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IHU one sac ws Maca ea Ces a René Girard e o desejo mimético: as raizes da violéncia humana Conceito é fundamental para compreender a obra do pensador francés, analisa Joao Cezar de Castro Rocha. Traducao das obras para o portugués esta sendo feita pela E Realizacées Macs Jones primeira intuicio de René Girard é o carater mimético do desejo humano. “Sua teoria é uma expli cacao do comportamento e da cultura humana”. De acordo com 0 historiador Joao Cezar de Castro Rocha, “‘o carter mimético do desejo € a causa primordial da violencia humana, ou seja, em prin: cipio, a violéncia surge como uma derivacao nao calculada do carter mimético do desejo”. H4 uma ccoincidéncia entre o sujeito antropofagico oswaldiano e 0 mimético girardiano, “pois idéntica divisa poderia defini-los ‘S6 me interessa o que nao é meu’”. As declaragées fazem parte da entrevista concedida por e-mail pelo coordenador da Biblioteca René Girard. Jodo Cezar analisa o desejo triangular girardiano expli- cando que nao desejamos a partir de nds mesmos. “Pelo contrario, aprendemos a desejar através dos olhos de modelos que consciente ou inconscientemente adotamos. Somos todos auténticos personagens shakespearia- nos que sempre se apaixonam a partir da sugestao de outros”. A respeito da Biblioteca René Girard, publicada pela E Realizacoes, Joao Cezar explica que a iniciativa é um convite para que o leitor venha a escrever seus proprios livros acerca da teoria mimética. Graduado em Historia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ, Joao Cezar é mestre e doutor em Letras pela mesma instituicao. Na Universidade de Stanford, Estados Unidos, cursou Literatura Compara da. E pos-doutor pela Universidade Livre de Berlim. £ professor aésociado de Literatura Comparada da UERJ € escreveu iniimeros livros, dos quals destacamos Literatura e cordialidade. 0 publico e o privado na cultura brasileira (Rio de Janeiro: EUERJ, 1998) e Critica literdria: em busca do tempo perdido? (Chapecé: Argos, 2011). Com René Girard e Pierpaolo Antonello escreveu Evolution and Conversion: Dialogues on the Origins of Culture (London: Continuum Books, 2008). Confira a entrevista, IHU On-Line - Quais séo 0s aspectos que tornam a obra de René Girard t&o atual e importante? Joao Cezar de Castro Rocha - Talvez a melhor forma de responder a pergun- ta seja pensar na analise proposta por René Girard de um problema tao atual quanto os distérbios alimentares. Ora, a perspectiva aberta pela te- oria_mimética_permite uma teitura 1 René Girard (1923): flosofo e antropélogo Francés, Partiu para os Estados Unigos para dar aulas de francés. De suas obras, destacamas eo Witence et le sacré (A violencia 0 sagra i), Des Choses Cachées depuis lo Fondation ch Monde(Das cosas escondidas desde 0 fun- ‘dacdo do munde), Le Bouc Emissare (O Bode ‘explatorio), 1982, Todos esses livros foram Dublicados pela Eaitora Bernard Grasset de Paris. Ganheu 0 Grande Prémio de Filosofia da ‘Academia Frances, em 1996, o Premio Mé dei, em 1990. 0 seu zo mais conhectdo em ortugues& A vioténciae osagrado (Sao Paulo: Perspectiva, 1973). Sobre o tema deseo e vio \encia, contra a edic Ho 298 da revista IHU On- Line, de 22-06-2009, disponivel em http /B, IufdoOmak. (Nota da IHU On-Line) 28 Unica desse problema. Aqui, anorexia € bulimia compdem uma nova tela de Edward Munché, num grito de angistia diante de situagdes definidas pela es trutura do duplo vinculo, estudada por Gregory Bateson.» Situacdes de duplo vinculo (double bind) so. marcadas por uma ambiguidade desagregadora da estabitidade emocional, pois impli- cam a enunciacao de dois comandos contraditérios. Nos termos da teoria mimética, 0 mundo contemporaneo faz do duplo vinculo sua propria razao de ser. Por exemplo, a propaganda oferece modelos que devem ser imitados, Con- TT Bavard munch(1863-1944): pintor norue sues, um dos precursores do expressionism Blemao. Sua obra mals famosa € O grit. (Nota da IHU On-Line) 3 Gregory Bateson. steps to an Ecology of ‘Mind. New York: Ballantine: Books, 1972. A Editora pubicara em breve o ivro de Bate- son. (Nata do entrevistado) tudo, ao mesmo tempo, valoriza-se a busca da eterna fonte da inovacao, cuja légica seria a de nunca imitar. Como reza 0 refrdo popular: Just be yourself. Sem divida, “seja apenas vocé mesmo”; aliés, como todos os demais também 0 S80, tornando-se sempre mais semethantes, sobretudo quando se empenham em ressaltar suas diferencas. Ora, as jovens anoré: xicas encontram um modelo “natural” nas inimeras modelos que dominam as paginas das revistas de moda € os pro: gramas de televiso. Como imitar-\hes a nao ser pela autoimposicao de um regime alimentar draconiano? No en: tanto, como manter-se saudavel e pra- ticar exercicios, outro dogma do mun- do contemporaneo, sem alimentar-se adequadamente? Como equilibrar as duas exigéncias, nao apenas contradi- t6rias, mas mutuamente excludentes? ‘SAO LEOPOLDO, 28 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDICAO 382 isan eae Say Talvez, como muitas jovens declaram ‘com naturatidade, seguir constante- mente um regime alimentar rigido, a fim de evitar a necessidade de dietas ‘mais rigorosas.. ‘Anoréxicos e bulimicos Fiel a complexidade de sua teoria, em lugar de identificar uma origem es. Pecifica para os disturbios alimentares seja um niicleo familiar problemati- co, seja a escalada da rivalidade mi: mética ocasionada pela proliferacdo de modelos midiaticos -, Girard propde uma hipétese perturbadora: “A maior parte de nés oscila, durante a vida, en- tre formas atenuadas dessas duas pa- tologias”. Portanto, somos todos, ainda que inconscientemente, um pouco ano- réxicos e um tanto bulimicos. Eis um exemplo claro da atualidade da teoria mimética. Por exemplo, o filme Cisne Negro, cuja protagonista transita- va com perturbadora tranquilidade da privagdo constante ao excesso eventual, ‘como se esses polos opastos fossem ape- nas estacdes de um trem desgovernado pelo desejo mimético, possui muitos ou- {ros aspectos que podem ser iluminados pela teoria mimética. Penso na rivalida: de exacerbada no meio artistico, a pro: liferacao de duplos miméticos, 0 desejo metafisico, as alucinagdes da protago- nista e, no final, a resolucao sacrificial que nao ¢ bem-sucedida, IHU On-Line - Quais sio as caracte- risticas fundamentais, as grandes li- nhas que norteiam os escritos desse pensador? Jo’o Cezar de Castro Rocha - René Girard afirma, de maneira bastante confiante, que sua teoria é uma ex- Plicagdo do comportamento humano e da cultura humana. Esse talvez seja © ponto inicial mais importante. Para © pensador francés, a teoria mimética é uma explicacdo do comportamento humano. Mais do que apenas uma hi- potese, portanto, a teoria mimética pretende fornecer uma explicacao completa do comportamento humano e mesmo do surgimento da cultura. Aproveito para esclarecer uma ques- tao decisiva; na verdade, proponho um acto de leitura para o leitor da “Bibtio- teca René Girard”: aceitar o poder ex- plicativo da teoria mimética como forma “Contudo, para realmente dialogar com 0 pensamento girardiano, é preciso confiar no poder explicativo da teoria mimética, a fim de compreender seus desdobramentos” inicial de abordar a obra de René Girard. (© que nao quer dizer que nao se possa discordar aqui e ali, ou mesmo buscar re- futar sua tese. Contudo, para realmente dialogar com 0 pensamento girardiano, é preciso confiar no poder explicativo da teoria mimética, a fim de compreender seus desdobramentos. Tal poder tem como base a inter- relacdo de trés intuices fundamen- tais. A teoria mimética desenvolveu-se a partir da publicagao de trés livros, que podemos chamar de “livros-even- to”, porque sua publicacao produziu um grande impacto na forma de com- Preender, respectivamente, -a critica Uiterdria, a antropologia e os estudos biblicos. Para evitar repeticoes, nas proximas respostas mencionarei essas intuigoes fundamentas. IHU On-Line - A publicacao de suas ‘obras em portugués cobre uma lacu- nha em nosso pais? Joao Cezar de Castro Rocha - Nao exatamente uma lacuna, pois obras- have de René Girard ja haviam sido traduzidas. Contudo, um projeto tao abrangente e completo ainda nao se havia feito - nem mesmo fora do Bra: sil, vale a pena ressaltar. Aqui, 0 mér tomaior pertence ao editor Edson Ma- noel de Oliveira Filho, peta coragem de lancar um projeto tao ambicioso. Afinal, cada livro conta com uma cronologia que nao se pretende exaus- tiva da vida e da obra de René Girard. Com 0 mesmo propésito, compilamos uma bibliografia sintética do pensador SAO LEOPOLDO, 28 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDICAO 382 francés, privilegiando os livros publi- cados. Por isso, no mencionamos a grande quantidade de ensaios e ca pitulos de livro que escreveu, assim como de entrevistas que concedeu, Para o leitor interessado numa rela- 540 completa de sua vasta producao, Tecomendamos 0 banco de dados or: ganizado pela Universidade de Inns- ruck: http://www.uibk.ac.at/rgkw/ mimdok/suche /index.html.en. De igual forma, selecionamos livros € ensaios dedicados, diréta ou indireta- ‘mente, a obra de René Girard, incluindo 05 titulos que sairao na Biblioteca René Girard. Nosso objetivo ¢ estimular 0 con- vivio reflexivo com a teoria mimética. Ao mesmo tempo, desejamos propor uma colegio cujo aparato critico estimule novas pesquisas. Em outras palavras, 0 projeto da Biblioteca René Girard é tam: bém um convite para que o leitor venha a escrever seus préprios livros acerca da teoria mimética, IHU On-Line - Qual € 0 maior desafio em organizar a colecao René Girard? Joao Cezar de Castro Rocha - Pro Por 0 didlogo ativo com a obra de um Pensador fundamental. Desse modo, ‘cumpre-se um dos propésitos mais im- Portantes da Biblioteca, qual seja, es timular 05 leitores a desenvolver suas proprias reflexdes. Em segundo lugar, como disse acima, destaque-se outro objetivo da Bibliote: a: nao somente divulgar o pensamen- to girardiano, tampouco apenas pensar mimeticamente a circunstancia latino- americana, como se uma teoria pudesse sef reduzida ao papel mondtono de uma caixa de ferramentas conceitual,, “tit” porque “aplicdvel” em contextos diver- 505. Trata-se, pelo contrario, de dar os primeiros pasos para o futuro desen volvimento de uma contribuicao latino- americana radical mente mimética a te oria de René Girard. Por fim, a abordagem critica é im portante porque permite que se en- frentem as ressalvas usuais acerca do pensamento girardiano, pois, sem dit vida, 0 percurso intelectual do autor francés desafia dois dogmas aparente mente incontestaveis das ciéncias hu- Manas hoje em dia Ideia de Deus 2 Taree SOAS Outro desafio diz respeito as con- vicgdes religiosas do pensador francés. Excessivamente religioso para o mun: do académico contemporaneo e, a0 mesmo tempo, excessivamente aca démico para o universo religioso tradt- cional, René Girard permanece isolado na radicalidade de sua reflexao acerca da cultura humana. Contudo, nao se trata de construir uma falsa imagem de isolamento astracismo, pois, ¢ forcoso reconhe- cé-lo, René Girard nunca deixou de re- lacionar sua reflexao a retigiao crista, mesmo a Igreja Catélica. Vale dizer, nao seria intelectualmente honesto subtrair a dimensao religiosa da teoria mimética - fazé-lo seria falsear a obra irardiana. O préprio pensador sempre ‘osoube nem por isso alterou 0 rumo de sua investigacao filoséfica. Contudo, a teoria mimética tam: bem possui um potencial analitico que nao se reduz a dimensao religiosa. Em suma, a “Biblioteca René Girard” pretende ampliar 0 universo de Leito: res da teoria mimética. Eis, entao, 0 paradoxo produtivo gérado pela Leitu ra de René Girard: estudé-lo a partir de uma posicao laica no necessaria _ mente afasta 0 leitor ateu do pensa- dor cristae, mas, pelo contrario, pode abrir uma via inesperada para escla- tecer a forca da teoria mimética no século XXI. Tudo se passa como se um flagrante da_inteligéncia-relampago de Oswald de Andrade finalmente ad- quirisse plena visibitidade: “€ preciso partir de um profundo atefsmo para se chegar a ideia de Deus.”> IHU On-Line - 0 que é 0 desejo mi- mético e qual é a atualidade dessa Proposicao? Jo&o Cezar de Castro Rocha - A in tuigao fundadora refere-se ao desejo mimético, ou, como René Girard pos- teriormente diria, a rivalidade mimé tica. Ha uma diferenca sutil entre os 4 Jose Oswald de Sousa Andrade (1890-1954) excrtor,ensaista e dramaturgo brasileiro, Fol tum. dos promotores da Semana de Arte Mo: derna de 1922 em Sao Paulo, tornando-se um dos grandes nomes do modernism (iersrio brasileiro. Fol considerado pela critica como © elemento mats rebelde do grupo. (Nota da IHU On-Line) 5 Oswald de Andrade. utopia antropofasica. ‘580 Paul: Globo, 2*ed., 1995, p. 50. «Nola do entrevistado) 30 “Nao importa a natureza do objeto: se desejamos 0 mesmo objeto, encontramo-nos numa zona sombria, na qual a violéncia pode sempre ser 0 passo seguinte” dois conceitos, mas, como veremos, 0 desejo mimético tende a gerar rivali- dades, Eis, entdo, a primeira intuicao: o desejo humano € fundamentalmente mimetico. Posso dizé-lo de maneira ainda mais clara: 0 desejo humano € fundamentalmente imitative. Vale dizer, eu nao desejo a partir de uma subjetividade autocentrada e autoté lica - uma subjetividade que impoe suas proprias regras -, mas, muito pelo contrério, desejo a partir-de um outro, que tomo como modelo para determi ar meu proprio objeto de desejo. A primeira intuigdéo de René Gi rard, portanto, € 0 cardter mimético do desejo humana. Como se trata de conceito-chave, vale a pena reiterar eu nao desejo independentemente do grupo social no qual me encontro. 0 meu desejo € derivado do desejo de outros, ou de outro que adoto como modelo. Essa intuicao, em principio, nao € absolutamente original, pois ja havia sido_mencionada por filésofos desde Platéo e Aristételes. De qual ‘quer modo, ndo chega a constituir um problema grave que a elaboracdo da teoria mimética pouco tenha a ver ‘com a busca da originalidade absolu- ta. Alids, adiante, destacarei o diélogo de Girard com diversos pensadores na formulacao de sua obra. Porém, desde © primeiro tivro de René Girard, Men- songe Romantique et Vérité Romanes- que,* publicado em 1961, a nocao de 6 René Girard. Mensonge Romantique et Vé- ‘té Romanesque. Pars: Grasset, 1961. Edicao brasileira: Mentira Romantica € Verdade Ro: desejo mimético possui consequéncias que, essas sim, sao originals. Eis a consequéncia-chave: 0 cardter mimético do desejo é a causa primordial da violencia humana, ou seja, em princi pio, a violéncia surge como uma deriva- G40 nfo calculada do carater mimético do desejo, René Girard propde que, se ‘eu adoto um modelo para a constituigao do meu proprio desejo, num primeiro momento esse fato “naturalmente” me aproxima do modelo, pois estabeleco ‘com ele uma relacao de discipulo e mes- tre. Porém, hum segundo momento, de igual modo “naturalmente, o mesmo fato tende a tornar 0 antigo modelo um futuro rival. Afinal, se desejo de acordo com 0 desejo de um modelo, isso quer dizer que necessariamente desejaremos ‘©.mesmo objeto - seja um objeto fisico, simples, do cotidiano; seja um objeto mats complexo, um sentimento; seja um objeto metafisico, 0 desejo de ser como (© meu modelo. Nao importa a natureza do objeto: se desejamos 0 mesmo obje- to, encontramo-nos numa zona sombria, na qual a violéncia pode sempre ser 0 passo seguinte. E aqui que se encontra 0 aspecto realmente original da contribui- ‘cao girardiana para a compreensao da mimesis. A’ mimesis, ou seja, 0 impulso imitativo, possui potencialmente um ca rater de aquisicao, A partir do momento ‘em que desejo 0 mesmo desejo de um modelo, em algum momento buscarei apropriar-me do seu objeto. Desse ca ratér aquisitivo, emerge a violéncia nas relagSes humanas. IHU On-Line - Em que sentido 0 mi- metismo e a violéncia humana fun- dam o sentimento religioso arcaico? (O mesmo vale para nossos dias? Jodo Cezar de Castro Rocha - A segun: da intuicéo do pensamento girardiano & derivada da compreensdo de que a vin ganca ou 0 ressentimento sao formas ropriamente humanas de formatizar a vvioléncia potencial do desejo mimético, Portanto, trata-se dar conta do carater coletivo do desejo mimético. Compreen: de-se, assim, a segunda intuicdo basica do pensamento girardiano: o mecanismo, do bode expiatorio. Ora, para efeito di- datico, defini 0 desejo mimético como sendo uma relacao do sujeito com seu ‘manesca, Trad. Lilia Ledon Ga Siva, Sto Paulo? Egitora £, 2011. (Nota do entrevistado) SAO LEOPOLDO, 28 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDIGAO 382 ocencds MCU ete iis Pea) modelo. Na verdade, esse tipo de re- lacéo sempre ocorre num grupo social, cela é sempre coletiva. Se, num primei- ro momento, a rivatidade afeta o sujel to e seu modelo, ou seja, se a relacao & sobretudo individual e, portanto, as consequéncias s8o necessariamente li- mitadas, num segundo momento, essas relacies comecam a se disseminar, por- que 0 desejo mimético é, em si mesmo, mimético. Entao, a violéncia nao pode senao disseminar-se, contagiando todo 0 grupo. A escalada da violencia do desejo mimético faz com que em algum mo- mento a sociedade esteja ameacada de desagregacao, em virtude da proli- feracao de rivalidades e conflitos. Ima- ginemos, agora, que tais rivalidades e Conflitos ainda nao possuem nenhuma forma de controle institucional. Ora, era essa a situacao dos primeiros gru- pos de hominideos, antes mesmo da emergéncia da cultura. Logo, 0 grupo social pode desintegrar-se pela multi- plicacao de conflitos localizados. Espiral de violéncia mimética Ahhipdtese do mecanismo do bode expiatério foi desenvolvida inicial- mente para propor uma compreensao inovadora do surgimento da cultura humana. Por isso, € importante rei terar a referéncia a grupos que ainda nao possuem uma forma institucional. de controle da violéncia, ou seja, gru- pos de hominideos que ainda néo pos- suem Estado, nao tém religiao forma- lizada, estao apenas dominados pelo desejo mimético, que escala e nao pode sendo tornar-se cada vez mais € mais violento. Ha um instante em ue 0 grupo social pode literalmente desagregar-se pelo aumento da violén- cia endogamica, ou seja, da violéncia puramente interna, porque ainda nao existe um mecanismo externo de con- trole da violéncia. Quando isso ocor- re, como uma resposta 4 escalada da violencia provocada pelo céntagio do desejo mimético, surge um mecants. mo, cuja descri¢ao constitui a segunda intuicSo basica apresentada no segun: do livro do pensador, La Violence et le Sacré,? publicado em 1972, 7 René Girard. La Violence et le Saeré. Paris: Grasset, 1972. Edicdo brasileira: A Voténcia e © Sagrado. Trad. Martha Gambini. 3° ed. S30 Paulo: Paz e Terra, 2008, (Nota do entrevis: Recapitulemos: a crise foi provoca- da pelo carater mimético do desejo e, a0 mesmo tempo, a crise foi resolvida pelo carter mimético do desejo. Ora, mas 0 carater mimético do desejo é © que caracteriza 0 propriamente hu- mano. Em_outras palavras, depois da resolucao da primeira crise, uma se- gunda crise necessariamente surgird, Porque 0 desejo continuara sendo mi- mético. Logo, outra crise de violéncia provocada pelo desejo mimético ne- cessariamente retornar. Portanto, hé ‘uma espiral de vioténcia mimética que nao se pode evitar facilmente. Dai, a importancia da. pergunta: qual a garantia de que, num segundo momento de crise absoluta 0 mesmo grupo encontrara aleatoriamente, pela segunda vez, um bode expiatério? Essa é a questdo-chave da teoria mi- mética. O mecanismo do bode expiatrio torna:se mais eficiente quando defxa de ser puramente arbitrario, ou seja, quan- do deixa de ser aleatério, no sentido em que se pode ou nao voltar a encontré-lo no momento de crise. © mecantsmo do bode expiatorio torna-se um mecanismo Propriamente civilizador -e isso no sen: tido forte do termo, ou seja, toma-se uum mecanismo que propicia o apareci- mento da cultura humana- no momento fem que deixa de ser fruto do acaso, ¢, pelo contrério, conhece um primeiro ni- vel de formalizacao. E preciso, portanto, formalizar 0 mecanismo de controle da violéncia para que a cultura humana tenha base sOlida, progressivamente formatiza- da em grupos de hominideos capazes de manter a inevitdvel violéncia mi mética sob controle. Assim, segundo René Girard, o umbral entre os grupos de hominideos e 0 surgimento do que chamamos cultura péde ser ultrapas- sado. A formalizacio do mecanismo do bode expiatério implica a centralidade do fenémeno religioso na constituicao da cultura. A terceira intuicao basica da teoria mimética procura precisa- mente refletir sobre a centralidade do religioso, compreendido a partir de lum ponto de vista antropolégico. Nas prdximas respostas, tratarei da tercei- ra intuicao fundamental. ‘ado) SAO LEOPOLDO, 28 DE NOVEMBRO DE 2011 | EDICAO 382 IHU On-Line - Constitutiva do ser humano, como a violéncia pode ser controlada? A partir dessa. concep- 40, como se da 0 didlogo da obra de Girard com os tempos em que vive- mos? Joso Cezar de Castro Rocha - Trate mos do ultimo grande livro. de René Girard, a fim de responder & pergun- ta: Rematar Clausewitz. Ora, rematar Clausewitz obriga Girard a remator sua propria obra, concentrando-se nas vicissitudes do mundo contempora- neo. Tal contribuicao ja seria suficien- te para aquilatar a importancia deste livro. Anovidade de Rematar Clausewitz do se refere apenas a atenco consa- grada a0 mundo moderno e contem: ordineo, {sto é, a0 universo da “me: diagao interna”, portanto, de uma ircunstdncia histérica dominada por Confitos. Em seu primeiro livro, Men: tira Romantica e Verdade Romanesca (1961), Girard ja havia trabathado com esse periodo, estudando 0 romance europeu do século XVIII ao século XX Compreende-se, entao, de modo ain- da mais claro como Rematar Clausewitz pode ser ido como 0 remate da pro- pri teoria mimética, pois, neste livro, Girard, com a contribuicdo de Benoit Chantre, ata as pontas de sua vasta e ‘complexa obra. E bem ao contrario de ‘célebre personagem de Machado de As: sist, Girard realiza a tarefa com inegavel &xito. Ao mesmo tempo, uma diferenca decisiva se insinua entre 0s dois livros - e destacar essa diferenca esclarece a for- “B Joaquim Maria Machado de Assis (1839 1908): escrtor brasileiro, considerado pai do ‘ealismo no Brasil, escreveu obras importantes ome Memérias péstumas de Brés Cobos (Rio Ge Janeito: Ediouro, 1995), Dom Cosmurro (Erechim: Edelbra, 1997), Quincas Bort (15 ed. Sho Paulo: Atice, 1998) e varios livros dé Contos, entre eles obra-prima 0 Aliensto (32, ed. S20 Paulo: Atca, 1999), que dicate 2 loucura. Tambem escreveu poesia e fo! un Aatvo critic literari, além de ser um dos cra ores da erénica no’ pais. Fol o fondador da Academia Brasileira de Letras. Confira a entre: Vista especial realizada pela IMU On-Line com Milde Tripoli, em 20-04-2007, no tink hiADi/ misce,me/aRin,Intitulada Onegro a obra de ‘Machado de Assis. Sobre o esritor, foram pro ‘uridas dus edicdes especial: edica0 252, de 16-06-2008, sob 0 titulo de Machado de Asis: lum conhecedor da aima humana, elsponivet fem http://miare,me/aR47, ¢ edigdo numero 275, inktulada Machado de Assis ¢ Gulmardes Rosa: interprétes do Brasil, de 29-09-2008, cdisponivel em ttp://migre.me/GR4B. (Nota dda IHU On-Line) 34 Ole Peewee ean SS ‘ca do pensar girardiano. Em Mentira Romédntica e Verdade Romanesca a resposta a violéncia engen- drada pelos desdobramentos do desejo mimético consistia num gesto de cara- ter pessoal: a converséo romanesca. Em vocabulério mimético, © conflito inter- dividual era resolvido no mesmo plan implicando uma transformacao pessoa “E uma vitoria sobre 0 desejo metafis co que faz de um escritor romantico um, verdadeiro romancista”. J em Rematar Clausewitz tudo se toma muito mais complexo. Nao se dis- poe mais de uma resposta interdividual questéo da violéncia, pois, agora, 0 problema possui dimensao planetaria - 0 ontagio mimético, por assim dizer, dis- seminou-se para além do controle possi- vel de uma decisdo pessoal. Nas circunstincias contemporéneas, a “conversao” como método geral nao parece possivel porque converter-se sig nifica aceitar os limites da “mediacao externa”, renunciando ao propésito de apoderar-se do objeto de desejo do mo- delo. Ora, num mundo dominado pela “mediacao interna’, tal opgao se encon- tra cada dia mais distante. Talvez por isso Girard tenha de- senvolvido 0 que se pode denominar uma “imaginacao apocaliptica”. Tal é © sentido forte da afirmacao de outro modo surpreendente: “Essa escalada para 0 apocalipse ¢ a realizacao supe- rior da humanidade”. Radicalidade do pensamento Entenda-se a perspectiva corajosa do pensador: apocalipse, aqui, remete 8 etimologia: do latim tardio apocalyp- sis, é derivado do grego apokalipsis e descreve 0 “ato de descobrir, desco- berta; revelacdo”. No caso, a ascen- sao da violéncia em escala planetaria rrevela inequivocamente a eneruzitha- da a que a humanidade chegou. Tra- ta-se de promover a propria extincao ou aprender a lidar com 0 conflito que Constitui a fabrica do humano - mime- ticamente concebido. 0 apocalipse, entdo, pode significar tanto 0 descon- trote completo da violéncia, quanto a esperanca de uma via realmente nova de convivéncia, com base no reconhe- cimento reciproco do mimetismo que a todos contagia. Na radicalidade ti- 32 “Aascensao da violéncia em escala planetaria revela inequivocamente a encruzilhada a que a humanidade chegou. Trata-se de promover a propria extin¢do ou aprender a lidar com o conflito que constitui a fabrica do humano - mimeticamente concebido” pica de seu pensamento, Girard assim situou 0 problema: : ‘Nao podemos fugir a0 mimetismo se- no pela compreensao de suas leis. E 56 © entendimento dos riscos da imitacao ue nos permite cogitar uma verdadeira ‘identificacao com o outro. Mas tomamos consciéncia desse primado da relacao moral no momento mesmo em que se conclu a atomizacdo dos individuos, em que a intensidade e a imprevisibitidade da violéncia ja aumentaram. Vale dizer, no remate de sua obra, Girard nao procurou oferecer uma res- posta cémoda; pelo contrério, lancou os

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