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6 Silas Guerriero” LI~ROé “aanliopes + Faeque + Codon: bas wernt ong) clea O12 Diep: As origens do antropos Silas Guerriero 66()uem somos nés?” Esta pergunta nos acom- yanha desde os tempos mais remotos. A antropologia, segundo a etimologia, é a ciéncia que busca conhecer 0 antropos, o humano. Longe de procurar esgotar essa tarefa, o que seria imposstvel dada a complexidade da natureza humana, neste capitulo procuraremos apontar algumas pistas que poderdo levar o leitor & fascinante aventura do conhecimento sobre nés mesmos. ‘Vemo-nos qualitativamente diferenciados dos demais, seres e' constitufdes de uma natureza especial. Durante muito tempo nos enxergamos como feitos a imagem e semelhanga de Deus. Em muitos povos, as mitologias de criag&o falam de eres criadores e de her6is civilizadores antropomorfizados e assemelhados aos seus individuos. Entre n6s, ocidentaia, herdeiros de uma visto hebraica ¢ crista, o livro do Génesis relate: Deus disse: “Fagamos o homem a nossa imagem, como nossa semelhanga, e que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, 0s animais domésticos, todas as feras e todos os répteis ‘que rastajam sobre a terra”? 1, Gtnosis, Bia de Jerusalém. Sto Paulo, Ddighos Paulines, Silas Guerriero Quanta responsabilidade! Nao 6 0 Criador nos fez semelhantes a Ele como nos deu o poder de dominio sobre todos os outros seres vivos do planeta. Essa marca carregamos até hoje. Se, na teologia contemporanea, o livro do Génesis é visto como uma colegao de mitos (metéforas que carecem de interpretagéo), ainda hé muita gente que cxé terem sido Addo e Eva, mesmo, os primeiros habitantes ‘humanos deste planeta. Somos fruto de uma evolugio? Em meados do século XIX, a humanidade levow um choque. Um cientista inglés, geélogo e naturalista, ameagou nosso lugar sobre o pedestal dos seres vivos. Charles Darwin colocou-nos na incdmoda companhia de todos os outros animais. Afirmou que todos somos frutos do uma mesma evolugdo biolégica, assemelhando-nos & nossos parentes mais préximos, os primatas. Tamanha ousadia foi imediatamente retrucada com ironia, Muitos riram chamando os macacos do zoolégico de ancestrais de Darwin; outros simplesmente ignoraram-no ou até agrediram-no. Sabe-se hoje que Darwin guardou sua idéia original por 12 anos, temendo represdlias. Quando publicou On the Origin of Species, em 1859, jé tinha consciéneia de que os humanos também eram frutos da evolugdo. Esperou mais de uma década para completar a sua teoria com The Descent of Man, estendendo a transformagéo evolutiva de uma espécie a outra de maneira a incluir os seres humanos. Passado um tempo, tendo a ciéncia confirmado a ‘Teoria da Evolug&o e encontrado provas inequivocas da sua veracidade, uma saida foi sorrateiramente construf- da: “Certo, somos animais que, como’os demais,,partic pamos do processo evolutivo, mas acreditamos ser essa evolugdo um progresso: caminha-se do mais simples 20 mais evoluido, ao mais elaborado, situando-nos na ponta superior” Agsim nossa prepoténcie se manteve intecto: ‘As origens do antropos 9 continuamos acima dos demais animais. Essa visao aca- ba justificanido nosso dominio sobre o planeta. Atrogando- nos a exclusividade da razfio, colocamos todo o resto & nossa disposigéo. Independente das maravilhas que a hu- manidade jé fez, somos os maiores predadores que j4 exis- ‘tiram, Se ainda nfo destruimos a Terra com arsenais at- micos, em pouco tempo podemos acabar com a dgua limpa e doce, com 0 ar respirdvel, os florestas e milhares de espécies Que superioridade é esta? Tal vistio domina o senso comum e até mesmo’ comunidade cientffica. Quando pensainos em “vida inteligente” em outro planeta, logo pensamos em. Bs feitos A nossa semelhanca. Podem ser esverdeados @ ter trés olhos desproporcionais na fronte, mas nossa ima- ginago sempre os pinta com um jeitéo humano. recente, e ainda muita timida, a recusa a essa vi- so, Hé evolugdo, mas ela no representa necessariamen- te um progresso positive. E dificil reconhecermos que as mutagées aleat6rias da evolugfio dos seres vivos nfo ca- minham, necessariamente, a partir dé um plano pré-de- terminado. A evolugio poderia muito bem ter acontecido sem a emergéncia daquilo que chamamos de seres inteli- gentes (n6s mesmos). Pior: pode continuar acontecenclo perfeitamente sem a nossa presenca, apés a extinglio da espécie humana. Em 1977, 0 filésofo Jacques Monod deu um duro gol- pe na visio tradicional: Queremo-nos necessérios, inevitdveis, ordenados para wempre, Todas as religides, quase todas. as filosofias, inclusive uma parte da citneia, testemunham o incansdvel e heréico esforgo da humanidade em negor desesperadamente sua prépria contingéncia.* Para Monod, o surgimento da vida no planeta e da espécie humana em especial efo frutos de um acaso que as chances de surgirem eram praticamente nulas: “O Uni- 3 Monon nomen, O nanan « a nanaanidade. 0. Bd. Silas Guerrier verso no estava grévido da vida, nem a biosfera do ho- mem. Nosso niimero saiu no jogo de Monte Carlo™ Sigmund Freud observou, com ironia, que as grandes revolug6es cientfficas ausiliam na derrubada da arrogéncia humana de seu pedestal anterior, afastando as conviegbes que temos de nossa posigéo central e dominadora.‘ A pri- meira dessas revolug6es foi a copernicana, que nos remo- veu do centro de um reduzido universo e nos remeteu & condigao de habitantes de um pequeno planeta que gira em volta de uma estrela, que hoje sabemos ser apenas uma, de quinta grandeza e periférica, dentre bilhdes de estre- las numa das mais de 200 bilhdes de galéxias existentes. A segunda grande revolugdo, para Frend, foi a darwinia- na, por nos colocar na descendéncia comium a todos os de- mais seres vivos. Situop, ainda, sua propria descoberta sobre o inconsciente como responsével por fazer reconhe- cer que temos um porfo desconhecido do qual a razo nfo consegue dar conta, Para Stephen Jay Gould, um dos mais famosos evolucionistas e paleontélogos da atualidade, nada melhor para abalar nossa vaidade e nos libertar do que a mudanga entre nos vermos como “apenas um pouco abaixo dos anjos”, criados como mestres da natureza, feitos 4 semelhanga de Deus para moldar e dominar @ natureze, para o conhecimento de que somos néo apenas produtos naturais de um processo universal de descendéncia com modificagéo (e portanto parentes de todas as demais criaturas), como também um ramo pequeno e em tltima insténcia transitério, que desabrochou tardiamente na frondosa érvore da vida, e ndo 0 dpice predestinado da escada do progresso.* Se 6 compreens{vel, porém nao justificével, que desejemos ser os senhores do planeta, 6 preciso olbar agora para o que sabemos sobre como chegamos a ser 0 que somos hoje. Ao lado da biologia, da paleontologia e da 3. Op. eit, p. 164. 4. Papup, 8. apud Gouro, 8.J. "Trés aspectos da avolugao" ‘As origens do antropos Ml arqueologia, a antropologia esteve sempre nessa busca ainda no alcangada de decifragéo de nossas origens. ‘A primeira teoria da evolugéo surgiu no infcio do século passado através do naturalista que inaugurou a biologia, Jean B. Lamarck. Acreditava que os animais mudavam sob pressfo ambiental, transferindo essas mudangas para sua prole. Embora estivesse errado, sua teoria foi revolucionéria para a época. Chatles Darwin foi influenciado pelas idéias de Lamarck. Darwin questionou a idéia da transmissfo hereditdria dos esforgos individuais de adequagao a0 ambiente e baseou sua teoria na existéncia de variagao casual (ou mutagao aleatéria) & selegfo natural, Partin do principio de que todos os seres, vivos vieram de seus ancestrais através de um longo e continuo processo de variagées. Na evolugfo, a produgio de variagSes 6 constante e em ntimero maior do que as que podem sobreviver. Assim, através da selecéo natural muitos individuos so eliminados e as variagdes que deram melhores resultados permanecerSo e serdo transmitidas as novas geragées. A jungio dessas idéias as descobertas de Mendel, sobre a estabilidade genética, resultou no que denominamos por neodarwinismo, que ainda 6 a visfo mais aceita nos dias atuais. As descobertas recentes nos campos da microbiologia, da bioguimica e da biologia molecular, tém forgado uma reviséo dessa teoria. Hoje, ganhe corpo uma nova viséo da evolugae: a teoria sistémica, ou teoria dos sistemas vivos. Em ver de considerar a evolug&o como um simples resul- tado de mutag6es aleatérias ¢ de selecdo natural, comega- se a reconhecer o desdobramento eriativo de vida em for- mas de diversidade e complexidade sempre crascentes. Embora a mutaggo e a selero natural sejam aspectos impor- tantes da evolugdo biolégica, o foco central 6 a criativide- de, “no constante avanco da vida em diregfo A novidade™. 6. Carma, F. A feia da vida. Uma nova compreenado eientifica dos 2 “Silas Guerriero Niveis de.complexidade erescente néo significa evoluir em divegéo ao humano, bem como pode néo ser algo-positiva- smente melhorado. Para og autores de nova viso,"0s caminhos da criatividade da evolugéo foram’ desenvolvidos muito tempo antes do surgimento dos primeiros animais, A base das variagies @ da criatividade. deve ser buscada numa nova compreensao de toda e qualquer oélula viva..A mudanga evolutiva passa a ser vista como “o resultado da tendéncia inerente da vide pare criar novidade, a qual pode ou no ser acompanhada de adaptagdes As condigdes ambientais em mudanga"?. Daf decorre, inclusive, a possibilidade dessas transformagées se darem em sentido negative, comprometendo a sobrevivéncia da espécie, De acordo com a Hipétese Gaia’, a evolugéo no pode ficer limitada a adaptagao de organismos ao seu meio ambiente. O préprio meio ambiente é também um ser vivo. Assim, 0 que se adapta a qué? Por essa provocativa hipétese, cada qual se adapta aos outros num complexo processo de co- evolugao. Os bidlogos tém sido obrigados a reconhecer que, ao invés do que pregava a visio darwinista, nfo. 6 a competigéo que responde pelo processo evolutivo e sim a cooperagéo continua ¢ a dependéncia mitua entre todas as formas de vida. A vida ourge ¢ se desenvolve no planeta através da formagéo de redes. A evolugio nfo guerda planos ou pro- jetos teleolégicos, nem tampouco evidéncia de progressos: 7 Op. ct, p. 162 8. A Hipétese Gain vé-o plancta inteiro-como um elemento vivo, numa escala proporciqnalmente diferente da que estamos acostumados ver com os demais geros vives. Considere.a fine camada que envolve as rochas do planta como uum manto plene de vida e autogerador. Converte substancias inorgénicas em matéria orginica vive e esta novamente ém soles, er © occtnas ‘hum sistema autopermanente ov, como dexiominaram Maturana eMaeein ya rel nainmnition \ As origens do antropos 3 0 que ha s&o padrées de desenvolvimento. A criatividade da natureza é ilimitada. Padrées semelhantes, como forma de enfrentar desafios semelhantes a diferentes espécies, gerou respostas semelhiantes. Por exemplo, olhos ou asas. Se o surgimento de asas em insetos ou em aves ge deu de maneira independente, foi devido a um padréo de desenvolvimento comum a ambos os casos. Resta-nos, agora, pensar o“surgimento © a evolugfo dos seres humanos, nfo mais como obra isolada, ou porito terminal de um processo, mas como co-participante do cenério bi6tico planetrio O surgimento da humanidade Os humanos 8&0 um tipo especial de animal. Sera? Se pensarmos-bem, todos os seres vivos também eo especiais, ‘Uma simples bactéria, uma planta ou um mam{fero eo sin- gulares dentro de suas caracterfsticas. A origem da vida no planeta foi a mesma para todos e cada espécie se diver- sificou,e tragou uma histéria particular ao longo do tem- po. Mas em nosso fntimo sentimos que a barreira que nos separa dos demais seres vivos é intranspontvel. I mesmo? ‘Uma vez constatada nossa origem comum, a an- tropologia sempre se colocou a questo de por qué e como somos diferentes dos demais animais. Além disso, ac reconhecer todos os sere humanos como membros de uma mesma humanidade, a ciéneia do humano se perguntava por que hé diferencas de comportamento entre os grupos humanos. A resposta a ambas as perguntas foi colocada de forma muito clara: a responsével pelas diferencas é a cultura. De maneira taxativa, julgava estar na cultura a causa dessa incrivel separag&o. Apesar de sempre pressupor a origem evolucionéria, a antropologia via, ena maioria dos casos ainda vé, que 6 os humanos fazem cultura, pois somente nés:temos a capacidade de sim- bolizar. Essa distincao radical entre cultura e natureza, entre humanos ¢ demais animnis, manteve intacka a “4 Silas Guetriero de superioridade aqui apontada. Continuamos superiores a todos os demais animais pois somente née produzimos cultura, Por ontro lado, a maneira como se.opera:a cultura geta as diferencas entre os grupos liumanos. Se, para todo animal de uma mesma espécie, existe um mesmo tipo de comportamento, dado pelo instinto, nara os membros da espécie Homo sapiens, as.diferengas-deveriam ester além dos instintos biolégicos, no campo da cultura. ‘O que nos faz realmente singulares e distintos 6 nossa capacidade de raciocinio, linguagem, construgéo e uso de ferramentas, postura ereta e plasticidade comportamental, entre outras. Geralmente nos definimos como animais racionais. Veremos adiante.que isso nao 6 téo exclusivo assim. Experiéncias demonstram a capacidade de raciocinio entre animais, outras realizam fantégticos avangos nas Areas de linguagem, fabricagao de ins- trumentos ¢ comportamentos coletivos entre os chim. panzés.’ Alguns pensadores até se atrevem a falar de cultura entre os bonobos.** importante lembrar que na comuriidade antropol6gica, e da biologia, nfo hé consenso a esse respeito. Sem querer insensatamente dérrubar 0 humane de cima das torres que para ai mesinio conatrui, convém olhar para a trajetéria dessas descobertas. Se a chave de explicacao de nossa superioridade esté inscrita na capacidade de simbolizagao ¢ construgao de cultura, o segredo para conhecer as origens dos seres huinanos esté na descoberta da origem da cultura. Simples, nfo? Nem um'pouco. A comegar pelo entendimento do préprio conceito de cultura. Na priméira metade do'século XX, acreditava-se que o humano surgiu a partir do momento em qite o primata que ros dew origem comegou a eimbolizat. Foi o infcio da paleontologia humaina, ciéncit que busca registros fésseis dé nossos aticestrais part 8, Foury, R. Apenas mais uma espécie dnica, p. 29. 10.Waat. P. de, Peacemaking among primates. 4 ‘As origens do antropos 15 reconstruir a nossa histéria no planeta. # interessante reparar duas coisas. Primeiro, que o inicio da paleontologia humana foi um grande avango para a 6poca, visto que ainda nfo estava superado o embate sobre nossas origens pela evolugao ou através da criagdo divina. Até os dias atuais tal diacussfio hao se resolve, Em muitos paises hé ‘resistencias ao ensino da evolugao nos curriculos escolares. A busca de restos humanos pré-histéricos levava em consideracdo a evolucto da espécie humana como um outro animal qualquer. Por outro lado, essa paleontologia, como todas as demais ciéncias, surgiu em solo europen, dentro da mais perfeita visio eurocéntrica segundo a qual 0 hhumano s6 poderia ter surgido na Europa! Assim, esses cientistas safram a procura do famoso “elo perdido”, o féssil que estaria no intermédio entre o animal e o humano, A descoberta de vest{gios pré-histéricos em caver- nas européias populerizou os termos “homem das ca- vernas” e “elo perdido”, Restava saber quando se dera a tal passagem pare a humanidade. Através de complicada leitura do Antigo Testamento, a visio criacionista bibli- ca concluiu que Deus criou Addo e Eva no ano 4004 a.C.. Os primeiros antropélogos e paleont6logos levaram essa data a tempos mais distantes. Julgava-se que o hu- mano surgira ha dez, 20 ou até 40 mil anos. Nesse mo- mento, denominado “ponto critico”, o primata origindrio teria evolufdo fisicamente o suficiente para produzir simi- bolos e, ‘por conseguinte, cultura. Para tal seria necesad- rio que esse animal se mantivesse na postura erets, tivesse 0 dedo polegar em oposigao aos demais e, fundamental- mente, tivesse uma capacidade craniana avantajada. Mes- mo entre os mais préximos parentes, chimpanzéé e gori- las, a postura ereta, apesar de possivel, nfo 6 constan- te, 0 polegar nfo se ope de maneira a manejar instrumen- tos de precisto e a caixa craniana tem menos da metade do volume da do humano atual. Sem apresentar uma Byova,do alo perdido, essa teoria vingou durante mui- 16 Silas Guerriero Os paleontélogos trabalham contra o tempo. Quanto mais a civilizagao avanga sobre as terras antes ocupadas por nossos antepassados, mais dificil é encontrar os preciosos vestigios primitivos. Sua 4rdua e paciente tarefa assemelha-se a um quebra-cabecas de milhdes de pecas. Quando algumas so desenterradas das camadas es. tratigréficas"do solo, formam uma explicagéo coerente do gue ocorreu no passado. Esta é a principal razao da existéncia de teorias conflitantes sobre o mistério das origens, Quando um pesquisador encontra um fragmento fossilizado de osso, ou dente, eo identifica como sendo da linhagem humana, 6 motivo de imenso juibilo. Descobertas de esqueletos quase completes sfo muito raras. Assim, & nossa histéria é escrita muito lentamente. Apesar das divergéncias entre as posstveis linhagens de animais que vieram resultar nos humanos, alguns pontos.s4o consensuais, Atualmente, ninguém aceita mais 8 Teoria do Ponto Crftico. Nao houve um momento mégico de aquisigao de cultura. A capacidade de simbolizar ¢ abstrair foi elaborada ao longo de um perfodo muito mais longo. Nossa histéria remonta hé milhées de anos. As descobertas cientificas em outras éreas tém auxiliado o trabalho de antropélogos e paleontélogos Avangos da fisica de part{eulas e da quimica possibilitam maior preciso na datagdo dos fésseis; as aplicagdes da diologia molecular e da ecologia permitem comparacies com animais hoje existentes. Elaborada dentro da visio dé separagéo radical entre os humanos e os demais primatas, a taxionomia das espécies 6 questionada e aos poucos se altera, Estudos recentes das estruturas moleculares do DNA entre humanos e os grandes macacos hoje existentes levaram a ect a at er ec Ho as camadae do solo que ao longo do tempo vAo-se formando, mantendo os vestigios de tudo aquilo que teria vivide ot existide ‘nun determinado periodo, permitindo a0 paleontélago 0 estado As origens do antropos uw descobertas fascinantes. A familia hominfdeo, antes restrita aos que fazem, ou fasiam, uso da postura ereta, estava separada da famflia pongideo, & qual pertencem 08 grandes simios africanos e 0 orangotango asitico. Mas nfo hé razdes para tal separagéo. Nosso DNA difere do DNA de um chimpanzé em apenas 1,6%: somos 98,4% idénticos. Isso é mais do que a concordAncia entre o elefante africano e 0 elefante asidtico, ambos obviamente elefantes. B por que ndo nos vemos junto aos chimpanzés? Novamente a velha resistencia de nos enxergarmos ao lado dos demais seres vivos. Na verdade, fazemos parte do grupo dos cinco grandes macacos: orangotangos, gorilas, chimpanzés, bonobos ¢ humanos. : Mesmo vencendo resistencias, nAo 6 possfvel deixar de reconhecer que somos muito diferentes. Inclusive no aspecto fisico, Qual a razdo? Remontemos a muito tempo atrés. Sendo tinica a origem da vida na Terra, ha aproximadamente 3,5 bilhOes de anos, qualquer ponto de partida pode ser tomado. Vamos ficar entre os animais. Hoje sabemos que os primeiros animais viveram nes éguas dos oceanos hé 700 milhdes de anos. Depois de 300 milh6es, alguns tornaram-se anfibios e depois con- quistaram as terras, Por volta de 200 milhdes de anos atrés, surgiram entre os vertebrados os animais de sangue quente.que alimentavam seus filhotes a partir de glandulas mamérias. A extingfio dos dinossauros (hé apreximadamente 85 milhdes de anos) permitiu a répida evolugao dos mamifferos. De animais diminutos e amea- gados por seus predadores, passaram a dominar 09 territérios. Dentre os mamiferos surgiram, hé 70 milhdes de anos, o8 primatas, também chamados de prossfmios. Estes desenvolveram habilidades de saltar entre as Arvores, possuindo para isso uma visdo agucada e tridimensional, com os olhos préximos e na fronte. Os primatas logo evoluiram. Algumas caracterfsticas entfo ante: ios 5 1 detgrminantes tentsedeatss og graeeimige open, deleeminantee 18 ‘Silas Guerriero as érvores por onde pulavam. Desenvolveram, pera isso, unhas e dedos polegares em posigées opostas aos demais, e habilidade para permanecerem eretos por alguns instantes para procurarem a presenga de inimigos, Os primatas primitivos sfo os ancestrais de uma ampla ordem_ de animais que vai dos Jémures aos grandes antropéides, passando pelos micos e macacos. A separacdo entre os prossfmios e os antropSides ocorren hé 35 milhdes de anos. ‘Nesse perfodo, as placas tecténicas se separaram por completo fazendo com que a evolugéo dos primates no novo e velho continentes fosse completamente distinta. Nas Américas, eles ficaram restritos As érvores, desenvolvendo grandes caudas que muito auxiliam nos Tongos saltos entro elas. No Velho Mundo emergin uma limba evolutiva que desenvolveu o estilo de vida terrestre. Uma das sub-ordens daf decorrentes paulatinamente ganhou dimensbes corpéreas mais volumosas e teve & cauda reduzida. Dentre esses, hé 15 milhdes de anos aconteceu a separagdo com aqueles que foram pare a Asia e tornaram-se os orangotangos atuais. Outros evolufram nas florestas tropicais africanas. Hé aproximadamente 10 milhdes de anos, os gorilas tomaram rumo préprio, Hé apenas 6,5 milhdes de anos os chimpanzés e bonobos deixaram de caminhar junto acs humanos na linha evolutiva. Em outras palavras, comparando com os outros grandes macacos atuais, somos mais préximos dos chimpanzés e bonobos do que estes séo dos gorilas. A separagéo entre chimpanzés © bonobos deu-se hé 3,6 milhdes de anos. Muitas vezes chamados de chimpanzés pigmeus, devido A estatura diminuta, os bonobos vao aos poucos ganhando o estatuto de espécie distinta. B justamente entre eles, uma espécie em extingdo, que as ‘pesquisas tém-nos ensinado muito sobre o comportamento dos nossos ancestrais, de nés mesmos e até da existéncia de cultura entre os animais. Os bonobos vivem em grupos dig 0 g 60 Sndiviguas dg maneirappcticg, resniven os ‘As origens do antrapos ’ 19 que ge acostumou,admitir entre os humanos, 0 sexo entra animais sempre foi tido como mecanismo de reprodugéo desencadeado por instinto. Seriam essas simulagdes algo semelhante a formas de comunicagéo simbolizadas? I isso que defendem alguns estudiosos desses parentes tao proximos mas até entdo desconhecidos.” Tanto bonobos como chimpanzés fazem uso de ferramentas que, a0 contrério de s6 as utilizarem quando esto a mao na hora da necessidade, elaboram-nas e guardam-nas para ocasifes futuras. Nao seria esse um dos grandes diferenciais humanos, da possibilidade de abstracdo e transcendéncia? Além disso, quanto mais as pesquisas entre esses animais avancam, descobrimos mais si- milaridades com os humanos. No campo da linguagem, forte reduto da exclusividade humana, pesquisas de- monstram que, se nfo fazem uso da fala, cles se ‘comunicam perfeitamente mediante gestos."* Essa proximidade, no entanto, nAo elimina as enormes diferencas entre nés e os demais primatas. Aquilo que chamamos por humanidade ¢ imensamente diferente de qualquer grupo de chimpanzés, gorilas ou bonobos. Contudo, 6 preciso ver que a civilizagdio 6 muito recente em nossa histéria. Até a revolugéo neolitica, com a domesticagéo de plantas e animais e a sedentarizagao, ocorrida hé apenas 10 mil anos, os humanos também viviam em pequenos grupos, muito distintos de tudo aquilo que conhecemos hoje. Voltemos para as nossas origens, hoje localizadas por volta de 6,5:milhées de anos atrs. O que fez esse macaco tornar-se tao diferente de todos os demais? ‘A evolugéo nfo se guia por projetos teleoldgicos © as mmutagSes séo aleatérias, 0 que torna possivel, ou nfo, convivéncia com o meio ambiente. Dentro desse quadro vamos compreender o que aconteceu. I consenso entre os 12. Wan, F. de. Peacemaking among primates. ates BO cereeih minis entrtinn 20 Silas Guertiero pesquisadores que a postura ereta foi determinante, # através dela que se definem os hominideos. Dentre as varias hipéteses para o surgimento dos hominideos, uma das mais aceitas atualmente leva em conta descobertas recentes da geologia. Hé aproximada- mente 6,5 milhées de anos ocorreu uma grande transfor- magfio no territério africano, Uma cadeia de montanhas separou de norte a sul a grande floresta tropical ali exie- tente e, com ela, seus habitentes. Os ventos umidos vin- dos do Atlantico foram impedidos de passar para o lado leste da floresta, fazendo com que esta se transformasse paulatinamente em vegetacdo de savanas. O antropside que vivia nessas florestas, ancestral comum tanto dos ho- min{deos como dos chimpanzés e bonobos atuais, conti- nuou evoluindo e se adaptando ao meio, No lado oeste ele continuou vivendo nas érvores. No lado leste, porém, a es- cassex cada vez maior de vegetagdo fez com que esse ani- ma] desenvolvesse a capacidade de caminhar. Observe-se que essa capacidade jé existia como possibilidade, visto que os grandes primatas atuais fazem uso da postura ereta esporadicamente. Descem e sobem das arvores com a co- Tuna ereta e podem caminhar pequenos trechos s6:-com 0 auxilio das pernas, apoiando o dorso de suas méos no cho para manter o equilibrio. Isso mostra nossa proximidade com eles e revela 0 fato de que o caminhar ereto nfo foi uma invengéio posterior mas apenas o aprimoramento de uma potencialidade jé existente. A falta de vegetagao densa tornaya aqueles habitentes presa facil dos seus predadores. A necessidade de protager os filhotes fez com que a coleta alimentar ficasse cada vez mais para os machos, que retornavam 80 lugar onde as f&meas e seus filhotes haviam permanecido. Tissa cooperagéo foi-decisiva para a sobrevivéncia desses ‘primeiros homin{deos. A capacidade de caminhar sobre dois pés, segurando os alimentos, foi fundamental para a nossa permanéncia. ‘Varios achados fésseis comprovam essa teoria mostram como que, muito antes de desenvolverem a cull ‘As origens do antropos a tura, nossos encestrais j4 permaneciam de pé. Esses ani- mais, mais aparentados aos grandes macacos atuais, possusam um yolume de caixa craniana nfo muito distin- ta do volume nos grandes simios, mas fiavam na postura ereta e os pés cada vez mais se diferenciavam das mos. Foram chamados de.australopithecus, ou “pequeno maca- co do sul,-visto que os primeiros achados ocorreram na Africa meridional. ‘A partir daf, os paleontélogos.divergem: Alguns de- fondem a tese de que a evoluc&o até o humano moder- no foi linear, com cada espécie sucedendo ums anterior Mas a maioria acredite que espécies diferentes de homi- nideos conviveram num mesmo periodo. Algumas sobre- viveram e resultaram em novas espécies, Outras simples- mente ae extinguirem. © fossil mais faroso foi encontrado por Donald Johanson em 1974-em Hadar, na Btidpia. Tratava-se de 40% de um esqueleto de um individu, identificado pelo formato da bacia como sendo de uma fémea, da espécie ‘Australopithecus afarensis. O fato de ter sido descoberto ‘um esqueleto quase completo foi motivo de uma festa realizada a noite no acampamento. Justemente nessa festa © esqueleto. foi batizado com o nome de Lucy, em homenagem & musica Lucy in the shy with diamonds, dos Beatles. Lucy teria vivido hé aproximadamente 3,3 milhes de anos. Varios outros foseeis de australopithecus jé foram encontrados e identificados. Variando entre 5,5 @ 1,2 milhoes de anos, compéem uma ampla gama de espécies. diferentes, tais como ramidue, africanus, afarensis e boiesei. Apesar de possuirem diferengas significativas, todas elas eram formadas por individuos de estatura diminuta, nfo maior que um chimpanzé atual, © caixa craniane de aproximadamente 500 em’, pra- ticamente 0 mesmo que de um gorila, Porém, ¢ provavel que nfo tivessem a capacidade de produsir simbolos. Uma mudanga ocorreu hé aproximadamente 2,2 milhdes de anos, com o surgimento de umn género novo, 0 24 Silas Guertiero laringe permitindo a emissio de sons ¢ uma posterior articulagéo de palavras..Outra importante descoberta aponta a relag&o entre a preciso das mfos e a capacidade de articulag&o minuciosa da lingua. Nao sabemos o quanto um Homo erectus era capaz de falar, mas foi através da fala que aprimoramos « fabricacao de ferramentas, a habilidade manual e a capatidade de nos comunicar. A evolugéo da linguagem oral permitiu um significativo aumento das atividades cooperativas e desenvolvimento de famfliaa e comunidades, trazendo enormes vantagens evolutivas. Para Capra, “o papel crucial da linguagem na evolugao humana no foi a capacidade de trocar idéias, mas 0 aumento da capacidade de cooperar”™, Como Geertz!*, podemos afirmar que a cultura é produto do humano, mas o humano 6 também produto da cultura. Nao fosse essa extreordinéria capacidade de articulagdo e fabricagdo de simbolos, provavelmente nfo terfamos sobrevivido ¢, se 0 tivéssemos conseguido, nfo terfamos diferengas anatémicas to marcantes frente a noseos parentes mais préximos, Em outras palavras, néo estarfamos aqui contando essa histéria. A importncia da cultura ‘Apesar de sabermos hoje que a cultura nfo é um atributo exclusive da humanidade, nfo 6 posstvel deixar de reconhecer a importéncia da cultura na formagéo da espécie humana, ff inegével que o nfvel de complexidade alcangado é incomparavelmente diferente do demonstrado por nossos parentes. A complexidade alcangada faz parte de nossa heranga genética. 16,Op. cit, p. 224 16. Guana, C.A interpretagdo das culturas. As origenis do antropos 26 Afirmar que 0 humano se destacow das condigdes biolégidas animais e dos instintos, nfo sendo mais influenciado pelas determinagies biolégicas, 6 continuar afirmando a velha presungéo de nossa superioridade e Gistingaio. Por outro lado, manter a crenga de que somos determinados por nossos instintos animalescos (violéncia, maternidade, filiagfo etc.) é n&o reconhecer nossa potencialidade enquanto seres em liberdade com pos sibilidade de construir nosso destino. Somos uma espécie inica que ‘tem um lado biolégico e de instintos e outro simbélico, cultural: As dues partes interagem num todo inseparével. Quando falamos em-seres humanos, essas duas faces estho presentes ‘eve resultados patéticos a tentativa, realizada hé alguns anos, de criar filhotes de chimpanzés como se fossem criangas humanas. Durante os primeiros meses de vida, as diferengas nfo eram significativas. Mas, a partir do primeiro ano, ocorreu um enorme distanciamento, gerando um chimpanzé manhoso que néo se assemelhava a uma crianga humana, pois ao ndo conseguir se comunicar limitava estrondosamente sua capacidade de aprendizagem. inverso também 6 verdadeiro. Impedidos por uma ética humanitéria de fazer experimentos dessa natureza com seres humanos, contamos com casos reais, identifica- dos a0 longo da histéria, de criangas abandonadas logo ap6s 0 nascimento e que sobreviveram gracas aos cuida- dos de animais (lobas, macacas etc.). Longe de serem as figuras lendérias e mitolégicas de heréis como Tarzan, Mowgli, Romulo e Remo, ndo passaram de monstruosida- des. Portadores do aparato biolégico de um Homo sapiens. nao receberam o banho de cultura téo-necessério para se- rem reconhecidos como humanos. Cada beb@ que nasce hoje carrega a marca daqueles 6,5 milhdes de anos de evo- Tugio e tem todo o potencial de permanecer na postura ere- tae de articular uma fala. Mas tudo isto nfo ¢ instintual. As criangas-foras encontratlas so seres fora de sintonia, 22 Silas Querriero Homo. Primeiramente com o Homo habilis, com eérebro de mais de 650 cm! e maiores dimenstes corporais, Mas a grande novidade veio com uma espécie posterior, o Homo erectus, surgido hé 1,6 milhfo de anos. Responsével pelas primeiras evidéncias de fabricaco de ferramentas ¢ uso de fogo, foram os primeiros hominfdeos a deixerem a Africa e se espalharem pelo velho continente, chegando até a regio da China e de Java. Foi somente hé menos de 400 mil anos que surgiu 0 Homo sapiens. Uma de suas sub-espécies mais famosas, a dos neandertalensis, habitou a Europa e regiées do Oriente Médio. Ao contrério do que-muitos acreditavam, o Homem de Neanderthal nfo foi nosso ancestral. Convi- ‘ven com outra sub-espécie, o sapiens sapiens, o humano moderno, até que sofreu sua extingao, hé 35 mil anos. ‘Testes realizados com a tecnologia da biologie mole- cular, através de exames de DNA, revelaram que todos os, bumanos existentes hoje so descendentes de um mesmo grupo que teria vivido hé 150 mil anos na Africa. Mais uma vez; para acabar de vez com a viséo eurocéntrica apontada anteriormente, nossa origem est4 na Africa. O sapiens moderno possui um cérebro maior, com aproxima- damente 1.350 om’, parede craniana mais delgada e fei- g6es mais delicadas que seus ancestrais arcaicos. ‘Assim como o Homo erectus e demais sapiens, 0 Inumano moderno emigrou para outras regites do globe terrestre, Através dessas separagdes entre as populacdes e das constantes mudangas climéticas advindas das glaciagbes periédicas, surgiram, oomo fruto de adaptagées a novos climas, as diferengas raciais que hoje conhecemos. Somos todos, portant, membros de uma mesma espécie, com diferengas apenas na quantidade de melanina.na pele e outras feicbes. Em suma, o surgimento do humano se deu através de um processo muito longo no tempo. A postura ereta foi aiaanie Seiad acgita-se hoje também que nossa Achreviitnat PRE Oe desenvolvimento An ‘As origens do antropos 23 capacidade de simbolizago, & criagfo de ferramentas, ao = uso cada yez mais aprimorado de-linguagem, ao estabelecimento de rogras de solidariedade e de so- ciabilidade, enfim, tudo aquilo que entendemos por cultura, Ao invés de um ganho adicional. no processo evolutivo, a cultura foi elemento importante na construcso de uma convivéncia com o meio ambiente. O estabe- lecimento de vinculos entre os individuos do grupo, através de lagos de solidariedede permitiu a defesa desse organismo frégil frente a predadores muito mais fortes € velozes. Um sistema de comunicac&o, uma linguagem, foi paulatinamente elaborada. Ao longo do processo de evolugéo sobreviveram aqueles com maior capacidade de utilizar e desenvolver tais habilidades, Q nascimento de filhotes cada vez mais prematuros, provavelmente devido a mudangas no ciclo de desen- volyimento e as crescentes dimensdes da cabega frente & nova anatomia nas bacias das fémeas, exigiu a constitui¢go de comunidades capazes de dar sustentagdo por mais tempo as crias: ‘As fmes selecionavam. machos que tomariam conta delas enquanto estiveasem euidando de seus filhos e que thes dariam protegdo... As fmeas nao entrariam no cio em épocas espectficas, , uma vez que entéo podiam ser sexualmente receptivas em qualquer época, 08 machos que cuidavam de suas famdlias também podem ter mudado seus hébitos secuais, reduzindo sua romiscuidade em favor de novos arranjos sociais.™* As mos livres possibilitarai um aprimoramento do uso de ferramentas. Quanto mais sofisticadas as ferramentas, maior elaboragdo mental e maior preciséo nas mos. Assim, as transformag6es corporais, que tanto nos afastam dos demais grandes s{mios, se fizeram em conjunto com a elaboragao da cultura. Sabe-se também que a postura ereta possibilitou um desenvolvimento da Té.Garns, FA teia da vida. Uma nova com sistemas vivos, p. 204. —— 26 Silas Guerriero que nem conseguem ficar de pé. Acabam imitando os com- portamentos e o8 sons do animal que os criou. De nada adianta o corpo de Homo sapiens somente. E necesséria a cultura para nos completar. Somos seres em aberto. As determinagées instintuais acabam sobrepujadas pélas marcas da cultura, das esco- Thas que os grupos humanos realizaram ao longo de sua histéria. Se 0 cédigo genético no define o nosso compor- tamento, é necessfria a cultura para nos orientar e dizer como devemos nos comportar. Através de escolhas propor- cionadas pelo livre arbitrio, cada grupo humano foi tecen- do um conjunto de eédigos e normas de conduta que com- poe a cultura. Desta maneira, os grupos foram se diferen- ciando, estabelecendo marcas distintivas, construindo identidades e modos diferenciados de se relacionar. Seja orelacionamento com anatureza, através de técnicas ¢ fer- ramentas espectficas, seja entre seus integrantes, por meio de linguagens distintas, ou ainda com o mundo do imagi- nario, através de mitologias préprias. Logo apés o nascimento, cada novo membro de um grupo comecaré a assimilar uma carga de informagoes simbélicas culturais que seu povo construiu ao longo de muitas geragdes. O conhecimento se dé mediante acumulagao. Acumulamos o saber de nossos ancestrai reelaboramos esse conhecimento eliminando algumas partes e acrescentando o que descobrimos e inventamos e ‘transmitimos tudo isso a nossos descendentes. N&o nos Yimitamos apenas as nossas experiéneias, mes através da Tinguagem simbélica temos acesso também as experiéncias de nossos semelhantes. A capacidade de simbolizagao e criagdo cultural permitin-nos constituir uma extra- ordinéria caracterfstica: penser no que no esté presente, Giante de nossos olhos. Essa capacidade de abstrado © transcendéncia possibilitou superar as limitacdes impostas pela natureza, Com isso, conquistamos o planeta e colocamos assdemais espécies.gob nosso domfnig; Somos capes te dala ne wee eect do ‘As origens do antropos 21 frio e, assim, embora sem um organismo adaptado para tanto, sobrevivemos em regides érticas. Somos capazes de criar avies e submarinos e, sem asas ou nadadeiras, avangamos por ares e mares. Tornamos-nos os mais po- derosos do planeta. Das milhares de culturas diferentes entre os grupos do Homo sapiens sapiens, somente algumas se colocaram em posigéo de superiotidade e arrog&ncia. Dos milhdes de anos de trajet6ria dos hominfdeos e dos 150 mil anos da nossa espécie, foi somente nos xiltimos 10 mil anos e, de forma maie agugada hé 200 anos, apés a revoluc&o indus- trial, que a civilizag&o enveredou por win caminho de con- quistas que deixou enormes seqiielas, comprometendo nao 86 0 futuro de muitas espécies como o nosso também. Ao estudar as nossas origens e a diversidade dos ‘hhumanos atuais, a antropologia contribui para uma com- preensio mais ample de nés mesmos. Permite oliar para 0 outro ~ os demais seres vivos, as demais culturas ou até mesmo n6s — nas miltiplas facetas de nossa complexa sociedade. Esse olhar leva a um retorno do enfoque para nés mesmos, fazendo com que a antropologia auxilie a responder a pergunta original: “Quem somos nés?”, Somente um olhar menos antropocéntrico pode auxiliar na busca de ume nova postura e ingergéo no cosmos, 1 necesséria uma nova visdo do todo, ecocéntrica, que englobe as varias dimenstes do humano e que leve em conta todos os sistemas vivos do planeta. Nease sentido, a antropologia contribui com as demais ciéncias, como a psicologia, para empreendermos a tarefa complexa da construgio de nossa plena humanidade. Referéncias bibliogréfica: Capra, Fritjot. A teia da vida, Uma nova compreensi cientifica dos sistemas vivos. S80 Paulo: Cultrix, 1997. Foupy, Robert. Apenas mais uma espécie unica. Sf Paul Tidnan. 1998, |r. 2. O DETERMINISMO GEOGRAFICO © determinismo geogrtfico-considera que # diferengas do mbiente fisico condicionam a diversidade cultural. S40 explicagbes existentes desde @ ‘Antigaidade, do tipo das Fomuladas por Polio, Ibn Khaldun, Bodin ¢ onsF05, como ‘yimos anteriormente. Estas teorias, que foram desenvolvidas principalmente por ge6grafos no final do século xix eno inicio do século XX, ganbaram uma grande popularidade Exemplo significativo pese tipo de pensamento pode ser encontrado Hunting ton, em seu livre Civilization and Climate (1915), no qual formula uma relagao entre latitude € 05 cenios de civiliza- gio, considerando 0 lima como um fator importante na dinamica do progresso. ‘A partir de 1920, antropélogos come Boas, Wissler, Kroeber, entre outros, refutaram este ipo de determinismo fe demonstraram que existe uma limitaglo DA influencia geogréfica sobre os fatores culturas, E mais: que € posstvel arcormum existir uma grande diversidade cultural localizada fem um mesmo tipo de ambiente fisico vFermermes, como primeiro exemplo, 08 IApOrs ¢ 08 quimés. Ambos habitam a calota polar nov, ‘0s primeiros we norte da Europa © os segundos no norte da América. Vivem, pois, em ambientes geogréficos muito semelhantes, caracterizados por um longo € rigoroso inverno. ‘Ambos tern a Ow 22° Cultura: um concelto antropolégico ao seu dispor flora e fauna semelhantes. Era de se esperar, portanto, que encontrassem as mesmas respostas culturais para a sobrevivéncia em um ambiente hostil. Mas isto nfo ocone: Os esquimés constroem suas casas (iglus) cortando blo- cos de neve e amontoando-os num formato de colmeia Por dentro a casa é forrada com peles de animais e com © auxilio do fogo conseguem manter 0 seu interior suficientemente quente. E possivel, entdo, desvenci- Ihar-se das pesadas roupas, enquanto no exterior da casa @ temperatura situa-se a muitos graus abaixo de zero gran centigrado, Quando deseja, o esquimé aban- dona a casa tendo que carregar apenas os seus pertences € vai construir um novo retiro Qs lapoes, por sna vez, vivem em tendas de peles de rena. Quando desejam mudar os seus acampamentos, necessitam realizar um érduo trabalho que se inicia pelo desmonte, pela retirada do gelo que se acumulou sobre as peles, pela secagem das mesmas ¢ 0 sett transporte para o novo sitio. Em compensagio, os lapées so extelentes criadores, de renas, enquanto tradicionalmente os esquimés limi- tam-se & caga desses mamileros,! ‘A aparente pobreza glacial nfo impede que os esquimés tenham uma desenvolvida arte de esculturas em pedra-sa- bao € nem que resolvam os seus conflitos com uma sofisti- cada competicao de cangdes entre os competidores. Um segundo exemplo, transcrito de Felix Keesing, é a variagdo cultural observada entre os indids do sudoeste norte-americano: Se De notureze da cutura 23 Os indios Pueblo e Navajo, do sudoeste americano, ocupam essencialmente o' mesmo habitat, sendo que alguns fhdios Pueblo até vivem hoje em “bolsoes” den- tro da reserva Navajo, Os grupos Pueblo sfo aldedes, ‘com uma economia agricola baseada principalmente no milho. Os Navajo sto descendentes de apanhadores de viveres, que se alimentavam de castanhas selvagens, sementes de capins e de caca, mais ou menos como os Apache e outros grupos vizinhos témfeito até os tempos modemnos. Mas, obtendo ovinos dos europeus, os Nava- Jo sto hoje mais pastoreadores, vivendo espalhados com seus rebanhos em grupos de familias. O espirito criador do homem pode assim envolver trés alternativas cultu- rais bem diferentes — apanha de viveres, cultivo, pasto- reio — no mesmo ambiente natural, de sorte que néo foram fatores de habitat que proporcionaram & determi- nante principal. Posteriormente, no mesmo habitat, co- lonizadores americanos tiveram que criar outros siste- mas de vida baseados na pecuéria, na agricultura irrige- dae na urbanizacao.? 0 terceiro exemplo pode ser encontrado no interior de nosso pais, dentro dos limites do Parque Nacional do Xingu. Os xinguanos propriamente ditos (Kamayuré, Kalapalo, Trumai, Waurd etc.) desprezam toda a reserva de proteinas existentes nos grandes mamiferos, cuja caga lhes é interdi- ada por motivos culturais, e se dedicam mais intensamente a pesca e caca de aves, Os Kayabi, que habitam o Norte do Parque, sio excelentes cagadores e preferem justamente os mamiferps de grande porte, como a anta, o veado, o caitiba etc. — 24 Cultura: um conesito antropolégico Estes trés exemplos mostram que ndo ¢ possivel admitir a idéia do determinismo geografico, ou seja, a admisséo da “acho mecnica das forgas naturais sobre uma humanidade puramente receptiva”. A posigio da moderna antrovologia € que a “cultura age seletivamente”, endo casualmente, sobre seu meio ambiente, “explorando determinadas possi- bilidades e limites ao desenvolvimento, para o qual as forgas decisivas est4o na prépria cultura e na histéria da cultura”? As diferengas existentes entre os homens, portanto, ndo podem ser explicadas em termos das limitagoes que lhes s40 impostas pelo seu aparato biolégico ou pelo seu meio am- Diente. A grande qualidade da espécie humana foi a de romper com suas proprias limitagdes: um animal frégil, provido de insignificante forga fisica, dominow toda a natu- reza e se transformou no mais temfvel dos predadores, Sem sas, dominou os ares; sem gutelras ou membranas préprias, conquistou os mares. Tudo isto porque difere dos outros animais por ser 0 tinico que possui cultura. Mas que é cultura? 1, O DETERMINISMO BIOLOGICO eee Sao velhas e persistentes as teorias que atribuem capacida- des espectficas inatas a “racas” ou a outros grupos humanos. Muita gente ainda acredita que os nérdicos sfio mais inteli- gentes do que os negros; que os alemaes tém mais habilidade para a mecanica; que os judeus séo avarentos e negociantes; que os norte-americanos silo empreendedores ¢ interessei- ros; que os portugueses sio muito trabalhadores ¢ pouco inteligentes; que 0s japoneses sto trabalhadores, traigociros e cruéis; que os ciganos séo némades por instinto, e, final- mente, que os brasileiros herdaram a preguica dos negros, a imprevidencia dos indios e a luxiiria dos portugueses, Os antropélogos esto totalmente convencidos de que as diferengas genéticas ndo so determinantes das diferencas culturais. Segundo Felix Keesing, “no existe correlacao significativa entre a distribuigdo dos caracteres genéticos €a distribuigao dos comportamentos culturais. Qualquer crianga humana normal pode ser educada em qualquer cultura, se for colocarda desde o inicio em situagéo conve- niente de aprendizado”. Em outras palavras, se transportar- ‘mos para o:Brasil, logo apés o seu nascimento, uma crianca sueca e a colocarmos sob 0s cuidados de uma familia serta- neja, ela crescerd como tal endo se diferenciaré mentalmen- te em nada de seu irméos de criagdo. Ou ainda, se retirarmos uma crianga xinguana de seu meio ea educarmos como filha "7 Cultura: um conceito antropol6gico Jo Jide wma familia de alta classe média de Ipanema, o mesmo acontecerd: ela tera as mesmas oportunidades de desenvol- vimento que os seus novos irmaos. ny 1950, quand o mundo se refazia da catastrofe e do terror do racismo nazista, antropélogos fisicos e culturais, geneticistas, bidlogos e outros especialistas, reunidos em Paris sob os auspicios da Unesco, redigiram uma declaragio da qual extraimos dois pardgrafos: 10. Os dados cientificos de que dispomos atualmente néo confirmam a teoria segundo a qual as diferengas genéticas hereditarias constituiriam um fator de impor- tancia primordial entre as causas das diferencas que se manifestam entre as culturas e as obras das civilizages dos diversos povos ou grupos étnicos. Eles nos infor- mam, pelo contratio, que essas diferencas se explicam, antes de tudo, pela hist6ria cultural de cada grupo. Os fatores que tiveram um papel preponderante na evolu- Gio do homem sio a sua faculdade de aprender e a sua plasticidade. Esta dupla aptidao ¢ o apanagio de todos os seres humanos. Ela constitui, de fato, uma das carac- teristicas especificas do Homo sapiens 15. b) No estado atual de nossos conhecimentos, nao foi ainda provada a validade da tese segundo a qual os grupos humanos diferem uns dos outros pelos tragos psicologicamente inatos, quer se trate de inteligéncia ou temperamento. As pesquisas cientificas revelam que 0 nivel das aptidées mentais é quase 0 mesmo em todos 0s grupos étnicos. A espécie humana se diferencia anatémica ¢ fisiologica- mente através do dimorfismo sexual, mas é [also que as diferengas de comportamento existentes entre pessoas de sexos diferentes sejam determinadas biologicamente. A an- tropologia tem demonstrado que muitas atividades atribui- das as mulheres em uma cultura podem ser atribuidas aos homens em outta A verificacdo de qualquer sistema de diviso sexual do trabalho mostra que ele é determinado culturalmente e néo em fungao de uma racionalidade biolégica. O transporte de agua para a aldeia é uma atividade feminina no Xingu (como nas favelas cariocas). Carregar cerca de vinte litros de agua sobre a cabeca implica, na verdade, um esforgo fisico consi- deravel, muito maior do que o necessério para o manejo de um arco, arma de uso exclusive dos homens. Até muito pouco tempo, a carreita diplomética, o quadro de funciona- ios do Banco do Brasil, entre outros exemplos, eram ativi- dades exclusivamente masculinas. © exército de Israel de- monstrou que a sua eficiéncia bélica continua intacta, mes- mo depois da macica admissao de mulheres soldados. Mesmo as diferencas determinadas pelo aparelho repro- dutor humano determinam diferentes manifestagdes cultu- rais. Margareth Mead (1971) mostra que até a amamentagéo pode ser transferida a um marido moderno por meio da mamadeira. E os nossos indios Tupi mostram que o marido pode ser 0 protagonista mais importante do parto. E ele que se recolhe & rede, e ndo a mulher, e faz o resguardo conside- rado importante para a sua satide a do recém-nascido Resumindo, o comportamento dos individuos depende de um aprendizado, de um proceso que chamamos de Cultura: um eonceite antropolégico endoculturagdo. Um menino e uma menina agem diferente- mente nao em fungao de seus horménios, mas em decorrén- cia de uma educacio diferenciada. Identidade cultural Kénia Kemp Introdugao Mw falar em identidade, imediatamente pensamos na identidade de wma pessoa, nos tracos marcan- tes de sua personalidade e em caracteristicas que lhe seriam essenciais. Assim, identidade seria algo idénti- co & personalidade. Pensando socialmente, entretanto, consideremos que © conceito de identidade é atravessado por outros, como grupo social e cultura. Para as Ciéncias Sociais, a iden- tidade dos sujeitos se constitui inicialmente de condigdes hist6ricas e culturais que lhes so dadas, condiedes que no escolhem, pois ao nascer se deparam com um grupo familiar e social em pleno funcionamento, com sua lingua, regras, hébitos e tradigdes. Entretanto, a partir de um certo momento de nossa trajetéria pessoal de vida, é possfvel negociar com essas limitagdes anteriores, pois.a cultura é pautada pelo movimento. Esse movimento de manipulagio de coisas previa- mente dadas pelo ambiente social deve-se & nossa capacidade de re-significar experiéncias, mesmo qne repetitivas. Assim, falamos da constituig&o das identidades como “processos de identificacao”: as experiéncias cotidianas nunca cessam de proporcionar situagSes que nos 66 Kenia Kemp demandam escolhas e posicionamentos em relacdo a condutas e valores, tanto os pessoais como os alheios. Nés € 08 outros, os semelhantes e os diferentes: as nogées que construimos socialmente de igualdade e diferenga sio a moeda do jogo de construgao das identidades. A cultura entraria proporcionando referenciais a partir dos quais os atores sociais acessam os elementos do cenario de conduta para desempenhar seus papéis. Em vez de uma esséncia, algo acabado e estitico, a anfase da antropologia recai sobre o incessante movimento de didlogo entre os simbolos que fazem parte da cultura dos diferentes sujeitos. Dessa forma, é possivel refletir sobre as varias identidades que cada situagao social nos permite utilizar, considerando os fatores que interferem nesse processo: a categoria de idade, a participagéo em grupos, o desempenho de papéis socialmente reconhecidos. Tais fatores sio respons4veis pela construgaéo da identidade que cada sujeito se atribui, bem como a que os outros reconhecem em alguém, e que nem sempre sao coincidentes. Identidade nacional, de classe, de grupo, profissional, de género: todas elas nos remetem a forma como os sujeitos percebem e participam de suas culturas. Biologia, psicologia e antropologia Hippie, punk, rapper, clubber, skatista, homossexual, careca, gotico, motor biker. Algumas identidades culturais chamam atenco por causarem atragao ou reptidio. Essas formas identitérias nfo passam despercebidas sobretudo por se distanciarem do “padrao” de comportamento de um grupo. Entretanto, existem outras categorias de identidade que percebemos, demarcamos e As quais atribuimos di- ferentes valores: os compatriotas, estrangeiros, negros, orientais e indios. Igualmente capazes de atribuir identidades, elas parecem desprovidas da mesma forga de mobilizagéio que as outras, mais glamorosas. Mas néo é assim. Podemos brincar com a combinacdo dessas dife- Identidade cultural 67 rentes fontes de identificac&o: o punk inglés e o punk brasileiro; 0 rapper branco e 0 negro; o hippie chique e o auténtico; o sambista tradicional e o pagodeiro; o caipira eo country. ‘As rotulagbes sociais fazem parte de um jeito de categorizar as identidades culturais na sociedade contem- pordinea e resultam de uma combinagéo complexa entre origens biolégicas, opg6es sexuais, padrdes de consumo, tradicionalidade, idade, classes sociais, localizacdo geogré- fica e muitas informacdes do senso-comum. Na vida em sociedade utilizamos constantemente essas referéncias, seja para afirmar a nossa identidade, sej4 para localizar 0 outro, Ao lado dessas praticas, hé varias maneiras de pensé-las. Algumas versGes disciplinares se diferenciam da antropologia'e.demarcam questes especificas. Biologia — A definigao bioldgica da identidade dos indivfduos enfatiza a heranca genética, da qual derivam as varias ragas humanas. O conceito de raga encontra-se praticamente banido das ciéncias humanas e princi- palmente da antropologia, que a substituiu pelo conceito de etnia, Essa substituigao deveu-se ao abuso politico que legitimou préticas de discriminag&o, preconceito e 6dio entre ragas durante os wltimos séculos. Os fundamentos puramente biolégicos do conceito de raca, utilizado para classificar os tipos humanos, desembocou em préticas de dominagao econémica, militar, politica e moral de algumas nacionalidades sobre outras, desde as Grandes Nave- gacdes. Essa dominacdo mostrou as muitas formas possiveis de subjugar um povo, como a espoliagéo do trabalho alheio, a completa desvalorizacdo das tradigdes e crengas, a inferiorizacao de tracos culturais alheios ou 0 exterminio de populagées inteiras. A ciéncia no é imparcial. Uma vez produzido, 0 conhecimento pode ter uma infinidade de usos, na maior parte das vezes imprevisiveis ou indesejéveis. O inventor de um instrumento, ou de uma teoria, nfo possui controle ahealnta aohra os deadahramentns da sna invencain. Maa 70 Kénia Kemp a carroga pode dar origem ao avido, ou o machado a moto- serra. A cultura material se reproduz e se transforma mediante a obra humana, cujas necessidades seguem uma légica de transformacdo que nao se reduz A adaptac&o e a sobrevivéncia. O ser humano transforma, aperfeigoa e inventa movido por necessidades humanas, cuja légica extrapola a da sobrevivéncia e para a qual nem sempre so necessérios requisitos como uma maior capacidade fisica on intelectual. Em resumo, Lévi-Strauss defende a idéia de que, para a antropologia, a identidade cultural nao deve ser pensada biologicamente. Devemos deixar de atribuir carater hereditério A cultura: nés nao herdamos geneticamente préticas ou aptidées culturais. Um bebé chinés recém- nascido que passe a ser socializado por uma familia di- namarquesa cresceré e desenvolveré habilidades culturais, de um dinamarqués. 8 equivocada a idéia de que certos atributos culturais sao “naturais” e “pertencem” a de- terminadas etnias. £ no cotidiano do grupo social que se reproduzem aprendizados e se produzem habilidades. Psicologia ¢ Antropologia ~ Outra visdo sobre a identidade é elaborada pela psicologia e se relaciona com a constituigdo histérica da subjetividade; a antropologia, além desta, trabalha com a “nogio de pessoa”, Essa dife- venga conceitual resulta de diferentes enfoques e do mé- todo de observacéo de cada ciéncia com respeito a ques- tées bastante préximas mas que recebem destinos disci- plinares diferentes. No caso da psicologia, o estudo da constituigéo histérica da subjetividade privilegia a tradi- ao da cultura ocidental e a heranga greco-romana. Prooura-se compreender os antecedentes hist6ricos da subjetividade contempordnea e suas intercorréncias com a cultura ocidental. A subjetividade, como a entende a psi- cologia, se refere A constituicéo dos sujeitos nas socieda- des modernas. Na modernidade, observamos um “desco- Tnmanta® da oniaite am valanda de actrntnvas eneiaie Tetn Identidade cultural 71 faz parte das profundas mudangas que caracterizaram 0 advento da modernidade. Na antropologia, a nogéio de pessoa abrange uma gama enorme de grupos sociais com tradicdes culturais diferentes das nossas. Até certo momento da historia moderna, essas culturas nao eram dominadas pelo padrao ocidental. Pensar a nogéo de pessoa permite ver como varias culturas nfo-modernas entenderam a relagdo individuo-sociedade. Nela residem os mecanismos que nos mostram tanto a nossa identidade cultural como a identidade de quem denominamos “outro”. Em tempos da modernidade-mundo contempordnea — termo que Ortiz prefere ao de “globalizacéo"e em que a pluralidade e a circulagao de idéias e simbolos néo apenas faz parte da constituicao das identidades mas é a mentalidade dominante -, 0 enfoque da antropologia so- bre o “outro” ajuda a pensar a atribuicdo de nossas iden- tidades culturais ‘Ao invés de descrever e comparar uma enorme quan- tidade de culturas e a maneira como cada uma constitui a nogdo de pessoa, aglutinamos dois grandes grupos: as “sociedades tradicionais” e as “sociedades modernas”. Ne- les foram aproximadas culturas aparentemente distintas mas que possuem mecanismos equivalentes. ‘As sociedades modernas integram o grande grupo cuja caracteristica principal 6 uma autonomia bem demarcada entre esferas de praticas sociais como a politica, a eco- nomia, as leis, a familia, o trabalho, a religifo, a educagio, aarte. Nesse tipo de arranjo social, ao qual pertencemos, cada uma das esferas mencionadas pertence a prdticas distintas. Somos capazes de separar, por exemplo, a religiao do trabalho. Essa autonomizacéo das diferentes esferas 6 conseqiiéncia das mudangas ocorridas desde o Renascimento europeu. Em “O exilio do sagrado”, Rubem Alves*lembra que a légica utilitéria da vida econémica 2. Onn, R. Um outro territério, p. 86. 3. Auvas, R. “O exflio do sazrado”. 72 Kénia Kemp passou a ocupar um lugar central sob o capitalismo. O dom{nio da esfera material e de sua racionalidade competitiva-acumulativa sobre todos os outros aspectos da vida social precipitou-a separacao de esferas antes concebidas como equivalentes. Foi necessério.desvincular o trabalho da religifo para poder encaré-lo como fonte de acumulagéo individual de. riqueza sem nenhum comprometimento espiritual. Foi necessério desvincular a politica da religiéo para que na disputa por cargos predominasse 0 poder econémico, Nessa seqiiéncia de quebra de vinculos, o prOprio sujeito desvincula-se das estruturas que o circundam e se percebe como individuo dotado de vontade e liberdade. Nas sociedades tradicionais, esse grau de dife- renciagfo e autonomia, ou é muito pequeno ou é ine- xistente, pois sua logica nfo é a do utilitarismo econémico mas a das concepgbes mistico-religiosas. O misticismo atravessa todas as outras esferas da vida social, tecendo um elo que as une ¢ equivale, Basta lembrar que, nessas, sociedades, a arte — principalmente a mtisica e a danga - faz parte da religiGo. Canta-se e danca-se ritualmente, para adorar deuses e para ir & guerra. Nessas sociedades, a colheita farta nao 6 encarada como riqueza mas como dédiva divina. A centralidade da légica religiosa faz com que os individuos concebam sua participagao no grupo social como algo regido por mecanismos mais coletivistas que individualistas. AS 0 sujeito esté confundido com a estrutura de seu grupo, sua tinica fonte de referéncia identitaria. A partir dessa compreensao peculiar de mundo, é definida a nogéio de pessoa nas sociedades tradicionais. Para construir sua identidade, os individuos dispéem de referenciais distintos dos modernos que nos permitem estranhar a nés mesmos e compreender que nAo so idéias “paturais”. Por que parece que a questdo da identidade nao 6 problematizada nas sociedades tradicionais, como é nas modernias? Ser que os indios néo sofrem de crise de Identidade cultural 3 individualismo tao caracteristico da modernidade, as coisas se passam como se af of individuos tivessem identidades mais estdveis. Hall lembra que “isto ndo significa que nos tempos pré-modernos as pessoas néo eram individuos mas que a individualidade era tanto ‘vivida’ como ‘conceptualizade’ de forma diferente”. Nas sociedades tradicionais existe uma forte associagdo entre cultura, povo e territéric. A cada etnia corresponde uma geografia bem delimitada e um tinico referencial cultural a partir do qual os individuos séo educados. O contato cara-a-cara, 0 local da interagfi social 6 uma instancia privilegiada ~ e praticamente nica — de construgéo de identidades. A relativa auséncia de um .” contato cultural com a diferenga teria como conseqiéncia a reprodugao de um modelo cultural de identidades menos exposto. a transformagies. Elas ocorrem, sim, mas em ritmo muito mais lento que nas sociedades modernas. Na auséncia de subjetividades, nos referimos na literatura antropolégica & construg&o da nogéo de pessoa. Como ela ocorre? Carneiro da Cunha analisa como na etnia krahé a nogdo de pessoa ¢ ligada a categorias sociais especificas como “amigo formal” e “companheire”™, Eulre esses indios, a identidade social 6 associada & nomeagio; a identidade individual e biolégica se associa a con- sangiiinidade. Assim, companheiro 6 “quem faz o que eu fago ao mesmo tempo que eu, quem nasce no dia em que nasgo, quem governa o pAtio quando eu também governo... quem me acompanha em minhas agées cotidianas”. Jé « amigo formal é um “estranho, um néo-parente” (que seria associado ao nome) com quem se mantém uma relag&o de respeito extremo e de evitaeao. Quando colocados juntos para serem iniciados, os krahés podem ‘optar estabelecer relagées de amizade formal apés passarem por um rito: “De costas um para o outro, mergulham no ribeiréo em 4, Hain, 8. A identidade cultural na pés-modernidade, p. 25. FB. Camwnma na Canta Mi Antrannlnin dn Rrmotl wm RRO 4 Kenia Kemp diregées opostas, em seguida emergem e se encaram”. Um rito semelhante estabelece a relagéo de companheirismo: “Os candidatos mergulham juntos, abragados e na mesma diregao”. A nogéio de pessoa se definir na semelhanga, simultaneidade e proximidade através'dos “companheiros”, ou na alteridade, desencontro e disténcia através dos “amigos formais”. Trata-se de relagdes sociais construidas @ néo apenas determinadas, como normalmente entendemos as sociedades tradicionais, em que sujeito e estrutura séo encarados como extensées “naturais”. Contraste e identidade ‘Um ponto central para a compreensao antropolégica da identidade refere-se a necessidade de referenciais Quando se parte do ponto de vista da propria cultura, a princfpio todos os comportamentos parecem naturais, como se no fosse possfvel conceber certas atitudes em deter- minadas situagSes de maneira diferente. Entretanto, a versidade cultural nos mostra que nada no comportamento humano pode ser visto como “natural”, pois cada cultura resolve sous modos de vida de forma original. Quando vemos pessoas de outros grupos tomando atitudes que nfo condizem com nosso padrao, achamos que sao loucas, esquisitas ou engragadas. Um mugulmano se flagelando por ocasiio da morte de um lider politico- religioso nos parece insano; a ele também parece estranho © fato de nao nos flagelarmos quando perdemos Ifderes. Uma roda de Iideres de diferentes nagGes ind{genas fumando 0 cachimbo da paz nos parece engracada, assim como eles devem achar graca que nossos Ifderes, ao se reunirem, néo fumem juntos. Em nossa cultura, jé foi muito comum dois homens duelarem até a morte por quest6es de honra ou pela disputa de uma dama; hoje nao nos parece normal tirar a vida de alguém ou arriscar a nossa devido a honra, orgulho ou amor. Tais juizos e estranhamento decorrem de referencias etnocéntricas. aue Identidade cultural 75 nos levam a pensar o outro no a partir das categorias culturais dele, mas a partir das nossas, Contudo, 86 nesse contato com a diferenca é que se podem construir nogdes sobre identidade. Enquanto ndo se deparar com o “outro”, em sua alteridade, nao se pode abandonar a perspectiva que naturaliza a cultura e as identidades que ela produz. Enquanto os fatos culturais forem tomados como naturais, ndo se pode comparé-los, questions-los e entendé-los. Enquanto os individuos de um. grupo dispSem de um tinico referencial cultural — 0 pro- prio ~ a questo da identidade nao se coloca, pois nao hé parametros para dimensioné-la ou avalié-la. Existe no sen- so-comum a idéia (preconceituosa) de que “brasileiro ndo gosta de trabalhar”, associada a eventos da cultura bra- sileira, De onde viria tal afirmagao se n&o houvesse um trago cultural de outro povo cuja caracteristica parecesse § 0 inverso dessa? Ora, s6 possivel conhecer como sou a" partir daquilo que no sou. Construir uma identidade ¢ !: dialogar com referéneias simbélicas dispontveis, as quais 86 8&0 percebidas quando se descolam de sua pretensa % naturalidade. E necessdria uma referéncia a parlir da qual se pode comparar. Trata-se da “identidade contras- tiva”, “que surge por oposi¢do, implicando a afirmagao do ‘nés’ diante do ‘outros”*. & muito comum 0 riso ou es- panto quando vemos os “outros” exercitando suas iden- tidades e que nos parecem to impensadas que reagi- mos como platéia num teatro. Essa reagao reafirma con- dutas consideradas corretas, e portanto naturais, dentro de nosso grupo. Diante da diferenga, passamos a ter mais de um re- ferencial. Quanto mais referenciais dispontveis, maior a multiplicidade de jogar com identidades culturais possi- veis. Uma das caracterfsticas marcantes da contempora- neidade, a “modernidade-mundo’, 6 a aceleracao do ritmo de circulacao de pessoas e mercadorias, portadores @ co- 6. Ouiveina, RC. Um conceito antrovolévico da identizindis » 8A 16 Kénia Kemp municadores de uma quantidade crescente de referéncias, simbélicas, Os simbolos se desprendem, porque retirados de seus contextos originais, sendo constantemente mani- pulados e reinterpretados gerando novas possibilidades de uso e de novas significagées. A isso Giddens denominow “desencaixe” dos sistemas sociais.” O advento das socieda- des modernas rompe com a antiga continuidade entre um ovo, um local, uma cultura: “Tudo se passa como se; nas sociedades antigas, espago e tempo estivessem contidos pelo entorno fisico”’. Pois, agora, o territério da cultura nem precisa existir. Parafraseando Lévi-Strauss, “a iden- tidade 6 uma espécie de lugar virtual, o qual nos é indis- pensével para nos referirmos e explicarmos um certo miimero de coisas, mas que no possui na verdade uma existéncia real”. ‘Apesar de todas essas rupturas com a antiga ordem, referenciais ainda sflo necessdrios pois servem no s6 para construir as identidades mas sobretudo, para legitimd-las. Quando afirmamos que um punk inglés 6 “verdadeiro” e 0 brasileiro é uma “caricatura” ou uma versio piorada dos originais, referimo-nos aquilo que tomamos como modelo para determinada identidade social. Entramos no terreno da disputa social de legitimidade sobre as varias identidades e ndo nos requisitos para a construgéo simbélica delas. His mais uma consoqtiéncia dos “desencaixes” da modernidade. Devido a intensa circulagéo de idéias e simbolos, a modernidade estimula a explosao de um ntimero imenso de identidades grupais dentro de uma mésma sociedade e época. Esse “multi-tribalismo” contemporaneo modéla comportamentos que caracterizam varias “tribos”, 7, Gappens, A. As consegiléncias da modernidade, p. 26. 8, Ornz, R. Op. cit, p. 79. 8 Ona Rn rit. 8 Identidade cultural 7 Identidade nacional e identidade de género Nagdo + Em qualquer sociedade, os individuos cons- troem suas identidades de acordo com um. “modelo” cul- tural de comportamento-que os enquadra em papéis'e fangdes sociais. A identidade nacional é parte da constru- go desse modelo, sendo diferente:da totalidade de nossa cultura. Os tragos associados a cada nacionalidade fazem + parte da construcao histérica da idéia de nagio. Assim afir- i mam-se as diferencas nacionais que sfo de ordem polfti- ca, territorial, juridica e econdmica, através das pretensas ;) peculiaridades culturais entre elas. A totalidade de uma cultura no pode ser reduzida a seus tragos “uacionais’, mesmo porque é impossivel determinarmos a origem e pro- priedade de todas as manifestagdes culturais; a idéia dé" identidade nacional 6 apenas um recorte conceitual, uma das forma de representagao de nossas identidades. O subs: trato de uma nac&o ndo 6 de ordem biolégica, e depende ¥ portanto da interagao social do grupo que reproduz trad ges ou as descarta estabelecendo cotidianamente formas de reconhecimento mituo delimitando a fronteira entre o! “nés” e oa “outros”. Genero - Ao lado da identidade nacional, temos outros recortes possiveis de nossa identidade cultural, Tomemos como exemplo a questdo da diferenga de identidade entre os individuos que pertencem ao sexo masculino e feminino, As pessoas nascem com um sexo biologicamente definido, mas ndo com um papel ou comportamento social que seja inerente a ele. A cada culture correspondem diferentes modelos de comportamento esperados pelo grupo, para que um individuos seja considerado de um ou outro sexo. A isso denominamos género. Os atributos associados ‘ao comportamento feminino e masculiny vaviam imensamente dentre a diversidade cultural, e estéo intimamente associados ndo apenas a reproduc&o, mas também aos papéis desempenhados por cada um dos sexos Kenia Kemp ‘A identidade de género faz parte do processo de socializagéo © portanto se encontra intrinsecamente dependente dos modelos de educagao afetiva que di- ferenciam meninos de meninas. Nesse aspecto, o individuo depende em parte da escolha dos pais e da sociedade como um todo que Ihe oferecem referéncias de identificagéo relacionadas a um ou outro sexo, desde o ambiente que compéem 0 quarto da crianga, sua vestimenta, as reagdes reprimidas e as incentivadas, 0 gosto desenvolvido por certas atividades. Complementar ao processo de socia- Tizagdo e de educagio afetive encontramos a identificagdo sexual propriamente dita. Assim, cada individuo estabelece relagées de identificagéo com um ou outro género, desenvolvendo comportamentos que considere congruentes com sua escolha."” Resumindo, existe uma tipificagdio de género para cada cultura e espera-se dos indivfduos distintos biologicamente um comportamento sexual correspondente; porém durante 0 processo de identificago pode-se tanto convergir como divergir dos padrées, Em nossa sociedade, o padréo majoritariamente aceito determina que ao feminino devem-se associar caracteris- ticas como a fragilidade, a dependéncia, a afetividade, o romantismo; ao masculino seriam a virilidade, a raciona- lidade, a agressividade. Porém esse modelo pode estar “ao avesso” em outras culturas. O sexo biolégico é parte, mas nao determinante de nossa identidade de género. O géne- ro 6 uma construgo psicossocial. Relacionado ao género, temos os papéis sociais, Cada cultura define que certos papéis serdo preferencialmente ou ainda exclusivamente atribufdos a um ou outro sexo. Nas sociedades tradicionais cozinhar, cultivar a terra, criar animais, cagar, ensinar, curar, sao atividades sociais reconhecidas como responsabilidade de um ou outro sexo. Na sociedade contemporanea, existe uma tendéncia cada 10. Stiva, MGA, Formapio e desenvolvimento da identidade sexual Identidade cultural 19 ‘vex mais comum onde essa delimitagdo deixa de ter sentido; entretanto ndo 6 dificil encontrarmos localidades mais, apegadas &s tradigdes onde as fronteiras de papéis sexuais, so mais tgidas e demarcadas. Nesse contexto, 0 ato de ler jornal por exemplo, que para muitos nfo indica determinagio de género, pode estar vinculado a uma concepeao de papel masculino, provocando estranhamento ofato de uma mulher fazé-lo. Grupos, tribos, gangues e “minorias” Nas sociedades modernas, a tradig&o cultural do gru- po perde a centralidade como referéncia identitéria para as pessoas. Os individuos sentem-se livres e capacitados a formular escolhas subjetivas. Em decorréncia dessas orientagdes subjetivas, o reconhecimento do “lugar” social de cada um pode ser resultado da combinacao de varios elementos identitérios como género, profissao, lazer, con- sumo, crengas, orientagdo polftica e partidéria e assim pur diante, O agrupamento 6 uma forma de afirmagfo de di- ferengas, idéia que nos remete novamente ao conceito de identidade contrastiva. Além de contrastiva, a construgdo simbélica das iden- tidades 6 também relacional, pois elas sao “complementa- res” ou “combinadas”. Pensamos as identidades sempre “em relagio a” algo. Em nosso dia-a-dia desempenhanius varios papéis sociais em diferentes contextos. Em casa, somos filhos ou pais complementarmente ao lugar do ou- tro-— 86 posso ser “filha” se houver um “pai” ou uma “mie”; no trabalho ocupo o lugar de “professora” porque hé “alu- nos”. Enfim, dirigimos nossa conduta orientados pelo setting (cenério) social que se forma nas varias situagées. Ao reconhecermos a que categoria pertence o outro, ime- diatamente assumimos esta ou aquela conduta, combinan- do ou complementando a situagao social. TL Ouvema, R Op. at. 80 Kénia Kemp O caréter associative na modernidade permite uma variedade de agrupamentos sociais devido & multiplicidade de “categorias sociais”, Jovem, executivo ou artista apenas na modernidade passam a atuar e ser percebidas no cenério social enquanto dotados de particularidades em relagdo a sociedade domo um todo. Varios fatores so responséveis pela multiplicagéo de categorias sociais: a universalizagdo da educagao através das escolas fundamentadas em teorias psicolégicas e pedagégicas; a qualificagio para o mercado de trabalho, que canaliza para um mesmo tipo de formagao os profissionais de uma mesma especialidade; a explosio dos meios de comu- nicagéo de massa, responsAveis pela divulgacao de modos de vida e hébitos e pela criagéo de mitos retirados do universo artistico (musicos, dangarinos, atores e es- critores); a cultura do consumo como instancia legiti- madora de identidades. Essas caracterfsticas permitem que 0s simbolos de identidade operesn em méo-dupla: multiplicam-se as categorias sociais através de um uni- verso simbélico caracteristico demarcando a identidade de cada grupo; torna-se maior o convivio entre elas. Os cendrios sociais possibilitam 0 contato com a dife- renga a partir da qual dialogamos e criamos algum nivel de identificagfo. Assim, nos aproximamos e associamos a grupos que proporcionam referéncias que fazem sentido ‘em nosso universo simbélico. Nem todo grupo é identifi- cado como uma “tribo”. Para tanto, 6 necesséria certa ma- nipulagio simbélica que torne sua identidade reconhect- vel — porque contrastével — frente as demais. Essa mani- pulagéo 6 a selegiio de tragos especfficos: vestimentas, lin- guas/ dialetos/ girias, religiéo etc. Tornam-se “tracos diacriticos”? desse grupo e permitem aos “outros” reconhecé-los e a eles proprios dar sentido e coeréncia & sua identidade. Quando reunidos em grupo, essa identi- dade ritualiza-se, condensa-se, agudiza-se. Nos cendrios 1B .Camwamno ba Cunna. M. On. cit. Identidade cultural 81 urbanos hé territérios que parecem ocupados por uma “tri- bo”. Subirats refere-se a uma “cultura do espetdculo” con- temporanea, metéfora dessa publicizagso e ritualizagao das identidades e da importéncia exacerbada conquista- da pela performance ¢ pela dimenséo audiovisual atual."* Carneiro da Cunha associa a cultura a um “acervo” simbélico do qual retiramos de cada contexto elementos que consideramos representativos de nossa identidade.™ Apesar de imprevistvel, essa selego nao é totalmente ar- bitréria, havendo uma coeréncia com os elementos novos, mesmo que isso parega contraditério do ponto de vista alheio. Por exemplo, o eixo Africa-Bahia-Caribe — triade de referéncia para um “tribalismo baiano” muito em voga — tem fundamento no na igualdade cultural desses locais, alids bastante distintos, mas na formagéo de um univer- so “que se sustenta a partir da condigso de subalternida- de dos negros nas sociedades atuais e do ludismo das ge- rages descendentes de escravos”*, Entretanto, nem todos os negros elegem como referencial a triade acima; em con- textos como a cidade de Sao Paulo, é mais comum nos depararmos com “tribos” que se referem ao negro norte- americano, em sua versdo rapper, Sao os “manos”, que exercem a cultura do RAP (Rhythm And Poetry). O corpo adquiriu dimensao privilegiada como meio de comunicagao das identidades. O vestuério, os adornos, 0 body piercing, as tatuagens, os cortes e cores de cabelos servem como formas identitérias de pertencimento a grupos. O “estilo” 6 uma linguagem simbélica que localiza individuos e determina escolhas. Trata-se de um “neo- tribalismo” que remete a uma pratica das sociedades tradicionais. Na maior parte das tribos, as interferéncias corporais ‘so recurso comum tanto em ocasi6es vituais quanto para identificar linhagens familiares ou papéis, 13. Susmats, E. A cultura como espetdculo, 14, Cannaino va Cun, M. Op. cit. TR Moree R Om ait m 28 a2 Kenia Kemp sociais, fazendo parte da obediéncia as tradigoes e regras. A diferenga da versao atual desse fenémeno reside no fato de ser utilizado ndo em conformidade as regras, mas como ventativa de quebré-las. O corpo atualmente € o canvas em que se inscrevem as interpretagées sobre as. relagdes sociais: nele, exibimos a forma como percebemos e vi- venciamos as contradigdes sociais e os desejos; também facilita a sociabilidade, agrupamento e pertencimento, Em qualquer “tribo”, a reprodugo da linguagem, do visual, do gestual, da danca e dos valores sempre terao um referencial; o que se faz com ele posteriormente, isto sim, 6 imprevisivel. Sao inimeros os motivos de alguns individuos, e outros nao, fazerem parte de “tribos”, sendo impossfvel determinar por que se adota a solugéo grupal em uns casos e em outros nfo. Entretanto o pertencimento pode solucionar, de forma simbélica ou real, limites ou privagdes, constrangimentos ou preconceitos enfrentados quotidianamente. Existe a possibilidade de tornar-se “diferente” do padrao para deixar de ser tratado como “desigual” quando se esforga por-ser parecido, Lé, entre os “diferentes”, conquisto a igualdade. ‘Isso nos leva ao conceito de “minorias sociais”. Sko chamadas “minorias” os grupos cujas identidades de alguma forma divergem ou questionam 0 padrao imposto socialmente como modelo e aceito pela maioria de seus ‘membros. © conceito tem origem na manifestag&o publica que certos grupos como negros, feministas e homossexuais iniciaram a partir da década 60. Eles procuravam rei- vindicar direitos que reconhecessem sua condicao de ' cidaddos independentemente do pertencimento étnico, sexual, polftico ou religioso. A partir dai, outros grupos passaram a adotar a postura de tornar cada vez mais publica suas identidades, disputando espagos de le. gitimidade social e do direito & diferenca. Hoje o conceito de minorias abrange qualquer grupo social que adote essa, estratégia de publicizagdo e de afirmago identitéria. « Para além dos modelos e das “minorias” encontramos p formarha da mma imansa cama de arias ene Identidade cultural 83 milaridade 6 essa. afirmapao ~ conseqiiéncia visfvel da nogdo de subjetividade. Manipulando a diferenga e a desigualdade A constituigao de identidades 6 resultado de um jogo simbélico. Manipulamos socialmente nossa identidade, @. ‘ também a dos outros, para demarcar lugares, Numa sociedade com uma hierarquia complexa como a nossa, as categorias sociais movemi-se o tempo todo — em certos * contextos, nossa identidade nos faz ser respeitados e, em outros, sofremos preconceito. A partir disso, elegemos os que consideramos diferentes simbolicamente, porém iguais em direitos © posicdo social e aqueles que consideramos iguais simbolicamente, porém desiguais na posicéo que ocupam em relagdo A nossa. ‘A manipulagdo nfo cessa af. Identidade cultural nao 6 um todo tinico e acabado que nos acompanha aonde quer que vamos: essa 6 uma conceituacdo propria do Iluminis- mo. Desde entéo, todas as mudangas sociais e intelec- tuais nos fizeram pensar e agir de forma completamente diferente em relagéo as identidades, Hoje preferimos pen- sar em processos de identificagao: em cada contexto so- cial enfrentado, recombinamos os elementos de nossa iden- tidade, ressaltando alguns ou ocultando outros. A identi- i. ficagdo é sempre referencial, relacional e combinada. As- (sim, descarte-se a idéia do senso-comum de que, ao enfren- iar. certas situagdes, algumas pessoas “perdem a identida- Py iiide?. Sempre teremos alguma identidade sempre operante By tdentro de contextos sociais com os quais mantemos expec- tivas, aos quais pretendemos dar respostas. Identidade vem pronta mas é fruto de uma construgo continua. Bor isso n&o faz sentido dizer que se pode “perdé-la’. §)¢ Ha interesses de legitimagao do proprio grupo, ou teresses em retirar a legitimidade do outro. Pode ser nveniente agir como o brasileiro do “j 84 Kénia Kemp “competente”. Rocha lembra: “A expressdo ‘fulano é muito louco’ pode ser elogiosa em certos casos e pejorativa em outros. Em alguns momentos da histéria 0 louco foi acorrentado e torturado, em outros, foi feito portador de uma palavra sagrada’e respeitada”*. A manipulagiio de identidades esconde esse jogo de disputa de legitimidade 6 de posigdes sociais. Quando queremos nos apresentar a estrangeiros para nos valorizar, trazemos A tona tragos da tradi¢ao e peculiaridades que nos identificam como brasileiros: a cordialidade, informalidade e alegria. Entretanto, entre nés so comuns exptessbes depreciativas: “Brasileiro é preguicoso”; “a terra é boa, mas tem um povinho...”. Enfim, qualquer grupo de alguma forma coloca’ em questdo a legitimidade dos tracos de sua identidade, que inclusive podem ser modificados, ampliados ou reprimidos. En- quanto forem legitimados, permanecerao. “Direito a diferenca” é uma expressio'resultante de intensa prética politica de minorias sociais a partir da década de 60. Relembrando, negros; homossexuais, prostitutas, minorias étnicas, grupos religiosos, feministas e estudantes vieram’a ptblico denunciar questdes importantes relacionadas a direitos de igualdade e cidadania. Nesses casos, trata-se de denunciar o tra- tamento inferiorizante, os lugares subalternos a que so confinados. Faz parte do jogo da “politica das identidades” Hall refere-se As identidades pés-modernas como “abertas, contraditorias, inacabadas, fragmentadas””. N&o que-se- jamos esquizofrénicos ou incapazes de escolher e sim porque finalmente podemos expressar as contradicées & escolher sem ter de abandonar as outras opgdes. Ento, viva a diferengal 16 Roatia, B. Op. eit 17. Haut, 8. Op. cit. Identidade cultural 86 Referéncias bibliograficas Aves, Rubem. “O exilio do sagrado”. In: O que é religido. S80 Paulo: Brasiliense, 1981. espetdculo urbano, Sto Paulo: Serta, 1994, Carneiro Da Cunza, Manuela. Antropologia do Brasil. Sao Paulo: Brasiliense, 1987. Levi-Srrauss, Claude. “Raga e hist6ria”. In: Antropologia” estrutural II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976. Paulo: Unesp, 1991. GorsMan, Erving. A representagdo do eu na vida cotidiana. Petrépolis: Vozes, 1975, Hau, Stuart, A identidade cultural na pés-modernidade, Rio de Janeiro: DP&A, 1998. Kap, Kénia. Grupos de estilo jovens ~ 0 Rock Undorgrannd € as préticas (contra)culturais dos grupos punk e thrash em Sao Paulo. Campinas: Unicamp, 1993, Mimeo (dissertagao de mestrado). 7 Otiveina, Roberto Cardoso de. “Um conceito antropolégico de identidade”. In: Identidade, etnia e estrutura social. S40 Paulo: Pioneira, 1976. Onn, Renato. “Modernidade-mundo e identidades”, In: Um outro territ6rio ~ Ensaios sobre a mundializagdo. S&o Paulo: Otho d’Agua, 1996. % Rocua, Everardo. O que é etnocentrismo. Séo Paulo: Brasiliense, 1998,(Colec&o Primeiros Passos, n* 124). Snva, Maria do Carmo de Andrade. “Formagéo e desen- volvimento da identidade sexual ou identidade de género”. In: RipetRo, Marcos (org.) O prazer e o pensar, Séo Paulo: Gente, 1999, v. 1, pp. 39-54 Susinats, Eduardo. A cultura como espetéculo. Sao Paulo: Nobel, 1989. 3. OS INDIVIDUOS PARTICIPAM DIFERENTEMENTE DE SUA CULTURA a } A participacdo do individuo em sua cultura é sempre limita- da; nenhuma pessoa € capaz de participar de todos os elementos de sua cultura. Este fato € tao verdadeiro nas sociedades complexas com um alto grau de especializagao, quanto nas simples, onde a especializacao refere-se apenas as determinadas pelas diferencas de sexo e de idade Com excecio de algumas sociedades africanas — nas quais as mulheres desempenham papéis importantes na vida ritual e econdmica —, a maior parte das sociedades huma- nas permite uma mais ampla participacdo na vida cultural aos elementos do sexo masculino. Grande parte da vida ritual do Xingu, por exemplo, ¢ interditada as mulheres. Estas néo podem ver as flautas Jacui e as que quebram esta interdigéo sofrem o risco de graves sangbes. Em alguns segmentos de nossa sociedade, o trabalho fora de casa é considerado inconveniente para o sexo feminino. Como jé discutimos este tema ha primeira parte deste trabalho, quan- do tratamos dos determinismos biolégicos, vamos nos limi- tar auma discusséo mais ampla das restrigdes decortentes das categorias etarias, E 6bvio que a participagao de um individua em sua cultura depende de sua idade, Mas é necessério.saber que CX esta afirmagao permite dois-tipos de ¢xplicagdes: uma de ordem cronolégica e outra estritamente cultural. Existem limitagdes que so objetivamente determina- das pela idade: uma crianga nao esté apta para exercer certas atividades préprias de adultos, da mesma forma’ que um velho j4 nao € capaz de realizar algumas tarefas, Estes impe- dimentos decorgem geralmente da incapacidade do desem- penho de fungBes que dependem da forga fisica ov agilida- de, como as referentes a guerra, A ceca etc. Entre outras fungdes podemos incluir as que dependem do actimulo de umm experiéncia obtida através de muitos anos de prepara- 40, Torna-se facil entender por que estas so interditadas as criancas e aos jovéns e reservadas as pessoas maduras, como certos cargos politicos etc. No primeiro tipo de impedimento etério as razdes pare- cetn ser bastante evidentes, 0 que nao ocorre com o segundo tipe, quando tratamos das raz6es determinadas cultural- mente. Por que um jovem aos 18 anos pode votar, ter um emprego, ir A guerra, se no pode casar, manipular os seus bens financeiros antes dos 21 anos sem a autorizagio pater- na? Por que um homem necesita ter 35 anos para ser um senador? Qual o argumenta para impedir 0 acesso ao mes- mo cargo para um homem de 34 anos? Por que uma jovem com 18 anos pode assistir a um determinado filme e uma outra com 17 anos, 11 meses e 20 dias nao o pode? Por que um assassino com exatamente 18 anos pode ir a julgamento € outro com um dia a menos de vida recebe um tratamento diferenciado? Estas e outras questdes estdo relacionadas com a deter- minagao do limite entre as classes etdrias, gu seja, como ‘Um candidato a um emprego sabe que o empregador dispde apenas de duas alternativas basicas: conceder-lhe 0 lugar ow nao. A surpresa ocorrerd, apenas, se o empregador agir de maneira inusitada, nao prevista pelas duas possibi dades de respostas. Nem sempre, porém, a falta de comunicagéo acontece porque um padréo de comportamento foi quebrado, mas porque as vezes os padroes nao cobrem todas as situagbes possiveis. Tal fato ocorre em perfodos de mudanga cultural e, principalmente, quando estes sao determinadas por forgas externas, quando surgem fatos inesperados ¢ de dificil ma- nipulagdo. Sao situagdes sem precedentes e que, portanto, nao sfo controladas pelo conjunto de regras ordindrias. Nem sempre os individuos envolvidos conseguem utilizar sua tradiggo cultural para contorné-las sem provocar conili- tos, Alan Beals transcreve um texto de Robert Murphy, acerca dos indios Munduruku, localizados no rio Madeira, que serve como exemplo para este tipo de situacdo: Isto ocorren ao jovem chefe Mundurule, quando cha- mado Biboi. Ele era o filho de um chefe, mas tinha sido educado por um comerciante brasileiro e se sentia supe- rior a seus companheitos. Foi o comérciante que nomeou capitao de Cabitutu. O papel de capitao consis- tia em servir de intermedidrio entre o grupo e as neces- sidades de comercializacdo do caucho por parte do comerciante. Em Cabitutu, Biboi nao tinha parentes € era considerado muito jovem e por isto tinha menos prestigio que muitos homens do povoado, No intento de fortalecer Sua posi¢ao, Biboi casou com uma vitiwa varios anos mais velha que ele. Considerando a mulher pouco atraente, trouxe para casa uma segunda mulher. A primeira esposa nfo gostoti e atacou a jovem. Os irmaos da primeira obrigaram Biboi a despedir a segun- da esposa e afasta-la do povoado. Biboi, entdo, estabele- ceu a jovem em Cabrud, 0 povoado de seu pai. Tendo deixado a sua formosa esposa num lugar segu- ro, como a casa de seu pai, Biboi voltou a Cabitutu para arranjar as coisas ¢ acalmar os descontentes. Mas conti- nuou com as suas maneiras arrogantes e exigentes, ¢ assim os sentimentos do povoado foram se inflamando sem que ele recebesse nenhum apoio de sua primeira esposa e de seus parentes. Entre eles fi crescendo cada vez mais a determinacto de extermingé-lo. Enquanto isto, a pessoa de sua javem esposa néo estava Uo segura como Biboi screditava. Seu esposo estava ausente e ela era uma mioca desacompanhada; a sua retidao nao foi suficiente para fazer frente aos ho- mens de Cabrud, Breve todos os homens do povoado, com excecéo daqueles que eram afetados pela proibicto do incest, desfrutaram os favores da jovem esposa de Bibci... O equilibrio do poder e da moral favorecia os oponen- tes de Biboi, e 0 esforco dos que o apoiavam tornou-se cada vez mais dificil em virtude do fato de que Biboi havia quase deixado de ser uma pessoa social, as regras jé nfo se aplicavam a ele, Nés mésmos deixamos o lugar antes de que caisse 0 pano deste pequeno drama social, mas ja se podia prever a coniclusio. Esta se tornou mais evidente apés 2 nossa saida, quando Caetano caiu de uma palmeira e ficou gravemente ferido durante varios dias. Sabendo que o povo de Cabitutu the daria a morte 86 Cultura: um concelto antropolégico Bo Ipgo soubesse do falecimento de seu pai, Biboi volta imediatamente a Cabrud e ali permaneceu até que # anciéo conseguisse recuperar-se, Durante este periodo Biboi se acercou de mim e disse: “Sabe, se meu pai morrer, partirei desta terra e viverei na margem do rio Tapajés.” Perguntei por que ele se ia, Biboi respon- deu: “Porque é muito bonito ld.” Bibi sabia que a sua ‘vida como membro dos Munduruku éstava terminada.? Biboi € um homem que nao sé sente em nenhuma cultura, Nao soube manejar as regras para viver bem na sociedade Munduruku — ele se considerava muito su- perior a eles e acreditava poder ensiné-los, Estava colo- cado em um status que nao Ihe pertencia e onde nao podia ter éxito jé que nfo contava com o apoio de parentes. No final teve que escolher entre a morte ou 0 exilio.* © exemplo descrito acima mostra 0 que pode ocorrer com uma pessoa que, por forca de uma socializagio inade- quada, néo conhece as regras de seu grupo. Embora ne- nhum individuo, repetimos, conheca totalmente o seu siste- ta cultural, € necessario ter um conhecimento minimo para operar dentro do mesmo. Além disto, este conhecimento minimo deve ser partilhado por todos os componentes da sociedade de forma a permitir a convivéncia dos mesmos. ‘Um médico pode desconhecer qual a melhor época do ano para o plantio de feijéo, um lavrador certamente desconhece as causas de certas anomalias celulares, mas ambos conhe- cemas regras que regulam a chamada etiqueta social no que se refere as formas de cumprimentos entre as pessoas de uma mesma sociedade. ee O QUE SE ENTENDE POR CULTURA IndustigeMPteensfo das sociedades modernas industriais quanto das que iam desaparecendo viewume 1eNdO suas caracter(sticas originals, ers virtude daqueles contatos. Contudo, wna’ essa aoeite peek? nfo produziu uma definigdo clare s aceite por todos do que seja cultura. For cultura dele end muita coisa, © a maneira como wale, Gela “nas paginas anteriores é apenas um entre muitos sentidos comuns de cultura \Vejamos alguns desses sentidos comuns, Cultura 2 EN José Luiz dos Santos O que é Cultura est muito associada a estudo, educacéio, formacao escolar. Por vezes se fala de cultura para se referir unicamente as manifestacdes art(sticas, como o teatro, a musica, a pintura, a escultura. Outras vezes, ao se falar na cultura da nossa época ela é quase que identificada com os meios de comuni- cacéo de massa, tais como o radio, o cinema, a televisio. Ou ent&o cultura diz respeito as festas e ceriménias tradicionais, as lendas e crencas de um povo, ou a seu modo de se vestir, a sua comida, a seu idioma. A lista pode ser ampliada Jé eu tenho falado de cultura de maneira mais genérica, preocupado ‘com tudo o que caracteriza uma populacio humana, Néo hé por que nos confundirmos com tanta variac¢&o de significado. © que importa é que pensemos sobre os motivos de tanta varia¢&o, que localizemos as idéias e temas . principais sobre @s quais elas se sustentam. Vamos entdo cercar o assunto, localizar os sentidos basicos da concep¢&o de cultura, mostrar como eles se desenvolveram, A partir’ disso nés_poderemos entender afinal.o que é cultura e dar andaménto as nossas discussSes, As duas concepgées basicas de cultura As varias maneiras de entender o que é cultura r A primeira concepefo de cultura remete a todos os aspectos de uma realidade social; a segunda refere-se mais especificamente ao conhecimento, ds idéias e crengas de um povo, José Luiz dos Santos derivam de um conjunto comum de preocupagées que podemos localizar em duas concepgées basicas. A primeira dessas concepgdes preocupa-se com todos os aspectos de ura realidade social, Assim, cultura diz respeito a tudo aquilo que caracteriza a existéncia social de um povo ou nagio, ou ento de grupos no interior de uma sociedade. Podemos assim falar na cultura francesa ou na cultura xavante. Do mesmo modo falamos na cultura camponesa ou entéo na cultura dos antigos astecas. Nesses casos, cultura refere-se a realidades sociais bem distintas. No entanto, o sentido em que se fala de cultura é 0 mesmo: em cada caso dat conta das caracteristicas dos agrupamentos a que se refere, Preocupando-se com a totalidade dessas caracte- risticas, digam elas respeito as maneiras de conceber e organizar a vida social ou a seus aspectos materiais. Embora essa concep¢go de cultura possa ser usada de modo genérico, ela ¢ mais usual quando se fala de povos e de realidades sociais bem diferentes das nossas, com os quais partilhamos de poucas caracter‘sticas em comum, seja na organizacdo da sociedade, na forma de produzir o necessério para a sobrevivéncia ou nas maneiras de ver o mundo. Mas cu disse que havia duas concep¢des bésicas de cultura. Vamos @ segunda. Neste caso, quando falamos em cultura estamos nos referindo mais especificamente ao conhecimento, as idéias ¢ crengas, assim como as maneiras como eles existem O que é Cultura na vida social. Observer que mesmo aqui a refe- réncia a totalidade de caracter(sticas de uma realidade social esté presente, j4 que ndo se pode falar em conhecimento, idéias, crencas sem pensar na sociedade a qual se referem. O que ocorre é que ha uma énfase especial no conhecimento e dimensdes associadas. Entendemos neste caso que a cultura diz respeito a uma esfera, a um dominio, da vida social. ‘ De acordo com esta segunda concep¢do, quando falarmos em cultura francesa poderemos estar fazendo referéncia a Ifngua francesa, a sua litera- tura, ao conhecimento filoséfico, cientifico e artistico produzidos na Franca e as instituicées mais de perto associadas a eles. Outro exemplo comum desta segunda concep¢do de cultura é a referéncia & cultura alternativa, compreendendo tendéncias de pensar a vida e a sociedade na qual a natureza e a realizagdo individual séo enfatizadas, e que tem por temas principais a ecologia, @ alimen- tagio, 0 corpo, as relagdes pessoais e a espiritua- lidade. Ao se falar em cultura alternativa inclui-se também as instituigdes associadas, como lojas de produtos naturais e clinicas de medicina alterna- tiva, e da mesma forma seus meios de divulgacao. Devo alerté-los de que ambas as concepgdes levam muitas vezes a que se entenda a cultura como uma realidade estanque, parada. O esforco de entender as culturas, de localizar tragos e caracter{sticas que as distingam, pode acabar 2s 26 ae José Luiz dos Santos levando @ que se pense a cultura como algo acabado, fechado, estagnado, Como jé disse antes, as culturas humanas so dindmicas. De fato, 2 principal vantagem de estudé-las & por contri. bulrem para o entendimento dos. processos. de transformagfo por que passam as sociedades contemporaneas. Esse 6 um ponto muito impor- tante. Como veremos a seguir, as proprias con- cepcées de cultura esto ligadas muito de perto a esses processos. Desenvolvimento das Preocupagées com cultura A constataglo da variedade de modos de vida entre povos e nagées é um elemento fundamental das preocupagdes com cultura. Tanto assim que & impossivel discutirmos sobre cultura sem fazer- mos referéncia a ela, Essa 6 sem dvida uma constatacdo registrada entre muitos povos desde a antiguidade. Sabe-se também que de longa data se_indagou sobre as razdes que explicavam a existéncia de costumes, modos de vida, praticas e crengas de povos diferentes. Pode-se encontrar reflexes sobre esses temas em autores da Grécia, Roma e China antigas, por exemplo. ' As preocupacdes sistemdticas com a questiio da cultura séo, porém, bem mais récentes. Desenvol- O que é Cultura veram-se a partir do século XVIII na Alemanha. Cultura era ent8o uma preocupacdo de pensadores engajados em interpretar a historia humana, em compreender a particularidade dos costumes e crengas, em entender o desenvolvimento dos povos No contexto das condicSes materiais em que se desenvolviam. E muito importante que vocés notem que a Alemanha era ent&o uma nacdo dividida-em varias unidades pol(ticas. A discusséo sobre cultura tinha assim um sentido muito espe- cial: ela procurava expressar uma unidade viva daquela nado nfo unificada politicamente, servia para falar de todos os alemaes na faita de uma organiizac&o pol ftica comum. Caminhou-se dessa maneira para consolidar as modernas preocupagdes com cultura, procurando dar conta sistematicamente de uma diversidade de maneiras de viver que jé havia sido motivo de reflexo por séculos. Observem porém que se essa preocupagao jé existia, a palavra cultura percorreu um longo caminho' até adquirir esse sentido. Cultura € palavra de origem latina e em seu signifi- cado original estd ligada as atividades agricolas. Vem do verbo latino co/ere, que quer dizer cultivar. Pensadores romanos antigos ampliaram esse signi- ficado e a usaram para se referir ao refinamento pessoal, e isso est presente na expresso cultura da alma. Como sinénimo de refinamento, sofisti- cago pessoal, educagéo elaborada de uma pessoa, cultura foi usada constantemente desde entio e 27 28 José Luiz dos Santos 0 é até hoje. Mas retornemos ao significado moderno de cultura. Essas preocupagées que cultura passou a expressar tornaram-se tanto mais importantes quanto a partir do século X!X foi-se intensificando © poderio das nagées européias frente aos povos do mundo, Aumentaram ent&o os contatos entre as nagdes da Europa, industrializadas e sedentas de novos mercados, e populagdes do resto do mundo Sociedades antes isoladas foram subjugadas ¢ incorporadas ao ambito de influéncia européia. Foi nessa época que a preocupagdo com cultura se generalizou como uma questéo cientlfica; foi a partir de ent& que as ciéncias humanas passaram a tratar sistematicamente dela. E preciso considerarmos dois aspectos principais aos quais a consolidacdo das preocupacdes com cultura esteve associada. Em primeiro lugar, foi no século XIX que se tornou dominante uma visio laica, quer dizer, néo-religiosa, do mundo social e da vida humana. Até entdo o cristianismo tivera forca para se impor na definigéo de prdticas e comportamentos; a visio de mundo crist® oferecia & Europa os modelos principais que ordenavam o conhecimento e a interpretacdo do mundo e das relagGes sociais. A ruptura com essa visdo religiosa se fez através de preocupagées com o entendimento da origem e transformagéo da sociedade e também das espécies de vida. Nesse sentido, as novas teorias O que é Cultura biolégicas e sociais desse século culminaram com uma visdo da humanidade firmemente ancorada numa teoria da evolugéo das espécies, ou seja, da humanidade como uma espécie animal produzida por transformages a partir de outras formas de vida; numa humanidade com uma vida social também sujeita 2.evolugao em virtude de fatores materiais que podiam ser estudados. Isso ia contra as idéias anteriormente dominantes, de cunho religioso, e que pregavam ter sido o homem criado diretamente pela divindade, uma divindade que atuava também na historia das sociedades humanas. Nesse contexto de discusséo sobre evolucio, cultura servia tanto para diferenciar populagdes humanas entre si quanto para distinguir 6 humano de outras formas animais. Daf derivam muitas das dificuldades em definir cultura. Assim, quando se comparava povos diferentes, cultura era uma palavra usada para expressar a totalidade das caracteristicas e condicdes de vida de um povo. Trata-se de uma idéia muito ampla, como vocés podem ver. Além disso, como cultura estava ligada 4 distingo entre,o humano e o animal, ha um sentido em que tudo que é cultural é humano, e tudo que é humano é cultural. Novamente, a idéia é muito genérica, dificil de precisar. O desenvolvimento dessas teorias cient(ficas sobre a vida e a sociedade é de fato muito impor- tante para entendermos as preocupagées sistema- ticas com cultura. Lembrem que varias vezes 29 José Luiz dos Santos associei a discussfo sobre cultura com a questo da variedade dos povos e modos de vida. Se fosse sd por isso, no teria sido necessdrio esperar tantos séculos para que a discussfo sobre cultura se firmasse, pois além de a propria Europa ser diversificada em povos e nagées, contatos com Povos muito diversos eram antigos e as conquistas coloniais j4 tinham estabelecido relagdes sisteméti- cas com outras culturas desde o século XVI. E que até ent&o essas quest6es podiam ser respondidas, podiam ser enquadradas pela interpretacSo de cunho religioso. As preocupacées sistemdticas com cultura nasceram associadas a novas formas de conhecimento. Assim, este é um dos aspectos principais com que a consolidago das preocupacées com cultura esteve associada: a sua vinculac¢do com as novas Preocupacdes de conhecimento cientifico do século XIX. Hé um segundo. Lembrem-se que as poténcias européias encontravam-se ent&o em marcado processo de “expansSo, incorporando nacées e territérios em outros: continentes e submetendo suas populagées a seu mando politico e controle militar. A discusséo sobre cultura estava ligada 4s preocupacées de entender os povos e nagdes que se subjugava, Ela era alimentada por essa expansdo pol(tica e econdmica das sociedades industrializadas, que Ihe fornecia campo de obser- vacéo e possibilitava o acesso a material para estudo O que é Cultura Nesse sentido, a8 preocupagées com cultura contribufram para delimitar intelectualmente a posi¢fio internacional do Ocidente. Essa posicao se realizou através da dominagdo politica e econd- mica, e também da imposig&o de suas proprias concepedes culturais aos povos sob dominio e controle. Lembrem-se que o debate intelectual ao qual as preocupagdes com cultura estavam associa- das fornecia interpretacdes, como na visio de evolugio linear das sociedades, que permitiam fosse considerado superior tudo que fosse ocidental As preocupacBes com cultura tinham essa marca de legitimadoras da dominacao colonial. Assim a moderna preocupacéio com cultura nasceu associada tanto a necessidades do conheci- mento quanto as realidades da dominagdio politica. Ela faz-parte tanto da hist6ria do desenvolvimento cientifico quanto da historia das relagdes interna- cionais de poder. Esta é uma relagéio muito intima. De fato, 0 préprio entendimento moderno do que seja uma nago tem muito a ver com as dicussdes sobre cultura. Vamos pensar um pouco mais sobre isso, jé que é importante para discutir sobre cultura em patses como 0 nosso. Cultura e na¢do Ja vimos antes que em seu desenvolvimento a 31 32 José Luiz dos Santos concepgdo de cultura esteve relacionada as parti- cularidades da nac&o alema. Assim, na Alemanha dos séculos XVIII e XIX a idéia de que havia uma cultura comum unindo as varias unidades pol/ticas que constitufam a Alemanha servia para estabelecer um plano objetivo de unidade, na falta de uma unidade politica comum. No caso, cultura podia ser vista como a expresso de uma nacéio que n@o tinha Estado. Nos Estados Unidos da América do Norte e na América Latina, as preocupacdes com cultura tém feito parte constantemente das reflexes sobre a realidade desses paises. Essas discusses estdo mesmo ligadas ao processo de constituicéo de nagSes modernas. Séo discussdes que procuram saber o que hd na cultura de especificamente estadunidense ou peruano ou brasileiro, por exemplo. Elas servem de referéncias no processo de incorporacao as sociedades nacionais de popu- lagdes nativas dominadas pela conquista européia e de imigrantes de toda parte do mundo que para as Américas vieram. Assim, nas Américas do século XX, diferentemente da Alemanha dos séculos anteriores, as discussées sobre cultura expressam projetos de nacdo em Estados derivados da colonizagao européia dessas terras. Para citar ainda outro exemplo dessa relacdo entre cultura e nacéo, podemos mencionar a Russia do século X!X, um império contendo uma diversidade de povos e que estava igualmente O que é Cultura preocupado em estabelecer uma realidade cultural comum. De fato, a preocupagéo com cultura continuou mesmo apés a revolucdo comunista de 1917 @ esteve presente na definig&o da pol/tica das nacionalidades do Estado soviético. Notem que em todas essas experiéncias histéricas em que a discusséo sobre cultura foi parenta da questo da nagéio houve um importante ponto em comum: tratavam-se de, unidades politicas que queriam definir o que lhes era proprio, especifico, em relacdo as nacdes politica e economicamente dominantes. Foi assim na Alemanha do século XVIII, periodo em que a Inglaterra e Franca eram econdmica, politica e intelectualmente as mais poderosas nates européias. Assim foi na Russia do século XIX, um pals em posig&o inferior as poténcias européias. OQ mesmo pode ser dito da América Latina, e dos Estados Unidos antes que éste pals atingisse a condig&o de poténcia domi- nadora que hoje ocupa. Nestes casos todos a realidade de cada pals foi pensada tendo por referéncia a cultura dominante no Ocidente, entendendo-se af cultura tanto no seu aspecto material quanto de formas de conhecimento e concepgdes sobre a vida e a sociedade. Na América Latina, e o Brasil é bem um caso, as culturas de povos e nacdes que habitavam suas terras antes da conquista européia foram sistema- ticamente tratadas como mundos a parte das culturas nacionais que se desenvolveram. Sua 33 34 José Luiz dos Santos importéncia para essas culturas nacionaiss6 costuma ser reconhecida na medida em que contribuem para esta Ultima, em que fornecem elementos e caracte- risticas que d&o a esta cardter particular, tais como comidas, nomes, roupas, lendas. Da mesma forma s8o tratadas as contribuicdes culturais das popu- laces que vieram para cé como imigrantes de outras partes do mundo, ou que para cé foram trazidas como escravas. ‘Assim, 6 comum que na América Latina as discussBes sobre cultura se refiram a uma historia de contribuigdes culturais de mitlipla origem, as quais tém por pélo de integragdo os processos que s3o0 dominantes no mundo ocidental no que concerne a produ¢do econdmica, a organizacéo da sociedade, A estrutura da familia, ao direito e s idéias, concepgées e modos de conhecimentos. € preciso cautela com essa tendéncia a entender paises como 0 nosso como uma mistura de tra¢os culturais. Como verembs numa sesso posterior, 0 importante para pensarmos a nossa realidade cultural é entendermos o processo historico que a produz, as relacdes de poder e 0 confronto de interesses dentro da sociedade. Preocupagées da cultura Ha algumas preocupagdes por assim dizer embu- J O que é Cultura tidas nas discussdes sobre cultura que vém de longa data e convém mencionar aqui. Cultura pode por um lado referir-se a alta cultura, @ cultura dominante, e por outro, a qual quer cultura. No primeiro caso, cultura surge em oposig&o a selvageria, 4 barbérie; cultura é entdo a propria marca da civilizacéo. Ou ainda, a alta cultura surge como marca das camadas dominantes da populag&o de uma sociedade; se opée & falta de dominio da lingua escrita, ou a falta de acesso a ciéncia, & arte e religido daquelas camadas dominantes. No segundo caso, pode-se falar de cultura a respeito de qualquer povo, nago, grupo ou sociedade humana. Considera-se como cultura todas as maneiras de existéncia humana. Essa tensdo entre reférir-se a uma cultura domi- nante ou a qualquer cultura permanece, e explica em parte a multiplicidade de significados do que seja cultura, que mencionei anteriormente. Notem que é no segundo sentido que as ciéncias sociais costumam falar de cultura, e é neste sentido que tenho falado dela aqui. Nas transformacdes da idéia de cultura durante os séculos XVIII e XIX, a discusséo sobre cultura surgiu associada a uma tentativa de distinguir entre aspectos materiais e néo-materiais da vida social, entre a matéria e o espirito de uma socie- dade. Até que o uso moderno de cultura se sedi- mentasse, cultura competiu com a idéia de civili- zacéo, muito embora seus contetidos fossem 38 36 José Luiz dos Santos freqiientemente trocados. Assim, ora civilizagéo, ora cultura serviam para significar os aspectos materiais da vida social, 0 mesmo ocorrendo com 0 universo de idéias, concepcGes, crencas, Com o passar do tempo, cultura e civilizagao ficaram quase sindnimas, se bem que usualmente se reserve civilizaco para fazer referéncia-a socie- dades poderosas, de longa tradi¢éo histérica e grande ambito de influéncia. Além do mais, usa-se cultura para falar nao apenas em sociedades, mas também em grupos no seu interior, o que ndo ocorre com civilizagao. Quanto aquela preocupacdo em distinguir aspectos da vida social, ela perma- neceu associada as discusses sobre cultura. Embora esta seja com freqiiéncia entendida como a dimensdo ndo-material da sociedade, a preocupacao com os aspectos materiais néo a abandonou. Apesar de todas as variacées ma maneira de conceber cultura, quero ressaltar que sua discussfo contém tendéncias fortes e importantes, qual seja, que a discusséo sobre cultura tem a humani- dade como referéncia e ao mesmo tempo procura dar conta de particularidades de cada realidade cultural. Pensem também que essa humanidade n3o é s6 uma idéia vaga, pois, com o processo de expansio dos centros de poder contempordneos, de conquista e incorporagdo acelerada de povos | e nacées, do estabelecimento de relagdes perdu- raveis de interdependéncia e de processos comuns de mudanga politica, 2 humanidade surge com orga | O que é Cultura rc forca no panorama da historia comum a todos, da civilizago mundial que cada vez mais toma corpo. E importante ainda lembrar que essas discussdes sobre cultura firmaram-se no mesmo perfodo em que outras abordagens se preocupavam em estudar criticamente as caracter(sticas internas da socie- dade capitalista, em estudar as condicGes para a sua superaco e contribuir para as lutas operdrias, Estudava-se assim a natureza das classes sociais e sua dinamica, a expansdo do capitalismo e seus fundamentos. Os dois planos de estudo, o da cultura e o da sociedade de classes, andam muitas vezes separados, mas nada impede que os pensemos conjuntamente. RelacGes entre as duas concep¢ées basicas de cultura Como as paginas anteriores sugerem, desde muito tempo as preocupagdes com ‘cultura orientam-se pelas duas concepges bésicas que J haviamos discutido: ou tratam da totalidade das caracteristicas de uma realidade social, ou dizem respeito ao conhecimento que a sociedade, povo, nago ou grupo social tem da realidade e & maneira como o expressam. Assim, a preocu- pagio com a totalidade sedimentouse na con- cepego de cultura da ciéncia do século XIX. Jé 37 a associagéo de cultura com conhecimento é mais antiga, vinda da relaclo de cultura com erudi¢ao, refinamento pessoal. E do relacionamento entre essas duas concep¢des basicas que se origina a maneira de entender cultura, que pode ser um instrumento de estudo das sociedades contemporaneas. Vejamos como isso ocorre. Falar da totalidade das caracteristicas de um povo, nag&o, sociedade, é uma idéia muito ampla para cultura, algo muito vasto e diffcil de opera- cionalizar. Apesar disso, é uma idéia Util quando estéo em comparacio realidades sociais muito distintas, resultados de experiéncias histdricas muito diferentes. Sociedades assim comparadas podem diferir fundamentalmente em sua orga- niza¢do da vida social, nas maneiras de definir as relacdes de parentesco entre seus membros, de regular 0 casamento e a reproducdo, na produgao do necessdrio para a sobrevivéncia, nas técnicas, nos intrumentos e nos utensilios, nas suas con- cepedes, crencas e em tantos outros aspectos. Preocupar-se com a totalidade dessas caracter{s- ticas é inevitdvel em casos assim, j4 que é tudo isso que torna cada uma das sociedades diferente. Mas o encontro entre sociedades assim vai-se tornando raro, Com a acelerag&o da interacéo entre povos, nagdes, culturas particulares, diminui a possibilidade de falar em cultura como totali dade, pois a tendéncia a formacéo de uma civili- José Luiz dos Santos 5 O que é Cultura Por mais diferencas que possam existir entre os paises, todos partilham processos histéricos comuns e contém importantes semethancas em sua existéncia social. 39 José Luiz dos Santos de substitui¢éo de uma coisa por aquilo que a significa, que permitem, por exemplo, que uma idéia expresse um acontecimento, descreva um sentimento, ou uma paisagem; ou entéo que a distribuig&o de pessoas numa sala durante uma conversa formal possa expressar as relagdes de hierarquia entre elas. Assim, @ idéia de uma divin- dade Gnica pode ser vista como significando a unidade da sociedade; nas brincadeiras infantis tradicionais numa sociedade como a nossa pode-se mostrar a presenca simbdlica de mecanismos de competi¢do e hierarquia do mundo dos adultos. De fato, os processos de simbolizagéo séo muito importantes no estudo da cultura. E a simbolizagio que permite que o conhecimento seja condensado, que as informagdes sejam pro- cessadas, que a experiéncia acumulada seja trans. mitida e transformada. No se entusiasmem muito, porém, com os exemplos acima, a ponto de safrem por ai localizando significados ocultos em cada pratica cultural, em cada elemento da cultura, em cada produto cultural. Isso pode atrapalhd-los, ao invés de contribuir para que vocés conhecam sua sociedade. Vejamos por qué. Em primeiro lugar, cultura diz sempre respeito a processos globais dentro da sociedade, e ficar enfatizanco relagdes middas de significado pode fazer com que vocés percam de vista aqueles. Na verdade tais elementos sé fazem sentido dentro daqueles. Assim, s6 se pode entender a importancia O que é Cultura das brincadeiras infantis estudando toda a formacdo cultural que se dé as criancas e localizando-as dentro desta. Da mesma maneira, mais importante que localizar o significado da divindade Unica é entender o que significa a religiio numa sociedade, estudar 0 conjunto de suas concepgdes, ver como ela se organiza, que conflitos carrega, que inte- esses expressa Em segundo lugar, uma énfase desse tipo pode desviar a aten¢o do fato de que cultura esta associada a conhecimento, o qual tem uma caracte- ristica fundamental: o de ser fator de mudanca social, de servir n&o apenas para descrever a reali- dade e compreendé-la, mas também para apontar- Ihe caminhos e contribuir para sua modificagao. Ou seja, reduzindo a cultura ao estudo do simbo- lismo de seus elementos pode-se acabar entendendo cultura como uma dimensdo mecanica da vida social, algo que sempre expressa apaticamente alguma outra coisa, e com isso obscurecer 0 cardter transformador do conhecimento. Em terceiro lugar, esse tipo de énfase simbolista pode induzir vocés a entender cultura como uma dimensdo neutra, cujos elementos expressam, por exemplo, 2 desigualdade porque existe desi- gualdade na vida social. No entanto é preciso considerar que a propria cultura é um motivo de conflito de interesses nas sociedades contempo- réneas, um conflito pela sua definic&o, pelo seu controle, pelos beneficios que pode assegurar, 43 José Luiz dos Santos zacéo mundial faz com que os povos,. nagées, culturas particulares existentes partilhem caracte- risticas comuns fundamentais. Falar de culturas isoladas e Unicas vai perdendo a viabilidade, pois néo seria essa realidade comum, a civilizago mundial, que vai poder distinguir suas experiéncias particulares. Assim, por exemplo, por mais dife- Tengas que possam existir entre paises como o Brasil, o Peru, Quénia e Indonésia, todos eles partilham processos histéricos comuns e contém importantes semelhancas em sua existéncia social, buscam desenvolver suas economias dependentes, superar desigualdades sociais internas e atingir padrées internacionais de qualidade de vida. — uma situacdo bem diferente, vejam bem, dos contatos iniciais da sociedade inglesa com socie- dades nativas da Oceania ou com reinos da Africa, ou da sociedade brasileira com sociedades ind/- genas da Amazénia. Nao 6 de se estranhar, pois, que prevaleca nas preocupagSes com cultura aquela tendéncia a procurar localizar e entender os aspectos da vida social néo diretamente materiais. Lembrem-se de que a discussfo de cultura esté muito ligada & constatagéo da diversidade. E é nesses aspectos nao-materiais que a diversidade se expressa com mais vigor. Mas notem que a preocupacéo em entender toda a vida social nao foi abandonada nas discussdes sobre cultura; ela foi transformada. De fato, cultura tende a se transformar numa O que é Cultura ese area de reflexdo sobre a realidade onde aquelas duas preocupagdes basicas se mesclam. Assim, cultura passa a ser entendida como uma dimenséo da realidade social, a dimenso n&o-material, uma dimens&o totalizadora, pois entrecorta os varios aspectos dessa realidade. Ou seja, em vez de se falar em cultura como a totalidade de caracte- risticas, fala-se agora em cultura como a totalidade de uma dimenséo da sociedade. Essa dimensdo é a do conhecimento num sentido ampliado, é todo conhecimento que uma sociedade tem sobre si mesma, sobre outras sociedades, sobre o meio material em que vive e sobre a propria existéncia, Cultura inclui ainda as maneiras como esse conhecimento é expresso por uma sociedade, como é 0 caso de sua arte, religido, esportes € jogos, tecnologia, ciéncia, politica. O estudo da cultura assim compreendida volta-se para as ma- neiras pelas quais a realidade que se conhece é codificada por uma sociedade, através de palavras, idéias, doutrinas, teorias, praticas costumeiras e rituais, O estudo da cultura procura entender o sentido que fazem essas concepgdes e praticas para a sociedade que as vive, buscando seu desenvol- vimento na historia dessa sociedade e mostrando como a cultura se relaciona as for¢as sociais que movem a sociedade. Uma maneira mais complicada de apresentar essa dimenstio é dizer que a cultura inclui o estudo de processos de simbolizagSo, ou seja, de processos 41 44 José Luiz dos Santos Veros assim que cultura esté sempre associada a outras preocupacées do estudo da sociedade, leva a pensar nas relagdes de poder, exige que se considere a organizagdo social. Isso faz com que as duas concepedes bésicas de cultura de que Ihes falei permanecam presentes: a0 falarmos de cultura nos referimos principalmente & dimenséo de conhecimento de uma sociedade, mas sempre temos em mente a sociedade como um: todo. © estudo da cultura exige que consideremos a transformac&o constante por que passam as socie- dades, uma transformagdo de suas caracteristicas e das relagées entre categorias, grupos e classes sociais no seu interior. A essa transformagdo constante me referi falando de processo social. Ent4o, o que é cultura Cultura € uma dimenséo do proceso social, da vida de uma sociedade. Nao diz respeito apenas 2 um conjunto de préticas e concepges, como por exemplo se poderia dizer da arte. N&o é apenas uma parte da vida social como por exemplo se poderia falar da religido. No se pode dizer que cultura seja algo independente da vida social, algo que nada tenha a ver com a realidade onde existe. Entendida dessa forma, cultura diz respeito a todos os aspectos da vida social, e néo se pode O que é Cultura dizer que ela exista em alguns contextos e ndo em outros. Cultura 6 uma construgdo historica, seja como concepgio, seje como dimenséo do processo social. Ou seja, a cultura n&o é ‘algo natural, néo & uma decorréncia de leis fisicas ou biolégicas Ao contrario, a cultura é um produto coletivo da vida humana, Isso se aplica no apenas a pe cepedo da cultura, mas também a sua relevancia importancia que passa a ter. Aplica-se ao contetido de cada cultura particular, produto da historia de cada sociedade. Cultura é.um territério bem atual das lutas sociais por um destino melhor. € uma realidade.e uma concep¢ao que precisam ser apropriadas em favor do progresso social e da liberdade, em favor da luta contra a exploragdo de uma parte da sociedade por outra, em favor da superagao da opressio e da desigualdade As preocupacdes contemporaneas com cultura esto muito relacionadas com a civilizaggo ociden- tal. Nela se desenvolveram, com seu crescimento se espalharam. A discusséo de cultura néo tem, por exemplo, a mesma relevancia nas sociedades tribais que tem nas sociedades de classe, da mesma maneira que o proprio estudo da sociedade tribal @ mais relevante aqui do que lé. Em ambos os casos, tanto na discussdo sobre cultura, quanto na preocupac&io em estudar sociedades diferentes, os impulsos se localizam na civilizago dominante. € pelos olhos dessa civilizago que a ciéncia vé 45 _ SER te José Luiz dos Santos © mundo e procura compreender a ela e a seus destinos. Por exemplo, o estudo de sociedades e culturas estranhas é também uma forma de, por comparacdo, entender o que é mais de perto conhecido. Notem que se pensarmos em cultura como dimenséo do processo social podemos também falar em cultura numa sociedade primitiva, em cultura das sociedades ind{genas brasileiras, por exemplo. Mas notem também que nem cultura é a mesma coisa 14 e aqui, nem seu significado é igual em ambos os casos. Apenas nesse sentido genérico de serem dimenséo do processo social & que se pode falar igualmente em cultura, Como se tratam de sociedades com caracter(sticas que as _diferenciam bastante, o contetdo do que é cultura, a dinémica da cultura, a importancia da cultura — tudo isso deve variar bastante. Mas vejam que essas sociedades indigenas encontram-se em interagéo crescente com a socie- dade nacional, passam a participar de processos sociais comuns, a partilhar de uma mesma historia. Nesse processo suas culturas mudam de contetido e de significado. Elas podem ser marcas de resis- téncia & sociedade que as quer subjugar, tomar suas terras, colocé-la sob controle. Ao mesmo tempo, é& inevitével que incorporem novos conhecimentos para que possam melhor resistir, que suas culturas se transformem para que as sociedades sobrevivam. Assim, discutir sobre. cultura implica sempre O que é Cultura discutir 0 processo social concreto. E uma discusséo que sempre ameaca extravasar para outras dis- cussdes e preocupagées. Lendas ou crencas, festas ‘ou jogos, costumes ou tradi¢des — esses fendmenos nfo dizem nada por si mesmos, eles apenas o dizem enquanto parte de uma cultura, a qual ndo pode ser entendida sem referéncia a realidade social de que faz parte, a histéria de sua sociedade. Quero insistir na idéia de proceso. Isso porque € comum que cultura seja pensada como algo parado, estético. Vejam o caso de eventos tradi- cionais, que por serem tradicionais podem convidar a serem vistos como imutdveis. Apesar de se repetirem ao longo do tempo e em varios lugares, n&o se pode dizer que esses eventos sejam sempre a mesma coisa. Assim, o carnaval brasileiro, por exemplo, tanto se transformou do in{cio do século para cd, quanto se realiza de modo diverso em So Paulo, Rio de Janeiro, Salvador ou Recife. O fato de que as tradic3es de uma cultura possam ser identificdveis nfo quer dizer que néo se trans- formem, que nfo tenham sua dindmica. Nada do que é cultural pode ser estanque, porque a cultura faz parte de uma realidade onde a mudanca é um aspecto fundamental. No entanto, as vezes fala-se de uma cultura como se fosse um produto, uma coisa com come¢o, meio @ fim, com caracteristicas definidas e um ponto final. Facilmente encontramos referéncias & cultura grega, 8 cultura germénica, a cultura 47 José Luiz dos Santos francesa e tantas outras. Nesses casos, o que se faz é extrair da experiéncia historica de um povo produtos, estilos, épocas, formas, e constrdi-se com isso um modelo de cultura. Essas constru¢des podem servir a fins politicos, como, por exemplo, tornar ilustre a imagem de uma poténcia domi- nadora. Ao mesmo tempo, é comum que os interesses dominantes de uma sociedade veiculem uma defini¢&o para a cultura dessa sociedade que seja de seu agrado. € preciso considerarmos que nem todos esses modelos se esgotam nesses fins. Eles podem tam- bém servir para que se meca o desenvolvimento das sociedades humanas e suas direcdes. Esses modelos podem registrar desenvolvimentos parti culares, por exemplo na arte, na agricultura, na ciéncia; e ser também matéria de reflexdo sobre a historia. Podem, enfim, ser maneiras de formacéo de um repertério universal de conhecimento humano. Elementos de uma histéria da humani dade gerados no processo de formaco de uma civilizagéo mundial. Quase néo preciso dizer que mesmo esses mode- los mudam: nfo se entende o que é cultura grega hoje do mesmo modo que no século passado, por exemplo. E é claro que esses modelos néo séo a cultura como a estamos entendendo aqui; so eles mesmos elementos culturais, que podem ser entendidos em relagéo ao processo social mais amplo. O que é Cultura Ha outras maneiras correntes de falar sobre cultura, as quais so diferentes da que estamos desenvolvendo aqui, ¢ iniciei esta parte mostrando varias delas, Antes de concluir, quero registrar mais uma para que o sentido em que vamos continuar falando de cultura fique, por contraste, bem claro. Cultura & com freqiiéncia tratada como um residuo, um conjunto de sobras, resultado da separagéo de aspectos tratades como mais impor- tantes na vida social. Assim, extrai-se das atividades diretamente ligadas ao conhecimento no sentido amplo as areas da ciéncia, da tecnologia, da edu- cago, das comunicagdes, do sistema jurfdico, do sistema politico, &s vezes a religifo e os esportes O que sobra é chamado de cultura. E como se fossem eliminados da preocupagSo com cultura todos os aspectos do conhecimento organizado tidos como mais relevantes para a légica do sistema produtivo. Sobram, por exemplo, a musica, a pintura, a escultura, o artesunato, as manifestacdes folcléricas em geral, o teatro, Muitas vezes as politicas oficiais de cultura séo especificamente voltadas para essas atividades, jé que para as outras areas da vida social que nds estamos aqui consi- derando como parte da cultura desenvolvem-se politicas especificas. Essa maneira de tratar a cultura, é para nés ela mesma um tema de estudo, revela um modo pelo qual se atua sobre a dimenso cultural, indicando, No caso, um dos sentidos da atuagSo dos érgaos 49 publicos, um sentido freqiientemente fracionador. da dimensdo cultural, que trata de modo diferente a varios aspectos desta. Que fique entdo claro que para nds a cultura é a dimensdo da sociedade que inclui todo o conhecimento num sentido ampliado @ todas as maneiras como esse conhecimento & expresso. E uma dimenséo dindmica, criadora, ela mesma em processo, uma dimensdo fundamental das sociedades contempordneas. José Luiz dos Santos —_ CULTURA E DIVERSIDADE Cultura é uma preocupacio contemporanea, bem viva nos tempos atuais. £ uma preccupacdo fem entender os muitos caminhos que conduziram 08 grupos humanos as suas relagdes presentes suas perspectivas de futuro. O desenvolvimento da humanidade esta marcado por contatos e conflitos entre modos diferentes de organizar a vida social, de se apropriar dos recursos naturais e transformé-los, de conceber a realidade e expressé- la, A historia registra com abundéncia as transfor- magBes por que passam es culturas, seja movidas por suas forgas internas, seja em conseqiéncla desses contatos e conflitos, mais freqiientemente por ambos os motivos. Por isso, ao discutirmos sobre cultura temos sempre et mente a humai- dade em toda a sua riqueza e multiplicidade’¢le formas de existéncia, Sio complexas as realidades José Luiz dos Santos O que é Cultura dos agrupamentos humanos e as caracter(sticas que 08 unem e diferenciam, e a cultura as expressa. Assim, cultura diz respeito & humanidade como um todo e ao mesmo tempo a cada um dos povos, nag6es, sociedades e grupos humanos. Quando se considera as culturas particulares que existem ou existiram, logo se constata a sua grande variaggo. Saber em que medida as culturas variam e quais as razbes da variedade das culturas humanas s&o quest3es que provocam muita discussfo. Por enquanto quero salientar que é sempre funda- mental entender os sentidos que uma realidade cultural faz para aqueles que a vivem. De fato, a Preocupacdo em entender isso 6 uma importante conquista contemporanea, Cada realidade cultural tem sua légica interna, a qual devemos procurar conhecer para que fagam sentido as suas préticas, costumes, concepgies @ as transformacées pelas quais estas passam. E preciso relacionar a variedade de procedimentos culturais com os contextos em que sao ‘pradu- zidos. As variagées nas formas de familia, por exemplo, ou nas maneiras de habitar, de se vestir ou de distribuir os produtos do trabalho néo sao gratuitas. Fazem sentido para os agrupamentos humanos que as vivem, so resultado de sua historia, relacionam-se, com as condicdes materiais de sua existéncia. Entendido assim, 0 estudo da cultura contribui no combate a Ppreconceitos, gferecendo uma plataforma firme para o respeito ea dignidade nas relagdes humanas. Notem, porém, que o convite a que se consider cada cultura em particular néo pode ser dissociatio da necessidade de se considerar as relacdes entre as culturas. Na verdade, se a compreensio da cultura exige que se pense nos diversos pavos, nagGes, sociedades e grupos humanos, é porque eles esto em interacéo. Se nfo estivessem néo haveria necessidade, nem motivo nem ocasiao para que se considerasse variedade nenhuma. A riqueza de formas das-culturas e suas relagdes falam bem de perto a cada um de nés, j que convidam a que nos vejamos como seres sociais, nos fazem pensar na natureza dos todos sociais de que fazemos parte, nos fazem indagar das razdes da realidade social de que partilhamos ¢ das forcas que as mantém e as transformam. Ao trazermos a discussfo para téo perto de nds, a questo da cultura torna-se tanto mais concreta quanto adquire novos contornos. Saber se hé uma realidade cultural comum a nossa sociedade torna-se uma quest&o importante. Do mesmo modo evidencia-se a necessidade de relacionar as _manifestagdes e dimensées culturais com as diferentes classes e grupos que a constituem. Vejam pois que a discusso sobre cultura pode nos ajudar a pensar sobre nossa prépria realidade social. De fato, ela é urna maneira estratégical de pensar sobre nossa sociedade, e isso se realiza de modos diferentes e as vezes contraditorios, A ik. José Luiz dos Santos O que é Cultura i minha preocupagao principal aqui é contribuir para esclarecer esse assunto. Espero té-los j4 convencidos de que o tema é importante e que vale a pena estudé-lo e seguir seus desdobramentos. E também um tema repleto de equivocos e armadilhas. Convém desde jé que situemos um de seus principais focos de confuséo: o de por que as culturas variam tanto e de quais os sentidos de tanta variagdo. A partir de uma origem bioldgica comum, os grupos humanos se expandiram progressivamente, ocupando praticamente a totalidade dos conti- nentes do planeta. Nesse processo, o contato entre grupos humanos foi freqiiente, mas a intensidade desses contatos foi de forma a permitir muito isolamento, e muitas historias paralelas marcaram © desenvolvimento dos grupos humanos. O acele- ramento desses contatos 6 recente, e os grupos isolados vo desaparecendo com a tendéncia 4 formacéio de uma civilizagéo mundial. O desenvolvimento dos grupos humanos se fez segundo ritmos diversos e modalidades varidveis, no obstante a constatagdo de certas tendéncias globais. Isso se aplica, por exemplo, as formas de utilizagéo e transformagéo dos recursos naturais dispon{veis. Nao sé esses recursos séo heterogéneos ao longo das terras habitdveis, como ainda terri- térios semelhantes foram ocupados de modo diferente por populagdes diferentes. Apesar dessa variabilidade s&o notérias algumas tendéncias dominantes. Assim, por exemplo, em varios lugares e épocas grupos humanos inicialmente nédmades e dependentes da caca e da coleta para sua sobre- vivéncia passaram a se sedentarizar, isto é, a viver em aldeias e vilas, acompanhando o desenvol- vimento da agricultura e a domesticacéo de animais. N&o apenas os recursos naturais devem ser considerados quando se pensa no desenvolvimento dos grupos humanos. Mais importante ainda é observar que o destino de cada agrupamento esteve marcado pelas maneiras de organizar e transformar, a vida em sociedade e de superar os conflitos de interesse e as tensdes geradas na vida social. Assim, por exemplo, a sedentarizagSo que mencionei antes ndo é uma simples resposta as condigdes dos recursos naturais. Ela s6 se tornou vidvel porque os grupos humanos envolvi- dos conseguiram reorganizar sua vida social de modo satisfatério, criando novas possibilidades de desenvolvimento, e ao fazer isso conseguiram inclusive alterar as condig&es dos recursos naturais, como a domesticagéo de animais e plantas o prova, S40 também variadas as formas de organi- zac&o social, mas do mesmo modo hé aqui tendéncias dominantes, como a de formac&o de poderosas sociedades com instituicdes pol{ticas centralizadas. Muito jé se discutiu sobre as maneiras de ordenar essas culturas de tanta variagdo. Para muitas delas, José Luiz dos Santos O que é Cultura como para a européia ou a chinesa, pode-se tracar longas seqiiéncias histéricas e localizar etapas mostrando as transformacdes nas relacdes da sociedade com a natureza e principalmente nas relagSes de seus membros entre si. Os esforcos para colocar todas as culturas humanas num Unico e rigido esquema de etapas no foram, no entanto, bem-sucedidos. Apesar da existéncia de tendéncias gerais consta- taveis nas historias das sociedades, néo é poss{vel estabelecer seqiiéncias fixas capazes de detalhar as fases por que passou cada realidade cultural. Cada cultura é 0 resultado de uma historia parti- cular, e isso inclui. também suas relacdes com outras culturas, as quais podem ter caracter(sticas bem diferentes. Assim, falar, por exemplo, nas etapas humanas da selvageria, barbdrie e civilizacéo pode ajudar a entender o aparecimento da socie- dade burguesa na Europa, mas ndo é suficiente para dar conta de culturas que por longo tampo se desenvolveram fora do 4mbito dessa civilizagdo. Vamos pensar um pouco mais sobre isso. Até aqui estamos falando de cultura como tudo aquilo que caracteriza uma populacéo humana. Nesse caso, duas s&o as possibilidades basicas de relacio- narmos diferentes culturas entre si. No primeiro caso, pensa-se em hierarquizar essas culturas segundo algum critério. Por exemplo, usando-se o critério de capacidade de produgéo material pode-se dizer que uma cultura 6 mais avancada J rc do que outra. Ou ent&o, se compararmos essas culturas de acordo com seu controle de tecnologias especificas, como por exemplo as tecnologias de metais, poderemos pensar que uma é mais désen- volvida do que a outra Na segunda possibilidade de relacionar diferentes culturas, nega-se que seja vidvel fazer qualquer hierarquizacSo. Argumenta-se aqui que. cada cultura tem seus proprios critérios de avaliacdo e que para uma tal hierarquizacdo ser construfda 6 necessério subjugar uma cultura aos critérios de outra. Por exemplo, vamos pensar em duas culturas primitivas, uma ndémade praticando a caca e a coleta, outra habitando em vilas e praticando a agriculture. Segundo aquele argumento, jd que a domesticagéo de plantas da qual a agricultura é resultado n&o faz parte da primeira cultura, nao haveria como julgé-la menos desenvolvida que a segunda com base nesse critério de comparacdo. Cultura e evolucado No século XIX foram feitos muitos estudos procurando hierarquizar todas as culturas humanes, existentes ou extintas, e essa segunda perspectiva que mencionei acima criticou-as fortemente. Segundo as versbes mais comuns desses estudos, a humanidade passaria por etapas sucessivas de José Luiz dos Santos O que é Cultura evolucdo social que a conduziria desde um estdgio primordial onde se iniciaria a disting&o da espécie humana de outras espécies animais até a civi- lizagéo tal como conhecida na Europa ocidental de ent&o. Todas as sociedades humanas fariam necessariamente parte dessa escala evolutive, dessa evolucfo em linha Gnica. Assim, a diversi- dade de sociedades existentes no século XIX representaria estdgios diferentes da evolucdo humana: sociedades indigenas da Amazénia pode- riam ser classificadas no estdgio da selvageria: reinos africanos, no estdgio da barbdrie. Quanto 4 Europa classificada no estdgio da civilizagao, considerava-se que ela jd teria passado por aqueles outros estdgios. N&o foi diffcil perceber nessa concepcao de evolucdio por estaégios uma visio europdia da huma- ~ nidade, uma viséo que utilizava concebgdes euro- péias para construir a escala evolutiva,e que além do mais servia aos propésitos de legitimar o pro- cesso que se vivia de expanso e consolidacdo do dominio dos principais pafses capitalistas sobre os povos do mundo. As concepgées de evolucdo linear foram atacadas com a idéia de que cada cultura tem sua prépria verdade e que a classifi- cacao dessas culturas em escalas hierarquizadas era impossivel, dada a multiplicidade de critérios culturais. Tais esforgos de classificagfo de culturas néo implicavam apenas a justificagio do dom{nio das sociedades capitalistas centrais, que naqueles esquemas globais apareciam no topo da humani- dade, sobre o resto do mundo. Idéias racistas também se associaram aqueles esforcos; muitas vezes 08 povos néo-europeus foram considerados inferiores, e isso era usado como justificativa para seu dominio e exploracdo. ; Estudos sistemdticos e detalhados de muitas culturas permitiram destruir os falsos argumentos dessas concep¢es preconceituosas. Nao existe relac&io necessdria entre caracter(sticas fisicas de grupos humanos e suas formas culturais, nem tampouco a multiplicidade das culturas implica quebra da unidade biolégica da espéaje humana. A diversidade das culturas existentes acompanha a variedade da historia humana, expressa possibi- lidades de vida social organizada e registra graus e formas diferentes de dominio humano sobre a natureza. A idéia de uma linha de evolucéo Unica para as sociedades humenas 6, pois, ingénua e esteve ligada ao preconceito e discriminacéo raciais. Por outro lado, a relativizacéo total do estudo das culturas desvia a atencéio de indagacdes impor- tantes a respeito da histéria da humanidade, como é 0 caso da constatacéio de regularidades nos processos de transformac&o dos grupos humanos e da importdncia da producdo material na historia dessas transformacbes. José Luiz dos Santas O que é Cultura 7 Cultura e relativismo Em outras palavras, substitui-se um equ{voco Por outro. Consideremos um pouco mais este segundo. Ele deriva da constatagio de que a avaliagéo de cada cultura e do conjunto das cultu- ras existentes varia de acordo com a cultura particular da qual se efetue a observac&o e andlise; isso diria respeito a qualquer caso e nfo s6 ao da viséo européia de evolugdo social tinica dos grupos humanos; poderia ser aplicado por exemplo aquela comparacéo entre duas sociedades primitivas de que falei atras. Verifica-se assim que a observagio de cultura alheias se faz segundo pontos de vista defi- nidos pela cultura do observador, que os critérios que se usa para classificar uma cultura sdo também culturais. Ou seja, segundo essa visSo, na avaliagdo de culturas ¢ tragos culturais tudo é relativo. Passa-se assim da demonstragao da diversidade das culturas para a constatacéo do relativismo cultural. Observer o quanto essa equacfio é enga- nosa. S6 se pode propriamente respeitar a diver- sidade cultural se se entender a inserc&o dessas culturas particulares na histéria mundial. Se insistirmos em relativizar as culturas e sé vé-las de dentro para fora, teremos de nos recusar a admitir os aspectos objetivos que o desenvolvi- mento histérico e da relagdo entre povos e nacdes impée. Nao hé superioridade ou inferioridade de >) culturas ou tracos culturais de modo absoluto, nao hé nenhuma lei natural que diga que as caracte- r{sticas de uma cultura a facam superior a outras. Existem no entanto processos histéricos que as relacionam e estabelecem marcas verdadeiras e concretas entre elas. © absurdo daquela equacéo acima referida se manifesta no fato de que enquanto a ciéncia social dos paises capitalistas centrais elaborava teorias relativistas da cultura, sua civilizagdo avangava implacavelmente, conquistando e des- truindo povos e nagées, tendo como instrumento uma capacidade de produco material que n&o € nem um pouco relativa. Vemos, pois, que a questo nfo é s6 pensar na evolucéo de sociedades humanas, mas fundamen- talmente entender a historia da humanidade © século XIX, em que esse confronto de idéias se consolidou, indicava os caminhos de uma civilizaggo mundial em que as muitas culturas humanas deveriam inevitavelmente encontrar o seu destino, quando nao seu fim. Jé agora a com- preens&o dessa civilizag#o mundial exige o enten: dimento dos miltiplos percursos que levaram a ela. O estudo das culturas e de suas transfor- macdes é fundamental para isso. Enfatizar a relatividade de critérios culturais é uma questio estéril quando se depara com a historia concreta, que faz com que essas realidades culturais se relacionem e se hierarquizem. José Luiz dos Santos O que é Cultura As culturas e sociedades humanas se relacionam de modo desigual. As relagdes internacionais registram desigualdades de poder em todos os sentidos, os quais hierarquizam de fato os povos e nagées. Este é um fato evidente da historia contemporanea _e nao hé como refletir sobre cultura ignorando essas desigualdades. E necessério reconhecé-las e buscar sua superacio. Cultura e sociedade Hdé muito em comum entre essas discusses sobre as relagdes entre culturas de sociedades diferentes quando se pensa sobre a cultura de uma sociedade ‘particular. Também af a variedade de formas culturais se manifesta, e sempre se coloca a questéo de como tratar esse assunto, Pensem, por exemplo, numa sociedade como a brasileira. A sociedade nacional tem classes e grupos sociais, tem regides de caracteristicas bem diferentes; a populaco difere ainda internamente segundo, por exemplo, suas faixas de idade, ou segundo seu grau de escolarizagéio. Além disso, a populagéio nacional foi constitu(da com contihgentes origi ndtios de varias partes do mundo. Tudo isso se reflete no plano cultural. Existem realidades culturais internas a nossa sociedade que podem ser tratadas, e muitas vezes 0 séo, como se fossem culturas estranhas. Isso se aplica nao s6 as sociedades indigenas do territério brasileiro, mas também a grupos de pessoas vivendo no campo ou na cidade, sejam lugares isolados de caracteristicas peculiares ou agrupamentos religiosos fechados que existem no interior das grandes metrdpoles. Pode-se tentar demonstrar suas ldgicas internas, sua capacidade de emitir pronunciamentos, de interpretar a realidade que as produz, de agir sobre essa realidade. £ importante considerar a diversidade cultural interna 4 ndssa sociedade; isso é de fato essencial para compreendermos melhor o pais em que vivemos. M@smo porque essa diversidade néo é s6 feita da idéias; ela esté também relacionada com as maheiras de atuar na vida social, 6 um elemento que faz parte das relacdes sociais no pafs. A diversidade também se constitui dé maneiras diferentes de viver, cujas razées podem ser estudadas, contribuindo dessa forma para eliminar preconceitos e perseguicées de que so vitimas grupos e categorias de pessoas. Observem que também no estudo de uma sociedade particular nao faria sentido considerar de maneira isolada cada uma das formas culturais diversas nela existentes. Elas certamente fazem parte de processos sociais mais globais. Assim, um grupo religioso, por exemplo, por mais particulares que sejam suas concepgdes e praticas de vida social, existe no interior de uma sociedade dinaémica, 4. O DESENVQLVIMENTO DO CONCEITO DE CULTURA A primeira definigao de cultura que foi formulada do ponto de vista antropolégico, como vimos, pertence a Edward Tylor, no primeiro pardgrafo de seu livro Primitive Culture (2871), Tylor procurou, além disto, demonstrar que cultura pode ser objeto de um estudo sistematico, pois trata-se de uum fendmeno natural que possui causas e regularidades, permitindo um estudo objetivo e uma anélise capazes de proporcionar a formulagao de leis sobre o processo cultural ca evolugao.! O seu pensamento pode ser melhor compreendido a partir da leitura deste seu trecho: Por um lado, a uniformidade que tio largamente per- meia entre as civilizagSes pode ser atribuida, em grande parte, « uma uniformidade de agao de causas uniformes, enquanto, por outro lado, seus varios graus podem ser considerados como estagios de desenvolvimento ou evolugio.. Buscando apoio nas cigncias naturais, pois considera cul- ura como um fendmeno natural, Tylor escreve em seguida: Nossos investigadores modernos nas citneias de natu- reza inorgénica tendem a reconhecér, dentro e fora de 30 seu campo especial de trabalho, « unidade da natureza, a permanéncia de suas leis, a definida sequencia de causa e efeito através da qual depende cada fato. Apéiam firmemente a doutrina pitagoriana da ordem no cosmo universal. Afirmam, como Aristételes, que a na- tureza nio é constituida de episSdios incoerentes, como uma ma tragédia, Concordam com Leibniz no que ele chamou “meu axioma, que a natureza nunca age por saltos", tanto como em seu “grande principio, comu- mente pouco utilizado, de que nada acontece sem suli- ciente razio". Nem mesmo no estudo das estruturas ¢ habitos das plantas ¢ animais, ou na investigagdo das * fungdes bisicas do homem, so idéias desconhecidas. Mas quando falamos dos altos processos do sentiment eda aco humana, do pensamento e linguagem, conhe- clmento ¢ arte, uma mudanga aparece nos tons predo- minantes de opiniéo. O mundo como um todo esté fracamente preparado para accitar o estudo geral da vida humana como um ramo de ciéncia natural, ... Para muitas mentes educadas parece alguma coisa presun¢o- sae repulsiva o ponto de vista de que a histéria da humanidade € parte ¢ patcela da hist6ria da natureza, ‘que nossos pensamentos, desejos e acdes esto de acor- do com leis equivalentes aquelas que governam os ven- tos € as ondas, a combinagio dos dcidos e das bases ¢ 0 crescimento das plantas ¢ animais.* Neste sentido, ainda na segund: metade do século xix, Tylor se defrontava com a idéia da natureza sagrada do hhomem, dat as suas afirmagSes no ‘inal do texto acima e @ sua preocupacdo expressa no seguinte: 10 & "ANTROPOS E PSiavE" / | jlas 2 werniges’ ji Go As origens do antropos Silas Guerriera 66()ucm somos nés?” Esta pergunta nos acom- panha desde‘os tempos mais remotos. A antropologia, segundo a etimologia, 6 a ci@ncia que busca conhecer o antropus, o humano. Longe de procurar esgotar essa Larefa, u que seria impossivel dada a complexidade da natureza humana, neste capftulo procuraremos apontar algumas pistns que poderdo levar o leitor & fascinante aventura do conhecimentoi sobre nés mesmos, ‘Vemo-nos qualitativamente diferenciados dos demais seres e constituidos de uma natureza especial. Durante muito tempo nos enxerghmos como feitos & imagem e semelhanca de Deus. Emimuitos povos, as mitologias de eriagao falam de seres criadores © de hergis civilizadores antropomorfizados e assemelhados aos seus individuos. Entre nés, ocidentais, herdeiros de uma visio hebraica e cristé, 0 livro do Génesis relata: Deus disse: "Fagamos 0 homem 4 nossa imagem, como nossa semelhanga, e que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, 08 animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra”) T, Génesis, Biblia de Jerusalém, So Paulo, Biligdes Paulin 32 Cultura: um concelte-antropotigico Mas outros obstdculos para a investigacao das leis da natureza humana surgem das consideracdes metafisicas e teolégicas. A nogdo popular do livre-arbitrio humano envolve ndo somente a liberdade de agir de acordo com motivagdes, mas também o poder de quebrar a conti- nuidade e de agir sem causa — uma combinacdo que pode ser grossamente ilustrada pela analogia de uma balanga, algumas vezes agindo de modo usual, mas também possuindo faculdade de agir por ela propria a favor ou contra os pesos. Este ponto de vista de uma agao andmica dos desejos, que € incompativel com o argumento cientifico, subexiste como opiniao manifes- ta ou latente na mente humana, e aleta fortemente a sua visao tedrica da historia. ... Felizmente ndo é necessario adicionar mais nada a lista de dissertacdes sobre a inter- vengéo sobrenatural e causagao natural, sobre liberda- de, predestinagao e responsabilidade. Podemos rapida- mente escapar das regides da filosofia transcendental e da teologia, para iniciar uma esperangosa jornada sobre um terreno mais prdtico. Ninguém negara que, como cada homem conhece pelas evidéncias de sua propria consciéncia, causas naturais e definidas determinam as agées humanas." Apés discutir as questdes acima, Tylor reafirma a igual- dade da natureza humana, “que pode ser estudada com grande preciso na comparacao das racas do mesmo grau de civilizagao” Mais do-que preocupado com a diversidade cultural, Tylor a seu modo preocupd-se com a igualdade existente na lnumanidade. A diversidade € explicada por ele como 0 De natureza da cultura = 3, resultado da desigualdade de estagios existentes no proceso de evolugao, Assim, uma das tarefas da antropologia seria a de “estabelecer, grosso modo, uma escala de civilizacao”, simplesmente colocando as nagées européias em um dos extremos da série e em outro as tribos selvagens, dispondo © resto da humanidade entre dois limites. Mercier® mostra que Tylor pensava as “instituiges humanas téo distinta- mente estratificadas quanto a terra sobre a qual o homem vive. Elas se sucedem em séries substancialmente uniformes por todo o globo, independentemente de raga e linguagem — diferengas essas que so comperativamente superficiais —, mas moduladas por uma natureza humana semelhante, ” atuando através das condigdes sucessivamente mutéveis da vida selvagem, barbara e civilizada”, Para enterider Tylor, € necessario compreender a época em que viveu e conseqientemente o seu background intelec- tual, O seu livro foi produzido nos anos em que a Europa sofria o impacto da Origem das espécies, de Charles Darwin, € que a nascente antropologia foi dominada pela estrefta Perspectiva do evolucionismo unilinear.® A década de 60 do século XIX foi rica em trabalhos desta, orientagdo. Uma série de estudiosos tentou analisar, sob esse prisma, o desenvolvimento das instituigées sociais, buscan- do no passado as explicagbes para os procedimentos sociais da atualidade, Assim, Maine em Ancient Law (1861) procu- rou analisar o desenvolvimento das instituicdes jurfdicas; 0 mesmo ocorreu com Bachofen, que em Das Musterrecht desenvolveu « idéia da promiscuidade primitiva e conse- qdentemente da instituigéo do matriarcado.’ E em Primitive Marriage (1865) McLennan estuda a instituigéo do matri- ménio a partir dos casamentos por rapto. Por detrés de cada 34 Cultura: um concelto antropolégico um destes estudos predominava, entdo, a idéia de que a cultura desenvolve-se de maneira uniforme, de tal forma que eta de se esperar que cada sociedade percorresse as etapas que ja tinham sido percorridas pelas “sociedades mais avangadas”. Desta maneira era fécil estabelecer uma escala’ evolutiva que nao deixava de ser um processo discriminaté- rio, através do qual as diferentes sociedades humanas'eram classificadas hierarquicamente, com nitida vantagem para as culturas européias. Etnocentrismo e ciéncia marchavam en-- to de maos juntas. Stocking (1968) critica Tylor por “deixar de lado toda a questao do relativismo cultural e tornar impossivel 0 mo- derno conceito da cultura”. A posigao de Tylor nao poderia ser outra, porque a idéia de relativismo cultural esta impli- citamente associada a de evolucdo multilinear. A unidade da espécie humana, por mais paradoxal que possa parecer tal afirmac&o, nfo pode ser explicada sendo em termos de sua diversidade cultural. Mercier considera Tylor um dos pais do difusionismo cultural. Lowie, em sua The History of Ethnological Theory (1937), faz no entanto uma oportuna ressalva: "O que distingue Tylor do difusionismo extremo € simplesmente stia capacidade de avaliar as evidencias. Recusafido assumir a priori que toda semelhanga resulta da dispersio, aplica critérios definitivos para a solugo da questao.” Como Adolf Bastian (1826-1905), Tylor acreditava na “unidade pstquica da humanidade”, Tal fato Ihe foi util para nao cair nas armadilhas do difusionismo (como veremos posteriormen- {c), mas constituiu em sua falha o fato de “ndo reconhecer 05 intiltiplos caminhos da cultura” Da natureza da cultura a O seu grande mérito na tentativa de analisar e classificar cultura foi o de ter superado of demais trabalhadores de gabinete, através de uma critige arguta e exaustiva dos relatos dos viajantes ¢ cronistas gffloniais. Em vez da aceita- 40 tdcita dessas informacées, Tylor sempre questionou a veracidade das mesmas. Ao comtrério de’ John Lubbock (1872), recusou aceitar a safe de que diversos grupos tribais, entre eles os aborigines brasileiros, eram desprovi- dos de réligido. Tais afirmagdes, conclui Tylor, baseiam-se "sobre evidencias freqientemente erradas e minca conclusi- vas", A principal reacio a0 evolucienismo, entao denominé do método comparativo, inicia-se com Franz Boas (1858- 1949), nascido em Westfalia (Alemanha) ¢ inicialmente um estudante de fisica e geografia em Heidelberg e Bonn. Uma expedigae geogrifica a Baffin Land (1883-1884), que o colecou em contato com os esquimés, mudou o curso de sua vida, transformando-o em antropéloge. Tal fato provo- cou, também, a sua mudanga para os Estados Unidos, onde foi responsével pela formacao de toda uma geraclo de antro- pélogos. Aposentou-se, em 1936, pela Universidade de Co- lumbia, da cadeira que hoje tem o seu nome. A sua critica ao evolucionismo esté, principalmente, contida em seu artigo “The Limitation of the Comparative Method of Anthropology”,® no qual atribuiu a antropologia a execucao de duas tarefas: 4) a reconstrugao da historia de povos ou regides parti- culares; b) a comparagio da vida social de diferentes poves, cujo desenvolvimento segue as mesmas leis. 38 Cultura: um concelto antropolégico Além disto, insistiu na necessidade de ser comprovada, antes de tudo, a possibilidade de os dados serein compara- dos. E,propés, em lugar do método comparative puro e simples, a comparagto dos resultados obtidos através dos estudos histéricos das culturas simples ¢ da compreensio , dos efeitos das condigées psicolégicas ¢ dos meios ambi- entes, ‘Sao as investigacdes histéricas — reafirma Boas—o que convém para descobrir a origem deste ou daquele trago cultural e para interpretar a maneira pela qual toma lugar num dado conjunto sociocultural. Em outras palivras, Boas desenvolveu o particularismo histérico (ou a chamada Es- cola Cultural Americana), segundo a qual cada cultura se- gue os seus préprios caminhos em fungao dos diferentes eventos histéricos que enfrentou. A partir dai a explicagio evolucionista da cultura s6 tem sentido quando ocorre em termos de uma abordagem multilinear? Alfred Kroeber (1876-1960), antropélogo americano, cm seu artigo “O superorganico"!? mostrou como a cultura atua sobre 0 hontem, ao mesmo tempo em que se preocupow com a discussao de uma série de pontos controvertidos, pois suas explicagées contrariam um conjunto de crengas popu- larcs. Iniciou, como o titlo de seu trabalho indica, com a demonstragio de que gracas a cultura a humanidade distan- ciou-se do mundo animal. Mais do que isto, 0 homem. passou a ser considerado um ser que esté acima de suas limitagdes organicas. ‘Tem sido modo de pensamento caracteristico de nossa civilizagto ocidental uma formulacéo dé antiteses com- plementares, um equilibrio de contrarios que se ex- Danaturoza da cultura = a7 cluem. Um desses pares de idéias com que 0 nosso mundo vem lidando hé cerca de dois mil anos se expri- me nas palavras corpo e alma. Outro par que ja teve a sua utilidade, mas de que a ciéncia esta agora muita vezes se esforcando por descartar-se, pelo menos em certos aspectos, ¢ a distingao entre o fisico e o mental. Ha uma terceira discriminacdo que é entre o vital e 9 social, ou em outras palavras, entre o orgénico e 0 cultural. O reconhecimento implicito da diferenca entre quali- dades e processos organicos e qualidades'e processos, sociais vem de longa data. Contudo, a distingao formal é recente, De fato, pode dizer-se que o pleno alcance da importincia da antitese esté apertas raiando sobre o mundo, Para cada ocasiao em que alguma mente huma- na separa nitidamente as forcas orginicas e sociais, ha dezenas de outras vezes em que nao se cogita da dife- renga entre elas, owem que ocorre uma real confusio de duas idéias.!! A preocupacao de Kroeber é evitar a confusto, ainda tao comum, entre o organico ¢ o cultural. Nao se pode ignorar que o homem, membro proeminente da ordem dos prima- tas, depende muito de seu equipamento biolégico. Para se manter vivo, independente do sistema cultural ao qual per- tenga, ele tem que satisfazer um numero determinado de fung6es vitais, como a alimentacao, 0 sono, a respirac&o, a atividade sexual etc. Mas, embora estas,fung6es sejam co- muns a toda humanidade, a maneira de satis{azé-las varia de uma cultura para outra, E esta graride variedade na operacao de um mimero tio pequeno de funtgdes que faz com que 0 38 Cultura: umn concslto antropoldgico homem seja considerado um ser predominantemente cultu- ral. Os seus comportamentos ndo so biologicamente deter- minados. A sua heranca genética nada tem a ver com as suas ages € pensamentos, pois todos os seus atos dependem intciramente de um proceso de aprendizado, Por isto, con-, tinua Kroeber: Todos sabem que nascemos com certos poderes ¢ adqui- rimos outros. Nao € preciso argumentar para provar que algumas coisas de nossas vidas e constituigao provem da natureza pela hereditariedade, ¢ que outras toisas nos chegam através de outros agentes com os quais a here- ditariedade nada tem que ver. Nao apareceu ninguém que afirmasse ter um ser humanginascido com o conhe- cimento inerente cla tabua de ma@ltiplicagdo, ném, por outro lado, que duvidasse de queos filhos de um negro nascem negros pela atuagao de forcas hereditdrias, Con- tudo, certas qualidades de todo individuo sao claramen- te sujeitas a debate e quando se compara o desenvolvi- mento da civilizagao como um todo, a distingéo dos processos envolvidos apresenta muitas vezes falhas.!2 © homem, como parte do reino animal, participa do grande processo evolutivo em que muitas espécies sucum- biram ¢ s6 deixaram alguns poucos vestigios fésseis. As espécies remanescentes obtiveram esta condigao porque fo- ram capazes de superar uma furiosa competi¢ao e suportar modilicagées climaticas radicais que perturbaram enorme- mente as condigdes mesoldgicas como um todo. A espécie humana sobreviven. E, no entanto, o fez com um equipamento fisico muito pobre. Incapaz de correr Danatureza da cultura 39 como um antflope; sem a forca de um tigre; sem a acuidade visual de um lince ou as dimensées de um elefante; mas, 20 contrétio de todos eles, dotada de um instrumental extraor- ginico de adaptacdo, que ampliou a forca de seus bracos, a sua velocidade, a sua acuidade visual e auditiva etc. E 0 mais importante, tais modificagdes ocorreram sein nenhuma (ou quase nenhuma) modificagao anatomica, Alguns répteis, por exemplo, buscaram o refiigio dos ares para superar as dificeis condicdes de competigao exis- tentes no solo. Para isto, tiveram que se submeter a intensas modificagdes biolégicas, através de numerosas geragbes. Perderam escamas ¢ ganharam penas; trocaram um par de membros por um par de asas; um sistema de sangue frio por um de sangue quente; além de outras modificagées anato- micas e fisiolégicas, Ganhando a locomosao aérea, afinal se transformaram em aves. O homem obteve o mesmo restilta- do por outro caminho: Nao faz muitos anos que os seres hurnanos atingiram também o poder da locomogao aérea. Mas 0 processo pelo qual esse poder foi aleancado, e os seus efeitos, sto completamente diferentes daqueles que caracterizaram a aquisigao, pelos primeiros passaros, da faculdade de voat. Nossos meios de voar sio exteriores aos nossos corpos. O passaro nasce com um par de asas; nés inven- tamos o aeroplano. O passaro renunciou a um par potencial de maos para obter as suas asas; nds, porque a nossa faculdade nao é parte de nossa constituigao congénita, conservamos todos os drgios e capacidade de nossos antepassados, acrescentando-lhes a nova ca- pacidade. © proceso do desenvolvimento ‘da civiliza- 40 Cultura: um concsito antropol6gico cdo é claramente acumulativo: conserva-se o antigo, apesar da aquisicAo do novo. Na evoluclo’ organica, a introdugao de novos tragos 56 € geralmente possivel mediante a perda ou a modificacao de érgaos ou facul- dades existentes!? A baleia ndo é s6 um mamtfero de sangue quente, mas € reconhecida como o descendente remoto de animais lerrestres carnivoros. Em alguns milhdes de anos ... esse animal perdeu suas pernas para correr, suas gatras para segurar e dilacerar, seu pélo original e as orelhas exter- nas que, no minimo, nenhuna utilidade teriam na 4gua, c adquiriu nadadeiras cauda, um corpo cilindrico, uma camada de banha ¢ a faculdade de reter a respira- go. Muita coisa perdeu a espécie, mais, talvez, em conjunto do que ganhou. E certo que algumas de suas partes degeneraram. Mas houve um novo pader que ela aclquiriu: o de percorrer indefinidamente 0 Oceano. Encontramos o paralelo ¢ também o contraste na aquisigao humana da mesma faculdade, Nao transfor- mamos, por alteragio gradual de pai a filho, nossos bragos em nadadeiras e ndo adquirimos uma cauda Nem precisamos absolutamente entrar na 4gua para navegar. Construfmos um barco. E isto quer dizer que preservamos intactos ‘nossos corpos e faculdades de nascimento, inalterados com relagao aos de nossos pais € dos mais remotos ancestrais. Os nossos meios de navegacéo maritima sao exteriores a0 nosso equipa- mento natural. Nés os fazemos e utilizamos, ao passo que a baleia original teve de transformar-se ela mesma em barco. Foram-lhe precisas incontaveis geragdes para chegar & sua condigao atual. Todos os individuos que Danatureza da cultura = 44 no lograram conformar-se ao tipo nao deixaram des- cendente algum, ou nenhum que esteja ho sangue das baleias de nossos dias.!* Estes dois exemplos de Kroeber mostram que o homem criou o seu préprio processo evolutivo, No decorrer de sua histéria, sem se submeter a modificagdes biol6gicas radicais, ele tem sobrevivido a numerosas espécies, adaptando-se as mais diferentes condigdes mesolégicas. Kroeber procurou mostrar que, superando o orgtnico, © homem de certa forma libertou-se da natureza. Tal, [ato possibilitou a expansio da espécie por todos os recantos da Terra. Nenhum outro animal tem toda a Terra como o seu habitat,’ apenas o homem conseguiu esta proeza: De fato, o que faz o habitante humano de latitudes inclementes, ndo € desenvolver um sistéma digestivo peculiar, nem tampouco adquirir pélo. Ele muda o seu ambiente e pode assim conservar inalterado o seu corpo original. Constréi uma casa fechada, que o protege contra o vento e lhe permite conservar 6 calor do corpo. Faz uma fogueira ou acende uma lampada, Esfola uma foca ou um caribu, extraindo-lhe a pele com que a selegdo natural, ou outros processos de evolucdo orga- nica, dotou esses animais; sua mulher faz-the uma ca- isa e calgas, sapatos e luvas, ou duas pecas de cada um; ele os usa, e dentro de alguns anos, ou dias, est provido de protegdo que o urso polar e a lebre artica, a zibelina € 0 tetraz, levam longos perfodos a adquirir. Demais, 0 seu filho e0 filho de seu filho, e seu centésimo descen- dente nascerao tAo nus ¢ lisicamente tao desarmados como ele ¢ o seu centésimo ancestral.® a2 um conealto antropolégles Enquanto o urso polar nao pode mudar de seu ambien- te, pois ndo suportaria um grande aumento de temperatura, um esquims pode transferir-se de sua regiao gelada para um pais tropical e em pouco tempo estaria adaptado ao mesmo, bastando apenas trocar o seu equipamento cultural pelo desenvolvido no novo habitat, Ao invés de um iglu eapaz de conservar as menores parcelas de calor preferiria, entao, ocupar um apartamento refrigerado, ao mesmo tempo em que trocaria suas pesadas vestimentas por roupas muito leves ou quase inexistentes. Vimos que na evolugio animal para cada nova caracte- ristica adquirida ocorria a perda de uma anterior. Com o homem, uma vez pelo menos este fato tornou-se verdadeiro. Ao adquirir cultura perdeu a propriedade animal, genetica- mente determinada, de repetir os atos de seus antepassados, sem a necessidade de copid-los ou de se submeter a um processo de aprendizado. Um jovem lobo, separado de seus semelhantes no momento do nascimento, saberd uivar quando necessério; saberd distinguir entre muitos odores 0 cheiro de uma fémea no cio distinguir, entre numerosas espécies animais, aquelas que Ihe séo amistosas ou advers4- rias. Kroeber nos mostra que com o homem, mais uma vez, © processo € diferente: Um cachorrinho recém-nascido € criado com uma ni- nhada de gatinbos por uma gata, Contrariamente as anedotas familiares e aos topicos de jornais, o cachorti- nho latiré e rosnaré, n4o miard. Ele nem mesmo expe mentard iniar. A primeira vez que se lhe pisar na pata ele ganiré e nao guinchard, tao certo como, quando ficar enfurecido, morderé, como o faria a sua mae desconhe- Danatureza da cultura 49 ida, € nunca procurard arranhar, tal como viu a mae adotiva fazer. Um longo retiro pode privé-lo da vista, do som ou do cheiro de outros cies, Mas se acontecer chega-Ihe aos oitvidos um latido ou ganido, ei-lo todo atento — mais do que qualquer som emitido pelos gatinhos seus companheiros. Que se repita o latido, € entdo o interesse dard lugar 4 excitacdo, e ele latira também, t4o certo como, posto em contato com uma cadela, manifestar-se-do nele os impulsos sexuais de sua espécie. Nao pode haver duivida de que a linguagem canina constitui, de modo inextirpavel, parte da nature- za do cachorro, tao plenamente nele contida sem treino ou cultura, quanto fazendo inteiramente parte do orga- nismo canino, como os dentes, pés, estémagos, movi- mentos ou instintos. Nenhum grau de contato com os gatos, ou privagto de associagdo com a sua propria espécie, faré com que o cAo aprenda a linguagem do gato, ou perce a sua, nem tampouco o fard enrolar o rabo em vez de abani-lo, esfregar os flancos no seu dono em vez de saltar nele, ou adquirit bigodes ¢ levar as orelhas erectas. ‘Tomemos um bebé francés, nascido na Franca, de pai franceses, descendentes estes, através de numerosas ge- ragbes, de ancestrais que falavam francés. Confiemos esse bebe, imediatamente depois de nascer, a uma pajem muda, com instrugées para que nao permita que nin- guém fale com a crianca ou mesmo veja durante a viagem que a levard pelo caminho mais direto ao inte- rior da China. La chegendo, entrega ela o bebé a um. casal de chineses, que o adotam legalmente, e 0 criam como seu préprio filho. Suponhamos agora que se pas- 44 Cultura: um conealio antropolégico sem trés, dez ou trinta anos. Ser necessétio debater sobre que lingua falara o jovem ou adulto francés? Nem ‘uma s6 palavra de frances, mas puro chinés, sem um. vestigio de sotaque, ¢ com a fluencia chinesa, e nada mais.!7 Este é talvez 0 ponto em que a nogao de cultura mais contraria o pensamento leigo. E comum, entre os diferentes’ setores de nossa populacdo, a crenga nas qualidades (positi- vas ou negativas) adquiridas gragas & transmisséo genética, “Tenho a fisica no sangue” — dizia uma aluna que pretendia mudar a sua opgao de ciéncias socials para a de fisica, invocando o nome de um ancestral. “Meu filho tem muito jeito para a musica, pois herdou esta qualidade do seu avd.” E este um outro exemplo co- mum. Muito contribuiu para afirmacdes deste tipo a divulga- ‘cao da teoria de Cesare Lombroso (1835-1909), criminalista italiano, que procurou correlacionar aparéncia fisica com tendencia para comportamentos criminosos. Por mais ab- surda que nos possa parecer, a teoria de Lombroso encon- trou grande receptividade popular e, até recentemente, era ministrada em alguns cursos de direito como verdade cien- lifica. Em nossos dias 0 mau uso da sociobiologia tem exercido o mesmo papel. O perigo desses tipos de explicagdes € que facilmente associam-se com tipos de discriminagdes raciais e sociais, numa tentativa de justificar as diferengas sociais. Assim, até mesmo o sucesso empresarial passa a ser explicado como uma forma de determinacao genética ¢ é ilustrado com a enumeragao das diferentes dinastias de industriais ow em- presarios.!® Da natureza da cultura 48: Ovhomem € 0 resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele é um herdeiro de um longo processo acu- mulativo, que reflete o conhecimento e « experiéncia adqui- ridas pelas numerosas geragées que o antecederam. A mani- pulagéo adequada e criativa desse patriménio cultural per- mite as inovagées e as invengdes. Estas nao séo; pois, o produto da ado isolada de um genio, mas o resultado do esforgo de toda uma comunidade. No pardgrafo seguinte, Kroeber discute.o tema: Segundo um dito que é quase proverbial, e verdadeiro na medida em que podem ser verdadeiros tais lugares- comuns, o escolar moderno sabe mais que Aristételes; mas, esse fato, soubesse o escolar mil vezes mais que Aristételes, nem por isso o dota de uma fragdo do intelecto do grande grego. Socialmente — é 0 conheci- mento, € nao o desenvolvimento maior de um ou outro individuo, que vale, do mesmo modo que na mensura- ‘sho da verdadeira forga da grandeza da pessoa, o psicé- logo ou o geneticista ndo leva em consideragao o estado do esclarecimento geral, o grau variavel do desenvolvi- mento ligado a civilizacéo, para fazer suas comparacoes, Cem Aristételes perdidos entre nossos ancestrais habi- tantes das cavernas nao seriam menos Aristételes por direito do nascimento; mas teriam contribuido muito menos para o progresso da ciéncia do que doze esforca- das mediocridades no século vinte. Um super-Arquime- des na idade do gelo nao teria inventado nem armas de fogo nem o telégrafo. Se tivesse nascido no Congo ao invés de uma Sax6nia, néo poderia Bach ter composto nem mesmo um fragmento de coral ou sonata, se bem 48 Cultura: um concelto antropolégico que possamos confiar igualmente em que ele teria eclip- sado os seus compatriotas em alguma espécie de musi- ca, Quanto a saber se existiu algum dia um Bach na Africa, é outra questao — a qual nfo se pode dar uma resposta negativa meramente porque nenhum Bach ja- mais por lé apareceu, questdo que devemos razoavel- mente admitir nao ter tido resposta, mas em relagao & qual 0 estudioso da civilizagao, até que se apresente. uma demonstragdo, néo pode dar mais que uma respos- ta assumir uma sé atitude: supor, nfo como uma finalidade mas como uma condigio de método, que existiram tais individuos; que 0 genio e a capacidade ocorrem com freqaéncia substancialmente regular, © que todas as ragas ou grupos bastante grandes de ho- mens so em média substancialmente iguais e tem as ‘mesmas qualidades.”? Em outras palavras, nao basta a natureza criar indivi- duos altamente inteligentes, isto ela o faz com freqiténcia,” mas € necessério que coloque ao alcance desses individuos ‘© material que thes permita exercer a sua criatividade de uma maneira revolucionaria. Santos Dumont (1873-1932) nao tcria sido o inventor do avida se nao tivesse abandonado a sua pachorrenta Palmira, no final do século XIX, € se transferido em 1892 para Paris. Ali teve acesso a todo o conhecimento acumulado pela civilizagdo ocidental. Em Palmira, 0 seu cérebro privilegiado poderia talvez realizar outras invensdes, como por exemplo um eixo mais aperfei- oado para carros de bois, mas jamais teria tido a oportuni- dade de proporcionar & humanidade a capacidade da loco- mogio aérea, Albert Einstein (1879-1955) nfo teria desen- Da nelireze da culura, 47 volvido a teoria da relatividade se tivesse nascido em uma distante localidade do Himalaia e 14 permanecido. Mas, por outro lado, se Alberto Santos Dumont tivesse morrido em sua primeira infancia, fato comum no lugar e época em que nasceu, ¢ se Albert Einstein tivesse sido consumido pela voragem de uma das guerras européias do final do século XIX, a humanidade teria que esperar um pouco'mais, talvez, pelas suas descobertas, Mas certamente ndo ficaria privada da teoria da relatividade e do aeroplano, pois outros cientis- tas e inventores estariam aptos para utilizar os mesmés conhecimentos'e realizar as mesmas facanhas. A afirmacéo acima nos leva a fazer algumas breves consideracées sobre as invengées simullaneas, objeto de intensas polémicas pela escola difusionista. Ao mesmo tempo em que Santos Du- mont tentava realizar 0 seu voo com um aparelho'mais pesado que o ar, do outro lado do oceano, dois irmacs, utilizando os mesmos conhecimentos e a mesma experin- cia, tentavam e conseguiram’o mesmo feito, O mesmo ocorreu com certo matemético que, ao terminar de redigir a sua tese de doutoramento e se preparar pata edité-la, descobriu em uma revista européia um artigo; escrito por um outro mnatematico com o qual ndo teve o menor contato, que sintetizava toda a sua tese. A explicagdo para tal fato é muito simples: comparando-se a bibliografia utilizada por cada um descobriu-se serem ambas muito semelhantes. As- sim, diante de um mesmo material cultural, dois cientistas agindo independentemente chegeram a um mesmo resul- tado. Mesmo quando entre dois inventores simultaneos exis- tea separacéo da diversidade cultural, a explicagao € muito simples (mais simples do que a intervenglo de seres extra- 48 Cultura: um concalto antropolégico terrestres ou sobrenaturais para explicar a ocorréncia de pirtmides no Egito ¢ no México): para alguns tipos de problemas existem determinadas limitagées de alternativas que possibilitam que inveng6es iguais ocorram em culturas diferentes. Uma construgdo esti limitada pelas formas geo- étricas e estas séo limitadas, portanto nada existe demais que cm duas partes do mundo elas assumam inde- pendentemente formas piramidais. Resumindo, a contribuigéo de Kroeber para a ampliagao do conceito de cultura pode ser relacionada nos seguintes pontos: 1. A cultura, mais do que a heranga genética, determina ‘0 comportamento do homer e justifica as suas realiza- goes. 2. O homern age de acordo com os seus padrdes cultu- rais, Os seus instintos foram parcialmente anulados pelo longo processo evalutivo por que passou. (Voltare- mos a este ponto mais adiante.) 3. A cultura é 0 meio de adaptagio aos diferentes am- bientes ecolégicos. Em vez de modificar para isto o seu aparato biolégico, o homem modifica o seu equipamen- to superorganico. 4, Em decorréncia da afirmagdo anterior, o homem fot capaz de romper as barreiras das diferengas ambientais ¢ transformar toda a terra em seu habitat. 5. Adquirindo cultura, o homem passou a dependar muito mais do aprendizado do que a agir através de atitudes geneticamente determinadas. 6. Como jé era do conhecimento da humanidade, desde o Iluminismo, é este processo de aprendizagem (soda- De natureza da culture 49 agdo ou endoculturagéo, ndo importa o termo) que determina o seu comportamento a sua capacidade art{stica ou profissional. 7. A cultura € um processo acumulativo, resultante de ao a experiéncia historica das geragdes anteriores Fe Poca limita ou estimula @ agio criativa do 8. Os génios sdo individuos altamente inteligentes que tem a oportunidade de utilizar o conhecimento existen te a0 seu dispor, construido pelos participantes vivos ¢ ™mortos de seu sistema cultural, e criar um nove objeto ou uma nova técnica, Nesta classificagio ori oe? inclufdos os individuos que fizeram as primeiras inven- es, tais como o primeito homem que produziu o fo através do atrito da madeira seca; ou o primeiro homem que fabricou primeira méquina capaz de ampliar a forca muscular, 0 arco ¢ a flecha etc. Sao eles génios di mesma grandeza de Santos Dumont e Einstein. Sem as suas primeiras invengdes ou descobertas, hoje conside- rae mmodesas, nao teriam ocorrido as demais. E pior que isto, talve a ne oa mesmo a espécie humana teria Gostariamos, agora, antes de finalizarmos este capitul de voltar a discutir dots pontos que patecem, so'cenay comum, mais controvertidos: ; . O primeito deles refere-se ao ofuscamento dos instintos wumanos pelo desenvolvimento da cultura. Na verdad nem todos os instintos foram suprimidos: a erlanca a0 nascer busca o seio materno e instintivamente faz ei boquinha o movimento de sucgdo. Mals tarde, movide ainda @0 senso

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