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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

FACULDADE DE BIBLIOTECONOMIA E COMUNICAÇÃO


DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO

O NARRADOR GONZO
uma análise narratológica da cobertura de Hunter S. Thompson
das eleições presidenciais norte-americanas de 1972

Alexandre Francisco Lucchese

Trabalho de conclusão de curso apresentado


ao departamento de Comunicação da
FABICO, UFRGS, como requisito parcial
para obtenção do título de bacharel em
Comunicação Social – Jornalismo

Orientadora: Prof.a Dra. Cida Golin

Porto Alegre
2009
ALEXANDRE FRANCISCO LUCCHESE

O narrador gonzo: uma análise narratológica


da cobertura de Hunter S. Thompson das eleições
presidenciais norte-americanas de 1972

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao departamento de Comunicação


da FABICO, UFRGS, como requisito parcial para obtenção do título de bacharel
em Comunicação Social – Jornalismo

__________________________________________________________________
Prof.a Dra. Cida Golin (Orientadora) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul

__________________________________________________________________
Prof.ª Clarice Gontarski Esperança – Universidade Federal do Rio Grande do Sul

__________________________________________________________________
Prof. Wladymir Netto Ungaretti – Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Porto Alegre
2009
À Thais Brandão dedico este gesto.

Agradeço à orientadora Cida Golin,


pela sabedoria, confiança, boa vontade
e infinita paciência.
Não me lembro das coisas que uma vez eu li
Alguns amigos, mas eles estão na cidade.
Bebendo neve derretida numa caneca de lata
Contemplar a paisagem por milhas
Através do ar sereno das alturas.
Gary Snyder
Resumo

Este trabalho analisa parte da cobertura das eleições presidenciais norte-americanas de 1972
realizada pelo jornalista gonzo norte-americano Hunter S. Thompson para a revista Rolling
Stone. O objetivo é compreender o que caracteriza a singularidade do narrador do jornalismo
gonzo. A partir de pesquisa bibliográfica, levantei o contexto cultural e histórico no qual a
Rolling Stone nasceu e obteve rápido sucesso editorial. Da mesma forma, a bibliografia serviu
para investigar como Thompson se torna um conhecido jornalista e representante da
contracultura. A metodologia de análise, aplicada ao corpus, foi baseada nos pressupostos da
Narratologia trabalhados por Tzvetan Todorov, Vitor Manuel de Aguiar e Silva, Luiz
Gonzaga Motta, entre outros. Percebi que Hunter S. Thompson funde de maneira radical as
narrativas da campanha eleitoral e de sua própria saga como repórter oriundo da contracultura
que interage no meio político, formal e bem comportado. Dessa forma, o narrador gonzo se
singulariza ao não dissociar sua condição de sujeito histórico dos processos culturais, sociais
ou políticos para os quais é pautado.

Palavras chave: Hunter S. Thompson – Jornalismo Gonzo – Narrador Gonzo – Narratologia


Abstract

This study examines part of the coverage of the U.S. 1972 presidential election process held
by the north-american journalist Hunter S. Thompson to the Rolling Stone magazine. It aims
to understand what characterizes the uniqueness of the narrator of gonzo journalism. From
literature source, I raised the cultural and historical context in which the Rolling Stone was
born and had achieved rapid editorial success. Similarly, the literature is used to investigate
how Thompson rises as a renowned journalist and a representative of the counterculture. The
methodology of analysis, applied to the corpus, was based on assumptions of Narratology
worked by Tzvetan Todorov, Vitor Manuel de Aguiar e Silva, Luiz Gonzaga Motta, among
others. I realized that Hunter S. Thompson mix in radical a way the narrative of the election
campaign with his own saga as a reporter come from the counterculture that interacts in the
political, formal and well behaved. Thus, the gonzo narrator build his uniqueness when he do
not decouple his own condition as a historical person of the proceedings cultural, social or
political for which he is designated to cover as journalist.

Palavras chave: Hunter S. Thompson – Gonzo Journalism – Gonzo Narrator – Narratology


Sumário
1 Introdução.............................................................................................................................................................................................................................................8
2 Contextualização......................................................................................................................................................................................................................11
2.1 – Contracultura.................................................................................................................................................................................................................12
2.2 – Revolução cultural..................................................................................................................................................................................................14
2.3 – A revista Rolling Stone.....................................................................................................................................................................................16
2.4 – Hunter S. Thompson.............................................................................................................................................................................................19
2.5 – As eleições de 1972................................................................................................................................................................................................24
3 Jornalismo Gonzo....................................................................................................................................................................................................................28
3.1 – O início…………...................................................................................................................................................................................................................28
3.2 – Definição……………………..............................................................................................................................................................................................30
3.3 – Características................................................................................................................................................................................................................33
4 O narrador nos estudos narratológicos.......................................................................................................................................................37
4.1 – A Narratologia...............................................................................................................................................................................................................37
4.2 – Narrador e leitor..........................................................................................................................................................................................................39
4.3 – Focalizações.....................................................................................................................................................................................................................41
5 Análise narratológica do corpus..........................................................................................................................................................................45
5.1 – Fear and loathing in Washington: is this trip necessary?.....................................................................................46
5.2 – Fear and loathing in Washington: the million pound shithammer.............................................................51
5.3 – Fear and loathing: the view from Key Biscayne.................................................................................................................57
5.4 – Fear and loathing: late news from bleak house………………………………...................................................................62
5.5 – Fear and loathing: in the eye of the hurricane.....................................................................................................................66
5.6 – Fear and loathing: the Fat City blues..............................................................................................................................................71
5.7 – Don’t ask for whom the bell tolls...........................................................................................................................................................74
5.8 – Considerações gerais.............................................................................................................................................................................................77
6 Considerações finais............................................................................................................................................................................................................84
Referências..............................................................................................................................................................................................................................................87
8

1 Introdução

A figura de Hunter S. Thompson parece exercer um fascínio constante – senão cada


vez maior – entre jornalistas e leitores. Seus títulos estão ganhando mais edições em
português, assim como biografias e filmes a respeito da vida e da obra do repórter que se
suicidou em 2005, aos 67 anos, despontam no mercado internacional. No entanto, o
jornalismo gonzo, continua sendo uma esfinge de humor tão sarcástico e afiado quanto de seu
criador, pronta para zombar daqueles que toparem o desafio de reduzi-la a uma definição
Também fiquei fascinado pela esfinge. Em minhas leituras de sua obra, comecei a
perceber que o repórter norte-americano estava fazendo do jornalismo um canal para cantar a
si mesmo, tal como seu compatriota Walt Whitman fazia com a poesia no início do século
XX. O texto de Thompson parecia desnudar um sujeito histórico, assim como os poemas de
seu amigo Allen Ginsberg, o poeta que dizia que fazer poesia é ficar nu diante das palavras.
Obter êxito em uma empreitada poética como essa através de objetos tradicionalmente
fugazes como matérias de revistas e jornais me parecia algo que não deveria ser
academicamente ignorado. Tentei então transformar este trabalho em um espaço que pudesse,
mesmo que minimamente, fazer a discussão a respeito deste fenômeno avançar.
Sendo assim, o tema desta monografia é o narrador gonzo construído por Hunter S.
Thompson na cobertura que o repórter fez para a revista Rolling Stone da eleição presidencial
norte-americana de 1972. Procurei aqui responder à pergunta: o que singulariza o narrador
gonzo criado por Hunter S. Thompson? Em torno disso, algumas outras questões foram
importantes para problematizar o tema. De que maneira podemos perceber o ideário do sujeito
histórico que foi Thompson em suas matérias? Como, apesar de tão pessoal e às vezes
fantasiosa, a escrita do jornalista gonzo não perde seu caráter jornalístico? De que modo a
narração do cotidiano de repórter contribui para contar a história das eleições que ele está
cobrindo?
O objetivo geral deste trabalho é analisar, com base nos preceitos da Narratologia,
parte da cobertura da eleição norte-americana de 1972 realizada por Thompson, objetivando
compreender como se caracteriza a singularidade do narrador gonzo. Para isso, como
objetivos específicos, identificarei as focalizações utilizadas por este narrador, bem como suas
estratégias de objetivação e subjetivação, e a figura do leitor que emerge de seu texto, além de
reconhecer tanto no narrador quanto no leitor construído marcas do contexto histórico e da
contracultura.
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Minha metodologia fundamentou-se na pesquisa bibliográfica e na análise


narratológica. A pesquisa bibliográfica revelou-se necessária para elucidar o momento
histórico da produção das matérias analisadas e também para mapear os estudos feitos a
respeito do tema e da Narratologia. A análise narratológica leva em consideração categorias
trabalhadas Todorov (1976), compiladas por Vitor Manuel de Aguiar e Silva (1992) e
aplicadas no jornalismo por Luiz Gonzaga Motta (2007).
O corpus de análise constitui-se de sete das 14 matérias produzidas por Hunter S.
Thompson para a Rolling Stone de janeiro a novembro de 1972. Tal corte se fez necessário
para uma análise mais pormenorizada de cada texto dentro do tempo disponível para a
execução de uma monografia. A escolha das matérias privilegiou aquelas que pudessem ser
mais ilustrativas em relação às singularidades do narrador gonzo, e que também oferecessem
ao leitor um encadeamento narrativo do início ao fim da cobertura.
O primeiro capítulo deste trabalho trata do contexto que fez a revista Rolling Stone
investir em uma longa cobertura eleitoral, e o envolvimento de Hunter S. Thompson no
movimento da contracultura. Para isso, parti dos estudos de Eric Hobsbawm (1995) a respeito
da revolução cultural e de Theodore Roszak (1972) a respeito da contracultura, observando
em seguida como a Rolling Stone se insere neste contexto. Em seguida, com base em textos
do próprio jornalista e de outros biógrafos como Carroll (1993), faço uma breve reconstrução
da vida de Thompson, privilegiando episódios de sua vida que demonstram seu envolvimento
como um agente da contracultura. O capítulo finaliza com um breve levantamento das
principais forças envolvidas nas eleições norte-americanas de 1972, a partir dos trabalhos de
Paulo Francis (1972) e Robert Dallek (2008).
O segundo capítulo trata daqueles que tentaram de alguma forma compreender a
esfinge. Tentativas de definir e levantar as características do jornalismo gonzo são discutidas
e colocadas em confronto. Nesta sistematização, foram fundamentais os trabalhos de André
Czarnobai (2003), Christine Othitis (1994), Martin Hirst (2004), entre outros.
Em seguida, trato da Narratologia e de como esta aborda a questão do narrador em
seus estudos. Todorov (1976) e Aguiar e Silva (1992) nos fornecerão subsídios importantes
para compreender os estudos narratológicos, enquanto Motta (2007) fornecerá chaves
importantes para relacionar este campo de estudo ao jornalismo.
Por fim, o quarto capítulo é dedicado à análise do corpus. Em um primeiro momento
exponho ao leitor a metodologia utilizado para a análise do material, e em seguida apresento
os resultados do trabalho analítico de cada uma das sete matérias. O capítulo se encerra com
10

uma síntese dos principais ocorrências observadas durante toda a cobertura, contribuindo para
uma visão global do narrador ao longo dos artigos.
Espero que, dentro dos limites de uma monografia, este trabalho auxilie interessados
em analisar coberturas e matérias a partir dos preceitos da Narratologia; e, sobretudo, que
estas páginas contribuam para que futuros interessados não se sintam tão solitários ao
pesquisar jornalismo gonzo.
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2 Contextualização

Desde a primeira aparição de Hunter S. Thompson na revista Rolling Stone, um


aspecto da personalidade do autor ficou bastante claro: assim como estava disposto a contar
histórias, Thompson buscava com a mesma intensidade criá-las. E que aqui se entenda “criar”
como um exercício tanto imaginativo quanto prático e cotidiano. O “encrenqueiro
profissional”, assim definido por um obituário televisivo (GONZO, 2008), não buscou limitar
sua obra a uma condição de testemunho, e sim fez dela um reflexo e um instrumento de sua
luta por transformações sociais, políticas e culturais.
Para abranger de maneira adequada essa radical fusão de vida e obra que transforma a
personalidade de Hunter S. Thompson em um amálgama indissociável do narrador de seus
textos, é preciso aqui estudar a serviço de que idéias e crenças ele estava dedicando seu
esforço, e dentro de que contexto as estava fazendo reverberar. Tal tarefa se revela bastante
desajeitada, já que não existiam partidos ou instituições formais que pudessem representar o
anseio transformador de uma geração que já não confiava mais em partidos e instituições
formais. No entanto, como veremos a seguir, os estudos sobre a “contracultura” e a
“revolução cultural” dos anos 1960 e 1970 nos dão pistas de onde está a coesão do
movimento no qual o Thompson das matérias de 1972 está inserido.
A partir disso, também será possível compreender melhor as condições que permitiram
o nascimento e rápido sucesso editorial da revista que acolheu o jornalista gonzo depois de 12
anos desempregado (THOMPSON, 06 jan.1972). O breve histórico da Rolling Stone aqui
apresentado busca também dimensionar a importância que a cobertura do jornalista gonzo
representou para a publicação.
Como qualquer trabalho que se dispõe a analisar a produção profundamente pessoal de
Hunter S. Thompson, também aqui precisarei adentrar em sua história pessoal e profissional.
Farei isto com atenção especial às ligações e distinções de sua trajetória pessoal em relação
aos fenômenos supracitados – contracultura, revolução cultural e revista Rolling Stone. Tal
opção de abordagem se faz necessária na medida em que Thompson e suas convicções a
respeito deste contexto serão marcas profundamente presentes na série de matérias que este
trabalho pretende analisar.
Este capítulo se encerra com um panorama dos personagens e fatos que marcaram a
história nas eleições norte-americanas de 1972. É trafegando entre estas pessoas e
acontecimentos que o criador do jornalismo gonzo colocará à prova não apenas suas
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convicções pessoais e políticas, mas a de boa parte de uma geração que, assustada e delirante,
acreditou poder transformar um país a partir de suas estruturas legais.

2.1 CONTRACULTURA

As palestras dos Panteras Negras na Universidade de Berkeley, a lisérgica comunidade de


amor livre de Ken Kesey, os Hell’s Angels como uma agremiação de motociclistas
criminosos, o movimento pacifista, Allen Ginsberg consumindo alucinógenos e ensinando o
zen em festas adolescentes, Hunter S. Thompson se candidatando a xerife em Aspen: apesar
destes e tantos outros eventos intercambiarem idéias e personagens, não é possível rastrear
vínculo formal algum que pudesse afirmar tacitamente que estivessem envolvidos em um
movimento maior e mais ou menos coeso.
De qualquer maneira, muitas destas manifestações políticas, sociais e artísticas passaram a
figurar nos grandes meios de comunicação ligadas ao termo “contracultura”. O que a
imprensa intuiu era que o uso de cabelos compridos e vestuário extravagante, conectado ao
misticismo, ao rock’n’roll e ao uso de drogas, estava virando um fenômeno e precisava de um
rótulo (PEREIRA, 1983).
No entanto, por baixo destes sinais espalhafatosamente visíveis do fenômeno, com olhos
mais sutis era possível observar que ali também havia “novas maneira de pensar, modos
diferentes de encarar e se relacionar com o mundo e com as pessoas. Enfim, um outro
universo de significados e valores, com suas regras próprias.” (PEREIRA, 1983, p.08).
Uma das primeiras tentativas de compreender este fenômeno como movimento foi do
historiador Theodore Roszak. Em “A Contracultura”, livro lançado originalmente em 1968,
Roszak interpreta os fatos não apenas como um movimento, mas também como um zeitgeist –
termo que em alemão quer dizer “espírito de uma época”:

Seria muito conveniente, é claro que estes Zeitgeits perversamente espectrais


fossem movimentos que realizassem manifestações com faixas e cartazes,
possuíssem uma sede, uma junta executiva e publicassem manifestos oficiais.
Entretanto, é evidente que isso não acontece. Nesse caso o observador vê-se
forçado a examiná-los de uma forma um tanto desajeitada, permitindo que pela
peneira das generalizações passe grande quantidade de exceções, mas tendo
sempre a esperança de que da ganga sobre algo de sólido e valioso (ROSZAK,
1972, p. 07).

Roszak encara este desafio e de sua ganga extrai finalmente uma definição de
contracultura: “uma cultura tão radicalmente dissociada dos pressupostos básicos de nossa
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sociedade que muitas pessoas nem sequer a consideram uma cultura, e sim uma invasão
bárbara de aspecto alarmante.” O historiador vê na juventude – na verdade numa minoria de
jovens, em grande parte universitários brancos norte-americanos – a vanguarda em termos de
revolução social.
Esta juventude, segundo Roszak (1972, p.59), carregaria o potencial de “refazer a
cultura letal de seus antecedentes”. Por “cultura letal” é possível entender os pilares da
tecnocracia, uma sociedade baseada na “busca implacável de eficiência, de ordem, de controle
racional cada vez mais amplo” (ROSZAK, 1972, p.33).
De fato, uma das características mais constantes da contracultura era a rejeição do
predomínio da racionalidade científica. A busca era, então, pelo desenvolvimento de novas
formas de percepção sensoriais. Para isso, vinha a calhar o uso de drogas alucinógenas e a
filosofia zen-budista, tão propagada por Alan Watts e Ginsberg.
Carlos Alberto Pereira (1983) coloca como dois marcos principais desta nova cultura o
poema “Uivo”, publicado em 1956 por Allen Ginsberg, e The White Negro: superficial
reflections about the hipsters, de Norman Mailer, publicado em 1958. Os primeiros versos de
“Uivo” – “Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome,
histéricos, nus” (GINSBERG, 2006, p.25) – “exprimem toda a dramaticidade da angustiante
experiência desta geração, cuja busca passava freqüentemente pelos caminhos dolorosos da
loucura e dos hospitais psiquiátricos” (PEREIRA, 1983, p. 34).
Enquanto isso, o White Negro de Norman Mailer tratava da figura do hispster, que
mais tarde será chamado de hippie. Os hipsters eram, em sua maioria, filhos de uma classe
média branca e conservadora que abdicavam dos padrões de ascensão e sucesso de sua
sociedade. Dessa forma, estes rebeldes abandonavam uma vida que lhes garantiria conforto
material e prestígio social e optavam pela marginalização, o que chamavam de “cair fora do
sistema”.
Segundo Roszak (1972), os hippies seriam os grandes representantes da “rebeldia
radical – aquilo que Marcuse chamou de Grande Recusa – de uma forma que satisfaz a
necessidade de alegria irrestrita dos jovens” (p.50). Ou seja, ao mesmo tempo em que
recusavam a cultura imposta, conservavam certo “senso infantil de encantamento e
brincadeira” (ROSZAK, 1972, p.50), representado por suas roupas coloridas e cheias de
guizos, por seu artesanato povoado de uma mitologia de simpáticos gnomos, pela música
vibrante, etc.
Discordemos ou não da tese de Roszak de que a contracultura seria a vanguarda em
termos de transformação política e social – partindo da transformação cultural – que deveria
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deter a tecnocracia vigente, seu estudo reverberado por outros autores nos dá condições de
interpretar novos fenômenos e manifestações culturais das décadas de 1960 e 1970 de forma
integrada. Num esforço de caracterizar rapidamente um movimento tão pouco formalizado,
poderíamos elencar três traços comuns em suas manifestações: negação tácita de valores
tradicionalmente impostos pela sociedade, valorização e busca de novas formas de percepção
sensorial – através do misticismo e do uso de drogas, e valorização do encantamento mágico
infantil.
Enquanto alguns defendem que a contracultura foi um movimento isolado e restrito a
um espaço de tempo, outros defendem que ela está e sempre continuará viva (PEREIRA,
1983). Mas o fato é que, independente de ter almejado ou ainda estar almejando seus
objetivos, a nova cultura que fervilhava nos anos 1960 conseguia alcançar dimensões
planetárias e teve conseqüências que marcaram a história, uma delas foi catapultar uma
verdadeira revolução cultural (HOBSBAWM, 1995), como veremos a seguir.

2.2 REVOLUÇÃO CULTURAL

Segundo Eric Hobsbawm, em seu “A Era dos Extremos” (1995), dois fatores parecem
ter influenciado de maneira decisiva no processo que desencadeia a popularização de uma
nova cultura a ponto de esta operar uma revolução cultural. O primeiro foi o fato da nova
geração de adolescentes conseguir dominar o rápido avanço tecnológico do pós-guerra mais
do que quaisquer outras gerações conseguiram, seguido pela capitalização da nova juventude,
transformando-a em uma massa com poder de compra incomparavelmente maior que as
anteriores.
Em escritórios da IBM ou Hitachi dos anos 1970, independente da idade das chefias,
novos equipamentos e softwares eram desenvolvidos por pessoas com até 30 anos
(HOBSBAWM, p.320). Além disso, a confiança depositada no conhecimento técnico dos
jovens também se reverteu a outras áreas do conhecimento, conforme observou o jornalista
Paulo Francis ainda no início da década de 1970, quando morava nos Estados Unidos:

Os teach-ins, seminários polêmicos e esclarecedores nas universidades, atraíam


milhares de moços que puderam compreender as atrocidades dos EUA da
Indochina. Em pouco tempo, um número crescente de professores e intelectuais
aderiu aos alunos e pupilos, o que é provavelmente inédito na história: a nova
geração guiando intelectualmente a velha (FRANCIS, 1972, P.33).
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A mudança no convívio entre gerações, que Francis sensivelmente percebe no calor


dos acontecimentos, não estava restrita apenas a grupos de universitários norte-americanos. A
cultura juvenil que explode nos anos 1960 ganha popularidade, paradoxalmente, através de
um mecanismo que muitos de seus representantes tantas vezes lutaram contra: o consumo.
Com o aparecimento do rock’n’roll no mercado fonográfico, em apenas quatro anos as
vendas de discos mais do que dobraram. Enquanto em 1954 o movimento foi de 277 milhões
de dólares, em 1959 as cifras atingiam os 600 milhões (HOBSBAWM apud HOBSBAWM,
1995). “Cada membro do grupo etário entre cinco e dezenove anos, nos EUA, gastava pelo
menos cinco vezes mais em discos em 1970 do que em 1955”, sintetiza Hosbsbawm (1995).
Dessa forma, ao mesmo tempo em que enriquecia o empresariado atento a uma geração de
adolescentes de poder aquisitivo muito maior que de seus antecessores, a nova cultura jovem
era difundida e popularizada.
É claro que esta difusão variava de acordo com o tamanho do mercado, e de país para
país. Hobsbawm (1995) observa que as vendas em alguns países desenvolvidos eram até dez
vezes maiores do que em países em rápido desenvolvimento. De qualquer forma, essa
desigualdade não impediu que o rock’n’roll e o blue jeans se popularizassem ao redor do
mundo, inclusive em alguns lugares onde não eram oficialmente tolerados, como na extinta
URSS a partir dos anos 1960. É assim que, pela primeira vez na história, surge uma juventude
consciente de si mesma e uma “cultura jovem global”, partilhando “símbolos materiais e
culturais de identidade” (HOBSBAWN, 1995, p.321).
A autoconsciência e afirmação da juventude não apenas como uma transitoriedade e
sim como um estágio ideal foi, ainda segundo Hobsbawm, o que catapultou uma mudança
cultural ainda maior e mais perene:

A cultura jovem tornou-se a matriz da revolução cultural no sentido mais


amplo de uma revolução nos modos e costumes, nos meios de gozar o lazer e
nas artes comercias, que formavam cada vez mais a atmosfera respirada por
homens e mulheres urbanos (HOBSBAWM, 1995, p.323).

Esta revolução teria duas características principais: seu caráter antinômico e sua
valorização do estilo informal. A informalidade servia tanto para negar modos de conduta e
expressão valorizados pelos mais velhos – agora menosprezados – como também representava
a busca de maneiras próprias e autênticas dos jovens lidarem com o mundo. Ao mesmo
tempo, a cultura que florescia era de profunda valorização da liberdade individual:
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Todo mundo tinha de ‘estar na sua’, com o mínimo de restrição externa,


embora na prática a pressão dos pares e a moda impusessem tanta
uniformidade quanto antes, pelo menos dentro dos grupos de pares e
subculturas (HOBSBAWM, 1995, p. 333).

Não é à toa que Hobsbawm termina sua reflexão sobre a revolução cultural afirmando
que esta pode ser “entendida como o triunfo do indivíduo sobre a sociedade” (HOBSBAWM,
1995, p.343). Além disso, a revolução cultural dos anos 1960 e 1970 pode ser resumida como
um processo que, a partir de uma nova cultura juvenil rápida e imensamente difundida,
transformou as maneiras do homem ocidental pensar suas condutas e relacionar-se com seus
semelhantes. Na base propulsora destas mudanças, observamos como ideais de vida o
individualismo e a juventude, esta agora transformada no “estágio final do pleno
desenvolvimento humano” (HOBSBAWM, 1995, p.319).

2.3 A REVISTA ROLLING STONE

Como podemos observar, esta era uma época de rápidas transformações. No entanto,
parece que a imprensa não conseguia abordar o tema de maneira profunda, como alertava
Roszak à época:

Os chamados beatniks e hippies, sejam o que forem, nada têm a ver com aquilo
que os transformaram o Time, Esquire, Cheeta, a televisão, as comédias da
Broadway e Hollywood. A imprensa resolveu que rebelião “vende” bem. Mas o
máximo que consegue fazer é isolar as aberrações mais insólitas e,
conseqüentemente, atrair para o movimento muitos poseurs extrovertidos
(ROSZAK, 1972, p. 47).

É dessa forma que o caminho estava aberto para uma publicação que tratasse a nova
cultura de uma forma diferenciada, a partir das pessoas que compunham esse quadro e
direcionada a elas mesmas. Foi ocupando esse espaço, e encontrando uma juventude agora
capitalizada, que Rolling Stone lança as bases para seu sucesso editorial e comercial. É isso
que podemos observar na descrição que Robert Draper (1990) faz dos primeiros leitores da
Rolling Stone em seu livro que conta a história da publicação:

Os ativistas políticos os nomeavam de Nova Esquerda. Os jornalistas do


“sistema” os rotulavam como ‘hippies’. Richard Nixon os chavamava de
“vagabundos”. [O editor da revista Rolling Stone] Jann Wenner, enquanto isso,
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acreditava que o único traço comum deste vasto porém amorfo eleitorado era o
amor incondicional à música1 (DRAPER, 1990, p. 06).

Numa esquina de espaço e tempo bem peculiares – a cidade californiana de São


Francisco de 1967 – nasce a revista Rolling Stone, como uma Cahiers du Cinema sem
Nouvelle Vague, mas que encontra na música popular o denominador comum das novas
manifestações culturais que estavam acontecendo. Com essa fórmula, a publicação de um
jovem universitário de apenas 21 anos feita com $7500 emprestados se transforma num
patrimônio de $250 milhões em apenas duas décadas de história (DRAPER, 1990).
Jann Wenner, editor-chefe e fundador, tinha em mente uma revista através da qual
pudesse conhecer seus ídolos, pessoas como Bob Dylan e John Lennon. Empreendedor e com
boas relações tanto nos mais altos escalões da sociedade como entre os marginalizados que
caíram fora do “sistema”, Wenner consegue montar uma equipe disposta a trabalhar
incansavelmente, ganhando muito pouco ou até mesmo não recebendo nada, enquanto ele
conseguia captar recursos de anunciantes, possibilitando a tiragem quinzenal da revista.
Depois de dois anos, a empreitada de Wenner já estava menos frágil e passava a dar
lucro. No entanto, sua equipe começou a encarar com restrições o modo do editor lidar com a
publicação. Wenner não se fazia mais presente na redação, e, apesar dos lucros, ainda não
recompensava seus colaboradores de uma forma que eles achassem justa. Além disso, muitos
consideravam que a revista daria um passo a frente se diversificasse suas temáticas. Do outro
lado, o editor era irredutível: para ele, a Rolling Stone deveria ser uma revista sobre
rock’n’roll (DRAPER, 1990).
Em 1970, tal conflito torna a convivência insustentável. O estopim acontece quando o
então presidente Richard Nixon resolve enviar oito mil soldados para lutar no Camboja, sendo
que apenas duas semanas antes ele prometera retirar 150 mil homens do Vietnã. Com isso, os
protestos pacifistas proliferaram pelos Estados Unidos, assim como se intensificou a dureza
da repressão policial: começam a aparecer notícias de manifestantes mortos. A equipe da
Rolling Stone, aproveitando uma viagem de Wenner a Chicago, rebela-se e fez uma edição às
escondidas com uma profunda investigação a respeito dos jovens mortos e sobre política de
Nixon. Tal acontecimento abalou a revista: já em 1971 grande parte da equipe havia sido
demitida ou pedido demissão e não restava editor algum da época de sua fundação (VAZ,
2008).
1
Tradução livre do original “Political activists pronounced them the New Left. Establishment journalists labeled
them ‘hippies’. Richard Nixon called them ‘bums’. [The Rolling Stone magazine’s editor] Jann Wenner, in the
meantime, believed that the only commom trait among this vast but amorphous constituency was an abiding love
for music”.
18

A Rolling Stone fica então mais uma vez fragilizada. A crise dentro da redação acaba
repercutindo também nas finanças. Uma das saídas encontradas por Jann Wenner é convidar
nomes de prestígio para escrever em suas páginas. E assim Hunter S. Thompson – já
conhecido por seu estilo gonzo em outras publicações – entra para a equipe da revista no final
de 1971. Antes disso, como veremos a seguir, Thompson já havia ali publicado outras quatro
significativas vezes.
Ironicamente, no documentário Gonzo: the life and the work of dr. Hunter S.
Thompson (2008), do diretor Alex Gibney, Wenner aparece explicando que a contratação do
jornalista para cobrir a eleição presidencial norte-americana de 1972 se dera porque a Rolling
Stone sempre foi uma revista que buscou cobrir muito mais coisas do que apenas música, e
que aquele parecia ser o momento de dar maior atenção à política. Pode ser que Wenner tenha
dado o braço a torcer depois de ter perdido quase uma redação inteira em alguns meses por
causa do assunto, mas esta não parece ter sido uma resolução fácil de tomar.
Em 1971, houve um encontro entre todos os colaboradores da publicação no Esalen
Institute, Califórnia, para discutir a possibilidade de realizar uma cobertura da próxima
eleição presidencial (WHITMER apud DUNN, 2007). Além da edição feita à revelia de
Wenner em 1970, a política muitas vezes tangenciava pautas relacionadas a temas como
racismo e legislação sobre drogas. O encontro no Esalen Institute teve uma importância
simbólica profunda: defender a cobertura da campanha era defender que a política não fosse
mais tratada como um assunto marginal pela revista.
Partiram então para a cobertura Hunter S. Thompson e o jovem repórter Timothy
Crouse. A pauta de Timothy Crouse era apurar como os outros jornalistas estavam cobrindo a
eleição. Essa “metacobertura” revelou, entre outras coisas, como os repórteres burocratizaram
seu trabalho, transformando suas rotinas mais em uma constante vigília para não deixar de
publicar o que os outros estavam publicando do que um exercício de buscar notícias.
O espaço para as matérias de Crouse foi mais exíguo do que o oferecido para
Thompson, em grande parte por Crouse ter se desentendido com Wenner: o editor queria que
o jornalista gonzo fosse a grande estrela de sua cobertura, não um jovem repórter. Mesmo
assim, o material produzidas pelo novato serviu de base para o livro The Boys on the Bus,
lançado em 1973, referência usada até os dias de hoje para discutir o gênero político nas
escolas de jornalismo norte-americanas (DUNN, 2007).
As matérias de Hunter S. Thompson também acabaram transformadas em livro. Fear
and Loathing: on the Campaign Trail ’72 também foi lançado em 1973, e teve mais
exemplares vendidos do que o título que é considerado por muitos sua obra-prima, Fear and
19

Loathing in Las Vegas (DUNN, 2007). Além disso, o original trabalho de Hunter solidificou
sua carreira como repórter, já que seus textos repercutiram muito além da comunidade leitora
da Rolling Stone.
As coberturas de ambos os repórteres “elevaram a revista a um novo grau de
visibilidade” (DUNN, 2007, p.32). As próprias matérias de Thompson demonstram esse
movimento: de início, o narrador se queixa do fato de que poucos envolvidos na campanha
conhecem a revista onde ele trabalha; apenas dois meses depois, seu nome e o da Rolling
Stone já é citado no jornal Miami Herald, ligado a uma confusão onde um manifestante teria
entrado no trem de um dos pré-candidatos à presidência usando as credenciais de Thompson –
citada na matéria de Thompson de abril de 1972; e hoje vemos no documentário de Alex
Gibney (2008) personalidades envolvidas nos dois lados então em campanha afirmando o
quanto a presença destes repórteres foi importante para oxigenar o trabalho que vinha sendo
feito pela imprensa tradicional.
Além disso, como vimos acima, as matérias de Crouse são usadas para estimular a
reflexão de estudantes de jornalismo a respeito de suas práticas profissionais, principalmente
dentro dos Estados Unidos. Da mesma forma, os textos de Thompson são valorizados dentro
das classes de jornalismo como uma possibilidade de exercer um jornalismo narrativo e
literário dentro do tema político e com as limitações de tempo da produção de uma revista
(DUNN, 2007).

2.4 HUNTER S. THOMPSON

Hunter Stockton Thompson nasce em Louisville, no estado norte-americano do


Kentucky, em 18 de julho de 1939 – algumas biografias discordam desta data, alegando que
1937 seria o ano correto (CZARNOBAI, 2003). O pequeno Hunter cresce em um lar de classe
média-baixa, onde seus pais – ambos alcoolistas – tentam equilibrar o curto orçamento para
criar três filhos.
“Hunter é muito Kentucky. Kentucky é um lugar muito violento”2, resume Walter
Kaegi, amigo de infância de Thompson, em entrevista a Jean E. Carroll para a biografia
Hunter: strange and savage life of Hunter S. Thompson (1993, p.24). Segundo Christine

2
Tradução livre do original “Hunter is very Kentucky. Kentucky ia a very violent place”.
20

Othitis (1994), dedicada pesquisadora do jornalismo gonzo, o estado norte-americano é


marcado por uma cultura de extermínio de índios e conexão com grupos de ódio.
O ambiente então parece propício para o pequeno e hiperativo Hunter deixar aflorar
toda sua agressividade. Ele e seus amigos pareciam não perder oportunidade alguma de
desenvolver suas habilidades em arrumar confusão na escola, atirar pedras e disparar com
espingardas de pressão, deixando suas mães escandalizadas. Aos quinze anos, o futuro
jornalista perde seu pai, vitimado por uma embolia cerebral. Sua mãe, então, intensifica o
consumo de álcool, e Hunter também começa a beber. Relatos desta época descrevem alguns
atos de violência de Thompson contra sua mãe, bem como acessos de fúria que terminavam
com a destruição de objeto da casa, como o telefone da família (OTHITIS, 1994).
O primeiro confronto com autoridades coercitivas da sociedade também se deu
bastante cedo. Com nove anos, Hunter recebeu sua primeira visita do FBI. Junto com seus
amigos, ele arrancou uma pesada caixa de correio feita de ferro e, com o uso de cordas e
roldanas, deixou-a suspensa no ar para derrubá-la em frente ao ônibus que os levava para o
colégio quando este por ali passasse. O engenho deu certo e a colisão foi estrondosa
(THOMPSON, 2007).
Os agentes do FBI que bateram na porta da família Thompson adotaram uma
estratégia que se baseava em mentiras para que Hunter confessasse seu ato. Eles diziam que
todos os participantes da empreitada já haviam confessado, e também que eles haviam
delatado Hunter. Mas o jovem não acreditou e negou qualquer envolvimento. Por fim, seu pai
percebeu a estratégia mentirosa dos agentes e defendeu o filho. O FBI teve de ir embora sem a
confissão e jamais voltou para falar do assunto. Esta parece ter sido uma vitória importante
para o jornalista, como ele define: “No caso da caixa de correio derrubada, por exemplo,
aprendi que o FBI não era invencível, e essa é uma lição muito importante para aprender aos
noves anos de idade nos Estados Unidos” (THOMPSON, 2007, p.35).
Mas o caso que a princípio pode parecer um simples ato de delinqüência juvenil
gratuita esconde uma motivação considerada justa pelos meninos que o praticaram. Segundo
Thompson, a destruição da frente do ônibus era uma vingança contra o novo motorista. A
vítima parecia se deleitar ao ver as crianças correrem atrasadas em direção ao ponto: ao invés
de esperá-las por alguns segundos, como fazia o antigo motorista, fechava a porta e as deixava
vendo o veículo partir. “Toda a garotada do bairro concordava que o porco do novo motorista
era um sádico que deveria ser punido (...) Víamos mais como um dever do que como uma
travessura. Era um Insulto insolente à honra de todo o bairro”, resumiu ele quase seis décadas
depois (THOMPSON, 2007, p.33).
21

Talvez esta não tenha sido a primeira ação ilegal daquele que futuramente seria
conhecido como um “jornalista fora-da-lei”, mas é um registro precoce de algo que
caracterizará sua vida e, conseqüentemente, sua obra. Hunter afirma que jamais buscou ser
um fora-da-lei, essa condição teria se estabelecido sobre ele para agir de uma maneira que
considerasse justa e que lhe permitisse fazer seu trabalho. Como ele mesmo define: um fora-
da-lei seria alguém que “vive no lado de fora das leis, além das leis, mas não necessariamente
contra elas” (THOMPSON, 2007, p. 96).
E é do lado de fora da lei, mas não necessariamente contra ela, que Thompson
consegue material para escrever o livro que irá consagrá-lo como um dos integrantes do time
do Novo Jornalismo. Hell’s Angels: a strange and terrible saga, de 1966, é fruto de 18 meses
de viagens com um grupo de motociclistas delinqüentes, numa jornada na qual ele não foi um
passivo espectador. Mas até pegar a estrada com os Hell’s Angels, Thompson já havia
percorrido um longo e tortuoso caminho como jornalista.
Pouco antes de completar seus 18 anos, Hunter é condenado a 60 dias de prisão por
um assalto. O juiz que o condena sugere que ele se aliste à Força Aérea como parte da
sentença. Ele aceita e é enviado a base de Eglin, onde logo começa a escrever para o jornal da
instituição. Apesar de não ser admirado por seus superiores em virtude de desobedecer várias
ordens do comando, ele é dispensado com honras de Eglin. Hunter depois passa por várias
cidades trabalhando em pequenos diários, até que aceita um trabalho como correspondente do
National Observer na América Latina. Meses depois, ele é contratado por uma revista de
esportes em Porto Rico, mas se decepciona com o trabalho entediante e volta para os Estados
Unidos, em 1962 (CZARNOBAI, 2003).
Hunter compra seu rancho em Woody Creek, Colorado, que ficará conhecido como
Owl Farm, lugar onde viverá até seu suicídio em 2005, e volta a trabalhar como jornalista
autônomo. Para elaborar uma reportagem publicada em 1965 pelo The Nation, ele começa a
viajar com os Hell’s Angels, o jovem jornalista passou então um ano e meio convivendo com
a gangue de motociclistas. Já com a pretensão de ser um escritor, ele transforma suas
experiências no livro Hell’s Angels: a strange and terrible saga, que rapidamente se torna um
sucesso editorial. Apesar de os lucros da publicação não o deixarem satisfeito, esta deixou
como legado dois aspectos importantes na vida de Hunter: o prestígio como autor, que o torna
um jornalista mais caro e disputado; e uma intensa experiência com as drogas e o álcool, que
caracterizará os seus futuros trabalho e o acompanhará até sua morte.
O livro não esta está dentro do estilo gonzo, que marcará a obra de seu autor, mas já
aponta uma das características que fundamentais do texto de Thompson: a participação como
22

agente das ações por ele relatadas. Thompson não busca o papel de um mero espectador e
testemunha dos fatos, ele está imerso na ação (CZARNOBAI). E, apesar de isto ter lhe
rendido uma boa surra, até hoje sob circunstâncias não muito claras, que o faz encerrar seu
livro perdendo os dentes e maldizendo os seus até então companheiros de viagem, esta
característica de seu texto e de sua forma de trabalhar continuarão o acompanhando.
Segundo o editor Jann Wenner, a entrada de Thompson na Rolling Stone se deu de
maneira bastante ocasional. O jornalista teria escrito uma carta parabenizando o trabalho da
publicação, a qual Wenner então respondeu perguntando o que Thompson estaria fazendo da
vida, pois gostaria de tê-lo em sua publicação. Quando Hunter respondeu que estava
concorrendo a xerife em um pequena cidade norte-americana, Wenner pediu que ele
escrevesse a respeito disso (GONZO, 2008).
É assim que pela primeira vez Hunter S. Thompson publica uma matéria sua na
Rolling Stone. E, abaixo de sua assinatura, não lemos a descrição “jornalista”, e sim
“candidato a xerife”. Intitulada “A Batalha de Aspen”, a matéria publicada em outubro de
1970 com chamada na capa e oito páginas, Hunter relata sua experiência como administrador
da campanha do advogado e corredor de bicicleta Joe Edwards a prefeito de Aspen, e como
esta experiência estava sendo aprofundada em sua própria candidatura a xerife.
Edwards, de apenas 29 anos, perdera a eleição de 1969 por um pequena margem de
votos, o que significou para Hunter que haveria uma possibilidade do freak power se apossar
de cargos públicos. O “poder dos malucos” não era um movimento formalmente organizado,
parece mais ter sido um rótulo bastante genérico que os próprios componentes da campanha
usavam para explicar do que tratava sua plataforma de governo e de onde vinha sua
legitimidade popular (THOMPSON, 2007).
Hunter, se eleito, seria uma espécie de representante da contracultura no poder. As
medidas de sua plataforma previam levantar o asfalto das ruas com macacos hidráulicos para
plantar grama, trocar o nome de Aspen para Fat City – algo como “Cidade Gorda”, em
português – com intuito de que empresários não viessem ali se estabelecer e lucrar com o
nome do local, controlar a venda de drogas para que traficantes não cobrassem preços
abusivos, entre outras. Esta excêntrica plataforma era defendida por um candidato, que à
época usava o cabelo todo raspado, para ironicamente poder referir-se ao seu rival como
“aquele cabeludo”. O clima das entrevistas coletivas de Thompson ficava ainda mais
estranhamente divertido quando este ia trocando de peruca enquanto respondia às perguntas
dos jornalistas (GONZO, 2008).
23

Segundo Thompson, ele perdera esta eleição por dois motivos principais: um acordo
entre seus dois rivais feito a menos de 48 horas da votação, onde um deles abdicou da
candidatura para que não dividissem eleitores e assim não permitissem que o candidato freak
fosse eleito; e a matéria publicada pela Rolling Stone, que escancarou sua principal estratégia
para conseguir votos – cadastrar eleitores que possivelmente não votariam, já que as eleições
norte-americanas não contam com a obrigatoriedade do voto – o que permitiu que ela fosse
usada contra ele mesmo (THOMPSON, 2007, p.151). Assim, mesmo conseguindo 1056
votos, Thompson perdeu a eleição por uma diferença de quase quatrocentos.
É interessante perceber neste episódio que Hunter, apesar de inserido na contracultura,
traz consigo um aspecto tradicionalmente visto como não característico deste movimento: o
envolvimento dentro do sistema político formal. A plataforma de Hunter tem todas as
características que vimos acima como marcas da contracultura: negação tácita de valores
tradicionalmente impostos pela sociedade, valorização e busca de novas formas de percepção
sensorial – através do misticismo e do uso de drogas, e valorização do encantamento mágico
infantil. Mas é trabalhando “no interior do sistema” (THOMPSON, 2007, p.152), que ele
milita por esta idéia, e tenta fazer com que “malucos”, hippies e outros que caíram fora do
sistema comprem com ele essa briga. Neste caso, “comprar a briga” seria votar nele; em 1972,
será votar em McGovern, como veremos mais adiante.
Como sua primeira esposa, Sandy, explica no documentário Gonzo (2008), Hunter era
um patriota que conhecia profundamente a Constituição de seu país. Sandy lembra que uma
das únicas vezes que viu seu ex-marido chorar foi quando contou a ela sobre o episódio do
Cerco de Chicago3, em 1968, no qual esteve presente. Era para ele uma decepção dolorosa
demais ver que as forças coercitivas de seu país estavam sendo aplicadas em cima de pessoas
que, para ele, estavam lutando por uma causa justa.
Dessa forma, é importante perceber que, ao mesmo tempo que está fazendo
jornalismo, Hunter está colocando em prática e trabalhando para afirmar suas convicções
pessoais sobre a administração de seu país. Da mesma maneira como não pretendia ser apenas
uma testemunha dos fatos em suas viagens com os Hell’s Angels, também em sua cobertura
eleitoral ele buscará ser uma peça importante para que Nixon não seja reeleito.
Depois de “A batalha de Aspen”, a Rolling Stone publicou também uma extensa
matéria – oito páginas – sobre o assassinato do jornalista mexicano Rubén Salazar feita por

3
“Cerco de Chicago” foi como ficou conhecido o episódio em que movimentos pacifistas foram encurralados
pela polícia e violentamente contidos por fazerem um protesto anti-guerra na Convenção Nacional Democrata de
1968. A Convenção decidiu que o candidato democrata da eleição presidencial norte-americana daquele ano
seria Hubert Humphrey, político a favor da continuação da guerra do Vietnã.
24

Thompson, que fez a segunda edição de abril de 1971 se esgotar rapidamente das bancas.
Além disso, foi nas páginas da revista, nas edições de novembro de 1971, que Hunter publica
em duas partes a primeira versão do livro que será considerado sua obra-prima: Fear and
Loathing in Las Vegas4.
Sendo assim, o público da revista de Jann Wenner já vinha acompanhando o trabalho
de Hunter, mas nunca de maneira prolongada como no caso de uma cobertura eleitoral. Era o
momento do jornalista usar toda sua imaginação e ação para se afirmar nacionalmente como
um grande jornalista e colocar à prova suas convicções pessoais para um veículo que lhe dava
toda a liberdade criativa e o espaço que ele achasse necessário.
Talvez a carreira de Thompson não tenha repetido um triunfo como desta série de
matérias de 1972. A popularização de sua imagem se deu de forma tão intensa que passou a
ser difícil para ele cobrir algum evento que não se transformasse completamente devido sua
presença, coisa que passou a incomodá-lo e dificultar seu trabalho. Em 1974, ele é enviado
pela Rolling Stone para o Zaire a fim de cobrir a luta entre George Foreman e Muhamad Ali.
Entre crises nervosas e uso intenso de drogas, o repórter volta sem conseguir fazer a matéria.
Thompson fica pessoalmente muito abalado e já não consegue produzir como anteriormente
(GONZO, 2008).
O criador do jornalismo gonzo acaba se suicidando em Woody Creek, Colorado, em
20 de fevereiro de 2005. Vivendo sozinho e sem muita comunicação além das fronteiras de
sua pequena cidade, Thompson mantinha apenas uma coluna intitulada Hey, Rube!, que
tratava de esportes, para o website de uma canal de televisão a cabo norte-americano. Além
disso, continuou editando coletâneas do seu trabalho, e lançou alguns livros com material
inédito.
Dentre os títulos, destacam-se The Great Shark Hunt, lançado em 1979, que faz
apanhado de matérias publicadas em diversos veículos em diversas datas; The Curse of Lono,
de 1983, sobre suas experiências no Havaí em 1980; Songs of the Doomed, de 1991, onde
critica as gerações pós-1960; e Kingdon of Fear, publicado em 2003, espécie de biografia
feita em recortes com matérias, entrevistas, fotos e anotações. Além disso, apontam mais para
a ficção os títulos Screw-jack & other stories (1991) e The Rum Diary (1999).

4
Editado no Brasil com o nome de “Las Vegas na cabeça”, o livro narra as desventuras de um jornalista enviado
para fazer uma cobertura de uma corrida de veículos no deserto. Raoul Duke, alter-ego de Hunter S. Thompson,
gasta todo o dinheiro que recebera para realizar o trabalho em drogas, e ainda deixa uma enorme dívida no hotel
em que está hospedado. Constantemente sob efeito de alucinógenos, o jornalista transforma sua pauta em uma
ensandecida reflexão sobre a sociedade norte-americana.
25

2.5 AS ELEIÇÕES DE 1972

Como vimos acima, o fervilhar da contracultura ia ganhando espaço na sociedade


norte-americana. Em alguns lugares, o movimento quase chegou a ocupar cargos públicos,
como em Aspen, onde Hunter S. Thompson tentou a vaga de xerife. Mas não vai tardar para
que as instituições de poder governadas por agentes conservadores esbocem uma reação. Seria
o caso do então presidente norte-americano Richard Nixon, como percebe Paulo Francis, ao
analisar sua reeleição em 1972: “As gerações além dos 40 anos apoiaram o Presidente porque
ele é um inimigo declarado da ‘contracultura’, termo que abrange os costumes libertários da
intelligentsia do Leste dos EUA e os hábitos de parte da juventude, que o público ingênuo
chama de hippie.” (FRANCIS, 1972, p. IV).
Companheiros do partido de Nixon, como o J. Edgard Roover, chegaram a perseguir
de maneira mais direta alguns dos ícones da nova cultura. No início dos anos 1970, Roover
acusa os poetas Lawrence Ferlinghetti e Allen Ginsberg e a atriz Jane Fonda de “desequilíbrio
mental”, afirmando que o comportamento destes levava ao “enfraquecimento moral da nação”
(BUENO, 2007, p. 11). Não é de estranhar, então, o comportamento combativo de Thompson
em sua cobertura das eleições, já que a vitória de Nixon representaria um duro golpe contra o
movimento em que o repórter estava inserido. Nixon e Thompson são ambos, em última
análise, inimigos declarados.
Mas não é apenas combatendo a contracultura que Richard Nixon consegue o êxito em
sua campanha de 1972. Apesar de estar sendo desmoralizado com as sucessivas derrotas no
Vietnã e, dessa forma, perdendo apoio popular em outras intervenções militares, como no
caso do Camboja, Nixon consegue por outras vias vender-se para o eleitorado como um
pacificador.
Em plena Guerra Fria, Nixon estreita suas relações com a China e com a URSS. Com
a percepção de que a China já havia se distanciado e isolado da URSS, parecia muito pouco
lucrativo acreditar que a enorme nação ainda estaria subserviente ao objetivo da URSS de
arquitetar uma revolução mundial. Dessa forma, valeria a pena extinguir o bloqueio
diplomático e econômico à república de Mao Tsé-Tung, representando um novo mercado para
a nação norte-americana. Da mesma forma, a URSS percebe que talvez fosse estratégico
flexibilizar a relação com os Estados Unidos, já que as tecnologias que este estava vendendo
para a China poderiam abalar sua posição hegemônica no bloco socialista.
26

Esta jogada de Nixon não representou apenas uma vitória econômica. O presidente
consegue se mostrar como um pacificador ao trazer um clima amistoso para as tensas relações
com os socialistas. Além disso, Leonid Brezhnev, então líder soviético, passa a ser encarado
como um traidor por muito partidos comunistas ao redor do mundo, em virtude de estar
abrindo as portas para o homem que estava naquele momento massacrando companheiros de
luta socialista no Vietnã (FRANCIS, 1972).
Enquanto isso, o presidente continuava suas agressivas investidas militares, sem
descaracterizar o discurso que o fez triunfar desde sua estréia na política como deputado em
1946: o ferrenho anticomunismo. É por isso que, mesmo com o enorme desgaste humano e
econômico do Vietnã, Nixon não queria sair da guerra como um derrotado, pelo menos não
antes de ser reeleito (DALLEK, 2008).
Dessa forma, equilibrando a perpetuação da guerra e o afrouxamento na relações com
China e URSS, Nixon consegue o apoio de grande parte dos pacifistas contra a Guerra Fria,
ao mesmo tempo em que agrada a maioria dos anticomunistas. O partido Republicano, então,
tinha boas chances de triunfar mais uma vez nas urnas.
Do lado dos Democratas, a situação denotava maior fragilidade. A escolha do melhor
candidato para rivalizar com Nixon era apertada, até que o nome do senador George
McGovern começa a triunfar nas convenções do partido. A plataforma de McGovern era
bastante ousada: planejava o fim imediato da guerra do Vietnã e menores investimentos
bélicos.
Com o apoio de expoentes da contracultura, o nome de McGovern parecia triunfar
como uma maneira de equilibrar uma espécie de “nova consciência” que partia dos jovens e
de setores pacifistas da sociedade com a cultura do homem americano comum – o sóbrio
chefe de família de origem rural representado pelo próprio candidato (DALLEK, 2008). A
derrocada de McGovern começou, no entanto, na escolha de seu vice-presidente.
A escolha do senador Thomas Eagleton como vice do candidato democrata é
justificada por McGovern como uma maneira de agradar setores mais conservadores de seu
partido (GONZO, 2008). No entanto, o relacionamento pouco estreito entre os dois deixou
que uma importante informação passasse despercebida pelos apoiadores de McGovern, mas
não do comitê de Nixon.
Eagleton já tinha sido internado para tratamento com eletrochoques em hospitais
psiquiátricos. Era a prova que bastava para que os conservadores apregoassem finalmente que
as idéias democratas não partiam de uma nova consciência, e sim de delírios psicóticos
(DALLEK, 2008). O democratas alegaram que Eagleton teria sido internado por estafa e
27

esgotamento nervoso, mas grande parte do eleitorado já não acreditava mais que Eagleton
pudesse ter um juízo perfeito.
A princípio, McGovern se pronunciou dizendo que apoiaria o seu vice de qualquer
forma. Mas a repercussão foi tão negativa que ele decidiu voltar atrás e indicar outro
companheiro de partido em seu lugar. Agora sim, o candidato democrata deu margem para
que os republicanos afirmassem que ele não era um homem de palavra, já que teria traído seu
companheiro de campanha o expulsando do cargo de vice (FRANCIS, 1972).
Além disso, setores conservadores da imprensa propagaram o boato de que os planos
de McGovern eram mais radicais do que todos pensavam: previam legalização do aborto, das
drogas, e anistia dos desertores do Vietnã. A relação de McGovern mais permissiva com
contracultura, fez com que alguns eleitores acreditassem e temessem estas mudanças
(DALLEK, 2008).
Dessa forma, a reeleição de Nixon já parecia garantida antes mesmo da votação,
realizada em 07 novembro de 1972. Nixon é eleito com 60,7% dos votos, contra apenas
37,5% de McGovern.
28

3 Jornalismo Gonzo

Apesar da popularidade de Hunter S. Thompson, são escassos os estudos acadêmicos


que se debruçam a fundo em sua obra. O jornalista já apareceu como personagem em duas
grandes produções da indústria cinematográfica norte-americana5 – e mais uma tem previsão
de lançamento para 20106, conta com dois vídeodocumentários sobre sua vida7, e seu nome é
recorrente em produtos da cultura popular de massa8; por outro lado, tanto dentro como fora
do Brasil, a bibliografia sobre o que é e como se constitui o jornalismo gonzo é ainda restrita.
Dessa forma, o objetivo deste capítulo é expor até onde avançou a discussão a respeito
do estilo gonzo, deixando claro ao leitor que esta é muito mais uma busca por sistematizar
conhecimentos em torno de alguns tópicos do que uma tentativa de extrair definições a partir
de um debate ainda pouco maduro. Tal estudo, no entanto, revela-se profundamente relevante
na medida em que possibilita conhecer melhor o objeto desta pesquisa, bem como pode
apontar os pontos cegos que a discussão sobre o narrador gonzo poderá ajudar a iluminar.
Tendo um seguro marco de início, como mostrarei a seguir, o surgimento do
jornalismo gonzo é tema do início deste capítulo. Já entrando em terrenos mais arenosos,
tratarei em seguida da discussão a respeito de definição do jornalismo gonzo, bem como de
suas características.

3.1 O INÍCIO

O primeiro trabalho de Hunter S. Thompson considerado “gonzo” foi uma matéria


publicada pela revista de esportes Scalan’s Monthly em junho de 1970. O que era para ser a
cobertura do Kentucky Derby – tradicional corrida de cavalos – acaba se transformando em
um enorme fluxo de consciência no qual Thompson narra seu trajeto pelo evento, analisando e
emitindo juízos sobre o comportamento dos personagens que aparecem em seu caminho.
The Kentucky Derby is decadent and depraved cita apenas uma vez o campeão da
corrida, e não se preocupa em informar o leitor a respeito de resultados e performances dos

5
Hunter é representado por Bill Murray em Where de Buffalo Roam (1980), de Art Linson; e seu alter-ego Raoul
Duke é encarnado por Johnny Depp em Fear and Loathing in Las Vegas (1998), de Terry Gillian.
6
The Rum Diary está sendo dirigido por Bruce Robinson. Johnny Depp irá representar o papel de Paul Kemp,
alter-ego de Hunter S. Thompon no livro que tem o mesmo título do filme.
7
Gonzo: the life and work of dr. Hunter S. Thompson (2008) e Breakfast with Hunter (2003).
8
Como, por exemplo, no seriado Os Simpsons (décima temporada, décimo episódio).
29

cavaleiros. “Eu não sei que porra é essa que você está fazendo, mas você mudou tudo. Isso é
totalmente gonzo”9 (CARROL, 1993, p.124), disse a Hunter o seu amigo e editor da revista
Boston Globe Sunday, Bill Cardoso, depois de ler a matéria da Scalan’s Monthly. Esta teria
sido a primeira vez que a palavra “gonzo” foi associada ao trabalho de Thompson (HIRST,
2004).
Segundo o próprio Bill Cardoso, “gonzo” seria uma corruptela do termo franco-
canadense “gonzeaux”, que significaria “caminho iluminado” (CARROL, 1993, p. 124). O
pesquisador Martin Hirst (1994) observa que outros biógrafos assinalam significados
diferentes para o termo; no entanto, no documentário de Alex Gibney (2008), é possível ver
Thompson confirmando a história de Cardoso em um programa de entrevistas para um canal
de televisão norte-americano, no qual, sem citar nomes, ele diz ter recebido uma carta de um
amigo dizendo “O artigo do derby é puro gonzo”. Hunter não parece muito preocupado com a
semântica da palavra, apenas diz ter gostado do termo: “pareceu o que eu fazia, era legal e
louco, meio zen... era gonzo”.
O jornalista, então, confiando no seu gosto e no seu instinto, assume a nomenclatura
em uma matéria encomendada pela revista Sports Ilustrated. Enviado a Las Vegas para cobrir
a corrida de motos Mint 400, Thompson transforma essa pauta em uma reflexão sobre a busca
pelo Sonho Americano, o ideal de um país livre onde todos podem realizar seus projetos de
vida. Fear na Loathing in Las Vegas: a Savage Journey to the Centre of the American Dream,
produto desta viagem, acaba sendo negado pela Sports Ilustrated, mas é publicada em duas
edições na revista Rolling Stone de novembro de 1971, sob o pseudônimo de Raoul Duke, e
depois acaba ganhando edição em livro.
Fear and Loathing é considerada por muitos a obra-prima de Hunter S. Thompson,
chegando a constar em listas de clássicos da literatura norte-americana (HIRST, 2004, p.02).
Em suas páginas aparece pela primeira vez o jornalista denominando sua obra como “gonzo”:

Mas qual era a história? Ninguém se deu o trabalho de dizer. Então nós
teríamos que fazer isso por nós mesmos. Livre empreendimento. O Sonho
Americano. Horatio Alger foi fundo nas drogas em Las Vegas. Faça isso agora:
puro jornalismo Gonzo10 (Thompson, 1998, p.12).

Podemos perceber com isso que Thompson farejou algo novo em seu trabalho, algo
que precisava ser batizado, e dessa necessidade veio o nome “gonzo”. No entanto, ao mesmo
9
Tradução livre do original “I don’t know what the fuck you’re doing, but you’ve changed everything. It’s
totally gonzo.”
10
Tradução livre de “But what was the history? Nobody had bothered to say. So we would have to drum it up on
our own. Free enterprise. Horatio Alger gone mad on drugs in Las Vegas. Do it now: pure Gonzo journalism”.
30

tempo em que ele se afirma como o criador de uma nova arte de fazer reportagem, ele não a
engessa e continua seu desenvolvimento. Fear and Loathing in Las Vegas, por exemplo, foi
considerada por Hunter uma tentativa frustrada de jornalismo gonzo (CZARNOBAI, 2003), já
que sua intenção inicial era anotar todos os textos que aparecessem em sua mente em um
grosso caderno, para depois publicá-los sem edição.
Uma das características aparentes do estilo de Hunter é, sem dúvida, um certo caráter
cru, sem edição (HIRST, 2004). No entanto, embora o jornalista tente passar esta impressão
do seu trabalho, a realidade pode estar mais distante disso. É conhecido o pânico de Hunter
dos prazos finais de entrega de suas matérias, e essa fobia parece se intensificar com o tempo
– no caso das matérias de 1972, Thompson as enviava no final do prazo, pela então recente
tecnologia do fax, ditando trechos e fazendo correções por telefone. A escrita rápida de
jornalista gonzo, dessa forma, não dispensa uma série de reelaborações e um exaustivo
trabalho sobre o texto.
O desenvolvimento do estilo de Thompson também conta com outro ponto pouco
estudado. Como o repórter, no auge de suas crises de pânico perante o fim dos prazos de
entrega de material, apelava para o uso de gravadores de voz, e muitas de suas notas escritas
de maneira rápida eram parcamente decifradas pouco antes das publicações irem para a
gráfica, as matérias gonzo contavam com uma dimensão colaborativa ainda pouco estudada
(HIRST). Depois de transcritas as fitas e notas de Thompson, o autor não as revisava,
deixando livre para que os colaboradores das publicações usassem a pontuação que achassem
mais adequada e que interpretações equivocadas de anotações e sons fossem impressas.

3.2 DEFINIÇÃO

É bem popular a definição de que o jornalismo gonzo é um subgênero do Novo


Jornalismo (PENA, 2006, p.56; HIRST, 2004, p.04). Martin Hirst considera a criação de
Hunter S. Thompson como uma “versão extrema do estilo do New Journalism”, da mesma
maneira que Felipe Pena o encara como uma “versão mais radical”. Esta nova versão conta o
profundo envolvimento do autor no processo de elaboração da matéria (PENA, 2006, p.57;
WOLFE, 2005, p.95), além de conseguir ser identificado com a presença constante da
“enlouquecida mistura de profunda introspecção, humor, drogas, sexo e violência” (HIRST,
2004, p.07).
31

Aqui já esbarramos em um terreno pouco explorado pelas pesquisas sobre o


jornalismo gonzo: a tensão entre gênero e subgênero. André Czarnobai lança luz sobre essa
discussão, em sua monografia “Gonzo: o filho bastardo do New Journalism” (2003), que tem
por objetivo “demonstrar que o gonzo journalism não é uma mera distorção dos conceitos do
new journalism mas sim uma nova forma estilística”. O autor chama a atenção para o fato de
que o nascimento do jornalismo gonzo acontece dentro do movimento do Novo Jornalismo 11,
mas ambos se desenvolvem paralelamente. Sendo assim, a criação de Thompson não poderia
ser encarada somente como uma “radicalização” dos preceitos do Novo Jornalismo.
Czarnobai ainda aponta que o termo Literary Journalism contribui pra melhor
compreender as distinções entre os dois gêneros. Segundo ele, ambos se enquadram no dentro
da categoria de jornalismo literário, no entanto cada qual possui suas peculiaridades. Dentre
as principais diferenças do gonzo em relação ao Novo Jornalismo estariam: o foco narrativo
em primeira pessoa – marca do gonzo raramente usada no Novo Jornalismo, ênfase do texto
na experiência e não no fato, maior permissividade do uso da ficção, uso do humor sarcástico,
presença constante do consumo de drogas, e coleta de informações com a técnica de imersão
extrema – o repórter procura viver as situações e relatá-las, ao invés observar passivamente e
conseguir longas entrevistas12.
Tom Wolfe (2005) aponta quatro recursos básicos emprestados da escola literária do
realismo que teriam fundamentado o “poder extraordinário” (WOLFE, 2005, p.53) do Novo
Jornalismo: a construção cena a cena, o registro de diálogos completos, o ponto de vista da
terceira pessoa, e o registro de detalhes materiais e simbólicos que transpareçam a maneira de
viver e a posição dos personagens no mundo por ele habitados. Além disso, a “vantagem
óbvia” (WOLFE, 2005, p.57) que fazia o sucesso editorial dos livros-reportagem do Novo
Jornalismo em detrimento dos romances de literatura seria “o simples fato de o leitor saber
que tudo aquilo [que está nas páginas dos romances e matérias literárias] realmente
aconteceu” (WOLFE, 2005, p.57).
Mesmo que Wolfe aponte que no “Novo Jornalismo não há regras sacerdotais” (2005,
p.57), Thompson parece subverter muitos de seus valores, ficando difícil de vê-lo
conceitualmente ligado a este movimento. O ponto de vista da terceira pessoa e a construção
cena a cena desaparecem e são substituídos por um fluxo de consciência intenso e o constante

11
Fenômeno do jornalismo norte-americano, o Novo Jornalismo se inicia na década 1960, tendo como expoentes
destacados Gay Talese, Jimmy Breslin e Tom Wolfe, entre outros. Cansados e aborrecidos com a “imprensa
objetiva”, este jornalistas passaram a usar da narração e do estilo literário para tratar dos assuntos da imprensa,
conseguindo sucesso editorial mundial (PENA, 2006, p.54).
12
Estas e outras características do jornalismo gonzo serão melhor trabalhadas no próximo item deste capítulo.
32

uso da primeira pessoa do singular nas matérias gonzo. Além disso, apesar destes textos
serem uma fonte de informação de seus leitores, o autor ficava livre para arroubos ficcionais.
Por outro lado, Hirst lembra que, como Tom Wolfe e outros de sua geração, Hunter S.
Thompson estava tentando escrever romances, profundamente cansado de ter de usar a
linguagem da maneira objetiva como as redações jornalísticas exigiam (2004, p.03). O
sucesso alcançado pelo jornalista gonzo coincide com o crescimento qualitativo e quantitativo
de reportagens literárias que acontece com o advento do Novo Jornalismo a partir dos anos
1960. Portanto, mesmo que pareça conceitualmente distante da turma de Wolfe e Talese,
historicamente a ligação se mantém forte, talvez justificando a opção de alguns autores de
classificar a criação de Thompson como uma vertente dentro do Novo Jornalismo.
Também parece ter sido pouco debatida a idéia do gonzo como uma tradição
inaugurada por Thompson ou como um estilo exclusivo desse autor. Enquanto alguns chegam
a expor em seus trabalhos jornalistas e veículos que continuam praticando o jornalismo gonzo
(CZARNOBAI, 2003; PENA, 2006, p. 59), outros pesquisadores defendem que gonzo “só
pode ser definido como aquilo que Hunter Thompson faz” (FILIATREAU apud HIRST,
2004. p.04) e que Hunter foi o “único jornalista gonzo do mundo” (OTHITIS apud
CZARNOBAI). Apesar do conflito de opiniões, nenhum trabalho se põe a discutir mais
profundamente este tema.
Como pude perceber, existem profissionais que se apropriaram do termo para fazer
referência aos seus próprios trabalhos, como é o caso do repórter da revista Trip Arthur
Veríssimo e dos participantes do site Irmandade Raoul Duke de Gonzojornalismo
(http://qualquer.org/). No entanto, ao longo de toda esta pesquisa não encontrei estudo algum
que mapeasse as características do gonzo a partir de trabalhos de outros jornalistas além de
Thompson.
Dessa forma, podemos encarar o jornalismo gonzo como uma maneira de fazer
reportagem intimamente ligada ao seu criador, Hunter S. Thompson, que emerge junto com o
Novo Jornalismo, mas que acaba tomando características bastante próprias, fazendo com que
alguns o considerem um gênero de jornalismo destacado daquele que lhe deu origem.
Veremos a seguir quais são estas características tão marcantes a ponto de transformá-lo numa
influência que mobiliza o estudo de muitos jornalistas, fazendo-os até batizar seu próprio
trabalho como gonzo.
33

3.3 CARACTERÍSTICAS

Como dito anteriormente, não existem estudos popularizados sobre o jornalismo


gonzo que levantem suas características a partir de outros jornalistas além de Hunter S.
Thompson. Pode ser que este tipo de jornalismo esteja ainda em desenvolvimento, ou então
que fique marcado apenas como uma produção relativa a uma época e a um autor. De
qualquer forma, neste momento qualquer tentativa de delimitar as características gonzo pode
ser limitada – no sentido de ter como objeto apenas uma parte pequena do todo – ou até
mesmo equivocada – no sentido de que a limitação de estudos faz que que seja difícil separar
o que é próprio do gonzo e o que é próprio apenas de Hunter S. Thompson. No entanto, o
exercício de elencar e debater o que caracterizaria o gonzo com base em diferentes autores
nos auxilia na busca de uma maior compreensão do que envolve o objeto deste estudo.
Em uma tentativa formal de estabelecer as marcas do jornalismo gonzo, Christine
Othitis estabelece sete pontos principais do estilo, com base em seus estudos da obra de
Hunter S. Thompson: os recorrentes temas do sexo, violência, drogas, esportes e política; uso
de citações de pessoas famosas, de outros escritores, e às vezes dele mesmo como epígrafe;
referência a pessoas públicas como homens de imprensa, atores, músicos e políticos; a
tendência de se dispersar do objeto sobre o qual está escrevendo; uso do sarcasmo e da
vulgaridade como humor; tendência de que as palavras fluam num uso extremamente criativo
da linguagem; e descrição extrema das situações.
Como esclarece Czarnobai (2003), nem toda a produção gonzo precisa estar colada às
quatro temáticas apontadas por Othitis, no entanto a obra de Hunter S. Thompson, de alguma
forma sempre aparece ligada a elas. Como o estilo de Thompson é extremamente pessoal, é
natural que ele fale de temas com os quais ele se identifica e gosta de debater e estudar. Sendo
assim, não seria inapropriado dizer que esta característica está mais relacionada à obra de
Thompson do que ao jornalismo gonzo.
O uso de epígrafes de personalidades conhecidas é um recurso que dá ares literários
aos textos de Thompson, assim como também prepara o leitor para o texto que virá, situando
o leitor no “clima da narrativa” (CZARNOBAI, 2003). O corpus de citações do jornalista
revela-se bastante heterogêneo: vai desde as Revelações da Bíblia – “E eu lhes darei a estrela
da manhã” (THOMPSON, 1980 apud CZARNOBAI), até o jornal Miami Herald, quando este
cita seu nome em virtude de uma confusão envolvendo credenciais para entrada no trem de
um pré-candidato a presidente em 1972. Além disso, aparecem seguidamente trechos de
34

canções populares e frases de autores célebres como Scott Fitzgerald, entre outros (OTHITIS,
1994a).
Thompson também se refere a pessoas públicas dentro de seu texto de maneira
constante. Homens de imprensa, atores, músicos e políticos aparecem em suas páginas,
fazendo sua obra dialogar e se inserir no contexto da cultura pop norte-americana. Este é um
caráter que colabora para tornar sua obra um fenômeno incrivelmente popular, como
demonstra Czarnobai:
(...) os artigos de Thompson na Rolling Stone e na Playboy provocavam filas
nas bancas. Nos grandes centros urbanos, o rosto de Thompson e o logotipo do
Gonzo Journalism – um punho em forma de adaga cuja mão segura um botão
de peiote, conhecido alucinógeno indígena extraído de algumas espécies de
cacto - passaram a adornar camisetas e posters (CZARNOBAI, 2003).

A tendência de dispersar-se do tema para o qual foi pautado aparece com muita força
na obra de Thompson. Justamente o artigo da corrida de cavalos que dá origem ao estilo
gonzo aponta esta liberdade. O jornalista neste caso se libertou das limitações temáticas e
passou a narrar suas próprias experiências e a tecer comentários sobre o comportamento das
pessoas presentes no evento. Também nas matérias a respeito das eleições de 1972,
Thompson vai começar a discorrer sobre o trânsito e a violência de Washington, por exemplo,
coisa que dificilmente um jornalista tradicional faria.
O estilo engraçado e popular de Thompson também deve tributo, segundo Othitis
(1994a), ao humor sarcástico e vulgar do autor. Othitis considera que o caráter hilário de
jornalista gonzo vem de seu sucesso em fazer graça do “impossível, do absurdo e das coisas
estúpidas que as pessoas dizem e das situações em que ele se encontra”13. Czarnobai cita o
trecho abaixo como um dos exemplos do sarcasmo de Thompson, onde o advogado que viaja
com ele em Fear and Loathing in Las Vegas liga para uma jovem e puritana artista plástica
que conhecera em um avião e para a qual oferecera LSD. Czarnobai aponta que neste trecho
vemos o sarcasmo do autor em dois níveis – zombar dos diálogos e situações absurdos e de si
mesmo por estar no mesmo quarto com um advogado armado, potencialmente perigoso e
profundamente drogado:

Ele ligou para o Americana e pediu o 1600. "Oi Lucy," ele disse. "Sim, sou eu.
Eu recebi a sua mensagem... o quê? Não, droga, eu ensinei ao desgraçado uma
lição que ele nunca esquecerá... o quê? ... Não, não está morto, mas não vai
incomodar ninguém durante algum tempo... sim, eu o levei para fora; eu o
pisoteei e depois arranquei todos os seus dentes..." Jesus, pensei. Que coisa

13
Tradução livre do original: “Thompson's hilarity stems from the impossible, absurd and dumb things that
people say and the situations he finds himself in.”
35

terrível para se dizer a alguém com a cabeça cheia de ácido (THOMPSON


apud CZARNOBAI, 2003).

Segundo Othitis (1994a), a maestria em usar o humor é apenas mais uma das
características do texto de Thompson, texto este que faria uso extremamente original da
língua inglesa dando-lhe um caráter bastante fluido. A pesquisadora observa certo poeticidade
em suas longas sentenças, que jamais perdem força ou sentido. Além disso, ela aponta que o
vocabulário de Thompson é marcadamente amplo e agressivo.
Encerrando a exposição das características do jornalismo gonzo propostas por Cristine
Othitis (1994a) está o seu profundo esforço descritivo. Thompson se revela um grande
observador em seus textos, conseguindo reconstruir paisagens e cenas de maneira muito
completa. Ela ainda cita que a percepção do autor em relação às coisas é de aguçada
sensibilidade, atingindo, dessa forma, muita originalidade e fórmulas extremamente visuais
para suas descrições. É dessa forma que o rubro carro conversível de Fear and Loathing in
Las Vegas se transforma em suas páginas no “Grande Tubarão Vermelho”.
Czarnobai (2003) sugere outras quatro características que, além das citadas acima,
contribuem para a identificação do gonzo: captação participativa, dificuldade de discernir
ficção e realidade, consumo de drogas e foco narrativo em primeira pessoa. A primeira diz
respeito à maneira do repórter levantar informações para compor suas matérias. O jornalista
gonzo não se limita ao papel de uma testemunha dos acontecimentos, transformando-se em
um agente da ação. Mudar o rumo da história que conta, mesmo que involuntariamente, seria
mais uma das marcas do estilo.
A tensão entre ficção e realidade que, como vimos acima, deixa a obra de Thompson
tão distante do ideal de Novo Jornalismo propagado por Tom Wolfe, torna-se também uma
das marcas mais profundas do estilo de Thompson. É difícil encontrar na história do
jornalismo caso semelhante desta fusão. Thompson lança mão de episódios verdadeiramente
alucinados para ilustrar suas narrações, como o obituário que escreveu do artista plástico
Russel Chatham publicado no San Francisco Chronicle. O jornalista criou a história de que
Chatham, em uma pescaria, teria sido fisgado por um barco de pesca e espancado até a morte
pela tripulação que acreditava ter pegado um grande peixe (CZARNOBAI, 2003).
Segundo Czarnobai, o uso de drogas é uma das características “facultativas” do
jornalismo gonzo, apesar de ser uma constante nas obras de Thompson. Em Fear and
Loathing in Las Vegas, o abuso de alucinógenos é constante, sendo um dos pontos centrais da
narrativa. Czarnobai alerta que, por conta do destaque do assunto, às vezes o jornalismo
36

gonzo é erroneamente compreendido como “apenas um formato de reportagem feito sob o


efeito de drogas” (CZARNOBAI, 2003).
Se o consumo de drogas pode ser considerado “facultativo” no jornalismo gonzo, não
se pode dizer o mesmo do foco narrativo em primeira pessoa. Esta opção por narrar sob o
ponto de vista do autor é permanente nas produções de Thompson. É possível que muitas das
características citadas acima – tais como o uso de drogas, a presença constante de certos
temas, entre outras – sejam um reflexo desta maneira de fazer reportagem que empresta um
papel tão importante ao jornalista, e não propriamente características do próprio estilo gonzo.
Marcas da personalidade do autor podem ser muito facilmente confundidas com marcas do
jornalismo gonzo.
Como já foi dito anteriormente, a falta de estudos em torno de outras produções gonzo
além das elaboradas por Hunter S. Thompson faz com que não seja possível ver com clareza
até onde os trabalhos que procuram elencar as características deste tipo de jornalismo não
incluam neles marcas que são exclusivas do trabalho de Thompson.
De qualquer forma, espero que este estudo ajude a lançar alguma luz sobre esta
discussão, uma vez que pretende aprofundar o debate a respeito da presença de Hunter
Thompson no narrador de seus próprios textos. Para tanto, o próximo capítulo tratará dos
estudos da narratologia, na busca de conseguir elementos que possam fortalecer a análise da
cobertura gonzo da eleição presidencial de 1972.
37

4 O narrador nos estudos narratológicos

Este trabalho busca na narratologia as ferramentas para estudar e levantar as


características que singularizam o narrador nas matérias de Hunter S. Thompson acerca das
eleições presidências norte-americanas de 1972. Este capítulo oferece ao leitor uma breve
apresentação acerca da história e das propostas dos estudos narratológicos, expondo em
seguida como seus autores pensam o narrador e a figura do leitor nas narrativas, dando aqui
atenção especial ao comportamento destes no jornalismo. Também terão ênfase neste capítulo
os estudos de focalização do narrador, pois oferecem possibilidade de refletir e compreender
melhor quem narra e como narra as matérias a serem analisadas.

4.1 A NARRATOLOGIA

A presença cotidiana das narrativas nas sociedades é tão universal que às vezes pode
até passar despercebida, fazendo alguns se questionarem se é mesmo importante estudar um
fenômeno que sempre se manifestou tão comumente, sem jamais ter necessitado de atenção
especial (BARTHES,1976). Essa percepção vem relacionada ao fato de o homem ser dotado
de uma predisposição inata e primitiva de organizar a realidade em seqüência lógica que
antecede até mesmo o impulso da aquisição de linguagem (BRUNER, 1998 apud MOTTA,
2007, p. 143). Os enunciados narrativos são capazes de colocar em ordem e perspectiva
pensamentos e fatos, relacionando coisas, pessoas, lugares e eventos de maneira encadeada e
cronológica.
Luiz Gonzaga Motta (2007) argumenta que estudar as narrativas seria uma maneira de
melhor compreender a cultura de nossa sociedade, dentro de uma perspectiva antropológica.
Para o autor, a narratologia aparece como uma teoria da narrativa, que nasce tomando
emprestado conceitos de estudos da literatura, mas preocupa-se em analisar diversos tipos de
práticas culturais, desde histórias em quadrinhos até noticiários de televisão, na pretensão de
abarcar tanto trabalhos ficcionais como factuais em diversos formatos.
O termo “narratologia” aparece pela primeira vez em 1969, no estudo “Gramática do
Decameron”, do filósofo franco-búlgaro Tzvetan Todorov. A narratologia busca descrever os
mecanismos de organização e funcionamento das narrativas, levantando as especificidades
que singularizam este tipo de discurso. Antes de Todorov, ainda no início do século XX, os
38

formalistas russos já demonstravam tentativas de estabelecer elementos fixos e suas funções


na narrativa, é o caso de Vladimir Propp, no título Morfologia do conto popular, de 1928. Os
estudos de Claude Lévi-Strauss acerca dos mitos e sua perpetuação através de diferentes
narrativas que deram origem ao livro Antropologia Estrutural, de 1958, também fizeram
avançar a discussão. Também fizera avançar a discussão pesquisadores como Gerard Genette,
Roland Barthes, Henrik von Wright, entre outros (ALVES, 2009).
É importante assinalar que o objeto deste tipo estudo são as narrativas em si, apesar de
estas não serem encaradas como simples objetos autônomos, desligados de seu contexto de
produção e difusão. Conforme Motta:
Tomar o texto como ponto de partida, procurar as conexões e sínteses
narrativas não significa prescindir da análise do contexto comunicativo. O texto
e suas significações são apenas os nexos entre a produção e o consumo, entre o
ato de enunciar e o ato de interpretar (atos de alguém, de algum sujeito). São
apenas a forma que assume a relação entre atores humanos e históricos
(MOTTA, 2007, p.146)

Este tipo de abordagem permite ao pesquisador encontrar no próprio texto marcas


desta realidade na qual ele estava envolvido em seu processo de criação, sobre o que estava
tratando, quais os interesses e com quem o diálogo estava sendo travado – veremos mais
adiante que a figura do leitor acaba emergindo na própria narrativa. Com isso, é possível
melhor compreender os mecanismos que compõem as peculiaridades de um objeto como o
desta pesquisa a partir de sua estrita análise, sem no entanto desprezar sua contextualização.
Os estudos narratológicos procuram de uma maneira ou outra deixar claro que é
preciso abordar as narrativas com a consciência de que, por si só, estas possuem lógica e
encadeamentos internos que as singularizam como objetos autônomos, apesar de seu papel de
reconstruir, repensar ou transformar a realidade. Tzvetan Todorov (1976) propõe que o termo
“história” evoque a seqüência de fatos em que os personagens estão envolvidos, enquanto
“discurso” seja o modo como o narrador dá a conhecer esta realidade. Usando nomenclaturas
diferentes, outros teóricos também procuram isolar o conteúdo das narrativas da maneira
como o narrador a enuncia (SILVA, 2003, p.48). Sendo assim, podemos observar que uma
série de acontecimentos – reais ou fictícios – sobre a qual os autores poderão se servir, cada
um produzindo substâncias diversas, até mesmo em formatos diferentes (notícias, romances,
músicas, desenhos animados, etc.).
Internamente, as narrativas contam com uma estrutura composta por séries de ações.
Estas ações são eventos singulares capazes de transformar, de maneira reversível ou
irreversível, o estado das coisas em que se desenrolam. Para tanto, sempre serão percebidos
39

três elementos fundamentais: o sujeito da ação, podendo ser apenas um ou vários; o tempo em
que as ações se desenrolam; e transformações que evidenciem a passagem de um estado para
outro.

4.2 NARRADOR E LEITOR

Estes elementos são manejados de diferentes formas dentro desta estrutura pelo
narrador (MOTTA, 2007). Assim como distingue os planos da história e do discurso, a
narratologia também aponta para a diferenciação entre o plano do autor e do narrador. Apesar
de muitas vezes parecerem coincidir, o autor é o ser humano que constrói no mundo real a
narrativa a partir da qual a voz do narrador poderá ser ouvida. O narrador pode ou não guardar
muitas características semelhantes com o seu autor; no entanto, como qualquer personagem,
será impossível a narrativa encerrar toda a complexidade humana em sua estrutura
(TODOROV, 1976, p.23).
No caso do jornalismo, o narrador tradicionalmente “nega até o limite a narração”14
(MOTTA, 2007, p.155). O jornalista costuma esconder-se dentro de sua narrativa, tentando
apagar sua presença, procurando dar a impressão de que os fatos se mostram por si próprios.
Este efeito de “realidade”, segundo Motta, é alcançado através de determinadas estratégias de
objetivação que podem ser levantadas em uma adequada análise narratológica.
Dentre os recursos mais utilizados para alcançar o status de representação fiel dos
fatos, Motta (2007, p.156-178) destaca o uso bastante comum de citações, dêiticos espaciais e
temporais, e estudos científicos e estatísticos. As citações colaboram no sentido de aparentar
menor intervenção do jornalista no seu próprio discurso, mascarando subjetividades enquanto
o leitor não percebe que a escolha dos trechos é mediada pelo repórter, podendo não ilustrar o
que a fonte quis literalmente dizer ou destacar. Os dêiticos de tempo e espaço são palavras e
expressões que referenciam lugares, datas e horários que existem no mundo concreto. O uso
abundante deste recurso aumenta a sensação de registro e apreensão da realidade. Já o uso de
estudos acadêmicos e estatísticos como fonte garante o compromisso com a verdade através
da chancela do conhecimento técnico e científico.

14
Apesar de o citado ser o comportamento padrão do jornalismo relativo à narração, podem haver graus de
maior aproximação, como seria o caso do jornalismo literário, que “escancara” seu aspecto narrativo. (MOTTA,
2007, p.155)
40

Além das estratégias de objetivação, Motta (2007, p.159-161)aponta o uso de


estratégias de subjetivação do narrador jornalista, usadas com o intuito de alcançar “efeitos
poéticos”. Estes recursos “promovem a identificação do leitor com o narrado, humanizam os
fatos brutos e promovem a sua compreensão como dramas e tragédias humanas” (MOTTA,
2007, p.160), podendo ser encontrados sob diversas formas, criando diferentes graus de
comoção na audiência. A escolha de imagens, adjetivos, figuras de linguagens, ironias, e
tantas outros recursos possíveis podem revelar ao analista da narração as estratégias do
narrador.
Também a imagem do leitor aparece refletida na narrativa. Tanto narrador como leitor,
segundo Todorov, estão distantes da figura do autor e do verdadeiro receptor, no entanto,
ambas são conseqüências naturais da narração e se constroem mutuamente:

(...) desde que a imagem do narrador começa a sobressair mais nitidamente, o


leitor imaginário encontra-se também desenhado com mais precisão (...) Esta
dependência confirma a lei semiológica geral segundo a qual “eu” e “tu”, o
emissor e o receptor de um enunciado, aparecem sempre juntos (TODOROV,
1976, p.246-247).

É possível observar melhor este leitor se pensarmos que se estabelece uma relação
comunicativa entre emissor e receptor com uma dinâmica peculiar. Assim define Iser:

Como nenhuma história pode ser contada na íntegra, o próprio texto é


pontuado por lacunas e hiatos que têm de ser negociados no ato da leitura. Tal
negociação estreita o espaço entre texto e leitor, atenua a assimetria entre eles,
uma vez que por meio dessa atividade o texto é transportado para a consciência
do leitor (apud MOTTA, 2007, p.162).

Motta aponta que se configura um “contrato cognitivo” entre jornalistas e sua


audiência. Este é uma convenção informal em que “emissores e destinatários dão por
convencionado que o jornalismo é o lugar natural da verdade, o lugar do texto claro, isento,
preciso, sem implicaturas nem pressuposições” (MOTTA, 2007, p.164). Segundo o
pesquisador, há uma busca que congrega produtores de conteúdo e consumidores em “co-
construir” a “verdade dos fatos”.
Ainda em relação ao leitor, Todorov aponta que a percepção que temos de um fato
narrado é permeada pela percepção que o narrador teve deste fato. Dessa maneira, o teórico
lança mão do estudo da obra de J. Pouillon para demonstrar três perspectivas possíveis de
uma narrativa: as visões “por trás”, “com” e “de fora”.
A perspectiva “por trás” refere-se ao narrador que estão em condição de sapiência dos
acontecimentos da trama superior ao personagem central. Já a visão “com” é alcançada
41

quando o personagem central está em igualdade de informação com o narrador, ou mesmo


quando este personagem é o próprio narrador. Enquanto isso a perspectiva “de fora” acontece
com o narrador sujeito a poucos indícios para compreender o que acontece com seus
personagens, podendo deixar ao leitor apenas algumas marcas de insinuação (TODOROV,
1976, p. 236-238)
Quanto ao narrador, é importante lembrar que, assim como seus personagens, as falas
por ele ditas podem também serem consideradas como atos. Ou seja, no caso de um romance
epistolar, por exemplo, o narrador em uma frase como “você é realmente muito bela”
transcende seu caráter meramente objetivo de informar para se transformar em um galanteio,
ato que pode transformar a realidade dos envolvidos. Como melhor explica Todorov:

Toda fala é, sabe-se, ao mesmo tempo enunciado e enunciação. Enquanto


enunciado, ela se relaciona com o objeto do enunciado e permanece portanto
objetiva. Enquanto enunciação, ela se relaciona ao sujeito da enunciação e
guarda um aspecto subjetivo pois representa em cada caso um ato realizado
pelo sujeito (TODOROV, 1976, p. 246-247)

Além disso, o narrador pode assumir diversas funções. Em primeiro lugar, pode-se
observar a função comunicativa, na qual visualizamos a intenção do emissor de estabelecer e
manter contato com o seu destinatário. Também é perceptível a função meta-narrativa,
referente ao próprio texto, comentando-o e ajudando o leitor a ser direcionado a sua própria
organização interna. A função testemunhal se dá em diferentes graus que atestam ou não a
proximidade da presença do narrador aos fatos. Quando são expressas emoções e outros
sentimentos que a história suscitou em quem a está narrando, então está sendo exercida a
função modalizante. A função avaliativa diz a respeito ao foco nos julgamentos de valores de
personagens, fatos e até da própria narração. O curso dos relatos ainda pode ser freado para
dar lugar a duas outras funções: explicativa e ideológica. A primeira atualiza o leitor de
informações que este possivelmente não tenha e precisa para melhor compreender outros
episódios que virão na seqüência, enquanto a outra concebe o narrador emitindo juízos e
máximas sobre a sociedade e outros temas, expondo seu ideário e sua visão de mundo.

4.3 FOCALIZAÇÕES

Ainda tentando dar conta de quem narra e como narra, os estudos narratológicos propõem
seis modalidades de focalização do narrador, conforme Aguiar e Silva (1992). A focalização,
42

termo utilizado por Gerard Genette (apud AGUIAR E SILVA, 1992) também é chamada por
alguns autores e críticos de literatura como ponto de vista, ou ainda foco narrativo. Aguiar e
Silva lembra que suas díades classificatórias tem como objetivo compreender melhor a figura
do narrador, e pretendem ser flexíveis para conseguir abarcar os vários casos concretos de
modalidades.
A focalização trata da relação do narrador com o universo que está sendo narrado, o
modo como ele conhece e dá a conhecer este mundo. As díades propostas por Costa e Silva
abarcam estas opções de focalização: homodiegética e heterodiegética, interna e externa,
onisciente e restritiva, interventiva e neutra, fixa e variável. Estas opções são complementares
e podem variar dentro de um trabalho.
A focalização pode depender de um narrador alheio ao esquema de realidade que trata
a narrativa, ou então de um narrador integrado a este esquema. Ao primeiro tipo, dá-se o
nome de focalização heterodiegética, enquanto o segundo se trata da focalização
homodiegética. No caso heterodiegético, o narrador pode ser neutro, procurando apagar-se na
narrativa, querendo para si apenas o estatuto de dar a conhecer os fatos e emoções; ou então
pode intervir com juízos de valores, opiniões, comentário, etc. Neutro ou interventivo, o
narrador heterodiegético se manterá sempre passivo, não intervindo como agente no mundo
narrativo que constrói.
Já a focalização homodiegética tratará de narradores agentes da narrativa. Neste caso,
ele pode ocupar um papel secundário ou até mesmo ser o protagonista – nesta segunda
hipótese, a focalização é chamada também de autodiegética. Mesmo na ocorrência de
focalizações autodiegéticas, pode haver distanciamento entre um eu narrado e um eu
narrador, visto que uma distância temporal grande pode criar outras distâncias entre um e
outro: “uma distancia ideológica, uma distância, psicológica, uma distância ética...”
(AGUIAR E SILVA, 1992, p.327). A passagem do tempo pode criar uma grande
diferenciação entre as identidades do narrador do tempo enunciado e do tempo que enuncia a
história. A este narrador retrospectivo, opõe-se o narrador com distanciamento temporal
mínimo em relação aos acontecimentos, criando-se maior harmonia entre o eu narrado e o eu
narrador.
Aguiar e Silva ainda aponta duas características importantes entre heterodiegéticos e
homodiegéticos: enquanto o narrador autodiegético pode contribui para uma maior
compreensão da interioridade do personagem central, o homodiegético atribui um caráter de
maior objetividade para a narrativa. Percebe-se que, quanto mais se estabelece uma relação de
cumplicidade, mais se fragiliza o caráter objetivo.
43

Gerard Genette percebe esta classificação entre homodiegético e heterodiegéticos


como uma alternativa mais apropriada para o que alguns percebem tortuosamente e
classificam sob as locuções de “narrativa na primeira pessoa” e “narrativa na terceira pessoa”:

Estas locuções correntes parecem-me com efeito inadequadas, pois que colocam
o acento da variação no elemento de facto invariante da situação narrativa, isto
é, a presença, explícita ou implícita, da “pessoa” do narrador que não pode
estar na sua narrativa, como todo o sujeito da enunciação no seu enunciado,
senão na “primeira pessoa” (apud AGUIAR E SILVA, 1992, p.326).

As diferenças entre focalização externa e interna, por sua vez, dizem respeito ao grau
de aprofundamento na interioridade dos personagens. A tendência é de que focalizações
homodiegéticas – e especialmente autodiegéticas – sejam internas, pois geralmente afundam
em aspectos psicológicos do próprio narrador. Já as focalizações heterodiegéticas podem
obter mais variações entre externas e internas. É bom lembrar aqui que a focalização externa
pode também tratar de aspectos psicológicos, porém os dá a conhecer por índices mais
exteriores ao personagem, como pela descrição de sua fisionomia, de seus gestos, etc.
A diferenciação entre focalização onisciente e restritiva trata do nível de conhecimento
dos aspectos psicológicos dos personagens e dos eventos que compõem a trama. Cabe lembrar
aqui que o narrador onisciente – que tudo sabe e é capaz de enxergar além das paredes e da
mente de seus personagens – pode ser combinado com o narrador restritivo em alguns casos,
o que pode gerar momentos de suspense e de tensão dentro da narrativa.
As focalizações interventiva e neutra demonstram forte ligação à opção
heterodiegética ou homodiegética. É bastante difícil conceber uma narração homodiegética
em que não estejam presentes comentários e juízos de seu narrador, caracterizando a
focalização interventiva. Já as narrativas autodiegéticas, em especial, parecem não deixar
espaço para que o texto aconteça de outra forma; pois, quando o eu narrador está próximo
temporalmente do eu narrado, é difícil que este consiga construir sua história desapegado de
suas emoções e convicções, assim como um distanciamento temporal costuma fazer o eu
narrador rever e repensar os passos trilhados pelo eu narrado.
É por isso que Aguiar e Silva (1992) considera que a escolha entre a focalização
interventiva ou neutra diz respeito apenas ao narrador heterodiegético. Em alguns casos, a
focalização interventiva se impõe de maneira bastante presente: o texto faz uma pausa do
encadeamento das ações para fazer juízo do comportamento e da ética de seus personagens,
expressar o espanto ou indignação do narrador perante certos fatos, manifestar seu
44

distanciamento ou proximidade ideológica em relação a um assunto que emerge na trama,


entre outras manifestações possíveis.
Aguiar e Silva (1992) lembra que esta díade trata de níveis de intervenção, sendo que a
focalização que alcança este nível mais baixo pode ser considerada neutra. Apesar disso,
procura deixar bem claro que o narrador jamais consegue exilar-se por completo de sua
narrativa:

(...) mesmo que o narrador evite cuidadosamente as intromissões explicitamente


marcadas (...) menos facilmente poderá evitar outros tipos de discurso – por
exemplo o discurso valorativo e o discurso modalizante – que logo denunciam a
sua presença. (apud AGUIAR E SILVA, 1992, p.326)

Por fim, trato aqui da focalização fixa e da focalização variável ou múltipla. Estas duas
modalidades referem-se ao uso das díades anteriores, já que o narrador não é obrigado a
manter suas opções durante toda a narrativa. Esta focalização variável ocorre principalmente
no que diz respeito à onisciência ou sapiência restritiva do narrador. Como citado acima, pode
haver variação entre uma opção e outra como maneira de criar suspense ou outros efeitos
dentro da narrativa. Além disso, produtos como romance, filmes, entre outros, muitas vezes
expõem visões homodiegéticas de vários narradores sobre uma mesma situação, permeadas
inclusive outras vezes por exposições heterodiegéticas.
As diferenças sobre diferentes tipos de focalização, combinadas com as perspectiva
que fazem narrador e leitor se construírem mutuamente, fazem da narratologia um campo de
estudo bastante apropriado para tratar de objetos narrativos como notícias, crônicas,
reportagens e outros produtos jornalísticos, pois busca estabelecer lógicas internas que
caracterizam sua autonomia para análise sem jamais esquecer que os textos não estão
desconectados da realidade que possibilitou sua criação e difusão. Dessa forma, é possível
tratar e melhor compreender opções narrativas escolhidas pelos jornalistas para apreender a
realidade de determinado momento.
45

5 Análise narratológica do corpus

Neste capítulo serão apresentados os principais resultados da análise realizada sob os


preceitos da narratologia. O corpus analisado se restringiu a sete das 14 matérias realizadas
pelo jornalista Hunter S. Thompson em sua cobertura da eleição presidencial norte-americana
de 1972. O recorte foi feito para possibilitar uma análise mais profunda de cada objeto dentro
do tempo e do espaço disponíveis para a realização de uma monografia.
A seleção dos artigos foi feita com o intuito de privilegiar aqueles que melhor
representavam características singulares do narrador gonzo, ao mesmo tempo em que davam
uma noção de continuidade da história. Tal escolha se revelou adequada, na medida em que o
avanço sobre as últimas matérias apresentou resultados repetitivos, mas importantes por
comprovarem a possibilidade de generalização dos resultados sob todo o corpus.
Os artigos analisados correspondem às seguintes edições da revista Rolling Stone: 99
(primeira quinzena de janeiro), 101 (primeira quinzena de fevereiro), 104 (segunda quinzena
de março), 108 (primeira quinzena de maio), 113 (segunda quinzena de julho), 120 (segunda
quinzena de outubro), e 121 (primeira quinzena de novembro).
Ficaram de fora da análise as matérias veiculadas nas seguintes edições: 103 (primeira
quinzena de março), 106 (primeira quinzena de abril), 107 (segunda quinzena de abril), 110
(primeira quinzena de junho), 112 (primeira quinzena de julho), 115 (segunda quinzena de
agosto), e 118 (segunda quinzena de setembro).
Como sugere Motta (2007), estive preocupado em levantar que narrativas iam se
formando a partir das matérias analisadas. A partir disso, foi possível ir visualizando as
focalizações usadas pelo narrador nestas narrativas. Este exercício aprofunda a questão de
quem narra e como narra nos textos de Thompson.
Em seguida, tratei de levantar os recursos de objetivação e subjetivação utilizados por
este narrador. Segundo Motta (2007) os recursos de objetivação concedem os “efeitos de real”
que sustentam a credibilidade do jornalismo. Por “efeito de real” podemos compreender tudo
aquilo que faz um texto estar ligado a uma realidade existente no mundo, que fazem o leitor
crer que aquilo que está sendo narrado realmente aconteceu.
Já as estratégias de subjetivação tentam alcançar aquilo que Motta (2007) concebe
como “efeitos poéticos”. Estes efeitos seriam responsáveis por promover a identificação do
leitor com aquilo que é narrado, angariar sua atenção. Como o próprio teórico explica, as
46

estratégias de subjetivação “humanizam os fatos brutos e promovem a sua compreensão como


dramas e tragédias humanas”.
Também busquei delinear a figura do leitor que emerge destas matérias. Como vimos
no capítulo anterior, este leitor ideal não corresponde à verdadeira audiência do jornalista,
mas demonstra que o narrador constrói seu texto em torno de certa imagem de público.

5.1 FEAR & LOATHING IN WASHINGTON: IS THIS TRIP NECESSARY? (MEDO E


DELÍRIO EM WASHINGTON: ESTA VIAGEM É NECESSÁRIA?)

Data de publicação: 06 de janeiro de 1972

A matéria que a abre a cobertura da revista Rolling Stone sobre as eleições


presidenciais norte-americanas de 1972 se estrutura em torno de três eixos principais, sobre os
quais orbitam narrativas paralelas e comentários: a mudança de Hunter S. Thompson para
Washington, o encontro do jornalista com dois jovens “freaks” vendedores de carros
chamados Lester e Jerry, e um comentário político a respeito do quadro eleitoral e dos
possíveis candidatos. O subtítulo “esta viagem é necessária” se refere ao próprio
questionamento de Thompson a respeito do porquê de estar fazendo esta série de matérias.

Focalizações
O narrador inicia sua matéria com uma descrição:

Fora da minha nova porta da frente, a rua está cheia de folhas. Meu gramado
avança até a calçada; a grama ainda está verde, mas a vida já está a
abandonando. Cerejas vermelhas murcham na árvore ao lado minha varanda
branca em estilo colonial. Na entrada para carros, meu Volvo com bancos de
couro azul e placas do estado do Colorado descansa encarando o muro de
tijolos da garagem. E bem ao lado do carro há um novo feixe de lenha:
pinheiro, olmo e cerejeira. Eu tenho queimado uma enorme quantidade de
lenha nesses dias15 (p. 06)

É possível perceber através do trecho acima uma tendência para o uso do narrador
autodiegético – em que protagonista conta sua própria história – que irá se confirmar durante

15
Tradução livre do original “Outside my new front door the street is full of leaves. My lawn slopes down the
sidewalk; the grass is still green, but the life is going out of it. Red berries wither at the tree beside my white
colonial stoop. In the driveway, my Volvo with blue leather sits and Colorado plates sits facing the brick garage.
And right next to the car is cord of new firewood: pine, elm, and cherry. I burn a vicious amount of firewood
these days.”
47

o transcorrer do artigo. O leitor apreende a narrativa através de um narrador que está


conhecendo os fatos tais como seu personagem principal os percebe, em um distanciamento
temporal tão pequeno entre a experiência e a narração que acaba permitindo o uso do tempo
verbal presente. Ou seja, há pouco espaço temporal entre o eu narrado e o eu narrador, o que
colabora para que a focalização seja interventiva, expressando opiniões e sentimentos, como
vimos no capítulo anterior deste trabalho.
Temos certamente aqui um narrador que não está preocupado em se mostrar neutro:
ele classifica como “nojento” o fato de precisar pagar para estacionar seu carro em
Washington, considera o então novo indicado de Richard Nixon para a Suprema Corte norte-
americana – Willian Rehnquist – “um porco”, faz longas reflexões a respeito dos pré-
candidatos e de como o quadro geral de expectativas de números de votos pode mudar, e não
perdoa de críticas nem o seu estilo prolixo:

Sim... e... ai, onde nós paramos? Eu tenho uma tendência ruim de sair correndo
por loucas tangentes e perseverar nelas por cinqüenta ou sessenta páginas que
ficam tão fora de controle que eu acabo as queimando para o meu próprio
bem16 (p.08).

A reflexão de Thompson a respeito da iniciativa da Rolling Stone e dele próprio de


fazer uma cobertura política acontece quando o jornalista se põe a conversar com dois rapazes
que encontra na beira da estrada, e para os quais empresta um macaco hidráulico para que eles
troquem um pneu que furou do carro que dirigiam. Lester e Jerry, são dois “freaks” – assim
designados pelo narrador – que trabalham comprando carros em cidades mais pobres e os
vendendo em cidades mais ricas, conseguindo um bom dinheiro na troca. Um deles chega a
propor a Thompson este trabalho:

“Por que você não cai fora dessa bobagem e nós colocamos alguma coisa juntos
neste ramo dos carros que o Jerry estava te falando?”
Balancei a cabeça. “Não, quero pelo menos tentar essa viagem,” eu disse.
Lester colocou seus olhos em mim por um momento, e então encolheu os
ombros: “meu Deus!” ele disse. “Que doideira. Por que alguém iria querer se
meter num amontoado de merda como a política?”
“Bem...”, eu disse , esperando que houvesse algum tipo de resposta sóbria
para uma pergunta como aquela: “É principalmente um viagem pessoal, uma
coisa muito difícil de explicar” 17 (p.07).

16
Tradução minha do original “Yes... and... uh, where were we? I have a bad tendency to rush off on mad
tangents and persue for fifty or sixty pages that get so out of control that I and up burning them, for my own
good”
17
Tradução minha do original “‘Why don´t you hang up that bullshit and we’ll put something together with that
car shuttle Jerry told you about?’
I shook my head. ‘No, I want to at least try this trip,’ I said.
Lester stared at me for a moment, then shrugged. ‘God damn!’ he said. ‘What a bummer. Why would anybody
want to get hung up in a pile of shit like Politics?’
48

O jovem Lester ainda argumentará que os políticos seriam viciados em poder sem
escrúpulos, fazendo com que Thompson encontrasse a resposta que buscava para justificar sua
jornada: “‘É por isso que estou indo para Washington’, eu disse, ‘para checar as pessoas e
descobrir se são todas porcas.’” (p.06).
Independente do encontro com os “freaks” ter sido verdadeiro ou não, o jornalista
consegue colocar o personagem narrador frente ao possível estranhamento que alguns leitores
da Rolling Stone teriam ao ver a revista envolvida em uma longa cobertura política. Sendo
assim, com a ação de seu autor, ou ainda com sua imaginação, o narrador consegue dar conta
de uma das inquietações de sua geração: acreditar ou não que a administração pública poderia
ser um veículo pelo qual se operam mudanças sociais positivas; ou então, em resumo: se por
dentro do sistema estabelecido seria possível estabelecer outro sistema.
No trecho acima, é também possível perceber que o narrador faz uso da focalização
interna. A desconfiança e impaciência de Lester em relação a Thompson é indicada pela longa
mirada que dá sobre o protagonista e pelo encolher de ombros. O narrador não expressa de
maneira direta os sentimentos de seus personagens, e sim índices que podem ser interpretados
como emoções. Ao mesmo tempo, ele conhece o que se passou pela sua própria mente a
ponto de usar expressões como “eu estava impressionado” (p.05) ou “eu ainda estava curioso”
(p.06) para referir-se aos seus próprios sentimentos.
Adotando o ponto de vista de um personagem, é natural que não tenhamos aqui um
narrador onisciente. Tal como qualquer narrativa jornalística (MOTTA, 2007, p. 162), esta
também é restritiva, já que o jornalista dificilmente terá acesso a todas as informações
referentes a uma história, e jamais poderá vasculhar a mente de seus personagens.
Sendo assim, temos nesta primeira matéria uma focalização autodiegética fixa,
consequentemente interna e restritiva. Além disso, o narrador se apresenta como interventivo,
tecendo comentários não apenas sobre fatos e personagens, como também de sua maneira de
contar história e do próprio papel que estas exercem na realidade.

Estratégias de objetivação
São diversas as marcas que dão o efeito de ligação com o real no texto em análise.
Uma das mais marcantes é seu grande trabalho descritivo. Logo no parágrafo de abertura, já

‘Well…’ I said, wondering if there was any sane answer to a question like that: ‘It’s mainly a personal trip, a
very thing to explain.’”
49

citado no início desta análise, o narrador aparece descrevendo sua nova casa em Washington,
detalhando a paisagem em relação ao início do inverno. O trecho contribui para que leitor
creia na presença do jornalista na capital norte-americana, referenciando o clima e as plantas
do lugar.
Além disso, o jornalista cita dados que explicariam a sensação de medo que toma
conta da cidade: “de duzentos e cinqüenta assassinatos deste ano, apenas trinta e seis foram
solucionados”18. Os dados numéricos servem neste caso para comprovar objetivamente uma
percepção subjetiva de Thompson.
Assim como no jornalismo tradicional, são usados dêiticos espaciais e pessoais que
estabelecem relações com a realidade objetiva. Abaixo estão grifados todos os dêiticos de
espaço no trecho da matéria em que Thompson encontra os jovens vendedores de carros.

O odômetro marcava 2155 quando cruzei a fronteira de Maryland, bem como o


sol nasceu sobre Hagertown... ainda confuso depois de me perder num vilarejo
chamado Breezewood, na Pensilvânia; eu parei lá para refletir sobre a questão
da droga com dois malucos que encontrei na rodovia19 (p.06).

É interessante perceber a preocupação deste narrador em demarcar com exatidão os


lugares onde se desenvolvem suas narrativas. Real ou fictício, o encontro com os “freaks”
procura um cenário bem demarcado de uma rodovia norte-americana para acontecer. Tendo
como característico o uso da ficção, o jornalismo gonzo exercido aqui não abre mão de
fundamentar suas bases espaciais na realidade, é neste espaço que desenrola suas histórias.
No mesmo sentido, Thompson usa com abundância dêiticos que referenciam pessoas
reais, importantes personalidades que povoavam os noticiários de sua época, conectando-o a
este universo. Podemos observar com várias referências a político como o presidente norte-
americano Richard Nixon ou os pré-candidatos democratas Hubert Humphrey, George
McGovern, Edgard Muskie, entre outros.
Por outro lado, os dêiticos temporais não marcam com grande exatidão a passagem do
tempo. Eventos como o encontro com os jovens “freaks” ou a chegada do narrador em
Washington não podem ser reconstruídos pelo leitor em uma marcação exata de dia e hora.

18
Tradução livre do original “Of two hundred and fifty murders this year, only thirty-six have been solved.”
19
Tradução livre do original “The odometer read 2155 when I crossed the Maryland line as the sun came up over
Hagerstown… still confused after getting lost in a hamlet called Breezewood in Pennsylvania; I’d stoped there to
ponder the drug question with two freaks I met on the Turnpike.”
50

Estratégias de subjetivação
O parágrafo já aqui citado em que o narrador descreve seu novo lar, também serve
para gerar identificação e encantamento no leitor. Tal como num quadro, ele excita os
sentidos de quem está lendo com as cores das cerejas, da varanda, da grama e dos bancos de
couro de seu carro. A retórica de Thompson usa de imagens para explicitar o frio – a gramado
perdendo a cor, a lenha que vai sendo queimada continuamente, a frutas murchando com o
fim da temporada de calor – ao invés de simplesmente dizer objetivamente que aquele era um
inverno rigoroso com o qual o protagonista não estava acostumado na Califórnia, podendo até
mesmo citar a temperatura medida em um termômetro. Além disso, o uso de substantivos
como cerejas, grama, lenha e couro carrega não apenas sensações visuais, mas também
olfativas e táteis agradáveis. Lembremos que o uso criativo da linguagem já foi citado como
uma das características do jornalismo gonzo (OTHITIS, 1994a).
Outra estratégia usada pelo narrador para angariar a atenção da audiência é o humor.
Thompson revela sua verve humorística, por exemplo, ao falar da criminalidade do distrito de
Washington debochando do então chefe do Federal Bureau of Investigation (FBI), John Edgar
Hoover: “Os números da criminalidade de ‘O Distrito’ são tão hediondos que embaraçam até
mesmo J. Edgar Hoover.”20 Comentários jocosos como este aparecem ao longo do texto,
piadas rápidas que debocham de personalidades das quais o narrador parece não sentir muita
simpatia.
O exagero também pode cativar o leitor, trazendo um misto de graça e estranhamento.
Quando, por exemplo, o narrador afirma ter imediatamente ligado para o Colorado para que
lhe enviassem mais um cachorro da raça doberman após ter ouvido falar da alta criminalidade
de sua nova cidade (p. 06), pode parecer que ele esteja brincando com a paranóia de seus
concidadãos; no entanto, como a figura do autor do texto é reconhecidamente escandalosa e
exagerada, também não é possível descartar a possibilidade de que a ligação tenha sido
verdadeira. Este tipo de incerteza pode conferir um instigante caráter enigmático à matéria.
O uso de uma linguagem bastante coloquial, na qual gírias e palavrões são constantes
e bem-vindos, também pode ser considerado como uma estratégia de subjetivação na medida
em que consegue estabelecer uma relação de proximidade com a linguagem do próprio leitor.
Ao falar da Revolução Cultural dos anos 1960, Eric Hobsbawn (1995) chama atenção para o
fato de expressões antes restritas a minorias negras e pobres começarem a povoar o
vocabulário de grupos sociais mais privilegiados economicamente. Sendo assim, a linguagem

20
Tradução livre do original: “Crime figures for ‘The District’ are so heinous that they embarrass even J. Edgar
Hoover”.
51

pouco formal de Thompson é a mesma de tantos jovens leitores da revista na qual a matéria
em análise foi publicada.

Presença do leitor
A figura do leitor, então, começa a se delinear na medida em que o texto vai se
desenvolvendo. O destinatário da mensagem revela-se através dela como alguém que aceita e
compreende gírias e palavrões, bem como está aberto para uma visão crítica a respeito da
administração das instituições executivas norte-americanas.
O diálogo travado entre Thompson e os jovens “freaks” negociadores de carro sobre a
validade de se fazer uma cobertura das eleições de 1972, citado mais acima nesta análise,
talvez só possa ter grande importância para leitores simpáticos ou que compreendam a
contracultura. Da mesma forma, quando Thompson desce do carro para ajudar os rapazes com
o pneu furado, ele ironiza o perigo de parar para prestar socorro, dizendo que aqueles
poderiam ser assassinos, “talvez Manson”. É o leitor que precisa fazer o exercício mental de
completar o nome para compreender que o narrador estava falando de Charles Manson, ícone
da contracultura do anos 1960. Manson, fundador de uma comunidade hippie, acabou virando
líder de um grupo responsável pelo assassinato de Sharon Tate, esposa do cineasta Roman
Polanski, em 1969.
Espaços como esse, que aproximam a narrativa e exigem do leitor um determinado
tipo de conhecimento para a melhor compreensão, apontam uma certa imagem de um leitor
para o qual o narrador escreve.

5.2 FEAR & LOATHING IN WASHINGTON: THE MILLION POUND SHITHAMMER

Data de publicação: 03 de fevereiro de 1972

Hunter S. Thompson inicia este artigo comentando aspectos do “voto da juventude”21,


corpo de votantes jovens que estava sendo alvo de publicidade e atenção dos pré-candidatos.
O jornalista então narra sua chegada na “Convenção Política da Juventude Nacional”22, em
Washington, bem como foi sua rodada de perguntas e repostas com os representantes do

21
Thompson define o “youth vote” como “os 25 milhões ou mais de votantes entre 18 e 25 anos – indo, talvez
pela primeira vez às urnas” (“the 25 million or so new voter between 18 and 25 – going, maybe, to the polls for
the first time”) (p.05).
22
“National Youth Caucus”, no original (p.05).
52

evento. Thompson também narra uma visita de Eugene McCarthy, pré-candidato democrata, a
uma fábrica de sapatos em sua campanha à presidência de 1968. Com sua crescente
popularidade, McCarthy parece convicto de que poderia ser um forte concorrente em 1972,
até mesmo em um frágil terceiro partido – fato que incomodaria os democratas, pois dividiria
os votos de oposição ao então presidente Richard Nixon.
O jornalista gonzo também se defende de críticas à sua primeira matéria da cobertura.
Depois de ter chamado o William Rehnquist, doutor em Direito, de “porco” ao descobrir que
este seria nomeado juiz associado da Suprema Corte dos Estados Unidos, o repórter diz ter
recebido juízos negativos de seu trabalho em virtude de não fazer um “jornalismo objetivo”.
Neste momento, Thompson assume sua postura opinativa, condenando com veemência um
jornalismo que se pretende objetivo. O texto se encerra com uma reflexão acerca do momento
político, onde a preocupação da esquerda não era eleger o melhor candidato, e sim qualquer
um que pudesse não estender o mandato de Richard Nixon.

Focalizações
As narrativas a respeito de Eugene McCarthy presentes no artigo em análise ilustram a
opinião do narrador a respeito do político, assim como servem para melhor interpretar a
popularidade de sua campanha. Nestes curtos períodos narrativos, a focalização continua
homodiegética, porém perde seu caráter autodiegético – o narrador continua presente na ação,
porém não é o protagonista.
Colaborando para demonstrar a opinião de Thompson a respeito de McCarthy, o
jornalista se põe a narrar o dia em que observou o então pré-candidato a presidência de 1968
na porta de saída de uma fábrica a fim de cumprimentar eleitores. O narrador então parece
zombar de como McCarthy ficou pouco à vontade em meio aos populares:

McCarthy estava obviamente sofrendo; não tanto porque nove entre dez
pessoas se recusavam a apertar sua mão, mas porque ele realmente odiou estar
lá no primeiro lugar. Mas seu diretor de campanha disse a ele que era
necessário, e talvez fosse...23

Mesmo tratando de uma história em que não foi protagonista e nem teve participação
ativa, o narrador não deixa de se fazer presente, comentando o ocorrido. Sendo assim, a
focalização é acentuadamente interventiva; além disso, é interna, pois a percepção dos fatos

23
Tradução livre do original “McCarthy was obviously suffering; not so much because nine of ten people refuse
to shake his hand, but because he really hated being there in the first place. But his manager had told him it was
necessary, and maybe it was…”
53

relatada é a do narrador: ele não está preocupado em pintar um retrato absoluto do que
acontece, e sim em demonstrar como apreendeu aquela realidade.
Mas o texto também abre espaço para arroubos estritamente autodiegéticos. Isso
acontece em duas ocasiões principais: quando Thompson narra sua expulsão do camarote de
imprensa de um jogo de futebol americano, e depois quando encontra o presidente do mesmo
time em um avião e descobre que a expulsão pode estar relacionada com o fato de o jornalista
ter chamado o jurista Willian Rehnquest, indicado de Richard Nixon para a Suprema Corte
americana, de “suíno” na matéria da Rolling Stone publicada em janeiro.
É interessante perceber neste momento que estas pequenas narrativas começam já
neste segundo artigo a delinear uma história maior: a saga de Hunter S. Thompson como
repórter da eleição de 1972. Caberá ao leitor que acompanha esta trajetória a tarefa de montar
o quebra-cabeça, encontrando esta unicidade narrativa ao longo cobertura. Até aqui já foi
possível perceber os problemas do jornalista em sua adaptação em Washington e, agora, de
que modo a publicação de um primeiro trabalho relacionado à campanha está repercutindo em
sua vida pessoal.
Dentro de seu melhor estilo de focalização interventiva, Thompson rebate as críticas
ao seu trabalho durante esta narrativa que se delineia:
“Jornalismo objetivo é uma coisa muito difícil de se conseguir por estes dias.
Todos nós o almejamos, mas quem pode apontar o caminho? O único homem
que me vem à mente é meu colega da Editoria de Esportes, Raoul Duke. A
maioria dos jornalistas apenas fala de objetividade, mas dr. Duke a arranca
direto de sua maldita garganta. Você ficará bastante pressionado a encontrar
qualquer argumento, entre profissionais, que questione a Objetividade de
Duke.

Convém lembrar que Raoul Duke é o pseudônimo de Hunter S. Thompson em Fear


and Loathing in Las Vegas. Além de confundir o leitor que não conhece sua obra, ele ainda
intervém com um comentário mais direto: “com a possível exceção de coisas como quadros
de pontuação, resultado de corridas e números do mercado de ações, não existe algo como
Jornalismo Objetivo” 24 (p.07).

Estratégias de objetivação
Assim como pudemos perceber na matéria de janeiro, é abundante o uso de dêiticos
pessoais referentes a personalidades reais, o que conecta a matéria a este universo. A maior
parte dos personagens que aparecem nas páginas de Thompson já são conhecidos do público a

24
Tradução livre do original “With the possible exception of things like box scores, race results and stock market
tabulations, there’s no such thing like Objective Journalism”.
54

partir de outras fontes de informação. Sendo assim, o jornalista contribuirá para que o público
conheça outros aspectos e formule diferentes juízos a respeito destes personagens, mas não os
cria em absoluto, e sim faz referência a um corpus de figuras públicas pré-existentes. Este
caráter é acentuado neste segundo artigo, pois aqui o narrador não irá se demorar narrando
episódios que envolvam anônimos como os dois “freaks” vendedores de carro citados na
matéria de janeiro.
Mais uma vez Thompson fundamenta suas argumentações em dados numéricos.
Quando reflete a respeito da possibilidade de o “voto da juventude” ser um fator decisivo da
eleição, ele aponta que a diferença de votos entre o perdedor Hubert Humphrey e o vencedor
Richard Nixon, em 1968, foi de apenas 499.704 votos. Ele ainda faz cálculos para demonstrar
que, se a eleição fosse disputada por apenas dois candidatos fortes, ela seria decidida por uma
margem de votos inferior à décima parte dos 25 milhões de novos eleitores. Diz Thompson:
“Pense nisso: Apenas dez por cento! Dois milhões e meio. Este é o suficiente – até de acordo
com os próprios adivinhos de Nixon – para decidir quase qualquer eleição” 25.
O conhecimento demonstrado pelo narrador a respeito das eleições anteriores, bem
como a demonstração de sua presença em eventos como a visita do pré-candidato Eugene
McCarthy à fábrica de sapatos – citada mais acima, entre outros acontecimentos políticos,
fortalece a imagem do narrador como alguém adequado para a tarefa de realizar uma
cobertura como esta em análise. O acúmulo de experiências e conhecimentos contribui para
que o leitor encare as narrativas e comentários de Thompson como relevantes e bem
fundamentadas, ainda que possamos discordar de suas opiniões ou não gostar de sua
agressividade em relação a alguns personagens.

Estratégias de subjetivação
O humor baseado no exagero e no sarcasmo começa a se firmar como tendência nessa
segunda matéria. Esta característica do humor gonzo já apontada por Czarnobai (2003)
emerge num trecho bastante ilustrativo em que o narrador conta a visita de Eugene McCarthy
à fábrica de sapatos em sua campanha de 1968. Após descrever como McCarthy parecia
sofrer em meio aos populares, Thompson brinca com o fato de a visita não ter sido transmitida
pela televisão:

Havia ao menos uma câmera de rede de televisão por lá naquela tarde, mas a
cena jamais foi ao ar. Era doloroso demais apenas estar lá, mas transmitir a

25
Tradução livre do original “Think of it: only ten percent! Two and half million. Enough – even according to
Nixon’s own wizards – to swing almost any election.”
55

cena em um canal de televisão nacional teria sido um ato de genuína


crueldade26 (p.06).

Da mesma forma, podemos interpretar que o narrador está sendo sarcástico com os
leitores que criticaram seu primeiro artigo da cobertura ao afirmar que o suposto Raoul Duke
– pseudônimo de Thompson em Fear and Loathing in Las Vegas – seria o único homem
capaz de apontar o caminho para o “jornalismo objetivo”. Quando Thompson faz isso,
apresenta uma piada que apenas os conhecedores de sua obra anterior possuem a chave para
entender.
Ao impossibilitar o entendimento desta piada aos que não conhecem – ao menos
superficialmente – sua obra, o jornalista parece querer afastar alguns leitores, ao mesmo
tempo em que angaria a simpatia de outros. Os leitores que compreendem a brincadeira ali
exposta acabam de alguma forma se identificando com o narrador, pois ambos partilham de
certo tipo de conhecimento restrito a certo grupo. Lembremos neste momento que Fear and
Loathing in Las Vegas não havia ainda sido publicado em livro, tendo aparecido apenas nas
páginas da Rolling Stone.
Mas esta aproximação com leitor não tem como recurso único zombar daqueles que
não partilham de determinados conhecimentos. O narrador busca apresentar o autor como
alguém que possui características da contracultura, possibilitando gerar uma identificação
maior entre Thompson e os simpáticos a este movimento. O protagonista aparece muitas
vezes como alguém que se veste e age de maneira bastante informal, o que caracteriza a
revolução cultural juvenil que se inicia no final dos anos 1960.
Dessa maneira, é possível compreender porque o narrador destaca o fato de seu
protagonista chegar atrasado à Convenção Política Nacional da Juventude e tece comentários
sobre o seu modo de vestir, algo pouco comum em outras coberturas jornalísticas. No trecho
abaixo, Thompson demonstra o desconforto que causa sua presença causa durante a
Convenção e outros eventos políticos (p.07):

E por essa hora eu estava me sentindo muito nu e saliente. Minhas roupas e


meu comportamento em geral não são considerados normais pelos padrões de
Washington. Calças jeans não funcionam nesta cidade; se você aparece
vestindo jeans eles pensam que você é um empregado ou um mensageiro. Isto é
particularmente verdadeiro em coletivas de imprensa de alto nível, onde

26
Tradução minha do original “There was at least one network TV camera on hand that afternoon, but the scene
was never aired. It was painful enough just being there, but to have to put that scene on national TV would have
been an act of genuine cruelty”.
56

qualquer desvio dos padrões do vestuário jornalístico é considerado rude e


talvez até perigoso27 (p.07).

A conduta e o vestuário de Thompson refletem a conduta e o vestuário desta geração


que procura na informalidade de comportamento uma maneira diferente de se relacionar com
o mundo. Não seria exagerado, portanto, afirmar que um dos fatores que granjeia
identificação e simpatia por parte de seus leitores é certo caráter de representante da
contracultura que o autor leva consigo para a cobertura, e que deixa transparecer através do
narrador de suas matérias.
Em alguns momentos Thompson deixa bastante claro que vivencia o conflito de
gerações característico da época. É o caso de quando vai pegar credenciais na Casa Branca
pela primeira vez, sendo recepcionado por uma senhora que desconhecia a revista Rolling
Stone. À pergunta “Rolling o quê?” feita pela recepcionista, Thompson responde com a frase
28
“Talvez fosse melhor você perguntar para alguém um pouco mais jovem” (p.06). Além do
caráter de representação de uma nova cultura, mais uma vez o estilo jocoso e sarcástico se
revela através desta passagem.

Presença do leitor
Como vimos acima, é possível encontrar marcas no texto da figura de leitor ao qual
Hunter S. Thompson está se dirigindo. O narrador expõe certas lacunas através das quais
podemos identificar este leitor como alguém próximo dos valores da contracultura e
possivelmente jovem.
Como vimos mais acima, Thompson usa o modo verbal imperativo para dizer
diretamente aos seus leitores a sentença “Pense nisso: Apenas dez por cento!”, e assim tentar
demonstrar que o poder do “voto da juventude” seria tão grande que apenas um décimo destes
votantes já poderia ser suficiente para decidir a eleição. É interessante perceber como neste
trecho o narrador apela diretamente ao leitor, convidando-o a pensar no assunto que está
tratando. Talvez Thompson esteja tentando se referir diretamente a estes jovens entre 18 e 25
anos que poderiam decidir quem iria presidir seu país, tentando fazê-los tomar consciência
disso e agir. Corrobora para esta possibilidade a presença de um quadro, bem ao lado da frase

27
Tradução livre do original “And by this time I was feeling very naked and conspicuous. My garb and general
demeanor is not considered normal by Washington standards. Levis don’t make it in this town; if you show up
wearing Levis they figure you’re either a servant or a messenger. This is particularly true in high-level press
conferences, where any deviation from standard journalistic dress is considered rude and perhaps even
dangerous.”
28
Tradução livre do original “Rolling what?” e “You’d better ask somebody a little younger.”
57

citada, com todos os endereços onde eleitores poderiam se cadastrar para a votação nos
diversos estados norte-americanos.
O narrador também fica à vontade para citar figuras da cultura popular, idealizando
um leitor que as conheça. Um exemplo notório acontece quando Thompson trata da
Convenção Política da Juventude Nacional. O jornalista apresenta os membros da mesa que
compôs o evento: Duane Draper, “um ex-estudante” e “organizador principal [do evento]”, e
o “senador Fred Harris, do Oklahoma”. Logo em seguida, o narrador conta que “Harris não
falou muito, apenas sentou lá parecendo Johnny Cash”29 (p.05). Saliento observar que
“Johnny Cash” não vem acompanhado de aposto algum como “cantor e compositor” ou
“cantor folk”.
Com isso, podemos perceber que Thompson faculta ao seu leitor saber ou não quem é
Fred Harris ou Duane Draper, no entanto presume que o mesmo leitor saiba quem é Johnny
Cash, músico que dispensou apresentações neste caso, ao contrário do militante estudantil e
do senador.

5.3 FEAR AND LOATHING: THE VIEW FROM KEY BISCAINE (MEDO E DELÍRIO: A
VISTA DE KEY BISCAINE)

Data de publicação: 16 de março de 1972

Neste artigo, Hunter S. Thompson continua tratando da escolha do candidato do


partido Democrata, e também revê sua trajetória na cobertura eleitoral com um olhar crítico
sobre a imprensa. Escrevendo de Key Biscaine, vilarejo próximo a Miami, onde o repórter
está acomodado para acompanhar a primária deste estado, Thompson trata da incerteza que a
crescente popularidade de Edmund Muskie, senador do Maine, e de John Lindsay, prefeito de
Nova Iorque, traz para os Democratas. Sendo Lyndsay escolhido como candidato ou como
vice de Muskie, os planos do senador Edward “Ted” Kennedy para a presidência em 1976
estariam ameaçados, já que ele e Muskie seriam grandes desafetos, e um não apoiaria o outro
como sucessor. Esta situação, segundo Thompson, poderia forçar Kennedy a concorrer para
presidente ainda em 1972, fator que traria ainda mais incertezas em relação à escolha dos
democratas.

29
Tradução livre dos originais “a former student”, “main organizer”, “Senator Fred Harris from Oklahoma” e
“Harris didn’t say much; he just sat there looking like Johnny Cash.”
58

O repórter aponta que conversas a respeito de assuntos como esse acontecem


constantemente entre jornalistas e políticos, no entanto raramente são publicadas, dando lugar
para assuntos mais amenos nos jornais. A partir disso Thompson condena a maneira de fazer
jornalismo de seus colegas e revê um pouco de sua trajetória desde a mudança para
Washington, tratada na matéria de janeiro, até a tranqüilidade litorânea e momentânea de Key
Biscaine.

Focalizações
Como já havíamos começado a observar nas análises das matérias anteriores, as
narrativas e comentários que vão compondo a cobertura de Thompson tomam corpo ao serem
organizadas na mente do leitor, compondo narrativas maiores. Dentro da perspectiva de uma
história das eleições norte-americana de 1972, a narração de Thompson é homodiegética, o
narrador participa do mundo que está narrando e interage com seus personagens. Pensando,
por outro lado, na narrativa da saga de um repórter de uma revista alternativa em uma grande
campanha eleitoral, temos um narrador autodiegético – que além de participar do mundo que
narra e interagir com seus personagens, é ele mesmo o próprio protagonista.
De qualquer forma, mesmo tratando de si ou de terceiros, o narrador destas matérias
reafirma sua focalização restritiva e interna. O caráter restritivo, oposto à onisciência, como já
vimos anteriormente, é característico das narrativas jornalísticas, já que os repórteres não
podem ter conhecimento de todas as informações de uma história e nem podem compreender
todos os meandros da mente de seus personagens.
Mesmo assim, podemos classificar a focalização de Thompson como interna, pois ele
não se limita a apenas descrever as ações de seus personagens, tentando também interpretar
seus sentimentos e até mesmo fazer projeções para o futuro. É o caso da tensão entre o pré-
candidato John Lindsay e seu desafeto Edward Kennedy: o narrador diz que até mesmo a
vitória de Edmund Muskie como candidato principal, combinada com a candidatura a de
Lindsay a vice, seria algo “pesado para Kennedy conseguir conviver” e afirma que a entrada
de Kennedy na corrida eleitoral faria muitos eleitores que não pensavam em votar “mudarem
de idéia bem rápido” 30 (p.14).
Novamente temos um narrador bastante interventivo, que não tenta esconder-se atrás
da neutralidade. Ao contrário, a ênfase na opinião começa a figurar como uma das
características da cobertura em análise: Thompson se dedica por longos períodos a comentar

30
Tradução livre do original “Hard for Kennedy to live with” e “change their minds in a hurry”.
59

assuntos que parecem já serem de conhecimento do público: a falta de um nome forte para a
candidatura democrata; o “voto da juventude”; e, nesta matéria de março, a popularidade
crescente de John Linday e suas possíveis conseqüências em relação a Edward Kennedy.

Estratégias de objetivação
Como vimos nas análises anteriores, o texto denota estar falando do mundo político
real ao usar dêiticos que referenciam pessoas e lugares conhecidos dos leitores como ligados à
realidade material no tempo da produção das matérias. Já foi possível observar alguns dêiticos
pessoais até onde trabalhei este artigo: Edward “Ted” Kennedy, John Lyndsay, e Edmund
Muskie – Thompson também cita Eugene McCarthy e Richard Nixon, entre outros políticos.
Quanto aos lugares, o repórter afirma estar em Key Biscaine, onde também estavam
acomodados os candidatos em campanha para a primária da Flórida, e que logo rumaria para
o estado da Geórgia, acompanhando a mesma trupe. As descrições colaboram para o leitor
sentir o narrador imerso naquele universo. Thompson afirma que sua suíte fica em um grande
palmeiral, de onde pode ver o oceano Atlântico e ouvir o mar batendo em um paredão bem
próximo.
Mais uma vez o narrador não se preocupa em demarcar o tempo de forma precisa.
Quando afirma ter ouvido comentários da equipe de Edmund Muskie a respeito de uma
possível entrada de Edward Kennedy na corrida eleitoral, Thompson apenas diz que isto
acontecera há “alguns dias atrás”31 (p.14). Da mesma forma, ele afirma estar escrevendo
rápido pois terá que sair do hotel em duas horas, mas não esclarece qual é o horário e nem o
dia em que produz sua matéria. É interessante perceber neste trecho a abundância de dêiticos
de lugares em oposição ao pouco detalhamento do tempo:

Então, melhor do que perder mais um prazo de entrega de matéria, quero


resolver isso de uma vez com 500 palavras rápidas e cheias de significado...
porque este é todo espaço disponível e daqui a duas horas eu preciso chicotear
meu conversível vermelho encharcado de rum pela ponte Rickenbacker em
direção ao centro de Miami e depois ao aeroporto32 (p.14).

Apesar do tempo aparecer com pouca precisão, ele pode ter uma importante função
objetivante. Como destaca Motta (2007, p.157), o jornalismo deve muito do seu “efeito de
real” ao organizar histórias em sucessão em um tempo presente, onde passado e futuro

31
Tradução livre do original “a few days ago”.
32
Tradução livre do original “So, rather, than miss another deadline, I want to zip up the nut with a fast and
extremely pithy 500 words…because that’s all the space available, and in two hours I have to lash my rum-
soaked red convertible across the Rockenbacker Causeway to downtown Miami and then to the airport”
60

“tendem a amenizar-se: tudo gira em torno do hoje, do aqui, do agora”. Apesar do texto de
Thompson não ter difusão imediata – seria preciso ainda transcrevê-lo, diagramá-lo, imprimi-
lo e distribuí-lo – ele organiza histórias e opiniões em torno do tempo presente de sua
produção, coisa que a urgência diante do prazo acaba deixando transparecer. Ao final da
matéria, o narrador mais uma vez irá deixar aparente seu caráter reflexivo em torno do tempo
imediato: quando está fazendo conjecturas de como Edward Kennedy poderia mudar o
cenário da campanha democrata, ele afirma que “esta é uma projeção muito complicada e
precisa de um pouco mais de reflexão do que eu tenho tempo para fazer agora” 33 (p.14).
Outro aspecto que pode contribuir para o leitor atribuir veracidade à cobertura de
Thompson é sua crítica aos outros veículos de imprensa: ao expor as limitações deste em
relação à liberdade para publicar o material que quisessem, o jornalista gonzo deixa explícito
que pode estar oferecendo informações mais aprofundadas e exclusivas que realmente
ajudariam o leitor a desvelar o que acontece na campanha. Isto acontece, por exemplo, logo
após Thompson, narra uma conversa com um empresário das relações públicas que afirmava
poder fazer o estado da Geórgia votar em qualquer candidato democrata, sendo que Edward
Kennedy seria o nome mais fácil de trabalhar. O repórter então diz que este tipo de conversa
é muito comum quando empresários, candidatos e jornalistas sentam para “‘falar sério de
34
política’ – em oposição à cuidadosa conversa fiada que destilam nos impressos públicos”
(p.14). Sendo assim, a matéria estaria iluminando os bastidores da campanha, tornando
público um tipo de informação que não sairia comumente na grande mídia, mas que teria
valor importante para se compreender o processo eleitoral daquele momento.

Estratégias de subjetivação
A escrita rápida de Thompson faz colidir de maneira muito próxima o eu narrador e o
eu narrado em alguns momentos desta matéria. Quando o narrador afirma ter de escrever
rápido e com palavras cheias de significado, pois seu tempo para entregar o texto está se
acabando, ele tenta minimizar a distância entre narrador e o sujeito histórico que prepara este
material, dividindo com o leitor sua própria angústia do momento.
Seria possível que o discurso do narrador fosse bastante diverso do cotidiano do autor
Hunter S. Thompson. Se não tivéssemos observado durante este trabalho que o jornalista
realmente era acometido por um verdadeiro pânico no fim do prazo de entrega de suas

33
Tradução minha do original “This is a very complicated projection and it need a bit more thought than I have
time to give right now”.
34
Tradução livre do original “‘talking serious politics’ – as opposed to the carefull gibberish they distill to the
public prints”.
61

matérias, poderíamos tranquilamente questionar o caráter falso deste texto, imaginando o


repórter forjando calmamente esta narrativa apressada, revisando dois dias depois, e a
enviando com tempo de sobra para edição na sede da Rolling Stone em São Francisco. No
entanto, mesmo que assim fosse, o narrador protagonista se coloca em apuros, e o faz com
uma linguagem rápida e coloquial que lhe confere verossimilhança.
O prazo exíguo para escrever seu artigo como obstáculo, um carro conversível
empapado de rum e um avião à espera para levar Thompson a outro estado depois de alguns
dias numa praia da Florida: tudo isso empresta certo espírito aventureiro ao texto – alguém
precisa vencer um desafio, e tem lá fora um possante veículo que precisa dirigir rápido para
não perder a hora do avião que vai levá-lo a outro cenário onde continuará sua saga. Este
aspecto é fortalecido também pelo caráter combativo do repórter, que sabe ser um estranho no
seu novo meio de convívio, mas que vai desafiar aqueles que duvidam da importância de sua
presença.
Nesta matéria em análise, por exemplo, o jornalista volta a comentar a dificuldade em
conseguir credenciais para entrar na Casa Branca. Segundo ele, as credencias eram negadas
sob a afirmativa de que tal revista não as precisaria, já que era uma publicação sobre música
“e não há muita música na Casa Branca por estes dias”35 (p.14). Provocativamente, Thompson
irá afirmar para seus leitores certo orgulho em ser barrado na Casa Branca, dizendo que “há
muitas vantagens em ter seu nome na Lista Negra de lugares como aquele” 36.

Presença do leitor
Nesta matéria da segunda quinzena de março, podemos observar a figura do leitor
como alguém receptivo não apenas para os acontecimentos da campanha eleitoral, com
também para como o repórter está vivenciando esta cobertura. Talvez atitudes como a que
vimos acima, em que do jornalista diz que precisa de mais tempo para refletir e por isso não
apresentará um quadro mais completo de como ficaria a disputa entre os democratas com a
entrada de Edward Kennedy no cenário, seriam encaradas como falta de profissionalismo para
leitores de outros veículos. No entanto, diante de sua audiência, Thompson não parece
envergonhado em apresentar raciocínios em construção ao invés de opiniões tácitas e
completas. Além disso, esta acaba se configurando como uma estratégia que gera suspense na
audiência, criando expectativa para a próxima matéria.

35
Tradução livre do original “and there is not much music in the White House these days”.
36
Tradução livre do original “there are definite advantages to having your name on the Ugly List in places like
that.”
62

A preocupação do jornalista em mais uma vez descrever suas dificuldades de trabalho


em Washington também indica que o narrador tem em mente um leitor que gostaria de saber
mais a respeito deste assunto. O modo como as esferas mais altas do poder político se
comportam em ter diante de si um representante da contracultura parece se firmar como um
dos temas preferidos de Thompson nestes artigos. O narrador demonstra não mudar seus
hábitos pessoais e sua maneira de vestir, fazendo com que o conflito entre o stablishment e a
nova cultura aconteça, e então oferece a sua versão dos fatos para o leitor – que talvez use as
mesmas roupas, consuma as mesmas drogas e goste da idéia de que alguém esteja ostentando
orgulhos seu novo modo de se relacionar com o mundo bem no meio das instituições que
representam o poder estabelecido e formalizado.

5.4 FEAR AND LOATHING: LATE NEWS FROM BLEAK HOUSE (MEDO E DELÍRIO:
ÚLTIMAS NOTÍCIAS DA CASA SEM VIDA)

Data de publicação: 11 de maio de 1972

Thompson escreve de Milwaukee, maior cidade do estado de Wisconsin, estado do


centro-leste norte-americana, onde seria realizada mais uma primaria das eleições. Thompson
descreve a cidade em uma pacata manhã de páscoa, tecendo comentários sobre a poluição da
cidade e o comportamento protocolar de seus habitantes, entre outras coisas. Logo após, o
repórter narra sua visita ao hotel onde o senador da Dakota do Sul, George McGovern, e sua
equipe de campanha estão hospedados. A esta altura, McGovern já havia conseguido apoio
político e popular suficientes para se tornar um nome forte para a nomeação de candidato pelo
partido Democrata. Esse triunfo deixa Thompson exultante, fazendo-o apoiar abertamente o
senador em suas matérias.
O jornalista descreve um clima de descontração e alegria entre McGovern e seus
apoiadores, em oposição à primaria de New Hampshire, onde “ninguém ao menos sorriu”, e
da Florida, da qual Thompson diz que “o clima estava tão para baixo que me senti culpado até
de dar umas voltas”37 (p.28). Mas, ao contrário da descrição alegre e promissora do senador
da Dakota do Sul, Thompson destila sua verve criativa sobre os dois outros pré-candidatos
democratas: Edmund Muskie e Hubert Humphrey. Thompson cria uma história fantasiosa na

37
Tradução livre do original “nobody ever even smiled” e “the mood was so down that I felt guilty even hanging
around”
63

qual Muskie estaria viciado em uma rara droga de origem africana; enquanto isso, Humphrey
aparece no texto fazendo uso de anfetaminas, seu modo de fazer campanha é ridicularizado, e
o jornalista também afirma que há um consenso entre seus colegas de imprensa de que o pré-
candidato estaria senil (p.30)

Focalizações
O texto se inicia no quarto de hotel de Thompson, de onde ele falará de Milwaukee
como uma cidade poluída e de hábitos conservadores, narrará as notícias que ouve no rádio,
relacionando-as com o quadro das eleições até aquele momento e as expectativas da votação
da próxima primária. Novamente podemos organizar o texto dentro do esquema de duas
grandes narrações complementadas pelas matérias anteriores e posteriores. Uma delas diz
respeito ao processo das eleições e outra à história de Thompson como repórter.
A saga do jornalista gonzo na cobertura eleitoral, como já pudemos ver nas análises
anteriores, tem focalização marcadamente autodiegética, com um eu narrador muito próximo
do eu narrado. Em certos momentos, a barreira de tempo entre os acontecimentos da história e
sua enunciação parece deixar de existir, como neste trecho: “Manhã de Páscoa em
Millwaukee; dez minutos para as cinco. A aurora luta para avançar sobre a poluída névoa do
lago Michigan ao leste. Posso sentir o nascer do sol, mas não consigo vê-lo” 38 (p.26).
O narrador continua sendo homodiegético, porém não mais autodiegético, ao
tentarmos isolar a narrativa da corrida eleitoral. Thompson atualiza o leitor com informações
que ouve no noticiário da manhã, logo após o nascer do sol citado acima, e também, em
seguida, demonstra a descontração e alegria do hotel de McGovern. Assim, temos um
narrador envolvido no mundo que narra e que até mesmo explicita seu processo para
conseguir as informações da trama que oferece aos seus leitores.
Sendo assim, reafirma-se mais uma vez a focalização restritiva em oposição à
onisciente. O narrador não apenas demonstra não saber de todas as informações da história
que narra, como também se mostra as captando. Mesmo em relação à sua própria saga, o
repórter jamais será onisciente pois desconhece a totalidade da mente de seus personagens,
bem como constrói a história ao longo da cobertura, não podendo prever seu futuro.
Além disso, temos novamente a focalização interna, pela qual o narrador se ocupa de
ir além dos fatos, descrevendo também sensações e emoções. Exemplo disso são os trechos já

38
Tradução livre do original “Easter morning in Millwaukee; tem minutes before Five. Dawn is struggling up
through the polluted mist on Lake Michigan to the east. I can sense the sunrise, but I can’t see it”.
64

citados no início desta análise, os quais mostram o narrador descrevendo o clima nada alegre
das primárias de New Hampshire e Flórida.
A focalização interventiva parece se firmar, nesta quarta matéria analisada, como
marca deste narrador que observamos. Thomspson comenta a poluição de Milwaukee, o
quadro de expectativas para a votação da primária, o bom humor que desponta do sorriso de
McGovern, etc. O jornalista não precisa tanto narrar e apresentar os fatos que aconteceram
entre uma matéria e outro de sua cobertura, uma vez que o jornalismo diário de outros
veículos daria conta disso, abrindo espaço para que ele fique mais livre para comentar os
acontecimentos e interpretá-los de que relatá-los.

Estratégias de objetivação
O narrador, assim como vinha fazendo anteriormente, tem grande preocupação em
usar dêiticos espaciais, demonstrando estar presente e fundamentando suas narrativas em
espaços que dão “efeito de real” (MOTTA, 2007, p.156). No trecho abaixo, Thompson
destaca a proximidade do quarto no qual está hospedado com o quarto do pré-candidato
Hubert Humphrey:

É apenas o milagre da fita que nos traz o guincho estalado da voz de Hubert
Humphrey a esta hora da manhã de páscoa [pelo rádio].
Por que eu sei, por um fato absoluto, que ele está dormindo a menos de 50
metros desta máquina de escrever. Ele está no quarto 2350 do andar de cima; a
cerca de trinta segundos daqui, certo como o corvo voa39 (p.26).

O uso do tempo presente, como pudemos observar na matéria anterior, também é uma
das estratégias que afirma o texto como atualidade. O narrador irá radicalizar esta tendência
citando até mesmo a urgência de escrever diante do processo que se seguirá até os leitores
terem em mãos a revista que estão lendo:

Quero alguma música decente, para poder continuar trabalhando. O Tempo é


um fator aqui. Em 48 horas os votantes do Wisconsin irão às urnas, e na manhã
depois disso, as prensas da Rolling Stone vão começar a mandar a edição 107
para as bancas de Nova Iorque & São Francisco na terça-feira – e na quarta-
feira em Boston, Washington, Los Angeles...40 (p.26).

39
Tradução livre do original “It is only the miracle of tape that brings us the cracked screeching of Hubert
Humphrey’s voice at this hour on Easter morning.
Because I know, for an absolute fact, that he is sleeping less than fiftty yards away from this typewriter. He is
upstairs in room 2350; about30 seconds from here, as the raven fly.”
40
Tradução livre do original “I want some decent music, in order to keep working. Time is a factor here. In 48
hours the voters of Wisconsin will go to the polls, and the morning after that the Rolling Stone presses will start
cranking out No. 107, for newsstand sale in New York & San Francisco on Tuesday – and on Thursday in
Boston, Washington, LA…”
65

O uso dos dêiticos temporais, que observamos não serem muito precisos nas matérias
anteriores, agora são tratados com mais exatidão. Sabemos assim que Thompson começa a
escrever sua matéria três dias antes da revista ir para as bancas (08 de maio de 1972), às
04h50m.

Estratégias de subjetivação
Esta matéria de maio expõe um narrador extremamente criativo para exercer seu
sarcasmo. O envolvimento do pré-candidato Edmund Muskie com a droga de origem africana
chamada ibogaína é comprovadamente falso, negado inclusive pelo próprio autor, como é
possível ver em um depoimento de arquivo no documentário Gonzo: the life ande work of dr.
Hunter Thompson (2008).
O arroubo fantasioso do narrador compara o comportamento e o discurso do pré-
candidato a efeitos colaterais e alucinações que a droga causaria, ridicularizando Muskie,
como no trecho abaixo:

Reconheci imediatamente o Efeito Ibogaína – pelo colapso de lágrimas de


Muskie no caminhão-palco em New Hampshire, as ilusões e pensamentos
alterados que caracterizaram sua campanha na Florida; e finalmente a “fúria
total” que tomou conta dele em Wisconsin (p. 28).

Ao mesmo tempo em que usa características do comportamento de Muskie de forma


exagerada para fundamentar sua “hipótese” do uso da ibogaína, o narrador também lança mão
de um personagem misterioso: um médico brasileiro do qual saberia da existência através de
“rumores”, mas não que não conseguiu conhecer e nem ao menos ver. Segundo a matéria,
seus colegas de imprensa comentavam que Muskie estava sendo tratado pelo médico em
questão com “algum tipo estranho de droga”41. No documentário de Gibney (2008), podemos
ver Thompson “esclarecendo” jocosamente estes rumores: “sim, estes rumores existiam: fui
eu mesmo que os criei”.
Quanto ao uso de anfetaminas por Hubert Humphrey, não posso afirmar que seja falso,
mas é apenas mais um aspecto que o narrador usará para debochar do pré-candidato: “agora
ele fala como uma mulher de oitenta anos que descobriu a anfetamina”42 (p.30). O jornalista
ainda irá tecer outros comentários mordazes a respeito de Humphrey e a respeito do seu estilo
de campanha populista. Ao lembrar da participação deste nas eleições de 1968, Thompson irá

41
Tradução minha do original “some kind of strange drug”.
42
Tradução minha do original “Now he talks like a 80-year-woman who just discovered speed”.
66

dizer que ele já era “mercenário” e “idiota”, mas pelo menos tinha um discurso mais
consistente.

Presença do leitor
Thompson parece ter em mente a figura de um leitor sagaz, que aceita a fantasia em
seus textos, sabendo frui-la sem considerar falso todo o trabalho de real pesquisa a respeito da
eleição que o repórter vem fazendo. Além disso, o uso deliberado da fantasia conecta-se de
alguma forma com uma importante característica da contracultura, da qual tratamos no início
deste trabalho: a valorização do encantamento mágico.
Sendo assim, a matéria consegue trazer ao leitor atento e identificado com os valores
de uma nova cultura jovem um texto rico em informações e, ao mesmo tempo, bem-humorado
– ridicularizando e fazendo graça da pretensa seriedade do campo político através da sátira.
As opiniões radicais presentes nesta matéria, que desmerecem Edmund Muskie e Hubert
Humphrey como possíveis candidatos, colaboram para acreditarmos que Thompson está
procurando se dirigir a um leitor que está de acordo com sua visão política, já que este é um
texto que parece não admitir posições contrárias.
O contrato cognitivo estabelecido entre jornalista e audiência até aqui, não parece
muito diferente daquele descrito por Luiz Gonzaga Motta (2007), no qual ambos os lados
trabalham no sentido de conseguir “co-construir a realidade”, e com isso conhecer e
compreender melhor fenômenos como uma eleição presidencial. No entanto, o leitor, neste
caso, pode fazer isso através de um texto sarcástico, bem-humorado, e por vezes até
ludicamente fantasioso.

5.5 FEAR AND LOATHING: IN THE EYE OF THE HURRICANE (MEDO E DELÍRIO:
NO OLHO DO FURACÃO)

Data de publicação: 20 de julho de 1972

Esta matéria inicia com a descrição de como uma cobra de estimação de Hunter S.
Thompson conseguiu fugir de uma caixa de papelão onde estava trancada, e andar pelos
corredores do hotel onde o jornalista estava hospedado a serviço da Rolling Stone até ser
morta por um vigia noturno. O repórter afirma que sempre lembra dessa história quando pensa
em gastar menos em despesas pagas pela publicação, pois a morte da cobra era uma dívida
67

que a revista ainda não teria conseguido pagar, deixando-o com a consciência limpa para
gastar à vontade o dinheiro da Rolling Stone em serviço de quarto.
Sendo assim, Thompson pede um café da manhã em seu quarto de hotel em Nova
Iorque, e começa a ler o jornal New York Times e tecer comentários sobre a eleição a partir
da capa do periódico. O que chama a atenção do jornalista gonzo é que a capa poderia ter sido
a mesma de quatro meses atrás: a briga entre Hubert Humphrey e Edmund Muskie, ambos
com mais apoio do partido democrata, e George McGovern, com menos apoiadores de peso,
mas com boa popularidade. Até mesmo a incerteza da entrada de Edward “Ted” Kennedy
perseverava.
A Convenção Democrata Nacional, que finalmente nomearia o candidato do partido,
aconteceria ainda no mês de julho, no estado da Florida. Thompson comenta que nenhum
jornalista sabia exatamente o que estava acontecendo dentro do partido, ou se sabia, não
estava publicando nada a respeito. Hunter afirma que isto acontece porque o vício do poder
pode fazer com que se usem muitas estratégias baixas e secretas para seus dependentes
atingirem seus objetivos.

Focalizações
Com a aparente certeza de que o partido Republicano irá nomear o então presidente
Richard Nixon para tentar a reeleição e a disputa acirrada entre os vários pré-candidatos
democratas, a cobertura de Thompson sobre as eleições presidenciais norte-americanas acaba
centrando sua atenção sobre esta disputa. Uma narrativa do dilema dos democratas se
delineia, então, a partir do trabalho do jornalista gonzo.
Sendo uma narrativa da eleição presidencial ou da escolha do candidato que rivalizaria
com os republicanos, a focalização do narrador se revela mais uma vez homodiegética. Imerso
no universo das campanhas democratas e prestes a viajar para a Convenção Nacional em
Miami, Thompson mesmo assim comenta como é grande a sua limitação e de seus colegas
para entender o que acontece dentro do partido Democrata. Assim, podemos entender um
pouco mais da focalização restritiva não apenas de seu trabalho como de todo o jornalismo
político.
Sem entender como Edmund Muskie consegue o apoio de vários senadores e
governadores, tornando-se o pré-candidato com mais apoiadores entre os chefes do partido,
Thompson chega a apelar aos leitores para que alguém o explique como isso aconteceu: “Eu
68

quero saber dessa história, e se alguém pode me colocar por dentro dela nos detalhes, envie de
qualquer jeito de uma vez aos cuidados da Rolling Stone, em São Francisco” 43 (p.22).
Em outro momento, falando das possíveis manipulações, chantagens e compra de
votos dos delegados na Convenção de Miami, o narrador irá deixar clara a limitação do
jornalista em cobrir eventos políticos da magnitude de uma eleição: “Não tem jeito nem para
o melhor e mais talentoso jornalista saber o que realmente está acontecendo dentro de uma
campanha política a não ser que ele mesmo tenha estado lá”44 (p.24).
Além de a focalização restritiva ficar aparente em comentários como o citado acima,
também fica clara mais uma vez a focalização interventiva. As idéias de Thompson a respeito
de diversos assuntos emergem em seu texto, sendo muitas vezes seus comentários que
impulsionam a narrativa. Isto acontece na matéria em análise quando o jornalista lê o New
York Times e começa a comentar sua capa. Com este exercício de Thompson, o leitor ficará
sabendo que Edward Kennedy passou novamente a figurar como um possível candidato, e que
seria possível pensar numa aliança entre Kennedy e McGovern, mas para isso McGovern não
poderia continuar criticando com tamanha veemência o mercado baseado na livre iniciativa,
entre outras informações que fazem prosseguir a narrativa da escolha do candidato democrata.
Thompson também continua a narrativa de suas próprias desventuras dentro desta
matéria. O jornalista, como vimos mais acima, demonstra agora certa frustração por não
conseguir informações mais aprofundadas dos bastidores da campanha para oferecer aos seus
leitores, mostra-se preocupado por ter que votar em Richard Nixon caso Hubert Humphrey
seja seu oponente, e reações negativas a respeito de seu comportamento e sua maneira de
existir não aparecem nos textos mais recentes – fazendo-me crer que ele tenha se acostumado
a ser visto como um alienígena, ou então que o meio em que trabalha tenha se acostumado
com o jornalista gonzo a ponto de não estranhá-lo mais.

Estratégias de objetivação
Como já pudemos observar em análises anteriores, a experiência de Thompson e seu
conhecimento político podem ser encarados como recursos que emprestam um caráter de
maior veracidade ao texto. Nesta matéria de julho, Thompson irá deixar explícito que suas
vivências podem ser um diferencial da cobertura que está fazendo.

43
Tradução livre do original “I want to know that hitory, and if anybody who reads this can fill me in on the
details, by all means call at once c/o Rolling Stone, San Francisco.”
44
Tradução livre do original “There is no way for even the best and most talented journalist to know what is
really going on inside a political campaign unless he has been there himself”.
69

Assim como afirma que apenas alguém que já tenha “estado lá” – concorrendo em
uma eleição – pode saber como funciona e o que acontece em uma campanha, o repórter
gonzo rememora seus leitores que talvez seja o único jornalista que concorrera a algum cargo
público agora fazendo a cobertura eleitoral:

Até onde eu saiba, sou o único jornalista cobrindo a eleição presidencial norte
americana de 1972 que já esteve alguma vez do outro lado do fosso – tanto
como um candidato como nos bastidores das urnas, no nível local – e, apesar de
todas as óbvias diferenças entre concorrer na cédula Freak Power de Aspen e
concorrer como um bem-comportado democrata para a presidência do Estados
Unidos, as raízes são surpreendentemente similares45 (p.24).

Thompson está se referindo à adrenalina que o jogo político gera, capaz de transformar
os envolvidos em verdadeiros viciados. Já ter experimentado estas sensações pode fazer do
repórter gonzo alguém mais atento para o que acontece nos bastidores, e isso que ele tenta
fazer o leitor crer no trecho acima.
A matéria também conta com o uso de citações do New York Times, conectando
personagens e fatos tratados pelo jornalista gonzo ao universo de informações jornalísticas
sobre o processo eleitoral. Dessa forma, entra na narrativa de Thompson um tradicional
veículo de comunicação com “efeito de real” consolidado. Partir para o comentário sobre os
pré-candidatos democratas com base nas notícias do diário nova-iorquino faz com que a
análise do narrador seja feita a partir daquilo que é considerado factual pelo leitor.

Estratégias de subjetivação
Mais uma vez o humor é explorado pelo narrador de maneira significativa. A
fantástica história da cobra que escapa de caixa de papelão e é morta pelo vigia noturno abre
muitas possibilidades para piadas, narrada com tiradas rápidas de humor sarcástico. Ao
descrever, por exemplo, o pavor do vigia diante da cobra que não era venenosa, Thompson
brinca com o distanciamento da metrópole em relação à natureza, dizendo que “a maioria dos
nativos de ilha de Manhattan ficam aterrorizados diante de quaisquer animais, exceto baratas
e poodles” 46 (p.22). A própria história da fuga do réptil e sua trágica morte por um assustado
vigilante guarda algo cômico em seu caráter inusitado. O narrador consegue fazer graça com o
episódio, independente de ser verdadeiro ou não.

45
Tradução livre do original “As far as I know, I am the only journalist covering the ’72 presidential campaign
who has done any time on the other side of the gap – both as a candidate and a backroom pol, on the local level –
and despite all the obvious differences between running on the Freak Power ticket of Aspen and running as a
well-behaved Democrat for President of the United States, the roots are surprisingly similar”.
46
Tradução livre do original “Most of natives of Manhattan Island are terrified of all animals except cockroaches
and poodles”.
70

Thompson também usa do sarcasmo para zombar dos próprios funcionários da


Random House, editora da revista Rolling Stone. Ao passar um dia de chuva no hotel, sem
sair para trabalhar, o repórter dirá para si mesmo: “Relaxe, Relaxe. Aproveite este belo dia
chuvoso, e mande a conta para a Randon House. Os rapazes do orçamento não vão gostar,
mas eles que vão para o inferno” 47 (p.22).
Em outro momento, o jornalista usa a imaginação para criar uma história em que um
membro do partido democrata é chantageado para conseguir votos de delegados na
Convenção Nacional para determinado pré-candidato. Caso a vítima não conseguisse os votos
de seis delegados, fotos comprometedoras envolvendo sua imagem com menores de idade
poderiam se tornar públicas.
A maneira como Thompson trata da questão das chantagens e compra de votos –
através de uma hipotética narrativa – faz com que o leitor vislumbre melhor como seria
possível que coisas como essas aconteçam. Além disso, ao criar uma pequena história, o
narrador está convidando o leitor a exercitar sua imaginação e também construi-la em sua
mente, dando um caráter mais lúdico e ficcional à matéria.

A presença do leitor
Quando Thompson imagina que os rapazes que administram o orçamento da editora
para a qual trabalha não irão gostar de seu dia de folga no quarto de hotel, e então demonstra
desprezo por eles, mandando-os “para o inferno”, percebemos que o jornalista espera que um
leitor ideal aguarde por esse tipo de informação de bastidores. Mais do que isso, talvez ele
acredite que sua própria atitude de descaso com aqueles que o contrataram seja até mesmo
bem-vinda por seus leitores.
Para um grupo de jovens preocupados em mudar as relações com o mundo que os
rodeia, é possível que isso realmente acontecesse. Aqui aparece em conflito um modo de
viver mais espontâneo contra o compromisso dos que estão gerindo a Rolling Stone e tentando
equilibrar suas contas para fazer a publicação triunfar. O espírito anárquico e informal nesta
pequena história parece levar a melhor: mais do que se importar com o equilíbrio das contas,
Thompson zela pela informalidade e espontaneidade que fazem a revista e sua comunidade
leitora se identificarem.

47
Tradução livre do original “Relax, Relax. Enjoy this fine rainy day, and send the bill to Randon House. The
budget boys won’t like it, but to hell with them”.
71

Da mesma forma, o jornalista conta com uma audiência capaz de compreender e talvez
rir de suas propostas para melhorar a política do país. Uma sugestão do autor, por exemplo, é
castrar o pré-candidato Hubert Humphrey, evitando que seus genes se perpetuassem (p.24). É
claro que esta proposta, em meio à retórica exagerada do repórter gonzo, ganha mais
possibilidade de ser interpretada como um chiste bizarro do que em seu sentido literal.
Thompson, assim, parece contar com um leitor sagaz o suficiente para poder rir de seus
arroubos de sarcasmo e de humor, mas não tomar como mera brincadeira seus aprofundados
comentários políticos.

5.6 FEAR AND LOATHING: THE FAT CITY BLUES (MEDO E DELÍRIO: O BLUES DE
FAT CITY)

Data de publicação: 26 de outubro de 1972

Passadas as convenções dos partidos Democrata e Republicano – que definiu a disputa


entre George McGovern e Richard Nixon ao cargo de presidente norte-americano, Hunter S.
Thompson conta que passou as duas últimas semanas em sua casa em Aspen – cidade que
gosta de chamar de Fat City desde sua campanha para xerife. O narrador se diz satisfeito de
passar vários dias longe do trabalho, e apresenta certa resistência em ter que voltar para
48
Washington a fim de fazer o “doloroso trabalho de autopsia da campanha de McGovern”
(p.28), que neste momento estava com um índice muito baixo nas pesquisas, apontando uma
eminente derrota na votação que seria realizada em 07 de novembro.
No entanto, ao invés de buscar as falhas da campanha de McGovern, o jornalista
dedicada a maior parte de sua matéria em comparar as campanhas, o modo de fazer política e
as maneiras de lidar com a imprensa de Nixon e seu antagonista. Nessas comparações, o então
presidente é sempre visto de uma maneira negativa, enquanto McGovern aparece
pessoalmente e politicamente superior.

Focalizações
Com o candidato democrata já escolhido, a narrativa da campanha passa agora para
uma nova etapa. McGovern revela-se frágil em conseguir apoio popular contra Nixon, pois a

48
Tradução livre do original “painful autopsy job on the McGovern campaign”.
72

aproximação do democrata com idéias libertárias era vista com desconfiança entre eleitores
mais conservadores, e mesmo os setores de esquerda começavam a achar muito abstrato seu
discurso – que falava sempre de uma “nova política”, no entanto sem defini-la muito
claramente.
A focalização, neste momento, torna-se marcadamente interventiva. Os comentários a
respeito de Nixon e de sua equipe de campanha não poupam palavrões e tiradas sarcásticas.
Ron Ziegler, secretário de imprensa do presidente, é descrito como “um vagabundo arrogante
de 33 anos que treinou para o seu emprego atual trabalhando como relações públicas da
49
Disneylandia” (p.29). Além disso, o repórter descreve como Richard Nixon mantém
distante a imprensa em suas viagens, ao contrário da proximidade característica de
McGovern.
Além disso, o jornalista gonzo classifica como “estúpidos” muitos erros do candidato
democrata, mas tenta demonstrar ao leitor que mesmo assim ele merece mais confiança por
parte dos eleitores do que Nixon:

McGovern cometeu alguns erros estúpidos, mas neste contexto eles parecem
quase frívolos comparados às coisas que Richard Nixon faz todos os dias em
sua vida, propositadamente, como uma maneira de fazer política e uma
expressão de tudo o que ele representa.
Meu Deus! Onde isso vai parar? A que ponto você tem que se rebaixar neste
país para ser presidente?50 (p. 30)

Se a disputa é acompanhada por um narrador de focalização homodiegética, quando


tratamos da narrativa de Thompson como repórter político, estamos diante mais uma vez do
narrador autodiegético. Nesta matéria, Thompson revela acontecimentos de sua vida recente,
como as duas semanas de folga em seu rancho, suas dificuldades em lidar com o tratamento
dado a imprensa pelos republicanos, e também deixa transparecer seu desgosto de ver se
esvaindo o sonho de ver George McGovern eleito presidente.
Como já pudemos perceber em análises anteriores, a focalização do narrador é interna,
ou seja, ele trata não apenas de descrever os atos de seus personagens, como também fala de
suas emoções e desejos. No trecho abaixo, podemos ver o jornalista arriscando-se até ler a
mente de Richard Nixon:

49
Tradução minha do original “an arrogant 33-year-old punk who trained for this current job by working as a PR
man for Disneyland”.
50
Tradução minha do original “McGovern made some stupid mistakes, but in context they seem almost frivolous
compared to things Richard Nixon does every day in his life, on purpose, as a matter of policy and a perfect
expression of everything he stands for.
Jesus! Where will it end? How low do you have to stoop in this country to be President?”
73

Não vale a pena ficar nos enganando a respeito do que Richard Nixon
realmente quer para a América. Quando ele pára diante da sua janela na Casa
Brando e observa uma manifestação anti-guerra, ele não vê “dissidentes”, ele
vê criminosos 51 (p.28).

Estratégias de subjetivação
Mais do que em qualquer outra matéria, esta de outubro revela mais uma estratégia
que o narrador gonzo lança mão para sensibilizar sua audiência. Existe nela um território
inimigo muito bem demarcado, contra o qual a audiência tem poder de lutar contra através do
voto. Se antes Thompson dividia seu espírito mordaz criticando as campanhas de Edmund
Muskie e Hubert Humphrey, entre outros, agora os inimigos estão concentrado em um núcleo:
Richard Nixon e seus apoiadores.
No entanto, o narrador não apresenta George McGovern como um herói capaz de
solucionar todos os problemas do país, reduzindo a discussão a uma polaridade entre mal e
bem. Os erros da campanha democrata também são apontados, e o candidato democrata
aparece mais como uma alternativa honesta e tolerante de superar a fase de Nixon no poder.
Como já vimos acima, o sarcasmo continua sendo uma alternativa para arrancar risos
do leitor. Thompson também irá debochar da frieza da equipe de Nixon ao afirmar que
diferença entre viajar com a comitiva do então presidente e viajar com a comitiva de
McGovern era comparável com a diferença entre pegar a estrada uma banda de rock como o
Grateful Dead ou com o séqüito do Papa.
O narrador também usa uma retórica forte, pela qual a escolha do povo pelo candidato
republicano nas urnas seria como uma afirmação coletiva de que os Estados Unidos são uma
nação de facínoras:

Talvez este seja o ano em que nós finalmente ficaremos cara a cara com nós
mesmos; finalmente deixar tudo para trás e dizer isso – que nós realmente
somos uma nação de 220 milhões de vendedores de carros usados, como todo o
dinheiro que precisamos para comprar armas, e sem escrúpulo algum de matar
qualquer um no mundo que tente nos trazer desconforto52 (p.30).

Em trechos como esse, percebemos a tentativa do narrador em dirigir-se a sua


audiência de uma maneira que a deixe sensibilizada, que a faça perceber que faz parte o
51
Tradução livre do original “There is no point in kidding ourselves about what Richard Nixon really wants for
America. When he stands at his White House window and looks out an anti-war demonstration, he doesn’t see
“dissenters”, he sees criminals”.
52
Tradução livre do original “This may be the year when we finally come face to face with ourselves; finally just
lay back and say it – that we are really just a nation of 220 million used cars salesmen with all the money we
need to buy guns, and no qualm at all about killing anybody else in the world who tries to make us
uncomfortable”.
74

processo que está acontecendo. E, para que o leitor não enxergue a si mesmo e a seus
concidadãos como assassinos, parece emergir do texto uma solução: votar contra Nixon no
dia 07 de novembro.

Presença do leitor
No trecho comentado logo acima, o narrador parece estar apelando para um leitor que,
de alguma forma, tem alguma crença de que a esfera política do poder pode ser uma instância
transformadora. Thompson ainda tem fé de que, saindo do poder o homem errado, os Estados
Unidos sejam um país mais tolerante com as diferenças e menos belicista.
Convém agora lembrar a conversa que Thompson tivera com Lester e Jerry, os
“freaks” vendedores de carros que o jornalista contou ter encontrado em sua primeira matéria
sobre as eleições, em janeiro. Naquele momento Thompson disse estar indo para Washington
descobrir se todos os políticos eram mesmo “porcos”. Depois de dez meses na estrada, agora
apoiando abertamente George McGovern, ele parece acreditar que através das instituições
formais seria mesmo possível transformar sua nação em algo melhor. E parece ser para
pessoas como ele, que já haviam se registrado para votar e acreditavam que valeria a pena ir
às urnas, que o jornalista parece estar se dirigindo.

5.7 DON’T ASK FOR WHOM THE BELL TOLLS... (NÃO PERGUNTE POR QUEM OS
SINOS DOBRAM...)

Data de publicação: 09 de novembro de 1972

Esta é o menor artigo de toda a cobertura de Hunter S. Thompson – o texto ocupa


menos de meia página, acompanhado de uma imagem que a preenche. A data de publicação é
posterior a eleição; no entanto, Thompson deixa claro que escreve antes do evento: “Na terça-
feira, 07 de novembro, sairei da cama a tempo suficiente de ir ao local de votação e votarei
para McGovern”53 (p.48).
O jornalista já não demonstra esperança alguma de que George McGovern vença a
eleição, e reafirma que isso demonstra que a face mais horripilante dos Estados Unidos estaria
triunfando. Para tanto, pela primeira vez, Thompson cita a invasão do Comitê Nacional do

53
Tradução minha do original “On Tuesday, November 7th, I will get out of bed long enough to go down to the
polling place and vote for McGovern”.
75

Partido Democrata por parte dos republicanos ocorrida em junho, que pretendiam roubar
documentos e instalar equipamentos de espionagem. Não era ainda possível provar que
Richard Nixon tinha ligação com o caso, no entanto dois repórteres do Washington Post mais
tarde conseguiriam as provas do que ficou conhecido como “Caso Watergate”. As
repercussões culminaram na renúncia do então presidente, em 1974.

Focalizações
A narrativa da campanha se encerra com a derrota – pré-anunciada – de McGovern;
enquanto a narrativa da saga do jornalista gonzo se encerra com o repórter se mostrando
mentalmente abalado, capaz apenas de se levantar da cama para votar rapidamente e logo
retornar ao leito.
As focalizações se mantêm internas, restritivas e interventivas. Neste último artigo, o
caráter focal interventivo é bastante aparente, manifestando-se claramente em sentenças como
“é o próprio Nixon que representa o lado escuro, mercenário e incuravelmente violento do
caráter americano”. Já a focalização interna se revela claramente quando, depois de afirmar
que sairá da cama apenas para votar, o narrador diz que ficará trancado em casa durante o
resto do dia, até sua “angústia” passar. A focalização restritiva é demonstrada quando são
expostas as fontes de informação onde o jornalista encontra subsídios para contar sua história,
algo que um narrador onisciente não precisaria fazer, pois naturalmente teria conhecimento
dos fatos – nesta matéria, Thompson se mostra recorrendo ao diário New York Times para se
atualizar dos acontecimentos.

Estratégias de objetivação
A matéria em análise aponta dois recursos bastante claros de objetivação já observados
anteriormente. Além de citar o New York Times – fonte consagrada com “efeito de real”, o
repórter também faz uso de estatísticas para comprovar seus comentários.
Para ilustrar como o episódio que ficaria conhecido como “Caso Watergate” ainda
tinha pouca importância para os eleitores, Thompson aponta uma pesquisa de intenções de
voto realizada em parceria pelo jornal New York Times e o Instituto Yankelovich. O repórter
não se limita a dizer que Richard Nixon está liderando a campanha com 20 pontos percentuais
em relação a George McGovern, como também oferece as percentagens de votos de cada um
dos candidatos, bem como de eleitores indecisos.
O jornalista gonzo, tradicionalmente crítico ao presidente norte-americano, cita um
trecho do editorial de 12 de outubro de 1972 do New York Times cujo texto condena práticas
76

da Casa Branca e da campanha presidencial de Richard Nixon. Ao apresentar um editorial de


um consolidado veículo da imprensa norte-americana em concordância com sua própria
opinião, Thompson demonstra que seus comentários políticos encontram eco em outros
prestigiados espaços jornalísticos.

Estratégias de subjetivação
Como já pudemos perceber mais acima, a retórica de Thompson consegue ligar o ato
do voto com algo que envolve muito mais do que escolher entre um representante ou
outro de sua nação: o voto aparece neste texto como uma possibilidade de fazer triunfar o lado
perverso ou o lado libertário dos Estados Unidos.
Para tanto, o narrador usa da imagem do Yin e Yang, que caracterizam o princípio da
dualidade no pensamento chinês. Segundo Thompson, nenhum outro par de políticos poderia
representar de maneira tão perfeita a oposição entre violência e liberdade que polarizam a
nação norte-americana. O jornalista usa ainda da imagem de um lobisomem para ilustrar os
sentimentos que, segundo ele, Richard Nixon evocaria nos norte-americanos:

Ele fala para o lobisomem que é em nós; o tirânico, o charlatão predador que se
transforma em algo impossível de dizer, cheio de unhas e verrugas abertas
sangrando, nas noites em que a lua chega mais perto54 (p.48).

Dessa forma, Thompson atribui um grande poder o leitor; pois, ao escolher entre um nome ou
outro numa cédula, estariam escolhendo entre a vitória do bem ou do mal sobre os Estados
Unidos.
O narrador também confidencia e expõe seus sentimentos à audiência, talvez
conseguindo assim uma relação mais estreita com os que o lêem. Thompson não esconde estar
arrasado com a iminente derrota de seu candidato. Ao contrário, o repórter deixa claro que
ficará o dia todo em casa, e apenas depois de sentir a sua angustia extravasar poderá escrever
algo mais consistente sobre as eleições.

Presença do leitor
Quando Hunter S. Thompson trata da oposição entre McGovern e Nixon como similar
à oposição Yin e Yang da cultura chinesa, ele está pressupondo que seu leitor conheça pelo
menos minimamente esta cultura estrangeira. Neste momento é interessante recordar que a

54
Tradução livre do original: “He speaks for the Werewolf in us; the bully, the predatory shyster who turns into
something unspeakable, full of claws and bleeding string-warts, on nights when the moon comes too close…”
77

contracultura, ao buscar novas formas do ser humano interpretar e se relacionar com o mundo,
acaba buscando influência na cultura oriental. Sendo assim, talvez fosse mesmo natural que
Thompson esperasse que seu público compreendesse esta comparação.
Ao expor seu desânimo em relação à votação eleitoral, Thompson também supõe que
haja interesse do público em saber em quem ele irá votar e como está encarando a provável
derrota de seu candidato. Dessa forma, o narrador encerra sua cobertura demonstrando que,
além da própria cobertura eleitoral, vê seu leitor com alguém receptivo às emoções do
jornalista e sua maneira de lidar com o desenrolar dos fatos da campanha.

5.8 CONSIDERAÇÕES GERAIS

Com base nas análises realizadas em torno do nosso corpus de estudo, podemos
estabelecer características do narrador que se generalizam por toda a cobertura realizada por
Hunter S. Thompson a respeito das eleições presidenciais de 1972. A seguir, apresento uma
compilação destas características gerais em torno das focalizações, estratégias de objetivação
e subjetivação utilizadas pelo narrador, e tento visualizar a figura do leitor que emerge destes
textos.

Narrativas e focalizações
As narrativas jornalísticas são construídas através de textos que atualizam informações
e encadeiam uma história, bem como de movimentos retrospectivos nos quais o leitor pode
rememorar episódios do passado que colaboram para a melhor compreensão dos
acontecimentos do presente. Segundo Motta (2007), cabe ao analista, em sua pesquisa,
encontrar os conflitos que emergem de um corpo de textos jornalístico, recompondo sua
narrativa e assim permitindo uma análise narratológica.
As matérias aqui analisadas compõem a história das eleições presidências norte-
americanas de 1972, como o próprio narrador deixa claro desde seu primeiro artigo, no qual
questiona a validade de se fazer tal trabalho – o que fica implícito até mesmo no subtítulo
“Esta viagem é necessária?”. A possibilidade de eleger o presidente do país é o fator que gera
conflito e abala a situação de equilíbrio da história.
Em torno da disputa entre os partidos que se dará nas urnas em novembro, desdobram-
se outros conflitos secundários. Ainda em janeiro, Thompson identifica os possíveis
envolvidos na corrida eleitoral, nos meses seguintes destacará o conflito entre os pré-
78

candidatos democratas, e por fim irá focar o antagonismo entre o então presidente Richard
Nixon e o candidato democrata George McGovern. Da mesma forma, estes conflitos
secundários são desdobrados em outros mais pontuais: a possibilidade do senador Edward
Kennedy entrar na disputa ajuda a compor o conflito entre os democratas, por exemplo.
No entanto, também desde a primeira matéria da cobertura realizada pelo jornalista
gonzo, pudemos observar que outra narrativa complementa e é complementada pela narrativa
da campanha eleitoral, compondo-se através de todas matérias de Thompson: a saga de um
repórter e representante da contracultura que quebra sua situação de equilíbrio embarcando
em uma jornada de quase um ano dentro do bem-comportado e formal meio político
partidário. O repórter começará se questionando a possibilidade de a política formal ser uma
prática transformadora, sofrerá problemas de adaptação, encontrará um candidato ao qual
depositará simpatia e apoio – o democrata George McGovern, e acabará profundamente
decepcionado por ver triunfar o “lado escuro” de seu país.
Como já foi dito, as duas narrativas se complementam, não é possível afirmar que o
conflito de Thompson seja secundário ao conflito da eleição, tampouco o contrário seria
possível. Assim como a iminente derrota de McGovern deixa o repórter profundamente
desanimado, sem ao menos conseguir ficar fora da cama por mais de algumas horas; também
fatos da vida pessoal e profissional deste irão ajudar a ilustrar melhor o mundo dos políticos
em campanha. A angústia de Thompson demonstra como a campanha eleitoral influencia sua
vida, da mesma forma que a expulsão do jogo de futebol registrada em fevereiro – que ele
afirma estar ligada ao fato de ter criticado a indicação de um novo membro para a Suprema
Corte norte-americana – e suas dificuldades em conseguir credenciais para entrar na Casa
Branca ilustram de maneira original como é este mundo político.
Estas observações acerca das narrativas ajudam a compreender melhor as focalizações
utilizadas pelo narrador destas matérias. Em ambos os casos, observamos a focalização
homodiegética: o narrador participa do mundo narrado e até mesmo convive com seus
personagens. Além disso, quando Thompson conta suas desventuras, a narração é
autodiegética – homediegética com o narrador como protagonista.
Ainda em relação à focalização autodiegética, é importante ressaltar que o eu narrador
tem grande proximidade temporal com eu narrado. Como pudemos observar, em alguns
momentos o tempo da escrita parece coincidir com o tempo da experiência da situação
narrada. Além disso, acaba se configurando como uma forte estratégia de subjetivação,
organizando o texto em função de um tempo presente imediato, colabora para que tenhamos
também uma focalização interventiva, já que será difícil o narrador manter algum nível de
79

neutralidade a respeito de fatos e pessoas com os quais está próximo, e conseqüentemente


emocionalmente envolvido.
Também observamos, através das análises, que o caráter interventivo do narrador se
faz muito presente na cobertura. Como as matérias de Thompson eram publicadas em
intervalos no mínimo quinzenais, o leitor talvez esperasse menos saber das “últimas notícias”
da cobertura do que das opiniões e da versão dos fatos do jornalista gonzo. Sendo assim, a
narrativa da campanha muitas vezes emerge dos comentários do narrador, através deles
podemos recompor fatos relevantes do evento.
Thompson também não deixa de comentar seu trabalho e de seus colegas. Nesse
sentido, observamos uma forte presença de uma “metacobertura” nestes textos. O narrador
condena a tentativa de se crer em um jornalismo objetivo, fala dos bastidores da imprensa, da
limitação em conseguir informações, entre outros comentários.
Neste sentido, fica também bastante clara a focalização restritiva do jornalista.
Lembremos, por exemplo, do artigo de julho, em que o autor afirma que não era possível para
um repórter, por mais talentoso que fosse, saber o que estaria acontecendo nos bastidores da
escolha do candidato democrata, a menos que já tivesse se candidatado a algum cargo
público. As limitações do jornalismo são expostas, em menor ou maior grau, em todas as
matérias, demonstrando uma preocupação do narrador em revelar como seu trabalho e de seus
colegas é feito, estabelecendo um fio de metacobertura entre os artigos.
A focalização restritiva, segundo Motta (2007), seria uma das marcas do jornalismo,
visto que o repórter não pode ter acesso a todas as informações que deseja, muito menos à
consciência de seus personagens. Apesar de também possuir caráter restritivo, em alguns
momentos o narrador gonzo se permite adivinhar pensamentos de seus personagens e expor os
seus, o que caracteriza a focalização interna.
Ao afirmar, por exemplo, na matéria de outubro, que Richard Nixon pensa em
“criminosos” e não em “dissidentes” quando observa os manifestantes pela janela da Casa
Branca, Thompson está usando de focalização interna. O jornalista também não deixa de
expor seus próprios sentimentos, como a angústia de ver a iminente derrota de George
McGovern ou então a apreensão diante do prazo de entrega de suas matérias.
Sendo assim, com base nas análises do corpus de pesquisa, posso afirmar que há duas
narrativas que se destacam na cobertura das eleições presidenciais elaborada por Hunter S.
Thompson. As duas se complementam, e o narrador usa focalização homodiegética em
relação aos conflitos da corrida eleitoral, e autodiegética em relação aos conflitos do sujeito
80

histórico que faz a cobertura. Para ambos os casos, as focalizações são interventivas,
restritivas e internas.

Estratégias de objetivação
Não há dúvida de que o narrador busca situar suas narrativas no “mundo real”, em
espaços que o leitor possa habitar e com personagens que se referem a pessoas que existem
em carne e osso. Isso pode ser facilmente observado através dos dêiticos pessoais, temporais e
espaciais utilizados nas matérias.
Foi possível perceber que os dêiticos de espaço são bastante usados. Na matéria de
janeiro, por exemplo, foi possível perceber esta abundância de referenciais de localização
quando o jornalista narra seu encontro com os dois freaks que negociam carros. Neste
momento, os dêiticos colaboram para dar maior verossimilhança a um encontro que não foi
registrado em outros veículos de comunicação ou em matérias da própria Rolling Stone, pois
liga o fato a lugares bem determinados da realidade. Ao mesmo tempo, a localização próxima
do quarto de hotel de um dos pré-candidatos democrata, Hubert Humphrey, da qual tratamos
na análise da matéria de maio, colabora para causar maior “efeito de real” ao artigo,
demonstrando a proximidade do narrador com os personagens envolvidos em sua narrativa.
A busca pela exatidão das localizações não é repetida com tamanho cuidado em
relação ao tempo. No entanto, o tempo se transforma em uma importante estratégia de
objetivação ao coincidir o momento de ação e o momento e de enunciação. Ao dizer que está
narrando de determinado lugar, usando o tempo presente, o narrador organiza passado e
futuro em torno do instante de enunciação. A afirmação radical do presente encerra fatos,
personagens e opiniões dentro de um momento atual, dando ao leitor a possibilidade de
melhor compreender seu mundo em meio à dispersão e evasividade temporal.
Thompson também irá firmando certa autoridade ao longo da cobertura. Este
comportamento leva o leitor a encarar o narrador como alguém capaz de compreender e
interpretar a importância de cada fato, fazendo com que os conflitos que ele escolha narrar
sejam considerados relevantes e cheios de significados para a audiência. Também suas
opiniões mais subjetivas podem ganhar maior adesão por parte do leitor, visto que este vai lhe
depositando confiança.
Esta autoridade vai sendo construída na medida em que o narrador demonstra seus
conhecimentos e sua experiência em política. Através das matérias analisadas, pudemos
observar comentários e narrativas de Thompson sobre eleições anteriores. Já no artigo de
julho, o jornalista escancara sua autoridade ao afirmar ser o único repórter com experiência de
81

ter concorrido a algum cargo público que está fazendo a cobertura da campanha – fator que,
segundo ele, faria com que pudesse compreender melhor que seus colegas de imprensa o que
estaria acontecendo nos bastidores da campanha democrata.
Pudemos observar ainda o uso esparso de citações de veículos de comunicação como
“efeito de real” estabelecido, além da exposição de números e pesquisas estatísticas. O
narrador cita em outubro e novembro o New York Times, além de comentar as notícias
ouvidas no rádio em maio, quando estava acompanhando as primárias no Wisconsin, estado
do centro-leste norte-americano. Da mesma forma, Thompson usa dados estatísticos para
comprovar a violência urbana de Washington, em janeiro; a importância do “voto da
juventude”, fevereiro; e a provável derrota do democrata Gerorge McGovern, em novembro.
É possível então dizer que atravessam as matérias recursos de objetivação como: o uso
de dêiticos pessoais, espaciais e temporais, com destaque para as descrições de lugares; a
organização do passado e do futuro em torno de presente imediato; e a figura do próprio
narrador como autoridade para falar a respeito dos temas abordados. Com menos constância,
também é possível observar a citação de veículos de comunicação com reconhecido “efeito de
real” e o uso de dados estatísticos.

Estratégias de subjetivação
Como pudemos observar ao longo de toda nossa análise, o humor baseado no exagero
e no sarcasmo é uma grande arma para conseguir a simpatia do leitor através do riso. Além
das tiradas irônicas e debochadas que permeiam todo o texto, o narrador também desmoraliza
seus desafetos através de sátiras, como a invenção de que o pré-candidato democrata estaria
usando ibogaína, rara droga de origem africana.
O riso e a criação de episódios fantásticos, como o que envolve Humphrey, estabelece
uma conexão com o leitor suposto, o jovem identificado com a contracultura, na medida em
que este movimento valoriza o encantamento infantil, como vimos no primeiro capítulo deste
trabalho. Da mesma forma, o uso de uma linguagem coloquial que permite gírias e palavrões
aproxima este texto destes jovens que tanto valorizam um modo de viver mais informal.
Também colaboram para gerar uma identificação desta juventude com as matérias de
Thompson certo caráter representativo encarnado pelo jornalista. Os hábitos e o vestuário do
repórter gonzo representam a informalidade deste novo modo de lidar com o mundo, e
conflitam com a formalidade instituída de espaços como a Casa Branca, em Washington. Este
confronto é tematizado com mais freqüência nos primeiros seis meses de cobertura, quando a
presença de um repórter da Rolling Stone parecia ser uma grande novidade para as equipes de
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campanha dos pré-candidatos. Este tipo de conflito volta dimensionar a importância da


metacobertura no trabalho de Thompson: mais uma vez o jornalista está narrando como é
fazer seu trabalho, seus percalços e dificuldades.
Outro aspecto desta metacobertura aponta uma diferente estratégia de subjetivação: a
angústia dividida com seus leitores nos prazos finais de entrega de suas matérias. Em
momentos como esse, o narrador está dividindo seus sentimentos com a audiência,
possibilitando algum nível de comoção e identificação por parte do público. Thompson
também dividirá com o público a alegria de ver o democrata George McGovern sorrindo, na
edição de maio, e sua tristeza ao perceber que o mesmo candidato será derrotado nas urnas, na
edição de novembro.
Com os candidatos da eleição já definidos – McGovern pelos democratas e Richard
Nixon pelos republicanos, é possível observar nos dois últimos artigos analisados a ênfase no
contraste das características de ambos. Com isso o repórter gonzo tenta demonstrar que a
escolha por Nixon seria o triunfo do lado maligno do caráter norte-americano. Dessa forma,
através de uma retórica que valoriza a polaridade dos opostos, Thompson coloca nas mãos de
seus eleitores votantes uma importância única e muita grande de mudar sua nação.
Em resumo, as análises apontaram o humor sarcástico, a linguagem e a valorização de
aspectos comportamentais do narrador como estratégias de subjetivação que fazem o leitor
identificado com a contracultura também identificar-se com as matérias de Thompson.
Diferente do jornalismo tradicional, o trabalho do repórter gonzo também permitiu arroubos
claramente ficcionais, dando uma dimensão lúdica e satírica ao texto. Além disso, o despudor
do narrador em exibir suas emoções para a audiência também é um fator que pode gerar
comoção e simpatia dos leitores. E nas matérias finais, a retórica de Thompson se revela
bastante forte para tratar a eleição de 1972 como uma escolha histórica entre as duas faces
antagonistas do caráter dos cidadãos norte-americanos.

Presença do leitor
Como já pudemos observar ao tratar das estratégias de subjetivação, fica implícito no
texto um leitor identificado com a contracultura. O narrador parte do pressuposto de que seu
público será receptivo à sua linguagem informal e aditivada com gírias e palavrões, assim
como dará importância a suas descrições do contraste de suas roupas e comportamento em
relação às roupas e comportamento do meio onde está inserido na cobertura.
Corrobora com esta hipótese as lacunas deixadas pelo jornalista ao achar
desnecessário apresentar ícones da contracultura como o assassino Charles Manson, na
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matéria de janeiro, e da música popular como o cantor e compositor Johnny Cash, na edição
de fevereiro. Na direção oposta, Thompson se dá ao trabalho de apresentar políticos com
apostos onde se pode conhecer que cargos públicos ocupam.
O “contrato cognitivo” que envolve jornalistas e leitores, proposto por Motta (2007),
no qual audiência e produtores de conteúdo buscam recompor a realidade, não parece deixar
de funcionar nos textos de Thompson, apesar de este usar da fantasia, do humor e do exagero
em seus textos. Este caráter poético convive com as várias estratégias de objetivação que
acabam emprestando “efeitos de real” às matérias do jornalista gonzo. O caráter divertido e
informal da cobertura, dessa forma, se mantém equilibrado com o caráter informativo e
opinativo dos artigos.
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6 Considerações finais

Ao longo do trabalho, busquei subsídios e realizei análises para melhor compreender


como funciona e quais são as características do narrador no gonzo de Hunter S. Thompson.
Para isso, comecei meu percurso estudando o contexto histórico que permitiu o nascimento e
triunfo da revista Rolling Stone, bem como a trajetória de Thompson. Logo em seguida,
trabalhei com os estudos mais destacados a respeito do jornalismo gonzo, levantando suas
tentativas de definição e caracterização. Por fim, os estudos narratológicos possibilitaram uma
análise aprofundada das matérias que compunham o corpus.
Pude observar que a década de 1960 foi responsável por gestar uma nova cultura
juvenil capaz de catapultar uma revolução cultural que transformou o modo das pessoas se
relacionarem com o mundo. O adolescente passou a ser considerado o estágio final do
desenvolvimento humano e o comportamento mais informal passou a ser valorizado, assim
como a individualidade (HOBSBAWN, 1995).
A contracultura foi um dos importantes movimentos que ajudou a desenvolver esse
processo. Sem organização formal, a contracultura pode ser visualizada em uma série de
manifestações artísticas, culturais e políticas que combinam características como negação
tácita de valores prestigiados pela sociedade, valorização do encantamento mágico infantil, e
busca por formas de percepção e compreensão do mundo que vão além do raciocínio técnico-
científico.
Hunter S. Thompson contribui para esse quadro de manifestações com sua candidatura
a xerife do município de Aspen, no estado do Colorado, em 1970. O jornalista em sua obra
também se diz identificado com figuras importantes da contracultura como o poeta Allen
Ginsberg e o cantor e compositor Bob Dylan.
Através de nosso percurso de reconstrução do nascimento e rápido sucesso editorial da
revista Rolling Stone, pudemos perceber que a publicação californiana conseguiu encontrar na
música o elemento-chave para tratar de forma original e consistente as mudanças culturais e
comportamentais daquela época. Dessa forma, uma cobertura política prolongada como a
realizada por Thompson – inédita na revista – colabora para a transcendência da temática
musical naquelas páginas.
A investigação aqui realizada a respeito do jornalismo gonzo levantou que sua criação
acontece dentro do fenômeno do Novo Jornalismo da década de 1960, mas toma caminhos
próprios com o uso da ficção e a maneira de levantar informações diferenciadas – o jornalista
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não se limita a ser uma testemunha dos fatos. Othitis (1994) e Czarnobai (2003) colaboram
para elencar características do gonzo, tais como: recorrência dos temas relacionados a sexo,
violência, drogas, esportes e política; uso de citações de personalidades famosas como
epígrafes; referência constante a pessoas públicas como músicos, homens de imprensa, entre
outros; uso do sarcasmo e da vulgaridade como humor; uso criativo da linguagem; esmerado
trabalho descritivo; captação de informações participativa; consumo facultativo de drogas; e
foco narrativo em primeira pessoa. Reitero aqui que, devido à falta de estudos do jornalismo
gonzo usando outros autores além de Thompson, muitas das características citadas podem ser
exclusivas deste jornalista norte-americano, e talvez não possam ser generalizadas a todos os
praticantes do gonzo.
O terceiro capítulo encontra na narratologia recursos para problematizar a questão do
narrador nas matérias de Hunter S. Thompson. Preocupados em descrever e sistematizar os
mecanismos de organização e funcionamento das narrativas, os estudos narratológicos, que
tem em Todorov um de seus principais teóricos, propõem que a figura do narrador e a figura
do leitor vão se construindo mutuamente através do texto. Além disso, fiz uso das possíveis
focalizações de narrador compiladas por Aguiar e Silva (1992) para melhor compreender
quem narra e como narra as matérias gonzo. O estudo de Motta (2007) que aproxima a
narratologia do jornalismo também foi de grande importância ao ilustrar que os textos
jornalísticos trabalham numa conciliação de estratégias de objetivação – que lhe conferem
credibilidade – e de subjetivação – ligadas à dramaticidade.
Através da análise realizada no quarto capítulo, levantei que duas narrativas diferentes
têm igual força e se alimentam mutuamente na cobertura de Hunter S. Thompson das eleições
presidências de 1972. Uma das narrativas trata da história das eleições e outra da saga de um
jornalista identificado com a contracultura em um trabalho como esse. Em ambas o narrador
usa a focalização homodiegética – o narrador participa do mundo narrado e interage com
personagens; no entanto a focalização é também autodiegética – homodiegética com narrador
protagonista – em relação à saga do repórter.
Sendo assim, o narrador gonzo destas matérias conta sua própria história ao mesmo
tempo em que narra um importante evento político de seu país. O jornalista não destaca suas
emoções e desventuras em detrimento da cobertura jornalística, e sim valoriza sua condição
como sujeito histórico nesse processo. Ao invés do uso das focalizações neutras e externas,
padrão do jornalismo tradicional (MOTTA, 2007), Thompson então irá optar pelas
focalizações interventivas e internas, valorizando suas opiniões e suas emoções.
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Dessa forma, creio ter respondido à questão que motivou meu estudo: o que torna o
narrador gonzo tão singular? Mais do que aspectos que se revelam na superficialidade de seus
textos – como a escolha de temas e pautas, uso de drogas, de epígrafes ou do humor – a
resposta está na maneira profunda como este consegue fundir sua própria condição de sujeito
histórico em meio aos processos culturais, sociais ou políticos para os quais é pautado.
O humor sarcástico, o uso de referências da cultura popular, a compulsão pelas drogas,
o uso de citações de jornais e noticiários conhecidos pelo público, as longas descrições
espaciais, a permissividade com a fantasia: essas e outras características são estratégias que,
ou são usadas para captar a atenção e angariar a simpatia da audiência – estratégias de
subjetivação, ou servem para promover o caráter de veracidade das matérias de Thompson –
estratégias de objetivação.
Estudos futuros poderão revelar se o jornalismo gonzo praticado depois do advento de
Hunter S. Thompson carregará essa radical fusão entre sujeito histórico e narrador jornalista, e
se estas estratégias de objetivação e subjetivação observadas neste trabalho caracterizam
mesmo o jornalismo gonzo ou foram apenas os recursos usados pelo primeiro jornalista a
praticá-lo. Talvez assim a academia avance na tarefa de melhor compreender e caracterizar
esta maneira de fazer matérias e reportagens.
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Referências

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