NOME: ________________________________________________________________________________ DA SOLIDO Ceclia Meireles H muitas pessoas que sofrem do mal da solido. Basta que em redor delas se arme o silncio, que no se manifeste aos seus olhos nenhuma presena humana, para que delas se apodere imensa angstia: como se o peso do cu desabasse sobre sua cabea, como se dos horizontes se levantasse o anncio do fim do mundo. No entanto, haver na terra verdadeira solido? No estamos todos cercados por inmeros objetos, por infinitas formas da Natureza e o nosso mundo particular no est cheio de lembranas, de sonhos, de raciocnios, de ideias, que impedem uma total solido? Tudo vivo e tudo fala, em redor de ns, embora com vida e voz que no so humanas, mas que podemos aprender a escutar, porque muitas vezes essa linguagem secreta ajuda a esclarecer o nosso prprio mistrio. Como aquele Sulto Mamude, que entendia a fala dos pssaros, podemos aplicar toda a nossa sensibilidade a esse aparente vazio de solido: e pouco a pouco nos sentiremos enriquecidos. Pintores e fotgrafos andam em volta dos objetos procura de ngulos, jogos de luz, eloquncia de formas, para revelarem aquilo que lhes parece no s o mais esttico dos seus aspectos, mas tambm o mais comunicvel, o mais rico de sugestes, o mais capaz de transmitir aquilo que excede os limites fsicos desses objetos, constituindo, de certo modo, seu esprito e sua alma. Faamo-nos tambm desse modo videntes: olhemos devagar para a cor das paredes, o desenho das cadeiras, a transparncia das vidraas, os dceis panos tecidos sem maiores pretenses. No procuremos neles a beleza que arrebata logo o olhar, o equilbrio de linhas, a graa das propores: muitas vezes seu aspecto - como o das criaturas humanas - inbil e desajeitado. Mas no isso que procuramos, apenas: o seu sentido ntimo que tentamos discernir. Amemos nessas humildes coisas a carga de experincias que representam, e a repercusso, nelas sensvel, de tanto trabalho humano, por infindveis sculos. Amemos o que sentimos de ns mesmos, nessas variadas coisas, j que, por egostas que somos, no sabemos amar seno aquilo em que nos encontramos. Amemos o antigo encantamento dos nossos olhos infantis, quando comeavam a descobrir o mundo: as nervuras das madeiras, com seus caminhos de bosques e ondas e horizontes; o desenho dos azulejos; o esmalte das louas; os tranquilos, metdicos telhados...Amemos o rumor da gua que corre, os sons das mquinas, a inquieta voz dos animais, que desejaramos traduzir. Tudo palpita em redor de ns, e como um dever de amor aplicar o ouvido, a vista, o corao a essa infinidade de formas naturais ou artificiais que encerram seu segredo, suas memrias, suas silenciosas experincias. A rosa que se despede de si mesma, o espelho onde pousa o nosso rosto, a fronha por onde se desenham os sonhos de quem dorme, tudo, tudo um mundo com passado, presente, futuro, pelo qual transitamos atentos ou distrados. Mundo delicado, que no se impe com violncia: que aceita a nossa frivolidade ou o nosso respeito; que espera que o descubramos, sem anunciar nem pretender prevalecer; que pode ficar para sempre ignorado, sem que por isso deixe de existir; que no faz da sua presena um anncio exigente "Estou aqui! estou aqui! ". Mas, concentrado em sua essncia, s se revela quando os nossos sentidos esto aptos para descobrirem. E que em silncio nos oferece sua mltipla companhia, generosa e invisvel. Oh! Se vos queixais de solido humana, prestai ateno, em redor de vs, a essa prestigiosa presena, a essa copiosa linguagem que de tudo transborda, e que conversar convosco interminavelmente. " Crnica de Ceclia Meireles in: Janela Mgica, 3 ed. Editora Moderna, p. 48-51
Concordância Das Leis de Portugal e Das Bulas Pontifícias Das Quais Umas Permitem A Escravidão Dos Pretos D'áfrica e Outras Proíbem A Escravidão Dos Índios Do Brasil