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constitucionais
I – Introdução II – O aborto e o Direito I.I – Aspectos históricos II.II – Definição do conceito de aborto II.III –
O aborto na legislação brasileira II.IV - Hipóteses permissivas de interrupção voluntária da gravidez II.V -
Aspectos morais e reflexos sociais do aborto III – Princípios Constitucionais III.I – Teoria Geral dos princípios
III.II – Distinção entre Princípios e Regras III.III – Classificação, eficácia e aplicação dos princípios
constitucionais III.IV - Conflito de princípios e sua resolução IV - Limites e possibilidades da descriminalização
do aborto no Brasil IV.I – Espaço público e discussão sobre o aborto IV.II – Princípios e Garantias
Constitucionais e a questão do aborto IV.II.I – Direito à Vida IV.II.II – Dignidade da Pessoa Humana V -
Considerações finais VI – Referências Bibliográficas
I - Introdução
1
Graduado em Psicologia pela UFMG (1986) e em Direito pela Escola Superior Dom Helder Câmara (2007).
Ativista em Direitos Humanos com atuação no Grupo de Apoio e Prevenção à Aids de Minas Gerais (GAPA-
MG)
1
nacional.
Para tanto se faz necessário discutir as diversas representações acerca da interrupção
voluntária da gravidez e seus desdobramentos sociais, morais e, sobretudo, jurídicos, de modo
a construir hipóteses capazes de enfrentar satisfatoriamente o tema.
Percebe-se a urgência de se ampliar o debate, trazendo para a arena pública o maior
número possível de participantes de modo a validar e legitimar possíveis decisões que
afetarão a vida de milhões de brasileiros. Todavia, para tanto, se faz necessário, construir uma
base argumentativa minimamente comum, capaz de sustentar a calorosa discussão sobre o
tema, sob pena de encastelamento das posições e da impossibilidade de se encontrar soluções
pacíficas para a questão.
Vemos que a base argumentativa necessária para esta empreitada, tendo em vista a
imperativa ruptura de posições cristalizadas e cristalizantes, encontra-se situada na
aproximação do tema com o Direito Constitucional e as soluções possíveis apresentadas pelo
balanceamento de princípios e valores ali sediados. A utilização deste valioso recurso para
saneamento de conflitos sociais e jurídicos pode significar a estratégia necessária para a
construção de consenso ou acordo sobre a questão do aborto no Brasil.
Todavia avoluma-se o desafio, pois ao deslocar o debate sobre o aborto para sede
constitucional são introduzidas importantes variáveis que demandam operações mais
delicadas e sofisticadas para o tangenciamento de soluções possíveis.
Ao contrário de regras positivadas cujos conflitos são passíveis de resolução a partir
da aplicação de uma em detrimento das demais atinentes ao mesmo campo, em um claro
processo de invalidação de uma regra diante da outra, os princípios, no caso de colisão,
devem ser sopesados diante do caso concreto afastando a sua incidência, operação esta que
não equivale à invalidade daquele não utilizado, mas somente a opção pelo o mais adequado
no momento histórico vivido.
No caso da interrupção voluntária da gravidez percebe-se a incidência de princípios
constitucionais aparentemente conflitantes que demandam a aplicação de técnicas de
interpretação apropriadas para que se possa obter um resultado mais adequado aos casos
concretos que se apresentam, sobretudo, em função do tensionamento provocado pelos grupos
sociais que se enfrentam seja pela proibição do aborto, seja pela sua descriminalização no
Brasil.
Estes segmentos da sociedade, divididos em grupos claramente delimitados, ao
buscarem a fundamentação de seus argumentos em posições político-ideológicas ou religiosas
utilizam interpretações acerca dos mesmos princípios constitucionais que os conduzem a
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conclusões distintas e até mesmo antagônicas. Assim, ao se discutir a defesa da vida ou da
dignidade da pessoa humana, por exemplo, diante da complexa questão do aborto, mostra-se
possível a elaboração de conclusões aparentemente válidas e legítimas, todavia,
contraditórias, impossíveis de conviverem harmonicamente em uma mesma ordem jurídica.
Neste sentido, faz-se imperativo o debate destes fundamentos colocados em xeque na
esfera pública pelos atores sociais envolvidos na questão do aborto, direta ou indiretamente,
tendo em perspectiva um sistemático e criterioso esforço de interpretação dos princípios
constitucionais incidentes no caso concreto. Somente desta maneira pode-se encontrar saídas
possíveis e válidas para o confronto de posições que a este grave e urgente problema social
encerra.
Percebe-se, ainda, a partir de observação empírica, sem amparo de embasamento
técnico que possa lhe oferecer, até o momento, status de conhecimento com rigor científico,
que o mesmo embate vem sendo estabelecido entre a realidade fática, a esfera policial-
administrativa e a judicial.
O número de abortamento voluntário clandestino e ilegal no Brasil supera, de forma
irrefutável, o número de casos que chegam até ao Judiciário para o devido processo de
julgamento, demonstrando um certo descompasso entre a Lei posta pelo Código Penal vigente
e a possível conformação da prática ilícita de aborto em caso concreto a ser apreciado na
esfera judicial.
A análise rigorosa acerca deste suposto descompasso pode vir a se revelar como um
precioso instrumento para a compreensão da gênese de um novo entendimento sobre o aborto
no Brasil que, articulada a elementos substanciais oferecidos pela moderna Hermenêutica
Constitucional pode ser capaz de operar significativas transformações no ordenamento
jurídico pátrio, oferecendo, assim, respostas mais consistentes a um problema que transcende
ao campo do Direito Penal e afeta milhares de cidadãos brasileiros, especialmente, mulheres.
Busca-se, portanto, empreender a discussão sobre o aborto no Brasil à luz dos
princípios constitucionais mantendo-se em perspectiva o entendimento de que estamos diante
de autênticas normas jurídicas, historicamente determinadas e que trazem em seu bojo a
precípua função normogenética, atuando, antes de tudo, no processo de criação do Direito.
Tendo em vista o desenvolvimento do presente trabalho utilizou-se o método de
revisão teórica, tendo em perspectiva os princípios constitucionais, em especial aqueles
relativos à defesa da vida, da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da laicidade do
Estado, que em confronto com a realidade do tema possibilitou o vislumbre de alternativas
jurídicas capazes de subsidiar o debate jurídico e político em vista da efetividade da norma
3
penal. A partir de tal método pôde-se obter o encadeamento lógico de teorias atinentes ao
tema pesquisado até o presente momento, bem como o seu cotejamento com dados
epidemiológicos disponíveis na Rede Pública de Saúde, especialmente nos serviços de
atenção à mulher do Estado de Minas Gerais.
Objetivando oferecer o encadeamento lógico do raciocínio trilhado pelo autor o texto
será apresentado em quatro capítulos, sendo que o primeiro versará acerca do marco teórico
que norteou a elaboração de todo o trabalho, a saber, a contribuição de Ronald Dworkin para a
teoria dos princípios e os ensinamentos de J. Habermas sobre a teoria do discurso como base
para a fundamentação do Direito.
O segundo capítulo apresenta, em linhas gerais, o debate sobre o aborto no Brasil a
partir de seus aspectos históricos, morais, biológicos e seus reflexos na sociedade,
especialmente no tocante às mulheres, sujeitos sociais primariamente afetados por essa
questão, passando pela legislação brasileira que regula os casos possíveis de interrupção da
gravidez e as sanções decorrentes do descumprimento das normas penais incriminadoras.
No terceiro capítulo discute-se o papel dos princípios constitucionais dando-se ênfase
ao indiscutível processo de constitucionalização das normas infra-constitucionais a partir do
entendimento dos princípios como normas e à importância da Hermenêutica constitucional
diante de conflitos de princípios, sobretudo como meio para a sua resolução.
O quarto capítulo destina-se a debater os limites e possibilidades da descriminalização
do aborto no Brasil tendo em perspectiva os princípios constitucionais em conflito nesta
discussão. Pretende-se, ainda, refletir sobre a técnica de balanceamento de normas buscando
alcançar uma resolução razoável frente às colisões de princípios que se apresentam quando a
questão é a interrupção voluntária de uma gestação.
Na conclusão busca-se oferecer um primeiro esboço de alternativas que possam
auxiliar a desvelar aqueles princípios mais preponderantes diante desta complexa e intrincada
questão, que vem se colocando na ordem do dia entre detratores de defensores do direito ao
aborto, de modo a justificar uma possível alteração na legislação pátria.
4
II – O aborto e o Direito
2 Moisés, Elaine Christine Dantas et al. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. Ribeirão Preto. São Paulo: FUNPEC, 2005.
3 Moisés, Elaine Christine Dantas et al. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. Ribeirão Preto. São Paulo: FUNPEC, 2005
4 Mori, Maurizio. A moralidade do aborto – Sacralidade da vida e o novo papel da mulher. Brasília: Ed. UNB, 1997
5 Moisés, Elaine Christine Dantas et al. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. Ribeirão Preto. São Paulo: FUNPEC Editora, 2005.
5
aborto. Porém, é inegável que eles apresentam grande proximidade com discurso religioso, ao
se apegarem em argumentos que priorizam a vida humana como valor supremo e divino, mas
se distanciam dele na medida em que tendem a aceitar hipóteses flexibilizadoras como nos
casos de risco de vida da gestante ou de gravidez resultante de violência sexual.
Foi a partir do cristianismo que o aborto passou a ser considerado uma prática passível
de repressão com a Igreja Católica preconizando a condenação daqueles que o praticavam,
sugerindo como punição a pena de morte tanto para a mulher quanto para aqueles que a
auxiliavam6.
Todavia, nem sempre a Igreja Católica assim procedeu. A história demonstra que o
entendimento sobre a questão variou no tempo e apenas nos últimos 150 anos o aborto passou
a ser severamente condenado, em todas as suas formas. Isto não significa que houve
momentos de tolerância com relação à interrupção da gravidez pelo catolicismo, mas apenas
uma maior debate sobre a questão no seio da doutrina católica.
São Tomás de Aquino, grande filósofo católico do Séc. XIII afirmava, de forma
categórica, que não se poderia falar em alma intelectual ou racional no momento da
fecundação, advogando contra a idéia de animação imediata. Portanto, não haveria de se falar
em alma humana a não ser em um período posterior de desenvolvimento fetal. Embora este
entendimento não portasse o condão de afastar a condenação e a pecaminosidade do aborto,
fosse esse precoce ou tardio, considerado desde sempre grave pecado, é inegável o seu efeito
com relação ao tema, já que não cabia a representação de “homicídio antecipado”.
Na Idade Média, a partir da perspectiva católica, o termo “homicídio” era utilizado
para designar qualquer crime contra a ordem natural da procriação, até mesmo a
contracepção. Assim, igualavam-se em reprovação a masturbação, a contracepção e o aborto,
uma vez que todas estas praticam atentavam contra a dignidade e santidade da vida humana
em si7.
Apenas na segunda metade do século XVII, a partir do decreto papal editado por Pio
IX é que se observa uma alteração no entendimento da Igreja Católica que passou a punir com
a excomunhão também aqueles que praticassem o aborto prematuro, sugerindo adesão à idéia
de animação imediata, atual posição oficial da Igreja Católica.
Cabe ressaltar que tal mudança de posicionamento que rompeu com a concepção
tomista de vida deu novo fôlego às representações de ‘homicídio’, pois ao se admitir a
existência de vida desde a concepção o aborto, inclusive aquele praticado no início da
6 Moisés, Elaine Christine Dantas et al. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. Ribeirão Preto. São Paulo: FUNPEC Editora, 2005.
7 Dworkin, Ronald. Domínio da Vida – Aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2003
6
gravidez, passa a ser equiparado ao assassinato de uma criança, argumento impossível de ser
utilizado ao se trabalhar com a idéia contrária à animação imediata8.
Embora não se pretenda, neste espaço, alcançar tal consenso, para a consecução dos
objetivos aqui propostos se torna imprescindível a utilização de uma definição acerca do
termo aborto. Para tanto, tendo em vista o início do debate, optou-se por lançar mão do
conceito advindo da literatura médica na qual o termo alcançou níveis mundiais de aceitação.
8 DWORKIN, Ronald. Domínio da Vida – Aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2003
9 SEMIÃO, Sérgio Abdalla. Os direitos do nascituro – Aspectos cíveis, criminais e do Biodireito. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.
10 SPOLIDORO, Luiz Claudio Amerise. O aborto e sua antijuridicidade. São Paulo, Lejus:1997
7
Inicialmente, cumpre ressaltar a origem etimológica da palavra aborto de modo a
clarificar o seu significado, buscando apontar, desde já, algumas impropriedades com relação
ao emprego do vocábulo ‘morte’. De acordo com Spolidoro:
11 SPOLIDORO, Luiz Claudio Amerise. O aborto e sua antijuridicidade. São Paulo, Lejus:1997
12 Enciclopédia Saraiva de Direito, 1978, 14/328. apud SPOLIDORO, Luiz Claudio Amerise. O aborto e sua antijuridicidade. São Paulo, Lejus:1997
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ocorrendo, com nascimento e constatação da sua autonomia
biológica, têm-se a constatação de sua condição de vida
meramente biológica para a vida biológica jurídica, dada a
aquisição do atributo vida, personalidade civil e condição, por
conseqüência de pessoa.”13
13 SPOLIDORO, Luiz Claudio Amerise. O aborto e sua antijuridicidade. São Paulo, Lejus:1997
14 MOISÉS, Elaine Christine Dantas et al. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. Ribeirão Preto. São Paulo: FUNPEC Editora, 2005.
15 FAÚNDES, Aníbal e Barzelatto, José. O drama do aborto – em busca de um consenso. Campinas, SP: Ed. Komedi, 2004.
9
Embora na própria organização do texto penal codificado tenha sido estabelecida a
distinção entre o crime de aborto e o homicídio, este disposto no Código Penal no artigo 121 e
as práticas relativas ao primeiro, tipificadas nos artigos 124 e 126, percebe-se que o bem
jurídico tutelado é a vida humana, ainda que a definição legal de vida no ordenamento
jurídico pátrio não esteja desta forma expressa16.
Decorre, daí, o primeiro problema a ser enfrentado ao se discutir a questão do aborto
para além do disposto no Código Penal Brasileiro, sobretudo à luz dos princípios
constitucionais.
O legislador optou por elencar o crime de aborto junto àqueles relativos aos crimes
contra a pessoa, mais especificamente, no capítulo que trata sobre os crimes contra a vida.
Assim sendo, torna-se desnecessário, ao menos em sede penal, a discussão sobre a validade
desta norma. A interrupção voluntária da gravidez está tipificada como ilícito penal, passível
de pena17.
Todavia, à esta classificação são endereçadas críticas, a partir do entendimento de
existência de vício legislativo no trato da matéria. Como aponta Spolidoro:
16 PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol. 2 – Parte Especial. 3ª Edição revista e ampliada. São Paulo: Ed. RT, 2004
17 PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol. 2 – Parte Especial. 3ª Edição revista e ampliada. São Paulo: Ed. RT, 2004
18 SPOLIDORO, Luiz Claudio Amerise. O aborto e sua antijuridicidade. São Paulo, Lejus:1997
19 SPOLIDORO, Luiz Claudio Amerise. O aborto e sua antijuridicidade. São Paulo, Lejus:1997
10
todos os direitos a ele inerentes, garantidos constitucionalmente20.
No tocante ao aborto aponta-se como sujeito passivo do crime previsto o feto, o que
não autoriza, de imediato, a sua identificação como pessoa humana, pleno titular de direitos. A
pluralidade de concepções e entendimentos sobre a natureza jurídica do embrião ou do feto
estabelece a abertura necessária para o debate acerca da descriminalização do aborto.
Ao se pensar o embrião ou o feto como pessoa, titular de direitos desde concepção,
têm-se, em princípio, a cristalina certeza sobre o imperativo acerca da manutenção da norma
penal incriminadora no ordenamento jurídico brasileiro, já que a Constituição Federal
preleciona, em seu artigo 5º, ser a vida um direito inviolável da pessoa humana. Têm-se,
assim, constituído o argumento de que o crime de aborto, em última instância, equivaleria a
uma forma de homicídio, mesmo que esta denominação soe imprópria tecnicamente21.
Por outro lado, ao problematizar o conceito de vida e de pessoa, têm-se tal certeza
mitigada a partir do entendimento do feto como um projeto humano que apresenta uma
expectativa de direito, mas ainda não constituindo um sujeito titular pleno deles. Nesta
perspectiva, o valor de vida atribuído ao feto estaria adstrito aos limites oferecido a um ser
vivo, sendo, portanto, passível de flexibilização diante da premência de valores outros
apresentados pela mulher, no caso a gestante, como a dignidade da pessoa humana e
liberdade22.
Este debate já vem sendo travado em esferas distintas ao Direito, especialmente após o
avanço científico que possibilitou o conhecimento mais acurado sobre a reprodução humana e
a determinação do momento em que o embrião desenvolve características capazes de lhe
conferir estatuto de ser humano.
No âmbito do Direito Civil, de modo não menos inquietante, este debate também se
faz presente, sobretudo com relação à interpretação do artigo 2º do Código Civil, in verbis,“A
personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei pôe a salvo, desde a
concepção, os direitos do nascituro.”
Depreende-se da parte final do referido artigo que a lei tutela desde a concepção são os
direitos sob estado potencial que decorrem em aparência na viabilidade do nascimento com
vida e, com isso, por parte do produto da concepção a atributividade da personalidade civil.
Nas palavras de Spolidoro:
20 PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol. 2 – Parte Especial. 3ª Edição revista e ampliada. São Paulo: Ed. RT, 2004
21 MORI, Maurizio. A moralidade do aborto – Sacralidade da vida e o novo papel da mulher. Brasília: Ed. UNB, 1997
22 MORI, Maurizio. A moralidade do aborto – Sacralidade da vida e o novo papel da mulher. Brasília: Ed. UNB, 1997
11
“O que o legislador põe em proteção é a possibilidade de
conclusão do ciclo gravídico, sem interrupção e não a garantia de
‘vida’ biológica ou jurídica aoproduto da concepção, uma vez que
esta não nasce do ato impositivo da lei ou do homem mas sim,
como elemento atributivo de todo produto da concepção que nasça
com vida.”23
Aborto necessário
12
a retomada de rota do legislador, na medida em que se reconhece que o produto da concepção
possui vida meramente biológica e adquirindo existência jurídica a partir do nascimento com
vida, de acordo com o que preceitua o art. 2º do Código Civil. Em outros termos, é o
reconhecimento de que a tipificação do aborto, tal qual figura no Código Penal, se presta a
tutelar a vida em estado potencial, meramente biológica, tanto que perde em prevalência se
confrontada com a vida jurídica da mãe, havendo claro e inequívoco reconhecimento da
diferenciação que existe entre a vida biológica e a jurídica25.
A segunda hipótese prevista no Código Penal é também denominada de aborto
sentimental e trata de casos de interrupção de gravidez resultante de estupro e fundamenta-se
no direito à honra, à integridade física e psíquica da mulher e à segurança social, pois o
estupro é delito previsto no Código Penal em seu artigo 213.
De acordo com a lição de Moisés,
Não obstante ser inquestionável o direito albergado neste dispositivo legal torna-se
imprescindível problematizar o aspecto paradoxal que ele nos apresenta, especialmente por
estar situado em um Capítulo do Código Penal que dispõe sobre os crimes contra pessoa e o
seu bem dado como mais relevante, ou seja, a vida.
Como já foi mencionado acima, o sujeito passivo do crime de aborto é o feto, uma vez
que é, segundo o diploma legal em apreço, a sua morte, provocada por ação dolosa, externa e
violenta, o pressuposto básico do injusto penal. Como se pode aferir, segundo a letra da lei, o
feto é tratado como pessoa, indiferentemente se a sua personalidade jurídica irá ser adquirida
com o nascimento com vida. Tem-se, como já afirmado, uma indistinção entre vida biológica
e jurídica.
Relevante também se mostra a atribuição, ao aborto sentimental, de característica de
excludente de ilicitude, tendo como base de sustentação a idéia de estado de necessidade
especial27. Como leciona Prado:
25 SPOLIDORO, Luiz Claudio Amerise. O aborto e sua antijuridicidade. São Paulo, Lejus:1997
26 MOISÉS, Elaine Christine Dantas et al. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. Ribeirão Preto. São Paulo: FUNPEC Editora, 2005.
27 NORONHA, Magalhães. Curso de Direito Penal. Apud SPOLIDORO, Luiz Claudio Amerise. O aborto e sua antijuridicidade. São Paulo, Lejus:1997
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“No aborto sentimental ou humanitário o mal causado é maior do
que aquele que se pretende evitar. De conformidade com a teoria
diferenciadora em matéria de estado de necessidade – que faz
distinção entre bens em confronto -, haverá a exclusão de
culpabilidade da conduta pela inexigibilidade de conduta diversa.
O fundamento da indicação ética reside no conflito de interesses
que se origina entre a vida do feto e a liberdade da mãe,
especialmente as cargas emotivas, morais e sociais que derivam
da gravidez e da maternidade, de modo que não lhe é exigível
outro comportamento”.28
Cabe ressaltar que a autêntica base eximente da ilicitude atribuída à prática do aborto,
para além do exercício regular de um direito no tocante à ação dos profissionais de saúde
(médico e sua equipe), é o consentimento da gestante ou de seu representante, pois será este
que faz surgir o direito de agir do médico29.
Isto posto, resta indagar a razão pela qual o feto, cuja ‘vida’ é tutelada pela legislação
pátria, passa a ser preterido, seja em termos de importância ou valor, frente a honra e a
integridade física ou mental da mãe em circunstâncias, ainda que eivada de gravidade pelo ato
de violência, se nem mesmo figura como sujeito, ativo ou passivo, do delito praticado, que
autorizaria legalmente o aborto? Em que medida o consentimento do ofendido, no caso a
mulher, autorizaria a agressão a um bem jurídico tutelado pela norma penal, absolutamente
alheio às circunstância em questão?
Se de fato o legislador estava a se referir ao produto da concepção como pessoa
humana, qual é o argumento moral que sustentaria a opção pela sua ‘morte’, sem a devida
observância de todos os direitos que lhes seriam inerentes, em decorrência de um delito
praticado por terceiros. Segundo preleciona Spolidoro:
28 PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol. 2 – Parte Especial. 3ª Edição revista e ampliada. São Paulo: Ed. RT, 2004
29 PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol. 2 – Parte Especial. 3ª Edição revista e ampliada. São Paulo: Ed. RT, 2004
30 SPOLIDORO, Luiz Claudio Amerise. O aborto e sua antijuridicidade. São Paulo, Lejus:1997
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ia uma discriminação atentatória aos Direitos Fundamentais que ofenderia, de uma só vez os
direitos à vida, à liberdade, à igualdade e à democracia.
Todavia não parece ser esse o entendimento majoritário, seja da doutrina, seja da
sociedade como um todo, o que sugere certa inadequação do aborto como crime contra a vida
e, sobretudo, o juízo do feto como pessoa, estremando-o da idéia de potência já frisada acima.
A hipótese permissiva de aborto prevista no art. 128, II do Código Penal vigente,
sugere, associado ao referido acima, uma valoração moral da conduta que autorizaria a
suposição de que, nesse caso, a mulher poderia rejeitar uma “certa” vida que, ao que as
evidências indicam, apresenta grau de importância menor do que aquela fruto de uma relação
consentida, esta sim, verdadeiro objeto de tutela do Direito.
Em contraponto, seria endereçado à mulher um juízo que lhe imporia o dever de
suportar a vida que traz no ventre sempre que esta fosse coincidente com o que,
supostamente, é compreendido como ‘vida legítima’. De acordo com as autoras do Dossiê
Aborto, estaria em jogo, nessa operação, uma espécie de punição social relativa à
irresponsabilidade feminina que não soube evitar a gravidez e, portanto, deve assumir o seu
ônus.31
A partir do exposto até aqui tornou-se mais evidente a base fundante dos
argumentos que sustentam a lógica do aborto como ‘homicídio’, ainda que o Código Penal
Brasileiro disponha de outra forma. A vida defendida deste ponto de vista adquire significado
distinto daquele que lhe é atribuído pela biologia, uma vez que busca sua fundamentação na
transcendência divina que dispõe a vida humana como uma dádiva de Deus, cujo controle,
seja de seu início, seja de seu fim, estaria interditado à vontade dos homens32.
Apresenta-se ao debate uma nova dimensão do problema, tornando-o ainda mais
complexo.
O Estado Democrático de Direito pressupõe, como substância de sua existência, a
separação entre Estado e Religião, não sendo admitido disputas operadas em um campo
marcado pelo inexplicável ou transcendente, sob pena de se tornar refém de argumentos que
se fundam em uma autoridade auto-entronizada e infalível. O rompimento com a lógica do
31
MARTINS, Alaerte L. e MENDONÇA, Lígia C. Dossiê Aborto – Mortes Preveníveis e Evitáveis. Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e
Direitos Reprodutivos. Belo Horizonte, 2005.
32 MORI, Maurizio. A moralidade do aborto – Sacralidade da vida e o novo papel da mulher. Brasília: Ed. UNB, 1997
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Estado Laico faz ruir o edifício da democracia e da liberdade, fundado na pluralidade de
atores, cuja convivência se torna possível a partir do debate de posições divergentes,
minimamente inteligíveis33.
Embora seja absolutamente possível, ao menos no plano abstrato e hipotético, uma
comunidade livre e autônoma, se fundar e se organizar segundo preceitos e definições
religiosas, têm-se que, diante da realidade contemporânea e da evidência que aponta para a
conformação social marcada pela diversidade e pluralidade de pensamentos, crenças e
opiniões, esta probabilidade se mostra bastante remota. Nesse cenário, fragmentado por
definição, as tensões sociais são inevitáveis, tanto quanto são legítimas, exigindo-se do Estado
uma prestação de proteção aos mais variados atores que se expressa e, tão-somente assim se
realiza, a partir de sua posição isenta diante das inúmeras possibilidades de crenças e posições
ideológicas.
Nesta perspectiva, no momento em que a vida passa a ser um valor absoluto e
supremo, oferecido por uma divindade transcendente, extingue-se a possibilidade de se
estabelecer qualquer debate, pois as bases constituintes deste cenário é uma argumentação
excludente e autoritária, incapaz de oferecer um ambiente favorável à expressão de posições
divergentes ou dissonantes ao que é posto por ela.
Ao se atribuir à vida importância totalizante e inquestionável perde-se a capacidade de
se observar o caráter prima facie apresentado pelos direitos fundamentais, inclusive, pelo
direito à vida, tornando impossível sua confrontação por outros valores de grandeza
semelhante34.
Não obstante o fato de escapar ao escopo do Direito faz-se imprescindível reflexão
sobre a realidade circundante, afetada diretamente pela incriminação da prática do aborto, de
modo a ampliar a discussão, mesmo porque o assunto é delicado, e exige uma análise sobre
vários ângulos: político, social, jurídico, moral, religioso e filosófico.
O aborto clandestino é um grave problema de saúde pública, reconhecido pela
comunidade internacional em conferências promovidas pelas Nações Unidas na década de 90,
sendo a clandestinidade vinculada ao caráter de ilicitude que recobre tal prática.
Via de regra, em função da penalização da prática de aborto, este tende a ser realizado
sob condições precárias, em ambientes que não apresentem os mínimos padrões sanitários e
por pessoas sem capacitação técnica resultando, geralmente, em seqüelas à saúde da mulher e,
33 GALDINO, Elza. Estado sem Deus – A obrigação da laicidade na Constituição. Belo Horizonte: Ed. Del Rey, 2006.
34
ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios Constitucionais. 2ª tiragem. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 2003.
16
muitas vezes, sua própria morte35.
Segundo a Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos
Reprodutivos (Rede Feminista de Saúde), calcula-se que cerca de 20 milhões de abortamentos
ilegais sejam realizados a cada ano em todo o mundo, significando dizer que 44% dos abortos
realizados são clandestinos. Só na América Latina e Caribe, estudos indicam que cerca de 4
milhões de abortos não permitidos por lei sejam realizados anualmente, o que representa 95%
dos abortamentos. Segundo a Organização Mundial da Saúde, 21% das mortes relacionadas
com a gravidez, o parto e o pós-parto nesta região têm como causa as complicações do aborto
inseguro36.
Estudos do Fundo de População das Nações Unidas revelam que anualmente cerca de
6 mil mulheres morrem na América Latina em conseqüência de complicações de abortos
clandestinos, bem como inúmeras outras sofrem danos às vezes irreversíveis à sua saúde.
Embora o número preciso de abortos provocados seja difícil de calcular em função da
clandestinidade imposta à esta prática devido a sua criminalização, estima-se que cerca de 1
milhão de brasileiras – adolescentes e mulheres – que engravidam sem planejar recorram ao
aborto clandestino todos os anos, fazendo com que a interrupção da gravidez constitua a
quinta maior causa de internações na rede pública de saúde sendo a terceira causa de morte
materna no país37.
Mesmo diante de todos os riscos impostos pelo aborto ilegal e inseguro percebe-se que
as mulheres continuam a praticá-lo e o fazem por razões diversas, que vão da falta de acesso a
programas de planejamento familiar, até às relações sexuais não voluntárias ou não desejadas,
caracterizadas por violência sexual, coerção nas relações sexuais e/ou gravidez forçada38.
Vê-se, assim, que a condenação da mulher que aborta representa, em última instância,
uma dupla punição imposta a ela, uma vez que se encontra com uma gravidez indesejada,
resultado da incapacidade da sociedade de prover condições de educação, cidadania e
planejamento reprodutivo. Geralmente são mulheres de baixo poder aquisitivo que enfrentam
as mais graves conseqüências da ilegalidade e buscam, sem alternativa, práticas clandestinas
mais baratas e, conseqüentemente, mais inseguras, com menos recursos técnicos de qualidade.
A proibição legal, ou religiosa do aborto, tem demonstrado ser incapaz de reduzir a
35
MARTINS, Alaerte L. e MENDONÇA, Lígia C. Dossiê Aborto – Mortes Preveníveis e Evitáveis. Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e
Direitos Reprodutivos. Belo Horizonte, 2005.
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MARTINS, Alaerte L. e MENDONÇA, Lígia C. Dossiê Aborto – Mortes Preveníveis e Evitáveis. Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e
Direitos Reprodutivos. Belo Horizonte, 2005.
37
MARTINS, Alaerte L. e MENDONÇA, Lígia C. Dossiê Aborto – Mortes Preveníveis e Evitáveis. Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e
Direitos Reprodutivos. Belo Horizonte, 2005.
38
MARTINS, Alaerte L. e MENDONÇA, Lígia C. Dossiê Aborto – Mortes Preveníveis e Evitáveis. Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e
Direitos Reprodutivos. Belo Horizonte, 2005.
17
taxa total de abortos, principalmente em países em desenvolvimento, tendo como efeito direto
o aumento das taxas de abortos clandestinos e inseguros e, por via de conseqüência, da
mortalidade materna39.
Tendo em vista este estado de coisas foram colocados em marcha projetos de revisão
da norma penal incriminadora relativa ao aborto, de matizes e interesses diversos, que visam
legalizar o aborto no Brasil, prevendo a liberalização do aborto até a 12ª semana da gravidez,
sem que a gestante apresente qualquer justificativa, como é o caso do anteprojeto de Lei que
altera a parte especial do Código Penal Brasileiro e do PL 1.135/91, de autoria do ex-deputado
Eduardo Jorge e da ex-deputada Sandra Starling.
Tais iniciativas vêm sendo acompanhadas com relativa atenção pela sociedade
brasileira, em especial pelas mulheres, de acordo com os resultados da pesquisa CCR –
Ibope/2003, embora demande maior densidade na arena política da sociedade40.
A pesquisa foi realizada pela CCR (Comissão de Cidadania e Reprodução) e pelo
Ibope (Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística) com uma amostra representativa
da população adulta brasileira, abarcando 2.000 entrevistas em 145 municípios brasileiros41.
Segundo a pesquisa CCR - Ibope as taxas de apoio ao aborto legal vigente e de
demanda para ampliação da permissão ao aborto são maiores entre os entrevistados que
acompanham o debate sobre a questão, assim como entre moradores das grandes cidades e
das capitais, reafirmando que quanto mais informados e mais preparados para a questão, mais
os brasileiros apóiam o aborto legal atual e mais demandam a ampliação da legislação para a
permissão do aborto42.
O debate sobre interrupção voluntária da gravidez tende a se concentrar na polarização entre
os grupos contrários ao aborto, denominados de Movimento Pró-Vida, assim identificados por
defenderem o direito à vida do embrião, e aqueles que defendem a livre determinação dos
sujeitos afetados pela gravidez. Ainda que nem sempre esteja verbalizada, encontra-se
presente a clássica dicotomia entre argumentos religiosos e laicos43. Os primeiros sustentam a
primazia da vida como valor supremo e sagrado, dádiva divina e os últimos advogam o direito
de escolha como direito humano fundamental, sustentado pelos princípios éticos relativos à
integridade Corporal correspondente ao direito à segurança e ao controle do próprio corpo; à
igualdade, já todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos, bem como a
39
MARTINS, Alaerte L. e MENDONÇA, Lígia C. Dossiê Aborto – Mortes Preveníveis e Evitáveis. Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e
Direitos Reprodutivos. Belo Horizonte, 2005.
40 BERQUÓ, Elza e LAGO, Tânia. O debate sobre o aborto no Brasil. Revista de Saúde Sexual e Reprodutiva IPAS BRASIL. Ed. 8 - Novembro, 2003. Rio de Janeiro, 2003
41 BERQUÓ, Elza e LAGO, Tânia. O debate sobre o aborto no Brasil. Revista de Saúde Sexual e Reprodutiva IPAS BRASIL. Ed. 8 - Novembro, 2003. Rio de Janeiro, 2003
42 BERQUÓ, Elza e LAGO, Tânia. O debate sobre o aborto no Brasil. Revista de Saúde Sexual e Reprodutiva IPAS BRASIL. Ed. 8 - Novembro, 2003. Rio de Janeiro, 2003
43 MORI, Maurizio. A moralidade do aborto – Sacralidade da vida e o novo papel da mulher. Brasília: Ed. UNB, 1997
18
igualdade de direitos entre mulheres e homens em relação a estes dois campos; à
individualidade, que implica no respeito à capacidade moral e legal das pessoas, ou seja,
direito à sua autodeterminação e, por fim, à diversidade, princípio referente ao respeito pelas
diferenças entre as mulheres, em termos de valores, cultura, orientação sexual, condição
familiar e de saúde e quaisquer outras condições44.
44
MARTINS, Alaerte L. e MENDONÇA, Lígia C. Dossiê Aborto – Mortes Preveníveis e Evitáveis. Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e
Direitos Reprodutivos. Belo Horizonte, 2005.
19
III – Princípios Constitucionais
20
normativo, exercendo função meramente supletória, a fim de garantir a plenitude do
ordenamento diante de lacunas que pudessem ameaçar o edifício jurídico, construído a partir
da crença no poder do conhecimento científico, no caso a Ciência Jurídica.
Baseada nos princípios do positivismo filosófico, o Direito passa a ter como meta a
busca pela objetividade científica, enfatizando, sobremaneira, a realidade observável em
detrimento às especulações filosóficas.
Forja-se, assim, a separação entre Direito e moral, passando aquele ser identificado
com a norma emanada pelo Estado, dotada de imperatividade e coercibilidade. Nesta
perspectiva, segundo Luiz Roberto Barroso:
45
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6ª Edição, atualizada e ampliada. São Paulo: Saraiva, 2004.
21
humana”.46
Pelo exposto acima, verifica-se que tanto as regras como os princípios devem ser
compreendidos como normas, sobretudo, por que ambos dizem o que deve ser, podendo,
portanto, ser formulados com a ajuda das expressões deônticas básicas da ordem, da
46
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6ª Edição, atualizada e ampliada. São Paulo: Saraiva, 2004.
47 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de Direito Administrativo. São Paulo: Ed. RT, 1980.
48 FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de Direitos – A honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. 2ª edição atualizada.
Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 2000.
22
permissão e da proibição.
A distinção entre regras e princípios pode ser formulada como uma diferenciação entre
dois tipos de normas, que se revelam, no tocante ao ordenamento jurídico, enquanto gênero
que apresenta aqueles como suas espécies.
Segundo a doutrina tradicional existem vários critérios para a distinção entre regras e
princípios, sendo que, de um modo geral, os critérios relativos à generalidade e abstração se
mostram os mais prevalentes. De acordo com estes critérios, os princípios são normas com
um grau de generalidade e abstração relativamente alto enquanto as regras, ao contrário,
seriam normas que apresentariam as mesmas características apenas com um nível
relativamente mais baixo.
Nesta perspectiva, os princípios se revelariam pilares do sistema jurídico dotados de
capacidade para lançar efeitos de sentido sobre diversas normas, balizando a interpretação do
conjunto normativo. Segundo Daniel Sarmento,
49
SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, 2003
50
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a sério. Ed. Martins Fontes: São Paulo, 2002
23
ordenamento jurídico.51
De acordo com Humberto Ávila52, a partir da evolução doutrinária, pode-se apontar
quatro critérios utilizados para distinguir princípios e regras, a saber, critérios do caráter
hipotético-condicional, do modo final de aplicação, do relacionamento normativo e do
fundamento axiológico.
O critério baseado no caráter hipotético-condicional apresenta como base o fato das
regras possuírem, de forma clara e precisa, uma hipótese e uma conseqüência que
predeterminam a decisão, devendo ser aplicadas ao modo se, então. Já os princípios
indicariam o fundamento a ser utilizado pelo intérprete da norma visando identificar a exata
norma a ser aplicada diante do caso concreto.
O caráter do modo final de aplicação se traduz no imperativo que indica ser a regra
aplicada mediante o modo absoluto “tudo ou nada” e os princípios de modo gradual, sendo
possível a aplicação “mais ou menos”.
Já o critério do relacionamento normativo apóia-se na identificação de conflitos
normativos reais ou aparentes, sendo os primeiros solucionáveis a partir da declaração de
invalidade de uma das regras aplicáveis ao caso ou a partir da criação de exceções,
previamente imaginadas e os segundos revelariam relacionamentos entre princípios
imbricáveis entre si, cuja solução se daria a partir de ponderação que atribui uma dimensão de
peso a cada um dos princípios colidentes.
Por último, o critério do fundamento axiológico que atribui este apenas aos princípios,
negando tal caráter às regras, no momento de tomada de decisão.
Segundo este autor, todos estes critérios apresentam qualidades importantes para a
Ciência do Direito, todavia, não devem ser utilizados sem crítica ou ponderações, sobretudo,
em função da finalidade precípua atribuída à distinção entre essas categorias normativas.
Conforme preleciona:
24
normativas permite minorar – eliminar, jamais – a necessidade
de fundamentação, pelo menos indicando o que deve ser
fundamentado.”53
53
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5ª edição, revista e ampliada. São Paulo: Ed. Malheiros, 2006.
54
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5ª edição, revista e ampliada. São Paulo: Ed. Malheiros, 2006.
25
narrados e ocorridos, outros valores relevantes que exigem a subversão a implementação da
conseqüência que, aparentemente, se impunha, sem que, com isso, exclua a regra colidente ou
se demande por regras de exceção previamente estabelecidas.
Vê-se, portanto, que não se aplica apenas aos princípios a aplicação de modo gradual,
já que ambas espécies normativas podem demandar a consideração de aspectos específicos,
abstratamente desconsiderados. Isso ocorre na medida em que normas que, aparentemente,
indicam modo incondicional de aplicação, podem apresentar, diante do caso concreto, razões
que exijam do aplicador ou intérprete lançar mão de elementos não cogitados pelo legislador
para a solução do problema apresentado, em uma autêntica operação de ponderação, no caso,
balanceamento de razões atinentes ao caso concreto.
Mais uma vez fica patente que a implementação de uma conseqüência predeterminada,
no caso das regras, só deverá ser vislumbrada após o término do processo de sua interpretação
diante do caso concreto, momento em que restarão demonstrados quais as conseqüências
serão implementadas. Na precisa lição de Ávila,
26
outro traço distintivo entre as duas espécies de normas. O conflito envolvendo regras se daria
abstratamente, sendo o operador do Direito instado a refletir acerca do caráter de validade de
uma ou de outra regra, independentemente da insurgência de qualquer dado de realidade posto
a demandar uma decisão. Já, em se tratando de princípios, uma potencial colisão se daria
apenas diante de determinado caso concreto, exigindo a aplicação de um princípio em
detrimento do outro, sem, contudo, impor a invalidade ou a exclusão daquele não aplicado
durante o processo de ponderação.
Segundo Ávila, este raciocínio não se mostra suficientemente adequado uma vez que,
contrariamente, as regras também poderiam sofrer sopesamento de razões de acordo com o
caso concreto, sem que se imponha, necessariamente, a invalidade daquela não aplicada.
Segundo este autor o caráter abstrato que se impinge à solução de conflitos entre regras “trata-
se uma qualidade contigente, não necessária”56.
Mesmo naqueles casos em que estão presentes uma regra e sua exceção, se faz
necessário um verdadeiro processo de ponderação de arrazoados e verificar , a partir das
razões mais pertinentes e adequadas, a aplicação da hipótese prevista na regra ou a sua
exceção. Este processo pode ocorrer, inclusive, diante de exceções não previstas no
ordenamento jurídico, mas que, em virtude do problema apresentado pelo dado de realidade,
se faz necessário um processo de valoração de razões, no qual se embatem argumentos e
contra-argumentos, axiologicamente sustentados, de modo a se chegar a melhor solução. Em
outros termos, incide, de forma clara, um verdadeiro processo de ponderação.
Uma possível tentativa de desconstrução desta lógica poderia se basear no
entendimento de que o processo apresentado não trata de exatamente de ponderação e sim de
interpretação normativa. Todavia, há de se salientar que, muito embora sejam conceitos
distintos, interpretação e ponderação não se estremam a ponto de se negar que ambos
traduzem, em última instância, balanceamento de argumentos.
Ademais, é sempre importante se ter em perspectiva que, seja qual for a espécie de
norma, sua qualificação enquanto princípio ou regra depende da colaboração constitutiva do
intérprete, uma vez que cabe a este a concretização do ordenamento jurídico diante do caso
concreto.
A plena e eficaz realização de uma norma depende da ação do operador do Direito que
deve interpretar os dispositivos legais de modo a explicitar seus significados de acordo com
os fins e valores consignados no texto constitucional, fundamento da ordem jurídica do país.
56
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5ª edição, revista e ampliada. São Paulo: Ed. Malheiros, 2006.
27
Trabalha-se, portanto, com a idéia central de que as espécies normativas não encerram
em si mesmas significados prontos e acabados que se oferecem à descrição do intérprete.
Este, diante da norma, reconstrói significados a partir do texto legal, que impõe limites e
condições à ação interpretativa empreendida, em uma operação que transcende a subsunção
entre conceitos prontos, absolutamente indissociada de seu processo de aplicação.
Ainda que determinada norma jurídica produza, de modo concreto, seus os efeitos a
partir do processo dinâmico de reconstrução do intérprete, não se deve afastar a idéia de que o
texto normativo se apresenta como ponto de partida para a produção de sentido seja da regra,
seja do princípio.
Não é por outra razão que a distinção entre as espécies normativas se mostram
importantes para a plena consecução do intento do operador do Direito frente a situações
fáticas que demandam respostas jurídicas.
De acordo com a Teoria dos Princípios esposada por Humberto Ávila, seriam duas as
principais funções atribuídas à distinção entre as espécies normativas. A primeira diria
respeito à possibilidade de antecipação das características da espécie proporcionando maior
facilidade ao intérprete em seu processo de reconstrução de sentido, tendo em vista a
existência de significados incorporados ao uso lingüístico corriqueiro de determinada
comunidade. A segunda se referiria à minimização do ônus de argumentação, reduzindo a
necessidade de fundamentação, sem eliminá-la, a partir da indicação da justificação obtida
pela antecipação distintiva anteriormente realizada57.
Para garantir a excelência da interpretação, buscando fluidez no processo, se faz
imprescindível distinguir o plano abstrato e preliminar de análise das normas, denominado
prima facie, do plano conclusivo de análise concreta, no qual todos os elementos e
significados do texto são levados em consideração para a produção de efeitos de sentido.
Trilhando o caminho orientado por tal raciocínio teórico é possível elaborar uma
proposta de distinção na qual as regras são entendidas como normas imediatamente
descritivas, que prescrevem e determinam comportamentos, estabelecendo obrigações,
permissões e proibições, nas quais encontramos correspondência entre a construção conceitual
e a construção conceitual da norma e da finalidade que lhe é intrínseca, portando a aspiração
de gerar uma solução específica para o conflito entre razões, contribuindo. Já os princípios
seriam normas imediatamente finalísticas que estabelecem um estado de coisas a ser
alcançado através da observância de comportamentos desejados, cuja interpretação e
57
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5ª edição, revista e ampliada. São Paulo: Ed. Malheiros, 2006.
28
aplicação decorrem do cotejo entre o que foi posto como fim e os efeitos produzidos pela
conduta havida como necessária, sem gerar, com isso, uma solução específica ao caso
concreto. Os princípios, portanto, contribuem para a decisão enquanto normas primariamente
complementares e preliminarmente parciais, enquanto as regras se apresentam como normas
preliminarmente decisivas e abarcantes.
Na balizada lição de Ávila, temos o seguinte conceito de regras e princípios:
29
lógico-formal, no qual sejam os princípios mais específicos
deduzidos axiomaticamente dos mais gerais. O que ocorre, na
verdade, é um procedimento dialético, no qual cada subprincípio
em que se desdobra o princípio original adiciona a estes novas
dimensões e possibilidades, subsistindo o princípio original no
papel de vetor exegético dos cânones mais específicos. Há um
‘esclarecimento recíproco’: o princípio ilumina-se através de
suas concretizações, as quais, por sua vez, só assumem seu
sentido pleno ao lume do princípio que as engendrou.” 59
59
SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, 2003
60 CANOTILHO Apud ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios Constitucionais. 2a. Tiragem. Porto Alegre : SAFE, 2003
61
ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios Constitucionais. 2a. Tiragem. Porto Alegre : SAFE, 2003
30
embora a aplicação prática seja discutível. Para ele, a única vantagem que tais agrupamentos
apresentam refere-se à possibilidade de aglutinação de princípios afins, revelando-os de forma
mais clara.
Sem dúvida, a efetividade dos princípios constitucionais independem da categoria em
que são descritos ou catalogados, especialmente quando se tem em perspectiva o que se
convencionou chamar, doutrinariamente, de neoconstitucionalismo, defendido por Luiz
Roberto Barroso como sendo um momento de ruptura paradigmática em que se observa, em
especial, o reconhecimento do caráter normativo da Constituição, associado ao
desenvolvimento de uma nova dogmática atinente à sua interpretação e a expansão da
jurisdição constitucional.
A partir do neoconstitucionalismo, derivado das transformações filosóficas já
mencionadas, pode-se afirmar que os princípios passaram a gozar do estatuto de normas
jurídicas aptas a gerar direitos subjetivos e a fundamentar decisões diante do caso concreto.
Estas decisões, sejam jurisdicionais, legislativas ou administrativas devem, imperativamente,
manter em seu horizonte os ditames dos princípios do ordenamento, em especial, os
princípios constitucionais, em virtude de sua supremacia hierárquica.
Segundo preleciona Luiz Roberto Barroso,
62
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navigandi,
Teresina, ano 9, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7547>. Acesso em: 10 agosto. 2006.
31
ordem jurídica do país em virtude de sua elevada carga axiológica e proximidade com o
conceito de justiça. Segundo Paulo Bonavides, citado por Sarmento, os princípios
corporificam “os valores supremos ao redor dos quais gravitam os direitos, as garantias e as
competências de uma sociedade constitucional.”63
Além disso, os princípios clara função supletiva, regulando, de forma imediata, o
comportamento de seus destinatários, nos casos em que inexistem normas constitucionais
específicas sobre determinadas matérias, da mesma forma que se presta a desempenhar papel
hermenêutico, configurando-se como autênticos fios-condutores para a adequada
compreensão e interpretação de normas constitucionais e infra-constitucionais, em razão dos
valores e interesses por eles abrigados.
Por certo, percebe-se que a atuação dos princípios se dá com maior força e clareza nos
casos denominados difíceis, ou seja, naqueles em que a decisão não encontra a regulação de
uma regra específica ou nos quais a decisão se mostra patentemente controvertida em razão de
interesses, regras ou princípios contra-postos, em franca colisão, exigindo do operador do
Direito a reconstrução de sentidos que possam ser compatibilizados com o ordenamento
jurídico como um todo.
Por ser o ordenamento jurídico pátrio um sistema aberto de regras e princípios, podem
ocorrer fenômenos de tensão entre eles. Em seu ápice encontra-se a Constituição Federal, o
produto resultante de um compromisso entre setores diferenciados e, por vezes, antagônicos
existentes na sociedade. O consenso fundamental responsável pelas normas positivadas como
constitucionais não possui o condão de neutralizá-los e nem poderia, tendo em vista o caráter
dinâmico, complexo e mutacional da sociedade na qual vivemos.
Desta forma, não raramente, conflitos entre normas ocorrem, sendo necessário que o
operador do Direito maneje técnicas adequadas para a solução do caso.
Tradicionalmente, no caso de conflito entre regras, costuma-se imaginar apenas duas
soluções possíveis, a saber, ou se introduz uma cláusula excepcionante ou, se isto não for
possível, opera-se a exclusão de uma delas com base em critérios estabelecidos por outras
normas existentes no próprio ordenamento, declarando uma das regras conflitantes inválida.
Todavia, como demonstrado acima, esses critérios de solução, embora mantenham vigência e
63
Bonavides, Paulo. apud SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, 2003
32
aplicação, já convivem com soluções que suportam hipóteses de manutenção da validade das
regras no universo normativo. Reafirma-se, aqui, a possibilidade da ocorrência de regras
conflitantes no plano fático, embora essas mesmas espécies normativas possam coexistir
harmonicamente em abstrato.
Quando o conflito envolve princípios, em geral, não há discussão sobre a dimensão da
validade desta espécie de norma, ou seja, não se trata de avaliar a pertinência de uma das
normas ao ordenamento, uma vez que sua validade já é pressuposta. Nesses casos, o método
utilizado para a sua solução, como já foi aventado em outras passagens do texto, é diferente
daquele usado para a solução de antinomias entre normas. Analisa-se qual princípio deverá
prevalecer na solução do caso concreto, sem se aventar ou exigir, a exclusão de nenhum deles,
que continuam, potencialmente, aptos a produzir efeitos.
Isso se deve em razão deles possuírem, além da dimensão da validade, a
dimensão da importância, do peso ou do valor. Assim, na análise da solução para o caso
concreto os princípios permitem o balanceamento de seu peso relativo de acordo com as
circunstâncias, podendo ser objeto de ponderação. Dito de outra forma, na hipótese de
conflito entre dois princípios ou entre os valores expressos por eles, deve-se levar em
consideração, para a solução do problema, o peso relativo que cada um apresenta, no plano
fático, de modo a possibilitar a eleição e a aplicação de um em detrimento do outro.
Porém, nem sempre a escolha de um determinado princípio ou grupo de princípios se
mostra tarefa simples, pois é sabido que não existe uma medida exata sobre sua maior ou
menor importância a ser atribuída a esta ou àquela norma. O que possibilita esta operação é
uma acurada análise das peculiaridades do caso concreto e de suas exigências e demandas, o
que sempre poderá ser objeto de controvérsias, uma vez que encontra-se em jogo interesses
contrapostos, passíveis de interpretações diversas tanto quanto possíveis.
Uma das principais funções do processo de ponderação colocado em curso no caso de
colisão de princípios, além, por certo, de oferecer uma resposta satisfatória à situação fática
que se impõe, é a manutenção da unidade constitucional, haja visto que a Constituição se
apresenta como um sistema orgânico, na qual cada elemento adquire sentido à luz dos demais.
A primeira tarefa que se apresenta ao operador do Direito diante de uma situação de
potencial colisão de princípios é a identificação dos cânones envolvidos de modo a se
verificar o que se convencionou denominar de topografia do conflito64. Esse momento busca
determinar tanto se a área de tutela do interesse perseguido pelo princípio se sobrepõe a outra
64 BIN, Roberto apud SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, 2003
33
norma quanto a sua extensão, além de verificar o espaço residual resta ao exercício de cada
direito posto em questão.
Cumprida esta etapa, sempre sob o lume das circunstâncias fáticas, o intérprete e
aplicador da norma deverá, no processo de cotejo entre os interesses conflitantes, verificar o
ponto de equilíbrio no qual a restrição imposta a um ou mais princípios concorrentes
importará no grau mínimo à sua convivência com aquele prevalente ao caso, pautando-se,
para tanto, em parâmetros racionais e controláveis cujo norte, via de regra, é ofertado pela
táboa de valores subjacentes à Constituição.
Para se levar a cabo a técnica de ponderação de princípios, de forma exitosa, faz-se
necessário a comparação do peso genérico atribuído a cada interesse colidente, tendo em vista
que este se mostra apenas indiciário do peso específico que cada um deles deverá assumir na
resolução do caso concreto, que somente poderá ser aquilatado em face do problema que
demanda a solução. Segundo nos ensina Daniel Sarmento,
Nota-se que está em questão uma intrincada trama cuja guia encontra-se assente no
princípio da proporcionalidade em sua tríplice dimensão – adequação, necessidade e
proporcionalidade em sentido estrito. Assim, a ponderação de interesses deve ter como norte,
de forma imperativa, a demonstração de que a restrição imposta a cada um dos princípios
preserva, dentro dos limites colocados pelo caso, a sobrevivência do outro princípio, sendo
menos gravosa possível ao interesse contraposto e capaz de gerar um benefício reconhecido
como hábil a compensar o sacrifício exigido.
Porém, a exigência preponderante e inafastável a ser observada pelo processo de
ponderação de interesses é garantia de proteção e promoção do princípio da dignidade da
pessoa humana, valor precípuo e norteador dos demais princípios que fundamentam a ordem
constitucional em vigência e dá sentido ao que se propõe ser um legítimo Estado Democrático
de Direito.
65 SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, 2003
34
IV - Limites e possibilidades da descriminalização do aborto no Brasil
66 Moreira, Luiz. Fundamentação do Direito em Habermas. 2a. edição revista e atualizada. Ed. Mandamentos: Belo Horizonte, 2002.
36
relacionamento Orkut, comunidade virtual afiliada ao Google, com o objetivo de ajudar seus
membros a criar novas amizades e manter relacionamentos, mantém diversas páginas que se
dedicam à esta discussão, nas quais se pode verificar a prevalência de termos que denotam,
com clareza, a demonização do outro e a desqualificação dos argumentos apresentados por
eles como estratégia de reafirmação de determinado ideário.
O que chama a atenção é inexistência de interação comunicativa entre os interlocutores
das diversas comunidades que se dedicam ao assunto, sobretudo frente a diversidade de
pensamento apresentada, caracterizando o referido espaço virtual como arena arquitetada para
o império do monólogo.
De acordo com o que nos ensina Marcelo Galuppo, apoiado na teoria habermasiana,
cabe à linguagem a função de produzir a integração social, uma vez que se perfaz como o
único meio idôneo com capacidade para coordenar legitimamente, os planos individuais de
ação. Para tanto, os seres falantes se apoiam em três tipos pretensões de validade, a saber,
pretensão de verdade, de veracidade e de correção normativa. Segundo Galuppo,
67 GALUPPO, Marcelo C. Igualdade e Diferença – Estado Democrático de Direito a partir do pensamento de Habermas. Ed. Mandamentos: Belo Horizonte, 2002
37
discursiva68.
No entanto, não raramente, esta estrutura básica do processo comunicativo não se
mostra suficiente como meio garantidor do processo de integração social, surgindo o dissenso
ou a necessidade de se legitimar a pretensão levantada, que se opera através da apresentação
do melhor argumento, racionalmente constituído e desta forma aceito por seus destinatários.
Como já foi apontado, o sucesso deste processo depende, fundamentalmente, de
acordos intersubjetivos entre interlocutores dispostos a encetar uma efetiva relação dialógica,
na qual verdades são, a princípio, provisórias, sempre dependentes do melhor argumento a ser
potencialmente construído a partir do próximo ato de fala.
Todavia, ao se operar com uma verdade totalizante e absoluta, rompe-se, de forma
radical, com a possibilidade de construção de um espaço privilegiado de discussão, apto a
produzir novos consensos ou posicionamentos, o que se mostra incompatível com um Estado
Democrático de Direito, esteio de uma sociedade complexa e plural como a brasileira.
Ronald Dworkin clarifica essa questão ao apresentar uma distinção bastante didática
com relação às duas possibilidades de decodificar o eixo central da idéia que sustenta a
argumentação pró-vida, objetando quanto a viabilidade de descriminalização do aborto.69
Para este autor, a primeira objeção é denominada de derivativa por implicar na
pressuposição de direitos e interesses dos quais o feto seria titular, compartilhando-os com
todos os demais seres humanos. Para esta perspectiva, o feto seria portador de direitos e
interesses desde a concepção, estando aí incluído o direito de permanecer vivo. O aborto
materializaria a violação do direito à vida sendo errado e, portanto, punível por si.
A segunda objeção, denominada por Dworkin de independente, aponta para o valor
intrínseco e inato da vida humana e considera o aborto errado, por princípio, em razão deste
ato desconsiderar e insultar um valor sagrado que não depende de nenhum direito ou interesse
particular. A vida humana é uma dádiva divina sobre a qual homens e mulheres não possuem
titularidade imediata, já que pertence a Deus, que a ofertou e só Ele pode retirar.
Observa-se que a chamada objeção independente, proposta por Dworkin, encerra em si
mesma uma verdade absoluta na medida em que sacraliza o valor da vida humana,
endereçando ao Estado o dever de tutelá-la porque assim dispõe as leis divinas. Dessa forma,
toda e qualquer argumentação contrária à objeção posta se mostra incapaz de produzir efeitos
de sentido, já que contra a Deus os seres humanos não possuem força e, muito menos,
68 GALUPPO, Marcelo C. Igualdade e Diferença – Estado Democrático de Direito a partir do pensamento de Habermas. Ed. Mandamentos: Belo Horizonte, 2002
69
DWORKIN, Ronald. Domínio da vida – Aborto, eutanásia e liberdades individuais. Ed. Martins Fontes: São Paulo, 2003.
38
legitimidade para contestação.
Não obstante a rejeição à idéia da interrupção voluntária da gravidez ser comum a
ambas objeções apresentadas, podendo, inclusive, compartilhar do mesmo grau de repulsa e
desejo de repressão legal àquelas pessoas que, por qualquer razão, optem pelo aborto, é
patente a diferença entre elas, sobretudo, na forma de enfrentamento racional.
Enquanto, como já visto, frente a objeção independente não cabe recurso
argumentativo, diante da objeção derivativa abre-se um leque de possibilidades, ensejando,
inclusive, a construção de solução jurídica racional para a controvérsia70, idônea a provocar a
adesão de todos sem que haja presença de insultos e humilhações a nenhum grupo social.
Tomando como base a premissa de que o debate sobre o aborto deve, prioritariamente,
se desenrolar em um espaço público entre sujeitos titulares de direitos iguais, marcado por
uma racionalidade compartilhada que exclui aportes à argumentos transcendentais, faz-se
necessário a explicitação dos princípios atinentes à questão, visando construir o que Dworkin
aponta como sendo uma solução jurídica racional para a controvérsia.
70
DWORKIN, Ronald. Domínio da vida – Aborto, eutanásia e liberdades individuais. Ed. Martins Fontes: São Paulo, 2003.
39
No entanto, cumpre ressaltar que na história do constitucionalismo brasileiro este
direito somente alcança reconhecimento no texto constitucional de 1946, pois, até então, a
vida humana não ostentava destaque nas Constituições de 1824 a 193771, demonstrando o
quão pode ser relativo e historicamente determinado a valoração de direitos.
Sem embargo do correto entendimento apresentado com relação ao valor atribuído à
vida, sobretudo em razão de ser tal direito substrato para a fruição de todos os demais direitos
garantidos pela legislação pátria, não parece ser pacífico a sua utilização para fins do presente
debate.
Para José Afonso da Silva os constituintes de 1988, tendo em vista o caráter
controvertido do tema aborto e as tensões que envolveram o debate durante a elaboração do
texto, optaram por não densificar uma regra capaz de dirimir a questão em grau hierárquico
superior.72
Segundo este autor, três tendências guiaram o debate no seio da Assembléia
Constituinte. A primeira impunha a garantia do direito a vida desde a concepção, o que
implicava na absoluta impossibilidade de descriminalização do aborto. Em sentido inverso, a
outra vertente propunha o reconhecimento do estatuto de sujeito de direito a partir do
nascimento com vida, cabendo à mulher a responsabilidade da decisão. A terceira entendia
que não cabia à Constituição tomar partido sobre a questão.
Vê-se que, ao final, nenhuma das três posições prevaleceu de forma pura, embora não
se possa depreender que o texto constitucional tenha sido de todo omisso sobre o tema, uma
vez que deixou margem para interpretações diversas. Em termos práticos, tudo indica que os
constituintes deixaram para a legislação ordinária, em especial, a penal, enfrentar o tema,
sobretudo após a definição acerca do momento inicial da vida humana.
Muito de discute sobre o momento exato ao qual se poderia atribuir o termo inicial da
vida humana, uma vez que a resposta a esta interrogação apresentaria o condão de esclarecer a
partir de que momento este valor, considerado supremo, passaria a ser protegido pelo Direito.
Como este tema é afeito a diversas áreas de conhecimento e apresenta alto grau de
complexidade em razão das interfaces construídas pelos variados ramos da Ciência que se
debruçam sobre ele, não existe um consenso firmado com relação ao que se costuma
denominar unidade primeira da vida humana, sendo possível encontrar estudiosos que
defendem o início da vida a partir da fertilização do óvulo pelo espermatozóide, considerando
a concepção como marco inicial da experiência humana, bem como aqueles que demarcam
71
SOUZA Silva, José Carlos. Direito à Vida. Ed. Safe: Porto Alegre: 2006
72
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional. 22a edição. Malheiros Editores: São Paulo, 2003
40
momentos bem diversos, ainda que também utilizando-se de elementos biomédicos, para
propor quando a vida humana pode ser assim definida.
No campo do Direito a questão também é controvertida, não obstante os esforços
empreendidos para se encontrar uma resposta que possa vir satisfazer as pretensões jurídicas.
Muitos autores, baseados nos conhecimentos biomédicos, identificam o início da vida a partir
da concepção, alegando ser o embrião resultante do encontro de células humanas vivas, o que
daria a ele a mesma dimensão desde sempre.73
Outra vertente de pensamento, ainda apoiada em critérios eminentemente biológicos,
tende a atribuir o início da vida um pouco mais tardiamente, apoiando-se na constatação de
que a viabilidade embrionária depende da estreita interação entre mãe e embrião para que a
vida deste possa se estabelecer, o que ocorre após a implantação do embrião intra-útero74.
Correntes mais contemporâneas apresentam proposta distinta para determinar o início
da vida humana, chegando algumas, no campo do bioética, a defender a tese de que a vida
começa a partir da aceitação da mulher que deseja e decide ser mãe, estabelecendo, assim, um
diálogo mais próximo com as ciências psicossociais, em particular com a psicanálise75.
Para outros juristas, em virtude da autonomia científica ostentada pelo Direito, os
critérios para determinação do início da vida deveria ser forjada a partir de instrumental mais
próprio a esta ciência, mesmo que não se prescinda de conhecimento transdisciplinares. Nesse
sentido, utiliza-se como critério para definição do termo inicial da vida, simetricamente, os
mesmo indicadores legais que apontam para o seu término, a saber, o início e cessação dos
estímulos cerebrais autônomos. Esta, ao que parece, é a posição que vem tomando corpo e
atraindo maior adesão, talvez em razão da maior densidade do argumento racional que a
sustenta se comparado aos demais que muito se aproximam às posições transcendentais e
sagradas, como pode se depreender do posicionamento defendido por Souza Silva:
“Os filósofos, cientistas e religiosos têm suas convicções
sobre a vida e nos apresentam fórmulas, técnicas, métodos e
crenças para explicá-las. Ainda assim ela se impõe e exige mais
e mais estudos, exames, observações constantes, porque ela é
criação de Deus.”76
Todavia, esta questão permanece em aberto, uma vez que, tecnicamente, o Direito não
avalia o início da vida, apenas reconhecendo no embrião a pontencialidade para tornar-se
humano e, portanto, tutelando os direitos do nascituro, mesmo que reconheça o início da
73
SOUZA Silva, José Carlos. Direito à Vida. Ed. Safe: Porto Alegre: 2006
74
MOISÉS, Elaine Christine Dantas et al. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. Ribeirão Preto. São Paulo: FUNPEC Editora, 2005.
75 KOTTOW, Miguel Apud MOISÉS, Elaine Christine Dantas et al. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. Ribeirão Preto. São Paulo: FUNPEC Editora, 2005.
76
SOUZA Silva, José Carlos. Direito à Vida. Ed. Safe: Porto Alegre: 2006
41
personalidade civil após o nascimento com vida, conforme dispõe o Código Civil Brasileiro:
É cediço que a lei não comporta palavras inúteis e a partir desta constatação somos
levados a questionar a interpretação jurídica deste dispositivo legal que insiste em expandir a
significação do termo vida para um momento anterior ao nascimento. Fica evidente que o
legislador ordinário reservou esta terminologia para a pessoa humana, entendida como sendo
o sujeito nascido, identificando o nascituro com o que de fato ele apresenta ser – uma
potencialidade.
Na esfera penal podemos perceber fenômeno similar. Não obstante a inclusão do
aborto no capítulo de crimes contra a vida, não resta nenhuma dúvida com relação ao estatuto
deste tipo penal que é claramente diferido da espécie homicídio. Neste o bem protegido é a
pessoa humana, enquanto naquele tutela-se o embrião ou o feto, denotando a diferença
ontológica apontada pelo legislador. Mais adiante será tratado com mais vagar sobre esta
questão.
Alheios a esta questão, constitucionalistas de diversas cepas encerram a discussão
inadmitindo, peremptoriamente, a possibilidade de interrupção voluntária da gravidez tendo
em perspectiva o caráter absoluto e prevalente do direito à vida consignado pela Constituição.
José Afonso da Silva, embora considere que a Constituição não tenha se posicionado
de forma clara e precisa sobre o tema, admite que o texto final tende para a proibição do
aborto, explicitando que, pessoalmente, vislumbra, no feto, a existência de vida humana.77
José Luiz Quadros de Magalhães, de forma mais categórica, garante que uma ordem
jurídica baseada nos Direitos Humanos se mostra incompatível com a possibilidade legal de
práticas permissivas aptas a retirar a vida de outrem. Nesse sentido afirma:
“O direito à vida, pela sua dimensão, deve ser um direito que,
em nenhuma hipótese, possa ser retirado. Nesse aspecto não se
pode admitir o aborto, pois tem a mulher direito a seu corpo,
mas não à vida que ainda depende de seu corpo. Não se pode
legalizar o aborto com a finalidade de se atenuarem problemas
sociais.”78
77 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional. 22a edição. Malheiros Editores: São Paulo, 2003
78 MAGALHAẽS. José Luiz Quadros. Direito Constitucional. Tomo I. 2a. Edição. Editora Mandamentos: Belo Horizonte, 2002
42
a proteção a vida como um direito fundamental abarca tanto a vida extra-uterina como a intra-
uterina, pois esta qualifica-se com verdadeira expectativa de vida exterior que, sem a devida
proteção, não seria ampla e plena, tornando toda e qualquer medida de tutela posterior inócua.
De acordo com o pensamento deste autor:
79
MORAES, Alexandre. Direitos Humanos Fundamentais – Teoria Geral. 6a. Edição. Editora Atlas: São Paulo, 2005
43
Se levarmos em consideração que os autores citados apresentam acentuada inclinação
à reflexão acerca da Teoria Constitucional a partir de uma perspectiva principiológica, causa
surpresa a opção pela legislação penal como resposta satisfatória à uma questão complexa
como é o aborto.
Se atentarmos para os fundamentos que sustentam as hipóteses permissivas de aborto
previstas pelo art. 128 do Código penal nos deparamos com um conflito de difícil manejo, já
que em ambos os casos a vida do nascituro é preterida seja em virtude da valoração da vida da
gestante (art. 128, I), seja da integridade moral e psicológica da mulher que sofreu uma
violência sexual (art. 128, II).
Ao se trabalhar com a lógica do valor absoluto e sagrado da vida humana, torna-se
delicado propor a mensuração do valor relativo atribuído a vida do feto, cotejá-lo com o valor
da vida da gestante e se decidir por esta última.
Nos casos do aborto terapêutico pode-se alegar a incidência de estado de necessidade,
resolvendo-se o conflito sem que haja, aparentemente, desdobramentos éticos de maior
gravidade. Opta-se por salvar a gestante operando com o argumento de se tratar de uma vida
já estabelecida, capaz, inclusive, de gerar outros seres, enquanto o feto porta a potencialidade
de vir a se tornar um ser humano em sua forma plena.
Não seria outro o entendimento com relação ao denominado aborto sentimental,
entretanto, nesse caso, ainda estaria presente um agravante, já que não se configura o conflito
entre duas vidas e sim entre a existência do feto, fruto de um ato de violência sexual e a
integridade moral e psicológica da mulher que, submetida à agressão, não deseja a gestação.
Se na primeira hipótese permissiva temos dois valores que, hipoteticamente, se
equivalem, na segunda trata-se do sacrifício de uma vida em nome de um bem que, a rigor,
encontra-se em uma escala hierarquicamente inferior, ainda que relevante, assim disposto seja
a partir de avaliação jurídica, seja de avaliação filosófica, ética ou moral.
No entanto, tendo em vista a sacralidade atribuída à vida humana, fundada na crença
que esta vida é uma dádiva divina, cuja titularidade pertence a Deus, não encontramos
sustentação moral para justificar o sacrifício do bem tutelado que é a vida do feto sem que se
rompa com o dogma acima referido.
Neste sentido, nenhuma das duas hipóteses previstas pelo Código Penal encontrariam
a necessária fundamentação moral para serem acatadas como possibilidades legítimas, a não
ser, por certo, o fato de terem sido positivadas como normas pelo Direito.
Ao aborto terapêutico, mesmo ancorado por instituto penal reconhecido, poderia-se
endereçar a questão da autoridade para a tomada de decisão sobre qual deverá ser a vida
44
prevalente, uma vez que, ao menos a princípio, não há de se pensar em uma escala de
mensuração do grau de importância a ser atribuída a cada uma delas.
Corroborando a dúvida acima colocada encontra-se a definição de vida humana obtida
durante o Primeiro Simpósio Internacional sobre o Aborto, realizado nos Estados Unidos da
América, “as alterações que ocorrem entre a implantação [do óvulo fecundado], um embrião
de seis semanas, um feto de seis meses, um bebê de uma semana ou um adulto, são meros
estados de desenvolvimento e maturação”.80
No mesmo sentido, parece-nos relevante o entendimento do Prêmio Nobel de
Medicina e Fisiologia que declarou,
Pelo exposto acima, salvo melhor juízo, a descriminalização do aborto não encontra
80
MOISÉS, Elaine Christine Dantas et al. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. Ribeirão Preto. São Paulo: FUNPEC Editora, 2005.
81 JACOB, François apud Moisés, Elaine Christine Dantas et al. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. Ribeirão Preto. São Paulo: FUNPEC Editora, 2005
.
82
SPOLIDORO, Luiz Claudio Amerise. O aborto e sua antijuridicidade. São Paulo, Lejus:1997
45
óbice em sede constitucional, em particular, tendo como base a violação dos Direitos
Humanos, como sugere José Luiz Quadros de Magalhães83 ou o atentado a direitos e garantias
positivados na Constituição, de acordo com José Afonso da Silva84 e Alexandre de Moraes85
ao se referirem ao direito à vida. Portanto, caso haja algum impedimento à proposta de
alteração do Código Penal para a matéria, este deverá ser buscado e fundamentado em outros
princípios ou dispositivos legais.
Vale ressaltar, porém que, inobstante este entendimento e afrontando dados de
realidade, opera-se, ainda no Brasil, com o mito da proteção jurídica da vida desde a
concepção. Mesmo sendo cediço que a Constituição vigente não recepcionou tal doutrina,
posto que deixou de fazê-lo expressamente, como foi referido acima, vem tomando forma o
discurso que assevera esta proteção a partir da adesão do Brasil ao Pacto de São José da Costa
Rica, já que os seus termos teriam sido recepcionados e elevados à condição análoga de
emenda constitucional.
Afirma-se que, como o Estado Brasileiro é signatário da Convenção Americana de
Direitos Humanos, a hipótese de descriminalização do aborto encontraria obstáculo legal
tendo em vista o artigo 4o do referido Pacto que estabelece que “toda pessoa tem direito que
se repeite a sua vida. Este direito estará protegido pela lei e, em geral, a partir do momento da
concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.” (grifos do autor)
A insistência para a adesão a este entendimento esbarra em barreiras que consideramos
intransponíveis.
A primeira diz respeito à interpretação do artigo em análise. O texto da Convenção,
ainda que expresse a proteção à vida desde o momento da concepção, não opera com um
conceito absoluto, bastando, para tanto, atentar para a construção do dispositivo para perceber
a utilização da expressão “em geral”, o que denota, nas línguas de radical latino, a
possibilidade de aplicação de regras de exceção. Desta feita, tanto as hipóteses de
abortamento legal, já previstas no ordenamento pátrio, como outras que poderão ser criadas,
estão sujeitas à regra excepcional, bastando, para isto, a produção de uma consistente
fundamentação, como requer toda e qualquer decisão ou elaboração legislativa.86
A segunda barreira, ainda mais sólida e de inquestionável força normativa, aponta para
a decisão da Comissão Inter-americana de Direitos Humanos (CIDH), órgão competente para
interpretar o Pacto de São José que, através da Resolução 23/81 de 06 de março de 1981,
83
MAGALHÃES. José Luiz Quadros. Direito Constitucional. Tomo I. 2a. Edição. Editora Mandamentos: Belo Horizonte, 2002
84
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional. 22a edição. Malheiros Editores: São Paulo, 2003
85
MORAES, Alexandre. Direitos Humanos Fundamentais – Teoria Geral. 6a. Edição. Editora Atlas: São Paulo, 2005
86 FRANCO, Alberto Silva. Algumas questões sobre o aborto. Revista do Instituto de Ciências Penais (ICP), V.I, Belo Horizonte, 2006
46
deliberou não ser o aborto uma prática violadora do artigo 4o do referido Pacto, baseado no
processo histórico de construção da Convenção Americana de Direitos humanos. Ficou
evidenciado que a proteção à vida desde a concepção não foi assegurada como um a regra
absoluta, justamente para não conflitar com as legislações nacionais que garantiam o direito
ao aborto, fosse este amplo ou parcial, como é o caso brasileiro.87
Desta forma, fica claro que inexiste, no Brasil, obstáculos à descriminalização do
aborto fundados nos argumentos acima apresentados, o que torna o país hábil a refletir sobre
esta questão e se tornar adimplente frente aos seus compromissos assumidos nas diversas
Conferências da Organização das Nações Unidas (Cairo, 1994 e Beijing, 1995), garantindo,
de forma efetiva a proteção integral dos direitos humanos das mulheres.
Porém, no plano do Direito, se faz necessário buscar uma fundamentação para além do
campo sentimental e tal tarefa se mostra efetiva ancorada na máxima kantiana, segundo a qual
o homem deve sempre ser tratado como um fim em si mesmo e nunca como um meio. De
87 LOREA, Roberto Arriada. Aborto e Direitos Humanos na América Latina – Desconstruindo o mito da proteção da vida desde a concepção. Disponível em
www.clam.org.br. Acesso 15 de abril de 2007
88 ROTHEMBURG, Walter Claudius. Princípios Constitucionais. Porto Alegre: SAFE, 1999
47
certo modo, foi a partir das proposições de Kant que se reafirma a concepção da dignidade da
pessoa humana articulada com a autonomia ética do sujeito, sendo esta considerada
fundamento daquela.
O desenho deste entendimento acerca da dignidade da pessoa humana já vinha se
tornando visível através do pensamento de Samuel Pufendorf, para quem a dignidade da
pessoa humana era compreendida como sendo a liberdade do ser humano de optar de acordo
com a sua razão e agir conforme o seu entendimento e sua opção, característica que deveria
ser, mesmo sob a égide do poder absoluto, observada e respeitada.89
No decorrer da história, vários contrapontos teóricos e filosóficos foram apresentados
a esta formulação sobre dignidade da pessoa humana, especialmente aqueles que atacavam a
idéia ontológica vinculada ao conceito e que obtiveram significativa adesão, como foi o caso
de Hegel. Todavia, Kant permanece sendo o mais aclamado, mesmo não sendo o único,
expoente da concepção filosófica e secularizada de dignidade até a contemporaneidade,
conforme pode ser depreendida da lição do publicista e Magistrado germânico, Dieter Grimm
ao sustentar que a dignidade, enquanto condição de valor intrínseco do ser humano, gera para
o sujeito o direito de decidir de forma autônoma sobre os seus projetos existenciais e
felicidade.90
Nesse diapasão, fica evidenciado que a concepção de dignidade aqui trabalhada aponta
para a vedação da instrumentalização humana, o que implica na proibição reiterada da
utilização do outro apenas como meio para se alcançar determinada finalidade. Assim sendo,
classifica-se como uma autêntica violação da dignidade a conduta ou a intenção de coisificar
o outro, caracterizando sua completa e egoística disponibilização.
Ao longo do tempo permanece, sem que seja alvo de significativas críticas, a
constatação de que uma ordem constitucional que tem na dignidade da pessoa humana seu
fundamento, “parte do pressuposto de que o homem, em virtude tão-somente de sua condição
humana e independentemente de qualquer outra circunstância, é titular de direitos que devem
ser reconhecidos e respeitados por seus semelhantes e pelo Estado”.91
Assim compreendido, o ser humano é apontado como sendo o valor-fonte do
ordenamento jurídico, sendo tarefa primordial do Estado Democrático de Direito a defesa e a
promoção de sua dignidade, conforme lição de Miguel Reale.92
89 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. 4ª edição. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2006.
90 GRIMM, Dieter apud Sarlet, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. 4ª edição. Porto Alegre: Ed. Livraria do
Advogado, 2006.
91 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. 4ª edição. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2006.
92 REALE, Miguel apud SARMENTO, Daniel. Ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, 2003.
48
Não obstante os inúmeros esforços doutrinários e jurisprudenciais para estabelecer
uma noção jurídica de dignidade, não se conseguiu construir uma definição genérica e
abstrata consensualmente aceita, embora não se discuta o seu estatuto jurídico. Talvez esse
objetivo seja de fato inalcançável, tendo em vista se tratar de um conceito em permanente
processo de construção e desenvolvimento, que demanda acurada atenção ao plurarismo e
diversidade que marca as sociedades contemporâneas.
Mesmo diante de toda dificuldade para elaborar um conceito claro que expresse o
caráter multidimensional da dignidade da pessoa humana, Ingo Sarlet propõe o seguinte
enunciado:
“[Temos por dignidade da pessoa humana] a qualidade
intríseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz
merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e
da comunidade, implicando, nesse sentido, um complexo de direitos e
deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e
qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe
garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável,
além de propiciar e promover a sua participação ativa e co-
responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão
com os demais seres humanos”.93
93 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. 4ª edição. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2006.
94 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. 4ª edição. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2006.
49
é sem razão que a Constituição de 1988 formula em seu artigo primeiro, como fundamento da
República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana. Segundo Kurt Bayertz, citado
por Ingo Sarlet, que a dignidade da pessoa humana apresenta como escopo o indivíduo de
modo a se evitar a possibilidade do sacrifício da dignidade da pessoa, singular, em nome da
dignidade humana como bem de toda humanidade ou em sua dimensão transindividual.95
Para Sarlet, a dignidade da pessoa humana apresenta-se como limite e tarefa dos
poderes estatais, bem como da comunidade em geral. Como limite, a dignidade surge como
algo que pertence a cada um e não pode ser alienado ou perdido, pois, nessas circunstâncias
não haveria mais limites a ser respeitado. Apresenta-se, aí, o elemento fixo e imutável da
dignidade. Como tarefa, o conceito reclama a proteção e promoção, de modo a poder ser
garantido, de forma plena, a sua fruição, contando para tanto com a ação concorrente do
Estado e da comunidade em geral, uma vez que o ser humano, por si só, isoladamente, não se
mostra capaz de suprir todas as suas necessidades e aspirações.96
Para a concreta realização do compromisso de proteção e promoção da dignidade da
pessoa humana torna-se inafastável a noção de uma igual dignidade de todas as pessoas,
fundada na participação ativa de todos na construção e manutenção de um espaço coletivo
capaz de reconhecer, bem como proteger, o conjunto de direitos e liberdades indispensáveis à
vida de seus membros. Surge, desse modo, de forma inequívoca, a necessidade de uma
formação de compromisso baseada no respeito ao outro e, por via de conseqüência, respeito à
diversidade e a pluralidade existente no seio da sociedade.
Alexandre de Moraes, ressalta que o dever fundamental de tratamento igualitário dos
próprios semelhantes constitui um dos elementos essenciais do conceito de dignidade da
pessoa humana, sem o qual se põe em risco o edifício social, já que configura-se pela
exigência do indivíduo reconhecer e respeitar a dignidade de seu igual da mesma forma que a
Constituição impõe que a sua seja respeitada. Para este autor, este enunciado resume-se a três
princípios do direito romano “honestere vivere (viver honestamente), alterum non laedere
(não prejudique ninguém) e suum cuique tribuere (dê a cada um o que é devido)”.97
Esta dimensão relacional se mostra essencial para se romper com a concepção
orgânico-biológica de dignidade, na medida em que aponta para seu lastro histórico e cultural,
da mesma forma que afirma, claramente, que a dignidade da pessoa humana não pode ser
destacada de uma comunidade concreta e determinada, onde se manifesta e é reconhecida.
95
KURT Bayertz apud Sarlet, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. idem
96 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. 4ª edição. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2006.
97
MORAES, Alexandre. Direitos Humanos Fundamentais – teoria geral. 6a. edição. São Paulo: Ed Atlas, 2005
50
Frente ao exposto, ainda que de forma concisa e sem pretensão de esgotar o tema,
percebe-se a relevância do princípio da dignidade da pessoa humana para a ampliação da
discussão sobre o aborto.
Historicamente o tema aborto esteve atrelado à discussão sobre a autonomia da
mulher, embora nem sempre a atenção dos envolvidos no debate tivesse se deslocado para
este ponto, conforme já mencionamos acima. De modo geral, as mulheres que advogam pelo
direito ao seu próprio corpo e pela livre decisão sobre a maternidade são taxadas de 'perversas'
e egoístas, já que rompem com o previsível destino que a natureza lhes reservou e optam por
negar o pleno desenvolvimento de uma nova vida que depende delas para se realizar.
Tal argumentação, a princípio, ostenta certa lógica e não se mostra, propriamente,
carente de sentido. Sem dúvida, de acordo com a regras da natureza, cabe à fêmea de todas as
espécies animais a gestação, de forma mediata ou imediata, de um novo ser e, via de regra, o
papel da maternagem. Contudo, também é sabido que, não obstante a sua origem animal, o ser
humano se distancia das outras espécies em virtude de atributos que lhes são próprios, dentre
eles, em especial, apontamos a razão e a linguagem. Tais atributos possibilitaram ao ser
humano a construção do edifício cultural que o abriga desde do momento em que foi capaz de
se erguer e caminhar ereto.
A partir da trilha solitária empreendida pelo ser humano que o separou e distinguiu de
seus antepassados biológicos, dos mais remotos aos mais próximos primatas, a natureza
deixou de impor a ele um destino único, cedendo espaço para criações e novas possibilidades
de estar no mundo. Desde então não se pode mais dizer acerca de um mundo natural, pois o
ser humano, ainda que provindo da natureza, assumiu seu estatuto de ser social, determinado
culturalmente.
Nessa perspectiva, impor à mulher uma gestação fundamentada, exclusivamente, em
seu suposto destino biológico, constitui uma evidente conduta instrumental tendente a
transformá-la em um objeto cuja função se perfaz no atendimento das expectativas distintas
e, muitas vezes, incompatíveis às suas.
Nesse ponto duas questões se impõem de forma inescapável àqueles que estão
dispostos a enfrentar o debate de forma racional e que revelam a interface do princípio da
dignidade humana com o princípio da igualdade, este também previsto de forma transparente
no art. 5o, Caput, da Constituição Federal.
A primeira questão diz respeito ao papel do homem no projeto reprodutivo humano.
Teoricamente, segundo nos informa a biologia, ao macho cabe fecundar a fêmea e, via de
regra, prover os seus rebentos, garantindo-lhes a sobrevivência, de modo a garantir a
51
perpetuação da espécie.
Mais do que o imperativo natural endereçado ao macho da espécie, no caso do
homem, têm-se, ainda, a expectativa da formação do que foi positivado como sendo a célula
nuclear da sociedade, ou seja, a família, constituída através da união entre homem e mulher
por meio do casamento ou união estável, como disciplina o Código Civil Brasileiro.
Todavia, esta expectativa direcionada à conduta masculina se mostra, comumente,
frustrada e, de certa maneira, tolerada, além, por certo, de nunca ensejar criminalização. Ao
homem é facultado a escolha entre formar uma família, prover o sustento da criança sem nem
ao menos construir um vínculo afetivo com ela, ou apenas, abandonar suas parceiras, sem
sequer tomar conhecimento do produto de sua relação sexual.
Não nos parece ser essa ampla margem de escolha masculina a melhor tradução do
que a Constituição aponta como sendo paternidade responsável, um dos elementos essenciais
do dispositivo que compõe o Capítulo VII – Da Família, da Criança, do Adolescente e do
Idoso e que trata sobre o planejamento familiar, in verbis:
52
intenção, legítima, de se proteger, resultando desta incapacidade muitas vezes a gravidez
indesejada. Naturalmente, as mulheres não engravidam sozinhas, mas a criminalização do
aborto isenta os homens de responsabilidade. Isto significa desrespeito aos princípios de
igualdade entre homens e mulheres. O aborto é um procedimento médico que responde a uma
necessidade de saúde específica das mulheres. Ao negar este acesso, os Estados infringem o
princípio de não discriminação em razão do gênero.
Ao fim e ao cabo, podemos chegar a conclusão de que criminalização sistemática do
aborto é uma estratégia moral e legal de controle da sexualidade das mulheres, já que,
inquestionavelmente, apenas elas podem engravidar nas relações sexuais. Ao se observar que
em vários países, como no Brasil, o aborto é permitido no caso do estupro confirma-se este
traço de controle. Na origem, esta exceção não tinha como objetivo precípuo proteger a
integridade das mulheres, mas evitar o nascimento de uma criança cuja existência poderia
ameaçar a “honra” e o patrimônio de seus pais, maridos e irmãos. Nesse sentido, afirma
Maria Berenice Dias:
“... Por não ter como deixar de ceder à tendência de prestigiar a paz
e o patrimônio familiar, o legislador também admitiu o aborto quando
a gravidez resultasse do crime de estupro. Tal exceção visa permitir
que não integre a família uma pessoa que não descenda do seu chefe.
É que a lei civil presume que o marido de uma mulher casada é o pai
de seu filho. Assim, a gravidez, mesmo decorrente de violência sexual,
faz com que o filho do estuprador seja reconhecido como filho do
marido da vítima. Essa é a justificativa para a possibilidade legal do
chamado aborto sentimental. Apesar do nome do nome com que foi
batizado o aborto decorrente de estupro, a preocupação nunca foi
com o sentimento da vítima, mais serve para impedir que um bastardo
se torne herdeiro do patrimônio familiar.”99
99 Dias, Maria Berenice. Aborto é crime? In: Revista Del Rey Jurídica. Ano 8, número 16, p. 63 Belo Horizonte, 2006
53
mulheres que o podem realizar em condições seguras nas clínicas
especializadas e, também, por aquelas que não dispõem dessas
mesmas condições, mas assim mesmo o fazem e o pagam, segundo
suas possibilidades, expondo-se às seqüelas e riscos de vida devido às
condições inseguras. Para as negras e as pobres, em geral, restam
seqüelas definitivas ou a morte, às quais o Estado brasileiro assiste de
forma indiferente.”100
100 CARNEIRO, apud MARTINS, Alaerte L. e MENDONÇA, Lígia C. Dossiê Aborto – Mortes Preveníveis e Evitáveis. Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos
Sexuais e Direitos Reprodutivos. Belo Horizonte, 2005.
101 KARAM, Maria Lúcia. Aborto: Dircursos Sediosos. Disponível em http://www.advocaci.org.br/artig_10.htm. Acesso 13 de setembro de 2006
54
informações e recursos financeiros, incide ainda a vulnerabilidade às denúncias, punições,
humilhações e abusos quando recorrem aos serviços públicos de saúde com abortamento
incompleto. Por medo, muitas evitam chegar aos serviços. Segundo dados do Dossiê Aborto,
“ Tanto faz o aborto ser ou não provocado, ao chegar a um serviço de emergência obstétrica
com abortamento em curso ou com complicações decorrentes do aborto, as mulheres são
tratadas como criminosas.”102
De modo a concluir essa linha de raciocínio, transcrevemos a provocativa afirmação
do prof. Túlio Vianna que parece talhada para a discussão:
102 MARTINS, Alaerte L. e MENDONÇA, Lígia C. Dossiê Aborto – Mortes Preveníveis e Evitáveis. Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos
Reprodutivos. Belo Horizonte, 2005
103 VIANNA,Túlio. Aborto: em defesa de qual vida? Disponível em http://tuliovianna.org/?p=124. Data do acesso: 18 de novembro de 2006
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V - Considerações finais
104 DIAS, Maria Berenice. Aborto é crime? In: Revista Del Rey Jurídica. Ano 8, número 16, p. 63 Belo Horizonte, 2006
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reprimir a conduta delitiva, conforme prevê o Código Penal.
Sendo o Direito dinâmico, em constante transformação, visando acompanhar a
constante pulsação presente no seio da sociedade, não existe razão suficiente para a
manutenção de normas incriminadoras no ordenamento jurídico que não cumprem o seu papel
subsidiário de conformação de condutas e repressão de desvios.
Levando em consideração a mobilização social em torno de temas como a redução da
maioridade penal, o endurecimento de penas relativas a crimes violentos e o clamor pelo
combate ao tráfico de drogas, não resta dúvida que a questão do aborto não encontra mais
lugar na agenda de controle social, ainda que tal 'delito' seja cometido em larga escala.
Vê-se que o momento é de mudança ruptura com paradigmas ultrapassados. A
manutenção de um posicionamento tendente ao proibicionismo denota uma intencionalidade
que escapa ao texto legal que contém a norma penal que aqui se discute. De acordo com o
pensamento de Maria Lúcia Karam,
Neste mesmo sentido discorre Maurizio Mori sobre a manutenção de uma norma
incriminadora, como é o caso da proibição do aborto, em um cenário que lhe é hostil ou
incompatível. Para este autor a insistência à conservação do aborto como crime cumpre a
função de preservar a desigualdade existente entre homens e mulheres, reservando a estas o
lugar que a natureza lhes indicou no início dos tempos. O resultado deste 'projeto' nada mais
seria do que a destituição da mulher de acessar possibilidades e concorrer em condições de
igualdade com os homens, seja no mercado de trabalho, seja nas relações sociais como um
todo, pois a ela caberia procriar e se haver com os demais desdobramentos desta função que
socialmente foi atribuída, quase que exclusivamente, à mulher.106
Nos ocorre a hipótese de que o aborto atravessa por um momento histórico que o
coloca em posição inversa ao que ocorreu com a violência urbana. Esta, enquanto atingia
105 KARAM, Maria Lúcia. Aborto: Dircursos Sediosos. Disponível em http://www.advocaci.org.br/artig_10.htm. Acesso 13 de setembro de 2006
106
MORI, Maurizio. A moralidade do aborto – Sacralidade da vida e o novo papel da mulher. Brasília: Ed. UNB, 1997
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apenas as franjas da sociedade, ou seja, estava, aparentemente, adstrita aos limites das
comunidades de baixa renda, não provocava significativa mobilização, a final, se tratava de
pobre eliminando outros pobres. No momento em que observou-se o rompimento da linha
imaginária que dividia o espaço público entre os que têm algo e os que não têm nada e a
violência se espraiou de forma indistinta, a questão assumiu proporções de interesse público,
pautando as agendas da mídia, dos formadores de opinião e de políticos.
Já no caso do aborto, ocorre o inverso. Mais do que em qualquer outra época, ainda
que o cenário não tenha se alterado significativamente nas últimas décadas, a prática do
aborto provoca suas vítimas entre mulheres de baixa renda, como referido acima, mulheres
pobres, negras e cada vez mais jovens. Qual seria a fundamentação para que a questão
mobilizasse a sociedade de modo a alterar este estado de coisas?
Paradoxalmente, independentemente dos argumentos que apontam para o agravamento
da situação dessas mulheres, da urgência de providências que deveriam ser tomadas, do
número de mortes e de mulheres sequeladas em virtude de abortos clandestinos mal
sucedidos, o que provoca uma reação popular é o chamado de um líder religioso em recente
passagem pelo país, conclamando os fiéis para uma cruzada contra o aborto.
Não nos cabe aqui discutir os fundamentos religiosos que sustentam a tímida
reintrodução do tema na agenda nacional, afinal vivemos sob a égide de uma Constituição
democrática que permite a liberdade de crença e de opinião. O que chama a atenção e causa
espanto é a imposição de uma determinada crença a um conjunto plural de indivíduos,
instalando um autêntico clima de “guerra santa”, cenário em que um Ministro de Estado é
apontado em praça pública como discípulo de 'satanás'.
Consideramos talhado à perfeição o pensamento de Maria Lúcia Karam quando
assevera “Se uma desejada interrupção da gravidez fere uma crença religiosa – o que, de todo
modo, é questionável –, não se pode, no entanto, simplesmente impor sua proibição a todos,
professem ou não aquela crença, ainda mais com a utilização do poder do Estado de punir.”107
Um Estado que se pretende laico, cuja ordem constitucional impõe observância aos
princípios da democracia e do Direito, não pode conviver com demonstrações de força desta
monta que se mostra antagônica ao espaço democrático conquistado pela sociedade.
É importante salientar que o espaço público, destinado à discussão e deliberação de
questão atinentes a toda população, deve ser protegido de condutas e intenções que possam
ameaçar o seu frágil equilíbrio. Por vivermos em uma sociedade plural, marcada pela
107 KARAM, Maria Lúcia. Aborto: Dircursos Sediosos. Disponível em http://www.advocaci.org.br/artig_10.htm. Acesso 13 de setembro de 2006
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diversidade cultural, religiosa, social e política, as tensões são constantes e fazem parte do
processo histórico de equilíbrio de uma nação que se pretende inserida em um mundo
globalizado, contemporâneo.
O projeto democrático de uma nação articula-se com sua capacidade de preservar,
garantir e promover os direitos humanos. Como já apontou Ingo Sarlet, a dignidade da pessoa
humana, enquanto eixo central do ordenamento jurídico pátrio, possui estreita interface com
os princípios da igualdade e liberdade, sendo a ofensa a esses princípios um ataque direto ao
fundamento primário do Estado Democrático de Direito.108
Nesse sentido, reafirmamos que a liberdade, seja qual for a sua manifestação, de
crença, de pensamento, de orientação sexual, para ser efetivamente exercida, supõe que
estejam asseguradas as opções individuais pelas suas mais diversas expressões, inclusive a
garantia das opções individuais que advoguem a negação de qualquer crença, a abstinência de
qualquer contato sexual e até mesmo a alienação acrítica com relação ao mundo.
Como preceitua Maria Lúcia Karam,
Vale lembrar e ter sempre em mente a lição de Ingo Sarlet ao afirmar que a dignidade
da pessoa humana, por se tratar do valor próprio de cada uma e de todas as pessoas, somente
produz sentido se operada e concretizada no âmbito da intersubjetividade e da pluralidade, se
constituindo como um autêntica categoria da co-humanidade de cada indivíduo. Desta forma,
a consideração e reconhecimento recíproco da dignidade, no seio da sociedade, pode ser
definida como uma ponte que une os indivíduos entre si.110
O respeito e a observância das necessidades e carências do outro é o cimento que
mantém este elo, que também pode ser chamado de comunidade de sujeitos comprometidos
com o outro.
108
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. Quarta edição. Porto Alegre: Ed. Livraria do
Advogado, 2006.
109 KARAM, Maria Lúcia. Aborto: Dircursos Sediosos. Disponível em http://www.advocaci.org.br/artig_10.htm. Acesso 13 de setembro de 2006
110
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. Quarta edição. Porto Alegre: Ed. Livraria do
Advogado, 2006.
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VI - Referências Bibliográficas:
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