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Tribunal de Contas da União e a Natureza Jurídica de suas decisões

Alceu José Cicco Filho


Graduando do Centro Universitário de Brasília - Ceub

Resumo: Visa o presente trabalho a descrever, em exposição didática e sistemática, a


natureza jurídica das decisões do Tribunal de Contas da União, apresentando a contradição
entre autores no que tange a dualidade Jurídica X Administrativa, bem como as relevantes
teses defendidas por determinados doutrinadores. Relata-se, também, um breve histórico
acerca deste órgão bem como a possível interferência do Poder Judiciário quando houver
ofensa quanto à legalidade.

Palavras-chave: Coisa Julgada Administrativa; Controle Jurisdicional de Atos


Administrativos; Legalidade; Poder Judiciário; Processo Administrativo; TCU

Sumário: 1 Introdução - 2 A ação do controle - 3 Breve histórico - 4 Competências - 5


Modalidades de processo administrativo - 6 Recursos – 6.1 Efeitos do Recurso - 6.2 Dos
Recursos em Espécie – 6.3 Do recurso de reconsideração - 6.4 Do recurso de embargos de
declaração - 6.5 Do recurso de revisão - 6.6 Do pedido do reexame - 7 Da coisa julgada
administrativa - 8 Do controle jurisdicional dos atos administrativos do TCU - 9 Tipificação
das decisões proferidas pelos tribunais de contas - 10 Conclusão - Referências

1 Introdução

O presente artigo contempla como objetivo dissertar acerca da importância de um Tribunal


de Contas efetivo, exercendo em sua plenitude suas atribuições como meio de, por um
controle externo e auxiliador do Poder Legislativo, apreciar as contas daqueles que utilizem,
arrecadem, guardem, gerenciem ou administrem dinheiros, bens, valores públicos e pelos
quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza
pecuniária, conforme explana o art. 70 em seu parágrafo único.

Entretanto, há uma maior ênfase, no estudo em questão, no que tange à natureza das
decisões dessas Cortes de Contas bem como se é possível ou não apreciação do Poder
Judiciário após decisão proferida pelo TCU, uma vez que este exerce com independência e
autonomia suas funções. De toda sorte, autores como Jorge Ulisses acreditam que a
possível interferência do Judiciário acarretaria em uma maior contradição frente a tais
critérios supra mencionados.

Em suma, aqui se busca analisar as decisões destas Cortes de Contas, com alusão às
correntes doutrinárias que defendem um TCU possuidor de jurisdição, contrapondo-as,
entretanto, com o pensamento daqueles que argumentam que tais Cortes se manifestam por
intermédio de atos administrativos, não fazendo, portanto, coisa julgada e tampouco são
possuidoras de jurisdição.

É relevante lembrar que, não obstante a discordância no que se refere à presença ou não de
jurisdição nas decisões proferidas pelo TCU, ambas as correntes acreditam em uma Corte
capaz de conferir uma melhoria para o Direito nacional, seja por intermédio de um maior
controle das contas públicas, seja por meio da segurança jurídica por ela proporcionada.

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2 A ação do controle

O poder político, por ser uno, é indivisível1, mas a cultura da humanidade, desde Aristóteles,
vislumbra na ação do Estado a presença de várias funções, as quais devem ser limitadas
quanto ao seu alcance e conteúdo.

Na teoria clássica da divisão dos poderes, na atualidade melhor cognominada de separação


das funções do Estado, elaborada por Montesquieu, vislumbra-se o interesse em dividir as
atividades do Poder e estabelecer sobre todas elas o controle.

Se inexiste dúvida quanto à necessidade do controle sobre as funções do Estado e seus


realizadores, o mesmo não se pode afirmar acerca dos meios de torná-lo efetivo,
operacional, isento e eficaz.

A ação do controle deve evoluir, a partir da estruturação científica inicialmente concebida por
Montesquieu, para uma visão mais próxima da realidade atual do Estado e da sociedade,
aproveitando a experiência histórica acumulada, suas deficiências e acertos.

A doutrina, de modo não uniforme, já sedimentou alguns parâmetros que merecem


destaque. Em primeiro plano, insta asserir que qualquer estrutura de controle que não
vislumbre a possibilidade de ação individual do cidadão estará fadada a transferir a iniciativa
a grupos, corporações ou instituições, nos quais mais facilmente permear-se-ão ações
ideológicas. É na possibilidade propulsora da iniciativa individual que reside a força de um
sistema de controle.

Em segundo, que o controle deve ser reconhecido como uma atividade acessória do Estado,
mas não menos importante. Em percuciente estudo sobre o controle da Administração
Pública, Odete Medauar, citando Berti e Tumiati, destaca que “na acepção lógico-filosófica, o
termo controle designa aspecto do agir humano necessariamente secundário e acessório,
porque destinado a rever, reexaminar ou confrontar uma atividade de caráter primário ou
principal”. 2 Esse enfoque coloca a função do controle na sua verdadeira dimensão
institucional: por não ser um fim em si mesmo, busca acrescentar algo às atividades ditas
principais e à própria sociedade.

Em terceiro, que o controle deve:

• Ser atividade permanente, desenvolvida prévia, concomitante e posteriormente à


prática do ato, acompanhando toda sua extensão;
• Ocupar a atenção de toda sociedade, para evitar a difusão de idéias da omissão do
controle e impunidade dos responsáveis;
• Ser desenvolvido por todos os órgãos do aparelho do Estado e da iniciativa privada,
quando exercente de função estatal, mesmo que em regime de colaboração;
• Ter a titularidade atribuída a um órgão específico, para o qual será atividade-fim.

Essa concepção, como facilmente se percebe, só pode permear num país que adote regime
democrático.

Controle, como função do Estado, exige, assim como o regime democrático, um grau de
desenvolvimento da sociedade e dos agentes da Administração para alcançar seu escopo,
evoluindo de modo permanente, como num ciclo de realimentação constante: democracia
– controle – democracia. Foi sensível a essa questão a Organização das Nações Unidas,

1
MELLO FILHO, José Celso de. Constituição Federal anotada. São Paulo: Saraiva, 1984. p. 20.
2
MEDAUAR, Odete. Controle da administração pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. p. 17.

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quando consagrou a Declaração Universal dos Direitos do Homem, erigindo, entre outros,
dois direitos: ao desenvolvimento e a participar ativamente no processo de
desenvolvimento.

Franco Montoro, em sua obra Estudos de Filosofia do Direito, assinala que:

Não se trata, simplesmente, de receber passivamente os benefícios do progresso, mas de tomar


parte nas decisões e no esforço para a sua realização. Em lugar de ser tratado como objeto das
atenções paternalistas dos detentores do poder, o homem tem o direito de ser considerado
3
pessoa consciente e responsável, capaz de ser sujeito e agente no processo do desenvolvimento

Se é o povo que mantém o Estado e, por meio dos seus legítimos representantes, define a
aplicação dos recursos públicos, nada mais adequado do que lhe atribuir a titularidade do
controle externo da Administração Pública. Salienta Manoel Gonçalves Ferreira Filho que por
tradição que data do medievo, compete autorizar a cobrança de tributos, consentir nos
gastos públicos bem como tomar conta dos que usam do patrimônio geral. Na verdade, o
poder financeiro das câmaras é historicamente anterior ao exercício, por elas, da função
legislativa.4

A propósito, no ideário da Revolução Francesa que, mais pelo seu simbolismo do que pela
sua concretização, iluminou o mundo, fizeram os revolucionários estabelecer, na Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, que “a sociedade tem o direito de pedir
conta a todo agente público de sua administração”. 5

Para desempenhar a função técnica de controle da Administração, o Brasil, a exemplo de


outros países, adota o modelo do Tribunal de Contas. Assim, enquanto esses tratam
exclusivamente do exame dos atos e da atividade administrativa, o julgamento final da
gestão do governo como um todo continua na restrita competência do parlamento da
respectiva esfera de governo.

Celso Antonio Bandeira de Mello ensina que:

Não há que se negar que o encargo de controlar a função administrativa do Estado, ante os
explícitos dizeres constitucionais, assiste ao Poder Legislativo. Entretanto, também não há que se
negar que a esse Poder acode, sobretudo, uma função política, a de fazer as opções sobre as
regras fundamentais que irão ditar o destino do País e reger os comportamentos dos indivíduos.
Já a missão de efetuar um apurado controle sobre a legitimidade dos atos administrativos
conducentes à despesa pública é, obviamente, uma missão técnica – técnico-jurídica – e,
portanto, dificilmente poderia ser desempenhada a contento por um corpo legislativo, sem que
contasse com o auxílio de um organismo especializado ao qual incumba esta apreciação técnica,
que irá iluminar a posterior decisão política do Legislativo na apreciação da gestão dos recursos
6
públicos.

3 Breve histórico

A instituição de um Tribunal de Contas no Brasil teve, a priori, como expoente Felisberto


Caldeira Brandt e José Inácio Borges, que apresentaram projeto de lei ao Senado Imperial
com o escopo de estabelecer uma Corte de Contas.

3
MONTORO, Franco. Estudos de filosofia do direito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 228.
4
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1992. p.
137.
5
Art. 15.
6
O jurista Alfredo Buzaid colocava o Tribunal de Contas como corporação administrativa autônoma.

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Contudo, os crescentes debates surgidos acerca desta temática fizeram com que as
discussões perdurassem por praticamente um século, dividindo-se em duas correntes
antagônicas, a primeira defendia a necessidade de se implantar um Tribunal de Contas, a
fim de que as contas públicas fossem devidamente analisadas por intermédio de um órgão
independente, afastado de quaisquer percalços que obstaculizassem a consecução dessa
atividade. Contrapondo-se a este ideário, uma segunda corrente sustentava a negação da
criação de uma Corte de Contas, por entenderem que as contas públicas podiam continuar
sendo controladas por aqueles mesmos que as realizavam.

De toda sorte, tão somente com o declínio do Império e o advento de reformas político-
administrativas ocorridas no Brasil - República, a instituição de um Tribunal de Contas
amplamente se efetivou. Foi por iniciativa do então Ministro da Fazendo Rui Barbosa, que
por meio do Decreto nº 966-4, criou o Tribunal de Contas da União, constituindo-se por
intermédio de características basilares como a autonomia, fiscalização, julgamento e
vigilância.

Rui Barbosa, portanto, foi essencial rumo ao advento de uma Corte de Contas, vez que
exerceu colossal influência para a definitiva concretização e presença deste órgão no corpo
da primeira Constituição republicana brasileira, inscrevendo-o no seu art. 89. Assim,

Originariamente o Tribunal teve competência para exame, revisão e julgamento de todas as


operações relacionadas com a receita e a despesa da União, ademais, a fiscalização se fazia pelo
sistema de registro prévio. A Constituição de 1891 institucionalizou o Tribunal e conferiu-lhe
competências para liquidar as contas da receita e da despesa, bem como verificar a sua
7
legalidade antes de serem prestadas ao Congresso Nacional.

Um período curioso de sua história ocorreu quando de sua instalação, ao ser mitigado e ter
sua autonomia, até então plena, colocada em xeque. O que desencadeou essa diminuição
quanto a liberdade de pleno exercício de suas atribuições foi haver considerado ilegal a
nomeação, feita pelo Presidente Floriano Peixoto, de um parente do ex-Presidente Deodoro
da Fonseca. Logo, como forma de defesa à decisão do Tribunal, Floriano Peixoto expediu
decretos no sentido de extrair da Corte de Contas a competência, que lhe foi
constitucionalmente conferida, para impugnar despesas consideradas ilegais. Com essa
série de abusos e ofensas principalmente à legalidade constituída, o Ministro da Fazenda
Serzedello Correa, não anuindo com a posição do Presidente, distanciou-se do cargo,
defendendo que:

Esses decretos anulam o Tribunal, o reduzem a simples Ministério da Fazenda, tiram-lhe toda a
independência e autonomia, deturpam os fins da instituição, e permitirão ao Governo a prática de
todos os abusos e vós o sabeis - é preciso antes de tudo legislar para o futuro. Se a função do
Tribunal no espírito da Constituição é apenas a de liquidar as contas e verificar a sua legalidade
depois de feitas, o que eu contesto, eu vos declaro que esse Tribunal é mais um meio de
aumentar o funcionalismo, de avolumar a despesa, sem vantagens para a moralidade da
administração.

Se, porém, ele é um Tribunal de exação como já o queria Alves Branco e como têm a Itália e a
França, precisamos resignarmo-nos a não gastar senão o que for autorizado em lei e gastar
sempre bem, pois para os casos urgentes a lei estabelece o recurso.

Os governos nobilitam-se, Marechal, obedecendo a essa soberania suprema da lei e só dentro


dela mantêm-se e são verdadeiramente independentes.

7
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Disponível em: <www.tcu.gov.br>. Acesso em: 2 out. 2006.

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Pelo que venho de expor, não posso, pois Marechal, concordar e menos referendar os decretos a
que acima me refiro e por isso rogo vos digneis de conceder-me a exoneração do cargo de
8
Ministro da Fazenda, indicando-me sucessor.

Ao longo da evolução Constitucional operacionalizada no Brasil, a Corte de Contas foi


gradativamente ampliando seu hall de atribuições e, consequentemente, fortificando o
princípio da autonomia que sempre deve servir de norte no exercício de seu mister. Nesse
sentido, com o advento da Constituição de 1988, responsável pela redemocratização da
soberania brasileira enclausurada, até então, por um longo regime ditatorial, o Tribunal de
Contas logrou a maior expansão quanto a sua competência, como também quanto o
exercício de seu poder jurisdicional.

Importante relembrar os ensinamentos do autor Manoel Gonçalves, que, em poucas linhas,


traduz a razão de ser da Corte de Contas:

A existência de um órgão especializado que fiscalize a realização do orçamento e a aplicação do


dinheiro público pelas autoridades que o despendem, é necessidade de há muito sentida, no
Brasil e fora dele. Entre nós, já no Império, tentou-se implantar um órgão com essas funções.
Todavia, foi o Governo Provisório que criou o Tribunal de Contas, pelo Decreto n. 966-A, de 7 de
novembro de 1890. Tal decreto foi da lavra de Rui Barbosa, que também inspirou a inserção
desse órgão de contas no texto constitucional (art. 89 da Lei Magna de 1981). E daí em diante o
9
Tribunal de Contas está presente em todas as Constituições federais.

4 Competências

O Poder Legislativo tem por funções precípuas (denominadas funções típicas),


expressamente previstas na Constituição Federal, a edição de leis (função legislativa
propriamente dita) e a fiscalização do Poder Executivo. Essa última, deve-se enfatizar,
poderá ser de duas formas: político-administrativa, por intermédio de um conjunto de
mecanismos que possibilitem ao Legislativo fiscalizar a gestão da coisa pública realizada
pelo Poder Executivo ( como a criação de CPIs e convocação de Ministros para prestar
informações); ou contábil, financeira e orçamentária.

Esta última prevista no art. 70 da Constituição Federal, confere ao Congresso Nacional a


fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das
entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade,
economicidade, aplicação das subvenções e renúncias de receitas.

Referido controle, denominado controle externo (visto que cada Poder também deverá
realizar, internamente, a mesma espécie de controle financeiro e orçamentário de seus
próprios atos), será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, conforme
disposto no artigo 71 da Carta Magna. Desta forma, ao dissertar sob o TCU, Manoel
Gonçalves preceitua que:

Sua função geral é a de auxiliar o Congresso Nacional no controle externo que lhe cabe exercer
sobre a atividade financeira e orçamentária da União (art. 71). Para tanto, incumbe-lhe apreciar as
contas do Presidente da República, desempenhar funções de auditoria financeira e orçamentária,
10
bem como julgar as contas dos administradores e responsáveis por bens e valores públicos.

8
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Disponível em: <www.tcu.gov.br>. Acesso em: 2 out. 2006.
9
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p.
158
10
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p.
158

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Portanto, as competências constitucionais privativas do Tribunal constam dos artigos 71 a 74
e 161da Lei Maior, que, em suma, versam acerca do auxílio ao Congresso Nacional de
exercer a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União
e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade,
economicidade e à fiscalização da aplicação das subvenções e da renúncia de receitas.
Ademais, sob a égide da atual Carta Magna, qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou
privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiro, bens e valores
públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de
natureza pecuniária tem o dever de prestar contas ao TCU. No entanto, é também relevante
mencionar que:

Além das atribuições previstas na Constituição, várias outras têm sido conferidas ao Tribunal por
meio de leis específicas. Destacam-se entre elas, as atribuições conferidas ao Tribunal pela Lei
de Responsabilidade Fiscal, pela Lei de Licitações e Contratos e, anualmente, pela Lei de
11
Diretrizes Orçamentárias.

Ainda neste tocante, não olvidar a súmula 347 do Supremo Tribunal Federal que afirma
poder o Tribunal de Contas da União, no exercício de suas atribuições, apreciar a
constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público.

5 Modalidades de processo administrativo

Onde há dualidade de jurisdição, nos países onde se verifica o contencioso administrativo


paralelo à jurisdição comum, faz-se a divisão do processo administrativo12 em duas
modalidades: processo administrativo contencioso e processo administrativo gracioso.

O processo administrativo contencioso desenvolve-se perante um órgão cercado de


garantias que asseguram sua independência em imparcialidade, competência para proferir
decisões com força de coisa julgada sobre as lides surgidas entre Administração e
administrado, 13 só existindo nos países que adotam o contencioso administrativo, uma vez
que, nos demais, tal fase desenvolve-se perante o Poder Judiciário, ao qual, e somente a
este, compete proferir decisão com força de coisa julgada.

No segundo tipo, com vistas à obtenção dos fins estatais que lhes são confiados, os próprios
órgãos da Administração encarregam-se de fazer atuar a vontade concreta da lei, mediante
a prática de uma série de atos com vistas a apurar os fatos, averiguar qual a norma
positivada a ser aplicada e ainda apreciar os aspectos de oportunidade e conveniência.
Culmina com a edição de um ato administrativo.

No Brasil, verifica-se apenas a existência do segundo tipo de processo administrativo,


gracioso, sendo em número de seis as suas modalidades básicas, a saber: processo de
expediente, de outorga, de controle, punitivo, administrativo disciplinar e administrativo
tributário.

11
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Disponível em: <www.tcu.gov.br>. Acesso em: 2 out. 2006.
12
Processo administrativo pode significar a concatenação de fatos e atos preparatórios de uma decisão final da
Administração que pode possuir diversas naturezas jurídicas, na conformidade do que implicarem seus
dispositivos.
No presente estudo, se tomará como definição do processo administrativo, segundo indicação do item quarto,
que este representa uma série de atos preparatórios de uma decisão final da Administração Pública que vise à
adequação dos fatos a si postos, frente as diretrizes estabelecidas em lei, numa forma de se buscar,como
observância ao princípio da anterioridade e legalidade, pautar os atos da Administração Pública, como um todo,
ao ordenamento jurídico.
13
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 496.

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Em breves comentários, o que aqui interessa é o processo de controle. É todo aquele em
que a Administração realiza verificações e declara situação, direito ou neles se deparam
irregularidades puníveis, exigem oportunidade de defesa. Neles, a decisão final é vinculante
para a Administração e para o interessado, embora nem sempre seja auto-executável.

5 Natureza jurídica das decisões proferidas pelos tribunais de contas

No que se refere à natureza jurídica das decisões proferidas pelo TCU, é importante
esclarecer que há vários estudos que procuram compreendê-las, sendo que uma corrente de
pensamento sustenta a função jurisdicional, enquanto outra restringe as decisões à mera
manifestação de vontade administrativa.

A questão não é meramente acadêmica, apresentando relevantes conseqüências práticas


no que concerne, especialmente, aos limites de revisibilidade das decisões dos Tribunais de
Contas pelo Poder Judiciário. Para a corrente defensora da função jurisdicional, somente
caberia o exame extrínseco do ato e a verificação de sua conformidade, ou não, com a Lei,
pelo Judiciário. Para a segunda, a revisão poderia, inclusive, adentrar no mérito do ato
deliberativo da Corte.

Tudo parece indicar que o ponto nodal da questão repousa na acepção do termo julgamento,
utilizado pela Constituição Federal, para designar a decisão do Tribunal de Contas. Esse
termo mereceu detido exame de juristas pátrios, a iniciar-se pelo Procurador do Ministério
Público junto ao TCU, Leopoldo da Cunha Melo, asserindo que “o Tribunal de Contas não é
simples órgão administrativo, mas exerce uma verdadeira judicatura sobre os exatores, os
que têm em seu poder, sob sua gestão, bens e dinheiros públicos”. 14

De toda sorte, a professora Samantha Meyer, em seus apontamentos de aula, explana que
“o Tribunal de Contas é órgão auxiliar e de orientação do Poder Legislativo, embora a ele
não subordinado, praticando atos de natureza administrativa, concernentes, basicamente
à fiscalização”. 15 (grifo nosso).

Conquanto o Tribunal de Contas não integre o elenco de órgãos do Poder Judiciário, há


muito, de fato, já assinalava Seabra Fagundes que:

Inobstante isso, o art. 71, § 4º, lhe confia o julgamento da regularidade das contas dos
administradores e demais responsáveis por bens ou dinheiros públicos, o que implica investi-lo no
parcial exercício da função judicante. Não bem pelo emprego da palavra julgamento, mas sim
pelo sentido definitivo da manifestação da corte, pois se a regularidade das contas pudesse dar
lugar a nova apreciação pelo Poder Judiciário, o seu pronunciamento resultaria em mero e inútil
formalismo. Sob esse aspecto restrito (o criminal fica à Justiça da União), a Corte de Contas
16
decide conclusivamente. Os órgãos do Poder Judiciário carecem de jurisdição para examiná-lo.

Também Pontes de Miranda sustenta que “a função de julgar as contas está claríssima no
texto constitucional. Não havemos de interpretar que o Tribunal de Contas julgue e outro Juiz
as rejulgue depois. Tratar-se-ia de absurdo bis in idem”. 17

O debate tem prosperado, notadamente, porque os estudiosos costumam analisar a questão


apenas pela perspectiva do Direito Constitucional ou do Direito Administrativo, faltando à

14
Pareceres, 1950, v. 4, p. 118-119, apud FAGUNDES, 1984, p. 144.
15
PFLUG, Samantha Meyer. Apontamentos de aula, p. 21.
16
FAGUNDES, Seabra. O controle dos atos administrativos pelo poder judiciário. 4. ed. Rio de Janeiro:
Forense. p. 142; o texto refere-se a artigos da Constituição de 1946, mas é atual, porque a CF/88 repete a
expressão “julgar” e continua não elencando o Tribunal de Contas entre os órgãos do Poder Judiciário.
17
MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. 4. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1963. p. 95. (apud
FAGUNDES, 1984, p. 142).

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reflexão uma visão abrangente e mais atualizada da restrita tripartição das funções do
Estado.

Essa posição, muito bem se entende, se for considerado que a teoria da separação dos
poderes de Montesquieu jamais foi adotada em seu sentido estrito. O já citado Pontes de
Miranda menciona que “uma coisa é a distinção das funções do Estado em legislativa,
executiva e judiciária e outra a separação absoluta dos poderes segundo tal critério
distintivo”. 18

O silogismo fundamental para a correta equação assenta-se nas seguintes premissas:

1) a separação das funções legislativa, administrativa e judiciária não é absoluta, nem é


restrita aos órgãos do respectivo Poder. Verifica-se torrencial exemplificação na própria
Constituição Federal:

• Poder Executivo – exerce funções legislativas quando se lhe comente a iniciativa de leis (art.
84, III) ou editar medidas provisórias, com força de lei (art. 84, XXVI), sancionar, promulgar e
vetar leis (art. 84, IV), e também funções judiciais, como comutar penas e conceder indulto (art.
84, XII);

• Poder Legislativo – além das funções legislativas, constitucionalmente lhe foi deferida
competência judiciária para processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República e
outras autoridades (art. 52, I e II) e funções administrativas, como a de dispor sobre sua
organização (art. 51, IV);

• Poder Judiciário – foi-lhe conferida a competência administrativa de organizar suas secretarias


(art. 96, I, b), e legislativa, para propor leis (art. 96, II) ou declarar a inconstitucionalidade de leis
(arts. 97 e 102, I, a) e impor a sentença normativa em dissídio coletivo (art. 114, § 2º).

2) O Poder Judiciário não tem competência para a ampla revisibilidade dos atos não judiciais
estritos.

Arrimando-se no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, os menos atentos pretendem erigir
o princípio da revisibilidade judicial como norma absoluta. A simples leitura desse dispositivo
demonstra que é vedado a lei excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de
lesão. De fato, a interpretação sistemática dos preceitos constitucionais revela que, em
alguns casos, o próprio estatuto político delineia a competência para outros órgãos
procederem ao julgamento de determinadas questões tal como ocorre com o julgamento do
impeachment e dos Tribunais de Contas, que Seabra Fagundes classifica como exceções ao
monopólio do Poder Judiciário. De outra parte, admitindo-se, ad argumentandum, que a
deliberação das Cortes de Contas fosse mero ato administrativo e não judicante, mesmo
assim não poderia o Poder Judiciário adentrar ao exame de mérito desse ato, ficando restrito
ao exame da legalidade formal. 19

Nesse contexto, compreende-se facilmente que a jurisdição não é monopólio do Poder


Judiciário, sendo função também exercida pelos outros poderes.

Os efeitos do julgamento – como tal entendida a possibilidade de dizer o direito nos casos
concretos – pelas Cortes de Contas prevaleceriam frente aos órgãos do Poder Judiciário?
Estariam os condenados sujeitos ao cumprimento forçado da decisão das Cortes de Contas?
18
MIRANDA, Pontes de. Os fundamentos atuais do direito constitucional. Rio de Janeiro:
Freitas e Bastos, 1932. p. 319.
19
“Inteiramente livre para examinar a legalidade do ato administrativo, está proibido o Poder Judiciário de entrar
na indagação de mérito, que fica totalmente fora do seu policialmente”. In: Dos Atos Administrativos Especiais,
Cretella Jr., 1. ed., 1995, Rio de Janeiro: Forense, p. 448.

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O autor Jorge Ulisses assevera que as decisões das Cortes de Contas, no Brasil, são
expressões da jurisdição. Não jurisdição “especial” ou seguida de qualquer adjetivação que
pretenda diminuir sua força, mas apenas jurisdição, à qual se pode, em homenagem ao
órgão prolator, referir-se como jurisdição de contas.

Conseqüentemente, uma vez que o constituinte, repetindo Constituições anteriores,


empregou a expressão julgar para algumas deliberações do Tribunal de Contas, e tendo em
linha de consideração que, quando “são empregados termos jurídicos, deve crer-se ter
havido preferência pela linguagem técnica”, 20 os julgamentos das Cortes de Contas – em
conformidade com o proferido por Jorge Ulisses - devem ser acatados pelo Poder Judiciário,
vez que não podem rejulgar o que já foi julgado, como acentua Pontes de Miranda.

O julgamento sobre as contas, decidindo a regularidade ou irregularidade, é soberano,


privativo e definitivo, observados, obviamente, os recursos previstos no âmbito desses
colegiados. Esgotados os recursos ou os prazos para a interposição, a decisão é definitiva,
não sujeita à revisibilidade de mérito pelo Poder Judiciário. Destarte, afirma Jorge Ulisses:

Assim, sem laivo de dúvida, funções das Cortes de Contas se inserem como judicantes, inibindo o
reexame pelo Judiciário. Nesse sentido já pronunciou a Justiça Federal: o TCU só formalmente
não é órgão do Poder Judiciário. Suas decisões transitam em julgado e têm, portanto, natureza
21
prejudicial para o juízo não especializado.

Questão que surge aqui neste ponto refere-se aos Tribunais de Contas, mais precisamente,
qual seria sua figuração ante o modelo de jurisdição una consagrado pela Constituição
Federal. Rodolfo de Camargo Mancuso expressa o seu entendimento, dando uma conotação
de Corte diferenciada às referidas Casas:

Nesse prisma é que se colocam os Tribunais de Contas, que a Constituição Federal reteve como
Cortes diferenciadas, exercentes de uma jurisdição sobremodo especializada, como deflui à
leitura do art. 70 da Constituição Federal. Conquanto as Cortes de Contas não figurem no rol dos
órgãos componentes do Poder Judiciário (CF, art. 92, I a VII), é indisputável que elas exercem
com independência, autonomia e exclusividade o segmento específico da Jurisdição em matéria
de fiscalização ‘contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial’ (art. 70), como órgão
de controle externo, acoplado ao Legislativo (art. 71). A circunstância de suas decisões poderem,
eventualmente, ser objeto de contraste ulterior pelo Poder Judiciário (por exemplo, em ação
popular em que se discuta matéria antes decidida por Tribunal de Contas) não enfraquece o
caráter coercitivo de seus julgamentos, porque, de um lado, aquele contraste advém por outra
razão, a saber, a inafastabilidade do controle jurisdicional (dito princípio da ubiqüidade da Justiça:
CF, art. 5º, XXXV); de outro lado, sendo certo que impende preservar a desejável harmonia entre
as competências constitucionalmente estabelecidas, é forçoso admitir que aquela revisão judicial
não se dá necessariamente, e quando ocorra, não poderá implicar uma singela ‘substituição’ dos
22
critérios adotados pelo juiz de contas, por aqueles que acodem o juiz togado.

Mais adiante, evidencia:

Portanto, para efeitos do presente estudo, partimos da premissa de que os pronunciamentos


desses órgãos colegiados configuram verdadeiros julgamentos, atos judicantes aperfeiçoados e

20
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988. p. 109.
21
Apelação Cível 89.01.23993 – 0/MG, DJU 14.09.92, p. 28119, TRF 1ª Região, 3ª Turma, Rel.: Juiz Adhemar
Maciel.
22
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Sobre a execução das decisões proferidas pelos tribunais de contas,
especialmente a legitimação. Revista dos Tribunais - RT, São Paulo, v.86, n. 743, p. 75, 1997.

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impositivos, embora restritos, obviamente, às matérias constitucionalmente atribuídas a esses
23
Tribunais.

Pelo que se depreende, segundo as idéias transcritas, os Tribunais de Contas, inobstante o


fato de não constarem no elenco constitucional dos órgãos providos de jurisdição, teriam tal
condão, ou seja, poderiam fazer a dicção do direito a ser aplicado nos casos por eles
analisados, não se constituindo, por isso mesmo, segundo o referido autor, “instância
inferior” ou “primeiro grau” em relação ao Poder Judiciário.

O autor Bruno Lacerda, se contrapõe, portanto, à idéia acima exposta, ensinando que
segundo disposição constitucional, o sistema judiciário brasileiro utiliza o chamado
monopólio da distribuição da justiça pelo Poder Judiciário, não adotando o sistema que
vigora, por exemplo, em países do chamado sistema continental europeu, onde há um
verdadeiro contencioso administrativo, nos quais é atribuída à Administração, funções
judicantes para processar e julgar determinados conflitos.24

Deste modo, Lacerda explana que nosso sistema utiliza o princípio una lex una jurisdictio,
conforme se depreende da análise das diretrizes constantes do artigo 5º, incisos XXXV,
XXXVI, XXXVII, LIII, LIV e LV, segundo as quais sempre haverá um órgão jurisdicional
competente, imparcial e constituído anteriormente ao fato ensejador da controvérsia, para
dela conhecer, inclusive quanto ao seu mérito, se presentes certos requisitos, chamados
condições da ação e pressupostos processuais, tornando-se imutável a decisão proferida
pelo Judiciário, após o encerramento da instância recursal.25

O fato de haver Justiças Especiais (Eleitoral, Militar, Trabalhista, Juizados Especiais Cíveis e
Criminais), todavia, não se constitui como uma afronta à unitariedade da justiça, uma vez
que todas são parte de um todo, apenas subdividido em razão de política judiciária, ou
ainda, em razão de se darem tratamentos desiguais para situações desiguais (casos de
prerrogativa de foro, matéria etc.).

Deixando-se de lado o critério técnico correto do que seria jurisdição e partindo-se para a
análise da função jurisdicional num sentido amplo, poder-se-ia acatar a idéia de que os
Tribunais de Contas teriam, digamos assim, uma “jurisdição material”, haja vista que
exercem algumas funções típicas, pois uma das suas atribuições é o julgamento de contas
dos responsáveis com imparcialidade, independência, ampla defesa, dentre outras
garantias. Todavia, formalmente, no sentido técnico da palavra, a doutrina majoritária
acredita que os Tribunais de Contas não possuem função jurisdicional, já que dentre outros
motivos, suas decisões não produzem coisa julgada, de forma que resta impossibilitado tal
enquadramento como órgão jurisdicional ou detentor de jurisdição.

No mesmo diapasão é a lavra de Lúcia Valle Figueiredo que, analisando o espírito da


locução “julgar”, inserta no inciso II, do artigo 71, da Carta Magna, oferta a seguinte
exposição:

Considerando-se o monopólio de jurisdição pelo Judiciário, o correto seria dizer apreciar para
homologar, rejeitar ou sancionar. Ocorre, pois, que julgar não pode denotar atividade excludente
da apreciação do Poder Judiciário. Pode significar que, exercida a competência, há preclusão

23
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Sobre a execução das decisões proferidas pelos Tribunais de Contas,
especialmente a legitimação. Revista dos Tribunais - RT, São Paulo, v.86, n. 743, p. 76, 1997.
24
DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pelegrini; CINTRA, Antonio Carlos. Teoria geral do
processo. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 1991. p. 141.
25
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Sobre a execução das decisões proferidas pelos tribunais de contas,
especialmente a legitimação. Revista dos Tribunais - RT, São Paulo, v. 86, n. 743, p. 74, 1997.

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administrativa. É dizer, após o julgamento, que não poderá mais a Administração ou órgão
26
fiscalizador se voltar sobre as despesas, inquinando-as de ilegais.

Mais correta, parece ser a opinião da professora Lúcia Valle, uma vez que afasta a idéia de
jurisdição no sentido técnico e correto da palavra, estabelecendo os limites, com traço
bastante marcante, da atividade exercida pelas Cortes de Contas, inclusive, ao referir-se à
possibilidade de revisão pelo Poder Judiciário, do qual não se excluirá qualquer ameaça ou
lesão a direito, segundo dispositivo constitucional.

Todavia, em um passado não muito distante, o Pretório Excelso prolatou decisões nas quais
limitava as possibilidades de revisão, pelo Judiciário, das decisões ofertadas pelos Tribunais
de Contas.27-28

Miguel Seabra Fagundes, em uma das edições do trabalho O controle dos atos
administrativos pelo Poder Judiciário, assim lecionou:

Duas exceções restritas admite a Constituição ao monopólio jurisdicional do Poder Judiciário, no


que concerne à matéria contenciosa administrativa. A primeira diz respeito aos crimes de
responsabilidade do presidente da República, dos ministros de Estado, quando conexos com os
desse, e dos ministros do Supremo Tribunal Federal, o seu julgamento competirá ao Congresso.
A segunda se refere ao julgamento da regularidade das contas dos administradores e demais
responsáveis pela guarda ou aplicação de bens ou fundos públicos atribuído ao tribunal de
Contas (...). Este não aparece na Constituição como órgão componente do Poder Judiciário. Dele
se trata no capítulo referente ao Poder Legislativo, do qual constitui, pelo menos por algumas das
suas atribuições, órgão auxiliar. Não obstante isso, o art. 71, § 4º, comete-lhe o julgamento da
regularidade das contas dos administradores e demais responsáveis por bens ou dinheiros
públicos, o que implica investi-lo no parcial exercício da função judicante. Não bem pelo emprego
da palavra julgamento, mas sim pelo sentido definitivo da manifestação da Corte, pois se a
regularidade das contas pudesse dar lugar à nova apreciação (pelo Poder Judiciário), o seu
pronunciamento resultaria em mero e inútil formalismo. Sob esse aspecto restrito, a Corte de
Contas decide conclusivamente, os órgãos do Poder Judiciário carecem de jurisdição para
29
examiná-lo.

O professor Alessandro Garcia Vieira afirma que mesmo tais atribuições sendo delegadas a
outros poderes que não o Judiciário, se houver desvio com relação a legalidade bem como
legitimidade do ato, caberá ao Judiciário interferir e analisar o caso em conformidade com
tais critérios.

Conclui-se, portanto, em consonância com a apostila do professor Eldir, quando este


assevera que:

O Tribunal de Contas não exerce uma função jurisdicional em relação às contas do Presidente
(âmbito federal). Ele não julga pessoas, julga contas, e o efeito de suas decisões não fazem
coisa julgada, pois são de cunho administrativo. O Tribunal de Contas é um órgão auxiliar do
Legislativo, emitindo um parecer técnico a respeito das contas a ele apresentadas. No entanto, a
30
lei não versa sobre a natureza desse parecer, se deverá ser conclusivo ou não. (grifo nosso).

26
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 241.
27
“Ao apurar o alcance dos responsáveis pelo dinheiro público, o Tribunal de Contas pratica ato insuscetível de
revisão na via judicial, a não ser quanto ao seu aspecto formal ou tisna de ilegalidade manifesta” (Ac. MS
7.280, relator Min. Henrique D`Ávila), RSTJ 30/395.
28
“Tribunal de Contas. Julgamento das contas de responsáveis por haveres públicos. Competência exclusiva,
salvo nulidade por irregularidade formal grave (MS 6.960, 1959), ou manifesta ilegalidade aparente (MS 7.280,
1960)”. RTJ 43/151.
29
FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo poder judiciário. 4. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1984. p.142.
30
OLIVEIRA, Éldir Coelho de Souza. Apontamentos de direito financeiro. p. 44.

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Em suma, pode-se entender, de acordo com a doutrina majoritária, que não há permissão de
que o Judiciário aprecie, quanto ao mérito, decisões advindas do TCU como, por exemplo,
no que tange a processos de tomada e prestações de contas, visto que são decisões
administrativas por excelência, constituindo, igualmente, função privativa da Corte de
Contas. Deste modo, é conferida a este Tribunal autonomia em certas hipóteses de não
haver exame judiciário acerca de suas deliberações.

No entanto, sempre que houver ato administrativo eivado de ilegalidade, caberá ao Poder
Judiciário apreciação desse ato, uma vez que o art. XXXV reza que a lei não excluirá da
apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito – conforme já explanado
anteriormente.

Importante, também, ressaltar que com relação às decisões em processos de tomada ou


prestação de contas31, podem ser:

• decisão preliminar: antes de o Tribunal julgar o mérito, ele determina o sobrestamento do


processo para obter determinadas informações, que podem ser feitas mediante diligencias,
citação ou audiência pessoal.
• decisão definitiva: aqui podem ocorrer três tipos de situações:
• Contas Regulares: as contas são julgadas regulares quando demonstram clara e
objetivamente a exatidão das demonstrações contábeis, bem como a legalidade, legitimidade
e economicidade dos atos de gestão dos responsáveis.
• Contas Regulares com Ressalvas: essa situação ocorre sempre que apresentem
impropriedades ou falhas de natureza formal de que não resulte dano ao erário público. Ex. o
administrador não emitiu corretamente a nota de empenho, pois não a classificou.
• Contas Irregulares: decisão de maior gravidade, sempre que ocorra uma das seguintes
condições:

1. omissão do dever de prestar contas – o responsável não presta contas dentro do


prazo estabelecido, sem nenhuma justificação.
2. prática de ato ilegal, ilegítimo e antieconômico ou então infração à norma legal ou
regulamentar de natureza contábil – significa dizer que as demonstrações contábeis
estão distorcidas.
3. dano ao erário público decorrente da prática de ato de gestão ilegítimo ou
antieconômico – o Tesouro ficou prejudicado pela prática do ato.
4. desfalque ou desvio de bens, dinheiro ou valores públicos.”
• decisões terminativas: impossibilidade material de julgamento de mérito em face de forma maior
ou alheio à vontade do responsável. A lei não define as hipóteses. Nesse caso há o
32
trancamento das contas e, em conseqüência, o arquivamento do processo de julgamento.

6 Recursos

Os recursos administrativos, em acepção ampla, são todos os meios hábeis a propiciar o


reexame de decisão interna pela própria Administração. São eles corolário do Estado de
Direito e prerrogativa de todo administrado ou servidor atingido por qualquer ato da
Administração.

A apreciação dos atos da Administração Pública desenvolvida pelos Tribunais de Contas


resulta num ato jurídico equivalendo a uma sentença, na medida em que declara a
regularidade ou irregularidade da conduta de um agente, na guarda e/ou na aplicação dos
recursos públicos.

31
Art. 10 e §§ da Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União. – Lei n.º 8.443 de 16.7.92, alterada pela Lei nº.
9.165 de 19.12.95
32
OLIVEIRA, Éldir Coelho de Souza. Apontamentos de direito financeiro. p. 44.

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A natureza jurídica do julgamento e a complexidade das matérias envolvidas, que não se
restringem à aplicação do Direito, exige dos Ministros e Conselheiros uma apreciação
extremamente abrangente da realidade e da norma.

Como juiz, o julgador da Corte de Contas não é mero aplicador de silogismos jurídicos, mas
deve almejar a Justiça; como especialista em finanças e controle, não pode limitar-se ao
exame formal dos atos, mas deve avaliar a eficiência e eficácia; como cidadão-contribuinte,
não se contenta em vislumbrara a boa ou má-fé na aplicação dos recursos, mas a adequada
prestação do serviço e a satisfação dos maiores interesses da coletividade.

Na ponderação de todos esses ângulos de uma complexa temática, até porque seu
julgamento, na verdade, sobrepõe-se ao das altas autoridades administrativas e pode
reformá-lo, as Cortes de Contas devem encontrar no próprio desenvolvimento de atividades
um modo de expurgar do julgamento o erro, criando a possibilidade de reapreciação dos
fatos, apontando os desacertos da decisão.

Assim, tanto a complexidade das várias nuanças do julgamento como a natureza e efeitos
relevantes que assume, bem como a inegável falibilidade da natureza humana, demonstram
a validade e a necessidade da existência de recursos das decisões adotadas pelos Tribunais
de Contas.

Firmada essa premissa, é imperioso que se tenha em linha de consideração a importância


de julgamentos cada vez mais céleres e seguros, especialmente no momento em que a
cidadania irrompe cobrando operosidade de suas instituições, insufladas por uma parcela da
imprensa, que, muitas vezes, pretende colocar o caráter punitivo sobre o orientador.

6.1 Efeitos do Recurso

Tradicionalmente, os recursos podem ter dois efeitos:

• efeito devolutivo – consiste no fato de que o ingresso do recurso devolve ao julgador o exame
dos fatos articulados no mesmo (tantum devolutum quantum apellatum);
• efeito suspensivo – acarreta o sobrestamento da exeqüibilidade do julgado, impedindo os
seus efeitos.

Em geral, as normas processuais indicam que todos os recursos têm efeito devolutivo;
quanto ao efeito suspensivo, as normas indicam quais são os tipos que em ou não tal efeito,
ou simplesmente deixam ao prudente arbítrio do julgador concede-lo, ao tomar
conhecimento do recurso, à vista do caso concreto.

6.2 Dos Recursos em Espécie

O disciplinamento dos recursos é matéria a ser tratada nas respectivas leis orgânicas dos
Tribunais de Contas, podendo, portanto, haver tratamento diferenciado na lei local.

Na Lei Orgânica do TCU33, o assunto é tratado nos arts. 31 e seguintes, os quais


estabelecem três tipos de recurso:

I – reconsideração;

II – embargos de declaração;

33
Lei 8.443, d e16 de julho de 1992.

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III – revisão

Mesmo não alinhando como recurso estrito, é possível vislumbrar o pedido de reexame
como uma outra possibilidade de obter uma modificação de uma decisão.

6.3 Do recurso de reconsideração

Recorribilidade dirigida às decisões:

• Proferidas em processos de Tomada de Contas Especial e de tomada e prestação de contas


em geral;

• Pode ser utilizado uma só vez.

O Regimento Interno do TCU, ao regulamentar os recursos, admitiu a possibilidade de recorrer da


decisão das câmaras ou do plenário quando ficasse demonstrada a existência de divergência
entre a decisão recorrida e a que houver sido prolatada por um dos órgãos precedentes, em caso
análogo.

Trata-se, pois, de um recurso não previsto expressamente no art. 32 da Lei Orgânica, e que
deve ser cognominado de recurso strico sensu, possuindo nítida função de uniformização da
jurisprudência.

6.4 Do recurso de embargos de declaração

Recorribilidade dirigida às decisões:

• Visando corrigir obscuridade, omissão ou contradição, conforme art. 34, caput, da Lei Orgânica
do TCU;

• Obscuridade é a falta de clareza na redação do julgado, impedindo a compreensão, a


verdadeira inteligência ou a exata interpretação;

• Omissão, que é o motivo menos freqüente para o ingresso de embargos de declaração nos
Tribunais de Contas, consistem no fato de o acórdão ou decisão não se pronunciar sobre ponto
ou questão relevante suscitada pelo interessado na defesa, como, por exemplo, a argüição de
quitação do débito;

• Contradição é a afirmação de duas proposições inconciliáveis entre si.

• Este recurso busca a reparação de um prejuízo decorrente de sentença imperfeita, tendo a


maioria expressiva dos juristas pátrios, entre os quais Frederico Marques, Seabra Fagundes,
perfilhado esse entendimento.

O pressuposto específico de admissibilidade dos embargos de declaração é que exista, na


decisão – e sua parte dispositiva -, obscuridade, contradição ou omissão. Os embargos de
declaração dirigem-se à decisão adotada pela Corte, e cabem mais de uma vez no mesmo
processo, e até mesmo mais de uma vez em relação a uma mesma decisão. Assim, por
exemplo, pode a parte entrar com embargos de declaração da decisão inicial, e depois,
novamente, dos recursos de reconsideração, e até mesmo, se no julgamento dos embargos
continuar a haver obscuridade, adotar esse tipo de recurso.

6.5 Do recurso de revisão

Recorribilidade dirigida às decisões definitivas que se tenham fundado:

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I – em erro de cálculo nas contas;

II – em falsidade ou insuficiência de documentos;

III – na superveniência de documentos novos em eficácia sobre a prova produzida.

Os fatos novos que ensejam a revisão da decisão deve ser pertinentes ao fundamento
principal adotado e suficientes para provocar uma mudança do mérito da decisão, sob pena
de não ser conhecido o recurso.

Ainda que guardem certa complexidade, é indispensável a extraordinária força provante do


fato novo, como erro em contas – que aqui deve ter a acepção de demonstrativos contábeis
– ou do documento. O fato novo não implica necessariamente a descoberta de um novo
documento inexistente ao tempo do julgamento, mas sim, a descoberta de que o existente
nos autos era falso, ou na obtenção de outro, que à época, a parte não pode te acesso ou
ainda lhe era desconhecida a existência.

Na jurisprudência do TCU, duas súmulas dispõem sobre o recurso de revisão. A primeira, de


nº. 21, averba que:

Caberá recurso de revisão, interposto na forma da lei, quando, em face de comunicação dos
Tribunais de Contas do Distrito Federal, dos Estados e do Município de São Paulo, das
Assembléias Estaduais e das Câmaras Municipais, e de qualquer autoridade ou cidadão (
Constituição, art. 153, §§ 30 e 31) for cientificado o Tribunal de Contas da União de
irregularidade grave na utilização dos recursos provenientes dos Fundos de Participação.

Nos termos dessa súmula, seria possível ao interessado, quando o Tribunal for cientificado
de irregularidade na aplicação de recursos do Fundo de Participação, apresentar recursos
de revisão para sustentar, por exemplo a regularidade na aplicação das verbas, constituindo
providencia incidente do processo para uma decisão não definitiva.

6.6 Do pedido do reexame

Conquanto as normas não elenquem o pedido de reexame como um recurso, parece que o
mesmo possui tal natureza, pois pode ensejar a alteração de uma decisão, inclusive por
postulação do interessado prejudicado.

Em sede de Tomadas de Contas Especial, também é possível sua aplicação, se, e somente
se, estive subjacente uma das matérias versadas nas seções III e IV do Capítulo II, do Título
II da Lei Orgânica do TCU, em vigor.

Para corroborar essa linha de entendimento, cabe obtemperar que o art. 19, II, do
Regimento Interno do TCU, trata dos recursos e do pedido de reexame no mesmo
dispositivo, assegurando a competência do plenário daquela Corte para o seu julgamento.

7 Da coisa julgada administrativa

A lei de Introdução ao Código Civil brasileiro, em seu artigo 6º, § 3º, diz que coisa julgada é a
“decisão judicial de que já não caiba recurso”.

Segundo lição de Walter Nunes da Silva Jr., fazendo menção a Francesco Carnelutti e
Humberto Theodoro Júnior:

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 84, p.171-194, abril./maio, 2007 185


A força da coisa julgada manifesta-se com dois efeitos fundamentais, quais sejam a
imperatividade e a imutabilidade. A imperatividade é por conferir à sentença, em relação às
partes, força de lei, não restando alternativa outra a elas que não cumprir o que ficou
determinado. A imutabilidade não só faz desaparecer o direito da parte provocar, novamente, o
34
Judiciário sobre o assunto, como também extingue o ofício do juiz.

Celso Ribeiro Bastos diz que, em sede de coisa julgada:

O direito incorpora-se ao patrimônio de seu titular por força da proteção que recebe da
imutabilidade da decisão judicial. Daí falar-se em coisa julgada formal e material. Coisa julgada
formal é aquela que se dá no âmbito do próprio processo. Seus efeitos restringem-se, pois a este,
não o extrapolando. A coisa julgada material, ou substancial, existe, nas palavras de Couture,
quando à condição de inimpugnável no mesmo processo, a sentença reúne imutabilidade até
mesmo em processo anterior (fundamentos do direito processual civil). Já para Wilson de Souza
Campos Batalha, coisa julgada formal significa sentença transitada em julgado, isto é, preclusão
de todas as impugnações; e coisa julgada material significa o bem da vida, reconhecido ou
35
denegado pela sentença irrecorrível.

Pergunta que se faz: pode-se falar em coisa julgada administrativa? Quais as acepções
possíveis ao termo “coisa julgada administrativa”? O processo administrativo faz coisa
julgada perante as partes, impossibilitando a revisão judicial? Em caso positivo, quais os
limites dessa “coisa julgada administrativa”?

A expressão “coisa julgada administrativa” encontra severa crítica de diversos autores, vez
que entendem tratar-se de instituto tipicamente processual, que foi importado para o direito
administrativo por uma corrente doutrinária que não vislumbra diferenças marcantes entre a
atividade de administração ativa e a jurisdição, haja vista considerarem a existência de um
fato determinante em comum: aplicação da lei ao caso concreto.

Todavia, não há que se confundir a função administrativa com a função jurisdicional do


Estado, vez que, dentre outros motivos, a forma como atua e Estado é absolutamente
diversa. Diz Di Pietro que: “não se pode simplesmente transpor uma noção, como a de coisa
julgada, de um ramo onde tem pleno fundamento, para outro, em que não se justifica”.36-37

Ora, quando do exercício da função jurisdicional, o Estado não toma parte da relação,
chamada tríplice (as partes e o Estado-juiz representam cada um dos vértices do triângulo).
Não sendo, o Estado-juiz, parte da relação, o exercício da função tem que ocorrer de forma
imparcial e definitiva, produzindo coisa julgada.

Já no exercício da função administrativa, a Administração Pública figura como parte na


relação, de forma que a função é parcial, não podendo, por isso mesmo, ser definitiva, mas
sempre com a possibilidade de ser apreciada pelo Poder Judiciário, se causar lesão ou
ameaça a direito subjetivo, haja vista que ninguém, nem mesmo a Administração Pública,
pode ser parte e juiz ao mesmo tempo.

34
SILVA JUNIOR, Walter Nunes da. Coisa julgada: direito imperativo ou facultativo? Disponível em:
<http://www.jfrn.gov.br/doutrin1.htm>. Acesso em: 5 out. 2006.
35
BASTOS, Celso Ribeiro. Dicionário de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1994. p.20.
36
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 595
37
Já se nota, com essa afirmativa, que uma parte da doutrina nacional se posiciona de forma divergente da
doutrina administrativista francesa, de forma que não entende a coisa julgada administrativa com os mesmos
contornos da coisa julgada jurisdicional.

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Chega-se, portanto, à conclusão de que “... a expressão coisa julgada, no Direito
Administrativo, não tem o mesmo sentido que no Direito Judiciário. Ela significa apenas que
a decisão se tornou irretratável pela própria Administração”. 38

A decisão do Tribunal de Contas que pelo decurso dos prazos recursais ou pelo
esgotamento dos recursos torna-se irretratável, operando a preclusão da possibilidade de
reexame na via administrativa, pode, portanto, ser considerada coisa julgada administrativa,
em consonância com assentada doutrina. O erro mais comum, no entanto, reside em
considerar como absoluto o ensinamento raso de que todas as decisões administrativas são
amplamente revisíveis pelo Poder Judiciário.

Trata-se, portanto, da irrevogabilidade dos atos administrativos, que não se resume apenas
aos casos em que tenha se exaurido a via administrativa, não cabendo aí mais qualquer
recurso, uma vez que existem outras possibilidades que englobam os casos de
irrevogabilidade dos atos administrativos, de forma que, não poucas vezes, a doutrina trata
do tema de coisa julgada administrativa quando se refere às limitações ao poder de revogar
os atos da Administração. Todavia, como já se assinalou, se houver ameaça ou lesão a
direito subjetivo, esses atos podem ser objeto de análise pelo Judiciário, por força do artigo
5º, XXXV, da Constituição Federal.

Em relevante escólio, o Ministro Athos Gusmão Carneiro acentua que:

... as atribuições do Tribunal de Contas são de natureza administrativa. Entretanto, quando ‘julga’ as contas
‘dos administradores e demais responsáveis por bens e valores públicos,’ tal julgamento impõe-se ao Poder
Judiciário no que concerne ao aspecto contábil, sobre a regularidade da própria conta; o julgado do Tribunal
de Contas constitui prejudicial no juízo penal, como apuração da qual o juiz não se pode afastar, de elemento
39
de fato necessário à tipicidade do crime.

Na mesma linha desse pensamento, pronunciou-se o Ministro Victor Nunes Leal:

A disposição constitucional de que a lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário
qualquer lesão de direito individual não é obstáculo a esse entendimento – de que a competência
das Cortes de Contas torna prejudicial e definitivo o pronunciamento sobre o fato material –
40
porque, no caso, a redução de competência do Judiciário resulta da Constituição, e não da lei.

O exame feito pelos Tribunais de Contas representa uma poderosa e ampla ação de controle
sobre os atos da Administração que já estão jungidos ao controle interno dela própria.
Permitir uma ampla revisibilidade, pelo Poder Judiciário, no mínimo constituiria, em termos
lógicos, conceder um espaço tão intenso ao controle, que inviabilizaria a própria ação
administrativa.

Tem-se, portanto, que o direito brasileiro adotou um sistema de jurisdição una, por meio do
qual apenas o Estado-juiz detém o monopólio da função jurisdicional, o poder de decidir as
lides com força de coisa julgada, seja o seu objeto a ameaça ou a lesão de direitos
subjetivos coletivos ou individuais.

Restou afastado o modelo europeu de dualidade de jurisdição, no qual, paralelamente ao


Judiciário, existem órgãos do chamado “Contencioso Administrativo”, os quais exercem
função jurisdicional sobre lides em que a Administração Pública seja parte interessada. Do
modelo nacional, mesmo que o Estado, enquanto Administração Pública, esteja integrando a
lide como parte, o Estado-juiz é figura alheia ao processo, não se confundindo com as
partes.

38
DI PIETRO, op. cit., p. 596.
39
CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e competência. São Paulo: Saraiva, 1989. p.14.
40
LEAL, Victor Nunes. Problemas de direito público. Rio de Janeiro: Forense, 1960. p. 231.

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Tanto é assim que: “inexiste a obrigatoriedade de esgotamento da instância administrativa
para que a parte possa acessar o judiciário. A Constituição Federal de 1988, diferentemente
da anterior, afastou a necessidade da chamada jurisdição condicionada ou instância
administrativa de curso forçado, pois já se decidiu pela inexigibilidade de exaurimento das
vias administrativas para obter-se o pronunciamento jurisdicional (RP60/224), uma vez que
excluiu a permissão, que a Emenda Constitucional nº. 7 à Constituição anterior estabelecera,
de que a lei condicionasse o ingresso em juízo à exaustão das vias administrativas,
verdadeiro obstáculo ao princípio do livre acesso ao Poder Judiciário”. 41

Tem-se, portanto, que, embora o dispositivo constitucional (art. 71, II) fale julgar, não se trata
de função jurisdicional, exclusiva do Poder Judiciário. Sendo, por tal razão, correto afirmar
que o julgamento das contas é uma questão prévia, preliminar, de competência do Tribunal de
42
Contas, e que antecede o julgamento do responsável pelo Poder Judiciário.

Não sendo, portanto, aplicável no ordenamento jurídico Brasileiro, a coisa julgada


administrativa – onde se encaixa as decisões proferidas pelo TCU – uma vez que os atos
por este proferidos no âmbito da apreciação de prestações de contas podem ser revistos
pelo Judiciário, vez que o Poder Judiciário pode examinar os atos administrativos de
qualquer natureza, sejam gerais ou individuais, unilaterais ou bilatérias, vinculados ou
discricionários, mas sempre sob o aspecto da legalidade e, agora, pela Constituição,
também sob o aspecto da moralidade (arts. 5º, inciso LXIII, e 37). 43

Tais considerações permitem concluir com razoável segurança que:

• Face ao princípio da autotutela administrativa, a Administração deve rever, de ofício, os atos


eivados de ilegalidade, fato que permitiria às Cortes de Contas, em restritíssimas hipóteses,
44
desfazer, por iniciativa própria, o manto da coisa julgada;

• O princípio da unidade de jurisdição sofre temperamentos pela própria Constituição, que admite
a competência privativa das Cortes de Contas para julgar as contas dos administradores e
demais responsáveis por bens e valores públicos.

• Essa competência privativa diz respeito ao mérito do julgamento, fato que deve admitir a
verificação do acatamento ao princípio constitucional do devido processo legal, que consiste no
exame extrínseco do ato decisório das Cortes de Contas, como, por exemplo, a competência
para julgamento, a forma definida em lei, a observância do princípio da ampla defesa e
contraditório, nos termos da lei específica do Tribunal de Contas.

8 Do controle jurisdicional dos atos administrativos do TCU

O Estado de Direito, enquanto primado, implica a hegemonia incondicional da ordem jurídica


que deve dirigir a sociedade, restando definidas e impostas as condutas originadas dessa
mesma ordem jurídica, as quais igualmente também se submete o Estado.

À submissão do Estado ao Estado de Direito e, conseqüentemente, à ordem jurídica


decorrente, ressalta Arruda Alvim:

... é extremamente vantajoso e foi gestado muitos séculos antes da revolução francesa visando a
existência de uma previsibilidade da conduta estatal, com o que, correlatamente, resguardam-se
as esferas individuais. Possivelmente como valor nuclear albergado por este sistema está a
liberdade do homem, da qual encontramos reflexos em praticamente todas as Constituições,

41
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2000. p. 98.
42
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 602.
43
Id., p. 604
44
Nesse sentido, a Súmula 195 d c. TCU.

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inclusive a brasileira, com o mandamento chave de que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de
45
fazer alguma coisa senão em virtude da lei.

Nota-se a preocupação em albergar a individualidade, a liberdade do homem, de forma que


as condutas socialmente exigidas dos cidadãos são aquelas decorrentes do ordenamento
jurídico, da mesma forma que também, e principalmente, são exigidos do Tribunal de
Contas, restando garantidos, destarte, tanto a liberdade e o patrimônio dos agentes como as
prerrogativas do poder estatal.

Desta forma, o que é relevante no Estado de Direito, no que diz respeito ao relacionamento
da ordem jurídica dos indivíduos com o Tribunal de Contas, é a percepção de que existe um
direito de postulação do agente perante o Judiciário, em face de atos do TCU que ele tenha
por infringentes da legalidade. Ao judiciário, correlatamente, incumbe o dever de examinar,
de forma exauriente, a conduta da Corte de Contas sob o ângulo da legalidade.

Quando o Poder Judiciário, pela natureza de sua função, é convocado a solucionar as


situações contenciosas entre o TCU e o indivíduo, tem lugar o controle jurisdicional das
atividades administrativas. Os conflitos tomam, então, a forma de pleitos judiciais,
estabelecendo-se o debate em torno da situação jurídica, de modo que seja possível
esclarecer, definir e precisar com quem se acha a razão.

Para a adoção das providencias necessárias ao resguardo dos interesses do erário ou da


exata definição da situação do responsável, admite-se, a juízo do Tribunal de Contas, o
desarquivamento de processo de tomada ou prestação de contas, ante a superveniência de
novos documentos ou informações que justifiquem o reexame, ex oficio ou a requerimento
do responsável do órgão a que pertence, ou do Ministério Público, da decisão anterior do
Tribunal, devendo ser admitida a possibilidade do patrulhamento das fronteiras da legalidade
do ato de julgamento das Cortes de Contas.

No entanto, tal patrulhamento deve ser entendido em consonância com o que José Cretella
Jr. Profere:

Bastante nítido é o âmbito em que se movimenta o Poder Judiciário, quando chamado para
examinar o ato administrativo.

Nesse particular, cumpre tão-somente o patrulhamento da legalidade ou legitimidade do ato.


Contrariou texto expresso em lei? Foi editado o ato, desatendendo-se a algum dos requisitos
exigidos em sua estrutura ou arquitetura? Encerra algum vício que o desnature, tornando-o
46
suscetível de nulidade ou anulabilidade? Contrariou direito líquido e certo do cidadão?

O juízo de valor sobre a conduta do agente da Administração, quando submetido a


julgamento nas Cortes de Contas, é privativo delas por força constitucional e não pode
decorrer daí, como não decorre de nenhum julgamento, ofensa a direito, desde que exercido
esse poder com base em lei.

Cabe obtemperar que, se no desenvolvimento desse processo for violada uma lei – seja a
Lei Orgânica do Tribunal, seja uma outra norma aplicável ao caso, por força de remissão ou
pela natureza do negócio -, nascerá para o envolvido o direito subjetivo da tutela judicial,
retornando os autos à apreciação judicial. Daí a capital importância de desenvolver as
tomadas de contas segundo as normas estabelecidas em lei.

45
ALVIM, Arruda. Os limites existentes ao controle jurisdicional dos atos administrativos. Revista dos Tribunais -
RT, São Paulo, v. 99, p. 152, 2000.
46
CRETELLA JUNIOR, José. Dos atos administrativos especiais. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 448.

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Diretamente relacionado ao exposto, sustenta Manoel Gonçalves Ferreira Filho que a
importância prática do art. 5º, XXXV, da Constituição Federal: 47

Está em vedar que sejam determinadas matérias, a qualquer pretexto, sonegadas aos tribunais, o
que ensejaria o arbítrio. Proíbe, pois, que certas decisões do executivo, que devem estar jungidas
48
à lei, escapem ao império desta, eventualmente, sem a possibilidade de reparação.

As decisões dos Tribunais de Contas devem estar jungidas à lei e a verificação desse fato
pode ser provocada pelo interessado junto ao Poder Judiciário, por meio de ações próprias.
Não se trata, portanto, de “recursos judiciais” das decisões dos Tribunais de Contas, mas de
ações que buscam uma tutela específica, sendo que aquela expressão somente se admite
porque consagrada na linguagem coloquial.

As ações judiciais poderão acarretar a nulidade da decisão do Tribunal de Contas,


desconstituindo os efeitos ou a alteração afetando o mérito, colocando-se em plena
desarmonia ou conflito com a decisão administrativa.

9 Tipificação das decisões proferidas pelos tribunais de contas

Eduardo Lobo Botelho Gualazzi asseverou que “a instituição Tribunal de Contas tem, no
Brasil, em súmula, funções consultivas, verificadoras, inspetivas, fiscalizatórias, informativas,
coercitivas, reformatórias, suspensivas e declaratórias”49

Independente da função exercida pelo Tribunal, a natureza de suas decisões pode ser
dividida em quatro grupos, 50 a exemplo das decisões judiciais, a saber: declaratórias,
constitutivas, mandamentais e condenatórias.

Quanto às do primeiro gênero, à semelhança do que se passa com as sentenças judiciais


declaratórias, não contêm eficácia inovadora da situação jurídica ou da matéria de fato
preexistente, visto que apenas reconhecem, chancelam ou atestam aquilo que restou
aprovado no decorrer do processo.

Normalmente, tais decisões têm como objeto atos jurídicos que, tendo percorrido as etapas
pertinentes no âmbito da Administração, vêm a ganhar definitiva permanência ao receberem
a chancela do controle externo exercido pela Corte de Contas. 51

Há semelhança com as decisões judiciais meramente declaratórias, em que o móvel jurídico-


base é a pretensão de eliminação de uma incerteza (objetiva, jurídica e atual) acerca de uma
dada relação jurídica ou sobre a autenticidade de um documento.

Quanto às decisões de natureza constitutiva, o julgamento do Tribunal de Contas implica


uma inovação, uma criação, de forma que pode ocorrer que uma determinada situação não
existia e passe a existir após a decisão ou vice-versa, de modo que o status quo passa a ter
outra configuração após o crivo do Tribunal.

47
“A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
48
FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves. Comentários à Constituição brasileira de 1988. São Paulo: Saraiva,
1990. v.1, p. 55.
49
GUALAZZI, Eduardo Lobo Botelho. Regime jurídico dos tribunais de contas. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1992. p. 199.
50
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Sobre a execução das decisões proferidas pelos tribunais de contas,
especialmente a legitimação. Revista dos Tribunais – RT, São Paulo, v.86, n.743, p. 77, 1997.
51
Diferentemente do que se passa nos chamados atos administrativos complexos, que demandam mais de uma
vontade ou mais de um agente partícipe para se completarem e produzirem os efeitos que lhes são próprios.

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 84, p.171-194, abril./maio, 2007 190


Um exemplo de tal gênero de decisão é a que é dada no processo de exame de contratos
firmados pelo Poder Público: quando eivados de vício insanável, de sorte a não comportar
convalidação, podem ser tornados insubsistentes pelo Tribunal.

A rigor, as decisões desse gênero não contêm um comando, uma determinação para que se
faça ou se deixe de fazer, e isso pela peculiaridade de, por meio delas, já ocorrer desde logo
a produção de efeitos que lhes são próprios.

Já as de natureza mandamental são as que se assemelham às de natureza idêntica no


processo judicial e que remontam a julgamentos de alta carga impositiva, como é o caso do
artigo 102 do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), que do professor Kazuo
Watanabe, recebeu os seguintes comentários: “O provimento final, se procedente a ação,
deverá se constituir numa ordem ou num mandamento, dirigido à autoridade responsável
pelo Poder Público competente para adotar as providências preventivas mencionadas. O
Magistrado deverá fixar um prazo razoável, segundo a peculiaridade de cada caso, para o
exato cumprimento da ordem pela autoridade competente. Seu descumprimento fará, antes
de qualquer coisa, configurar o crime de desobediência, previsto no art. 330 do Código
Penal”. 52

No âmbito dos Tribunais de Contas, há decisões que parecem ser de tal natureza, como,
verbis gratia, a que determina a cessação de acúmulo ilícito de cargos públicos, a que
determina a supressão de gratificação funcional incompatível com certo cargo ou função
bem como a que determina e instala auditoria em órgão público, ante a evidência de indícios
de irregularidade e assim por diante; de forma que nos comandos ali encerrados, figura
antes um imperium do que uma cognitio, à semelhança dos provimentos jurisdicionais da
mesma natureza. 53

Finalmente, as de caráter condenatório, que são, para o presente estudo, as mais


importantes, vez que as decisões meramente declaratórias, porque à mingua de um
comando, valem apenas como preceito, pronunciando a existência ou inexistência de uma
relação jurídica; e ainda, as de natureza constitutiva promovem de plano a alteração do
status quo ante, ou seja, a inovação na situação jurídica anterior, dispensando a execução; e
as de cunho mandamental, por serem criadas para se cumprir, simplesmente dispensam um
processo de execução, no sentido próprio do termo.

Portanto, nota-se que, a exemplo da tipificação da natureza das sentenças jurisdicionais, as


proferidas pelos Tribunais de Contas também possuem um comando normativo que dão
noticia da natureza jurídica do dispositivo ali plasmado. São, assim, os Tribunais de Contas,
órgãos complexos, com atribuições bem delimitadas, com poderes específicos, inclusive
para declarar a inconstitucionalidade de atos emanados do Poder Público e ainda sustar a
execução de contratos, por exemplo, constituindo-se como um importante instrumento para
o controle da Administração Pública.

10 Conclusão

Em conformidade com a doutrina majoritária, as decisões proferidas pelos Tribunais de


Contas não produzem coisa julgada vez que os aludidos Tribunais não possuem função
jurisdicional. Deste modo, o julgamento das contas dos administradores está sujeito a
recursos, de forma que resta impossibilitado o enquadramento das Cortes de Contas como

52
WATANABE, Kazuo. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1993. p. 565-566.
53
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Sobre a execução das decisões proferidas pelos tribunais de contas,
especialmente a legitimação. Revista dos Tribunais - RT, São Paulo, v.86, n. 743, p. 79, 1997.

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 84, p.171-194, abril./maio, 2007 191


órgãos jurisdicionais ou detentores de plena jurisdição, segundo assevera o autor Bruno
Lacerda.

Podem, portanto, as decisões das Cortes de Contas, ser objeto de análise junto ao Poder
Judiciário, por intermédio da aplicação do princípio da inafastabilidade judicial e ainda
conforme previsão da Lei Complementar nº. 64/90 (Lei das Inelegibilidades), que no art. 1º, I,
g, prevê a interposição de ação judicial contra a decisão condenatória de Tribunal de Contas,
visando à desconstituição da condenação, com a possibilidade de serem discutidos os
detalhes do julgamento que se busca desconstituir.

Independente da função exercida pelos Tribunais de Contas, a natureza de suas decisões, a


exemplo das decisões judiciais, pode ser dividida em quatro grupos: declaratórias,
constitutivas, mandamentais e condenatórias, resultado de uma série de atos preparatórios
de uma decisão final da Administração Pública, que vise à adequação dos fatos a si postos,
frente às diretrizes estabelecidas em lei, numa forma de se buscar, como observância ao
princípio da anterioridade e legalidade, pautar os atos da Administração Pública, como um
todo, ao ordenamento jurídico.

São, por conseguinte, títulos executivos extrajudiciais as decisões proferidas pelos Tribunais
de Contas da União ou dos Estados que impliquem condenação de natureza pecuniária, de
sorte que o Judiciário poderá deter-se no exame da legitimidade do procedimento
administrativo e dos atos que resultarem na criação do título, podendo, inclusive, negar
validade e eficácia executiva aos que não apresentem os indispensáveis requisitos exigidos
pela respectiva lei autorizadora, bem como aos que não se conformem dentro da noção de
razoabilidade e proporcionalidade.

No entanto, é importante enfatizar que a apreciação por parte do Judiciário se dá somente


quando houver lesão ou ameaça a direito, uma vez que o julgamento sobre contas por parte
do TCU, decidindo a regularidade ou irregularidade, é soberano, privativo e definitivo,
conforme assenta Jorge Ulisses.

Soberano porque não se submete a outra Corte revisional. Sendo as Cortes de Contas
independentes frente ao Legislativo, Executivo e Judiciário, suas decisões em sede de
contas, cuja competência lhe foi deferida pelo constituinte, com exclusividade, não poderia
ser subalterna a qualquer dos poderes, sob pena de, diante do caso concreto, permitir a um
órgão cujas contas fossem julgadas irregulares, rever por si próprio a decisão.

O julgamento dos Tribunais de Contas é também definitivo, observados os recursos


previstos no âmbito desses colegiados. Esgotados os recursos ou os prazos para a
interposição, a decisão é definitiva, não sujeita à revisibilidade de mérito pelo Poder
Judiciário.

Assim, o principal fundamento para a impossibilidade de apreciação do mérito do ato


discricionário pelo Judiciário é o argumento segundo o qual o magistrado não pode impor ou
sobrepor seu próprio juízo de conveniência ou de oportunidade no lugar do Tribunal de
Contas da União, visto que exercer suas atribuições de forma autônoma, outorgadas pelo
Legislativo. É relevante lembrar que os atos administrativos são submetidos ao princípio
fundamental da legalidade, buscando ainda a realização de uma finalidade pública prevista
na lei, de forma que, se uma demanda for ajuizada, buscando a verificação da adequação do
ato com uma das hipóteses contempladas no ordenamento jurídico, ao Judiciário cabe
constatar tal adequação.

Por fim, é interessante mencionar que quanto ao ato administrativo, Arruda Alvim leciona:

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O Judiciário não pode adentrar aquele juízo, aquela esfera de liberdade típica e própria do
Administrador, e, desde que este juízo tenha sido realizado dentro do espectro possível do
exercício dessa liberdade, vale dizer, desde que exercida esta liberdade, pelo Administrador,
54
dentro do âmbito da lei, não há a possibilidade de alteração do ato.

Tribunal de Contas da União and the juridical nature of its decisions

Abstract: This article describes, throughout systematic and logical studies, the juridical
nature of the decisions pronounced by the Tribunal de Contas da União, contrasting the
opinion of some authors in relation to the duality about its nature, if it’s Juridical or
Administrative, as well as the relevant theses supported by some writers. It also mentions a
breve historical about this institution and also the possible interference from the Juridical
Power when the legality is not being respected.

Keywords: Administrative Process; Judicial Estoppel; Judicial Power; Jurisdictional Control


of the Administrative Acts; Legality; TCU

Referências

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Revista Jurídica
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/revistajuridica/index.htm

Artigo recebido em 30/04/2007 e aceito para publicação em


31/05/2007

A Revista Jurídica destina-se à divulgação de estudos e trabalhos


jurídicos abrangendo todas as áreas do Direito.

Os originais serão submetidos à avaliação dos especialistas,


profissionais com reconhecida experiência nos temas tratados.

Todos os artigos serão acompanhados de uma autorização expressa


do autor, enviada pelo correio eletrônico, juntamente com o texto
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Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 84, p.171-194, abril./maio, 2007 194

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