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Carlos Kater IV Rupturas & Engajamentos O dodecafonismo surgiu, como normalmente se considera, por volta de 1993 sisternatiizado por Amold Schoenberg, com a finalidade de organi- zar procedimentas da composigao atonal, gerando nova ordem ¢ coeréncia ao discurso musical,!°? Os desenvolvimentos particulares levados a termo por seus alunos — Alban Berg ¢ Anton Weber — possibilitaram durante um periode da histéria o alargamento de horizentes do fato musical. Foram justamente as descobertas técnicas e estéticas desyeladas por esses primei- ros dodecafonistas que serviram come tertitérie para o experimentalismo que, em expansao durante quase cinco décadas, caracterizou a fragao mais representativa da produgéo musical de vanguarda do ocidente. No entan- to, em fins de 1950, 0 dadecafonismo foi escolhido camo alvo central para uma disputa feroz, de raros precedentes histéricos no Brasil. 109, Houve ne passado certa disputa sobre a patemidade da descoberta serial entre Schoenberg ¢ @ tedrico © compositor austriaco Josef Matthias Hauer (1883-1959), ver: WEBERN, A. O-camiahe para a imibice nove, p.137, nota 5. As séries de conferéncias proferidas por Webem em 1932 ¢ 1933, em especial "O caminh para a misica de doze sons”, editadas no liyro mencionada, possuem interesse ricular relativamente ao dodecafonismo, seu surgimento, busca de legitimacéo estética ¢ histérica, bem como suas caracteristicas basicas © 2 visio de Weber sobre ele. 103 Musica Viva e Mondnachi. (fw feohendor£) Leith Sewege stimmnungs val Hews Joachion Hac teecaten Mec! a a 7 Ls || ver, als Adi eter Lull ging church cit war, als bai aee| Mim met ote \Ep. oe Shh ge Lutfi ging church cie| Fel er, lie |@A. rom wg. Fen = == Sas sa, SP cer Lie mel che Excl $18 ge 2D tut ging curchoit fet. ces, te Gren wrogeleo SSS Se ep = fo 78 tre Bhi. em. |retire mer vor) hae pir Paes mary rausoten fois oe |W! stern, $0 | shensler mar one = == ge tie BIS | fen sobimer vars | phar sean Tessar saont, 63 pause Ter fers | ele Mita ba | SPberehiBr ate oe = SS ee Se tip Bildi. Fer. Stim eever: rausca- Fer fers che Weil. chr, 50 STkerabhar meer lie ean Fe werd i ——— f Le spam. Fe wer ne Ee St ak aniasd mesa Frdunien miisst Ditad mein’ See. te seonnfe Abeank wor che Maced Mondnackt (Noite de Luzr}, para cere masculine a capela, de HJ. Koellreutter. Pega de tematica folclérica composta na Alemanha, ¢.1936. Partitura impressa (Karlsruhe: Siiddeutscher Musikverlag F.Miller, s.d.} (2p.) 104 Carlos Kater De forma analoga 4s utilizagdes sistematicas do verso livre, pioneiramen- te postas em obra por Mario de Andrade em 1920 1°, algumas compo- sigSes atonais do grupo Musica Viva — buscando também libertagao dos c&nones estritos impostos pelo espfrito académico —, haviam por sua vez provocado um consideravel mal-estar entre muisicos ¢ criticos, logo nos primérdios de 1940, A introdugdo no Brasil da nova técnica de composigao musical, liberta dos ditames da tonalidade classica, deve-se irrefutavelmente a Koellreutter e ao Musica Viva. Suas circunstancias porém comportam alguma reflexdo. Koellreutter havia ja sido iniciado a linguagem docecaf6nica pelas maos de Hermann Scherchen, seu professor em Genebra e Budapeste. Com ele analisou 0 Pierrot Lunaire, 0 Trio de Cordas (Op.45), as Variagdes para Orquestra (Op.31), de Schoenberg, assistiu-o dirigir, entre outras obras, 2 Concerto para Violino e Orquestra, de A.Berg, podendo assim aprofundar seu conhecimento sobre as particularidades estéticas da Segun- da Escola de Viena, Mesmo familiarizado com a técnica serial e seus diversos estilos desde 1937, ele nada havia composto ainda que se aproximasse dessa tendén- cia.''' © miisico que desembarca no Rio de Janeiro é um jovem compositor, que cria, logo em 1938, Improviso e Estualo, sua primeira pega no Brasil. '"® Ela nao espelha absolutamente nenhuma influéncia da Escola de Viena, de suas experimentagdes gramaticais ou preocupagdes decorrentes do compro- misso histérico em relagdo & evolugao da masica enquante linguagem. sve no gite de combite para 6 mavinenta de 110. Sua Brolcéia Desvainadls, como jf mencionamos, consti renovaggo das artes em nosso pats, inaugurado na "Semana de Arte Modema”™ 111. Ver comentarios em: KATER, C. Catelogo cas Obras de HJ Kaelheuttere Mondnacht, de €.1936. 112. Improviso e Estualo, para flauta solo, primeira pega composta por Kaellreutter no Bresil: Amazonas, 26 27/7/1938, respectivamente, Foi dedicada a Ursula Koellreutter, sus primeira esposa, © aditada ands no Rio da Janeira pels Ed.Arthur Napalago 105 Musica Viva a Leite pelts coh, ai Gorazperinn, OF he Jake tea if 1B Jnproviso, para Hlauta solo, de HJ.Koelkeutter. Manusciito eriginal da pega composta no Amazonas, em 26/7/1938 106 Carlos Keler Sua Sonata 7939, para flauta € piano, composta no Rio de Janeiro, esté na tonalidade de Lé menor, Em graus diferentes, esta e outras pecas remetem-se de maneira muito mais direta a via estética adotada por um Hindemith do que aquela principiada por um Schoenberg, com quem de fato nao possui nenhuma afinidade. Segundo alirmagao de Koellreutter, ele foi inicialmente levado a traba- |har esse tema devido ao fato de um de seus primeiros alunos de compo- sigdo, Claudio Santoro, ter elaborado em sua Sinfonia para duas orques- tras de cordas, de 1940, algumas passagens organizadas de forma serial. Come Santoro ignorasse até aquela data tudo o que se referisse a técnica dedecafénica, Koellreutter inseriu em suas aulas o estudo do assunto, encontrando ai estimulo para eserever sua primeira peca baseada no mé- todo de composigao com daze notas: /nvengao (para obod, clarineta ¢ fagote), que pode ser tida como a dinica de suas misicas assim rigo- rosamente estruturada (como pademos observar a seguir).'!? A Miésica 1947 — que figura entre suas pecas de maior divulgagao e foi considerada pelo famoso compositor argentino Juan Carlos Paz como uma das mais notaveis composicdes para piano publicadas na América ''* é obra nitidamente atonal. Embora faca recurso 4 uma série, que se mostra mais evidenciada no terceiro movimento, nao possui tratamento sistematico do ponte de vista da técnica dos doze sons. 113. davengio (4 paginas) foi editads como Suplemento do boletim Miisicw Viva n®6 (Nov./1940) (no pee ilafrertinear ately park tinaparecetmelicn’ oie ne) he intereestrrolcsclajecenetecmes tena expressio “rigorosamente estrutureda” deve ser relativizade, visto que par vezes € possivel yerificar liberdade na repetigio de notes no desentoler ds série. Por exemplo: @ FéM, na parte do fagate, compesso 5, entre 8 20 9° enunciacéo ds série (O e 103, respectivamente)) 0 Soll, na parte da clatineta, compasso 8, entre a seeta ea sétima notas (RI3), etc. 4, Cf. Dinetrizes, 1944, p.5. 107 Musica Viva 2 INVENGAO PARA OBOE, CLARINETO KM SI BEMOL E FAGOTE WANS-JOACHIM KOELLREUTTER (1940) Tranquilo,sem expresso (Dea 72) N.B, Os -accidentes sé tm valor para a nota que esta sendo altcrada, nao exereendo agie alguma sobre as demais de meamo name. dnvengao, para oboé, clarineta (si) ¢ fagote, de H.J.Koellreutter, Publicada como Suplemento do boletim Musica Viva, n°6, 1940 (4p.) Carlos Kater pies MUSICA 1044 Hi. J. Roellreutter Tranquile 2\=73 os atsidentes fyb afectan dricamonte aquellas mates antes las cunics be edo elpeauoe Gooperativa Interamericana de Compositores, Publicacién NP a Copyright Instituto Interamericano de Musicologiz, Montevideo, 194% Misica 1941, para piano sole, de H.J.Koellreutter, Pega composta em Itatiaia/SP, 1941. (Montevideo/Uruguai: E.C.1.C/Instituto Interamericano de Musicologia, 1949, Aublicacidn n°14) (11p.) 109 Mosica Viva Varias outras obras assim concebidas — e¢ de habito consideradas taxativamente "dodecafénicas” — refletem essa postura mais livre e liidica do ponto de vista técnica, como Hai-Kai, para soprano e instrumentos solistas (1941-45), por exemplo. A fase caracterizada pela utilizagdo de recursos atonais-dodecafnicos — embora nao tigorosa ¢ sistematica — pode ser estimada entre 1940 e 1953, aproximadamente.''! Vale observar que entre 0 Improvise ¢ Estualo (1938) e a Invencio (1940), Koellreutter comps duas Sonata 1939 ''®— por ele considera- das miisicas distintas —, uma Sonate ''', Trés Bagatels ""* e um Prelielio, Coral e Fuga,""* Até onde se pode verificar, nao ha propriamente um ¢aminho ou pro- gressdo transitando de um a outro mode compositive, capaz assim de refletir uma inquietagao interna deliberada, uma voluntatia busca de novo estilo criativo. Nesse sentido entio a afirmagao de Koellreutter parece legitima, tornando-se versio oficial e divulgada publicamente no programa Misica Viva da radio PRA-2: 115. Pars mais informacées, ver comentérias em: KATER, C, Catdlago de Obras de HS Koelheutter. 116, Uma delas ov, simplesmente: Sonate — pecs n°6 do Catélogo de Obras, para flauta ¢ piano (26 péginas), dedicada 2 Erico e Margarida Simon, teve sua estiéia como compositor (lauta) ¢ Geni Marcondes (piano), ne programa radiofénica Addsica Vira, Rio de Janeiro, PRA-2, em 29/6/1946 (cl, toteira do programa, p.3). A outra, ou Missa pera Violino e Pian também de 1939, teve estigia ho "Forum de Compositores", FUA, + 20/1/1968, com A.Ajemian Cviolina) e Lily Miki (piano); parliturs extraviada, ela & mencioneds em ECIC— Ealtorial Cooperative Intesemericana che Compositores (do Instituto Interemericano de Musicologia), ns 14.659, p.1. =i Sonata (1939), pare piano solo, extraviada, mencionada em: ECIC, n°s 14 € 59, p.1 118. Trés bagatelas (1939), para piano solo, editada pele Ed. Mdsiae Vivan°7/8, em 1941. Dedicada a Egydio de Castro ¢ Silva, foi por ele estreads no Phineizo Concerto da Misica Viva, Salio da Associacio das Anistas Brasileires (Palace Hotel), Rio de Janeiro, em 17/9/1939 119. Pretiao, Coral e Fuga (1940), pata piano solo, obra extraviada, com informacaa proveniente também de ECIG, n°14 2 n°59, p.1 Carlos Kater Claudio Santoro, compesitor brasileiro, tomou-se por temperamento e conviegées estéticas um enérgico defensor das orientagoes universalistas da escola contemporanea mais avangaca. Em yirtude da orientagao marcadamente nacionalista dos principais compositores brasileiros, Cléu- dio Santoro é um solitario cuja musica € pouco conhecida no Brasil /.../ Orientado na técnica dos 12 sons, desenvolveu por si mesmo essa tendéncia adaptando-a aos seus sentimentos estéticos. Evita todas as influéncias do folclore ¢ qualquer exterioridade aderindo ao atonalismo evisando unicamente a sua prépria expressao /.../.12° No entanto, no boletim ndmera 4, de setembro de1 940, aparece jéo artigo “A dodecafonia. Horizontes novos!”, de Lopes Gongalves, no qual, além de discorrer sobre a técnica de Schoenberg, efetua-criticas de algum parte relativamente a situagdo de impermeabilidade cultural do ambiente musical da épaca.'*' Partindo da associagio da idéia de “progresso” ¢ “esforgo de inteligéncias’, salienta a “resisténcia aos espiritos progressistas” (aqui em sentido mais largo), & vanguarda estética e intelectual. Duas linhas de forga sobressaem af. Lopes Gongalves, tal coma Weber em suas famosas conferéncias sobre a musica nova, procura legitimar o novo sistema, pincando na histéria alguns elementos capazes de estabelecé-lo como de- corréncia légica da evolugao da linguagem musical. Por outro lado, recorre a nogao de universalidade da mUsica, fazendo frente assim & corrente naci- onalista preponderante no ambiente da época, 1.20. Cf, rateire do programa de Matsce Vics, 26 deJanciro de 1946, publicado integralmente-em anexo 121. Lopes Goncalves — professor da Escola Nacional de Masica — relarga nesse senticlo um sentimento mais amplo, © compositor austriaca Max Brand — cuja orientagge composicional aproxima-se mais de vertente nacionalista —h ia atestade a mesma situacao diferentemente. No artigo "A misica e nossa época’, publicaclo ne nimero anterior (boletim n°3, Jul./1940), Brand referia-se ao alheamento do pitblico em relagéo 3 misica modema, ao pouco- eslorgo de compreensio a ela dedicado, tecendo ainda consideragées sobre o “progresso” e a "nova", 1 Mosica Viva Embora os integrantes do Musica Viva nao tivessem, como se con- sidera, efetivo conhecimento das experiéncias da escola de Viena e apenas Koellreutter possuisse tais informagées, constatamos pela data de sua veiculacio '?? — ¢ pelo ardor com que Lopes Goncalves defen- de tais idéias — que este texto em particular pode ser visto como indice de uma tendéncia de acolhimento da estética schoenberguiana no seio do grupo. Tal hipétese pode ser aincla reforgada pela publicagdo de “Problemas da Musica Moderna”, de N.Slonimsky, que possui como introdugio o seguinte comentario dos editores: Atendendo a pedidos para que se continue a dissertar sobre os proble- mas da ‘TECNICA DOS DOZE SONS’, resolvemos publicar mais um arligo interessante sabre esse assunto.'*? Diante disso é de se questionar se a pratica do codecafonismo inaugu- rada pelo Mhisica Viva obedeceu apenas e simplesmente a uma circunst@ncia casual, “posta sobre a mesa” no percurso composicional de Claudio Santoro, Parece-me mais justo considerar que ele tenha sido encarado desde 0 inic como uma técnica de vanguarda e que as incursdes em seus dominios — tanto nas obras de Koellreutter quanto nas de Santoro ¢ posteriormente do resto do grupo — resultaram de experiéncias desenvolvidas, impulsionadas por um desgjo renovador de pesquisa, diferenciagéo ¢ atualizagéo no cam- po da invenc3o musical. Ao invés portanto de mera “florescéncia espontdnea’, sua pratica muito provavelmente teria se instaurado enquanto proposta deliberada e objetiva; fundamento de um projeto maior de formagao musical de orientagao universa- 129. Setembro de 1940, consideranco-se sinds que sua escrita deve ser antecipacla de alguns meses. 123. Cf. boletim Miisiar Vina n°5, Out,/1940, p.9-10, 112 Carlos Kater lista, compativel com a franca tendéncia de modemizagio ¢ cosmovisdo das metrépoles brasileiras (em particular Rio de Janeiro e Sao Paulo). Os trabalhos de concepgao atonal elaborados de maneira livre e original em relagao 4 técnica dodecafénica — raramente adotando de forma ortodo- xa seus postulaclos — impuseram-se por conseqliéncia como resultantes de engajamentos nessa orientagio. do Musica Viva — enquanto movimento formador e de divulgagio, bem como escola de composicao — 0 empenho Ressalta assim na trajetéria de ampliar e atualizar os instrumentos de criagdo, abrindo noves horizontes técnicos ¢ estéticos de experimentagao musical, em contraposigao aos mei- os empregados pela vertente romantice-nacionalista predominante, como aliés Koellreutter declara, em relago ao trabalho de Santoro, na emisso radiofénica de 26/1/46 (em citagio anterior). Um ano apés, no programa radiofénico de 11/1/1947, Koellreutter, buscando consolidar as realizacées da j jovem escola de compo: ra, observa que Guerra Peixe, mesmo gendo um criador paterricn e de estilo diferente de Santoro, esta também engajado na nova estética. (Guerra Peixe) Eum compositor de um humor muitas vezes satiico e de um realismo quasi dramético. Lm real talento. GUERRA PEIXE possue um grande e segura dominio da matéria sonora e um autentico conheci- mento dos recursos mais subtis e brilhantes da palheta orquestral. Sua linguagem musical baseada num cromatismo diat6nico, atonal elivre de preconceites, é de uma brevidade de proporgées e de uma economia de meios que — caracteristico de uma das tendéncias estéticas de nosso tempo — parece determinada por uma certa pressa, um certo desejo de @igena © que ecalla nae DEE E AG TELS oslo nore cal mente novo, realizado pela primeira vez na SINFONIA pata pequena orquestra sinfénica. Estilo fortemente pessoal apesar da contribuicéo que a misica popular. deu a sua fermagao. Moésica Viva As DEZ BAGATELAS sao um exemplo de que o atonalismo nado é incompativel com a expressiio de sentimentos, com a paixlo, com a graga, com 0 lirismo, e que o aspecte por assim dizer esotérico ¢ “cere- bral” que essa linguagem musical frequentemente apresenta em SCHOEN EEPGuemeemimetcreermey lnummanizecaor nelaloperacal pes los jovens atonalistas brasileiros, CLAUDIO SANTORO « GUERRA PEI- XE, esté estribada no funda, apenas na diferenca das suas respectivas nalurezas psicolagicas ¢ artisticas, 1°" cionalisinos estético € palitico Uma questio freqiientemente se coloca quando observamos as propor- gdes da reacio, anacrénica ¢ mascarante, ao dodecafonismo no Brasil. Webern, que havia comentado sobre as perseguigées artisticas impostas aos dodecafonistas em seu pais, atribuiu-as ao contexto politico, 4 nova ordem social recém-instalada pelo nazismo. Entre alguns dos artistas ¢ intelectuais brasileiros no entanto se manifestou uma tendéncia aparentemente oposta, cabendo em dltima instancia aos nticleos de orientagéo comunista — um dos alvos originais do nazismo — 0 papel de opositores da nova estética. Cumpre entao distinguir nacionalismo estético de nacionalismo politico, © primeiro tendo em vista a representag3o, reconstrugiio ou criagdo legiti- ma de particularidades caracteristicas de diversas ordens reconhecidas pela cultura (material, gramatical, sensivel, expressiva), comporta em principio flexibi- lidade de acolhimento e desenvolvimento de experimentagées técnicas. Possui intrinsecamente tais condigées enquanto movimento pretendido no sentido de implantar uma nova situagéio — tema nacional —, por sua prdpria modernidade contempordnea ¢ pelo impulso reorientador, madificadar da estética vigente. E 0 nacionalismo, como sabemos, surge nos diferentes cen- 124, Cf. roteire do programa Musica Vive de 11/1/1947, editado na integra em anexo 114 Carlos Kater tros impregnado do desejo reformulador — na conquista do nove — implicito ao desenvolvimento das artes no proceso de mademizagdo da sociedade. O nacionalismo politico, por sua vez, associou-se, com freqiiéncia, diretamente ao estabelecimento de um regime forte ¢ rigido, de cunho ditatorial, que para se justificar no poder teve, entre causas ¢ efeitos bastan- te complexos, de buscar legitimidade. Nagéo, povo, raga, supremacia, soberania serviram entao como conceitos-suporte de grande funcionalidade para a consecucao de abjetivos politicos e econdmicos. Se, conforme a perspicaz interpretagao “...0 ciclo modernista do nacio- nalismo musical compreende assim uma pedida estético-social: sintetizar ¢ estabilizar uma expresso musical de base popular, como forma de conquis- tar uma linguagem que concilie o pafs na horizontalidade do tertitério ¢ na verticalidace das classes...” 1°, a implantacio de dadecafonismo pelo Miisica Viva n3o 56 coloca duplamente em xeque o idedrio nacionalista comme acentua as contradicdes fundamentais j4 tao visiveis no interior da sociedade brasileira do pds-guerra. A desativagio do movimento Musica Vive se deu numa primeira fase internamente ao grupo — em razao do engajamento politico da maioria de seus membros, como vimos — e apés, do ponto de vista externo, quando coroboraram dois fatores fundamentais Qs impactos progressivas desferides publicamente nos flances nacionalistas —0 “pér em questo” subjacente aos manifestos, 0 “pdr contra a parecle” mais coesamente formulado no de 1946 ¢ na Resalugao, e assim também todas as definigées pilblicas dos princfpios da Miisica Vive (vinhetas dos programas tadiofSnicos e, em especial, as declaracées polémicas ¢ bombésticas ce Koellreutter para a imprensa) — geraram um actimulo de criticos diretos e indiretos. 125. Ch WISNIK, J.M, Getto da Psixéo Cearense. O Nacional ¢ 0 Popular na Cultora Brasileita (Muisica} 148. 115 Musica Viva Por outro lado, as realizagdes do movimento e seu potencial de pene- tracao nas varias camadas do estrato social chegaram a gerar um vulto pro- gressivamente ameacador, nao especificamente para as correntes estéticas diversas mas em especial para alguns “‘latifiindios musicais”. E é justamente este ultimo fator que pode estar em medida de explicar melhor o fendmeno ocorticlo em Sao Paulo, que historicamente serve cle marco para a fase final da existéncia do movimento. No dia 7 de novembro de 1950 Camargo Guarnieri assina sua Carts aberta aos mifsicos e criticos doe Brasil (amplamente divulgada pelos no- ticiérios), cuja originalidade de fato justifica-se apenas pelo efeito causado Cartas Abertas, referentes & produgao artistica contemporanea, foram vari- as em nossa histéria.'®° Aquelas enfocando problematicas da misica atonal- dodecafénica vinham ja constituinde também a sua tradicdo. O préprio Guamieti havia, quase dez anos antes, recorrido a essa forma, escrevendo uma para Koellreutter, na qual inclusive o valorizava enquanto talentoso compositor atonal; este, por sua vez, enderegara uma ao artista plastica G.Kosice, discutinde justamente o atonalismo enquanto técnica ¢ estética; houveram as cartas-abertas tracadas entre os lideres do nacionalisma ¢ do modemismo em fins cle 50 ¢ posteriormente diversas outras que decorreram da celeuma.'27 No entanto, a integra desse documento instigador é bastante reveladora da posigio peculiar de seu autor e seu impacto condizente com a situagao dividida em que se encontrava o ambiente musical da épaca, dada a ampli- tude das reagGes controversas que despertou. 126, Ver, por exemplo, of trocadas em 1929 entre Menotti dl Piechia ¢ Oscar Guanebarine, em: WISNIK, Juv, O Cora alas contrias, 127. Ver especialmente: GUARNIERI, M,C, Carta Aberta a Koellreutter. Resenha Musical, W/37, Sao Paulo, Set.1941 (documento em anexo). KOELLREUTTER, H.J. “Carta Aberta”, para a atitica Fageieal Malem DSO p (lecer bre cle: Loa) a rrencann ce mte octal ( Carm/deertsao Peck rene Dermangeat; cateckstico do-Licent Plena IW, de Pais): Pavalatas, n°6, Sao Paulo: Set /1947) page 40; Carta Aberta a Octévio Bevilacqua. Tnbuna ala Imprense (Rio de Janeiro, 27/Set/1950); e, Carta Abierta. Aete Madi Universal, n°4, Argentina, Qut./1950. 116 Carlos Kater CARTA ABIERTA demeiie evs Kea Porssie mucho tempo sinsiecn recanands en al Jos dice ret qa twemes ca Buenos ives, pmiacipsimente, aw crlsca even w inpiacable a wtalcl wins bw secession, Inco thomcrialiberrdz de cuaiquat lana de eenenpein y compos: dn andy einteororda er. a hated de arte Gainey hue esiaoder, ye cue Ia anrenciia ma la ued ‘aperlenie. cola Jahoenle al Memes, Le que ex cudar y hecolce grupa idadiaa 4 procuse taalass un is Ibn, In IKVENCION INTEGRAL de la obra aisticn, fe Teo sess hoa Hrmuias ¥ narmae qa cacosiaiesbeen erie ‘tin, cmumendio oa una sctlled de reascsn negra Se tevctucién stheenberguians, me pasocups satiate can e38 Problema. ty que gas composters elvideus que “sustwliie’ ¥ todieice” inptiew am precmen de craocitn, el cual, por 2 fits, okedece a Uta cwoeideel fms 7 no recite do una oF a aga! 4 saute de osimllaciea cfetiin y oe Confined inrentiw= Y srene ne oa che we ‘Tucsun Sehomberg y. poncipstarta, au wiet ‘Weber. quisqes Sbeieron los ccsokins, cavTbowees peajaiien fermirioa. Sor candiciosss qua pannitan la reuiaamém » mus Ud extimade Koitea, reacowza y yo tans os {rove al orte: TAVESTADO PRIMARIC DE ESENGLA, cue pos ‘eis eweorién de un arte nuevo, prokindamene eaaizedo wn ol iaraut 7 aurlie da nemeee ezempestnse, My voudodins says ibe de mostra dpe ‘Con gion inlets be of Rablor de lon crincinles ue’ robo; des quips color hidimensionsliied, "nase! todo e trequlny, plane saviewingor etn moriments I Heo y de todacén, an la piace inlimeniceainied son me ‘Yatiwiteg eoovoribles de areulaciba rolaciSe. wo lz eclara iubisole y lemon mowbles, dovslasabisa, win la araulecturs ‘Proponicioa invented, conrepiee @ andyande 20 Ladue Die, didlogo wirauiads, an al taco, ewig aun palReeae rae pecte a tn aris cede. mévil y dinémica, reaihado de un peo free imaginative, cerebral una ngesaacién cision, ecln, ¥ ina presen erlton ain domains lade ean an amon fa sh palabras ton ingens y ton grees al “We bascemes ot yewesila cn me KOELLREUTTER 1Qud mundo alle, rsa de: porbiliedest Eisrm, aux pciobras tnjido' den monifiece war es faba ttn ees bre ve porting en ar senatrocciéa de tm mundo eaitya GUC Maes ks vide cont los que plesesn ls emurle ie duslo de que ringtn orte earia ton copas de realizar lar ‘docs sxpuesion por Ud, como D5 mini, one canto, ccstics alain por wamneks. Mision ai canbopanio, x =mceda, tame © insect, ain lenctdad 7 cadence, Males viva, i= ‘aa cules, misiea Mad Ee vardas Con al adveuinionts dot cxonaiiens ¥ dol dedecs Yorlirs, eae opeax'momor muds 6 Je redaosn 4s ates Er tiles, le lecracalan sin arbors, Le azaocca de-un alemeale fue, por un lade, restate, EN SU TOTALIDAD, to steal: 1VIE VIG — Kenia deta que coneinire fa ze de la wecala rection 1 tor ome nakascines uecinarne— 7) pee sv, pecs gun |e unides lemea! ae Jo ebra ain velver a lee aptigues peiompie: leemates, impici6 que 3a =wiies dodecolénic om deeenralvieen conwaroeciemenie en eae oentié> Baio x2 pune de vista, lems mi intereaS ocralla mie cil fii ee VE wonton, bo con jeommie thy TE teh, yee omtitn 11 iatervaies dterenons Soresiome légice 7 hesta neon arin, pars Ie resins toi ae Isr Lviv cave ne emploonr, de tin mcs FSTRGTAMENTE ATCNAl, ne paler ues pale del maiedel erasistiva de Ia mabey fee ln noniton propisimenta dichne, més tamiée tom inersaiog, fie as, Io combinsnén ce ocr eonklor ex un seeido artist stun ow sie an pee be Jocallod de poder plendar a2 sorapectes cuslauler aera por Je eaonurs amdesss, qeorieards sel un més ds meine ‘exrereives, ol Jado deez Hguroea acparicactén lormal. Fe elo gue en sila misiea idealizada por mi, ta teres erase se deniro 9 ¥ na oo ofvena bei ane lun miners de S80 aproximadamani, aegin Ise sileucr dal “Carta Abierta’, de HJ Koellreutter 8 G Kosice. Arfe Maok Universaln®4, Argentina Out 1950, sin? W7 de pagina Musica Viva Solamenie of amplor de extas saries,cltamanle cuslliniot Bar lie 2 eoaliaacin total de la Harm vary # 0 ean al crincisio comttice-atenal, abriendo ax! ol Ja creacidn de un etic que consspende en mGsica a lea erin vias celtics preconiemlos ge usted ew ulna. Stomgee somprenal parlectomania al ale valor do name muriea Na recurs tin embargo, en mic irabaiog. a ou empleo sleventtico, ppomus, 4 pascr de loa pesquisa dé varies mstemdices, ze des Goad of win niecedinienio para caleulorlas ithe er fo Schwabe. Kestake Kleies 1 yor aly Sue Preacapale per ase prsblama, hablé al caspase Goa el male ridtice Omar Galwada, cooleune ccteanaticn anlar Farulhad Gicnal de Flsaolia an Sor Gauls, s. cual Finoimerie, anygiae Se iwsumatables cctudise, crasiquis ansenvear 6] prosedimt Dbuvecda gor ua i probioma fué plantesca de la siguiente manera: loz M pati las inierrclos dabecian sar eclosssica en lines de meso @ obs tener unc escic cia nome repesidas. snto os, swe diletan. de mae mi cciovas Tomcade al media ono come upidad, de bert ballon wos parla @ dlapsaieién en Enea de“iee nime- Tal Hee fl yet auras da eémaree oslo pelos convents one 19 au, malisto ee 12 1 proaetinienio mae [as de scieulor tal aces de Interretas es fol de sumar ioe wimeros desce el se hace en Jc opeacén elemantol de “lier fmpler on fa prosba de lee aueva. Los zuma. com fe pone debe cin cada niencin La pareaule: ¢z oetmisible, = todos exe nimorae hiemon demvn lm jan satvoaponcien ey it 12 ane de moi Lmpottanta vig paceze al hecho de que el flame (nierics de is semitone) ups un Lugar especallgins an tb serie: je fee inervale —wewnctolsven'e aiacelo 7 m6, por le demi no cpocemr cance come une de Lon Il consecutires, sino que tembnin caso waa of 38 y of 12% monde de cualaaters: de Io Ta fd stort Ife coe atreve todavia: @ sues xno hey dada da qua =) predomitia dal ton. cuit, en tod lar escalan suayoraa y mencves,juninmnn ante senclisionas de ete bedo, pate al cual 22 Ja Eabdam.nca y ka Downcnia y divide i octcea en doe par fox iguales lequel “eiekulie in musion” de lz Edad Modi — 4 de gman importoncis nara la cotasliac is eabitica de la aie at al y ucovatnioa ex pe fetzons ssvarureapana, Y chore soumode Kesiee, et) hose at gone musvar pe-mscane entra tox comuice, orcea garentiedo por In serie paranterealar, ree person posible la creacéa de un ESTILO MADE ex bldsica ‘Le monies rempuceis eon une acer. pasce ‘do toa o_porleceifn catracrurel, cig> de iastable y imgmen. tana Adams, lee principioe de inversion “p de racurmensia de lo satio parocan cnular al temps. aMo zaccerda eco lo Teoria Sccarinie un de lng coracteinions mas importante de ean ei ‘que e2 exenciaiments dialdctice y cmarece como. el resaliags de Je Ince aldara del individus sentra ol ieplacable dessearecer fan be risks de bs i Hl Ey io, asd coms en ol cnrdster rogunamtatio —que me premwats an el habit de tedes fconsiuancia earatractiea — on. lx pant fdad yen el canister indica de la obra consieto la propia experaite 7 el cite grado ee Yesacicad de exe abla, | COMO ESTILO ESENCIAL DE LA NUEVA ‘A. PENUMCIA Al, CONTRAPUNTO ABMO300 ei opeud nie Hid, al-obancions de lo parepuesna y ol movimiento Niseal ORGARIZACION CIENTINICA REPRESENTADA FOR LA FORMULA Loar ye PRINGIMIO DE YARIACION HERRRATERLE comma tom @e Ia were lorme, subetitivendo Ja arin pens blecida y sus elemeriee intrinsecos, Toque equtvala, en puriura, cles conceptee de “marec racerlade 6 wiegulss, de lou planes migles de avice ki ESTILO DE REGOWIENZO, CONGHITO DE INVENCION ¥ CREACON DE Y HLEMIATOS ESENCIALES. Estmatie Keniot: Be atl lo 9. vhocis exetibisle. Ma daiange Seis eelsy Jineas of camicnen sia unc colaboraiste vetreche y flicienta ene] zantide de ceeor on arte Lee @ ind came expresiin del aedon y ae Io ley. secon Tesestraiis, egeato 1859 Bical . H. J, Koel]reutter Thauein de AMA RAPA "Carta Abierta’, de H.J.Koellreutter 4 G Kosice. Ate Maoh Universaln® 4, Argentina Cut/1950, yn? de pagina 118 Carlos Kater Carta Aberta aos Mifsicos e Crtticos alo Brasil '%8 Considerande as minhas grandes responsabilidades, como compositor brasileiro, diante de meu povo e das novas geragées de criadores na arte musical, ¢ profundamente preocupado com a orientacdo atual da musica dos jovens compositores que, influenciados por idéias errdneas, se filiam ao Dodecafonismo — corente formalista que leva a degenerescéncia do carater nacional de nossa misica — tomei a resolugéo de escrever esta carta-aberta aos miisicos e critics do Brasil. Atravez déste documento, quero alerta-los sdbre os enor- mes petigos que, neste momento, ameagam profundamen- te téda a cultura musical brasileira, a que estamos estreita- mente vinculados. Esses perigos provém do [ato de muitos dos nossos jovens compositores, por inadverténcia ou ignorancia, estarem se deixando seduzir por falsas teorias progres- sistas da miisica, orientando a sua obra nascente num sentide contrario ao dos verdadeiros interésses da miisi- ca brasileira. Introduzide no Brasil ha poucos anos, por elementos oriundos cle paizes onde se empobrece o folclore musical, 0 Dodeeafonismo encontrou aqui ardorosa acolhida por parte de alguns espiritos desprevini 128. Cf. folheto impresso, datilograle, em formate oficio dabrade, 4p., sendo a primeira capa, A ortegrafia est de acardo com 0 original, Mosica Viva A sombra de seu maléfico prestigio se abrigaram alguns compositores mogos de valor ¢ grande talento, como Clau- dio Santoro e Guerra Peixe, que felizmente, apds sequi- rem esta orientagao errada, puderam se libertar dela e retornar o caminho da musica baseada no estudo e no aproveita- mento art(stico-cientifico do nosso folclére, Outros jovens compositores, entretanto, ainda dominados pela corrente dodecafonista (que desgracadamente recebe o apoio ¢ a simpatia de muitas pessoas desorientadas), estao sufocan- do o seu talento, perdendo contato com a realidade e a cultura brasileira, e criando uma musica cerebrina e falaciosa, inteiramente divorciada de nossas caracteristicas nacionais. Diante dessa situagao que tende a se agravar dia a dia, comprometendo basilarmente o destino de nossa misica, é tempo de erguer um grito para deter a nefasta infiltragao formalista e anti-brasileira que, recebida com tolerancia ¢ complacéncia hoje, vird trazer, no futuro, graves ¢ insandveis prejuizos ao desenvolvimento da misica nacional do Brasil. E preciso que se diga a ésses jovens compositores que o Dodecafonismo, em Musica, corresponde ao Abstracionismo, em Pintura; ao Hermetismo, em Literatura; ao Existencialismo, em Filosofia; ao Charlatanismo, em Ciéncia. Assim, pois, 0 dodecafonismo (como aqueles e outros contrabandos que estamos impertando ¢ assimilando servil- mente) é uma expressdo caracteristica de uma politica de degenerescéncia cultural, um ramo adventicio da figueira- brava do Cosmopolitismo que nos ameaga com suas som- bras deformantes ¢ tem por objetivo oculto um lento ¢ pernicioso trabalho de destruigéo do nosso carater nacional. © dodecafonismo, é assim de um ponto de vista mais geral, produto de cultura superadas, que se decompdem 120 Carlos Kater de maneira inevitavel; é um artificio cerebralista, anti-nacio- nal, anti-popular, levado ao extremo; é quimica, é arquitetura, € matematica da misica — é tudo o que quizerem — mas nao é masical E um requinte de inteligéncias saturadas, de almas s@cas, descrentes da vida, ¢ um vicio de semi-mor- tos, um refugio de compositores mediocres, de séres sem patria, incapazes de compreender, de sentir, de amar e revelar tudo que ha de novo, dinamico e sauddvel no espirito de nosso povo, Que essa pretensa misica encontre adeptos no seio de civilizagdes ¢ culturas decadentes, onde se exhaurem as fontes originais do folclére (como é 0 caso de alguns pafzes da Europa); que essa tendéncia deformadora deite as suas raizes envenenadas no solo cansado de sociedades em de- composigio, va lé! Mas que nao encontre acolhida aqui na América nativa e especialmente em nosso Brasil, onde um pove novo ¢ rico de poder criador tem todo um grandioso porvir nacional a construir com suas préprias maos! Importar e tentar adaptar no Brasil essa caricatura de musica, ésse método de contorcionismo cerebral anti-artistico, que nada tem de comum com as caracteristicas especificas de nosso temperamento nacional ¢ que se destina apenas a nutrir o gosto pervertido de pequenas elites de requintados e para- néicos, reputo um crime de lesa-Patrial Isso constitue além do mais, uma afronta 4 capacicade criadora, ao patriotismo é Ainteligéncia dos misicos brasileiros. O nosso pais possue um folelére musical dos mais ricos do mundo, quasi que totalmente ignorado por muitos compositores brasileiros que, inexplicavelmente, preferem carbonizar o cérebro para produzir miisica segundo os principios aparentemente inovadores de uma estética esdrixula e falsa 121 Masica Viva Como macacos, como imitacores vulgares, como criaturas sem principios, preferem importar e copiar nocivas novidades estrangeiras, simulando, assim, que séo ‘originais’, ‘moder- nos’ ¢ ‘avangados’ e esquecem, deliberada ¢ criminosamente que temos todo um amazonas de misica folclérica — expres- s80 viva do nosso carater nacional — espera de que venham também estuda-lo e divulgd-lo para engrancecimento da cul- tura brasileira. Eles no sabem ou fingem nao saber que somente representaremos um auténtico valor, no conjunto dos valores internacionais na medida em que soubermos pre- servar ¢ aperfeigoar os tragos fundamentais de nossa fisionomia nacional em todos os sentidos, Os nossos compositores dodecafonistas adotam ¢ de- fendem essa tendéncia formalista e degenerada da misica porque nao se deram ao cuidado elementar de estudar os tesouros da heranga classica, o desenvolvimentro autonomo da misica brasileira ¢ suas raizes populares ¢ folcléricas. Eles, certamente, nao leram estas sébias palavras de Glinka: —'.,, a masica, cria-a o povo, ends, as artistas, somente a arranjamos...’ (que vale para nés também) — ¢ muito me- nos meditaram nesta opiniao do grande mestre Honegger sdbre o dodecafonismo: '...as suas regras séo por demais ingenuamente escolésticas. Permitem ao NAO MUSICO escrever a mesma musica que escreveria um individuo alta- mente dotado...’ Mas © que pretende, afinal essa corrente anti-artistica que procura conquistar principalmente OS Nossos jovens miisicos, deformando a sua obra nascente? Pretende, aqui no Brasil, o mesmo que tem pretendido em quasi todos os paizes do mundo: atribuir valor prepon- derante & Forma; despojar a miisica de seus elementos 122 Carlos Kater essenciais de comunicabilidade; arrancar-lhe o conteudo emocional; desfigurar-lhe o carater nacional; isolar 0 misico (transformando-o num monstro cle individualismo) e atingir 9 seu objetivo principal que é justificar uma musica sem Patria e inteiramente incompreensivel para o povo. Como tédas as tendencias de arte degenerada e deca- dente, o dodecafonismo, com suas facilidades, truques ¢ receitas de fabricar misica atemética, procura menospresar 0 trabalho criador do artista, instituindo a improvisagéo, 0 chatlatanismo, a meia-ciéncia como substitutes da pesquiza, do talento, da cultura, do aproveitamento racional das ex- periéncias do passado, que so as bases para a realizagao da obra de arte verdadeira. Desejando, absurdamente, pairar acima e além da influ- éncia de fatores de ordem social e histérica, tais como o meio, a tradigéo, os costumes e a heranga classica; preten- dendo ignorar ou desprézar a indole clo povo brasileiro e as condigées particulares do seu desenvolvimento, o dodecafonismo procura, sorrateiramente realizar a destrui- 80 das caracteristicas especificamente nacionais da nossa musica, disseminando entre os jovens a ‘teoria’ da musica de laboratério criada apenas com © concurso de algumas regras especiosas, sem ligacio com as fontes populares. O nosso povo, entretanto, com aguda intuigéo € sabedo- ria, tem sabido desprezar essa falsificagdo ¢ 0 amemedo de misica que conseguem produzir. Para tentar explicar a sua nenhuma aceitag3o por parte do pilblico, alegam alguns das seus mais fervorosos adeptos que ‘o nosso pais ¢ muito atrazado’; que estdo “escrevendo musica para © futuro’ ou que ‘o dodecalonismo nao é ainale compreendido pelo povo porque a sua obra nao é suficientemente divulgada...’ 123 Masica Viva E necessério que se diga, de uma vez por todas, que tudo isso nao passa de desculpa dos que pretendem ocultar aos nosses olhos os motives mais profundos daquele divércio. Afirmo, sem medo de errar, que o dodecafonismo ja- mais sera compreendido pelo grande publico porque ele é essencialmente cerebral, anti-popular, anti-nacional ¢ néo tem nenhuma afinidade com a alma do povo. Muita coisa ainda precisaria ser dita a respeito do Dadecafonismo e do pemicioso trabalho que seus adeptos vem desenvolvendo no Brasil, mas urge terminar esta carta que jé se torna longa demais, E ela no estaria concluida, se eu nado me penitenciasse publicamente perante o povo brasileira por ter demorado tanto em publicd-la. Esperei que se criassem condigées mais favoraveis para um pronunciamneto coletive dos responsdveis pela nossa misica a respeito désse importante problema que envolve intengdes bem mais graves clo que, superficialmente se imagina. Essas condigdes néo se criaram e 0 que se nota é um siléncio constrangido ¢ comprometedor. Pessoalmente, acho que o nosso siléncio, neste momento, é conivéncia com a contrafagéo dodecafonista. E ésse 0 motive porque €ste documento tem um carater t8o pessoal. Espero, entretanto, que os meus colegas compositores, intérpretes, regentes ¢ criticos manifestem, agora, sincera- mente, a sua autorizada opiniso a proposite do assunto. Aqui fica, pois, meu apélo patriético. S50 Paulo, 7 de Novembro de 1950.1?” 129. Seque-se 0 nome de Camsigo Guarnied ea inscrigso “(Qualquer pronundamento au noticia sabre esta carta, é favor dirigir-se a: Camargo Guarnieri — Rua Melo Alves, 446 — Sao Paulo — Brasil)". 124 Carlos Kater Essa carta aberta — através da qual Guamieri incorpora a missio de alertar tada a classe musical do pais “sobre os enormes perigos que /.../ ameacam profundamente toda 4 cultura brasileira” — néo deve ser encarada apenas como um documento resposta as proposigées estéticas do Miisica Viva, como dé a entender e como aliés © proprio autor havia j4 expressado- anteriormente em sua Carta Aberta, de 1941.12° Deste ponto de vista, ela seria, no minimo, um produto de feito simplorio ¢ sobretudo tardio. Simplério pois ndo chega a demonstrar um nivel de argumentagao que se 121, muito menos ainda-proporcional & envergacura do projeto em seu conjunto concebido ¢€ realizado pelo movimento. Ainda, mantenha por si sendo nao ortodoxo o emprego do dodecafonismo — praticamente sem excegao por parte de todos os compositores do Misica Viva, conforme se pode observar nos exemplos musicais de Santoro, Guerra Peixe e Eunice Katunda ao final deste capitulo =, 5) obras criadas segundo essa técnica ofereciam condigdes, em potencial que fosse, de crivar linguagens legitimas refletindo expressées individuais — regionalizadas ou nacionalizadas — e geran- do estilos compositivas menos padronizados @ mais auténticos. Tardio porque o Apele dos compositores e criticos musicais de Praga havia j4, dois anos ¢ meio antes, antecipado estas proposigdes, contem- plando-as ainda num contexto politico-social de maior envergadura, pertinéncia ¢ atualidade. Ainda: Clauclio Santoro, no artigo “Problemas da Misica Contemporanea Brasileira”, publicada em agosto de 1948, expoe a esséncia do texto da Carta de Guarnieri. Ele faz do “Apelo” apelo seu enfocando justamente a “falta de conteticlo social” da musica contempora- 130, Esta carta esté publicada integralmente no Anexo 12 131. Aliés, Patricia Galvéo (a famosa Argel) nev seu artigo "Rebateou-se o maestro Koellreutter aos prineipios musicais de Moseou” (arfuhe, 29/10/1952), a isse se referiu, na forma que lhe era caracteristica: “Onde tinha Camarga Guamieri ido buscar idéias para escrever a sua carta, dado que se tenha come idéias © recheio daquele documento? Sim, porque Camargo Guamieri sozinho nao seria capaz de lampgjar nada que se parecesse com uma idéia, O seu ydcuo cerebral ¢ conhecido” 125 Mosica Viva nea; a decadéncia da arte de vanguarda — “arte pela arte” — reflexo da concepcao de individuo, criada pela classe burguesa. Resulta entao, em decorréncia, © afastamento e 0 isolamento do artista em relagéo ao povo ¢ a cultura nacional, provocado pelos inimigos da arte, pelo nove inimigo da humanidade, a seu ver, o facismo disfargado, © imperialismo americana, '2 Além disso, se fosse realmente estético o alvo visado por Guarnieri, o grupo de compositares do Musica Viva estando jd em fase mais que final de seu processo de desarticulago — Santoro havia reorientado sua linha de trabalho antes mesmo de 48 ¢ Guerra Peixe e Eunice Katunda em tomo do final de 49 —, 0 dodecafonismo nao representava de fato risco frontal ou ameaga estética alguma para os patronos ¢ adeptos da conente nacionalista. E isto, mesmo reconhecendo a necessidade e merecida impor- tancia cle um projeto original de estimulo 4 produgéio de obras nacionais, decorrente de pesquisa dirigida as manifestages tipicas do Brasil, projeto de longa trajetdria que teve em Mario de Andrade um de seus formuladores, em Guarnieri um de seus melhores realizadares. Resta-nos assim uma hipdtese complementar, antes pessoal € politica do que estética ¢ musical propriamente dita. As adesdes € a ocupacéo de espacgos cada vez mais em expansio, particularmente pelo Atisiva Viva, 0 tornaram afrontador. E a essa ameaga respondeu-se com um combate, nao estético — pois, além de raro no Brasil, da fileira nacionalista ninguém surgiu que pudesse ocupar 0 vazio deixado por Mario de Andrade — mas sim, politico. A carta aberta de Guamieri teria assim por meta essencial aglutinar os nacionalistas sob a bandeira da orientagao stalinista, os adversérios histéricos e os dissicentes radicais do Musica Viva, arregimentanclo um contingente capaz de limitar os avangos progressives da empresa pedagdégica ¢ de dinamizagao sociocultural capitaneada por Koellreutter com notavel sucesso, 132. CE Santoro, C. Problema da Mésica Contemporgnea Brasileira,.., em fundementos, n°3, v. 2, p. 233-240, editado integralmente no Anexo 10. 126 Carlos Kater Sem divida ela teve também atualidade em seu apelo civico € patrid- tico. E reflexo de um deslocamento do ideéric nacionalista da drbita estética pata a politica, a exemplo de casos semelhantes na histéria brasi- leira. Duas décadas antes, a instalagdo do regime revolucionétio, prepa- rando o Estado Novo, marcava jé significativamente a modificagao da trajetéria composicional de Villa-Lobos: do Nonefto e da série de Cho- fos para as Bachianas ¢ Concertos, passando assim de um modernismo desejada ¢ implicitamente nacional para um nacionalismo pretensa ¢ anacronicamente moderno. As cireunstancias politicas favorecedoras do ressurgimento das aspira- gdes de nacionalidade, com a volta de Getilio Vargas ao poder em 1950, propiciaram recolocar em pauta a questo. Porém o sentido contempora- neo, bem como as potencialidades de exploragao do tema nacional tangenciaram em quilémetros de distancia a drbita inercial de muitos musicos ¢ artistas ai enveredados.'** Ao debate publico, proposte por Koellreutter, no Museu de Arte de Sao Paulo afluiu largo publico. Sé nao compareceu Guarnieri, cuja posigao acabou sendo representada por discipulos, ex-alunos ¢€ admiradores seus, muitos dos quais varejistas da causa nacionalista ¢ do oa Seiioniad realismo socialista’.'* 133. As indmeras noticias jornalisticas veiculando opinides dos misicas da época ilustram perfeitamente bem co nivel razante de compreensio do problema quase sem excecdes por parte dos nacionalistas (ou daqueles que de altima hora assim se denominaram ou converteram). Ver: NEWES, JM. Musica Contemporsnea Brasitera, ».127-133, onde figuram, com comentétio, transcrigses de diversas opinidies publicadas na época 134, Este wétulo acabou gerando muitas confusdes, visto que ele proprio parece ter se originado. de uma também, gerada por alguns nicleos do Partido Comunista da América Latina, buscando fazer coincidir 1s diretrizes do Manifesto de Praga com a linha oficial ditacla por Mescou, representada pela resclucio assinada por Anchsi Zhdanov e Josef Stélin (fevercivo de 1948), decorrente do encontro do Comité Central do PC da URSS, CE AHARONIAN, Corin, The False Communist Bar of 1948. Texto de estudo gentibwente cedido por seu autor. 127 Masica Viva Koellreutter no entanto fomece, nos noticidrios, respostas yérias aos tépicos levantados por Guamieri e divulga apds sua propria carta aberta (Rio de Janeiro, 28/19/1950): Carta Aberta aos Misicos e Griticos do Brasil Resposia @ Camargo Guarniert 1° Consciente de minhas responsabilidades perante a nova geragao de compositores, em especial diante daqueles que me foram confiados, e perante o pais a cujo desenvolvi- mento cultural venho dedicando tedos os meus esforcos profissionais, movide ainda pelo profundo respeito que tenho pelo espirito criador do homem ¢ pela inabalavel fé na liberdade de pensamento, venho responder, de pii- blico, 4 “Carta Aberta aos mtsicos ¢ criticos do Brasil’ que o snr.Camargo Guarnieri fez publicar, com a data de 7 de novembro de 1950. Vejamos de inicio o que @ o tao falado Dodecafonismo, atacado pelo snr. Camargo Guarnieri com tanta veeméncia e com uma terminclogia pouco apta a um documento artistico. Dedecafonisma nao é um estilo, nao é uma tendéncia estética, mas sim o emprego de uma técnica de composicao ctiada para a estruturagao do atonalismo, linguagem musical em formagao, légica consequéncia de uma evolugdo e da conversio das mu- tagoes quantitativas do cromatismo em qualitativas, através do modalismo e do tonalismo. Nao tendo, por um lado, — como téda outra técnica de composigio — outro fim a nao ser o de ajudar o artista a expressar-se ¢, servindo, por 135. Decumento divulgade em vérivs jornais do pais. folha of Tarde, Porto Alegre, 12/01/1951. A cortogralia original esté mantida. Carlos Kater outro lado, a cristalizagao de qualquer '* tendéncia estéti- ca, a técnica dodecafénica garante liberdade absoluta de expresso ¢ a realizagio completa da personalidade do compositor. Ela nao é mais nem menos ‘formalista’, ‘cerebralista , ‘anti-nacional’ ou ‘anti-popular’ que qualquer outra técnica de composigio baseada em contraponto e harmonia tradicionais. £ err6neo, portanto, o conceito de que o Dedecafonisma ‘atribua valor preponderante a for- ma’ ou ‘despoje a miisica de seus elementos essenciais de comunicabilidacle’; que ‘lhe arranque o contetido emocio- nal’; que ‘lhe desfigure o carater nacional’ e que possa ‘levar & degenerescéncia do sentimento nacional’. O que leva ‘a degenerescéncia do sentimento nacional , © que se tora um ‘vicio de semi-mortos’ ¢ ‘um refiigio de compositores mediocres’ ¢ nde contribui em absolute para a evolugéo cultural de um povo, pelo contratio, é fonte de sucessos Faceis ¢ de improvisagdes, ¢ 0 nacionalismo em sua forma de adaptagio de express6es veméculas. Essa tendéncia, tSo comum entre nds, é responsdvel per uma misica que lembra o estado premental de ‘sensacao’, proprio do homem primitive e a crianga, e que, com as suas formulas gratuitas emprestaclas ao colorismo russo-franeés, ndo consegue encobrir sua pobreza estrutural ¢ a auséncia de poténcia criadora. O verdadleiro nacionalismo é um caracteristico intrinseco do artista e de sua obra. Quando, porém, essa tendéncia se reduz a uma atitude apenas, leva tanto ao formalismo quanto. qualquer outra corrente estética. — Entende-se por formalismo a conversdo da forma artistica numa espécie de auto-suficiéncia. Ao contrario do que afirma o snr.Camargo Guarnieri, 0 que me parece alarmante é a situagdo de estagnacdo mental em 136. Esta ¢ 3 expresso sequinte aqui sublinhadas apsrecem em negrito no texto original. 1 Masica Viva que vive amodorrado o meio musical brasileiro, de cujas instituig6es de ensino, com seu programa atrazadlo ¢ ineficiente, nao tem saido nestes ultimos anos nenhum valor representativo. Eis a expressao, essa sim, de uma ‘politica de cdegenerescéncia cultural’ ¢ no a ancia estética, 9 trabalho sincero dos jovens dodecafonistas brasileiros que lutam corajosamente por um novo contetido ¢ uma nova forma e que jamais desprezaram o folclore de sua terra, estudando-o e assimilando-o em sua esséncia. Esses jovens dodecafonistas brasileiros desbravam as regides do inexplorado & procura de uma nova realidade na arte. Escrevem miisica que néo admite outra légica a néo ser a que nasce da prdpria substancia musical. E verdade que essa musica, apezar de toca sua perfeigao estrutural, demonstra algo de instavel ¢ fragmentério, caracteristicos de uma crise que resulta do conllite entre forma ¢ contetido, a fonte mais importante do desenvolvimento e do progresso nas artes. E & justamente nissa, no alto grau de veracidade ¢ no realismo de sua arte, que consiste o valor humano ¢ artistico do trabalho desses jovens compositores. Quanto aos conceitos finais dos dltimos pardgrafos da Carta Aberta do snr.Camargo Guamieri nado merecem resposta por serem incompetentes ¢ tendenciosos. Em lugar de demagogia falaciosa de sua carta, o snr.Camargo Guarnieri deveria ter feito uma exposigio objetiva, uma andlise serena ¢ limpa dos problemas relativos as do Brasil, se é que realmente isso o interessa. O nacionalismo exaltado ¢ exasperado que condena cegamente e de maneira odiosa a contribuigéo que um grupo de jovens compositores procura dar cultura musical do pais, conduz apenas ao exacerbamento das paixdes que originam forgas disruptivas ¢ separam os homens. A\ luta contra essas forgas que representam o atrazo ¢ a reagao, a luta sincera ¢ honesta em prél do progresso e do humano na arte é a tinica atitucle digna de um artista. aos jovens musi 130 Carlos Kater Se os mtisicos de orientacio nacionalista nio possuiam, em sua maioria, visivel vinculagao politico-partidéria e ao contréric os do Miisica Viva de- monstraram compromisso ¢ engajamento cada vez mais intensos — importante reiterar que Mdsica Viva torna-se uma célula da “musica progressista”, quando de sua adesao ao Apelo do Il Congresso de Praga — 0 ponto culminante do combate de fachada estética mostra um quadro de certa inversao. Significa dizer que em aparéncia — e numa Otica apenas da realidade — Koellreutter com o atonalismo foi associado & vertente agonizante da bur- guesia capitalista ¢ Guarnieri nacionalista as forgas novas ilustrativas das orientagdes fundamentais do ent&o progressismo politico e estético. Dessa cisdo surgiram realinhamentos intensos, favorecendo o maciga engajamento dos misicos na corrente nacionalista, que prevaleceu até o final da década.'?7 Expressdes como “apelo”, “respansabilidade diante’ (da musica, do pats, dos jovens, da geragao, da sociedade), “preocupacie com” (o huma- no, a cultura, © povo, as massas), “progresso” e suas formas derivadas (progressista, progressisma) “mdsica” enquanto “expressio viva” apare- cem constantemente como paracigmas da retérica das tendéncias que se antagonizam, possuindo no entanto significados diversos, na imensa maioria das vezes diametralmente opostos. Para uns, “mtsicos progressistas’, nacionalistas — a idéia de progresso esté associada intimamente ao estudo € aproveitamento ‘artistico-cientffico” do manancial folclérico — na grande maioria dos casos intengdo jamais efetivada ¢ transcencida — ¢ daf por conseqiiéncia com a idéia de povo, raga, cultura localizada, nacao, Hee Nleecbel eee eee bere al ce eos ees te tones ores mieten center eete eee de 50 ¢38 no inicio da seguinte — desde o significative desaparecimento de Villa-Lobos, em fins de 59 —E que ressurgitd o experimentalismo na produgo musical brasileira, espelhando com sua renove- lo os hutos diretos ¢ indivetos clo tablho realaado por Koelheutter ¢ pelo Akisica Viva 131 Musica Viva Para outros no entanto — Musica Viva ¢ especialmente Koellreutter — idade de ex- pressao, segundo 0 estagio atual de desenvolvimento da cultura e da soci- significa busca incessante, liberdade de pensamento < legiti edade em termos amplos, supra-nacionais, universais. Por aqueles o dodecafonismo é visto como “produto de culturas supera- das” — deterioradas, desenraizadas —, portanto conteudisticamente des- ps prezivel, formalista. Para estes 0 nacionalismo reflete anacronismo, auséncia de poténcia criadora, confinamento estético. Em suas préprias visoes ambos os enfoques se léem reciprocamente nao-progressistas” e reducentes do ponto de vista expressivo. A idéia de que a musica deveria s¢ aptoximar das massas, do povo, é também comum, assim camo a crise que atestam. Entretanto, nacionalistas tém jé sua receita constituida histérica e conceitualmente, com base em refer€ncias tracadas de inicio por Mario de Andrade (em particular quase exclusivamente no Ensaio de 1928).'% O grupo de compositores por sua vez experimenta formas originais de integragao, via trabalhos de Santoro, Eunice Katunda e, mais intensamente, Guerra Peixe, buscando associar elementos de miisica popular ou folclérica com a técnica dodecafénica.'?? Esse pioneirismo momentaneo, rapsddico, 138. ANDRADE, Mucle. Ensaio sobre a Miiisicw Brasileira (1928). (2%ed,), So Paulo: Martins Ed. 1962, onde ciscore sabre as caracteristicas ¢ problematiess da misica nacional, aprasentando sua original tese: las trés fases de evoluga do compositor brasileiro. Yer Anexo 2 mencao feita por Luciano Gallet, no texto "A missio dos misicos brasileiros de agora” ac livro de Mario, 4 problemstica do projeto compositive brasileiro e Camargo Guamieri; entre outros, 139. Diga-se de passagem, o Afegrinta av Ristoreio (1946), cantata para vozes solistas € coro feminino, éa primeira peca de Eunice Katunda composta sob a orientagio de Koellreutter @ j4 contém, nesse sentido, propostas criativas elicazes (o que se pode obserar parcialmente mais adiante), assim camo varias obras de Santoro ¢ Guerra Peixe. Carlos Koter ocorre marcante entre 45 e 47 (e também se verifica, indiretamente, através de pegas do compositor “nacionalista-dodecafénico” Luiz Cosme), Esta questo € recolocada apés, com Médsica Viva perseguindo novas saiclas, no campo estético € didético-pedagdgico, em particular.“ De fato, jé em 1941, Santoro, em suas “Consideragdes em torno da Masica Brasileira Contemporanea”, sugetia — a exemplo de Mario de Andrade ¢ alguns outros — a estudo técnico dos materiais folcléricos tendo em vista recuperar a essencialidade da criag3o musical popular. 4" Koellreutter, em entrevista & fotha ols Tarde (Sao Paulo, 27/4/1950), tecia consideragées sobre a composigao de uma misica “em brasileiro”, reiterando a importéncia de uma pesquisa competente das caracteristicas musicais do repertério falclérico. Entretanto, apesar do reconhecimento generalizado da fungao ¢ impor- t&ncia de pesquisas a partir do manancial native, tanto por parte de “universalistas” quanto de “nacionalistas”, praticamente pouce chegou a ser feito nesse petiode de forma abalizada e, sobretudo, sistematica. © que vem a se tomar claro com as polémicas instauradas, tanto interna- mente ao Musica Viva — em especial em 1948 — quanto ampla ¢ publica- mente a partir de fins de 1950, é que nao foram cle fato as metas perse- guidas que diferiram, mas sim os objetivos mais imediatos, os meios ¢ a determinagdo para atingi-los, bem como a andlise ampla da realidade que eles, obrigatoriamente, pressupdem. 140. Ver na capitulo adiante: Atividades Musica Viva. 141, CE SANTORO, C. attigo citado, boletim Misica Viva, n°9, ano 1, Mar/1941, p.3. 133 Musica Viva Tit SERIE DE PECAS PARA PIANO-SOLO 146 1. A Clocerta Kesmsteff CLAUDIC SANTORO. Lento (d= 54) Ls! Expremivo (/=46) =e ae sao cepa mz eetoa cet inane eee ota Die Verichos (gun owns a Moto vr dar aban (Mota: The acridentala( ) wall only sffece tha noted bafate whieh thay ore placed (©1946 by CLAUDIO SANTORO: Alle Rechte Verbehultea UP Série de Pegas pera Pisno-Solo, de Claudio Santoro (1946) (pegas 1 € 2) Carlos Kater Suite, para flauta e clarineta, de C.Guerra Peixe (1949) ('ll-Cancio") 135 Musica Vivo TI ATO 9) Presto Jessa Se = seen — pa =a Wore bres | sempre forte ¢ maresta, | epee = = fr de ta = doe Negrinho de Pastoreio, cantata em 4 atos, para solistas (S, MMS, A) ¢ éoro feminine a capela ou com acompanhamentos acasionais de flauta, violdo e percussio (1946) 136 Carlos Kater 10}meno J=40 mio, so” a h- m- mes , reprendendo el tempo. J= 96 231 2 ie = ae = = Pcele) oc eee — ES Negrinho clo Pastoreio, cantata em 4 atos, para solistas (S, MS, A) € coro feminino a capela ou com acompanhamentos ocasionais de flauta, viola e percussia (1946) 137 Ano I-N.4 Masica Viva Rio de Janeiro Maio -1940 DMESICA VIVA Hace Jorchie: Koelliestler Qrsie ofc de Grupo “Must Viva!” Divetor: Peal, Octivia Bevilecave of, Esydie de Convo « Sil Piel, Hori devthin Koelleoter, Prot. Coie Helier O NOSSO PROGRAMA A ched susieal, como a mais elev dda organisaeao do pensamente © s0 reste, hummands, @ommo 4 Tals gram Ginea sncarnario da vids, est8 emp meirs plang, fo trabalho arlislica de “Musica Viva" tivigede do arups “Musiea VL vs" ddies-ze prneipaimente a. pros Sugla ecrtemoorinea e sobreindo 2 pritosio da joven misica brasitcirs: “Musica Viva" quer snesieer, que ex nossa epock tuber) existe Tie epressue Vive de nose “Biter isto ema das mais importan leg larefas diste grupo, consiste em {irar da ecyuecimen‘o obras da litera- tua fmusieal das grandes époces pas dessonligcidas om pouso diva paces “Musica Vea" quit tranimar a Feuiece elissics de real valor © em ri eaquea A atividade do grupo “Musica Viva” 7 eoncertas © audighes: jes particrlares. 2 concertos publicos. 5 com obras contemporineas cam obras classicas. L gurso de interpret fermclus ,,em 10 con G: conpesigdes de misiea de edma- re exccutadas: 12 clisscas, contempovaneas. berasidelras, TF franewsas. § alemis 7 italia 4 ross. 4 espanhals, ss execuladas dé 42 composite 10 eldsgieus: £2 contemporanens: 11 draneeses 9 drasilelves, 9 alemaes B iraliancs. 4 russes, 3 ¢spanhoes 13 primeiras audigles de 12 com: posilures Grétry, Suplerento Musical deste nim “O nosso programa”, Sen Fine, Ei @ nosso programe, cuje nico me servir a ara musical com todas fs estore chan e discusssess sobre temas tusica Viva" publirars of temporiness © compnsig da literatura classics, Musica Viva" enearregar-se-i da Givulgerie © da exeeursa Gas pbras que publicst. no Bral e ne estran ee “Musica Vive" realizaré um inter- simblo de cemposighes contempori- i= enire 0 Brasil © ouLYes pul ‘Musica Viva publiear’ mens la te uma falha musi Haendel Scarlatti, Alessandro. Jean Frangais. Honegger. Thert Jarnach. Koellreuter, de Is Presie Tansman, ‘Tehérepnine, Alexandre Fontm exeeuladas qbras dos com= esitores: Johana Sebastian. Hasee. Lotti Mendeleshn. Mozart, Peryolesi Searlalu, Alessandro, Baton, Braga, Ernan Braga, Francisen, ‘Comara, BDeusty. Falla, Farnandes Frangais, Jean. Gnatial Gretschaninow, Guarneri, Camargo. Honeager modinks ce Fructuoso Vieons bol 138 tim Mdsics Viva, Ano |, n°1 ss ds gro tendente 3 deren culiura musieal, Ela quer enimar, ajuder, defen numa bake posiliv informe, A's Sonhoras Lats W Ferzfeld, Ursula Koellreutter, sas Se ores Andraee Muriey, Armando Pi- cheire, Franz Becker, Giovean: Bal larim. Luiz Heiter, Osker Kowseann 4 tedos que nos spoiaram mozal o:t mutermalmente > tunerans passivel a realzagae dag mossas inlungies, ag Seeomac cordialmente © ceperar merocer toda esta generosidade, Ap mesano tempo convidames aquels: que tem real interesst pela misiea a oraruiee imbalhar onoseo, afm ds 1936 em Thert, Liber’, Jamach Koellrevtter Mignone, Milhaus, Nin Fierné Presi. Prokofictf Rawel Recli Respight Steawinsky. Tansinan ‘Deberepn: Tournior. Curios eire-Brendio. Villa Lobes, Brasilia, , Alexandre, Mos concertes e audi parte II artistas: Anna Candida de Moraes Gomide Enaura Mello, Hilde Sinnek: Lis Wallace daria Stolze Carcioss. fee tomaram io de Castro ¢ Silva Keellreutter, Miron Kroy Remja Waschite ‘Weldonar Navarro, » Mai/1940

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