à verdade, especialmente por se saber que este último passo, efetivamente, é
dado pela decisão interpretativa e não pelo dispositivo que contém a norma e nem mesmo
pelo seu significado preliminar.
O critério do modo final de aplicação também apresenta problemas, pois é sabido que
o modo de aplicação de uma norma não deve ser determinado pelo seu objeto de
interpretação, mas pelas diversas conexões axiológicas levadas em consideração, pelo
intérprete diante do caso concreto. Nem mesmo aquelas regras às quais são, supostamente,
atribuídas um modo absoluto de aplicação escapam dessa lógica, uma vez que o aplicador,
diante do caso concreto poderá inverter o modo de aplicação, elegendo, diante dos fatos

53
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5ª edição, revista e ampliada. São Paulo: Ed. Malheiros, 2006.

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ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5ª edição, revista e ampliada. São Paulo: Ed. Malheiros, 2006.

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narrados e ocorridos, outros valores relevantes que exigem a subversão a implementação da
conseqüência que, aparentemente, se impunha, sem que, com isso, exclua a regra colidente ou
se demande por regras de exceção previamente estabelecidas.
Vê-se, portanto, que não se aplica apenas aos princípios a aplicação de modo gradual,
já que ambas espécies normativas podem demandar a consideração de aspectos específicos,
abstratamente desconsiderados. Isso ocorre na medida em que normas que, aparentemente,
indicam modo incondicional de aplicação, podem apresentar, diante do caso concreto, razões
que exijam do aplicador ou intérprete lançar mão de elementos não cogitados pelo legislador
para a solução do problema apresentado, em uma autêntica operação de ponderação, no caso,
balanceamento de razões atinentes ao caso concreto.
Mais uma vez fica patente que a implementação de uma conseqüência predeterminada,
no caso das regras, só deverá ser vislumbrada após o término do processo de sua interpretação
diante do caso concreto, momento em que restarão demonstrados quais as conseqüências
serão implementadas. Na precisa lição de Ávila,

“O ponto decisivo não é, portanto, o suposto caráter absoluto


das obrigações estatuídas pelas regras, mas o modo como as
razões que impõe a implementação das suas conseqüências
podem ser validamente ultrapassadas; nem a falta de
consideração a aspectos concretos e individuais pelas regras,
mas o modo como essa consideração deverá ser validamente
fundamentada”.55

Com relação ao critério do conflito normativo, embora atraia a adesão de importantes


teóricos do Direito e apresente arrazoado consistente, observa-se também a possibilidade de
aperfeiçoamento, uma vez que tal critério, tanto quanto os acima discutidos, não cumpre,
integralmente, a função a qual se propõe, qual seja, traçar, com precisão, a distinção entre
princípios e regras.
Por este critério, enquanto uma antinomia entre as regras seria percebido como um
verdadeiro conflito, cuja resolução apontaria para a retirada de uma delas do ordenamento
jurídico ou a elaboração de uma exceção, o conflito entre princípios tenderia a ser solucionado
a partir de um processo de ponderação no qual pesos distintos seriam atribuídos a cada um
deles, diante do caso concreto, de modo a se aplicar aquele que melhor se adequasse à
situação.
Em decorrência deste método de solução de conflitos consegue-se vislumbrar um
55
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5ª edição, revista e ampliada. São Paulo: Ed. Malheiros, 2006.

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outro traço distintivo entre as duas espécies de normas. O conflito envolvendo regras se daria
abstratamente, sendo o operador do Direito instado a refletir acerca do caráter de validade de
uma ou de outra regra, independentemente da insurgência de qualquer dado de realidade posto
a demandar uma decisão. Já, em se tratando de princípios, uma potencial colisão se daria
apenas diante de determinado caso concreto, exigindo a aplicação de um princípio em
detrimento do outro, sem, contudo, impor a invalidade ou a exclusão daquele não aplicado
durante o processo de ponderação.
Segundo Ávila, este raciocínio não se mostra suficientemente adequado uma vez que,
contrariamente, as regras também poderiam sofrer sopesamento de razões de acordo com o
caso concreto, sem que se imponha, necessariamente, a invalidade daquela não aplicada.
Segundo este autor o caráter abstrato que se impinge à solução de conflitos entre regras “trata-
se uma qualidade contigente, não necessária”56.
Mesmo naqueles casos em que estão presentes uma regra e sua exceção, se faz
necessário um verdadeiro processo de ponderação de arrazoados e verificar , a partir das
razões mais pertinentes e adequadas, a aplicação da hipótese prevista na regra ou a sua
exceção. Este processo pode ocorrer, inclusive, diante de exceções não previstas no
ordenamento jurídico, mas que, em virtude do problema apresentado pelo dado de realidade,
se faz necessário um processo de valoração de razões, no qual se embatem argumentos e
contra-argumentos, axiologicamente sustentados, de modo a se chegar a melhor solução. Em
outros termos, incide, de forma clara, um verdadeiro processo de ponderação.
Uma possível tentativa de desconstrução desta lógica poderia se basear no
entendimento de que o processo apresentado não trata de exatamente de ponderação e sim de
interpretação normativa. Todavia, há de se salientar que, muito embora sejam conceitos
distintos, interpretação e ponderação não se estremam a ponto de se negar que ambos
traduzem, em última instância, balanceamento de argumentos.
Ademais, é sempre importante se ter em perspectiva que, seja qual for a espécie de
norma, sua qualificação enquanto princípio ou regra depende da colaboração constitutiva do
intérprete, uma vez que cabe a este a concretização do ordenamento jurídico diante do caso
concreto.
A plena e eficaz realização de uma norma depende da ação do operador do Direito que
deve interpretar os dispositivos legais de modo a explicitar seus significados de acordo com
os fins e valores consignados no texto constitucional, fundamento da ordem jurídica do país.

56
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5ª edição, revista e ampliada. São Paulo: Ed. Malheiros, 2006.

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Trabalha-se, portanto, com a idéia central de que as espécies normativas não encerram
em si mesmas significados prontos e acabados que se oferecem à descrição do intérprete.
Este, diante da norma, reconstrói significados a partir do texto legal, que impõe limites e
condições à ação interpretativa empreendida, em uma operação que transcende a subsunção
entre conceitos prontos, absolutamente indissociada de seu processo de aplicação.
Ainda que determinada norma jurídica produza, de modo concreto, seus os efeitos a
partir do processo dinâmico de reconstrução do intérprete, não se deve afastar a idéia de que o
texto normativo se apresenta como ponto de partida para a produção de sentido seja da regra,
seja do princípio.
Não é por outra razão que a distinção entre as espécies normativas se mostram
importantes para a plena consecução do intento do operador do Direito frente a situações
fáticas que demandam respostas jurídicas.
De acordo com a Teoria dos Princípios esposada por Humberto Ávila, seriam duas as
principais funções atribuídas à distinção entre as espécies normativas. A primeira diria
respeito à possibilidade de antecipação das características da espécie proporcionando maior
facilidade ao intérprete em seu processo de reconstrução de sentido, tendo em vista a
existência de significados incorporados ao uso lingüístico corriqueiro de determinada
comunidade. A segunda se referiria à minimização do ônus de argumentação, reduzindo a
necessidade de fundamentação, sem eliminá-la, a partir da indicação da justificação obtida
pela antecipação distintiva anteriormente realizada57.
Para garantir a excelência da interpretação, buscando fluidez no processo, se faz
imprescindível distinguir o plano abstrato e preliminar de análise das normas, denominado
prima facie, do plano conclusivo de análise concreta, no qual todos os elementos e
significados do texto são levados em consideração para a produção de efeitos de sentido.
Trilhando o caminho orientado por tal raciocínio teórico é possível elaborar uma
proposta de distinção na qual as regras são entendidas como normas imediatamente
descritivas, que prescrevem e determinam comportamentos, estabelecendo obrigações,
permissões e proibições, nas quais encontramos correspondência entre a construção conceitual
e a construção conceitual da norma e da finalidade que lhe é intrínseca, portando a aspiração
de gerar uma solução específica para o conflito entre razões, contribuindo. Já os princípios
seriam normas imediatamente finalísticas que estabelecem um estado de coisas a ser
alcançado através da observância de comportamentos desejados, cuja interpretação e

57
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5ª edição, revista e ampliada. São Paulo: Ed. Malheiros, 2006.

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aplicação decorrem do cotejo entre o que foi posto como fim e os efeitos produzidos pela
conduta havida como necessária, sem gerar, com isso, uma solução específica ao caso
concreto. Os princípios, portanto, contribuem para a decisão enquanto normas primariamente
complementares e preliminarmente parciais, enquanto as regras se apresentam como normas
preliminarmente decisivas e abarcantes.
Na balizada lição de Ávila, temos o seguinte conceito de regras e princípios:

“As regras são normas imediatamente descritivas,


primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade
e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da
correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá
suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente
sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição
normativa e a construção conceitual dos fatos.
Os princípios são normas imediatamente finalísticas,
primariamente prospectivas e com pretensão de
complementariedade e de parcialidade, para cuja aplicação se
demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas
a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida
como necessária à sua promoção.”58

Não obstante a distinção proposta e a sua clara necessidade para a tarefa de


interpretação da norma pelo operador do Direito, é preciso admitir a coexistência das espécies
normativas a partir de um mesmo dispositivo legal, sendo possível que um ou mais
dispositivos funcionem como ponto de referência para a construção de regras ou princípios.
Dito em outros termos, dispositivos legais podem gerar mais de uma espécie normativa, sendo
factível a visualização, de forma simultânea e não excludente, de uma dimensão
imediatamente comportamental, relativa às regras e de uma dimensão finalística, relativa à
princípios.
Nessa perspectiva Daniel Sarmento, ao discutir a dinâmica dos princípios no
ordenamento jurídico os apresenta como um conceito revestido de um alto grau de
generalização e abstração, cujo conteúdo axiológico acentuado desvelam, nitidamente, os
valores jurídicos e políticos neles condensados e que se mostram passíveis de adquirir a
densidade das regras, através de um processo de concretização sucessiva, pelo qual aqueles
mais gerais geram outros princípios mais específicos, bem como subprincípios. De acordo
com o autor,
“Tal concretização não se dá através de um simples processo
58
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5ª edição, revista e ampliada. São Paulo: Ed. Malheiros, 2006.

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lógico-formal, no qual sejam os princípios mais específicos
deduzidos axiomaticamente dos mais gerais. O que ocorre, na
verdade, é um procedimento dialético, no qual cada subprincípio
em que se desdobra o princípio original adiciona a estes novas
dimensões e possibilidades, subsistindo o princípio original no
papel de vetor exegético dos cânones mais específicos. Há um
‘esclarecimento recíproco’: o princípio ilumina-se através de
suas concretizações, as quais, por sua vez, só assumem seu
sentido pleno ao lume do princípio que as engendrou.” 59

III.III – Classificação, eficácia e aplicação dos princípios constitucionais

Diversas são as classificações dos princípios constitucionais propostas por eminentes


juristas, embora vários trabalhem com conceitos bastante semelhantes e intercambiáveis.
Dentre as tipologias mais citadas sobressai aquela proposta por Canotilho60, na qual os
princípios podem ser classificados como princípios jurídicos fundamentais, que seriam
identificados com os Princípios Gerais do Direito; princípios políticos constitucionalmente
conformadores que condensariam “as opções políticas nucleares” e refetiriam a ideologia
inspiradora da Constituição; princípios constitucionais impositivos, aqueles que apontam para
a realização de fins e a execução de tarefas e, por fim, os princípios-garantia, nos quais estão
presentes maior densidade normativa, fazendo-os mais próximos às regras ao estabelecerem
garantias aos cidadãos.
No Brasil, na chamada fase pós-positivista, coube a José Roberto Barroso preceituar a
classificação tendente a maior adesão pela doutrina pátria. Para o autor, tomando a
Constituição brasileira de 1988 e guiado pelo entendimento acerca da importância e
abrangência dos princípios, propõe uma tripartição na qual figuram os princípios
fundamentais, compreendendo aqueles que contém as decisões estruturantes do Estado;
princípios constitucionais gerais que correspondem a desdobramentos menos abstratos dos
princípios fundamentais, à exemplo dos princípios-garantia propostos por Canotilho;
princípios setoriais ou especiais, se referindo aqueles princípios que presidem um específico
conjunto de normas com efeitos circunscritos a a um determinado tema ou Capítulo da
Constituição.
Para Rothenburg61 todas as classificações, desde que explicitados os seus critérios, são
passíveis de serem adotadas,uma vez que não apresentam conflitos técnicos ou teóricos,

59
SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, 2003
60 CANOTILHO Apud ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios Constitucionais. 2a. Tiragem. Porto Alegre : SAFE, 2003
61
ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios Constitucionais. 2a. Tiragem. Porto Alegre : SAFE, 2003

30
embora a aplicação prática seja discutível. Para ele, a única vantagem que tais agrupamentos
apresentam refere-se à possibilidade de aglutinação de princípios afins, revelando-os de forma
mais clara.
Sem dúvida, a efetividade dos princípios constitucionais independem da categoria em
que são descritos ou catalogados, especialmente quando se tem em perspectiva o que se
convencionou chamar, doutrinariamente, de neoconstitucionalismo, defendido por Luiz
Roberto Barroso como sendo um momento de ruptura paradigmática em que se observa, em
especial, o reconhecimento do caráter normativo da Constituição, associado ao
desenvolvimento de uma nova dogmática atinente à sua interpretação e a expansão da
jurisdição constitucional.
A partir do neoconstitucionalismo, derivado das transformações filosóficas já
mencionadas, pode-se afirmar que os princípios passaram a gozar do estatuto de normas
jurídicas aptas a gerar direitos subjetivos e a fundamentar decisões diante do caso concreto.
Estas decisões, sejam jurisdicionais, legislativas ou administrativas devem, imperativamente,
manter em seu horizonte os ditames dos princípios do ordenamento, em especial, os
princípios constitucionais, em virtude de sua supremacia hierárquica.
Segundo preleciona Luiz Roberto Barroso,

“A constitucionalização do Direito importa na irradiação dos


valores abrigados nos princípios e regras da Constituição por
todo o ordenamento jurídico, notadamente por via da jurisdição
constitucional, em seus diferentes níveis. Dela resulta a
aplicabilidade direta da Constituição a diversas situações, a
inconstitucionalidade das normas incompatíveis com a Carta
Constitucional e, sobretudo, a interpretação das normas
infraconstitucionais conforme a Constituição, circunstância que
irá conformar-lhes o sentido e o alcance. A
constitucionalização, o aumento da demanda por justiça por
parte da sociedade brasileira e a ascensão institucional do
Poder Judiciário provocaram, no Brasil, uma intensa
judicialização das relações políticas e sociais.”62

É cediço na doutrina contemporânea o relevante papel normativo apresentado pelos


princípios, sobretudo tendo-se em vista o caráter multifuncional que estes apresentam em sede
constitucional.
Os princípios constitucionais assumem a função de fundamento para a legitimação da

62
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navigandi,
Teresina, ano 9, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7547>. Acesso em: 10 agosto. 2006.

31
ordem jurídica do país em virtude de sua elevada carga axiológica e proximidade com o
conceito de justiça. Segundo Paulo Bonavides, citado por Sarmento, os princípios
corporificam “os valores supremos ao redor dos quais gravitam os direitos, as garantias e as
competências de uma sociedade constitucional.”63
Além disso, os princípios clara função supletiva, regulando, de forma imediata, o
comportamento de seus destinatários, nos casos em que inexistem normas constitucionais
específicas sobre determinadas matérias, da mesma forma que se presta a desempenhar papel
hermenêutico, configurando-se como autênticos fios-condutores para a adequada
compreensão e interpretação de normas constitucionais e infra-constitucionais, em razão dos
valores e interesses por eles abrigados.
Por certo, percebe-se que a atuação dos princípios se dá com maior força e clareza nos
casos denominados difíceis, ou seja, naqueles em que a decisão não encontra a regulação de
uma regra específica ou nos quais a decisão se mostra patentemente controvertida em razão de
interesses, regras ou princípios contra-postos, em franca colisão, exigindo do operador do
Direito a reconstrução de sentidos que possam ser compatibilizados com o ordenamento
jurídico como um todo.

III.IV - Conflito de princípios e sua resolução

Por ser o ordenamento jurídico pátrio um sistema aberto de regras e princípios, podem
ocorrer fenômenos de tensão entre eles. Em seu ápice encontra-se a Constituição Federal, o
produto resultante de um compromisso entre setores diferenciados e, por vezes, antagônicos
existentes na sociedade. O consenso fundamental responsável pelas normas positivadas como
constitucionais não possui o condão de neutralizá-los e nem poderia, tendo em vista o caráter
dinâmico, complexo e mutacional da sociedade na qual vivemos.
Desta forma, não raramente, conflitos entre normas ocorrem, sendo necessário que o
operador do Direito maneje técnicas adequadas para a solução do caso.
Tradicionalmente, no caso de conflito entre regras, costuma-se imaginar apenas duas
soluções possíveis, a saber, ou se introduz uma cláusula excepcionante ou, se isto não for
possível, opera-se a exclusão de uma delas com base em critérios estabelecidos por outras
normas existentes no próprio ordenamento, declarando uma das regras conflitantes inválida.
Todavia, como demonstrado acima, esses critérios de solução, embora mantenham vigência e

63
Bonavides, Paulo. apud SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, 2003

32
aplicação, já convivem com soluções que suportam hipóteses de manutenção da validade das
regras no universo normativo. Reafirma-se, aqui, a possibilidade da ocorrência de regras
conflitantes no plano fático, embora essas mesmas espécies normativas possam coexistir
harmonicamente em abstrato.
Quando o conflito envolve princípios, em geral, não há discussão sobre a dimensão da
validade desta espécie de norma, ou seja, não se trata de avaliar a pertinência de uma das
normas ao ordenamento, uma vez que sua validade já é pressuposta. Nesses casos, o método
utilizado para a sua solução, como já foi aventado em outras passagens do texto, é diferente
daquele usado para a solução de antinomias entre normas. Analisa-se qual princípio deverá
prevalecer na solução do caso concreto, sem se aventar ou exigir, a exclusão de nenhum deles,
que continuam, potencialmente, aptos a produzir efeitos.
Isso se deve em razão deles possuírem, além da dimensão da validade, a
dimensão da importância, do peso ou do valor. Assim, na análise da solução para o caso
concreto os princípios permitem o balanceamento de seu peso relativo de acordo com as
circunstâncias, podendo ser objeto de ponderação. Dito de outra forma, na hipótese de
conflito entre dois princípios ou entre os valores expressos por eles, deve-se levar em
consideração, para a solução do problema, o peso relativo que cada um apresenta, no plano
fático, de modo a possibilitar a eleição e a aplicação de um em detrimento do outro.
Porém, nem sempre a escolha de um determinado princípio ou grupo de princípios se
mostra tarefa simples, pois é sabido que não existe uma medida exata sobre sua maior ou
menor importância a ser atribuída a esta ou àquela norma. O que possibilita esta operação é
uma acurada análise das peculiaridades do caso concreto e de suas exigências e demandas, o
que sempre poderá ser objeto de controvérsias, uma vez que encontra-se em jogo interesses
contrapostos, passíveis de interpretações diversas tanto quanto possíveis.
Uma das principais funções do processo de ponderação colocado em curso no caso de
colisão de princípios, além, por certo, de oferecer uma resposta satisfatória à situação fática
que se impõe, é a manutenção da unidade constitucional, haja visto que a Constituição se
apresenta como um sistema orgânico, na qual cada elemento adquire sentido à luz dos demais.
A primeira tarefa que se apresenta ao operador do Direito diante de uma situação de
potencial colisão de princípios é a identificação dos cânones envolvidos de modo a se
verificar o que se convencionou denominar de topografia do conflito64. Esse momento busca
determinar tanto se a área de tutela do interesse perseguido pelo princípio se sobrepõe a outra

64 BIN, Roberto apud SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, 2003

33
norma quanto a sua extensão, além de verificar o espaço residual resta ao exercício de cada
direito posto em questão.
Cumprida esta etapa, sempre sob o lume das circunstâncias fáticas, o intérprete e
aplicador da norma deverá, no processo de cotejo entre os interesses conflitantes, verificar o
ponto de equilíbrio no qual a restrição imposta a um ou mais princípios concorrentes
importará no grau mínimo à sua convivência com aquele prevalente ao caso, pautando-se,
para tanto, em parâmetros racionais e controláveis cujo norte, via de regra, é ofertado pela
táboa de valores subjacentes à Constituição.
Para se levar a cabo a técnica de ponderação de princípios, de forma exitosa, faz-se
necessário a comparação do peso genérico atribuído a cada interesse colidente, tendo em vista
que este se mostra apenas indiciário do peso específico que cada um deles deverá assumir na
resolução do caso concreto, que somente poderá ser aquilatado em face do problema que
demanda a solução. Segundo nos ensina Daniel Sarmento,

“O nível de restrição de cada interesse será inversamente


proporcional ao peso específico que se emprestar, no caso, ao
princípio do qual ele se deduzir, e diretamente proporcional ao
peso que se atribuir ao princípio protetor do bem jurídico
concorrente. O grau de compreensão imposto a cada um dos
princípios em jogo na questão dependerá da intensidade com
que o mesmo esteja envolvido no caso concreto.”65

Nota-se que está em questão uma intrincada trama cuja guia encontra-se assente no
princípio da proporcionalidade em sua tríplice dimensão – adequação, necessidade e
proporcionalidade em sentido estrito. Assim, a ponderação de interesses deve ter como norte,
de forma imperativa, a demonstração de que a restrição imposta a cada um dos princípios
preserva, dentro dos limites colocados pelo caso, a sobrevivência do outro princípio, sendo
menos gravosa possível ao interesse contraposto e capaz de gerar um benefício reconhecido
como hábil a compensar o sacrifício exigido.
Porém, a exigência preponderante e inafastável a ser observada pelo processo de
ponderação de interesses é garantia de proteção e promoção do princípio da dignidade da
pessoa humana, valor precípuo e norteador dos demais princípios que fundamentam a ordem
constitucional em vigência e dá sentido ao que se propõe ser um legítimo Estado Democrático
de Direito.

65 SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, 2003

34
IV - Limites e possibilidades da descriminalização do aborto no Brasil

IV.I – Espaço público e discussão sobre o aborto

O debate sobre o aborto, não raramente, costuma provocar reações díspares,


mobilizando a população de forma emocional, impondo ocupação de posições antagônicas,
nem sempre portadoras de argumentos claros que sustentam, convincentemente, a adesão seja
a um ou a outro posicionamento.
De pronto chama atenção a questão posta como eixo da discussão e que demarca os
limites imaginários entre os grupos que se contrapõem quando o tema é a interrupção
voluntária da gravidez. Via de regra, parte-se da premissa binária de quem é a favor ou contra
o aborto, determinando-se, assim, o lugar a ser ocupado no espaço público destinado ao
debate.
De forma emblemática, de um lado se agrupam aqueles que se autodenominam “pró-
vida”, cujo nome ostenta, de forma clara e inequívoca, a pretensão de seus membros. Do
outro lado, encontra-se uma massa indistinta capaz de atrair inúmeras denominações, em
geral, pejorativas, que dão idéia de um movimento orquestrado à serviço da morte, uma vez
que, supostamente, advogam pela aniquilação do bem sagrado que é a vida humana. Atribui-
se a estes a alcunha de “abortistas”, em detrimento das designações que lhe são próprias, a
saber, “Pró-escolha”, “Autodeterminação”, “Pelo direito de decidir”, dentre outros.
Colocado nesses termos, o debate revela um ardil ao propor a discussão a partir da
polarização em torno do direito à vida como se a defesa deste direito fosse prerrogativa de
apenas um dos pólos ativos da questão, além de minimizar ou mesmo, excluir, a incidência de
qualquer outro elemento capaz de intervir na compreensão do tema, ampliando-a.
A redução de seu escopo transforma a questão do aborto em um problema simples,
sugerindo respostas esquemáticas de base binária, cuja dimensão de racionalidade cede
espaço à transcendência, obstacularizando a construção de espaços múltiplos de discussão.
Constitui elemento essencial da produção discursiva o compartilhamento de um
patamar mínimo de compreensão entre os falantes de modo a propiciar o diálogo, bem como a
disponibilidade de cada um deles para efetivar a comunicação, ou seja, a relação dialógica
depende, fundamentalmente, da capacidade apresentada pelos interlocutores de escutar,
apreender, criticar e produzir novos argumentos a partir do discurso alheio.
35
Corrobora este entendimento a precisa lição do professor Luiz Moreira ao dissertar
sobre a Teoria do Agir Comunicativo desenvolvida por Habermas:
“o agir comunicativo vem a ser a disponibilidade que
existe entre falantes e ouvintes a estabelecer um entendimento
que surge de um consenso sobre algo no mundo. Nossas ações
situan-se em um mundo da vida compartilhado
intersubjetivamente que, permeado por um pano de fundo
consensual, possibilita-nos um entendimento prévio”66

Percebe-se que o movimento de contraposição da defesa da vida, como bem absoluto e


intocável, ao argumento contrário, de forma pura e simples, cumpre a função de limitar o
processo discurso, interrompendo a produção de novos e possíveis argumentos. Primeiro,
atribui ao outro um posicionamento discursivo distinto e estranho àquele efetivamente
produzido, esvaziando-o de sentido próprio e original.
Nota-se que ao deslocar a discussão para o plano binário, insistindo na divisão do
espaço público entre os que são contra e os que são a favor do aborto, estrutura-se o debate
sob uma base carente de lastro na realidade.
Em primeiro lugar, faz-se crer que aqueles contrários à interrupção voluntária da
gravidez são partícipes de uma verdade única, resguardada sob o manto de uma
inquebrantável e completa idéia sobre a vida, tendente ao sagrado e, por conseguinte,
inquestionável.
Em segundo lugar, impossibilita a compreensão do outro que lhe é contrário, na
medida em que o discurso apresentado por este é processado e decodificado em signos
diversos que não encontram mais similitude possível com o que lhe deu origem. Emblemático
é a sistemática e insistente desconsideração acerca do traço de autonomia e de
autodeterminação reivindicado pelo movimento “pró-escolha” que se reduz, via de regra, a
defensores do aborto, “arautos da morte de inocentes”.
Por fim, em consequência, transforma o oponente em um bloco monolítico e uniforme
cuja cartilha profana não merece atenção por ser portadora de mistificações ou
desqualificações intoleráveis com relação ao projeto divino também conhecido como ser
humano. Uma vez em curso, tal operação torna inócua toda e qualquer argumentação tendente
a se contrapor ao ideário “pró-vida”, já que este se metamorfoseia na tradução literal dos
textos considerados sagrados.
Ao se analisar os discursos produzidos por membros de grupos de discussão virtuais sobre o
tema aborto se consegue inúmeros exemplos que corroboram o exposto acima. O sítio de

66 Moreira, Luiz. Fundamentação do Direito em Habermas. 2a. edição revista e atualizada. Ed. Mandamentos: Belo Horizonte, 2002.

36
relacionamento Orkut, comunidade virtual afiliada ao Google, com o objetivo de ajudar seus
membros a criar novas amizades e manter relacionamentos, mantém diversas páginas que se
dedicam à esta discussão, nas quais se pode verificar a prevalência de termos que denotam,
com clareza, a demonização do outro e a desqualificação dos argumentos apresentados por
eles como estratégia de reafirmação de determinado ideário.
O que chama a atenção é inexistência de interação comunicativa entre os interlocutores
das diversas comunidades que se dedicam ao assunto, sobretudo frente a diversidade de
pensamento apresentada, caracterizando o referido espaço virtual como arena arquitetada para
o império do monólogo.
De acordo com o que nos ensina Marcelo Galuppo, apoiado na teoria habermasiana,
cabe à linguagem a função de produzir a integração social, uma vez que se perfaz como o
único meio idôneo com capacidade para coordenar legitimamente, os planos individuais de
ação. Para tanto, os seres falantes se apoiam em três tipos pretensões de validade, a saber,
pretensão de verdade, de veracidade e de correção normativa. Segundo Galuppo,

“A pretensão de verdade corresponde ao mundo objetivo e


refere-se à adequação do enunciado linguístico para a descrição
da realidade fática. A pretensão de veracidade corresponde ao
mundo subjetivo e refere-se à adequação entre aquilo que
expressamos e aquilo que sentimos (sendo chamada também, por
isso mesmo, de sinceridade). A pretensão de correção normativa
corresponde ao mundo intersubjetivo e refere-se à
correspondência entre as normas elaboradas para a condução
social (e individual) e a solução dos conflitos práticos da própria
realidade social.”67

A relação estabelecida entre os três tipos de pretensões de validade não se mostra


unívoca, porém apresentam algumas características comuns e, segundo Habermas existe uma
certa analogia entre elas. Tanto a pretensão de correção normativa quanto a de verdade
possuem lastro, cada uma de seu modo, no mundo intersubjetivo e devem ser compreendidas
por meio de uma estrutura trinária composta pelo sujeito que comunica, o objeto desta
comunicação e o outro a quem é endereçada o discurso produzido, daí a importância da ação
comunicativa enquanto uma operação que pavimenta o projeto de integração social. A
pretensão de verdade implica, via de regra, na correspondência entre o enunciado descritivo e
os fatos, sendo que no caso de não ocorrer a aceitação pelo outro, se faz imperativo a
alteração ou produção uma nova proposição tendo em vista o pleno fluir da cadeia

67 GALUPPO, Marcelo C. Igualdade e Diferença – Estado Democrático de Direito a partir do pensamento de Habermas. Ed. Mandamentos: Belo Horizonte, 2002

37
discursiva68.
No entanto, não raramente, esta estrutura básica do processo comunicativo não se
mostra suficiente como meio garantidor do processo de integração social, surgindo o dissenso
ou a necessidade de se legitimar a pretensão levantada, que se opera através da apresentação
do melhor argumento, racionalmente constituído e desta forma aceito por seus destinatários.
Como já foi apontado, o sucesso deste processo depende, fundamentalmente, de
acordos intersubjetivos entre interlocutores dispostos a encetar uma efetiva relação dialógica,
na qual verdades são, a princípio, provisórias, sempre dependentes do melhor argumento a ser
potencialmente construído a partir do próximo ato de fala.
Todavia, ao se operar com uma verdade totalizante e absoluta, rompe-se, de forma
radical, com a possibilidade de construção de um espaço privilegiado de discussão, apto a
produzir novos consensos ou posicionamentos, o que se mostra incompatível com um Estado
Democrático de Direito, esteio de uma sociedade complexa e plural como a brasileira.
Ronald Dworkin clarifica essa questão ao apresentar uma distinção bastante didática
com relação às duas possibilidades de decodificar o eixo central da idéia que sustenta a
argumentação pró-vida, objetando quanto a viabilidade de descriminalização do aborto.69
Para este autor, a primeira objeção é denominada de derivativa por implicar na
pressuposição de direitos e interesses dos quais o feto seria titular, compartilhando-os com
todos os demais seres humanos. Para esta perspectiva, o feto seria portador de direitos e
interesses desde a concepção, estando aí incluído o direito de permanecer vivo. O aborto
materializaria a violação do direito à vida sendo errado e, portanto, punível por si.
A segunda objeção, denominada por Dworkin de independente, aponta para o valor
intrínseco e inato da vida humana e considera o aborto errado, por princípio, em razão deste
ato desconsiderar e insultar um valor sagrado que não depende de nenhum direito ou interesse
particular. A vida humana é uma dádiva divina sobre a qual homens e mulheres não possuem
titularidade imediata, já que pertence a Deus, que a ofertou e só Ele pode retirar.
Observa-se que a chamada objeção independente, proposta por Dworkin, encerra em si
mesma uma verdade absoluta na medida em que sacraliza o valor da vida humana,
endereçando ao Estado o dever de tutelá-la porque assim dispõe as leis divinas. Dessa forma,
toda e qualquer argumentação contrária à objeção posta se mostra incapaz de produzir efeitos
de sentido, já que contra a Deus os seres humanos não possuem força e, muito menos,

68 GALUPPO, Marcelo C. Igualdade e Diferença – Estado Democrático de Direito a partir do pensamento de Habermas. Ed. Mandamentos: Belo Horizonte, 2002

69
DWORKIN, Ronald. Domínio da vida – Aborto, eutanásia e liberdades individuais. Ed. Martins Fontes: São Paulo, 2003.

38
legitimidade para contestação.
Não obstante a rejeição à idéia da interrupção voluntária da gravidez ser comum a
ambas objeções apresentadas, podendo, inclusive, compartilhar do mesmo grau de repulsa e
desejo de repressão legal àquelas pessoas que, por qualquer razão, optem pelo aborto, é
patente a diferença entre elas, sobretudo, na forma de enfrentamento racional.
Enquanto, como já visto, frente a objeção independente não cabe recurso
argumentativo, diante da objeção derivativa abre-se um leque de possibilidades, ensejando,
inclusive, a construção de solução jurídica racional para a controvérsia70, idônea a provocar a
adesão de todos sem que haja presença de insultos e humilhações a nenhum grupo social.

IV.II – Princípios e Garantias Constitucionais e a questão do aborto

Tomando como base a premissa de que o debate sobre o aborto deve, prioritariamente,
se desenrolar em um espaço público entre sujeitos titulares de direitos iguais, marcado por
uma racionalidade compartilhada que exclui aportes à argumentos transcendentais, faz-se
necessário a explicitação dos princípios atinentes à questão, visando construir o que Dworkin
aponta como sendo uma solução jurídica racional para a controvérsia.

IV.II.I – Direito à Vida

A principal controvérsia que se apresenta quando a questão é a interrupção voluntária


da gravidez aponta para o direito à vida, garantia positivada pelo texto constitucional a partir
do Título II que dispõe sobre os Direitos e Garantias Fundamentais, Capítulo I – Dos Direitos
e Deveres Individuais e Coletivos, in verbis:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer


natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...)

Baseado no dispositivo constitucional acima reproduzido, juristas, teóricos e militantes


do movimento pró-vida argumentam contrariamente à toda e qualquer possibilidade de
alteração da legislação tendente à descriminalizar a prática do aborto no país. A principal tese
defendida diz respeito à fundamentalidade do direito à vida, considerado valor supremo pelo
constituinte originário de 1988 e positivado como cláusula pétrea.

70
DWORKIN, Ronald. Domínio da vida – Aborto, eutanásia e liberdades individuais. Ed. Martins Fontes: São Paulo, 2003.

39
No entanto, cumpre ressaltar que na história do constitucionalismo brasileiro este
direito somente alcança reconhecimento no texto constitucional de 1946, pois, até então, a
vida humana não ostentava destaque nas Constituições de 1824 a 193771, demonstrando o
quão pode ser relativo e historicamente determinado a valoração de direitos.
Sem embargo do correto entendimento apresentado com relação ao valor atribuído à
vida, sobretudo em razão de ser tal direito substrato para a fruição de todos os demais direitos
garantidos pela legislação pátria, não parece ser pacífico a sua utilização para fins do presente
debate.
Para José Afonso da Silva os constituintes de 1988, tendo em vista o caráter
controvertido do tema aborto e as tensões que envolveram o debate durante a elaboração do
texto, optaram por não densificar uma regra capaz de dirimir a questão em grau hierárquico
superior.72
Segundo este autor, três tendências guiaram o debate no seio da Assembléia
Constituinte. A primeira impunha a garantia do direito a vida desde a concepção, o que
implicava na absoluta impossibilidade de descriminalização do aborto. Em sentido inverso, a
outra vertente propunha o reconhecimento do estatuto de sujeito de direito a partir do
nascimento com vida, cabendo à mulher a responsabilidade da decisão. A terceira entendia
que não cabia à Constituição tomar partido sobre a questão.
Vê-se que, ao final, nenhuma das três posições prevaleceu de forma pura, embora não
se possa depreender que o texto constitucional tenha sido de todo omisso sobre o tema, uma
vez que deixou margem para interpretações diversas. Em termos práticos, tudo indica que os
constituintes deixaram para a legislação ordinária, em especial, a penal, enfrentar o tema,
sobretudo após a definição acerca do momento inicial da vida humana.
Muito de discute sobre o momento exato ao qual se poderia atribuir o termo inicial da
vida humana, uma vez que a resposta a esta interrogação apresentaria o condão de esclarecer a
partir de que momento este valor, considerado supremo, passaria a ser protegido pelo Direito.
Como este tema é afeito a diversas áreas de conhecimento e apresenta alto grau de
complexidade em razão das interfaces construídas pelos variados ramos da Ciência que se
debruçam sobre ele, não existe um consenso firmado com relação ao que se costuma
denominar unidade primeira da vida humana, sendo possível encontrar estudiosos que
defendem o início da vida a partir da fertilização do óvulo pelo espermatozóide, considerando
a concepção como marco inicial da experiência humana, bem como aqueles que demarcam

71
SOUZA Silva, José Carlos. Direito à Vida. Ed. Safe: Porto Alegre: 2006
72
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional. 22a edição. Malheiros Editores: São Paulo, 2003

40
momentos bem diversos, ainda que também utilizando-se de elementos biomédicos, para
propor quando a vida humana pode ser assim definida.
No campo do Direito a questão também é controvertida, não obstante os esforços
empreendidos para se encontrar uma resposta que possa vir satisfazer as pretensões jurídicas.
Muitos autores, baseados nos conhecimentos biomédicos, identificam o início da vida a partir
da concepção, alegando ser o embrião resultante do encontro de células humanas vivas, o que
daria a ele a mesma dimensão desde sempre.73
Outra vertente de pensamento, ainda apoiada em critérios eminentemente biológicos,
tende a atribuir o início da vida um pouco mais tardiamente, apoiando-se na constatação de
que a viabilidade embrionária depende da estreita interação entre mãe e embrião para que a
vida deste possa se estabelecer, o que ocorre após a implantação do embrião intra-útero74.
Correntes mais contemporâneas apresentam proposta distinta para determinar o início
da vida humana, chegando algumas, no campo do bioética, a defender a tese de que a vida
começa a partir da aceitação da mulher que deseja e decide ser mãe, estabelecendo, assim, um
diálogo mais próximo com as ciências psicossociais, em particular com a psicanálise75.
Para outros juristas, em virtude da autonomia científica ostentada pelo Direito, os
critérios para determinação do início da vida deveria ser forjada a partir de instrumental mais
próprio a esta ciência, mesmo que não se prescinda de conhecimento transdisciplinares. Nesse
sentido, utiliza-se como critério para definição do termo inicial da vida, simetricamente, os
mesmo indicadores legais que apontam para o seu término, a saber, o início e cessação dos
estímulos cerebrais autônomos. Esta, ao que parece, é a posição que vem tomando corpo e
atraindo maior adesão, talvez em razão da maior densidade do argumento racional que a
sustenta se comparado aos demais que muito se aproximam às posições transcendentais e
sagradas, como pode se depreender do posicionamento defendido por Souza Silva:
“Os filósofos, cientistas e religiosos têm suas convicções
sobre a vida e nos apresentam fórmulas, técnicas, métodos e
crenças para explicá-las. Ainda assim ela se impõe e exige mais
e mais estudos, exames, observações constantes, porque ela é
criação de Deus.”76

Todavia, esta questão permanece em aberto, uma vez que, tecnicamente, o Direito não
avalia o início da vida, apenas reconhecendo no embrião a pontencialidade para tornar-se
humano e, portanto, tutelando os direitos do nascituro, mesmo que reconheça o início da

73
SOUZA Silva, José Carlos. Direito à Vida. Ed. Safe: Porto Alegre: 2006
74
MOISÉS, Elaine Christine Dantas et al. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. Ribeirão Preto. São Paulo: FUNPEC Editora, 2005.
75 KOTTOW, Miguel Apud MOISÉS, Elaine Christine Dantas et al. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. Ribeirão Preto. São Paulo: FUNPEC Editora, 2005.
76
SOUZA Silva, José Carlos. Direito à Vida. Ed. Safe: Porto Alegre: 2006

41
personalidade civil após o nascimento com vida, conforme dispõe o Código Civil Brasileiro:

Art. 2o – A personalidade civil da pessoa começa com o


nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção,
os direitos do nascituro.

É cediço que a lei não comporta palavras inúteis e a partir desta constatação somos
levados a questionar a interpretação jurídica deste dispositivo legal que insiste em expandir a
significação do termo vida para um momento anterior ao nascimento. Fica evidente que o
legislador ordinário reservou esta terminologia para a pessoa humana, entendida como sendo
o sujeito nascido, identificando o nascituro com o que de fato ele apresenta ser – uma
potencialidade.
Na esfera penal podemos perceber fenômeno similar. Não obstante a inclusão do
aborto no capítulo de crimes contra a vida, não resta nenhuma dúvida com relação ao estatuto
deste tipo penal que é claramente diferido da espécie homicídio. Neste o bem protegido é a
pessoa humana, enquanto naquele tutela-se o embrião ou o feto, denotando a diferença
ontológica apontada pelo legislador. Mais adiante será tratado com mais vagar sobre esta
questão.
Alheios a esta questão, constitucionalistas de diversas cepas encerram a discussão
inadmitindo, peremptoriamente, a possibilidade de interrupção voluntária da gravidez tendo
em perspectiva o caráter absoluto e prevalente do direito à vida consignado pela Constituição.
José Afonso da Silva, embora considere que a Constituição não tenha se posicionado
de forma clara e precisa sobre o tema, admite que o texto final tende para a proibição do
aborto, explicitando que, pessoalmente, vislumbra, no feto, a existência de vida humana.77
José Luiz Quadros de Magalhães, de forma mais categórica, garante que uma ordem
jurídica baseada nos Direitos Humanos se mostra incompatível com a possibilidade legal de
práticas permissivas aptas a retirar a vida de outrem. Nesse sentido afirma:
“O direito à vida, pela sua dimensão, deve ser um direito que,
em nenhuma hipótese, possa ser retirado. Nesse aspecto não se
pode admitir o aborto, pois tem a mulher direito a seu corpo,
mas não à vida que ainda depende de seu corpo. Não se pode
legalizar o aborto com a finalidade de se atenuarem problemas
sociais.”78

Seguindo a mesma direção, Alexandre de Moraes afirma que a Constituição ao prever

77 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional. 22a edição. Malheiros Editores: São Paulo, 2003
78 MAGALHAẽS. José Luiz Quadros. Direito Constitucional. Tomo I. 2a. Edição. Editora Mandamentos: Belo Horizonte, 2002

42
a proteção a vida como um direito fundamental abarca tanto a vida extra-uterina como a intra-
uterina, pois esta qualifica-se com verdadeira expectativa de vida exterior que, sem a devida
proteção, não seria ampla e plena, tornando toda e qualquer medida de tutela posterior inócua.
De acordo com o pensamento deste autor:

“A Constituição, é importante ressaltar, protege a vida de


forma geral, inclusive a uterina, pois a gestação gera um
tertium com existência distinta da mãe, apesar de alojado em
seu ventre. Esse tertium possui vida humana que iniciou-se
com a gestação, no curso da qual as sucessivas transformações
e evoluções biológicas vão se configurando a forma final do
ser humano.”79

Como se pode perceber, os autores citados interpretam o texto da Carta Política do


país restritivamente com relação ao aborto, em razão da supremacia atribuída ao direito à vida
e de seu caráter absoluto diante dos demais valores abrigados pela Constituição Federal.
O respeito e admiração que devotamos aos insígnes professores não nos impede de
apontar o que reputamos ser incongruências em suas formulações teóricas atinentes ao aborto.
Em primeiro lugar, nos chama atenção a forma como estes teóricos utilizam para tratar
o assunto, bem como o espaço que a ele é dedicado no seio de suas obras. Comparativamente
a outras questões que também estabelecem estreita interface com o direito à vida e são, da
mesma forma, consideradas controvertidas por esses autores, como é o caso da eutanásia e a
pena de morte, o número de páginas (em alguns casos, o número de parágrafos) dedicadas ao
aborto é ínfima, resolvendo-se a discussão a partir da apresentação de argumentos de
autoridade, de maneira simples objetiva e concisa, como se o tema não provocasse nenhuma
polêmica, estivesse pacificado sob o manto de uma verdade absoluta e encontrasse a devida
solução a partir da já promulgada legislação penal pertinente.
De forma curiosa os autores citados prevêem a possibilidade de convivência de suas
convicções teóricas que inadmitem a interrupção voluntária da gravidez por entenderem a
prevalência do direito à vida com as exceções legais de abortamento dispostas no Código
Penal.
Como já nos referimos acima, é possível a harmonização de normas aparentemente
incompatíveis no seio de um mesmo ordenamento jurídico, especialmente diante de hipóteses
de exceção normativa expressamente previstas. Todavia, não é esse o caso problematizado
aqui.

79
MORAES, Alexandre. Direitos Humanos Fundamentais – Teoria Geral. 6a. Edição. Editora Atlas: São Paulo, 2005

43
Se levarmos em consideração que os autores citados apresentam acentuada inclinação
à reflexão acerca da Teoria Constitucional a partir de uma perspectiva principiológica, causa
surpresa a opção pela legislação penal como resposta satisfatória à uma questão complexa
como é o aborto.
Se atentarmos para os fundamentos que sustentam as hipóteses permissivas de aborto
previstas pelo art. 128 do Código penal nos deparamos com um conflito de difícil manejo, já
que em ambos os casos a vida do nascituro é preterida seja em virtude da valoração da vida da
gestante (art. 128, I), seja da integridade moral e psicológica da mulher que sofreu uma
violência sexual (art. 128, II).
Ao se trabalhar com a lógica do valor absoluto e sagrado da vida humana, torna-se
delicado propor a mensuração do valor relativo atribuído a vida do feto, cotejá-lo com o valor
da vida da gestante e se decidir por esta última.
Nos casos do aborto terapêutico pode-se alegar a incidência de estado de necessidade,
resolvendo-se o conflito sem que haja, aparentemente, desdobramentos éticos de maior
gravidade. Opta-se por salvar a gestante operando com o argumento de se tratar de uma vida
já estabelecida, capaz, inclusive, de gerar outros seres, enquanto o feto porta a potencialidade
de vir a se tornar um ser humano em sua forma plena.
Não seria outro o entendimento com relação ao denominado aborto sentimental,
entretanto, nesse caso, ainda estaria presente um agravante, já que não se configura o conflito
entre duas vidas e sim entre a existência do feto, fruto de um ato de violência sexual e a
integridade moral e psicológica da mulher que, submetida à agressão, não deseja a gestação.
Se na primeira hipótese permissiva temos dois valores que, hipoteticamente, se
equivalem, na segunda trata-se do sacrifício de uma vida em nome de um bem que, a rigor,
encontra-se em uma escala hierarquicamente inferior, ainda que relevante, assim disposto seja
a partir de avaliação jurídica, seja de avaliação filosófica, ética ou moral.
No entanto, tendo em vista a sacralidade atribuída à vida humana, fundada na crença
que esta vida é uma dádiva divina, cuja titularidade pertence a Deus, não encontramos
sustentação moral para justificar o sacrifício do bem tutelado que é a vida do feto sem que se
rompa com o dogma acima referido.
Neste sentido, nenhuma das duas hipóteses previstas pelo Código Penal encontrariam
a necessária fundamentação moral para serem acatadas como possibilidades legítimas, a não
ser, por certo, o fato de terem sido positivadas como normas pelo Direito.
Ao aborto terapêutico, mesmo ancorado por instituto penal reconhecido, poderia-se
endereçar a questão da autoridade para a tomada de decisão sobre qual deverá ser a vida
44
prevalente, uma vez que, ao menos a princípio, não há de se pensar em uma escala de
mensuração do grau de importância a ser atribuída a cada uma delas.
Corroborando a dúvida acima colocada encontra-se a definição de vida humana obtida
durante o Primeiro Simpósio Internacional sobre o Aborto, realizado nos Estados Unidos da
América, “as alterações que ocorrem entre a implantação [do óvulo fecundado], um embrião
de seis semanas, um feto de seis meses, um bebê de uma semana ou um adulto, são meros
estados de desenvolvimento e maturação”.80
No mesmo sentido, parece-nos relevante o entendimento do Prêmio Nobel de
Medicina e Fisiologia que declarou,

“Entre o ovo e o recém-nascido que dele pode surgir, não


há um momento privilegiado nem etapas decisivas conferindo de
repente a dignidade de pessoa humana. Há uma evolução
progressiva, uma série de saltos, de reações e sínteses, através
das quais se forma pouco a pouco o filhote do homem. A pessoa
humana não surge em um momento preciso.”81

Já no caso do aborto sentimental a questão se mostra ainda mais complexa, pois o


embrião surge de forma oblíqua como produto de uma ato de violência cujo dolo consiste na
vontade de obter conjução carnal, atingindo, por via de consequência, a liberdade sexual da
mulher. Como pode ser percebido não se objetiva a prenhez, passando o embrião a ser um
terceiro em uma relação espúria.
Seguindo esta linha de raciocínio, Spolidoro afirma que se para o legislador penal
ordinário o embrião, de fato, for considerado uma pessoa e concorre em igualdade com o
mesmo conceito de vida com aqueles que nasceram com vida,

“sua remoção do ventre materno, em razão de um


sentimento, ato de mera subjetividade humana, sem que ele seja
sujeito ativo do delito, mas consequência involuntária até mesmo
de seu conceito delitual (já que a intenção primária no estupro é
a conjução carnal, obstruindo a liberdade sexual da mulher),
assim como se faz para com a ofendida, ao produto da
concepção deveriam ser conferidos todos os direitos e garantias
fundamentais, como prescrito pela Constituição.”82

Pelo exposto acima, salvo melhor juízo, a descriminalização do aborto não encontra

80
MOISÉS, Elaine Christine Dantas et al. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. Ribeirão Preto. São Paulo: FUNPEC Editora, 2005.
81 JACOB, François apud Moisés, Elaine Christine Dantas et al. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. Ribeirão Preto. São Paulo: FUNPEC Editora, 2005
.
82
SPOLIDORO, Luiz Claudio Amerise. O aborto e sua antijuridicidade. São Paulo, Lejus:1997

45
óbice em sede constitucional, em particular, tendo como base a violação dos Direitos
Humanos, como sugere José Luiz Quadros de Magalhães83 ou o atentado a direitos e garantias
positivados na Constituição, de acordo com José Afonso da Silva84 e Alexandre de Moraes85
ao se referirem ao direito à vida. Portanto, caso haja algum impedimento à proposta de
alteração do Código Penal para a matéria, este deverá ser buscado e fundamentado em outros
princípios ou dispositivos legais.
Vale ressaltar, porém que, inobstante este entendimento e afrontando dados de
realidade, opera-se, ainda no Brasil, com o mito da proteção jurídica da vida desde a
concepção. Mesmo sendo cediço que a Constituição vigente não recepcionou tal doutrina,
posto que deixou de fazê-lo expressamente, como foi referido acima, vem tomando forma o
discurso que assevera esta proteção a partir da adesão do Brasil ao Pacto de São José da Costa
Rica, já que os seus termos teriam sido recepcionados e elevados à condição análoga de
emenda constitucional.
Afirma-se que, como o Estado Brasileiro é signatário da Convenção Americana de
Direitos Humanos, a hipótese de descriminalização do aborto encontraria obstáculo legal
tendo em vista o artigo 4o do referido Pacto que estabelece que “toda pessoa tem direito que
se repeite a sua vida. Este direito estará protegido pela lei e, em geral, a partir do momento da
concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.” (grifos do autor)
A insistência para a adesão a este entendimento esbarra em barreiras que consideramos
intransponíveis.
A primeira diz respeito à interpretação do artigo em análise. O texto da Convenção,
ainda que expresse a proteção à vida desde o momento da concepção, não opera com um
conceito absoluto, bastando, para tanto, atentar para a construção do dispositivo para perceber
a utilização da expressão “em geral”, o que denota, nas línguas de radical latino, a
possibilidade de aplicação de regras de exceção. Desta feita, tanto as hipóteses de
abortamento legal, já previstas no ordenamento pátrio, como outras que poderão ser criadas,
estão sujeitas à regra excepcional, bastando, para isto, a produção de uma consistente
fundamentação, como requer toda e qualquer decisão ou elaboração legislativa.86
A segunda barreira, ainda mais sólida e de inquestionável força normativa, aponta para
a decisão da Comissão Inter-americana de Direitos Humanos (CIDH), órgão competente para
interpretar o Pacto de São José que, através da Resolução 23/81 de 06 de março de 1981,

83
MAGALHÃES. José Luiz Quadros. Direito Constitucional. Tomo I. 2a. Edição. Editora Mandamentos: Belo Horizonte, 2002
84
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional. 22a edição. Malheiros Editores: São Paulo, 2003
85
MORAES, Alexandre. Direitos Humanos Fundamentais – Teoria Geral. 6a. Edição. Editora Atlas: São Paulo, 2005
86 FRANCO, Alberto Silva. Algumas questões sobre o aborto. Revista do Instituto de Ciências Penais (ICP), V.I, Belo Horizonte, 2006

46
deliberou não ser o aborto uma prática violadora do artigo 4o do referido Pacto, baseado no
processo histórico de construção da Convenção Americana de Direitos humanos. Ficou
evidenciado que a proteção à vida desde a concepção não foi assegurada como um a regra
absoluta, justamente para não conflitar com as legislações nacionais que garantiam o direito
ao aborto, fosse este amplo ou parcial, como é o caso brasileiro.87
Desta forma, fica claro que inexiste, no Brasil, obstáculos à descriminalização do
aborto fundados nos argumentos acima apresentados, o que torna o país hábil a refletir sobre
esta questão e se tornar adimplente frente aos seus compromissos assumidos nas diversas
Conferências da Organização das Nações Unidas (Cairo, 1994 e Beijing, 1995), garantindo,
de forma efetiva a proteção integral dos direitos humanos das mulheres.

IV.II.II – Dignidade da Pessoa Humana

Embora diversos autores atribuam ao direito à vida a prerrogativa de ocupar lugar


central no ordenamento jurídico por entenderem o ser humano como razão de ser do Estado e
do Direito e que sem a garantia de vida nenhum outro direito subsistiria, outros insignes
doutrinadores, exatamente partindo dessa mesma razão, reservam à dignidade da pessoa
humana tal privilégio, não em razão de uma relação de precedência ou causalidade, mas,
sobretudo, a partir da concepção deste princípio como sendo qualificador da vida.
O conceito de dignidade da pessoa humana é de difícil apreensão pelas palavras, o que
se deve, em grande parte, à sua fluidez, abrangência e, em grande medida a sua natureza
polissêmica. Nesse sentido, Rothemburg oferece uma importante contribuição ao se referir à
importância dos princípios.

“... sendo os princípios manifestação primeira dos valores


constitucionais, é certo que estão carregados de sentimentos e
emoções. Ignorá-los seria desconsiderar a importância simbólica da
constituição e seu significado histórico enquanto projeção de
expectativas da comunidade. Vai daí que é impossível uma
compreensão exclusivamente intelectual dos princípios: eles também
são sentidos (experimentados no plano dos afetos)”.88

Porém, no plano do Direito, se faz necessário buscar uma fundamentação para além do
campo sentimental e tal tarefa se mostra efetiva ancorada na máxima kantiana, segundo a qual
o homem deve sempre ser tratado como um fim em si mesmo e nunca como um meio. De

87 LOREA, Roberto Arriada. Aborto e Direitos Humanos na América Latina – Desconstruindo o mito da proteção da vida desde a concepção. Disponível em
www.clam.org.br. Acesso 15 de abril de 2007
88 ROTHEMBURG, Walter Claudius. Princípios Constitucionais. Porto Alegre: SAFE, 1999

47
certo modo, foi a partir das proposições de Kant que se reafirma a concepção da dignidade da
pessoa humana articulada com a autonomia ética do sujeito, sendo esta considerada
fundamento daquela.
O desenho deste entendimento acerca da dignidade da pessoa humana já vinha se
tornando visível através do pensamento de Samuel Pufendorf, para quem a dignidade da
pessoa humana era compreendida como sendo a liberdade do ser humano de optar de acordo
com a sua razão e agir conforme o seu entendimento e sua opção, característica que deveria
ser, mesmo sob a égide do poder absoluto, observada e respeitada.89
No decorrer da história, vários contrapontos teóricos e filosóficos foram apresentados
a esta formulação sobre dignidade da pessoa humana, especialmente aqueles que atacavam a
idéia ontológica vinculada ao conceito e que obtiveram significativa adesão, como foi o caso
de Hegel. Todavia, Kant permanece sendo o mais aclamado, mesmo não sendo o único,
expoente da concepção filosófica e secularizada de dignidade até a contemporaneidade,
conforme pode ser depreendida da lição do publicista e Magistrado germânico, Dieter Grimm
ao sustentar que a dignidade, enquanto condição de valor intrínseco do ser humano, gera para
o sujeito o direito de decidir de forma autônoma sobre os seus projetos existenciais e
felicidade.90
Nesse diapasão, fica evidenciado que a concepção de dignidade aqui trabalhada aponta
para a vedação da instrumentalização humana, o que implica na proibição reiterada da
utilização do outro apenas como meio para se alcançar determinada finalidade. Assim sendo,
classifica-se como uma autêntica violação da dignidade a conduta ou a intenção de coisificar
o outro, caracterizando sua completa e egoística disponibilização.
Ao longo do tempo permanece, sem que seja alvo de significativas críticas, a
constatação de que uma ordem constitucional que tem na dignidade da pessoa humana seu
fundamento, “parte do pressuposto de que o homem, em virtude tão-somente de sua condição
humana e independentemente de qualquer outra circunstância, é titular de direitos que devem
ser reconhecidos e respeitados por seus semelhantes e pelo Estado”.91
Assim compreendido, o ser humano é apontado como sendo o valor-fonte do
ordenamento jurídico, sendo tarefa primordial do Estado Democrático de Direito a defesa e a
promoção de sua dignidade, conforme lição de Miguel Reale.92

89 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. 4ª edição. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2006.
90 GRIMM, Dieter apud Sarlet, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. 4ª edição. Porto Alegre: Ed. Livraria do
Advogado, 2006.
91 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. 4ª edição. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2006.
92 REALE, Miguel apud SARMENTO, Daniel. Ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, 2003.

48
Não obstante os inúmeros esforços doutrinários e jurisprudenciais para estabelecer
uma noção jurídica de dignidade, não se conseguiu construir uma definição genérica e
abstrata consensualmente aceita, embora não se discuta o seu estatuto jurídico. Talvez esse
objetivo seja de fato inalcançável, tendo em vista se tratar de um conceito em permanente
processo de construção e desenvolvimento, que demanda acurada atenção ao plurarismo e
diversidade que marca as sociedades contemporâneas.
Mesmo diante de toda dificuldade para elaborar um conceito claro que expresse o
caráter multidimensional da dignidade da pessoa humana, Ingo Sarlet propõe o seguinte
enunciado:
“[Temos por dignidade da pessoa humana] a qualidade
intríseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz
merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e
da comunidade, implicando, nesse sentido, um complexo de direitos e
deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e
qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe
garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável,
além de propiciar e promover a sua participação ativa e co-
responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão
com os demais seres humanos”.93

Independentemente de conceituações percebe-se que a dignidade da pessoa humana


conforma-se como o epicentro axiológico da ordem constitucional, irradiando seus efeitos
para todo o ordenamento jurídico pátrio, conferindo, por via de conseqüência, unidade de
sentido e valor ao sistema constitucional vigente. Segundo Sarmento é “apenas o respeito à
dignidade da pessoa humana que legitima a ordem estatal e comunitária, constituindo, a um só
tempo, pressuposto e objetivo da democracia”.94
Como qualidade intrínseca da pessoa humana, a dignidade é irrenunciável e
inalienável, não podendo ser dela destacada. Esta característica, cumpre ressaltar, faz com que
o princípio da dignidade da pessoa humana se distinga dos demais princípios ou garantias
dispostos no texto constitucional. Enquanto atributo inerente ao ser, a dignidade não pode ser
criada, concedida ou retirada, muito embora deva ser reconhecida, respeitada, promovida e
protegida.
Como atributo do sujeito, mister se faz salientar que ao se falar em dignidade está-se
referindo à dignidade de determinada pessoa, de forma concreta e real, individualmente
considerada, inexistindo, portanto, conduta atentatória à dignidade de pessoa em abstrato. Não

93 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. 4ª edição. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2006.
94 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. 4ª edição. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2006.

49
é sem razão que a Constituição de 1988 formula em seu artigo primeiro, como fundamento da
República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana. Segundo Kurt Bayertz, citado
por Ingo Sarlet, que a dignidade da pessoa humana apresenta como escopo o indivíduo de
modo a se evitar a possibilidade do sacrifício da dignidade da pessoa, singular, em nome da
dignidade humana como bem de toda humanidade ou em sua dimensão transindividual.95
Para Sarlet, a dignidade da pessoa humana apresenta-se como limite e tarefa dos
poderes estatais, bem como da comunidade em geral. Como limite, a dignidade surge como
algo que pertence a cada um e não pode ser alienado ou perdido, pois, nessas circunstâncias
não haveria mais limites a ser respeitado. Apresenta-se, aí, o elemento fixo e imutável da
dignidade. Como tarefa, o conceito reclama a proteção e promoção, de modo a poder ser
garantido, de forma plena, a sua fruição, contando para tanto com a ação concorrente do
Estado e da comunidade em geral, uma vez que o ser humano, por si só, isoladamente, não se
mostra capaz de suprir todas as suas necessidades e aspirações.96
Para a concreta realização do compromisso de proteção e promoção da dignidade da
pessoa humana torna-se inafastável a noção de uma igual dignidade de todas as pessoas,
fundada na participação ativa de todos na construção e manutenção de um espaço coletivo
capaz de reconhecer, bem como proteger, o conjunto de direitos e liberdades indispensáveis à
vida de seus membros. Surge, desse modo, de forma inequívoca, a necessidade de uma
formação de compromisso baseada no respeito ao outro e, por via de conseqüência, respeito à
diversidade e a pluralidade existente no seio da sociedade.
Alexandre de Moraes, ressalta que o dever fundamental de tratamento igualitário dos
próprios semelhantes constitui um dos elementos essenciais do conceito de dignidade da
pessoa humana, sem o qual se põe em risco o edifício social, já que configura-se pela
exigência do indivíduo reconhecer e respeitar a dignidade de seu igual da mesma forma que a
Constituição impõe que a sua seja respeitada. Para este autor, este enunciado resume-se a três
princípios do direito romano “honestere vivere (viver honestamente), alterum non laedere
(não prejudique ninguém) e suum cuique tribuere (dê a cada um o que é devido)”.97
Esta dimensão relacional se mostra essencial para se romper com a concepção
orgânico-biológica de dignidade, na medida em que aponta para seu lastro histórico e cultural,
da mesma forma que afirma, claramente, que a dignidade da pessoa humana não pode ser
destacada de uma comunidade concreta e determinada, onde se manifesta e é reconhecida.

95
KURT Bayertz apud Sarlet, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. idem
96 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. 4ª edição. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2006.
97
MORAES, Alexandre. Direitos Humanos Fundamentais – teoria geral. 6a. edição. São Paulo: Ed Atlas, 2005

50
Frente ao exposto, ainda que de forma concisa e sem pretensão de esgotar o tema,
percebe-se a relevância do princípio da dignidade da pessoa humana para a ampliação da
discussão sobre o aborto.
Historicamente o tema aborto esteve atrelado à discussão sobre a autonomia da
mulher, embora nem sempre a atenção dos envolvidos no debate tivesse se deslocado para
este ponto, conforme já mencionamos acima. De modo geral, as mulheres que advogam pelo
direito ao seu próprio corpo e pela livre decisão sobre a maternidade são taxadas de 'perversas'
e egoístas, já que rompem com o previsível destino que a natureza lhes reservou e optam por
negar o pleno desenvolvimento de uma nova vida que depende delas para se realizar.
Tal argumentação, a princípio, ostenta certa lógica e não se mostra, propriamente,
carente de sentido. Sem dúvida, de acordo com a regras da natureza, cabe à fêmea de todas as
espécies animais a gestação, de forma mediata ou imediata, de um novo ser e, via de regra, o
papel da maternagem. Contudo, também é sabido que, não obstante a sua origem animal, o ser
humano se distancia das outras espécies em virtude de atributos que lhes são próprios, dentre
eles, em especial, apontamos a razão e a linguagem. Tais atributos possibilitaram ao ser
humano a construção do edifício cultural que o abriga desde do momento em que foi capaz de
se erguer e caminhar ereto.
A partir da trilha solitária empreendida pelo ser humano que o separou e distinguiu de
seus antepassados biológicos, dos mais remotos aos mais próximos primatas, a natureza
deixou de impor a ele um destino único, cedendo espaço para criações e novas possibilidades
de estar no mundo. Desde então não se pode mais dizer acerca de um mundo natural, pois o
ser humano, ainda que provindo da natureza, assumiu seu estatuto de ser social, determinado
culturalmente.
Nessa perspectiva, impor à mulher uma gestação fundamentada, exclusivamente, em
seu suposto destino biológico, constitui uma evidente conduta instrumental tendente a
transformá-la em um objeto cuja função se perfaz no atendimento das expectativas distintas
e, muitas vezes, incompatíveis às suas.
Nesse ponto duas questões se impõem de forma inescapável àqueles que estão
dispostos a enfrentar o debate de forma racional e que revelam a interface do princípio da
dignidade humana com o princípio da igualdade, este também previsto de forma transparente
no art. 5o, Caput, da Constituição Federal.
A primeira questão diz respeito ao papel do homem no projeto reprodutivo humano.
Teoricamente, segundo nos informa a biologia, ao macho cabe fecundar a fêmea e, via de
regra, prover os seus rebentos, garantindo-lhes a sobrevivência, de modo a garantir a
51
perpetuação da espécie.
Mais do que o imperativo natural endereçado ao macho da espécie, no caso do
homem, têm-se, ainda, a expectativa da formação do que foi positivado como sendo a célula
nuclear da sociedade, ou seja, a família, constituída através da união entre homem e mulher
por meio do casamento ou união estável, como disciplina o Código Civil Brasileiro.
Todavia, esta expectativa direcionada à conduta masculina se mostra, comumente,
frustrada e, de certa maneira, tolerada, além, por certo, de nunca ensejar criminalização. Ao
homem é facultado a escolha entre formar uma família, prover o sustento da criança sem nem
ao menos construir um vínculo afetivo com ela, ou apenas, abandonar suas parceiras, sem
sequer tomar conhecimento do produto de sua relação sexual.
Não nos parece ser essa ampla margem de escolha masculina a melhor tradução do
que a Constituição aponta como sendo paternidade responsável, um dos elementos essenciais
do dispositivo que compõe o Capítulo VII – Da Família, da Criança, do Adolescente e do
Idoso e que trata sobre o planejamento familiar, in verbis:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do


Estado. (...) omissis

§ 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da


paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do
casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e
científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma
coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

Esta prerrogativa masculina prospera em um cenário absolutamente desigual no


tocante às relações de gênero em uma sociedade marcadamente patriarcal. Socorrendo-nos em
disciplinas afins e necessárias à compreensão do fenômeno social, como a sociologia e a
antropologia, nos colocamos em contato com dados e informações que traduzem a realidade
de forma cristalina. Roberto DaMatta, demonstra através de seus estudos antropológicos, a
profunda discrepância entre a educação que forja os homens e as mulheres brasileiras,
fazendo com que os primeiros sejam criados para enfrentar os desafios da 'rua', em uma clara
referência à vida, enquanto as mulheres são condicionadas ao espaço reservado da 'casa'. 98
A assimetria das relações de gênero, que tem o seu termo inicial na educação familiar,
se solidifica e se naturaliza ao longo da vida desses sujeitos, revelando sua real dimensão nas
relações sexuais. Nessas nem sempre as mulheres podem negociar o sexo ou demonstrar a

98 DaMatta, Roberto. A Casa e a rua. São Paulo: Ed. Rocco, 1997

52
intenção, legítima, de se proteger, resultando desta incapacidade muitas vezes a gravidez
indesejada. Naturalmente, as mulheres não engravidam sozinhas, mas a criminalização do
aborto isenta os homens de responsabilidade. Isto significa desrespeito aos princípios de
igualdade entre homens e mulheres. O aborto é um procedimento médico que responde a uma
necessidade de saúde específica das mulheres. Ao negar este acesso, os Estados infringem o
princípio de não discriminação em razão do gênero.
Ao fim e ao cabo, podemos chegar a conclusão de que criminalização sistemática do
aborto é uma estratégia moral e legal de controle da sexualidade das mulheres, já que,
inquestionavelmente, apenas elas podem engravidar nas relações sexuais. Ao se observar que
em vários países, como no Brasil, o aborto é permitido no caso do estupro confirma-se este
traço de controle. Na origem, esta exceção não tinha como objetivo precípuo proteger a
integridade das mulheres, mas evitar o nascimento de uma criança cuja existência poderia
ameaçar a “honra” e o patrimônio de seus pais, maridos e irmãos. Nesse sentido, afirma
Maria Berenice Dias:

“... Por não ter como deixar de ceder à tendência de prestigiar a paz
e o patrimônio familiar, o legislador também admitiu o aborto quando
a gravidez resultasse do crime de estupro. Tal exceção visa permitir
que não integre a família uma pessoa que não descenda do seu chefe.
É que a lei civil presume que o marido de uma mulher casada é o pai
de seu filho. Assim, a gravidez, mesmo decorrente de violência sexual,
faz com que o filho do estuprador seja reconhecido como filho do
marido da vítima. Essa é a justificativa para a possibilidade legal do
chamado aborto sentimental. Apesar do nome do nome com que foi
batizado o aborto decorrente de estupro, a preocupação nunca foi
com o sentimento da vítima, mais serve para impedir que um bastardo
se torne herdeiro do patrimônio familiar.”99

A segunda questão provocada a partir da intersecção entre dignidade da pessoa


humana e igualdade repousa na constatação de que a criminalização do abortamento
voluntário atinge na prática, basicamente, mulheres de baixa renda que não possuem
condições efetivas para buscar atendimento médico especializado.
Corroborando este entendimento, Carneiro, citado no Dossiê Aborto, publicado pela
Rede Feminista, afirma

“A criminalização da prática do aborto tem sido muito eficiente em


manter uma indústria rendosa de aborto ilegal, sustentada pelas

99 Dias, Maria Berenice. Aborto é crime? In: Revista Del Rey Jurídica. Ano 8, número 16, p. 63 Belo Horizonte, 2006

53
mulheres que o podem realizar em condições seguras nas clínicas
especializadas e, também, por aquelas que não dispõem dessas
mesmas condições, mas assim mesmo o fazem e o pagam, segundo
suas possibilidades, expondo-se às seqüelas e riscos de vida devido às
condições inseguras. Para as negras e as pobres, em geral, restam
seqüelas definitivas ou a morte, às quais o Estado brasileiro assiste de
forma indiferente.”100

Os dados do Sistema Único de Saúde demonstram que aborto inseguro é um grave


problema de saúde pública que contribui para os altos índices de mortalidade e morbidade
materna. Realizado em condições inseguras nas clínicas clandestinas, o procedimento oferece
às mulheres graves riscos à sua saúde, como a perfuração do útero, além de riscos de
complicações generalizadas, como hemorragias e infecções. Muitas mulheres sofrem seqüelas
permanentes, como infertilidade e histerectomia, sendo esta última a quinta causa de
internação hospitalar de mulheres na Rede Pública de Saúde. O abortamento inseguro
representa a quarta causa de morte materna no país e responde por 9% dos óbitos maternos na
rede pública de saúde.
Esses dados tendem a ser subnotificados, pois as graves complicações ligadas à
clandestinidade da prática do aborto podem estar sendo contabilizadas como mortes maternas
sem menção ao aborto, configurando-se, desse modo, mais uma grave violação aos direitos
fundamentais garantidos às mulheres, uma vez que políticas públicas deixam de ser
planejadas e implementadas em razão da ausência de dados fidedignos.
De acordo com a precisa análise realizada pela Juíza Maria Lúcia Karam, a proibição
do aborto para as mulheres de classes mais abastadas não significa mais do que um aumento
no custo do procedimento cirúrgico que, por sua clandestinidade, tende a se valorizar. Porém a
criminalização do aborto para a mulher pobre implica, de forma direta e clara na negação do
direito à saúde garantido no art.6º da Constituição da República. Observa-se, sem rodeios, que
a criminalização do aborto exibe seu perverso caráter classista, pois somente as mulheres
pobres sentem seus efeitos.101
Os efeitos da criminalização do aborto se distribuem de modo desigual na sociedade
brasileira. Tal qual outros tantos indicadores sociais é visível o fato desta desigualdade atingir,
com maior prevalência, as mulheres muito pobres, negras e jovens. Revela-se, ainda, que a
pobreza representa maior vulnerabilidade para as mulheres que recorrem ao aborto
clandestino, sem condições de buscar procedimentos seguros. Para essas, além da falta de

100 CARNEIRO, apud MARTINS, Alaerte L. e MENDONÇA, Lígia C. Dossiê Aborto – Mortes Preveníveis e Evitáveis. Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos
Sexuais e Direitos Reprodutivos. Belo Horizonte, 2005.
101 KARAM, Maria Lúcia. Aborto: Dircursos Sediosos. Disponível em http://www.advocaci.org.br/artig_10.htm. Acesso 13 de setembro de 2006

54
informações e recursos financeiros, incide ainda a vulnerabilidade às denúncias, punições,
humilhações e abusos quando recorrem aos serviços públicos de saúde com abortamento
incompleto. Por medo, muitas evitam chegar aos serviços. Segundo dados do Dossiê Aborto,
“ Tanto faz o aborto ser ou não provocado, ao chegar a um serviço de emergência obstétrica
com abortamento em curso ou com complicações decorrentes do aborto, as mulheres são
tratadas como criminosas.”102
De modo a concluir essa linha de raciocínio, transcrevemos a provocativa afirmação
do prof. Túlio Vianna que parece talhada para a discussão:

“Para os homens, que sempre puderam escolher entre abandonar suas


parceiras grávidas ou reconhecer o filho, e para as mulheres ricas, que
sempre tiveram o direito de escolha, a criminalização do aborto pode
significar uma opção 'pró-vida'. Já para as mulheres pobres, a
descriminalização do aborto não é uma garantia 'pró-escolha', pois o
aborto em regra não lhes é uma opção, mas uma necessidade. Para
estas milhares de mulheres latino-americanas miseráveis, é a
descriminalização do aborto a verdadeira defesa 'pró-vida'.”103

102 MARTINS, Alaerte L. e MENDONÇA, Lígia C. Dossiê Aborto – Mortes Preveníveis e Evitáveis. Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos
Reprodutivos. Belo Horizonte, 2005
103 VIANNA,Túlio. Aborto: em defesa de qual vida? Disponível em http://tuliovianna.org/?p=124. Data do acesso: 18 de novembro de 2006

55
V - Considerações finais

Em razão dos argumentos apresentados ao longo do texto podemos afirmar que a


descriminalização do aborto não encontra óbice em sede constitucional, ao contrário, os
princípios e garantias constitucionais discutidos ao longo do trabalho nos autorizam a refletir
sobre uma real possibilidade de alteração legislativa de modo a oferecer uma efetiva proteção
aos direitos albergados em nossa Carta Política, direitos aos quais uma parcela significativa de
cidadãs brasileiras não têm acesso pleno e devido.
Segundo Maria Berenice Diniz, embora o Código Penal afirme ser o aborto um crime,
a sociedade está reclamando sua descriminalização.104
Se analisarmos conjuntamente os dados de realidade que disponíveis nos serviços
públicos tanto de saúde quanto aqueles responsáveis pela segurança pública do Estado de
Minas Gerais, poderemos ver que, ao que parece, a insigne Desembargadora gaúcha não está
muito distante do que pensa a população brasileira.
De acordo com informações obtidas junto ao Serviço de Atenção à Saúde da Mulher
da Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais, nas unidades de saúde do Estado foram
realizadas 22.138 curetagens pós-aborto no ano de 2006, sendo que a maioria absoluta dos
casos se refere a casos de abortamento cuja causa não foi descrita. Dito de forma mais crua,
casos de aborto provocados, configurando, em última análise, crime capitulado como atentado
contra a vida pelo Código Penal Brasileiro.
Em consulta junto à Penitenciária Estevão Pinto, estabelecimento prisional destinado à
mulheres em Belo Horizonte, não foi localizada nenhuma interna cujo o crime tivesse relação
com aborto considerado ilegal.
Não há registro de casos relativos à tipificação prevista no Código Penal no Comando
da Polícia Militar e Civil. O mesmo fenômeno foi observado durante a pesquisa junto às Varas
do Tribunal do Júri instaladas no Fórum Lafayete.
A partir do expressivo número de abortos relatados pelo Sistema de Saúde (ainda que
notificados como procedimentos realizados em decorrência de sinais de abortamento),
cotejado com total ausência de dados relativos às conseqüências previstas pelo diploma legal
que regula a matéria, somos levados a inferir que a tal delito não é atribuída, ao menos nos
dias atuais, significativa importância pela sociedade, posto que não há reclames no sentido de

104 DIAS, Maria Berenice. Aborto é crime? In: Revista Del Rey Jurídica. Ano 8, número 16, p. 63 Belo Horizonte, 2006

56
reprimir a conduta delitiva, conforme prevê o Código Penal.
Sendo o Direito dinâmico, em constante transformação, visando acompanhar a
constante pulsação presente no seio da sociedade, não existe razão suficiente para a
manutenção de normas incriminadoras no ordenamento jurídico que não cumprem o seu papel
subsidiário de conformação de condutas e repressão de desvios.
Levando em consideração a mobilização social em torno de temas como a redução da
maioridade penal, o endurecimento de penas relativas a crimes violentos e o clamor pelo
combate ao tráfico de drogas, não resta dúvida que a questão do aborto não encontra mais
lugar na agenda de controle social, ainda que tal 'delito' seja cometido em larga escala.
Vê-se que o momento é de mudança ruptura com paradigmas ultrapassados. A
manutenção de um posicionamento tendente ao proibicionismo denota uma intencionalidade
que escapa ao texto legal que contém a norma penal que aqui se discute. De acordo com o
pensamento de Maria Lúcia Karam,

“O proibicionismo pode ser entendido, em uma primeira


aproximação, como um posicionamento ideológico, de fundo moral,
que se traduz em ações políticas voltadas para a regulação de
fenômenos, comportamentos ou produtos vistos como negativos,
através de proibições estabelecidas notadamente com a intervenção
do sistema penal – e, assim, com a criminalização de condutas através
da edição de leis penais –, sem deixar espaço para as escolhas
individuais, para o âmbito de liberdade de cada um, ainda quando os
comportamentos regulados não impliquem em um dano ou em um
perigo concreto de dano para terceiros.”105

Neste mesmo sentido discorre Maurizio Mori sobre a manutenção de uma norma
incriminadora, como é o caso da proibição do aborto, em um cenário que lhe é hostil ou
incompatível. Para este autor a insistência à conservação do aborto como crime cumpre a
função de preservar a desigualdade existente entre homens e mulheres, reservando a estas o
lugar que a natureza lhes indicou no início dos tempos. O resultado deste 'projeto' nada mais
seria do que a destituição da mulher de acessar possibilidades e concorrer em condições de
igualdade com os homens, seja no mercado de trabalho, seja nas relações sociais como um
todo, pois a ela caberia procriar e se haver com os demais desdobramentos desta função que
socialmente foi atribuída, quase que exclusivamente, à mulher.106
Nos ocorre a hipótese de que o aborto atravessa por um momento histórico que o
coloca em posição inversa ao que ocorreu com a violência urbana. Esta, enquanto atingia
105 KARAM, Maria Lúcia. Aborto: Dircursos Sediosos. Disponível em http://www.advocaci.org.br/artig_10.htm. Acesso 13 de setembro de 2006
106
MORI, Maurizio. A moralidade do aborto – Sacralidade da vida e o novo papel da mulher. Brasília: Ed. UNB, 1997

57
apenas as franjas da sociedade, ou seja, estava, aparentemente, adstrita aos limites das
comunidades de baixa renda, não provocava significativa mobilização, a final, se tratava de
pobre eliminando outros pobres. No momento em que observou-se o rompimento da linha
imaginária que dividia o espaço público entre os que têm algo e os que não têm nada e a
violência se espraiou de forma indistinta, a questão assumiu proporções de interesse público,
pautando as agendas da mídia, dos formadores de opinião e de políticos.
Já no caso do aborto, ocorre o inverso. Mais do que em qualquer outra época, ainda
que o cenário não tenha se alterado significativamente nas últimas décadas, a prática do
aborto provoca suas vítimas entre mulheres de baixa renda, como referido acima, mulheres
pobres, negras e cada vez mais jovens. Qual seria a fundamentação para que a questão
mobilizasse a sociedade de modo a alterar este estado de coisas?
Paradoxalmente, independentemente dos argumentos que apontam para o agravamento
da situação dessas mulheres, da urgência de providências que deveriam ser tomadas, do
número de mortes e de mulheres sequeladas em virtude de abortos clandestinos mal
sucedidos, o que provoca uma reação popular é o chamado de um líder religioso em recente
passagem pelo país, conclamando os fiéis para uma cruzada contra o aborto.
Não nos cabe aqui discutir os fundamentos religiosos que sustentam a tímida
reintrodução do tema na agenda nacional, afinal vivemos sob a égide de uma Constituição
democrática que permite a liberdade de crença e de opinião. O que chama a atenção e causa
espanto é a imposição de uma determinada crença a um conjunto plural de indivíduos,
instalando um autêntico clima de “guerra santa”, cenário em que um Ministro de Estado é
apontado em praça pública como discípulo de 'satanás'.
Consideramos talhado à perfeição o pensamento de Maria Lúcia Karam quando
assevera “Se uma desejada interrupção da gravidez fere uma crença religiosa – o que, de todo
modo, é questionável –, não se pode, no entanto, simplesmente impor sua proibição a todos,
professem ou não aquela crença, ainda mais com a utilização do poder do Estado de punir.”107
Um Estado que se pretende laico, cuja ordem constitucional impõe observância aos
princípios da democracia e do Direito, não pode conviver com demonstrações de força desta
monta que se mostra antagônica ao espaço democrático conquistado pela sociedade.
É importante salientar que o espaço público, destinado à discussão e deliberação de
questão atinentes a toda população, deve ser protegido de condutas e intenções que possam
ameaçar o seu frágil equilíbrio. Por vivermos em uma sociedade plural, marcada pela

107 KARAM, Maria Lúcia. Aborto: Dircursos Sediosos. Disponível em http://www.advocaci.org.br/artig_10.htm. Acesso 13 de setembro de 2006

58
diversidade cultural, religiosa, social e política, as tensões são constantes e fazem parte do
processo histórico de equilíbrio de uma nação que se pretende inserida em um mundo
globalizado, contemporâneo.
O projeto democrático de uma nação articula-se com sua capacidade de preservar,
garantir e promover os direitos humanos. Como já apontou Ingo Sarlet, a dignidade da pessoa
humana, enquanto eixo central do ordenamento jurídico pátrio, possui estreita interface com
os princípios da igualdade e liberdade, sendo a ofensa a esses princípios um ataque direto ao
fundamento primário do Estado Democrático de Direito.108
Nesse sentido, reafirmamos que a liberdade, seja qual for a sua manifestação, de
crença, de pensamento, de orientação sexual, para ser efetivamente exercida, supõe que
estejam asseguradas as opções individuais pelas suas mais diversas expressões, inclusive a
garantia das opções individuais que advoguem a negação de qualquer crença, a abstinência de
qualquer contato sexual e até mesmo a alienação acrítica com relação ao mundo.
Como preceitua Maria Lúcia Karam,

“Para assegurar a liberdade e, assim, a dignidade da pessoa, como


estatuem as declarações universais de direitos e as Constituições dos
Estados democráticos, o Estado há de ser neutro – laico, portanto –,
não estando autorizado nem a restringir expressões religiosas, nem a
impor uma ou outra crença, legislando com base em pautas morais
ditadas por representantes de uma ou outra religião.”109

Vale lembrar e ter sempre em mente a lição de Ingo Sarlet ao afirmar que a dignidade
da pessoa humana, por se tratar do valor próprio de cada uma e de todas as pessoas, somente
produz sentido se operada e concretizada no âmbito da intersubjetividade e da pluralidade, se
constituindo como um autêntica categoria da co-humanidade de cada indivíduo. Desta forma,
a consideração e reconhecimento recíproco da dignidade, no seio da sociedade, pode ser
definida como uma ponte que une os indivíduos entre si.110
O respeito e a observância das necessidades e carências do outro é o cimento que
mantém este elo, que também pode ser chamado de comunidade de sujeitos comprometidos
com o outro.

108
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. Quarta edição. Porto Alegre: Ed. Livraria do
Advogado, 2006.
109 KARAM, Maria Lúcia. Aborto: Dircursos Sediosos. Disponível em http://www.advocaci.org.br/artig_10.htm. Acesso 13 de setembro de 2006
110
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. Quarta edição. Porto Alegre: Ed. Livraria do
Advogado, 2006.

59
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