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TEE UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE FILOSOFIA E CIENCIAS HUMANAS CURSO DE CIENCIAS SOCIAIS Jalio Bastiani Gothe ENTRE O SIGNIFICADO EA FORMA: UMA RELEITURA, DO LIVRO ARTE PRIMITIVA, DE FRANZ BOAS. Trabalho de Conclusion de Curso submetido ao Programa de Graduagio fem Ciencias Sociais da Universidade Federal de Santa Catarina, para a fobtemeo do Gran de baehirel etn Citncias Sociis, Orientador: Pro. BP. ka Boaventura Leite | Floriandpotis- SC | 2011 ENTRE O SIGNIFICADO E A FORMA: UMA RELEITURA, DO LIVRO ARTE PRIMITIVA, DE FRANZ. BOAS, Este Trabalho de Conclusao de Curso foi julgado adequado para obtengiio do Titulo de bacharel em Ciéncias Sociais.e aprovad(o)a em sua forma final pelo Programa de Graduagio em Ciéncias Sociais. Prof, Julian Borba, Dr. Coon tar do Curso ! | Banca Examinadora: a Dr Ilka Boaventura Leite, Orientadora uUFSC Prof ges Marta loris, Examinadora UFSC Examinadora ‘UFSC AGRADECIMENTOS Silo diversas as pessoas que, querendo ou nfo, contriburam com a realizagio deste proceso. Primeiramente, agradeco & minha mae, ineansivel em consolidar suas ligdes. Agradego aos meus pais e aos meus irmiios € irmis, de sangue ou de coragio, que dividiram comigo suas experiéncias e seus cotidianos, Aos meus avds, proximos e distantes, que possuem distribuem a importineia de uma familia unida. Aos meus primos & aos meus amigos, que ajudaram a moldar © ser hummano que sou hoje: Agradego também 3 Doutora Ilka, minha orientadora, tanto pelos consethos, quanto pelo encorajamento constant. E agradego as professoras, Edviges e Elizabeth, que leram, certamente com carinho, exte projeto. Agradeco, enfim, para todas e para cada coineidéne | ormou esta conjuntura, eu. que | “A estatura hendeiva de meu pai | E isto de encarar a sério a vida; Esta alegria, que em toda alina me vai. ‘Com a fantasia da mae foi recebida. | Um avd mew era das belas 0 tesouro, Eo seu famasmna acorda em mim dle vez en quando; Uma avé minka amava luxo e ouro, Eo seu sangue em minhas veias vai passando, ‘Mas, se nada deste vério material De todo se consegue separar, No fim de contas — que hi de original No sujeitinio que em mim vos est a falar? JW. Goethe ~ Xénias Mansas :PIGRAFES EL individo, para conquistar el mdximo posible de verlad, no deberd, como durante cenwurias se le ha predicado, suplantar sw esponténeo punto de vista por otro exemplar ¢ normative, que solia Hamarse “vision de Jas cosas sub specie arternitas”. El punio de vista de ta erernidad es eiego, no ve nada, no existe, (osé Ortega y Gasset no texto El sentido histérico de ka teor Einstein) de © ensaio, porém, nfo admite que seu ambito de competéneia the seja preserito. Em vez de aleangar algo Cientificamente ou eriar artisticamente alguma coisa, seus esforgos ainda espelham a disponibilidade de quem, como uma crianga, no tem vergonha de se que 0s outros jd fizeram. O ensaio reflete o que & amado e codiaclo, em vez. dle conceber 0 espitito como uma criagao a partir do nada, segundo © modelo de uma irrestrita moral do trabalho. Felicidade e jogo the sio essenciais. Ele nio comega com Adio & Eva, mas com aquilo sobre 0 que deseja falar: diz 0 que a respeito the ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim, no onde niio resta mais nada a dizer: ocupa, desse modo, um lugar entre os despropésitos. Seus conceitos no sto construidos a partir de um principio primeiro, nem convergem para um fim dltimo, Suas interpretagdes nao sio filologicamente rigidas e ponderads, S80 por principio superinterpretacdes, segundo 0 verdieto jf automatizado daquele intelecto vigilante que se pbe a servico da estupidez como cio-le- guarda contra 0 espirito. Por receio de qualquer negatividade, rotula-se como perda de tempo o esforgo do sujeito para penetrar a suposta objetividade que se esconde atrés da fachada, Tudo & mais simples, dizem, Quem interpreta, em ver de simplesmente registrar e classificar, & estigmatizado como alguém que desorienta a intetigéncia para um devaneio impotente e implica onde mio hit mada para explicar (...) Compreender, entio, passa a ser apenas © processo de destrinchar & obra em busca daquilo que 0 EE autor teria desejado dizer em dado momento, ow pelo menos reconhecer os impulsos psicolégicos individuais que estio indicados no fendmeno, Mas como & quase impossivel determinar © que alguém pode ter pensado ou sentido aqui e ali, nada de essencial se ganharia com tais consideragies. Os impulsos dos autores se extinguem no contetido objetivo que eapturam, No entanto, a pletora de significados encapsulada em cada fendmeno espiritual exige de seu receptor, para se deslevar, justamente aquela espontaneidade da fantasia que & condenada em nome da disciplina objetiva, Nada se deixa extrair pela interpretagio que ja nfo tenha sido, a0 mesmo tempo, introduzido pela interpretacio. (...) Para o instinto do purismo cientifico, qualquer impulso expressive presente ha exposigdio ameaga uma objetividade que supostamente afloraria aps a eliminagio do sujeito, colocando també em risco a propria integridade do objeto, que seria tanto mais s6lida quanto menos contasse com © apoio da forma (.) Na aletgia contra as formas, considleradas como atributos meramente acidentais, 0 espirito cientifico académicoaproxima-se do obtuso espirito dogmitico. (Theodor Adomo no texto O ensaio como forma) The graphic and plastic arts owe much of their emotional value to the representative and symbolic values of form. This is no less true in literature, music and dance. (..} We have seen that the desire for artistic expression is universal. We may even say that the mass of the population in primitive society feels the need of beautifying their tives more keenly than civilized man, at least more than those whose lives are spent under the urgent necessity of acquiring the meagre means of susienance (...) Among the primitive people the (...) goodnes and beauty dare the same. (...) tis the quality of their experience, not a difference in mental make-up that determines the difference hetween modern and primitive art production and art appreciation. (Franz Boas em Primitive Art) RESUMO: Este projeto ocupase com a anilise das principais, contribuicBes de Franz Boas a consolida o desenvolvimento da Antropologia, com especial énfase nna Antropologia da arte, Tendo em vista a extensio do objetivo, tal projeto constitui um esbogo que, partindo da resenha do livro Arte Primitiva (1927), visa identificar os, principais pressupostos metodoligicos e conceituais na obra deste antropélogo. Esta pesquisa também pretende, através de um estudo do eontexto hist6rico no inicio do século XX, icentificar pistas do impacto da obra de Franz Boas em debates mais recentes. Por fim, este trabalho. sendo uma revisio’ bibliogrfica, apresentanovas possiilidades interpretativas por entre as palavras esetitas, Paluvras-Chave: Teoria Antropolégica; Franz Boas: Hist6ria da Antropologia: Teoria da Arte ABSTRACT: This project is concemed with the analysis of the major contributions of Franz Boas to the consolidation and development of anthropology, with special emphasis on the anthropology of art. Given the extent of the objective, this project isa sketch that, from the book review of Primitive Art (1927), aims to identify key conceptual and methodological assumptions on ‘the work of this anthropologist, This research also intent to, in a study of the historical context of the early twentieth century, identify elues of the impact of the work of Franz Boas in the recent debate. Finally, this study, as a literature review, presents new interpretative possibilities through the written words. Keywords: Anthropological Theory, Franz Boas, History of Anthropology, Art Theory LISTA DE FIGURAS Figura 1 ~ Simetria dupla.. Figura 2 ~ Motivos marginais Figura 3 Tacos de arremesso Figura 7 ~ Miragem do gelo por Franz Boa SUMARIO INTRODUGAO, 5 1 APITULO I: O PRET 3 Ww ENXERTOS BIOGRAFICOS .. 3 11.1 Grilhdes da tradicio.. 33 1.1.2 Vida piiblica, 4 1.13 Morto... de alegri CAPITULO II: 0 CONTEXTO CONTIGUIDADES E ANACRONISMC Arte, Politica e Paral Fim-de-séeulo Oalvorecer do século X ‘A mancha da incerte Os maleficios de uma certeza absoluta CAPITULO III: 0 TEXTO.. POR UMA ETNOGRAFIA D; Arte: téenica e em Oclemen O clemento atet A interagio ou o problema do Arte contextuatizada ou Arte como Literatura, Miisica e Aarte e os Univer CONSIDERAGOES FINAIS ..... REFERENCIA: INTRODUGAO: Em meados de junho de 1883, um fisico e gedgrafo preparava- se para partir Tha de Baffin, no atwal Canada (Ct. Stocking, 2004: 63- 66). Recém dispensado do exéreito, onde munca fizera questio de estar, © jovem decidira estudar os “esquimés atuais com. relagio. a configuragio e as condigdes fisieas do ambiente.” (BOAS' apud STOCKING, 2004: 66). Desde sua formagio em fisica, o estudante vinha se perguntando: “até que ponto podemos considerar os fendmenos, da vida orgdnica, especialmente da vida psiquica, a partir de um ponto de vista mecanicista, © que conclusdes podemos tirar dessa consideracio?” (Idem: 66) Sua tese de graduacio, considerando a “percepeio do olho hhumano na observagio dos fendmenos fisicos” (MOURA, 2004: 26), versava sobre a cor da sigua do mar. Os resultados desta pesquisa — comparativa, entre ay sensagdes © as quantidades ~ permitiram que 0 pesquisador compreendesse que existe jos de nossa experiéneia em que no so aplicéveis os conceitos de quantidade. de medidas que podem ser somaclas ou subtrafdas” (BOAS apud STOCKING, 2004: 64). Este era o fim de Veluanschawurg [visio de mundo] materialista anterior” (Idem: 65), € © inicio de uma nova perspectiva para a compreensio da alteridade. Max, voltemos ao embarque do pesquisadlor. Esperando, sentado iguma doca do porto de Bremen, falvez fumando ou bebendo uma boa xicara de café, estava 0 corajoso rapaz. Ao seu lado, um fiel funciondrio de sua familia, Wilhelm Weicke. Conferiam, talvez. pela décima vez, © material a ser usido na expedigio; “Us relégios, teodolitos de tamanhos diversos, um grande compasso, bardmetro, termémetto, um pequeno barco-tren6, espingardas e munigdes, alimento para doze meses, peles e roupas de I...” (Cf. Almeida: 31) Enquanto isso, a escuna que 0s lev se aproximavat no horizonte, O alto mar & 0 lugar perfeito para “'sonhar com um belo futuro” (ALMEIDA, 1998: {que 0s ventos gelados levem a insanidade erescente no velho {08 poucos, © viajante procura abandona Deixar para tris toda a tradicao que se impoe como um grilhio € procurar por novos ares, era definitivamente um entre os objetivos da viagem, Assim, 0 viajante também deixava para tris, de certa forma, 0 menino que colecionava bichos e plantas em sua casa de campo em Mindem. O rapazinho que tocava Mozart e Bach em seu piano, para Alegria dos pais, com alguma pericia. O mesmo menino que, ainda no jardmetro, anerdide © uma miquina fotogrsti Gymnasium, se apaixonara por Goethe que o fizert sonhar com uma Alemanha que ele pudesse chamar de lar, Mas, principalmente, 0 que 0 pesquisudor abandonava era o anti-semitismo que tanto o Feria, tanto no espitito ~ com o preconceito e a rigidez da academia alemi ~, quanto na carne ~ como no duelo em que perdeu parte do couro cabeludo, E bem verdade que ainda vollaria no ano seguinte para a Alemanha, onde trabalharia com Adolf Bastian, no musew de Berti. Contudo, a sua intengdo era rumar & América 0 quanto antes; © finalmente encontrar neste novo mundo, onde estava a Tiberdade de expresso e sua paixto Marie Krakowizer. Ainda no navio, 0 jovem cientista escrevia, tipicas cartas de amor para Marie (ver trechos em Almeida: 32-7), exceto pelas pitadas de antropologia, Finalmente, desembarcou em seu destino no exato dia de sew aniversitio, nove de julho de 1883; e aos 25 anos de idade, comemorava uma espécie de liberdade que parecia surgi. Esta viagem de um ano entre os grupos, conhecidos na época como, esquimés. consol gas que vinha propondo a si mesmo (Cf, Boas apud Stocking: 67-80). Coneluiria, nesta viagem, que © ponto de vist mecanicista nao era suficiente para compreender as motivagdes de um ser humano. Nenhum determinismo — seja ele geogrifico, biolgico ou econimico ~ & capaz de dar conta da complexidade de nosso comportamento. Assim, pela primeira ve Inuits, vistos apenas como comedores de came cru, passaram a ser vistos. como seres complexos, possuidores do livre-arbitrio © da Criatividade; e nao como autématos inferiores definidos pela erueldade de seu ambiente. No tempo em que dependent diretamente dos Inuits, © viajante aprendeu a apreciar a engenhosidade e a hospitalidade de seus anlittibes: sentindo-se compelido a contar suas descobertas a todos, aqueles que julgavam mal os povos que havia conhecido. Em 1885, ja de volta & Alemanha, no museu de Berlim, 0 viajante regresso estava envolto pelas mais diversas mascaras, enquanto dispunha as colegdes museoldgicas. Percebeu, encantado com suas formas, que elas eram parte de um conjunto de relagdes e sig especificos que merecem registro. Pois, 0s rituais onde eram usadas aos poucos iam desaparecendo ou senda proibidos (com foi 0 caso do potlach, Cf. Stocking: 137-8). Dois anos depois, definitivamente nos EUA, apresenta um novo modelo de classificagao etnolégica (CT. Boas In Stocing: 85-92), eriticando © impeto evolucionista de alguns dos Iaiores muse6logos norte-americanos da época, no caso espeeico, John W. Powell e Otis Mason. De acordo com 0 método boasiano, 0 musedlogo deve tomarse um estudioso da multiplicidade de 16 Significados © hist6rias particulares, caso queira conh pega que possui em seu museu ! Ainda com © mesmo encanto pelo tera, volta a travar contato com a magia das mascarus Ao regressar da viagem, resolve eserever um antigo, batizado de “O uso de miscaras € omamentos facials” (1890). Neste artigo, 0 pesquisador aplica seu nove método de clastic Método que niio eonsiste na deserigio da forma e dat iaadas e tampouco apenas na anilise das migragdes e das origens. Mas, também, na andlise dos sentidos e dos usos atribufdos aos objetos e quais tipos de de fato as, reagdes eles suscitam entre 0s sujeitos observados. Em paralelo, 0 antropélogo len outras pesquisas ~ antropomeétricas, linguisticas e etnogrifieas ~, além de expedigies - como a gigantesca expedigao de Jesup. ‘Pambém fez novas amizades na América e, € claro, casou-se com sua antigst painiio, com quem logo teve uma filha. Ainda teve tempo de se envolver em questoes piiblicas, fato que marearia sua earreira: permanentemente. Finalmente, no inicio do século XX, seu ponto de vista, elaborado durante os anos de trabalho de campo na tiltima década do século anterior, comecava a ganhar consisténcia. Em 1911, uma trfade conceitual extremamente complexa torna-se explicita em sua obra “A mente do homem primitivo”: a Raga, a Linguagem e a Cultura, E este € apenas 0 comeco da historia de um dos fundadores dat Antropologia como a conhecemos hoje, Franz Boas. Compreender a importancia de Boas para a Antropologia corresponde a perceber 0 longo caminho entre a pergunta, feita em 1882: até que ponto & verdadeiro 0 ponto de vista mecanicista? Isto & até que ponto & aplicavel 0 método cartesiano e um modelo de eiéneia que se apsia assungao de uma causalidade inexoravel (Cf. Stocking: 66). Caminho que parece definido com a resposta mais direta, dada em 1927: “quem. & na veracidade absoluta da causalidade, esquece que a Iigica da cia (..) no € a Kégica da vida” (CE, Boas, 1927: XIV). Enlio, entre a pergunta e a resposta, passariam quarenta e cinco 10 ainda realizou uma série de 1 Nese sent, tomouse Wlebre a seguinte afimagio: "Na etnlogia, tao 6 indivktvalidadg”, (HOAS. apal STOCKING. 20037 92) Fase cirontncnte sini a nde F, Samssare, de ue “ma lingua x exitem dferengay" (ECO. 1976: 7594 No ido mais etl, ena align epeewna wma recuse profurda aos mosdcos gue rocaran tran o fenbancos cla como tabula de Aad", esha Sir estegorin ‘Con ota carne iar, exempl cca "an ‘hoealho. por exemplo, nao resulta simplesmonte da kei de pre har, nem dos mnétadostenol6xicos aplicads pra atingi ese objetivo". Path am dss, os cholo representa diferentes solugdes problemas diferentes portant, “o mesa insane emtonceaciferentes departments do museu” (HOAS ape STOCKING, 2008: 90), ‘anos até que 0 rupaz, comendo carne crua de Foca no frio do artico *, pudesse finalmente dizer aquilo que “quando jovem aprendi na escola & ‘em casa no apenas amar 0 bem do meu pais, mas também a procurar compreender e respeitar as individualidades das outras nagdes..” (BOAS. apud STOCKING, 2004: 396) Como Boas coloca de forma brilhante em Arte Primitivas Qualquer pessoa que tenha vivido com tribos primitivas, que tenha parithado as suas alegrias & Uwistezas, as suas privagdes © abundancias, que veja nelas no apenas objetos de estudo a serem ‘examinados, como células @ um mictosedpio, mas jos pensantes e com sentimentos, ar que ngo existe uma “mente primitiva’ ‘um modo de pensar “msigieo’ ou *pré-légieo’, mas ceuda individuo numa sociedade ‘primitiva’ € um homem, uma mulher, uma erianea da mesma cespécie com o mesmo modo de pensar, sentir & gir que qualquer hhomem, mulher ow crianga da osstsaciedade, (BOAS, 1927: XIV) muitas paginas que produziu, 0 fisico alemio se tommaria uma referéncia no estudo dos povos da Coliimbia Britanica e também © professor de toda uma primeira geragio de antropslogos americanos. E, agora um cientista consagrado, reafirmou as colocagies contundentes que fizera quando jovem, Afirmagdes que seriam consideradas hereges ou a-cientfieas para um jovem pesquisador em sua época, Mas enfim, Boas conguistara 0 direito de opinar publicamente e, com isso, um espago definitivo na histéria da Antropologia e do século XX. Neste contexto, as palavras que A. Einstein usa acerea de seu proprio trabalho, adequam-se perfeitamente a Bou os. rho escuro por uma verdade aque se sente mas nao se pode expressar, 0 desejo Intenso e a aliemancia de confianea e divide até iomper para a elareza eo entendimento, $6 sao conlecidas por aquele que oy vivenciou em si mesmo. (EINSTEIN apud OVERBYE, 2002: 370) creio que estas palavras também se aplicam, em escala bem menor, a0 trabalho que me proponho a desenvolver. Enquanto possibilidade de externalizar uma verdade subjetiva ~ ow seja, uma compreenstio ou uma metarinterpretagiio — buscando revisitar os desdobramentos da abordagem boasiana do problema da arte, E assim, ime sinto motivado pela mixin wudo o que um homem pode fazer pela humanidade & pro verdade, seja ela doce ou amarga, Um homem assi que niio viveu em vio.” (BOAS apd MOURA, 2004: 37) Contudo, como nenhum ser humano vive no viieuo, isento dh influéncia de seu préprio tempo, procuro esbogar alguns velores que representam as transformagdes no Zeitgeist (0 espitito do tempo) do Final do século XIX e das décadas iniciais do século XX. Um breve estudo acerca das diregdes de uma infinidade destes vetores, hoje chamados de modemistas, pode contribuir para que se compreenda quem eram os interlocutores de Franz Boas nesta obra, Assim, tornaese possivel no apenas a leitura do texto, mas também uma leitura entre as linhas (inter legere), ou seja, que considera os elementos contextuais c/ou extta-texttais. Neste sentido, vale lembrar que neste perfodo uma infinidade de obras fundamentais revolucionam os mais diversos campos do conhecimento. Inovagdes impressionantes — algumas tio excéntricas que foram consideradas escalafobéticas ~ derrubam ox eanones de uitas disciplinas ciemtifieas, dissolvendo o dominio positivista dus cigneias. Mas, ao invés de comida ou remédios, eram produzidas armas em large escala. A fotografia substituia qualquer retratisia ea precisou se_reiny te ar. A téeniea seguia a tomar higar na vida dos pessoas, muitas vezes das piores maneiras Esta histéria esté impressa nas singulares figuras que povoam, perdio pela expresso, a mitologia da primeira metade do século XX, figuras tio lendérias quanto deuses de qualquer panteio jé inventado iguras como Sigmund Freud, Albert Einstein, Henri Ford, Carl Einstein. Paul Cezanné, Woodrod Wilson, Pablo Picasso, Winston Churehill, Movimentos ¢ invengdes como a vicina, 0 ridio, 0 avido, © impressionismo, a Coca-cola, a revolugio russ, 0 crash da bolsa Contudo, como so tantos os eventos, os herdis e os vilbes do século XX, dar conta desta diversidade, neste projeto, seria impossivel, Portanto, 0 esforgo € por um esbogo deste contexto que, unido & 19 biografia de F Boas, possa auiliar a interpretagio dos argumentos presentes no livro Arte Primitiva (1927), ‘AS teorias antropoldgicas da arte mo sfo recentes, mas, por eves, introduziram uma falsa dicotomia entre 0 estudo da forma e 0 estudo do significado, A importineia de uma Antropologia da arte se renova quando compreendemos que esta dicotomia & na realidade wm continu; ou seja, que os elementos envolvidos nesta suposta jposieio, ndo podem ser compreendidos em separado, in yacwo, Neste sentido, a posigio de Franz Boas é inovadlora porque rejeita a suposta incompatibilidade desta relagio (Cr. Almeida: 28-9), Segundo Murray Leaf (em Uma historia da Antropologia), Boas rejeita 0 pensamento dlicotémico, herdado do racionalismo cartesiano, Em a Atte Primitiva, veracidade imperativa da heranca cartesiana € desconstruida logo no prefico: A nossa experiéneia tradicional ensinou-os a consid 10 dos acontecimentos objectives como 0 resultado de uma causalidade objectiva e dfinida, Unis eausalidade inexorivel que governa este mundo, e mundo exterior, nao pode ser influenciada. por condigoes mentais. (..) Nosso ambiente cultural inculcou-nos este ponto de vista de tal modo que aveitames como elementar a mpossibifidade de os fenOmenos materiais, ‘exleriores a0 dominio do comportam poderem ser influenciados por processos mi Subjectivos. Porém, todo o desejo ardente implica possibilidade de realizagio (...) [Realizagdes} qu comprovam a fragilidade da nossa pretensio 1 visio racional do mundo. (..) (BOAS, 1927: XIILXIV) Contudo, este dualismo ~ entre o objetivo € 0 subjetivo — pensistiria na maioria dos estudos antropolégicos da arte, sejam eles anteriores ou posteriores a Franz Boas. Uma prova dso, & alirmagio, em 1991, de que “sio dois os modos de abordar a definigio da arte (..) Um tem que ver com a estética, 0 outro, trata a arte enquanto comunicagao” (LAYTON, 1991: 13). Contudo, hoje percebemos que ‘na maioria dos casos ambas as definigdes so igualmente aplicaveis, (idem: 14) Mesmo assim, parece persistir uma diferenga radical ~ de pénero e no de grau ~ entre a forma € o significado. O primeiro diz Tespeito & técnica e a obra, enquanto o segundo refere-se & funcio do objeto na manutengio da ordem social. Algumas das “ilustres excegbes 20 (...) slo as reflexdes clissicas a ela dedicadas por Boas" (LAGROU, 2007: 37), Seu livro Ante Primitiva é, talvez, 0 primeiro estudo antropolégico da arte @ considerar a nogio de primitivismo como um, mero nominalismo, rejeitando a orientago evolucionista que eriara 0 hhomem primitive (CE. Méndez: 13). Pois, a arte primitiva, “longe de configurar um objeto teérico bem definido e/ou uma categoria analitica, constitui um termo eminentemente descritivo que delimita, em sentido amplo, a arte estilizada das sociedades sem eserita.” (ALMEIDA, 1998: ¢ modo, Boas nega a “nocio de que a cultura primitiva & quase pois “isto no corresponde ao fato” (BOAS, 1927: XVID; introduzindo a nocio de complexidade naqueles grupos, até entio, cchamados de sociedacdes simples. A obra de Boas em questio, publicada em 1927, procurava articular 0s, entdo denominados, elementos formais suas simbologias em diferentes obras artisticas, através de dois. principios bisicos ¢ nterdependentes. Eram eles: (i) a pressuposicio de que existe uma “uniformidade dos processos mentais (..) em todas as formas culturais da humanidade” (i) a “eonsideracio de qualquer fendmeno cultural ‘como o resultado ce acontecimentos hist6ricos" (BOAS, 1927: XIII), 0 exereicio antropoldgico deve, para Boas, partir destes termos: considerando a estrutura psiquica comum e a diversidude das historias, particulares. A partir da conjungio destes dois principios, é possivel que se visualize uma interagio complexa enire a forma ¢ o significado. E somente quando “no existe uma ‘mente primitiva’, um modo de pensar ‘miigico’ ou 'pré-I6gico™ que “cada individu numa ‘sociedade primitiva’ pode possuir 0 “mesmo modo de pensar, sentir e agit” que os “da nossa propria sociedade” (BOAS.1927: XIV). Eniretanto, a capacidade psiquica universal no signifies igualdade absolut, tenclo em vista que as histérias sio particulates. quando, as diferengas entre os meios antisticos dos grupos é reduzida a dimensio hist6rica, podemos investiga-los “via any, or all, ofthe existing theories of art, in so far as these approaches are useful ones." (GELL, 1998: |) FE quando’ esta nova possibilidade inaugurada, evita-se “essencializagao” e a “guetoizag (CE. Gell: 2). Articulando a dimensio da forma e do significado, a obra de Boas sugere que 0 ponto-chave nas “discussdes em torno da arte de um snupo refere-se a relagio que & estabelecida entre uma obra de arte - ow tum conjunto de obras -e a cultura” (SILVA, 2008: 9). Isto &, dos modos pelos quais, a arte pode representar e/ou referir-se as culturas e suas das artes das sociedacles sem escrita 21 ws. Neste sentido, Boas se propde a investigar exaustivamente os elementos formais de obras produzidas pelas mais diferentes culturas. Reconhecendo a importancia e os limites das técnicas ¢ dos materiais, herdados pelos entes daquela cultura no resultado de suas obras, mas defendendo sua fluidez diacronica, Por outto lado, Boas também conclui “que, para além da influéneia da técnica [da formal devem existir outras causas na origem do estilo individual de cada area,” (BOAS, 1927 : 147) Assim, Boas aapela para a dimensio afetiva, que confere o significado. Contudo, Boas duvida que “soja possfvel fornecer (...) todas as condigdes hist6ricas & psicolégicas” que explicam a origem do estilo ¢ “do desenvolvimento da Jinguagem, da estrutura social, da mitologia ou da religiflo” (Idem: 147), Por isso, ele critica os estudos puramente taxondmicos ou tipo Part um estudante mais cartesian, “utilizando a dicotomia ver falsidade”, a descrenga de Boas no levantamento das causas dtimas & ctiticada, pois 0 racionalismo cartesiano “idemtifica incerteza com falsidade” (LEAF, 1979: 29). Contudo, Boas parece nfo se incomodar com uma parcel de imprecisio. Assim, ele também no define com preciso o que éa arte * Portanto, Boas assume que a percepeio oto juizo estético & tuma capacidade inerente dos seres humanos em qualquer cultura, Ele econhece também que alguns elementos, como o ritmo e a simetr parecem “elementos essenci nas em nenhum, sentido Boas anseia encontrar a “origem de todos os julgamentos estéticos.” (BOAS, 1927: 17) O principal problema do uso da estética & levantado com precisao por Alfred Gell, para quem este conceito purramente ocidental ¢, de certa forma, oposto ao trabalho antropol6gico {LAGROU, 2007: 39); pois ao invés de considetar relagSes social avaliaria apenas a beleza da obra, Neste sentido também € lustre, entre os antropélogos 3 Destacam se este sentido, algunas colacagdes de Boa em Arte Primi: "de wm modo ro peer exttico€ sentido por oda 3 Huon (1) "tds as ative ads fora qe The do um sake etic” (1. En, w que define & fe "and © atameso teenie aig un determina graw de exec nk dos proceso envion a ue gums forma erases 0 imams ny proces us at, ep ato simples ge 3s formas seam has pont ser juladas dr pono de ist prfeig0 formal” (2). Eno, o ue dere a Gre He nutes objets consnaides com késnieas precias ? Edel extbelever com fibjetivilae wnat in visa ene foe aaticas & morass". (2), Fata Sirmacio tannin sstenta 0 questonamento de Layton: ‘por que imepsnenie mio ele TMios}estabelesen ov que & nt ate” (LAYTON, 1991; 31) Mas de certo mo, a mesa alirmagio o abyolve dese devaio gus Fimitar ane interessadoy na arte, o debate promovido pela Universidade de Manchester, em 1993, acerca da “aplicabilidade 4 tural” do conceito de estética, Para Peter Gow, termo deve ser abandonado como parimetro comparativo, pois se limita ao campo histérico cultural ocidental: mais especificamente & obra de Kant, conforme aponta Bourdieu. Joanna Overing, apoiando a recusa povos em que a beleza nfo se deve A “contemplagio da transcendéncia”, mas em virtude de sua funcionatidade no dia-a-dia (Ct Ingold: 249-293). Por outro lado, H. Morphy e J. Coote, defendem a estética argumentando que do termo por Gell, a apreciagiio qualitativa de estimulos sensoriais & ‘uma capacidade humana universal, © que & nnegagdo seria equivalente a exeluir parte da humanidade de im ccondigZo humana. (L:AGROU, 2007: 40) A questo & contornada e, a0 mesmo tempo, resolvida por R. Layton: “demonstra a expresso de un juizo estético nao & demonstrar que a estética recebe a mesma forma em todas as culturas” (LAYTON. 1991: 29), Franz Boas realiza um esforgo semelhante, embora menos profundo, com a “arte do pacifico norte da Amériea do Norte” (em um, capitulo de mesmo nome), arte que ele pode conhecer nio 6 no muscu. E, em alguns momentos, Boas parece compreender a sutileza da questio, por exemplo, ao afirmar que na mesma cultura “os termos pelos quiais os diferentes individuos designam as mesmas formas so (..) variados” (BOAS, 1927; 99-100). Logo, em set texto, 0 argumento de que todos os seres humanos So sensiveis a estimulos sensoriais, visa demonstrar que existem ‘ragos caracterfsticos na arte de todos os tempos ¢ de todos os povos {BOAS, 1927: 24), 9 que deslegitima a hierarquizagio unilineur das formas de arte. Em suma, significa dizer que “os exemplos pré- histéricas so para Boas tio vilidos como os modemos” (LAYTON. 1991: 30) € que 0 objeto apresenta a impressao dos significados nas formas, ainda que nossos conceitos e nossas percepgdes esisticus sejam iniiteis nos exemplos pré-histéricos E entdo, o que acontece com aquilo que ultrapassa as fronteiras dimensao estética como capacidade universal? La encontra-se a hist6ria e os agentes por trs da arte, ow nos temos de Boas, a dimensio afetiva, Entretanto, como jai dissemos, abordar as obras artisticas usando apenas um destes caminhos, leva-nos necessariamente a reduzir 0 estudo antropolégico da arte. Se partimos da estética, emxerg amos ape 23

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