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BREVE HISTORIA DA MUSICA ANTIGA EM MINAS GERAIS Renato Somberg Pfeffer Moisés Luna Resumo Este artigo 60 resultado parcial do projeto de pesquisa “Uma Viagem Musical por Minas Gerais: contribuicées para a formacao de um roteiro turistico na Estrada Real através da musica antiga’, financiado pela Universidade FUMEC. Existem em algumas cidades da Estrada Real verdadeiros tesouros musicais, A maior parte deles, no entanto, se perdeu. Muitas orquestras coloniais cessaram suas atividades e seus acervos desapareceram. Os acervos que sobreviveram sao exemplos de um rico reper- tério musical colonial que poderia ser um terreno fertil para atrair maestros, pesquisa- dores e turistas interessados em saber mais das raizes musicais brasileira, A misica antiga mineira, muitas vezes chamada de erudita, nao foi feita para uma elite inte- lectualizada e conhecedora de misica. Ao contrario, jé no periodo colonial suas raizes eram populares e ligadas & liturgia do catolicismo. A miisica destes compositores geniais merece ser conhecida por um publico mais amplo. Palavras chave: Misica antiga, Barroco, Minas Gerais. |. Este artgo é resultado parcial do projeto de pesquisa “Uma viagem musical por Minas Gerais: contribuigdes para a formagao de um roteiro turistico na Estrada Real através da misica antiga’, financiado pela Universidade Furec SeTEXTO eS _ = 13 a Bolo Horizonte, v6, 1, p-33-44, jul 2005 Breve histéria da misica antiga em Minas Gerais, O barroco e a musica mineira Amisica européia penetrou na regio das Minas Gerais juntamen- te com as primeiras entradas explo- ratorias, que buscavam metais no interior da colénia. Jesuitas como Juan Azpicuelta, em 1554, traziam em sua bagagem instrumentos mu- sicais para encantar e converter 0 gentio. Essas tentativas pueris de dominar o indigena pela musica, no entanto, logo foram conjugadas a forga das armas. No século que ante- cedeu a descoberta do ouro, os ban- deirantes paulistas dizimaram os in- digenas (REZENDE, 1989). Amedida que os bandeiran- tes avangavam pelo interior da colé- nia, e concomitantemente ao massa- cre indigena, pequenas povoagoes iam nascendo. Possuindo a colonizagao portuguesa um cardater fortemente religioso, essa incipiente urbanizagao foi acompanhada de intimeras ceri- ménias religiosas celebradas com mxisica. A descoberta do ouro fez com que afluisse para a regiao das Minas Gerais um grande e diversificado con- tingente populacional. A miscigena- cao branca, indigena e negra foi in- tensa, dando origem a uma popula- cao mestica. Foi justamente dessa populagdo mestiga que surgiram os grandes artistas brasileiros do sécu- lo XVIII e que produziram uma arte nacional e extremamente original. Pouco se sabe sobre a ativi- dade musical nas Gerais na primeira metade do século XVIII. Sabe-se ape- nas que os primeiros musicos que aqui aportaram vieram de outras re- gides do Brasil. Entre as poucas refe- réncias desse periodo, constam pro- fessores de musica registrados em Vila Rica ja em 1716 e noticias sobre uma corporagao de musica em Sao Joao Del Rei (REZENDE, 1989). Apesar dos insuficientes documentos histéricos do periodo, é possivel intuir uma vida musical intensa, devido a religiosida- de reinante, sempre acompanhada pelo canto. As festas religiosas incluiam encenagoes musicadas e dancas de ori- gem portuguesa ou afro-brasileira. Renato Almeida refere-se ao amor dos mineiros pela musica, a ponto de a regiao ser chamada a Ita- lia do Brasil. Afirma que 0 povo era “doudo pela dansa e pela musica” (AL- MEIDA, 1942, p. 378). Merece desta- que na produgdo musical mineira, segundo o autor, a boa musica de igreja e de salao, em especial na cida- de de Mariana apés a criagao do bis- pado, em meados do século XVII. Ele Jembra ainda as festas extraordina- rias, regadas a danga e musica, pro- movidas pelo contratador de diaman- tes Joao Francisco de Oliveira, “para satisfazer aos caprichos de sua amante, a tal Chica da Silva (...). To- dos dansavam um minueto gracioso, contradansas ardentes e animadas, 0 fandango fantasista, ao som de um PRETEXTO — 3 oo Belo Horizonte, v.6,n. 1, p.33-44, jul. 2005 vibrante chique-chique de pretas” (AL- MEIDA, 1942, p. 378). A documentagaéo da musica colonial brasileira hoje encontrada data principalmente de meados do século XVIII em diante. Comecam a despontar, entao, os compositores mulatos mineiros. O trabalho de res- gate da memoria musical do periodo colonial em Minas Gerais foi realiza- do de forma sistematica por Francis- co Curt Lange (LANGE, 1951, 1976), a partir da década de 1940. Ele docu- menta uma intensa atividade duran- te o periodo da mineragao. Em fins do século XVIII e inicio do XIX, con- temporanea as obras artisticas de Aleijadinho, Tomas Gonzaga e Clau- dio Manuel da Costa, surgiu na re- giao das Minas Gerais toda uma gama de compositores. Produzindo quase sempre por encomenda da Igreja, des- tacam-se José Joaquim Emérico Lobo de Mesquita (1746-1805), Manoel Dias de Oliveira (1745-1813), Marcos Coe- lho Neto (1740-1806), Inacio Parrei- ros Neves (1730-1793), entre outros. Essas obras retratam a épo- ca do Barroco Mineiro. O estilo barro- co teve sua origem na Europa do sé- culo XVII e sua caracteristica essen- cial é o contraste, na tentativa de con- ciliar espiritualidade medieval e raci- onalismo renascentista, emogao e ra- zao, teocentrismo e antropocentris- mo. O barroco mineiro tornou-se par- cialmente independente do seu geni- tor, o barroco europeu. Acabou assu- Renato Somberg Pfeffer e Moisés tuna mindo caracteristicas proprias do Bra- sil, dando inicio a arte nacional As obras barrocas mineiras, erigidas com a riqueza extraida da terra, foram essencialmente religio- sas. A Igreja Catolica era a religiao oficial do Estado portugués. Até sua em expulsao da regido das Minas, em meados do século XVIII, os jesuitas eram responsaveis nao somente por ensinar a gramatica e o latim, mas também pela alfabetizagao musical. Em 1737, a ordem dos Franciscanos criou uma Escola de Artes e Oficios em Vila Rica. E dessa escola que nas- ce toda uma geragao de mestres com- positores. Outra grande influéncia para o desenvolvimento da musica sacra em Minas foi a posse, em Ma- riana, do bispo D. Manuel da Cruz (1749), grande incentivador da arte musical na capitania. Seu bispado é considerado um momento de conso- lidagao da hegemonia cultural da Igreja (REZENDE, 1989). Na verdade, desde o inicio da exploragdo aurifera, Minas Gerais possuia uma forte e peculiar tradi- cao religiosa. As ordens regulares, excessivamente auténomas aos olhos reais, foram proibidas pela Coroa portuguesa logo que o ouro foi des- coberto, Foram substituidas pela re- ligiosidade popular organizada em irmandades e confrarias, que se tor- naram responsaveis pelos cultos e praticas religiosas. Eram elas que contratavam escultores, arquitetos e PRETEXTO — 3s om Belo Hortzonte, v.6,n. 1, p. 33-44, Jul 2005 Breve historia da musica antiga em Minas Gerais miisicos, responsaveis pelo grande legado cultural conhecido como bar- roco mineiro (CAMPOS, 2005). Na pratica, isso significa que os compo- sitores mineiros nao foram susten- tados pelo Estado. Ao contrario, foi um movimento privado sustentado por irmandades e ordens terceiras, que arrecadavam anuidade de seus membros, prestando-lhes servigos religiosos. Organizadas em torno de um santo, as irmandades separavam pes- soas de acordo com a raga: homens pretos, pardos ou brancos. Destaca- va-se no campo da misica a Irman- dade de Santa Cecilia, padroeira dos muisicos. Formada por homens par- dos livres, que ocupavam uma mo- desta posigao social, essa irmandade foi fundada em Vila Rica em 1749 e tinha como sede a Igreja Matriz do Pilar. Pertenciam também a essa ir- mandade os mitsicos de Sabara. Ir- mandade semelhante foi fundadaem Mariana, porém nao resistiu e desa- pareceu. Sao Joao Del Rei também possuia uma irmandade de misicos, chamada Nossa Senhora da Boa Mor- te (mais tarde, em 1829, Santa Ceci- lia). Essas irmandades comandavam as festas do calendario religioso, sem- pre acompanhadas por miisicas. Além dessas festas, nascimentos, casamen- tos e festividades avulsas ligadas a assuntos da familia real eram de igual maneira motivos para a musicalida- de (REZENDE, 1989). ‘TEXTO 36 A fragil conservagao das miusicas fez com que pouco sobrevi- vesse de um passado musical patro- cinado pela Igreja. O que restou do- cumentado sao as obras dos compo- sitores que atuavam em Diamantina, Ouro Preto, Mariana, Tiradentes e poucas outras cidades. Esses docu- mentos atestam uma intensa ativi- dade e, inclusive, originalidade em relagao ao que acontecia na Europa. A dificil classificagao da musica colonial mineira Sobreviveram do periodo co- Jonial entre 2000 e 2500 partituras do século XVIII. Os compositores brasi- leiros desse periodo, mineiros, cario- cas, paulistas, goianos e pernambu- canos, criaram obras complexas e, muitas vezes, originais. Parcela des- sas obras foi recuperada por Curt Lan- ge, que deixou trinta e seis volumes de documentacao. Outra parcela foi mantida por orquestras bicentenari- as, como as de Sao Joao Del Rei. A maior parte das composigdes coloni- ais brasileiras, no entanto, perdeu-se (DUPRAT; BALTAZAR, 1997). Cerca de sessenta compositores brasileiros tran- sitaram ou nasceram nos caminhos da Estrada Real. Muitas entidades mineiras ainda preservam a misica do século XVIII. Essa musica nunca foi singela e mantinha um obvio vin- culo com o que se fazia na Europa. Muito mais que um subproduto euro- peu, no entanto, existia na musica mineira uma identidade propria. Em artigo escrito para a fo- lha on-line, Harry Crow! (CROWL, 2005) deixa claro o grande problema representado pela classificagao da musica colonial brasileira. Quando os estudos de Curt Lange se difundiram, nos anos 1940 e 1950, surgiu a ques- tao de como inserir esse estilo musi- cal na historia da musica brasileira e universal. Assemelha-lo a Haydn ou Mozart, como fez Curt Lange naque- la época, nao parecia correto. Se algo aproximava os com- positores coloniais desses mestres era a musica italiana, na época referén- cia para toda a Europa. Complica ain- da mais essa questao a diversidade da musica italiana de entao: opu- nham_-se nesse periodo a decadente escola polifénica romana e a ascen- dente escola napolitana influenciada pela 6pera. Sabe-se, hoje, que os por- tugueses Criaram uma variante pro- pria, misturando esses estilos Os trabalhos encontrados no Brasil mantém essa tendéncia sincré- tica. Afinal, a colonia estava ligada de forma umbilical a Portugal, tanto do ponto de vista socioeconémico como do ponto de vista cultural. As- sim como em Portugal, a musica co- lonial brasileira mistura estilos na- politano e romano, profano e religio- so. O que distanciava a musica por- Renato Somberg Pos re Moises Luna tuguesa da brasileira colonial era a produgao limitada de musica profa- na no Brasil, tanto vocal como ins- trumental, no periodo anterior a transferéncia da corte para o Brasil Isso fazia com que 0s compositores mineiros escrevessem musicas com trechos curtos, pouco desenvolvimen- to formal e avessos as regras de con- traponto e fuga. Outra diferenga fun- damental é que a musicalidade bra- sileira origina-se nao s6 da mistura dos estilos europeus. A musica negra e indigena faz parte desse caldo cul- tural, em especial na mtisica profa- na e, em menor escala, na musica sacra do século XIX Essas constatagoes dificul- tam cada vez mais a aceitagao da ex- pressao “barroco mineiro” no que tan- ge a musica. Embora chamados de “mestres musicais do barroco minei- ro”, as obras dos compositores mi- neiros nao eram propriamente bar- rocas. O barroco europeu é vocal-ins- trumental, voltado para 0 texto a ser cantado. Vivenciava-se alio inicio da musica tonal (forma na qual uma voz melodica imita a outra com cer- ta defasagem) e a polifonia cedia lu- gar & homofonia (vozes ou instru- mentos soando em unissono). Os ins- trumentos passaram a ser aceitos nas igrejas que antes s6 admitiam a mu- sica vocal. A maioria das mdsicas mineiras, por sua vez, nao possuia uma das principais caracteristicas do estilo barroco, a polifonia. As obras TEXTO Belo Horizonte, v.6,n. 1, p. 33-44, jul. 2005 Breve historia da miisica antiga em Minas Gerais de impressionante qualidade desses artistas mestigos, que nao tiveram contatos mais profundos com o meio culto, derivam mais da influéncia de um pré-classicismo vienense. A con- fusao reinante de chamar os musi- cos coloniais mineiros de represen- tantes do estilo barroco se deve ao estilo predominante na escultura e na arquitetura mineira da época. Paulo Castagna (2000), além de descartar o termo “barroco minei- ro”, também questiona a expressao “muisica colonial”. Prefere utilizar musica da América portuguesa ou dos séculos XVII e XIX ou ainda musica tridentina, em referéncia a liturgia de entao. Apos pesquisar dez acervos e estudar 145 composigées, 0 autor con- cluiu que houve no periodo colonial a convivéncia de dois estilos contradi- torios: um antigo e um moderno. O primeiro marcado por técnicas renas- centistas do século XVI e produzidas nos séculos XVIII e XIX, 0 segundo utilizando técnicas provenientes da 6pera e da misica instrumental pro- fana. A escolha de um desses estilos, mais que uma op¢ao estética, obede- cia as prescrigoes liturgicas. Em sintese, a harmonia, a escrita coral, a homofonia aproxi- mam sobremaneira 0 barroco minei- ro do estilo pré-classico europeu. S40 raros os elementos musicais barro- cos como 0 baixo cifrado (colocagao de algarismos sobrepostos a nota do baixo para cifrar 0 acorde) e certos TEXTO _ 38 preciosismos usados para acentuar a expressao de algumas palavras. Pode- se afirmar, portanto, que em Minas nao havia um estilo musical barro- co. O que havia, na verdade, era “uma sensibilidade coletiva barroca que, em. musica, se fixou em idiomatica reli- giosa. Sendo de inspiragao livre e es- pontanea, de estilo condicionado pela formagao social, resultou disto um. certo barroquismo, isto €, uma ex- pressao violenta, sensorial, bem com- plexa” (REZENDE, 19839, p. 471). Essa musica, nascida numa sociedade marcada pela luta por liberdade e pe- las contradigées sociais geradas pelo ouro, acabou adquirindo caracteris- ticas originais marcadamente hibri- das. Em outros termos, a musica mineira dos setecentos era pré-clas- sica, porém acomodava-se ao barro- co. Esse hibridismo exige que a mé- sica setecentista mineira seja anali- sada a partir de suas préprias carac- teristicas, nao em termos europeus Misica oitocentista na Estrada Real A ampliagao dos horizontes da musicalidade mineira no século XIX coincide com o declinio da mine- ragdo e com uma nova linguagem artistica bem menos rigida no tocan- te as formas musicais, 0 Romantis- mo. Houve, nesse periodo, um inten- so intercambio musical entre artis- Belo Horizonte, x. 6, 1, p.33-44, ful. 2005 tas mineiros saidos da regiao em bus- ca de trabalho e obras de outros ar- tistas brasileiros e europeus que aqui se difundiam. A vinda da familia real para o Rio de Janeiro em 1808, tra- zendo consigo a liberagao da impren- sa, contribuiu mais ainda para que a cultura européia se difundisse em Minas, até entao o Estado mais con- trolado da colénia devido as suas ri- quezas facilmente contrabandedveis. Em suma, 0 modo de viver a musica do mineiro modificou-se profunda- mente no inicio do novo século. Essa flexibilizagdo no cam- po musical, porém, nao impediu que o “estilo musical barroco mineiro” mantivesse sua produgao classica, adaptando a composigao de outros lugares a seu estilo proprio. Ao mes- mo tempo, permitiu que a mtsica sacra e a profana se influenciassem mutuamente, A misica religiosa in- corporou as melodias liricas da mu- sica profana e compositores eruditos arriscavam-se no campo da musica- lidade profana. Enquanto a musica erudita religiosa no Brasil tendia a se manter colada a matriz européia, bebendo vagarosamente da musica- lidade popular, esta, por sua vez, ino- vava freqiientemente, deixando-se levar pelo sincretismo de ragas e as- sumindo uma nova identidade. A musica popular profana acabou se tornando permedvel, miscigenada, facilmente deformavel em suas ba- ses e, por isso, tao criativa. Renato Somberg Pfeffer e Moises Luna Embora a maioria dos mui- sicos mineiros se dedicasse a musica sacra, ha registro de varias pegas pro- fanas produzidas para a atividade teatral. As comédias e dperas ence- nadas na casa da 6pera em Vila Rica, em fins do século XVII, contaram com a colaboragao de muitos compo- sitores, quase todos andnimos. A quantidade de teatros e casas de 6pe- ra surgidos no século XVIII indica uma grande produgao de musica pro- fana: casa da 6pera em Ouro Preto, teatro de Sao Joao Del Rei, teatro de Sabaré, casa da épera em Paracatu, “teatrinho de bolso” em Diamantina, esse Ultimo construido para a negra Chica da Silva por seu marido, 0 con- tratador Joao Fernandes de Oliveira Destacavam-se na produgao profana as modinhas, tocadas ao som do violino, e os lundus. Esses géne- ros, que antes de sua vulgarizagao eram compostos pelos mesmos artis- tas que produziam musica sacra, aca- baram se fundindo, dando origem as linhas dominantes da musicalidade popular brasileira. O lundu O lundu é derivado da rica contribuigao ritmica africana intro- duzida no Brasil no século XVIII por escravos angolanos. No inicio, sua coreografia foi confundida com a dan- ga flamenga, devido a elevagao dos bragos e ao estalar dos dedos, qu assemelhava ao uso de castanholas. TEXTO Belo Horizonte, v. 6,0. 1, p-33-44, jul. 2005 Breve histéria da miisica antiga em Minas Gerais, Por outro lado, diferia da danga es- panhola pela umbigada (aproximagao de parceiros que se tocam no umbi- go). Nina Rodrigues a descreve como uma “danca de pretos, muito indecen- te, na qual se faz mil espécies de movimentos com o corpo” (RODRI- GUES, 1935, p. 142) e acaba compa- rando-a com ritual de feitigaria. Ape- sar de considerado imoral pelos pa- dres, o lundu era constantemente apresentado nos adros das igrejas. A danca lundu passou por varias mutagées no pais, adquirindo uma coreografia e musicalidade es- pecificas. Vocalizou-se, originando uma canc¢ao maliciosa e cémica e, de danga erética entre os negros, evo- luiu para a cangao solo e a muisica de salao. Nessa passagem para canto e danga de salao, os instrumentos de cordas dedilhadas foram substituidos pelo piano. Mario de Andrade afir- ma que no final do século XTX 0 lun- du “caiu em desuso” (ANDRADE, 1999, p. 291), Na verdade, o lundu passou a influenciar e ser influenci- ado pelo lirismo da modinha. Ambos os estilos se sincretizaram e se tor- naram a base da musica popular bra- sileira. Arthur Ramos, substituindo a perspectiva racista e evolucionista de Nina Rodrigues pela perspectiva culturalista (corrente que afirma que o contato entre culturas constitui-se numa interpenetragao de civiliza- goes}, apontava para uma “avalan- che de sincretismo” (RAMOS, 1942, TEXTO 0 p. 6) quando falava do resultado har- monioso dos contatos culturais en- tre brancos e negros. A modinha A modinha sofre influéncia direta do Romantismo oitocentista, marcado por formas mais sensiveis ligadas a vivéncia psicolégica ou con- templativa. O Romantismo dissolvia arigidez das estruturas tradicionais, transformando as leis harménicas da estrutura tradicional setecentista em uma idiomatica mais livre e expres- siva. A mtisica genuinamente nacio- nal e brasileira é filha da literatura poética romantica. Através da poesia musicada expressavam-se ternura, amor, frustragao. Em Minas, 0 poeta e musico Manoel Ignacio da Silva Alvarenga (1729-1814) foi um dos pioneiros des- se ideal de brasilidade ao tentar re- tratar a beleza natural e os sentimen- tos que afloravam no pais. Sua obra esta na origem das modinhas minei- ras. Paralelamente & musica sacra que berbulhava nas igrejas, eclodia em Minas Gerais esse novo género musical. “Brotando como ouro, @ modinha divulgou-se, transmitida oralmente entre 0 povo, popularizou- se em anonimato de autor” (REZEN- DE, 1989, p. 656). Surgida na elite cultural, aristocratica e cantada ape- nas em saldes, muito em voga na Europa, a modinha logo se populari- zou ao ganhar oacompanhamento da Belo Horizonte, v 6,1. 1, p. 33-44, jul 2005 viola e adquiriu no Brasil caracteris- ticas nacionais. “Os documentos e textos mais antigos se referindo a ela ja designam pegas de salao, e todos concordam em dar a modinha uma origem erudita, ov pelo menos da semicultura burguesa” (ANDRADE, 1980, p. 6). A difusao artistica das elites para as camadas populares, como ocor- reu com a modinha, é um fenémeno pouco comum. No decorrer dos géneros musicais é mais freqiiente o inverso, uma depuragao do que é popular na elite cul- tural, como ocorreu com o lundu. Amodinha acabou por cons- tituir uma expresso da sensibilida- de brasileira gerada por um contet- do poético. “A sensualidade mole, a dogura, a banalidade que lhe é pré- pria sé lhe péde provir da geografia, do clima, da alimentagao” (ANDRA- DE, 1980, p. 7) Em Minas Gerais, a modinha adquiriu uma caracteristica trovado- resca, profana, seresteira. Isso pro- vavelmente se deve a organizagao social da Minas colonial, que em muito se assemelhava a da Idade Média. Os trovadores medievais eu- ropeus “perambulavam pelos caste- los, acompanhados pela viola (...), cultivavam a cangao de amor e de gesta (assunto heréico)” e sua misi- ca“é 0 primeiro exemplo relevante da musica vocal-instrumental profana” (ANDRADE, 1967, p. 61-62). Renato Somberg Pfefjer'e Moises Luna Expressando os mais profun- dos sentimentos humanos, essas com- posicgées lfricas populares vao estar na raiz de um tipo popular e um género que identificarao os mineiros dai por diante: o cancioneiro e a seresta. No passado, 0 costume das serenatas ro- mianticas se espalhou pelas noites das cidades mineiras, falando de amores platénicos ou frustrados. Poetas ané- nimos musicavam seus versos ao lon- go da Estrada Real, “fazendo apologia do sentimento, da paixao bem sofrida ou do martirio de uma saudade, tra- duzido em melodias singelas” (REZEN- DE, 1989, p. 647). Integrada na seres- ta, a modinha retrata um periodo importante da histéria de Minas Ge- rais e, ao se popularizar, tornou-se um. elemento fundamental para a forma- cao da identidade regional. Algumas modinhas dos séculos passados ainda podem ser encontradas no museu de musica da Arquidiocese de Marianae no museu da Inconfidéncia de Ouro Preto. Para além dos museus, a seres- ta ainda sobrevive em manifestagées espontaneas populares em varias ci- dades mineiras. As bandas Em fins do século XVIII e inicio do XIX, houve ainda outra for- ma de expresséo da musica profana mineira: as bandas. Surgidas nas ci- dades consolidadas ao longo da Es- trada Real, as bandas substituem ins- trumentos de corda pelos de sopro, como clarinetes, trompetes, trombo- TEXTO Belo Horizonte, x 6, 1, p.33-44, jul 2005, Breve histéria da miisica antiga em Minas Gerais nes e tubas. Saem de cena violinos, violas, violoncelos, flautas, fagotes e i] que a musica sa- cra, a musica das bandas é executa- da nas pracas e coretos das cidades, libertando-se, ao menos em parte, do jugo da Igreja. As quadrilhas e pol- cas caem no gosto popular e tém grande aceitagao. As bandas, com sua musica sinfonica que substitui as orquestras. do século KVHI, foram a expressao musical de uma burguesia comercial em ascensao, que buscava afirmar- se em Minas no inicio do século XIX. Essa burguesia comercial havia sur- gido ainda no século anterior em meio a uma sociedade marcada, de um lado, pelos grandes proprietarios e, de outro, pelos escravos e homens li- vres pobres. O enriquecimento dessa burguesia a fez identificar-se com os grandes proprietarios, tanto politica como culturalmente. Logo os burgue- ses passaram a adquirir fazendas e construir grandes sobrados nas cida- des. Ao se acomodar nos centros ur- banos, a burguesia “precisou buscar alguma atividade representativa de sua posicao: encontrou-a na banda de miisica e dela fez, com grande suces- so, seu simbolo” (REZENDE, 1989, p. 666). As bandas serviam as festas religiosas e aos politicos, encantavam jovens e velhos, ganharam a praca publica e os quartéis, Todos paravam “pra ver a banda passar”. O progresso material e a di- fusao de novos gostos entre a popu- lagdo fizeram a musica sacra decair e ser substituida pela profana. Nesse contexto, as bandas tiveram, ao lon- go do século XIX, um pape) funda- mental em todas as cidades de Mi- nas, encantando seus moradores Cada banda possuia seu instrumen- tal e seu arquivo musical, sacro ou profano. Muitas bandas antigas ain- da estao vivas, como a do Senhor Bom Jesus de Matozinhos e a do Se- nhor Bom Jesus das Flores, de Ouro Preto. No acervo do museu de misi- ca de Mariana existem aproximada- mente mil pegas de bandas de musi- ca dos séculos XVIII e XIX. Elas re- presentam hoje uma rica heranga da atividade musical desse periodo. Tesouros musicais na Estrada Real Existem em algumas cidades da Estrada Real verdadeiros tesouros musicais. Em Ouro Preto, a Gasa do Pilar abriga o setor de musica do Museu da Inconfidéncia. Além do le- gado de Curt Lange, ali estao cole- des doadas por cidades mineiras como Pitangui, Ponte Nova, Campa- nha e 27 titulos do Arquivo Pablico Mineiro de Belo Horizonte. Sao Joao Del Rei, por sua vez, guarda dois acer- vos pertencentes as suas orquestras bicentenarias, a Lira Sao-Joanense e a Ribeiro Bastos. Essas duas orques- TEXTO — Belo Horizonte, v.6,n. 1, p- 33-44, jul. 2005 tras disputavam, desde 1770, contra- tos para musicar atos littirgicos das confrarias e irmandades. A maior parte desse tesouro, no entanto, perdeu-se. Muitas or- questras coloniais cessaram suas ati- vidades e seus acervos desaparece- ram. O descaso em relagao ao passa- do musical brasileiro, por sinal, é notorio. O Instituto de Patriménio Histérico e Artistico Nacional (Iphan) nao possui sequer uma divisdo de musica. Atualmente esta em curso em Mariana o maior projeto de recu- peragao dessa memoria cultural bra- sileira. O Projeto Acervo da Musica Brasileira — Restauracdo e Difusao de Partituras, patrocinado pela Petrobras e idealizado pela Fundagao Cultural e Educacional da Arquidiocese de Ma- riana, 6 uma iniciativa que pretende dar uma nova dimensdo a musica antiga brasileira. Objetiva-se recupe- rar 2000 partituras, em sua maioria dos séculos XVIII e XIX, de composi- tores brasileiros, portugueses e itali- anos. Essas partituras, localizadas no Palacio Arquiepiscopal de Mariana, estéo em processo de reorganizagao no museu. Muitas foram editadas, reunidas em um s7fena Internet e lan- cadas em CD. Segundo Paulo Castag- na, “essa pesquisa esta redimensionan- do a musica antiga brasileira. Novos compositores estao sendo descobertos e obras atribuidas de maneira equivo- cada a terceiros passam a receber 0 Renato Sumnbony Belfer e Motsés Luna crédito correto, em um rigoroso tra- balho" (COELHO, 2003, p. 5). Oimenso projeto iniciado em. Mariana em 2001 teve como resulta- do o recente langamento de nove CDs e nove volumes de partituras. As qua- se 1000 pastas de manuscritos do Museu de Musica de Mariana permi- tiram que se restaurassem 51 com- posigoes, das quais 49 inéditas, que cobrem todo 0 ano liturgico da Igreja Catélica (matinas, respons6rios, ofer- torios, ladainhas, graduais e missas). Essas pecas, disponiveis no sve www.mmmariana.com,br, permitem que se conhega um pouco mais da musica erudita antiga brasileira, uma musica de alta qualidade que explici- ta um dos maiores surtos criativos da humanidade e que teve como ber- Go as Minas Gerais do século XVIII O projeto de Mariana deve ser um modelo para 0s outros gran- des acervos musicais em Minas Ge- rais. Espera-se que nos proximos anos os demais arquivos de Minas sigam os passos de Mariana: a Cole- cao Curt Lange do Museu da Inconfi- déncia de Ouro Preto, 0 Arquivo das Orquestras Lira Sao-Joanense e Ri- beiro Bastos, ambas de Sao Joao Del Rei, o Arquivo da Sociedade Musical Euterpe Itabirana, de Itabira, 0 Ar- quivo da Lira Ceciliana, de Prados, 0 Arquivo da Orquestra Ramalho em Tiradentes, o Arquivo do Asilo Pao de Santo Anténio em Diamantina, o Arquivo Historico Monsenhor Horta TEXTO Belo Horizonte, v.6,n. 1,p-33-44, jul 2005 Breve historia da miisica antiga em Minas Gerais de Mariana, entre outros. Trata-se de um patriménio musical brasileiro subpesquisado, subeditado e subgra- vado Os acervos musicais da Es- trada Real, exemplos do rico reperté- rio musical colonial, poderiam ser um terreno fértil para atrair maestros, pesquisadores e mesmo turistas in- teressados em saber mais das raizes musicais brasileiras. A musica colo- nial brasileira, apesar de chamada de erudita, nao foi feita para uma elite intelectualizada e conhecedora de mtisica. Ao contrério, j4 no periodo colonial suas raizes eram populares e ligadas a liturgia do catolicismo. A musica desses compositores geniais merece ser ouvida por um publico mais amplo Referéncias bibliograficas ALMEIDA, Renato, A misice brasileira do periode

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