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Alysson Leandro Mascaro* Silvio Luiz de Almeida** APONTAMENTOS PARA UMA CRITICA MARXISTA DO DIREITO AS FORMAS DO CAPITALISMO ATRAVESSAM AS DINAMICAS sociais de modo continuo e contraditério. No encontro entre a forma da mereadoria com as formagées sociais insignes e variadas vai-se dando, historicamente, o solo no qual se estabelece a reproducao capitalista. Em sua histéria, a reprodugao capitalista se inicia em territério curopeu, transplantando-se também para outras regides ~os Estados Unidos da América centralizam a vetorizagio do capital global hoje mas, virtualmente, todos os espacos mundiais estdo jé atravessados pelo capital. Tal processo, no entanto, nao é totalmente uniforme nem tampouco desprovido de resisténcias, contramarchas, influxos ¢ aco- modagdes a peculiaridades locais. Por isso, no longo caminho de sua penetragao nas dinamicas sociais mundiais, ha centros, periferias, co- lonialismos, imperialismos, dependéncias, guerras, libertagoes, escra- * Doutor e Livre-Docente pelo departamento de Filosofia e Teoris Geral do Diseito da Faculdade de Direito da Universidade de Sio Paulo (USP), Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Sao Paulo (Largo Sao Francisco-USP) eda Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Bra **Doutor pelo departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Di- reito da Universidade de Sto Paulo (USP). Profesor da Faculdade ée Dircito da Uni- versidade Presbiteriana Mackenzie eds Universidade Sto Judas Tadeu, Brasil 99 APONTAMENTOS PARA UMA [MARXISTA DO DIREITO vid6es, nacionalismos, racismas ¢ opressées as mais variadas, tudo isso permeado por modos de acumulacao e regimes de regulagao distintos historicamente no seio do préprio capitalismo.* A forma jurfdica ¢ a forma politica estatal sio derivadas ime- diatas da forma-mereadoria, mas se arraigam a partir das condigdes histéricas das sociedades em que se erigem. Por isso, a subjetivagao juridica, necesséria a vinculagao dos trabalhadores ao capital sob modo assalariado, nao se faz num processo de derivagao légica. Numa base contraditéria, convivem em muitos espagos sujeitos juridicamente li- vres ¢ formalmente iguais ao lado de outros em condigao de escravidao ou servidao. Posteriormente, parcelas de direitos subjetivos sao negadas a grupos sociais especificos ~estrangeiros, outros povos dentro do mes- mo Estado, minorias etc. O mesmo se dé com a forma politica estatal. Anecessaria existéncia de um aparato politico terceiro aos agentes do capital nao se estabelece, necessariamente, de acordo com modelos de particao de poderes ou democracia. O campo politico estatal reflete, diretamente, as miltiplas condicdes das formagoes sociais insignes. (© capitalismo se erige a partir das determinagées da forma- mereadoria, Esta, por sua vez, surge historicamente ¢ é lastreada no trabalho assalariado, quando o trabalho se junge ao capital mediante ‘uma subsuneao real (Naves, 2013: 79-89). Tal determinagao reorganiza as relagées sociais, constituindo formas especificas aos sujeitos e suas interagdes, num proceso de coesao que nao é légico nem isento de contradigdes internas. Hé um encontro de formas e relagées sociais capitalistas com realidades hist6ricas, sociais, econdmicas, politicas ¢ culturais maltiplas, que nao atendem, necessariamente, a um modelo de linearidade ideal, nem tampouco sendo iguais em todas as regides do mundo, Na sociabilidade capitalista, o campo juridico, determinado pela forma de subjetividade juridica, é ainda constantemente atravessado pela forma politica estatal, Daf resultam derivagdes como a legalidade. Estado e direito se engendram reciprocamente para uma elaboracao de seus termos a partir de referéncias normatizadas. O espago da con- Muéncia entre o politico ¢ 0 jurfdico é, entao, lastreado em forga e nor- ma. Tal processo é variével, nunca se apresentando num mesmo nfvel de conere¢ao social ou de operacionalidade nem tampouco se destacando totalmente do solo da sociabilidade insigne na qual se arraiga. Con- forme desenvolvido em Estado e forma politica, hé uma conformarao entre forma juridica e forma politica estatal, numa interagdo entre suas determinasées que é dinamica, peculiar e perpassada por graus de fun- cionalidade variados (Mascaro, 2013: 39-44), 1 Ef Masearo, 2013 Alysson Leandro Mascaro y Silvio Luiz de Almeida Com isso, 0 capitalismo nao é um bloco universal de mesmas 10 6, tampouco, um modelo central de inteligéncia de mundb e de controle das sociedades, Nem, ainda, um padrao de acumu- ages, regulacées, exploracées ¢ opressGes no mesmo diapasio. Daf, quando se tomam modelos centrais de capitalismo (ditos “ideais', “civi lizados” ou “de sucesso"), ¢, por conta deles, parecem entao se destacar em outras regides, eventualmente, tarefas modernizadoras -sociedades que nio alcancaram graus de direitos humanos, protegao de minorias, libertagao de povos, democracia ete.-, tal horizonte € somente uma, mirada interna na variabilidade da vida capitalista, em sociedades concorrenciais interna ¢ externamente, entrelacadas todas, inclusive, numa necessaria relago entre centro ¢ periferia, sucesso ¢ fracasso, civilizagao e barbérie, legalidade ¢ ilegalidade. As lutas dai advindas sio processadas sab as formas sociais do capital, Mas, embora sua multiplicidade, o eapitalismo é determinado pela mercadoria, Assim, do central ao perilérico, do minimo ao maxi- mo de legalidade, do respeito ao desrespeito pelos direitos humanos, todas as sociedades capitalistas sio atravessadas pela exploragao, pelas contradig6es sociais € por variados graus de sofrimento, repressao ¢ sofrimento. As determinagdes do capital sao as forgas centrais no es- tabelecimento das formagdes sociais contemporaneas, bem como af se localizam, entio, os nés para a superagao dessa mesma sociabilidade. Se cada regiéo do mundo, como a América Latina, consegue, mirando 0 capitalismo central, enxergar auséncias ¢ contrastes, con- quistas a serem trabalhadas, resisténcias ¢ insurgéneias de povos, gru- os, nacbes ¢ regides, tudo isso é ainda pouco au incidental em face das determinagées gerais que, do centro a periferia, sio a verdade da vida social mundial presente, sua forma constiluinte e sua crise perene ¢ incontornavel. Por isso, para além das eventuais lutas insignes, ha a luta pela superagao do capitalismo. Nesse momento, é 0 marxismo que olerece as bases tedricas para a compreensao de sua légica, sua repro- dugao e suas contradigées, levantando entao, pela ciéncia, 0 ensejo da revolugdo (Naves, 2008:12). FORMA JURIDICA Uma apreensio critica do fendmeno juridico nos marcos do pensa- mento marxista atrela-se a uma necesséria ¢ profunda investigagao da sociabilidade capitalista. O capitalismo constitui-se enquanto um, complexo de relagdes sociais mediadas pela mercadoria, orientadas acumulagao, cujas condigées de reprodugao assentam-se na divisio social do trabalho, no salariado, na subjetividade juridica e na proprie- dade privada dos meios de produsao. A relagio social basica do capi- talismo, portanto, ganha forma na troca mereantil entre sujeitos livres. APONTAMENTOS PARA UMA [MARXISTA DO DIREITO ¢ iguais (Marx, 2014: 159; no mesmo sentido ver também Pachukanis, 1989; Edelman, 1976; Naves, 2013; Kashiura, 2013). “O homem torna-se sujeito de direito com a mesma necessidade que transforma o produto natural em uma mercadoria dotada das propriedades enigméticas do valor’, ensina Pachukanis (1989: 35). (© enigma do diteito repousa na subjetividade jurfdica, que pode ser definida como o atributo individual e universal da liberdade ¢ igual- dade, que se manifesta enquanto autonomia da vontade. A partir des: sa definigao é possivel conceber o direito como uma forma social que, como todas as demais, é determinada pela sociabilidade basica da troca mercantil capitalista, Nesse sentido, o direito concretiza-se como relagao social especifica entre individuos que se reconhecem como sujeitos de direito, o que torna a andlise da forma sujeito uma decorréncia da forma mereantil (Marx, 2014: 242; Pachukanis, 1989: 81-84). Isso no significa dizer que a subjetividade jurfdica esté presente em toda e qualquer troca mercantil, pois isso seria cultivar uma visio idealista, a-hist6rica e “eter- na’ do direito, algo tao ao gosto dos juristas tradicionais. A circulagao de mercadorias no capitalismo ¢ diferente da circulagao simples, verificada em outros periodos da histéria. A circulagao capitalista nutre-se da l6gi- ca da producao capitalista, baseada na predominancia do trabalho livre ena extragao da mais valia (Marx, 2014: 223.231), Nas sociedades pré-contempordneas a organizagio da vida so- cial e econdmica independia da subjetividade juridica. A afirmagao da Iiberdade e da igualdade universais era algo incompativel com o escra- vagismo 0 feudalismo. Disso decorre que a autonomia da vontade s6 se torna uma questo fundamental, passivel de protecao pelas normas estatais, quando o capitalismo aleanga sua plenitude, ou seja, quando a reprodugao das condigdes da vida volta-se predominantemente para a troca mercantil. E nesse sentido que Pachukanis afirma que ’sé a sociedade burguesa capitalista criou todas as condiges necessdrias para que o momento juridico seja plenamente determinado nas relagdes sociais” (Pachukanis, 1989: 23). Com eleito, a realizagao e a reproducao de um cireuito generalizado de trocas mercantis dependem de sujeitos que se relacionem como portadores dos atributos formais da liberdade eda igualdade’. 2 “Toda relacé juridica€ uma relagto entre sujeitos.O sueito é 0 étomo da teoria ju dica, seu elemento mais simples, indecompontvel Por isto comeparemos nossa andlise pelo sweito” Paehukanis, 1989: 81). 3 Mézcio Bilharinho Neves considera “impossivel”o diteito romano pelo simples fato de que "a subjtividade no mundo antigo esta presas determinagies qualitativas”, que fliferem “de um homem a outro”, erlando diferentes condigdes de expressia da vontade, {que em nada se sssemelham Ss exigencia unsversais de iberdade «igualdade (Naves 2015: 7, Alysson Leandro Mascaro y Silvio Luiz de Almeida A forma juridica, enquanto forma determinada pelas condigdes sociais do capitalismo, tem no circuito das trocas mercantis a sua ex pressio maior, Assim como o dinheiro promove a equivaléncia entre as mercadorias tomadas fundamentalmente em seu valor de troca, 0 direito, por sua vez, promove a equivaléncia necesséria entre as diferentes formas da atividade humana, tornando plena a vealizagao da forma va- lor no trabalho abstrato*. A condigao de sujeitos de direito - portanto, li- vres, iguais e potencialmente proprietarios ~ permite que todo trabalho socialmente necessirio possa ser reduzido a trabalho abstrato. "Apenas com 0 completo desenvolvimento das relagdes burguesas € que o direito assumiu um caréter abstrato, Cada homem torna-se um homem em, geral, cada trabalho torna-se trabalho em geram, cada individuo torna- ‘se um sujeito de direito abstrato. Ao mesmo tempo a norma assume, igualmente, a forma légica acabada da lei geral abstrata’ (Pachukanis, 1989: 94), Por se materializar na forma especifica da circulagao capitalis- ta, 0 direito nao se define como mera fantasia ideolégica (Edelman, 1976: 25-29). Por ébvio, a ideologia juridica é fundamental para que as condigdes subjetivas dos individuos “naturalizem’ a condigio de sujeitos de direito, transformando-as “no verdadeiro Eden dos direitos inatos do homem”’, Sob a ideologia juridica, liberdade e igualdade tornam-se imperativos ético-universais que devem ser preservados qualquer custo, em nome da “dignidade humana”. Pudesse ser a his: t6ria apagada ou tratada como simples contexto -como o fazem os juristas liberais e/ou juspositivistas- 0 trabalho compulsério, a mi- séria ¢ todas as formas de exploracao e opressio seriam anomalias da sociedade capitalista ou resquicios do passado, e nao 0 s20. Muito pelo contrério: sao contradig6es sem as quais 0 capitalismo seria irre- conhecivel. Mas tampouco so liberdade ¢ igualdade fantasmagorias 4 "A categoria do trabalho ests, portanto, vineulada a um determinado modo de pro acho, precisamenteo eaptalsta, que é dnieo modo de producso no qual o abalho ‘abstratamente humano’€ a nica fonte de valor (.) dipendido na produgso, eso significa dizer que a mercadoria em sentido proprio, sé pode adguirir plena existéncia fem uma formasao social capitalist, pois somente nela o trabalho se reveste desta forms, € somente nea que a condigéo absolutamente essencial para generalizagéo a forma de mercadoria se verifies: a ansformacso da propria forga de trabalho em mereadoris” (Naves, 2013: 41; Pachukanis, 1989: 9). “Aesfera da circulagio ou ds troca de mercadoris, em cujs limites se move compra cea venda da forga de trabalho €, de fato, um verdadeito Ren de dieitos natos do homer [J (Marx, 2014 250). {6 "As doutrinas morais tém a pretensio de mudar o mundo e melhorélo, mas, em te lidade, no passam de um reflexo deformado de um aspecto deste mundo verdadelro precisamente o arpecto que mostra as relagdes humanas submetidas lei do valor.” {Pachokanis, 1988" 134), APONTAMENTOS PARA UMA C? {CA MARXISTA DO DIRETO irreais, apenas ilusoes. A subjetividade jurfdica manifesta-se Gnica ¢ to somente nas praticas reais, na materialidade das relagdes de seus portadores, os sujeitos de direito, Em suma, liberdade e igualdade ape- nas ganham forma nas relagées mercantis capitalistas devido ao fato de que é nessas relagdes que a subjetividade juridica torna-se conditio sine qua non da reprodugao social. Desse modo, a subjetividade jurfdica é uma derivagao das con- digdes estruturais do capitalismo, o que em outras palavras significa dizer que as relagées intersubjetivas entre proprietérios ndo geram as relagées sociais capitalistas, mas so por elas geradas, A afirmacao de que seria o capitalismo uma ‘relagao entre proprietarios” redundaria numa concepeao juridica do capitalismo, em que as formas de subje- tividade antecederiam as formas de sociabilidade, impedindo a cons- trugao de uma critica A concepeao capitalista do direito". Seria forcoso coneluir que a superagio do capitalismo e suas mazelas dependeriam apenas do fim da propriedade privada, sem que as demais condigdes estruturantes do capitalismo ~a divisao social do trabalho e a prépria subjetividade juridica~ fossem debeladas. Mantidas e reproduzidas es- tas condigées, estaria garantida a sociabilidade capitalista, cuja base material desvela-se na circulagao e na produgao mercantil Se a forma juridica (relagao entre sujeitos de direito) é resultan- te da forma-mercadoria, esto afastadas as concepgdes juspositivistas do direito, que reduzem o direito, ainda que como objeto cientifico, norma. Nem as relagées sociais ou a subjetividade juridica sao criagdes normativas. Sob 0 prisma da histéria, 0 capitalismo constitui-se por uma série de préticas, muitas das vezes de extrema brutalidade e vio- lencia®, que nao tiveram base em normas pré-constitufdas. As normas surgiram atravessadas ou posteriormente, para estabilizar, normalizar 7 "La Mas imports tembém,retomando numerosas indicagaes de Marx, distingui as relagoes de produsso em simesmas, que sho as nicas tratadas aqui, de sua expressio Jurldies’, que nso pertence & estrutura da produsso, considerada em sus sutonomia relatva. Trata-se de fato de distinguir claramente a relapSo que designamos como ‘propriedade’ do direlto de propriedade, Essa anilise tem importinea fundamental pars earseterizar 0 gratt de sstonoméa relativa da estratura cconémics em relagso A estrutura, igualmente regional’ das ‘formas juridicas e politicas. e portanto para empreender a anilise da articulasao das estruturas regionais, ou instineias, no seio da formagao social” (Althusser etal, 1980: 184) Marx conchui que a existéncia das condigées materiais para a acumulasdo capitalista fj precedida de uma acumalaso primitiva, em que a forma jurdica nao desempenho ve popel elevante: ‘a histéria ral, como se sabe, o papel principal é desempenhedo pela conguista, a subjugarso, o assassinio para roubst, em sume, a vioéncla. Ji na conomia polities, tio brands, Imperou sempre o idle, Direlto ¢ ‘trabalho’ foram, Sead> tempos imemoriais, os Gnicos meios de enriquectmente exceluando-se emnpre claro, “este ano! (Marx, 2014 786), Alysson Leandro Mascaro y Silvio Luiz de Almeida ¢ tornar obrigatérias as condigdes ja estabelecidas da troca mercantil, ou, nas palavras de Pachukanis (1989: 57), “a norma, como tal, isto 6,0 seu contetido l6gico, ou é deduzida diretamente de relagdes pre- existentes, ou entdo, representa, quando promulgada como lei estatal, um sintoma que nos permite prever, com uma certa verossimilhanca, 0 futuro nascimento de relagées correspondentes” (Pachukanis, 1989: 51). A propriedade privada, a subjetividade juridica e a divisio social do trabalho hoje tornaramse objeto de normas de observancia obriga- 1t6ria, mas que jé existiam como priticas sociais antes do aparecimento, destas regras" A forma juridica nao é “norma” e tampouco encontra sua inteligi: ilidade na luta de classes. A luta de classes, tal como o préprio direito, deriva das contradigées da sociabilidade capitalista, sendo, portanto, improvavel falar-se de um “direito de classe’, “direito socialista” ou “direito dos oprimidos”. A forma juridica é inexoravelmente capitalista ¢ sua existéncia pressupde uma sociedade que, em suas miltiplas va- riagdes com conjunturais, permanecerd estruturalmente conflituosa, dividida em classes, grupos e individuos. Enfim, a subjetividade jurfdica antecede o surgimento de um direito subjetivo, 0 que torna sintomético que, antes mesmo da posi: tivagao estatal, as obras dos mais importantes fildsofos modernos jé reconheciam a existéncia da subjetividade como um “direito natural” direito subjetivo é 0 ponto nodal em que a subjetividade juridica, mol- dada nas priticas sociais estruturadas pelo capitalismo, conforma-se norma estatal, ou em outros termos, em que a forma juridica encontra, a forma politica (Mascaro, 2015a). FORMA POLITICA ESTATAL Outro problema fundamental que emerge da reflexto marxista sobre 0 direito e a politica é 0 do Estado. Leituras tradicionais sobre o Estado -mesmo no campo marxis- ta-, encaram-no como um “instrumento” de poder das classes domi- nantes ou “comité gestor do capital”, tomando Estado e direito como instituigdes neutras de poder que, nas maos dos trabalhadores, pode- riam conduzir a transformag6es sociais necessarias & superagao do capitalismo e a constituigao de um "Estado socialista”™, ‘9 "Acrdem juridica se dstingue, precisamente, de qualquer outta espéeie de order s0- cial no que concerne aos suites privados isolados. A norma juridiea deve sua expect feidade que a distingue da massa de oulras regras moras, exiles, ubitsrisy, ete precisamente ao fato de que ela pressupde sma pesson munida de direitos, farendo valer através dees, ativamente, suas pretenses” (Pachukanis, 1989: 72) 10 Para.ums ampla diseussSo do Estado no pensamento marxista ver Caldas, 2015 APONTAMENTOS PARA UMA C? {CA MARXISTA DO DIRETO As teorias marxistas tradicionais, ainda que superiores &s teorias idealistas e liberais do Estado por acentuarem o movimento histéri co da luta de classes, mostram-se insuficientes para explicar o Estado como uma forma social. Nessa perspectiva, resultam questdes centrais: dadas as condigGes estruturais do capitalismo, qual a forma assumida pela politica? Por que no capitalismo o poder politico exterioriza-se na forma de um ente impessoal e separado da sociedade? Por que 0 poder politico torna-se necessariamente poder estatal? Apenas a resposta a estas questdes dard ensejo a uma abordagem verdadeiramente cientifi- ca do Estado, que vé além do campo da funcionalidade ou do dever ser, instaurando, com tal perspectiva critica, uma anélise do Estado como relagdo social conereta (Hirsch, 2010: 20). ‘Uma teoria materialista do Estado considera 0 modo de pro- dugao capitalista como a manifestarao da vida pratica dos individuos sob determinadas coergdes estruturais. O modo com que os individuos organizam a reprodugao de suas condigées de existéncia gerard ¢ pro- jetard relagdes sociais e politicas especificas e, com isso, diferentes formas de consciéncia. Uma vez que a sociedade capitalista se constitui como relagao social especffica, como modo historicamente peculiar de organizacao da vida, também, correspondentemente, ser4 especilica ¢ peculiar a sua forma de dominagao politica, mediada pela forma estatal** A sociedade capitalista é estruturalmente atravessada por mil: tiplos conflitos ¢ antagonismos, resultantes de uma sociabilidade cuja troca mercantil é a base de todas as relagdes sociais. Tais conflitos € antagonismos nao podem ser dissolvidos, vez que so 0 indice de que as condigées de reproducao material do capitalismo (propriedade pri- vada dos meios de produgio, subjetividade juridica e divisao social do trabalho ainda persistem). Portanto, é apenas sob tais “condicdes mate- riais, fundadas nas estruturas da produgso social” que o Estado surge como forma especifica de dominacao politica e como “materialidade institucional” das formas sociais do capitalismo (Hirsch, 2010: 20-53)". 11°Sob o termo Estado, compreende-e 0 Estado modern, mplantado como apatelho natralizado de foryn com o deseavolvimeate do capitalisias eda socindade burguess ra citar Max Weber. 'reinvidicando com éxito [.] 0 monopslio da forza fisiea legitimads’ sabre um territrio delimitade sobre os individos qu li vivern’ (Hirec, 2010: 22), 12 Sobre o Estado eo direito no capitalism, diz Pachukanis (1989; 118): Na medida em ‘que a sociedade representa um mercado, a maquina do Estado se realiza efetivamente como a vontade geal eimpessoal, como autoridade de dieito, ete. No mereedo, como JSvimos, cada comprador e cada vendedor 6 sueto de dirsto por exceléncia. Onde as categorias valor e valor de roca entram em cena, a vontade sutonoma dos troeadores uma condieSo indispensével. 0 valor de troca deina de ser valor de toes, 3 meres dora deixa de ser mereadoria quando as proporydes de troca sio éeterminadas por Alysson Leandro Mascaro y Silvio Luiz de Almeida A separagao necesséria entre os meios de produgao e os produto- res diretos, a divisio de classe e os conflitos de classe estao entrelaga dos no capitalismo, No seio da inescapével interpelagao dos individuos como sujeitos de direito no processo de circulagio mercantil estio as relagées intersubjetivas ¢ também os conflitos individuais.E, da exigén cia estrutural de uma permanente dinamica concorrencial entre tra- balhadores, entre fragdes do capital e entre os préprios Estados (Saad Filho, 2011: 69; Hirsch, 2010: 30), surgem as assimetrias internacionais, xa produgao capitalista, as diferentes formas de exploragao do trabalho (que podem envolver 0 até mesmo uso lateral de formas compulsorias de trabalho) eas classificagées estatais de determinados grupos sociais deflagradores das mais variadas formas de xenofobia, racismo, machis- ‘mo e controle da sexualidade”. Dizer que ha uma coergo estrutural sobre todas as relagées so: ciais nao significa que determinadas agées nao possam entrar em con- flito com as formas sociais existentes. A complexidade da organizagao do Estado ¢ derivada destas contradicées, ou melhor, da totalidade contraditéria que ¢ o capital. Por isso mesmo, ndo se pode dizer que 0 Estado € 0 Estado da classe dominante, pois os aparelhos de Esta- do devem, em alguma medida, contemplar as classes dominadas, e é essa permeabilidade que permite ao Estado lidar com as contradigoes © antagonismos que compéem a dinamica capitalista, O funcionamen- to dos aparelhos de Estado e o eficiente manejo das crises dependem da capacidade dos Estados de institucionalizar os conflitos, criando mecanismos de regulagao que funcionam mediante a intervengao ¢ 0 uso efetivo da forea, que pode ou nao submeter-se a legalidade, ou ain- da, através da formagao de consensos ideolégicos capazes de justificar reorientagées na agao politica ena organizagao da produgao. Por isso, a regulagao estatal nao é, necessariamente, a imposigao de normas ‘mas a imposi¢ao de ordem, uma ordem que garanta a reprodugao das condigées das préticas capitalistas, Fatores geralmente relacionados com a “natureza” do liberalismo como democracia, cidadania, repu- Dlicanismo ¢, em muitos casos, até a legalidade, padem ser deixados de lado quando determinados ajustes na produgao capitalista e, conse- “uma autoridadesituada fora das lei imanentes do mercado, A coasto, Tungto baseada na voléncia e enderegad por um individuo, conteadiz as premissas fundamentais das elagbes entre propritérios de mereadorias.E por isso que, em una socledade de propristarios de mercadorias ¢ no interior do ato de toca, a fungao da ‘coagio nso pode sparecer como fungSe social, dado que ca nSo éimpestoale astra r 18€E Almeida, 2015. Tamlbém sobre a rlacSo entre capitalism ¢ formas de diserims ‘nagio ver também Balibaret al, 2010; Mascaro, 2013 63:68 APONTAMENTOS PARA UMA [MARXISTA DO DIREITO quentemente, na ordem social, forem necessérios. Basta lembrar que nos paises da América Latina, a construgao dos regimes de “liberdade econdmica” foi feita sob violentas ditaduras civis-militares apoiadas pelas democracias do ocidente desenvolvido. Sob a dtica marxista, a discussio sobre as qualidades do Welfare State e do Estado neoliberal ganha um novo status. Seja de “bem-estar social’, seja “minimo’, seja “democrético” ou “totalitério’, o Estado per- manece sendo a forma politica derivada légica ¢ historicamente das relagées de produgao capitalista, Sao apenas diferentes modos de inter- vencao estatal, caracterizadas pela instituigao de meios de dominagao politica eficazes para lidar com as crises inerentes a sociabilidade ca. pitalista, O racismo nos EUA e as ditaduras civis-militares nos paises da América do Sul, Africa ¢ Asia durante a “era de ouro” do capitalismo demonstram os limites de qualquer transformagao social sob a égide das formas juridicas e politicas do capital. Embora miltiplos no que tange aos estoques de direitos, deveres, bonus, dnus, normas e arranjos de suas instituigdes e da condensacao da legalidade, direito e Estado operam sob formas sociais necessarias, derivadas da forma-mercadoria. Do bem-estar social ao fascismo, do mundo soviético ao neoliberalismo, do Estado europeu ao latino-ameri- cano, o Estado é capitalista, Da mesma maneia, a variabilidade imensa na quantidade de direitos nao abala a qualidade necesséria ¢ especifi- camente capitalista da forma social do direito (Mascaro, 201Sb: 2-10). DIREITO, IDEOLOGIAE LUTA ‘Na materialidade da sociabilidade, as formas sociais se arraigam tam. bbém acompanhadas de ideologias. A sociabilidade capitalist aideolo- gi juridica ¢ estrutural, Os sujeitos se entendem como portadores de direitos, transacionando ¢ assumindo deveres e obrigagdes mediante vontade livre ¢ auténoma. Nesse horizonte, a ideologia do diveito tem tom papel constituinte na subjetividade. As praticas dos sujitos de fato se lastreiam num campo necessario de juridicidade: exploracao do tra- balho sob forma assalariada, protegao, por um ente politico terceiro, do capital e dos bens, berdades e represses moduladas pelo direito A ideologia juridica nao ¢ apenas uma lateralidade da ideologia capita- 14°0 Bstado como fator de forga na polite interior « exterior esta &a corregso que 8 bburguesia deve fazer a sua teoria © sua prética do estado juridico! Quanto mais @ dominacio da burguesia for ameasada, mais estas corresdes se tornam compromete doras mais rapidamente o Estado juridie’ se transforma em uma sombra material St que a agravagio extracrdindria da lata de classes force a burguesia a rasgar inte ramente a mascara do Estado de direta ea revelar sesséneia do poder de Estado como violencia onganizad de uma classe soeisl contra as otras” (Pachukanis, 1989-126. Ver também Mascaro, 2008), Alysson Leandro Mascaro y Silvio Luiz de Almeida lista; antes, é um de seus aspectos centrais (Mascaro, 2015a; Edelman, 1976; Thévenin, 2010). Mas, ao lado da ideologia juridica como constituinte geral e estruturante da subjetividade, hé um vasto campo de manifestagdes da ideologia em injungées situacionais. Entender-se como portador de direitos nao €, necessariamente, sentir-se confortavel ou satisfeito com 0 quantum que, pelo direito, € assegurado ao sujeito. Saber-se ci dadao com direitos que instituem a capacidade de votar e ser votado ndo é suficiente para o gozo da politica. Ha uma inexoravel disputa, na sociabilidade capitalista, quanto aos estoques de direitos, deveres & responsabilidades. Sociedades exploratorias e opressoras, concorren- ciais, sio lastreadas em conflitos e antagonismos que fazem com que a distribuicao dos direitos nao seja pacifica nem estavel, Por isso, a ideo- Jogia juridica, que estrutura as subjetividades no capitalismo, é sempre ‘acompanhada de uma luta social que também é luta juridica, na dispu- ta distributiva dentro dos termos gerais de constituigao ¢ compreensio dessa sociabilidade A Ideologia Juridica, no singular, constituinte das subjetividades, cest4 no nfvel estrutural do inconsciente. As lutas juridicas daf decorren- tes, disputando o espaco da distribuigao de riquezas, bens, bonus, énus, protegGes e reconhecimentos, é 0 campo das ideologias jurtdicas, isto no plural. Nesse campo, 0 direito emerge para o consciente, perfazendo 0 espaco das agdes em uta, 0 imediato das lutas criticas do direito se faz, entdo, no campo das ideologias juridicas. Aqui, pode-se falar em um direito erftico, como, coposto de um direito conservador. Uma miriade de possibilidades se abre ao direito: reacionario, ditatorial, democrstico, neoliberal, inter- vencionista, de bem-estar social, humanista, de minimo existencial, de dignidade, encontrado na rua, pluralista, libertador, insurgente. Todo esse campo estabelece-se na disputa pela vetorializagao da forma juri- dica ja dada, A Tdeologia Juridica, como inconsciente estruturante da subjetividade juridica, é 0 pano de fundo no qual as ideologias juridicas sso suas variagdes em luta. Somente em um outro nivel se estabelece o campo da critica a0 direito. No que tange a Ideologia Jurfdica ~ essa de uma subjetividade juridicizada, portadora de direitos, deveres e obrigagdes, espelho do capital e do mundo da mereadoria -, sua superagao nao se faz com um, outro direito, ou uma nova distribuigao de direitos, ou uma modulagao Juridica progressista. Somente com a superagao da forma de subjet vidade juridica é possivel construir outra sociabilidade, A superagao do capitalismo é a superacao da forma da mercadoria, e ndo um outro arranjo desta, Assim, no campo do direito, o socialismo sera ndo um. direito eritico, mas uma critica ao direito. APONTAMENTOS PARA UMA CRITICA MARXISTA DO DIREITO. BIBLIOGRAFIA Almeida, Silvio Luiz de 2015 (prelo) “Estado, direto e andlise materialista do racismo” in VAA. Para a critica do direito. Rflexées sobre leorias e préticas juridicas (S80 Paulo: Expressio Popular) Althusser, Louis; Balibar,Ftienne; Establet, Roger 1980 Para Ler © Capital (Rio de Janeiro; Zahar) Vo. TL Balibar, Etienne; Wallerstein, Immanuel 2010 Race, Class and Nation ambiguous identity (Londres, Verso) Caldas, Camilo Onoda 2012 Teoria da derivapdo do Estado e do dirito (Sto Paulo: Dobra/Outras expresses) Edelman, Bernard 1976 0 dircito captado pela fotografia (Coimbra: Centelha). Hirsch, Joachim 2010 Teoria Materialista do Estado (Rio de Janeiro: Renova). Kashiura, Celso Naoto 2013 Sujeito de direito e capitalismo (Sao Paulo: Dobra/Outras expressées). Marx, Karl 2014 O Capital (Sao Paulo: Boitempe) Vol. I Mascaro, Alysson Leandro 2008 Critica da legalidade e do direito brasileiro (Sao Paulo: Quartier Latin) Mascaro, Alysson Leandro 2013 Estado e forma politica (S80 Paulo: Boitempo). Mascaro, Alysson Leandro 2015a (prelo) "Direito, capitalismo e Estado” in WAA. Para a critica do direito. Reflexes sobre teorias e praticas juridicas. (S80 Paulo: Expresso Popular) Mascaro, Alysson Leandro 2015b Introdugdo ao Estudo do Direito (S80 Paulo: Atlas), Naves, Marcio Bilharinho (org.) 2010 Presenea de Althusser (Campinas: IFCH/Unicamp). Naves, Mércio Bilharinho 2013 A questdo do direito em Marx (Sio Paulo: Dobra/Outras expressées). Pachukanis, E 1989 A teoria geral do direito e 0 marxismo (Rio de Janeiro: Renovar) Saad filho, Alfredo 2011 0 valor em Marx (Campinas, SP: Editora da Unicamp)

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