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ove Copyright® 2006 do autor ‘Todos os direitos desta edi¢fo reservados & unpagko Oswatoo Cruz Borrors” ISBN:85-7541.0903 1983, pela ator Achiamé, Rio de Janeiro 2edigHo revista: 2006 ae Prjeto Gein e aitoragio Elettni: “Angélica Melle Daniel Pose Vacruez Capa i Danowski Design ~ ) ws Mastragio da Capa: 4 “A partir do relevo de Hans Arp, Fruit of aland, 1927-6. Digitagio de originals: Gislene Monteiro C. Guimardes Revisioe Supervisto Editorial i M, Cecilia G. B. Moreira ‘Catalogagto na fonte : CCenigu de luferuuagdo Cientifia e Teenotgics ) Biblioteca da Escola Nacional de Satde Patblica Sergio Arouca | ROM Rodrigues, José Carlos Pata Monique ‘Tabu da Morte. 2.ed., rev. / José Carlos Rodrigues. ~ Rio de Janeiro: Bitora FIOCRUZ, 2006 ‘260 p. (Colegio Antropologia e Sate) |. Morte. 2. Attude frente a morte. I Titulo, 2006 Eprrona Fiocnz ‘Av. Brasil, 4036 — I®andar sala 112—Manguinhos 21040-361 Rio deJancito~RJ “Tels: (21) 3882-9039 e 3887-9041 Telefax: (21) 3882-9006 -ail:editora@ figcruz br ~hiip:siwwrw Fiocruz.or 1 Morte e Consciéneia: pensar 0 impensivel ‘No conjunto-das transformag6es que a humanidade tem sofrido no correr de sua histéria, duas ao menos permaneceram constantes, opostas, consttuintes e complementares: 0s homens nascem, 0s homens morrem. Esta afirmago apa rentemente bvia, nfo 0 6, contudo. As filosofias, as mitologias, as préticas, os rituais se eninearam sempre, como questo urgente ¢ fundamental, a minuciosa discussio dessa obviedade aparente, fomecendo, io obstante semelhangas de fundo, solugées extraordinariamente diversas. Na escala das existéncias indivi- duais, posto que pode ocorrer antes do nascimento, a morte é a tinica certeza absoluta no dominio da vida: evento derradeiro, cujo peso de acontecimento no pode ser negado, mesmo que se Ihe negue o valor de aniquilamento. ‘Uma coisa é encarar a morte como algo inscrto necessariamente no des- tino dos homens em geral, enquanto membros da classe dos seres vivos. Outra coisa é pensar a realidade de cada morte individual. Entre os mortos ea morte, ou seja, entre determinado agontecimento biogrifico e determinada condicio ‘onfolégicaou melhor, escatolgica—os lames nao sto simples. Através Ue yue smeios, poderia um ser pensante pensar a condicio de nilo-pensamento, sus con- digo de ndo-pensante? A que tipo de I6gica recorreria um existente para pensar ando-existéncia, seo prépri ato de pensar o aniquilamento, nadia, se 0 conceito de ‘nada’ € em simesmo, alguma coisa’? Aniquilamento, nada, nfo-existéncia, so, na ordem das idéias, conceitos neutralizados, conceitos sem significaco: cogito ergo sum. Para um ser pensante, nfo é a morte, categoria geral e indefinida, que coloca um problema, mas 0 fato de que ele, sujeito pensante, morre—0 fato de aque ‘eu’ morro, No dizer de Jankélévitch (1954: 55-6), “morrer nfo € tornar-se outro, mas vir a ser nada ou, 0 que quer dizer 0 mesmo, transformar-se em absolutamente outro, porque, se 0 relativamente outro é 0 contraditério do mes- ‘mo, se comporta em relaglo a este como o ndo-ser em relagio ao ser”. Ora, como poderia um sujeito imaginar-se inteiramente outro, absolutamente outro, 7 sem que o resultado dessa especulagao fosse, para o sujeito, permanecer radi- calmente ele mesmo? 2 1 obstante — ¢ talvez. mesmo por causa da impossibilidade de sua insergao, sbsorgio e submissio ao(s) sistema(s) da légica ~ o fantasma do sniguilamento ronda, envolve,fustiga, desafia todos os sistemas humanos de explicagto do huinem edo mundo. De feto, apesar de alguns animais, como opossum, vécios insetos em gstpdo larvar ou adulto, aranhas ete, manifes- tarem um simulacrg dé morte (Huxley, 1971); apesar de eles reagirem a um algo de morte contido no periga, na agress%o, no inimigo; apesar de serem tmunidos de todo um aparato de dbfesa e de ataque, em iltima instancia pro- ‘Gutor de morté@/ou protetor de vida (garras, venenos, ass, presas, espinhos, rapide, mimetismo...), pdie-se dizer que o homem € o nico a ter verdade Tamente consciéncia da morte, 0 tinico a ‘saber’ que sua estada sobre a ‘Terra 6 precéria, efémera, (© animal tem7“€ verdade, fima certa percepeio da morte: ele a sente ‘como um perigo que 0 ameaga e reconhece seus predadores, reagindo por instinto de conservagao; ele tem alguma sensibilidade @ aproximagio de seu fim, o que The permite procarar um lugar para se esconder € morrer. Mas reconheceria a morte a mie chimpanzé, que passeia com 0 cadéver Gecomposto de seu filhote? Poderia 0 animal transmitic a seus préximos sua experiéncia de morte? Entre os animais,o advento da morte nfo envolve com- portamento algum convencional. Suas respostas ao advento da morte so titadas pelas leis da espécie a que pertencem; sto a imposigao, sobre um indi- ‘veduo particular, dos ditames gerais, universais da espécie. Bulgar Mosin (1970: 69 70) se refere a cbservagiies segundo as quais rmacacos se teriam comportado em relagao a cadéveres de rato, gatos, pissa- tos, como se eles fossem vivos, e machos se teriam introduzido em suas fémeas tnortas e procedido sexualmente em relagio a elas e aos outros machos,rivais tm potencial, como se elas estivessem vivas. E conclui: “os macacos ¢ os ‘antrop6ides nfo reconhecem a morte, porque eles reagem a seus companel- qos mottos como se eles fossem vivos mas passives". O animal, enfim, nio se Sabe mortal: ele nilo pode se representar a morte, nfo pode conceptualizé-l, mesmo que de alguma forma possa capté-la no plano da sensibilidade. Os casos ‘eanimais domésticos, capazes, como alguns cies, dese recusar a abandonar as proximadades do timulo do don, dispostosalgumas vezes a acompanké-lo - ¢ {que demonstrariam desse modo alguma consciéncia da morte ~sio absoluta- mente excepcionais: so excegSes que confirmam a regra, pois, como quer Morin, aconsciéncia da morte esté ligada & domesticago, & vidaem sociedade humanamente orgenizada. Tal incapacidade animal de se saber mortal esté associada a impossibil- dade de o animal se ver como individuo. Embora esta individualidade exista, ele nifo pode reconhec8-la e, portanto, nao pode avaliar stia perda: a mort. “Os instintos de conservacio individual sto especificos j que idénticos entre todos os membros de uma mesma espécie; eles t€m uma significaclo tanto mais totalmente especfica quanto mais se integrem em um vasto sistema de protegao de toda a espécie” (Morin, 1970: 68-9), E-com a consciéneia dest que aparece tum enrijecimento da individualidade, capaz de enftentar a tirania da espécie, E ao movimento de dissolucto do individuo na espécie, o individuo, agora consciente de si, chamard morte: a perda de sua individualidade a> ‘A consciéncia da morte € uma marca da humanidade. Nos sabemos que as primeiras materializages que nos permitem acompanhar 0 processo de hominizasio sio instrumentos de sflex bruto ¢ marcas de presenga humana em ‘uur tciritério. Entretanto, outras provas desse processo se adicionaram logo a estas primeiras, de uma maneira cada vez menos contestavel: as sepulturas. Determinar as circunstincias dentro das quais o homem comegou a inscrever sua marca sobre o cadaver 6 uma empresa improficua. Neste dominio, como em outros, as origens esto provavelmente perdidas. Mas o ‘homem' de Neanderthal nfo somente enterra seus mortos: também os retine as vezes, ‘como na Gruta das Criangas perto de Menton. Os homens das cavernas de ‘Carmel (40,000 anos), da Chapelle-aux-Saints (45,000 a 35,000 anos), do Monte Cireeo (35,000 anos) cavaram sepulturas ¢ nelas depositaram seus mortos adul- tos, sentados, tomazelos e punhos atados, como fetos prometidos a uma segun- 4a Vida (Morin, 1970; Zaegler, 1915). AS mais antigas sepulturas conhecidas (cavernas de Qafaz; em Israel) datam de cerca de 40.000 anos; as do homem de Neanderthal, entre 80,000 e 30.000 anos (Maertens,-1979). Um interesse religioso ligado aos despojos humanos parece provavel, embora as provas ar queol6gicas sejam ainda escassas (crinio de Mas a’ Azil, com seus olhos pos- tigos). A consciéneia da propria morte € sem dkivida uma das conquistas maio- es constitutivas do homem: “néo se trata mais de uma questi de instinto, mas |jfda aurora do pensamento humano, que se traduz por uma espécie de revolta contra a morte” (Morin, 1970: 31). Desde entio, os homens produziram e continuam a produzie uma imensa variedade de representagSes em tomo de sua morte ¢ da dos outros. A conscién- cia da morte abre uma passagem pela qual vio transitar foreas notaveis que transformario a maneira humana de ver a vida, @ morte, o mundo. Como disse Jean Ziegler (1975: 22-3), “a sepultura traduz incontestavelmente um progresso 0 do conhecimento objetivo”, Mas este conhecimento nada tem a ver, ou quase nada, com supostas raz6es, refletidas ou intitivas, culturais ou instintivas, de caréter higinico ou instrumental. Trata-se j6 de uma obrigagio moral ¢ da necessidade de exprimir alguma coisa, Trata-se de se reconhecer no corpo © ‘seu valor expressivo, porque o corpo humano morto no pode ser considerado ‘como um eaddver qualquer. \ Nao se poderiam explipar as préticas funerdrias, o enterro, por exem> plo, por motivos purimente Btilitarios ou higiénicos (afastar a sociedade de uma virtual fonte de elementas patogénicos), porque se isto fosse verdade, no se entenderia pr que certs sociedades enterram seus membros antes ‘mesmo que*éstes morram, nem+poderiamas explicar por que certos povos convivem longamente cats o processo de putrefagio, como em Zanaga, ainda hoje, onde os grandes digoitérias zegé — apesar de que “os inconvenientes € perigos de infeccio que represgnta um tal costume nido escapem a ninguém” {Alihanga, 1979: 249) ~ sao confervados até seis meses, improvisando-se sob fo leito mortuério um canal que recolhe os Iiquidos cadavéricus ¢ us conduz aos Ingares exteriores. ‘Ademais, a efervescEneia ritual provocada por uma morte varia de avordo com a importéncia social do defunto. Como Robert Hertz (1970) observou, ‘morte ndo se limita a pér fim 2 existéncia corporal. Ela destr6i ao mesmo tempo ‘ser social investido sobre a individualidade fisica, ao qual a consciéncia cole- tiva atribufa uma maior ou menor dignidade. A morte de uma pessoa adulta significa normalmente dor e solido para as pessoas que sobrevivem a ela: verdadeira chaga que pée em perigo a vida social. E diferente, e mais branda em geral, a oagio que a morte de erianeas produz na consciéncia coletiva. Na realidade, a comunidade investiu nelas pouco mais que esperanga. Nao chegou a Thes imprimir sua marca, Nao se reconhece nelas ¢ por isso sente-se pouco atingida, Tudo se passa como se tratasse de uma morte menor, de umn fenémeno “nfia-social”, para conservar a expressio de Hertz (1970: 80). Portanto, a morte, sob o Angulo humano, nio é apenas a destruiglo de umestado fisico ¢ biol6gico. Ela & também a de um ser em relaglo, de um set que interage. O vazio da morte € sentido primeiro como um vazio interacional Nao atinge somente os préximos, mas a globalidade do social em seu prinefpio ‘mesmo, a imagem da sociedade impressa sobre uma corporeidade cuja ago ~ dangar, andar, ir, chorar, falar. usu faz mais que tornar expresta. Nada hi de surpreendente, pois, em que 0s membros em que a sociedade se encarna e que ela perde venham a ser objeto de uma atengo especial, ‘de cuidados ¢ preocupagées mortuérias, em uma palavra, de rituals. Os ritos da ‘morte comunicam, assimilam e expulsam o impacto que provoca o fantasma 20 do aniquilemento, Os funerais so ao mesmo tempo, em todas as sociedades ~ ‘yélo-emos adiante — uma crise, um drama e sua solugo: em gerel, uma tran- sigdo do desespero ¢ da angiistia ao consolo e a esperanca. > -Estudar estes rls é sucivlogicamente importante: A morte de um indivi duo é a ocasifio em que o grupo, no mais amplo sentido do tempo, produz a sua reprodacéo, tanto nos planos cultural, simbélico e ideol6gicb, como no plano das cestruturas socioeconémicas. ‘Aexiséncia da cultura, quer dizer, de um patriménio coletivo de saber, savoir faire, normas,regas organizacioais, ec, s6 tem sentido porque as antgas geragdes mocrem e porque €necessério transmit-iacontinua- ‘mente Asnovas geragbes Ela 96 tem sentido como reprodugfo,eete emo s6adquire seu pleno sgifieadoem fungio da mote. (esi, 1970: 12-3) Uma scciedade se ectrutura nfo apenas ‘apesae” da morte ‘contra’ a ‘morte, mas ela ‘contém’ a morte em si, “s6 existe como organizagio pela, com enamorte” (idem). Georges Balandier (1970: 9) concebe uma civilizagto como sendo um modo de responder ao problema colocado pela vida e pela morte, como a imposigdo ao homem ¢ sociedade de defrontar a evidéncia daentzopia e de “se pensar na finitude”. ‘Também a civilizag6es sto mortise isto nfo deixaré de marcar essen- cialmente suas representagGes da morte. Em principio, todas se pretenders temas e imortas e, por isso, o trtamento da morte que uma sociedade elabora no é0 tratamento de sua morte mas “o das fronteiras do universo que ela cons- ‘itu Gaulin, 1977: 11). Tais fonteias incluem as relag¥es de uma civilizagan ‘com outras culturas, com 0s individuos que ela deliberadamente coloca&s suas margens (condenados, feiticeiros, doentes, desviantes...) € com a morte dos individuos que a compéem, Morte do individuo, morte da sociedade: eis, no plano da consciéncia, as duas faces de uma mesma moeda. Evidenciam-se na ‘morte, nos rtos e préticas funerdrios, ao mesmo tempo o sei cardter de extre- ‘ma individualidade e sua consttuigo social: ea traga um confi dltimo entre subjetividade do eu e0 outro. a> ‘Outro dominio em que germina a consciéncia da morte é0 do psiquismo infantil. Os trabalhos de Piaget no-lo confirmam: € a partir do momento em que a erianga toma conscincia de si mesma como individuo que ela se sente afetada pela morte. 21 ‘AUG a idade de ts ou quatro anos, a crianga, na nossa cultura, nfo tem {dia alguma do significado da morte. A contraposigao vivo-morto é ignorada, ‘Mesmo que estes termos facam parte do seu vocabulrio, ela nada sabe sobre aa necessidade do momer,sinda que as palavras concementes & morte sejam talvez percebidas como algo de negativo, ligado a ‘separagao’ e ‘destruigao’. {A partir desse ponto, o Vocabulario infantil concernente 8 xtc infla progressivamente de contedidst assume um colorido emocional crescentemente negativo. Em nenhlim caso! todavia, a morte € representada como aniquila~ ‘mento definitivo: ela é afastanfento dos domfnios da crianga; impossibitidade de Semovimentar; doenca grave, porém curve; no méximo, aniquilamento tem porério ¢ ré¥ersivel. Nessa idade, nfo imagina a erianga que a morte ameace também o prdprio eu, émbora tenda jé a crer na possibilidade de que outros éejam afetados por ela, Aos cinco anos, a erianca permanece incapaz-de "'con- aber o fat de no estriscr mais vivo, de serfestar morto, ou de entender que outros tenham vivfto antes defa" (Gesell 1949: 7). As vezes, ela reconhece a terminalidade da morte, mas eré em sua reversbildade. Pensa que 0s mortos podem reviver, de modo que nfo assume em relacio & morte a mesma atitude emocional dos adultos, Entretanto, comega a vacilar a certeza da reversibilidade: a idéia de inreversibilidade prncipia a aparecer, inda que apenss como feto de realizaglo fem futuro longinguo (Fuchs, 1974), Por volta dos seis anos, a erianga toma consciéncia, afetiva eintelectualmente, cada vez mais nftids, do significado da morte: teme que a mfe morra, que a abandone & sua sorte, mas reeusa a cer aque ela mesma morreré um dia. Disso, 86 comecard ater consciéneia aos sete ios. Aus vito, on nove anos (Choron, 1969), ela gabe que os seres marrem {quando alguém os mata, quando esto doentes ou velhos, que todos morrers0 um da, inclusive ela mesma. ‘Nos anos sucessivos de sua vida os nexos sigificativos se enriquecem de contetidos e se aproximam progressivamente da imagem de morte dos adultos. “Através de diversas formas de mediagio e de orientagio culturais, a crianga se apropria das “representagGes convencionais’ que os adultos tém da morte. Em um primeir instante, a palavra morte era para ela um continente vazio, um abstragio intealizavel. Esse invélucro se preenche progressivamente, em daas diegées, de acordo com a orientago mais ou menos dominante que prevalece zo universo dos adultos: no sentido das representagdes mgico-religiosas ou no dos saberes ‘reais’ sobre os pracessos da morte e do morrer (Fuchs, 1974). A apropriagao da idéia de morte &, pois, funcdo da interagdo do sujeito com os seus parceiros, com o seu préprio eu, com a sua cultura. 2 A consciéncia “nfo fart jamais a experineia de sua morte, mas vivert durante toda sua vide com umaimagem empirica da morte, aquela que uma dada sociedad formula apart do desaparecimento gradual de seus membros" (Ziegler, 1975; 21). Esta conscigncia de morte é especialmente importante, na medida em aque desempenha uma fung0 no que respeita& vida e na medida em que é uma funcio individual que se explica por relaglo & coletividade. Desmaios, sonos profundos, acidentes graves sto modos de se aproximar da consciéncia de morte. Mas nenhum se iguala a experiéneia da morte do,préximo, & de um ser 20 qual se esté afetivamente ligado, com o qual se constituiu um ‘nés", com 0 qual se edificou uma comunidade que parece romper-se, Uma vez que esta comunidade 6, de algum modo, eu mesmo, experimento algo de morte dentro de mim (Landsberg, 1951). Assim, a morte do outro evocard sempre minha prépria morte; ela testenmunharé minha precariedade, ela me forgard a pensar osmeus limites Como observou Louis-Vicent Thomas (1978: 24), no momento em que tomo consciéneia de minha finitude que cada instante de minha vide se carrega de todo 0 peso do meu destino, Cada tum dos meus ato se insoreve nele como uma pega nova de uma edificagio ieversivel que continua por toda a Guragto de minha existenca, deixan- © absurdo da finitude humana reside em parte no fato de que a morte ‘isica nao basta para realizar a morte nas consciéncias. As lembrangas daquele ‘que morreu recentemente continuam sendo uma forma de sua presenga no 28 ‘mundo. E esta presenga s6 arrefece aos poucos, lentamente, por meio de uma série de dilaceramentos de que sio vitimas os sobreviventes. A consciéncia nfio consegue pensar 0 morto como morto e por isso nio pode se furtar a The arribuir uma certa vida. A morte definitiva no é determinada pela realidade natural mais que pelasinstituigSes sociais:o defunto conserva ainda, por algum tempo, determinados poderes e direitos, mais ou menos duradouros segundo as diferentes culturas, Entre 0s kota, por exemplo, uma viva permanece a espo- sa do marido falecido, até que 0 starus desse venha a ser definitivamente 0 status de um motto. Se, por acaso, depois da morte fisica do marido, ela vier a ficar grévida, a crianga Serd considerada filha do falecido, com todas 2s conse- aliéncias que isto implica. O morto, ento, nfo é visto como alguém que esteja ‘completamente do outro lado, mas como alguém submetido auma passagem, & uum processo de mudanga, a um estado transit6rio, Esta transigiio pode ser to sutil que, segundo uma idéia bastante difndida, o defunto mesmo néo percebe que nio pertence mais 20 mundo dos vivos.. Por consegninte, os mortos niio esto fora da circulactio das mensa~ ‘gens humanas: a morte nfio corta os canais de comunicagéo com 0 morto, ‘embora imponha novos meios e novos cédigos. Os diola, os dida, os bété, 0s aulé, 0s lobi e muitos outros africanos costumam interrogar seus mortos no sentido de saber destes quais sto 0s responsdveis pela morte (Thomas, Rousset & Thao, 1976). Contrariamente, entre os kralé, so 0s vivos que acusam os ‘mortos: “Se voc8 se tivesse lembrado de ns, nfo teria morrido. Agora vor® ‘que voltar para pegar a gente, vé-se embora, fique por la” (Cunha, 1978: 57) Esta ‘ultra-vida’, a presenca e sobrevivéncia do duplo, implica a continuagio a imteraco, ou seja, 0 nao reconhecimento da morte, Os trobriandinos eréem aexisténcia de dois tipos de alma: baloma, que 6 forma principal e durével do espfrito do morto, ¢ kosi, entidade mal definida e que leva uma existéncia breve € precéria nos lugares freqiientados precedentemente pelo defunto, ‘S6.a primeira vai morarde maneira permanente na ‘ilha dos espirits’,enquanto ‘segunda ~ mais {ntima, digamos — ficaré alguns dias que seguem 0 dbito amedirontando os vives. f No paleolitico, 0 esqueleto recoberto de oere acocorado em posigéo fetal, logo acompanhado dos objetos pessoais, deixa-nos supor ser antiga a idéia de duplo e, mais particularmente, a idéia de que em sua outra vida, os ‘mortos, como os vivos, tém necessidades, No estado de Chiuaua, no norte do México, o morto é enterrado com milho, feo, seus arcos, suas flechas eum pote de resvino (espécie de cerveja de milho), porque as pessoas acreditam ser melhor atender logo as necessidades do morto que proporcionar-Ihe oca- sito de retornar para satisfazé-las. Um sogro, sentado ao lado da tumba de 29 seu genro morto por suifdio, entretém com este uma conversa, fazendo as perguntas e dando as respostas Por que voo€ morreu? ~ Porque decidi morrer. ~ Isto no é bom. Voc8 é sem-vergonta. Que é que vooé ganhod, estando af com estas pedras em cima de voc8?,.. Eu te deixo este resvinae esta comida, came... fimque ‘Yooe se alimente e nto reorne. Nis iGo queremos mais saber de vos8. Voc# é um imbecl.. Vogp no beberd mais tesvino conosco Ié em casa Figue aqui! Nao volte mais para casa, porque isto nfo vai Ihe adientar nada, N6s & queimarfamog. Adeus! Vé-se embora! N6s nilo queremos ‘mais saber de vocé! (Soustefe, 1979: 106) ‘A ambifidade da situagocomunicacional do morto-ainda-vivo é muitas vvezes clara: entre 0s mifSogo do Gabio (Maertens, 1979: 158) um dangarino carrega o cadver sobre seus ombros, fazendo piruetas, ambos envolvidos em uma vestimentatinica, ao som ge aclamagGes: “o morto anda” —enquanto urna ‘yor na floresta imita a do defunfo, ao som de aplausos: “o morto fala!”. Sim, o morto fala. O morto fala por intermediétios, através de possu- dos, ‘cavalos*, como se diz.em alguns cultos afto-brasileiros, que Ihe empres- tam a boca e 0 corpo. © morto fala diretamente, através de manifestagdes mais conctetas: ele pode jogar pedras, ele pode assoviar, ele pode aparecer por meio de silhuetas estranhas (Madagascar). Os mortos se exprimem pelo reaparecimento de ‘“desencarnados", que tm a configuragio visual de cor- pos, mas no siio corpos de came © oss0 porque nio obedecem & lei da ravidade. Mas os desencarnados nfo sio também puras espiritualidades: ‘algumas vezes podem mesmo ser fotografados. Diz-se que aparecem envol- ‘vidos por uma erpécie de aura luminasa e qne sia capazes de se deslocar pelos ares...Os mortos se comunicam por ruidos ouvidos nos témulos, explo- ses de gases, fogos-fétuos, algumas vezes com objetivo significacional bas- tante definido (por exemplo, o tiimulo de Silvestre II crepitava, segundo se acteditou, cada vez. que um papa fosse morrer): existe uma linguagem dos tiimulos como existe uma linguagem da arte, (Os mortos felam por suas metéforas ¢ por suas metontmias. Em sua extensa obra, Frazer levantou um grande miimero de proibigées que tinham por objetivo proteger os vivos das somibras, ou proteger as sombras contra a apo dos vivos, As crengas que exprimem temor dos mortos-sombras sto da mesma natureza daquelas que exprimem medo das sombras dos vivus, puis uessas ‘iltimas 05 homens véem freqlentemente uma dimenso de morte. Assim, & necessfrio evitar que a sombra seja projetada sobre os alimentos, proteger-se de projetar sombra sobre um morto, de encontrar sombra de mulheres grvidas. ‘As mutheres devem se cuidar de nfo serem fecundadas por sombras... Entre 30 ‘os trobriandinos, kas 6 comparado a somba de um ser humano, enquanto baloma ‘0 € a seureflexo no espelho (Panoff, 1972). Nas ilhas Fidji, os indigenas sepa- ‘amo que chamam de ‘sombra escura’ da ‘sombra clara’, 0 reflexo na égua ou no espelho. (O.além do espelho 6.0 verdadeiro reino dos duplos oinverso magica da ‘ido. Ob tabus, as auperatigdae, av presedgioe do reflexo e do espalho stio da mesma natureza das que concernem a sombra. Ainda hoje um cespelho quebrado € signo nefasto e, quando a morte sobrevém, se co trem de negro os espelhos, na Franga, Alemanhs, etc. (Morin, 1970: 152) jogo especular se manifesta também nas concepeGes de morte entre os krahé: “os mekaré chamam-nos de mekar6, eles ndo se-chamam (a si mestmos) de mekar6, eles tém medo de nés” (Cunha, 1978: 120). Poderfamos ainda falar {das manifestages das mortes nos sonhos, nos ecos (reflexos auditives) etc. > A cestas manifestagbes de vida dos mortos € necessétio As sociedades responder, No candomblé da Bahia a funglo da casa dos mortos-que-voltam, no terreio de egun, & garantir uma comunicagao ininterrupta entre os vivos © (9s mortos, mas de um modo regrado a fim de possibilitar o “livre fluxo do saber social dos ancestrais (.. na diregfio desses ignorantes da vida que so 0s vvivos” (Ziegler, 1975: 203), Diélogo dificil, entretanto, O ar, 0 vento que 0 egun levanta ao dangar é benéfico e capaz.de curar doengas; mas quem quer que toque as vestimentas do egunt morre instantaneamente. Um verdadeiro panico se abate sobre grupo cada vez que 0 egun avanca, dangando na dirego do ‘espago reservado a0s vivos. A noite, a6 03 homens mais corajozos ousam pas sear, assim mesmo munidos de longas varas, a fim de se protegerem de tocar tum egun vagando pela noite. Os eguns nfo $6 separam os mortos dos vivos, como levam morte aos vivos. ‘Um equivaco profundo governa assim a casa dos mortos. Massacrantes emediadares, potetores das vivos ¢ matadores, os eguns simbolizam em uma figura tinica as caracteristicasterificantese contraditérias de ume ‘morte que, mesmo o adimirSvel sistema nag6 nfo consegue dominar to- talmente. Ziegler, 1975:212) Na Nova Guing, segundo nos informa Thomas (1976), 0s vitivos s6 saem, munidos de porretes, para se protegerem da sombra de suas mulheres faleci- ‘das, Numerosos esqueletos antigos foram descobertos com indicios de terem sido amarrados. Em Queensland, quebravam-se 0s 03s0s do morto, prendiam- se 08 joelhos perto do queixo e enchia-se 0 estémago de pedras. O mesmo 31 sentimento, provavelmente, levou a colocar grandes blocos de peda sobre 0 peito dos defuntos, a fechar hermeticamente as sepulturas, a fechar com pregos as umas © 0s caixdes, Por toda parte, €necesséio disciplina aingeréncia dos\ rortos na vida dos vivos: no Laos se amarram os dedos do pé do cadéver; em \, ‘Uganda, os polegares sio amarrados aos artelhos; 0s kayapé do Brasil amat- ram 0s tornozelos e ligam as mos aos joelhos; no Tigre, na Etiépia, se amarram 08 polegares ao penis; em algyimas regides do Quebec nffo se calga 0 cadéver, a fim de impedi-lo de cafpinhar sobre a neve ¢ 0 gelo (Maertens, 1979). Em muitas culturas, roga-s¢ 20 dafunto que esquega os seus, que deixe 08 vyivos em paz: “Arpartir de heje, voc8 niio tem mais parentes, nio tem mais mulher, neg tem mais filhos, voc8 nfio € mais da aldeia” (Thomas, 1976: 512), dizem os edo, da Nigésia, quebrando as pernas e perfurando os olhos do morto, se por acaso se persuadirem de que se trata de um ‘mat morto’. Cutras vezes os vivos ge dirigem aos mortos em uma lingusgem menos direta e mais suile Assim, no poroeste da Espanha, onde as pessoas créem que alma do morto sign afamflia quando esta retorna do comitério, costumavs-se acender fogo diante da casa e queimar 0 colchdo do defunto no cruzamento de duas estradas: na Trécia, uma atengio particular € dirigida ao lugar onde repousa o morto, especialmente onde esteve sua cabega: coloca-se af um reci- piente com égua e vinho e um pouco de farinha. Mas quando se acredita que a doenga permaneceu no lugar onde estava 0 morto, coloca-se uma pedra pesa~ da, um machado, quebra-se um recipiente feito de terra, enfiam-se pregos no local, espalha-se carvio ardente no lugar onde ficavam as pemnas do morto, para"“queimar a morte” (Ribeyrol, 1979: 51), isto pensando que assim proce- dendo podem cortar ou espantar a mort. Entre os camponeses europeus, é comum que se lave e se purifique a ‘camara mortudria e que se cubram os espelbos, na intengAo de exorcizar a presenga do morto. Tal intengo pode encontrar uma multidio de praticas. Os hnayar, da fadia, que transportam um defunto, vestem-se de mulher para que este nfo 0s reconheca. Em muitas zonas camponesas da Europa, 0 defunto é tirado de casa através do teto, com os pés para frente, a fim de que nfo retome. Entre os zulu, os que teansportam um morto vem encontré-lo andando de cos- tas, a fim de que seus rastros estejam voltados para o exterior. Na Franga, em Beauguesne, os sobreviventes rodam em torno do témulo andando em marcha {r6, antes de o deixar. Os tsimithey de Madagascar jogam terra nas tambas de costas para estas. Na Galicia, o carro funersrio vem ts vezes seguidas diante da porta, para que se esteja certo de que o espirito embarcou nee: além disso, brem-se as portas, as janelas, as gavetas, para nfo deixar nenhuma chance 20 espitito de ficar agarrado em algum desses lugares. Os cheremi, os lodugan, 2 0s hmong, entre outros, fazem uma abertura na parede s6 para a circunstancia de uma morte para, por ela, retirar o cadaver. Os pigmeus deixam um fogo em. volta da casa durante quatro dias. Os panan de Bonéu amarram ao contréio barca que transportou um cadaver para o outro lado do rio, com a intengio de tapear 0 defunto. Na Bretanha, 0 cortejo funerério fica ziguezagueando pela aldeia ¢ pega os caminhos menos corihecidos ¢ frequentados para ir ao cemité- no. Os than de Borne, 0s malacitas das Uhas Salomao, 08 lua do Kasai, voltam do cemitério por um caminho diferente daquele que foi tomado para ir. s samoiedos e os esquimés abaixam a parede da tenda imediatamente apés a sada do defunto, Os tamguses fazem a mesma coisa e mudam de lugar a tenda do morto... (Macrtens, 1979), Bis alguns exemplos de um intermingvel dislogo a que nés, ocidentais, estamos cada vez mais surdos e cujos idiomas estamos crescentemente despreparados para entender. a ‘A humanidade, jé dizsemos, 6a tnica espécie consciente da mortalidade de seus membros. Esta consciéncia faz parte da adaptaco autocritica dos homens ao mundo, que é a cultura, ¢ est em relaco com a significago do individuo no corpo social. Assim, a morte se situa no ponto de entrecruzamento das correntes bio-antropoldgicas fundamentais. & pela conscitacia dela que o hhomem se distingue mais nitidamente dos outros seres vivos e sua vida adquire ‘que ela ter de mais fundamental. Os bororo, por exemplo, colocam a consci- &ncia da morte e as priticas que dela decorrem no mesmo nivel das interdigves de incesto e das regras de sociabilidade: conta-se que antes do advento de suas instituigdes 08 bororo era como os bichos e 5 outros indios, guerreando centre si, “deixando seus mortos apodrecerem na mata”, 'sem vergonha” nas suas atividades sexuais e “copulando até com suas préprias irmas” (Crocker, 1977: 108). Em todas as clturas os individuos, para conseguirem construir inte- lectual e afetivamente suas (auto-)identidades, tém necessidade de um mito do fim, como de um mito da origem. E estes mitos ndo thes faltam: purificagao do pecado, punigao da inveja do vizinho, vinganca de um afim, mau-othado... Poder-se-ia até dizer que cada cultura representa um estilo particular de morrer. Sobre a morte sistemas Idgicos abrangentes e coerentes foram construfdos, demonstrando uma extraordindria acuidade € qualidade de refle- xo, Trata-se de inestimaveis saberes de conjugar o tudo e o nada, aangiistia e oalivio, atristezaca alegria, afaltac a substituicto, o inteligfvel eo incompre- ensivel,o aqui eo além, a vida e a mort. Tais sistemas l6gicos foram construfdos para logicizar o absurdo que ameaga fazer da l6gica um absurd. NZo podem encontrar outra solugio que a rejei¢ao da morte ~ exatamente fonte de absurdo, 33 sem o qual a légica no seria possivel: interminvel dialética de rejeigo da ‘morte, que consiste ao mesma fempo em viver a vida ematar a morte ern viver ‘a morte e matar a vida. Por isso, o morto no cessa de existir, ele apenas se ibera do aspecto terrestre de sua existéncia para continué-la em outro lugar. Os vivos poderdo ser tepresentados con jé estando mortos ¢ 0s mortos como retransformnados tem vivos. A recusa da mortg pela crenga na sobrevivencia do duplo em um outro lugar étalvez to vetha quanto o homem: perto do esqueleto do homem de Neanderthal, na Chapelle-auxsSaints, descobriu-se uma perma de bizonte qua- se intacta—o que nds permite Ibvantar a hipétese de que os companheiros do falecido tivesem querido provet as suas necessidades de alimento em um ou ‘ro mundo. Depois, 0s eemplos abundam: na Idade do Bronze os mortos S10 fenterrados com alimentos e utensflios de cozinha; no Egito antigo, algumas rmoedas de ouro sio-Ihes intrgduzidas na boca para que possam pagar suas estadias no além..# ’ Despedir-se de um individuo morto é um gesto de exclusio. Mas esta cexclusfio deveré ser compensada, invertida de certo modo, em um movimento contrério de re-insergio do individuo, de iniciaglo, de renascimento para uma nova vida, em um novo mando, em uma nova sociedade. A socicdade do outro ‘mundo 6 ainda uma sociedade cujas relagdes com a dos vivos so quase sem- pre bastante definidas. Assim, em muitas sociedacles da América do Norte, a Fide no outro mundd é concebida como uma réplica da vida temestre, mas uma vida na qual tristeza, fome e aborrecimento nao encontram lugar e onde 0s ‘mortos so felizes, embora possam as vezes sentir saudades de seus compa- heitos, de suas antigas vidas « aejam tentados a reaparecer. Entre os dayak, 4 sociedade dos mortos também se assemelha & dos vivos: a aldeia do além € vista como qualquer aldeia terrestre com suas divisdes, indo 0 morto para um setor ‘elegante’ ou ‘miserdvel’ de acordo com o nimero de sacrificios ofereci- dos pelos sobreviventes. Os cocopa, da Califémnia, imaginam igualmente a mesma vida terrestre, embora sobre uma terra mais fértil, Os mbetube, da Nova Guing, imaginama uma sociedade do mesmo tamanbo, onde continuam 03 casamentos e nascimentos, mas de onde desaparecem as distingSes entre bem emal (Maertens, 1979). Entre 0s krahé, 0 mundo dos mortos € oposto e complementar a0 dos vywos: “a lua 6 0 $01 dos mekard™. Os mekurd gostam da escuridio do mato @ nfo da chapada e do limpa, que é a paisagem que os krahé consideram dese- jvel; comprazem-se de lugares obscuros, de dias de inverno e de chuvas, € temem o sol quente; ficam em sua aldeia de dia, mas vagam pela mata de noite (Cunha, 1978: 116). Os bella-coola, da Cokimbia canadense, pensam que 0s “ ‘mortos passam para o outro lado da Terra, onde os defuntos vivem uma vida inversa & dos vivos: o inverno deles corresponde ao vero dos vivos; seus dias, as nites; os rios correm na direco da nascente; as comidas amargas tém {gosto saboroso e se, por acaso, um vivo neste mundo aparecer, é ele que exa- lar odor nauseabundo (Maertens, 1979). No Camboja, em alguns contos po- pulares, o mundo dos mortos € descrito como sendo de proporeées invertidas com relagao as do mundo dos vivos: o que é grande aqui é mindsculo lée vice- versa (Thierry, 1979: 234). Entre os brou, ainda no Camboja, o mundo da morte 60 de uma ‘vida invertida’, onde o defunto se serve da mao esquerda, utiliza ‘marmitas perfuradas, ferramentas sem cabo e sem corte etc, Uma vida inver- tida mas também vida menor, segundo informa Trubetzkoy (1979: 230-1): “a casa do defunto 6 uma casa em miniatura, ele se contenta com migalhas de alimentos”. No fundo, a morte é como a sombra da vida: sombra projetada, ‘menos densa que as coisas mesmas”. Freqtientemente as relagSes entre mundos dos vivos ¢ sociedades dos suortos so concebidas de modo complexo ¢ indircto, Para o budismo, por exem plo, morte e nascimento esto no mesmo plano: 0s dois episGdios se determina reciprocamente e se inscrevem na engrenagem interminvel das transmigragGes, ‘0 samsara, porque tudo o que nasce, envelhece, more ¢ renasce. A lei funda~ ‘mental do budismo quer que se saia desta engrenagem, que se neguem tanto o zascimento como a morte e 0 renascimento, que se despreze o ‘querer viver’, para poder escapar desse sistema de dor e sofrimento. A morte nada mais € que ‘resultado da vontade de vivere das imperfeigdes que os renascimentos produ- zem, Por outro lado, no pensamento budista existe uma outra morte, libertagao definitiva dessas existéncias sucessivas: 0 nirvana. Ai se encontra a vida indeterminada, mas total, o éxtase, quer dizer, amor e plenitude, mas também vazio e nada. O nirvana é a extingao da engrenagem de renascimentos € ‘mortes, 6 o fim da impermanéncia, é a eterna felicidade. & a ‘outra margem’, o ‘outro mundo. A idéia de nirvana contém em si, confundidos, a verdadeira morte (que aparece como a verdadeira vida) e a vida absoluta (que aparece como ‘morte permanente) ~ fusio na totalidade, descobrimento do cohhecimento ¢ da onisciéncia: “nossa faculdade de pensar desaparece, mas nfo nossos pensamen- tos; 0 raciocinio foge, mas 0 conhecimento permanece” (Buda). (O seguinte relato da morte de Buda, que Solange Thierry (1979: 72) nos oferece, ilustra bem a visio budista da morte e do nirvana 4 provavelmente no ano de 478 antes de nossa era, uma noite de lua cheia do més de kartita (novembro-dezembro) ou do més de vaisatha (mai) do ano seguinte, que teve lugar a morte, ou melhor, aextingo de Buda. 0s diseiptlos choram, 2 terra treme, mas sobre 0 corpo alongado, duas 35 Jrvores gemeas florescem fora de estagdo. Buda repousa em um peque- no bosque, perio da cidade de Kusinagara, nio longe de um riacho. Ele csté deitado sobre o lado“direito, com a cabega virada para 0 cest, & ema esquerda alongada sobre a ditt, Fleentrou no nirvana, a Extinglo, ‘que é para.ele 0 mahaparinirvana, a “grande total extingao’. O sopro de sua existéncia no enconta mais lugar emuma outra cxsténca, Eleno remuscerd na, como enascem renaaoom 2om paras az craturas imper- feitas, votadas a uma trapsmigraco sem fim. Ele chegou &‘outra mar- gem, ele se eadiu dakengrenagem das mortes e das existéncias tencadeadas uma is outras pela forca do desejo e da ignordincia (.). O nirvana é evasio da dor. Ble nfo é nem wm lugar, nem uma duragéo: somentgum estado imutével, Ee € 0 nto-movimento,o nfo-ecomeg9, depois do tubilhoudas existfncias, E a ‘parada das sensagdes'. Mas, tembora se defina negativamente, no é de modo algum o nada: oaniqui- Tamento dad, da more, dorenascimento, nto significa onada. Onna ua cert concept da plitude, da elizasto, da pereicio. COhindufems prope um decslonamenta camplexo para o movimento dos mortos. Acredita que aquele que viveu na fé entraré na ‘vida de luz’, Quem ‘viveu 0 bem tilharé o ‘caminho de fumaca’e ficaré no ‘mundo dos antepassa- dos’, aguardando renascer segundo os seus méritos ~ e renascera diversas ‘yezes, tantos quantas sejam necessérias para que se purifique, se aperfeicoe e atinja 0 objetivo supremo. Quem praticou o mal reencarnar-se-4 em animais insignificantes (moscas, mosquitos etc). Para 0 mugulmano, a vida no além também dependerd da vida levada aqui na Terra: ele serd julgado pela sua vida e recompensado ou punido de coro com os seus méritos. Vive a morte como uma fatalidade, mas sobretudo como uma porta de acessa a Deus, um passo que € necessério dar para ser admitido na intimidade de Ald. A morte € vivida por ele todos os dias enormal- ‘mente aceita com serenidade: nos cemitérios, nfo hé muros altos, no hé gran- des construgdes sobre os mortos; apenas algumas pedras assinalam a posig0 <éo.corpo, orientado na diregao de Meca, O outro mundo dos mugulmanos mais ntigos, que viviam em desertos fridos, era representado como uma paisagem de Arvotes frondosas e fontes de 4guas frescas e Itmpidas. O cristianismo tra- dicional compreendia o outro mundo estratificado: 0 céu — ou melhor 05 eéus — ‘opurgatério, os limbos dos Patriarcas, os limbos dos nio-batizades. Os ba-kongo da Zaire também estabelecem graus na morte. Primeiro, a morte terrestre, quando as almas se perdem na mata; depois, mais ou menos rapidamente de acordo com a importéncia dos papéis sociais, as almas morrem outra vez (mulheres e criangas, no fim de alguns meses; homens comuns, a0 cabo de alguns anos; 0s dignitérios, apds cinco ou dez anos; os chefes, depois 38 de vdrias décadas; os grandes chefes e 08 grandes banditdos ainda mais tempo; 08 filhos de M"Bangala, a mulher de nove seios, ancestral de todos os yombe, ‘permanecem imortais). Todavia, esta morte definitiva atinge a pessoa e no 0 set, porque a almas destrufdas se fundem na substncia dos génios. No Senegal, entre 0s serere, a alma deixa o corpo (morte latente); depois, ela se retira definitivamente: enti, o sopro vital Se apaga, o corpo se decompée, o defunto vai encontrar seus ancestrais (morte fisica, morte social); finalmente, vem o gel bagtan, quando j& nio hé mais um esqueleto, quando ninguém mais se lembra do defunto, 0 morto se transfere para honolulu, no centro da Terra (morte escatol6gica). Os ancestrais importantes escapam a este estado tiltimo e 8s vezes sao divinizados (Thomas, 1976). No pensamento nagd, a terra da vida imperectvel, 0 orum, 6 povoada de cls, de linhagens, de tribos e de hierarquias. O homem que deixa 0 corpo terrestre para se reunir a seu ipori no orm apenas abandona seu rosto huma- no, conservando sua familia, sua linhagem, seu cla ¢ 0 povo no qual o orixé 0 colocou no momento de sua criagio. “Ninguém deixa seus anvestiais © us anceatrais nto abandonam ninguém’” (Ziegler, 1975: 201). Uma vez realizada sua individualizacao, 0 homem nio retoma ao nada: vivo, ele é habitado pelo seu orixé; quando morte, retorna a0 orum, sob forma de egun, conservando, nos dois extremos, sua individualidade prépria, a mesma estrutura de persona lidade, os mesmos lagos de parentesco. A pessoa humana, uma vez nascida, & indestrutfvel. Quando um homem morre, “seu pr6prio rosto 0 espera no céu, & vida terestre € entao percebida apenas como um desdobramento. Cada homem ppossui sua etemidade desde antes do seu nascimento” (Ziegler, 1975: 250) 7 ¢ 3 De um Mundo a Outro Diante desses sistemas I6gicos de compatibilizagio do aqui edo além, da vida e da morte, o observador éimediatamente surpreendido por uma constatagio equivoca: a permanéneia do problema e a extraordinéria diversidade de solu- Bes que a ele sto oferecidas. Contudo, nlo é impossivel localizar, atrés desse Teque de salugées. alguns caminhos constantes que as culturas escolliem para atingir suas paticulares solugGes. Sob a diversidade, alguns pontos comuns saltam imediatamente aos olhos: em primeiro lugar, axioma fundamental, a morte ‘iio aniquila o ser; ela abre as portas para um além, para um outra vida: Inferno ‘on Céu, para os cristios e os muguimanos, Campos Elisios, para os gregos antigos, reencarnagio e metempsicose na filosofia oriental, passagem para o eino dos ancestrais na Aftica, Por toda parte a morte é entendida como um deslocamento do principio vital [Em seguida, as culturas podero escolher uma imagem maternal da morte (a-vida do aqui é como a vida de um feto, a morte €0 verdadeiro nascimento); ‘ou uma imagem de suns (a morte € repouso, 60 tiltimo sono ~ ‘cemitério’ em sua origem grega significava ‘lugar onde se dorme'); ou constrair uma teoria de metempsicose (idéia de uma vida que se estende no tempo, passando através de varios corpos); ou uma gramética de reencarnagées (que supéem uma conti- ‘uidade consciente da personalidade através de virios renascimento); ou ainda acreditar na ressurreigdo (restabelecimento da existéncia humana depois dda morte: ‘re-viver"),e assim por diante. Eniretanto, todas essas representagdes tranquilizantes em Gltima instincia podem se reduzir a um repert6rio de categorias gerais que a humanidade produ iu no corer do tempo e cujos termos ~ porque sto caminhos diferentes de ftingiro mesmo fim. normalmente nfo se excluem e freqientemente coexstem cemuma mesma cultura: morte-passagem, morte-libertaglo, convivio-etemno-com- o-criador, aniquilagdo-no-nada-que-é-tudo, ressurreiglo, reencarnagao, metempsi¢ose, possessio, permanéncia-através-dos-descendentes, morte fecunda.... A morte, em suma, seri sempre uma transformacio. Todavia, uma, 3» {imagem nova da morte esté aparecendo entre nés,caracterstica provavelmente exclusiva de nossa civilizagov.a morte é um desaparecimento. - 7 ‘Tanto quanto eoncebidas, estas salugBes a0s problemas que a morte coloca so vividas, Por intermédio de suas posturas, de seus movimentos, de sua ago, de sua copstituicfo! de suas transformagées, de seus gestos, ide suns emoges 0 corpo humano fala ¢ toma parte na vida social. Que o corpo porta em si a macea da Vida social, expressa-o a preocupagao de toda socedade de fazer imprimir nele, fisicamente, determinadas marcas, que ela tccothe de um Conjunto cyjos limites virtuas dificiimente poderiam ser defini- dos. Se considerarmos todas as modelagSes que sofre, constataremos que 0 corpo é pauco maiS que uma massa de modelagem 2 qual a sociedade imprime formas segundo suas propriasdfsposigSes formas nas quais a sociedade pro- oars astonomia do seu pxopho exptrito (Rodriguer, 1979) Fntregue b ‘itualidade, dela corpo sai maquiado, rasgado, mutilado, mascarado, vesido, Tavado, modelado, perfurado... Enfim, promovide a figurar como significante no diseurso social ra, ei-o transformado em cadaver e submetido a uma dindimica estra- nha, que eseapa As regras sociais de estruturagio do corpo e que contém em si 6 poder terrivel de desagregar e desestrturar a imagem do social no corpo projetada e intojetada. Este processo comporta uma ameaga fundamental: @ norte do corpo pode ser a morte do simbolo que o corpo é, a morte do simbolo Un estrtura social, Se é verdade que para os homens significante precede 0 Significado e que o simboto é mais real que a coisa simbolizada,entao éneces- sitio fazer algo: & necessério transformar em significantes integrados 20 c6d- 0 03 préprios acontecimentos por meio dos quais os significantes do e6digo ‘orem o Fisco de se desintegrar; 6 preciso transformar a evidéncia da entropia tem signo de ordem, os perigos da finitude em exaltaglo da permanéncia, TEmergemn na cena os rites funertios. Para cada sociedade, umm complexo ritual, complexo que & um verdadeiro teste projeivo da vida coletiva. As emogbes 4 semire a expressar~ tristeza, indiferenga alegria ~ nfo slo absolutamente {questes de decito individual. Ao contrrio, dependem estreitamente do tipo de rote (acento, fier.) da condigio do morta (chefe, descendente,colateral, Feitceto, inimigo..), da posigio social do sobrevivente e de sua relagdo com 0 desaparecido, Observados estes condicionantes, eexcetuadas as mortes de ini- ttigos efeitieiros (que podem produrir alegra econtentamento), de um modo feral as attudes dos sobceviventessituam-se em torno de duas configuragdes afetivas fundamentais: tristeza e choro, ou distfincia e indiferenca 40 Contudo, areforga-a idéia de que os sentimentos so ritualizados e socialmente propostos, observernos que tristeza indiferenga e slegria ndo sto necessaria- Jnente sentimentos reais, experimentados pelos individuos, mas, antes, comport mentos convencionais: carpideirs profissionalmente remuneradas para expres~ sar um sentimento normalmente nio real; alegria protocolarmente interditada; tautorontmle, distancia, indiferenca est6ica e mentirosamente sustentados 'A morte 6 talvez 0 terreno por exceléncia daquilo que Marcel (1971) denominou “expresso obrigatéria dos sentimentos”. Thomas (1976) fala-nos, por exemplo, do costume encontrado entre 0s diola de, diante da morte, de- nonstrar desprezo ou indiferenga zombeteira: ages imitativas irGnicas, gritos cheios de alegria, estalos dos dedos, congratulacdes, andar saltitante sobre um 6 pé, putas, tambores e cantos frenéticos. Os parentes préximos do defunto permanecem iméveis, solenemente inexpressivos, enquanto as mulheres ve- thas, com ar grave, protegem 0 cadaver das moscas. Tudo se passa como se eles se dispusessem a aniquilar os prejuizos causados pela morte recusando-se a levi-la a sérlo e fuzemu de conta que nio a temem absolutamente, Mas, a0 ‘mesmo tempo, 0s diola desconfiam do morto, cuja alma persiste em rondar & aldeia darante os dias que seguem imediatamente o falecimento. Por esta ri- zo, evidam atenciosamente do cadaver: vestimenta, toalete, alimentos etc. ‘Somente as mulheres choram. As criangas olham. Hoje ainda, no Oriente Médio, contratam-se carpideiras rituais para gue elas aumentem a intensidade dos lamentos ¢ as dimensGes da tristeza socialmente obrigat6ria: elas se arrancam os cabelos, espalham cinzas, ras- ‘gam suas roupas, laceram a si mesmas com as uohas, num ritual que talvez Provaque mais emocdes do que exprima, Entre os malecitas, se houver ‘bastante alimento para entreter as pessoas, 0 choro ritual pode durar mais de ‘uma semana; entre os cocopa os gritos ¢ choros duram vinte © quatro horas, mas atingem um limite extraordinério de resisténcia humana. Também em ineios populares gregos, eslavos e africanos pode-se observar a pritica de as carpideiras desnudarem os seios ¢ 0s lacerarem, ou de rolarem por terra, para traduzir seu desespero. Entre 0s zande, por casio do enterro de um chefe, usava-se colocar no timulo oito mulheres com os membros fraturados, ciijs gritos de dor se reuniam aos das carpideiras, superando estes iltimos (Maertens, 1979). Evidentemente, nio se pode reduzir tais manifestagdes & expressio da tristeza individual, por mais viva que seja esta tristeza: pelo contrétio, € mais, possivel que uma boa carpideira venha a sentir efetivamente os sentimentos {que elaé paga para exprimire provocar. Nesse sentido, seria oportuno lembrar aqui as palavras de Durkheim (1912: 571): a se os criti durante as fests comemorativas da Paix, so judeun0 tniversiio de qua de Jerusalém, jejuamese morifieam nfo € para dar Curso uma tsstzaSipontaneamente experimentada, Nests eiteans- finsas, o estado interior do crete earece de propor com as dura attingnels aque se submete. Se et iste, é anes de tdo, porque s thga a estar tite ee obriga asso paaafrmara sa fA aitude do Sistraliane durante oIuto se expla da mesma mancir, Se choa, se fem, nfo & simplegggnte para expresar uma dor individual; 6 para umprrunsleverquea sociedad cicandant no dei de recordar Ie quando’ thegao ca. Com efeito, e em sunfa, quando choramos pela morte de uma pessoa © io chorifnos pela morte de utra, estamos, no primeiro caso, cumprindo uma Gbrigagio que diz repeito A relagdo entre o nosso stan € 0 status da pessoa {que morreu; exdispensados dessa obrigagio no segundo caso. a = “Tas préticas famerdrias — cujos tragos mais antigos remontam a0 menos 0 paleolitico médio (entre 10,000 e 35.000 anos antes de nossa era), quando 0s homens de Neanderthal experimentavam talvez.em relagio a seus mortos um sentimento muito préximo aos nossos (Thoury, 1979) ~ apresentam, apesar de diferengas particulares de concretizacio em culturas especificas, uma certs unidade no que diz respeito & funcio: conhecer as causas da morte, estabele~ cet a ordem na sociedade no caso de haver um culpado, expressar interesse © afeigao dos sobreviventes pelo defunto e, principalmente, contribuir para a sua ‘Viagem em dirego a0 outro mundo. No fundo, 0s ritos slo solidsrios com os Sistemas miticos e com eles supdem uma crenga comum: a morte nfo é jamais ‘ aniguilamento total do homem, ela é uma passagem para outra vida. De um modo qualquer, o morto ainda vive, tanto que se pode comunicar com ele © receber suas mensagens, ‘Van Gennep (1969) e Hertz (1970) demonstraram que a morte é para @ cconseisneia coletiva, um afastamento entre 0 individuo e a convivencia humana. “Todavia, esta separagdo tem um caréter emporio e pretende fazer com que © ‘morto passe da sociedade palpével dos vivos a sociedade invisivel dos ancestrais. ‘Como fendmeno social, a morte ¢ 0s rites a ela associados consistem na realiza~ ‘plo do perso wabalho de desagregar o morto de um domain e introduzito em bntso, Tal trabalho exige todo um esforgo de desestruturagSo e reorganizagao das categorias mentais e dos padrbes de retacionamento social. O enterro, bem ‘como as outras maneiras de lidar-com 0 corpo morto, é um meio de a comunidade assegurar a seus membros que o individuo falecido caminha na diregio de seu ugar determinado, devidamente sob controle. Por meio de tai priticas, 0 grupo 2 recebe mensagens que evoluem da inseguranga ao sentimento de ordem ¢ representam a maneira especial que cada grupo lnumano tem de resolver win problema fundamental: €necessério que 0 morto parta. ‘Assim, entre 0s foradja do sul (Koubi, 1979), antes de sua inumagio definitiva o morto 6 objeto de um culto extremamente complexo, que Bs vezes tode durar algumac dezenas de anos —poraue € necessério tempo para atingit © dominio dos mortos, para nele ser aceito, para se integrar & sociedade do lém e, finalmente, para se transformar em deus ou ancestral. Segundo 0 pen- Samento foradja "6 necessério tempo para morrer”, porque a morte biol6gica hilo € a morte verdadeira. Por €ssa razio, nfo consideram como sendo ritos funerérios 0s ritos que praticam por ocasiao de um falecimento, Por algumas hhoras pelo menos, por alguns meses, ’s vezes anos, 0 defunto é considerado to ma saki, doente’, e & nessa condico que ele é lavado, vestido, enfeitado, ‘alimentado, exposto... 0 morto, ou melhor, 0 ‘doente', est inerte, porque est privado de stmanga, ‘energia vial’, ou de penaa, ‘sopro vital’. Mas nada Tmpede que retorne ¢ que o docnte se lovante e fale, Portanin, & necessério tempo para que oprinefpio vital, que se encontra difundido por todo 0 corpo, se tevada deste Isto significa, em outros termos, que a passagem da vida & morte unca é instantinea, Ela é um trajeto, um percurso de provas e incertezas, que termina ao fira da celebragio dos rios funerérios. => Fate percurso, este trajeto, entio demarcado por gestos rtuais que © cirounserevem, distinguem, controlam e vio terminar por demonstrar que afinal le contas 02 dois estados, de morta e de vivo. nao sao inteiramente divers0s, pois ‘os mortos, 2 maneira deles, continuam a viver, Por isso, nilo 6 por simples feidente que os ritos dos mortos sfo freqilentements articulados a outros fitos de passagem, particularmente a ritos de iniciagio: & que, também no ‘nfvel dos rituals, a morte é a passagem de uma forma de vida social a uma utra; ela ndo € o fim da vida, mas iniciagdo a uma nova. Por conseguinte, os ritos funerdrios podem ser concebidos com recurso ao esquema cléssico que consiste em compreender 0s ritos de passagem equndo ts momentos diaerOnicos: a ‘separaglo’, trabalho simbolico de des- jgamento do morto dos dominios dos vivos, a ‘iminaridade’, estgio ntermedi- frio em que 0 morto empreende sua viagem © em que nem bem deixnn este ‘mundo, nem bem passou a pertencer a0 outro a ‘reintegraglo’, momer{O final em que 0 morto 6 considerado como tendo atingido oreino dos mortos, 0 reino dos ancestrais e como estando em seu lugar. E quando os sobreviventes etomam A vida normal e o grupo se recobra, restabelece sua paz ¢ se reafirmn? 4s

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