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A Bauhaus © momento sem divida mais representativo da questéo construtiva na primeira metade do século foi a Bauhaus, Desde sua fundagio em 19t9, durante a Repiblica de Weimar, na Alemanha, até seu fechamento em 1933, com a ascensio do nazis- mo, a Bauhaus foi a sintese das ideologias construtivas na arte pos-cubista, a0 mesmo tempo em que tencionava estabelecer-se como um posto avangado da penetragio dessas ideologias na sociedade, Fra um projeto amplo que incluia a criagio de métodos didaticos de transmisséo da arte e possuia, implicita, uma proposta pritica de integragao social da arte. Tratava-se, em linhas gerai, de Fundar uma estética da civilizagio contemporanea que virla @ Informar todas as suas ati- vidades. © objetivo era a utilizagio racional, humana e esteticamente progressista dos amplos recursos industrials modernos. A arte deixaria, afinal, 0 seu tradicional terreno especulativo, ingressando na tarefa de organizar o meio ambiente, Sindnimo de racionalismo no campo das artes (apesar de abrigar artistas como Klee ¢ Kandinski), a Bauhaus tornou-se também uma espécie de posigéo “natural”, moderna e progressista, quando se pensa nia relagio arte e sociedade. Herbert Bayer Como atesta a Escola de Ulm, com as anos ¢0, 0s principios bisicos que NO iabero “universal” tearam a agio da Bauhaus permaneceram como o horizonte da pritica e dos Banhaus 1926 Interesses teéricos da quase totalidade mente até 0 inicio da década de 60. AS . fae ce ee abcd efghi imine ge pecan oc RTI OPE pacio do artista na pritica de construgio enenoertiere aa cement STUVWXYZ principal das propostas constrativas em. sua tentativa de estabelecer uma fungio ositiva para a arte no espago social. sTurm blo, fall Isso apesar de tudo, apesar de a reali- i fas dade das sociedades capitalisas demonstrar, insofismavelmente, 20 longo de algumas décadas, o que significava precisamente a participagio dos artistas na producio: o final de suas preocupagées com as fangoes da forma enquanto pritica estética e organizadora, ¢ ‘0 ingresso numa area de competicio e de apelo a0 consumo, a forma representando uma pressio autoritéria e classista,trans- formada em dispositivo de distribuigio de status. O sonho do design, o seu projeto de “espiritualizacio” do cotidiano, o seu desejo de criar uma transcendéncia para o ambiente moderno, revelaram-se afinal como 0 resultado de um raciocinio grossei- JULI - SEPTEMBER i923. ramente positivista € pequeno-burgués. Foram_assimilados « pelo sistema enquanto agentes mecinicos da reparti¢io do espago social em niveis de consumo, em mundos tangenciais Vasily Kandinski que manipulam o desejo das classes segundo o imperativo da ascensio. E servem Caio postal para a exposigio da Bauhans em Weimar 1923 a uma estratégia do capitalismo contemporineo de canalizar as singularidades, mesmo as perversas, para o interior dos dispositivos de consumo, produzindo o simulacro da libertagio sexual, por exemplo. A partir do design & possivel fazer uma anilise das ideologias construtivas, € de sua profunda cumplicidade com a propria sociedade dentro da qual preten- dia operar transformagdes, © processo critico da Bauhaus esté em pleno curso e se concentra, muitas vezes, na prépria esséncia de sua politica cultural. Vejamos 6 que diz Comunicacién em seu volume sobee a Bauhaus: Lszl6 Moholy-Nagy entificando a marginalidade real do artista com a argumentagio ideolégica Sobrecapa do lvra Auubausbaueen, de Gropins, da colegio do romantismo oficial, Bauhaus pensava construis una altermativa racionalista adequada as exigincias de “humanizacio" da tecnologia industrial. Uma arte Bauhavsbicher 1930 racionalizada era. a garantia do compromisso sociale tinico meio de salvar "o Jamentivel abismo entre a realidade e o idealisino” (Gropius). As contadigées dessa colocagio come gam com 0 uso instrumentalizado, meta-histrico, de conceitos bsicos: a Bauhaus propés como razio € como exigéncias da realidade social 0 que era apenas 2 ideologia da classe no poder e os interes ses da produgio capitalista, ‘A Bauhaus, € claro, foi a solusdo historicamente possivel para os movimentos construtivos da primeira metade do século. © seu reformismo, 0 seu modo mecinico de estabelecer vinculos entre 0 trabalho ¢ o restante da produgio social resultaram menos de opgées politicas e pessoais de seus agentes do que das pres- ses estruturais que recebiam na posigdo em que se encontravam. Bssas pressbes estruturais 36 fizeram crescer com a segunda metade do século (¢ com desenvol- vimento do capitalismo, ¢ 6bvio), levando ao surgimento de uma fissura dentro das tendéncias construtivas e descaracterizando completamente algumas de suas propostas mais conseqiientes. E€ sem diivida no meio dessa fssura que aparece € evolu o neoconcretismo. 0 construtivismo soviético Embora preso de certo modo aos mesmnos limites de procugio que caracteriza- vam as ideologias ocidentals, é ficil perceber que 0 construtivismo russo (1920) se movimentava num ambiente diverso e produzia efeitos de outra ordem. Nao apenas estava a frente no que se relacionava & experiéncia social da arte — uma vez que, por um momento, surgiu um leque de possibilidades nessa diregéo — como seu proprio projeto de produgdo de arte tinha intengdes materialistas especificas Enquanto Seuphor, por exemplo, argumentava com base em um raciona- lismo ingénuo, se nio mitico; enquanto 0 grupo De Stijl especulava sobre a nova Harmonia Universal, vagamente inspirado pelos delirios teoséficos de Shoemaker; 8 construtivistas soviéticos (chamando de construtivistas néo apenas o grupo de Tatlin e Rédichenko, mas as tendéncias em debate entio, os produtivistas etc.) procuravam avangar no sentido de incorporar 0 materialismo dialético a essa regido da atividade humana que, por tradigo, confinava com a religido: a arte A questio era pensé-la e produzi-la de um modo materialista. Ougamos Alexei Gan, em O construtivismo: AA primeira consigna do construtivismo é a seguinte: abaixo a atividade espe- culativa no trabalho de arte, Declaramos uma guerra sem quartel 4 arte Alexander Rédtchenko Constragio espacial 20m A arte nunca foi algo distinto dos produtos surgidos da mio do homem, nunca foj eterna nem foi estabelecida de uma vez por todas, Suas formas, seu significado social, seus meios e seus objetivos foram se modificando 4 medida que mudavam as técnicas € os sistemas econémicos, sociais e politicos que condicionavam as diversas fases do desenvolvimento da sociedade. A arte esté indissoluvelmente ligada 4 teologia, a metafisia, a mistica: os marxistas devem esforgar-se para explicar cientificamente a morte da arte € formular os novos fenémenos do trabalho artistico no novo ambiente hist6- rico da nossa época. A teoria do materialismo histérico, na qual se baseiam os constrativis- tas para aprender a historia em geral e as leis fundamentais do processo de desenvolvimento da sociedade capitalsta, serve também como método para 6 estudo da histéria da arte. Esta ltima ~ como aliés todos os fendmenos sociais ~ produto da atividade humana, condicionada portanto ao ambiente técnica ¢ econdmico onde nascen e se desenvolveu, Mas, a0 encontrar-se em relagio direta com a arte, os construtivistas ~ no processo geral de estudo, ‘com suas roupas de trabalho ~, criam também pela primeira vez a ciéncia da historia do desenvolvimento formal da arte. Como se vé, © construtivismo soviético desloca a questio central das tendéncias construtivas ocidentais: esta passa da estética para a politica, da organizagio estética do ambiente para a construcio politica e ideolégica de uma nova socie- dade, © sentido positive que a Bauhaus, por exemplo, pretendia dar a0 ensino da arte e 4 sua integracio social permanecia idealista (formalista) comparado ao projeto cons- trutivista, Nao s6 porque para as tendéncias ocidentais a arte seguia confinada a uma autonomia mitica ~ havia sempre regras produtivas, como o esquuema horizontal-vertical, que eram promovidas a paradigmas metafisicos —, mas também porque a sua projesio social ocorria, como vimos, no terre- no do estético. A arte nio cumpria, nio se pensava que pudesse cumprir, um papel de alguma forma politico. Nao 138 abe eexistiam, por assim dizer, classes sociais para as tendéncias construtivas ocidentais, ‘mas téo-somente a humanidade, 0 progresso linear da humanidade em uma civi- lizagdo cientifica e tecnolégica. Ao contrario, o construtivismo soviético evolufa num ambiente que forcava a uma atitude politica ante o trabalho de arte. Tratava-se de colocS-la em alguma regido da atividade revoluciondria ~ ou entdo entregé-la de vez as forgas reacio- nérias, combaté-la como instrumento dessas forgas. Por isso, quando se falava naquele contexto em “organizar a vida" , nfo se pensava apenas em racionalizar a presenga do homem no interior da economia industrial. A politica, as manobras politico-ideologicas necessérias € que orientavam a agio dos artistas, obrigados {a se posicionar de um modo, digamos, ndo-artistico, com relagio a sociedade. A arte nio era apenas uma atividade estética e humanizadora: era também um dispositivo ideolégico pertencente & sociedade burguesa, sobre o qual se devia investir. O objetivo era romper o seu estatuto tradicional, transformar suas fun- Ges ideologicas, Dessa maneira, gragas as condigdes especificas nas quais operava, 0 cons- trutivismo sovitico pode ser analisado como 0 momento mais agudo na seqiién- cla das tendéncias construtivas da primeira metade do século. Foram suas as propostas mais produtivas sobre os pontos determinantes da questo: 0 modo EI Lissizki Hise suprematise, de dois quadrados Apigina do lero Impresso em 1922) nian como a arte deveria se inserirsocialmente e em que diresio, a © 6 modo como seria produzida, em oposicio aos seus tra- & | dicionais mecanismos intuicionistas e para-religiosos, Ao inscreverem a participagio da arte numa luta politica ¢ ideoldgica concreta, e num sentido bem mais amplo do que simplesente como material de propaganda, 5 construtivistas produziram uma ruptura decisiva, em dois lances: 0 primeiro com respeito 4 posicio da arte na sociedade burguesa, abrindo caminho para que escapasse a0 confinamento do estético; € 0 segundo, corolirio do Primeiro, permitindo que se pudesse pensi-la no campo ean das transformagées ideolégicas. Fra a manobra da ideologia dominante ~ a arte pela arte (leia-se: a arte restrita a. um espago social fechado e destinada a cumprir um percurso ircular) — sendo desmontada em seu eixo bisico. Tomando radicalmente o Pressuposto construtivo ~ a inteligibilidade universal do trabalho plistico — os revolucionarios soviéticos Iutavam para transformar a arte num instrumento social cuja prética estaria ao alcance de todos — do desejo de todos — desobs- tuida por instituigdes e separacdes de classe. O projeto construtivista soviético era largamente coletivista, mas ndo autoritirio: a arte permanecia uma manifes- tagdo de singularidades, e ndo mais de individualidades (resultante de conceito humanista de individuo) Um estudo comparativo mais rigoroso poderia explicitar as operacdes especificas pelas quais 0 construtivismo soviético eludiu em parte o reformismo caracteristico do movimento construtivo ocidental. Para nés, interessados sobre- ‘tudo na penetragio da ideologia construtiva no Brasil e, mais especificamente, na Posi¢io neoconcreta diante dessa ideologia, esse estudo é claramente impossivel Mas ndo seria, certamente, initil: tudo 0 que disser respeito is “politicas” em 4questio no interior do projeto construtivo esclarece ¢ ajuda a situar muitas vezes © inconsciente de cada movimento, as suas posigdes de classe no conscientes, os limites enfim que demarcam sua pritica 2s Limites do projeto construtivo Reconstituido rapidamente o trajeto construtivo iniclal, em cuja seqiléncia 0 coneretismo e o neoconcretismo tomam lugar, & possivel discursar sobre os seus limites enquanto teoria de produgio € enquanto proposta de ago cultural. limite das tendéncias construtivas, emergindo como afirmario da racionalidade € da crenca no progresso, o lugar a partir do qual perdem a inteligencia da situa- 0, foi representado historicamente pelo dadaismo e pelo surrealismo (em que pesem as significativas divergéncias entre eles). Dadafsmo e surrealismo sao “o outro” das tendéncias construtivas. Pode-se analisar esse par ~ construtivismo (no sentido amplo), de um lado, dadaismo e surrealismo, de outro ~ como res- postas culturais articuladas de modo diverso tendo em vista uma mesma situacéo: a faléncia dos valores (estéticos, filos6floos, morais) do século x1x e 0 confronto com a realidade nio-ortodoxa, a realidade que explodia os limites do raciocinio vigente, do século xx, Seria simples demais, seria belo demais reduzir mais uma vez um anta- gonismo cultural 2 um par que afinal se autocomplementaria: a5 tendéncias, construtivas representando a tradicional corrente apolinea, € 0 dadaismo © 0 surrealismo, a corrente dionisfaca. A posicio de estudo mais produtiva parece ser, no caso, analisé-las enquanto tentativas relativamente incapazes de compreender € agir sobre uma situacio que escapava visivelmente em muitos pontos a seus programas. & preciso pensar as margens desses movimentos ~ 0 branco que se interpés entre eles e a realidade sobre a qual operavam — assim como assinalar as suas positividades e as possibilidades que inauguraram. Nao é possivel analisar extensamente aqui as diferencas entre eles; vejamos apenas as suas diregdes, A racionalidade funcionalista dos constrativos percebia as. propostas dadaistas © surrealistas como 0 prolongamento do conte‘ido metafisico dos expressionistas ¢ de seus esquemas formais retrogrados, Detectava, com muita propriedade, os vinculos que ligavam essa vanguarda as concepgdes expressio- nistas, is fronteiras conceituals e ideol6gicas dessas concepgdes. Daf rejeité-las enquanto formulagdes culturais e situé-las como focos de reagio a uma mentali- dade artistica progressiva, f Sbvio que isso nio se passava no plano das obras de artistas isolados ~ & sempre possivel 1é-las de maneira diversa, dependendo do Jean Arp Ligrimas de nak (Formas rercesres) 1917 Jean Arp Formas expressivas 1932 ponto de vista em que se coloca o observador. Assim, Kurt Schwitters, dadaista, tinha evidentes ligagdes com 0 projeto construtivo; Jean Arp foi dadaista e expds sempre ao lado dos surrealistas e dos construtivistas, A distincia entre os movi- ‘mentos deve ser estabelecida a partir de consideragSes mais amplas, da ordem de tuma politica cultural : As tendéncias construtivas, é claro, tinham de inicio uma posisio de lei- tura da histéria da arte bastante pertinente. Posigio ligada entre outras coisas a0 movimento continuo do saber ocidental no sentido da cientifizagio de seus postulados ~ da progressiva consciéncia, digamos, epistemolégica da necessi- dade de formalizar com rigor os dados de cada area do conhecimento. O seu desejo era sobretudo regular, objetivar, esclarecer e, afinal, aplicar. Mas, apesar de formarem 0 chamado “movimento moderno”, apesar de seu projeto moder- nizador, apesar da valorizagio do experimental na manipulagio das linguagens, do seu ataque aos esquemas dominantes, permaneciam claramente presas i racionalidade e ao humanismo liberal t{picos do século x1x. A prova disso é que ‘mesmo suas manifesta es mais tardias — ji ma década de 50 ~ n3o conseguiram assimilar em seus dispositivos duas teorias fundamentais do século 2x ¢ que se caracterizaram justamente por romper com os limites do século x1x: a5, teorias de Marx e Freud, De um modo geral, 0 projeto construtivo se imaginava a continuagio do sono do século XIX, transportado para 0 dominio da cultura ~ € da arte. Nao havia propriamente um rompi- mento em relagio ao mundo do sujeito carte- siano, 20 mundo da “objetividade” ideolégica e da razio: as transformagoes construtivas exam locais, ocorriam no interior das linguagens, no alcangavam 0 estatuto social dessas linguagens enquanto priticas. O seu desejo social ou bem era da orden do ut6pico, se nio do delizante, ‘ou aspirava a uma integragio funcional ne modo de produgio dominante, A inserigio construtiva no era, a rigor, critica, Isso explica em parte @ sua incapacidade estrutural de compreender aspectos do surrealis- ‘mo e, especialmente, do dadafsmo (e de Duchamp em particular) no registro correto, Foram esses aspectos, fora de diivida, que serviram de suporte a emergéncias eriticas surgidas mais ou menos com ‘0s anos 60, uma parte delas recebendo inclusive 0 rétulo de neodadafsmo. Estio relacionados sobre- tudo com um desejo de explodir a arte enquanto pritica social sublimadora ~ ¢ conformista — e de se colocarem numa posi¢éo de combate contra a propria ordem social. Na origem do desejo dadafsta ¢ surrealista estava a rerusa 2 pensar a arte € a Iteratura—a cultura mesmo ~ fora do contexto social ¢ politico © até de estabelecer uma reflexdio auténoma para cada disciplina, Bram até certo ponto iredutivets 20 seu corpo de idéias e as suas proprias produces, na medida em que aspiravam a um movimento de transgressio ¢ violénela que os ultapassava Hiavia algo no dadaismo, por exemplo, que fazia parte da necessidade de escapar a0 cerco da racionalidade ocidental. Sera, por assim dizer, o heterogéneo, «9 sebagem, o gratuito e irracional que tinham paradoxalmente uma fungio ideo- 1égica evidente:significar uma posisio critica global perante o sistema. O que 6 dadaismo colocava em xeque nio era apenas a linguagem da arte, ou a fungio ‘da ane, mas sobremdo 0 estatuto da arte, os modos de relagio vigentes entre 0 trabalho de arte « a vida social, As utopias surrealista e dadaista (nesse pomto é sempre possvel aproximlas) difere radicalmente da utopia construtva: esta It sna respeita,em linhas gerais, a loglea capitalista, 0 seu mével a acionalizagio ¢ 4 umanizagio das relagdes sociais vigentes; a primeira esti ligada confusamente 2 tam projeto rewhucionirio, no minimo 2 uma Iota contra as estruturas de poder. ‘As tendéncias construtivas, 4 excecio do construtivismo soviético, eram 0 préprio resultado de seu wabalho. Busezvam a delimitagdo de um campo opera- ional e o reconhecimento social para a autonomia desse campo, Nos limites em que se propunham era impossivel a seus agentes se posicionarem criticamente Kurt Schwitters Merz (com as leras elikan” repesins) 1925 em relacio & sociedade ~ como trabalhadores especializados, tinham um contato distante com a politica, que permanecia win ideal, muitas vezes um ideal socia~ lista, diga-se. Para esses ingémuos racionalistas, cultura era principalmente um fator de progresso da civiliza¢io, € ndo um espago social onde ocorriam trans- formagies Ideolbgicas, © desejo revolucionario que estava em jogo no dadaismo: eno surrealismo, que levava & concepeao de manobras criticas que procuravam (também ingenuamente, é claro) atingir 0 conjunto do campo social, s6 esteve presente (¢ sob formas bem concretas) no construtivismo soviético. As ten= déncias construtivas ocidentais limitaram-se praticamente a fazer reivindicagbes. E nos moldes vigentes De um modo geral, os agentes construtivos exorcizavam o “outro” dadafs- mo € 0 “outro” surrealismo com uma palavra migica: romantismo, Reduziam: as complexas expectativas, positividades e fracassos deles emergentes 2 simples residuos romanticos, a sobrevivéncias anacrOnicas causadas por alguma falha essencial em perceber 0 espirito moderno, a evolugdo da sociedade e da indus- trializagio. O proprio Manifesto Neoconcreto, em pleno ano de 1959, classifica © “par maldito” de retrégrado e reacionario. B, sem divvida, as coisas ndo slo t30. simples e faceis de resolver. Nio hi diivida de que, no campo da producdo visual, 0 surrealismo sempre se caracterizou pela manutengio de esquemas formais gastos e ligados 4 ordem perspectivista. A grande positividade do movimento construtivo foi empreender a liquidagio dessa ordem © com isso permitir © surgimento de leituras contemporaneas aos sistemas de significagio especificos da sociedade: moderna, Enquanto o retérico surrealismo privilegiava a metéfora como recur so de representa¢do, 05 construtivos Iutavam justamente para romper 0 espaco’ metaférico em que estava encertada a pintura e para estabelecer uma teorla da producio visual, desligada jé da representacZo. Enquanto 0 surrealismo manti- nha-se vinculado a uma concepdo mitica do trabalho de arte, os construtivos representavam um esforgo para torné-lo uma produgao metédica, compreendida € transmitida como linguagem especifica ‘Mas é impossivel ignorar a operagio surrealist no conjunto do campo cultural: as questdes levantadas pelos dispositivos erfticos de Breton Bataille toram mnuitas vezes infantis ¢ reformistas as teorizagdes de Seuphor ou, mais tarde, de Max Bill. Um pintor tio aparentemente académico como Magritte é hoje ‘uma abertura tio importante de ser estudada como a de Mondrian, por exemple. (© que a linguagem dadi e a linguagem surrealista filavam s6 podia ser calado pelas tendéncias construtivas: significavam 0 escindalo, a morte da 1a2o, © pes- simismo ideolégico, a descrenga no progresso linear que tentavam construir. Para além, muito para além dos seus indcuos frutos underground, ¢ obviamente de sua exploragéo pelos mass media (seja 0 de Salvador Dali, seja o da indiistria cultural norte-americana), 0 surrealismo colocou questdes decisivas, para a pritica da arte inclusive: a questo do desejo na produgio, a telacZo arte ¢ politica, a solidarie- dade da institnigio arte com a ordem burguesa, o inconsciente freudiano etc. Por meio do surrealismo, as tendéncias construtivas recalcaram o pensa- mento de Freud. Ficaram 4 margem do radical deslocamento do sujeito carte siano trazido pela psicanalise, presos & antiga concepsio racionalista do século Ix. Se de certo modo os surrealistas leram mal Freud ~ “romantizaram" Freud — ‘os construtivos nio chegaram a ele, E seguiram atrelados a uma idéia mecinica (as vezes deliramtemente mecinica), objetivista, do processo de produgio em ante! 0 sujeito-artista que se pode reconhecer implicitamente em seus projetos é 0 mesmo sujeito da ciéncia do século x1x, dominado pela ideologia do saber objetivo € inconsciente das implicagdes decorrentes de sua propria posicio na produgdo desse saber. Pode-se dizer que as tendéncias construtivas substituiram, a concepgio romintica ¢ mitica do artista inspirado ~ 0 idealismo clissi¢o — por outea, empirista: a idéia do artista como produtor especializado, sem outras transcendéncias ou implicagdes. Essa concepgio “positivista” da pritica artistica impedia a compreensio rigorosa do seu significado nas sociedades capitalistas do século xx. Falhava de inicio em nfo perceber a posigao da arte no conjunto do campo cultural e suas implicagdes ideologicas. Nao chegava a imaginé-ta como algo além de um exerci- Gio estético, ou de informagio visual. Iso 6, ndo conseguia enxergé-la como aqui- Jo que era: um dispositive, uma instituigfo, um circuito mais ou menos fechado, com histéria formalizada (a famosa historia da arte) e um mercado especifico Marcel Duchamp Standard Stoppages wyis-ts Duchamp Marcel Duchamp, evidentemente, nao poderia ser um artista construtivo (embo ra nio fosse surrealista, apesar das ligagdes com Breton). Estava colocado desde lum ponto de vista critico diante da arte, entendida j4 como instituicio social que possuia leis prdprias e cumpria determinada fingio. Pensava o museu como algo mais do que um repositério de obras, a prépria moldura da presenga social da arte. A ruptura de Duchamp esti em sua propria posigio perante a arte — no ato mesmo de pensi-la enquanto sistema integrado a0 campo ideolégico da sociedade. Néo sé jamais se questionou sobre uma participagio da arte na reali za¢io do novo ambiente ~ cere do projeto construtivo ~ como descartou-se do mito da pesquisa formal: pot compreender as regras de funcionamento da insti- tuigéo-arte, Duchamp ndo investigava formas para o objeto de arte, pesquisava diretamente formas de fazer arte. Formas de transformar suas idéias em produtos artisticos que tivessem um didlogo eficaz com a instituigio. © sujeito-artista Marcel Duchamp nao é sem diivida mais uma vitima da ideologia do saber racional do século 1x: sabe que esti implicado num modo de conhecimento que nio se desenvolve alheia e platonicamente aos seus vinculos sociais; sabe que ser artista é tomar parte em um jogo com regras estabelecidas e que aarte é resultado de investimentos sociais concentrados sobre certa atividade, que nio pode ser definida por operagdes técnicas, mas que pode ser individua- lizada, sem confundir-se com as ciéncias fisicas ou, digamos, com a culinaria. Dai 4 possibilidade de compari-lo com Marcel Mauss como fiz Marc le Bot Sua iniciativa, quando inventa 0 readymade eo introduz no museu, deriva de alguma maneira da sociologia ou da etnologia experimentais. Porque a sua démarche, naq} Ja data, parecia dar razo a0 que Marcel Mauss dizia em subs- tincia no mesmo momento: que era objeto de arte aquele que o grupo social reconhecia como tal no seu sistema de valores. (L'Arc, “Marcel Duchamp") A posicio do sujeito-artista Marcel Duchamp possivelmente a posicio diante do diapositivo-arte que se pode extrair do dadaismo representa um passo adiante com relacio as colocagbes construtivistas. Um passo adiante em ditecdo ao enten- imento materialista da prética da arte na sociedade contemporanea, seus limites e sua possivel eficicia ideoldgica. Entre outras coisas, o dadafsmo inaugurou uma velocidade experimental, uma mobilidade com vistas 4 criagio de novos esquemas, que acabou por se tornar para o artista contemporineo uma necessidade imediata’ 6 sua obrigagéo andar mais depressa do que o mercado, aprofundando o seu tra- balho, de modo a adiantar-se ao inevitivel processo de absorgio e transformacio ideologica de seu produto, Duchamp, por sua vez, introduziu radicalmente uma inteligéncia estra- tégica no centro do proprio processo de produgio de arte, antes confinado a ‘uma posicio idealista, 2 uma relagio indevassivel entre 0 produtor e o produto. ssa relagio obedecia 4 I6gica seguinte. © contato com 0 conjunto de fatores externos que permitiam a produgio era vivido fantasmaticamente, por meio as propriedades do objeto. A arte como instituigio social, como hist6rla, se impunha autoritariamente ao seu servidor € mascarava as verdadeiras relagdes que mantinha com ele, © sujeito-artista ficava colocado muma posi¢ao em que tudo ‘© que podia fazer era aspirar a um ingresso nessa instituigio que mio ‘se apresentava como tal. Mesmo as rupturas que por acaso levasse a efeito nos esquemas de represen- tacio permaneciam simples continuidades do pomto de vista da estrutura da instituigio. © artista vivia, enfim, 0 seu papel social por meio de um sistema de mediacio opaco ~ a Marcel Duchamp y not Sneeze Rrese Sélavy 1921 instituicdo-arte — que o impedia de compreender politicamente o sentido de sua pritica. O objeto de arte se tornava, para o seu produtor, o lugar onde se projeta~ vam confusa e imaginariamente as questdes levantadas pela sua propria pritica ¢ ‘que 6 podiam emergir daquela maneira — como projesdes inconscientes, como indagagdes metafisicas ete As tendéncias construtivas pareciam nio se dar conta do cariter institu- ional, sistémico, da arte na sociedade contemporanea. Ao combaterem antigo estatuto social da arte ~ sua “irrealidade” ~ ¢ postularem uma participacio ativa na vida € no ambiente, pareciam se esquecer do mercado, por exemplo. Previam ‘uma dissolucao da arte nos varios setores da producdo industrial que nio chegou sequer a se esborar na realidade. Sem diivida, sua producio informou decisiva~ mente a arquitetura e o design, mas € necessério atentar para o nivel em que isso ‘ocorreu. O projeto global de “organizar a vida" ndo resultou em programa priti- co de nenhum govern, nem sensibilizou as indtistrias de um modo geral (a néo ser, € aro, a propria indlstria do design). E tornou-se, portanto, um ideal, um horizonte mais ou menos distante na seqiiéncia do trabalho dos artistas. Com isso, sua pritica permaneceu defasada e presa ao mesmo registro social por onde pas- sava a pritica dos expressionistas, por exemplo. O objeto de seu trabalho seguiu funcionando do mesmo modo e estabelecendo com 0 seu produtor o mesmo relacionamento fantasmitico: paradigma de algo izrealizado, futuro, especular, murmirio prenhe de significagdes mal formuladas, imaginirias, regressivas até E claro que nem Duchamp nem os dadaistas escaparam dessa situagio. Mas ampouco acreditavam que poderiam, nem basearam sua atuagio nessa crenga Inventaram, isto sim, uma nova distincia, uma estratégia de combate diferente, que esti se revelando muito mais produtiva desde a década de 60. Permitindo, se nao a positividade transformadora prescrita pelos construtivos, uma negatividade critica, uma insergio do trabalho de arte no campo dos conflitos ideolégicos € sua instrumentalizagio nesse sentido, O interesse das posigées de Duchamp, do dadaismo ¢ até do surrealismo esté provado pelo proprio desenvolvimento da produgio de arte da segunda metade do século: determinaram transformagées nas Jinguagens e nos objetivos até mesmo de tendéncias construtivas, Como ocorreu com 0 proprio neoconcretismo & o que tentaremos demonstrat, 35 Vanguardas construtivas no Brasil Teorizar sobre os efeitos do concretismo e do neoconcretismo no Brasil, nos anos 50 € 6o, é uma tarcfa parcial ¢ insuficiente. A questio decisiva, no caso, & aprofundar um estudo histérico acerca da penettagdo e influéncia das ideologias construtivas no pais, desde a década de 30, com a formagio da modema arquite- tura brasileira, até a explosio neoconcreta nos anos 60, Um estudo dessa ordem € que viria informar substancialmente as andlises das emergéncias particulares ‘ocorridas no quado em questi, E viria determinar, com rigor, 05 seus efeitos sobre o ambiente cultural brasileiro e a encontrar 05 vinculos socioeconmicos que motivaram essa penetragio. No ponto em que estamos ~ quase no ponto zero, uma vez que ndo howve uum trabalho te6rico nessa diregdo ~ é possivel apenas analisar os conceitos bistcos em jogo no par concretismo/neoconcretismo, buscar situé-los num quadro de referéncia mais amplo ¢ iniciar um questionamento critico do seu percurso na hist6ria da produgio de arte do Brasil, & claro, assinalar as significagbes (e discuti- las) da ruptura neoconcreta com alguns postulados do concretismo, A formagio mais ou. menos simultinea, no campo das chamadas artes visuais, de uma vanguarda de linguagem geométrica no Rio de Janeiro ¢ em Sio Paulo, no inicio dos anos so, obedecia a razdes sem diivida mais significativas do que simplesmente o entusiasmo por recentes exposiges de Max Bill, Calder, Mondrian, © que contou foram as presses estruturais que 05 nossos artistas € Vladimir Tilia Contra-relevo de canto 1915 intelectuais, como membros da classe média, sofreram nesse sentido, Qualquer projeto de vanguarda & sempre um esforgo para compreender € evoluir com uma situagio. Por que entio uma vanguarda construtiva? Esta é a questio bisica para a construgdo da histéria daquele periodo. Hi, inicialmiente, uma resposta limitada 20 proprio desenvolvimento da arte enquanto linguagem e enquanto produtora de esquemas formais relacio- nados a0 processo de leitura ¢ percepcio da realidade. Pode-se dizer que 0 interesse dos artistas brasileiros pelas formulagées construtivas significava de certo modo um primeiro contato, mais articulado c inteligente, com as transfor- ‘maces operadas pela arte moderna nos esquemas dominantes. Até certo ponto, no havia uma arte moderna no Brasil: nfo se tinha compreendido ainda de todo as operagdes levadas a efeito pelo cubismo e a partir dele. Tarsila, Di Cavalcanti, Cicero Dias, Guignard, Portinari sio a rigor pintores pré-cubistas, mesmo que alguns deles tenham incorporado inteligentemente elementos cubistas is suas produgées. Estavam aquém da radical transformagio proposta pelo cubismo, permaneciam presos, independentemente da qualidade e do interesse de seus trabalhos, aos antigos esquemas de representacio. E uma leitura nio aned6tica da historia da arte moderna € algo que deve se dar ao nivel dos conceitos e das rupturas produzidas nos esquemas de representagio, © nio ao nivel de uma seqiténcia cronolégica ou das transformagSes aparentes. A arte modema comeca com a ruptura do espago organizado a partir da perspectiva © segue como uma constante interrogacio sobre a natureza da relagio quadro/realidade. Cézanne-levado adiante pelos cubistas € um questio- namento dessa relagio ¢ funda uma nova posigio do artista ante 0 quadro. Os vinculos estabelecidos entre o trio artista/arte/real ficam desfeitos, passa a ser necessério repensi-los. Ao romper o esquema representacional vigente, a arte modema desloca 0 eixo de observagio tradicionalmente fixado para o sujeito- artista; este gira agora nio mais em torno de uma simples relagZo arte-realidade, mediante as convengSes, mas em torno da relagio artista-arte, tomada agora ‘como modo de conhecimento especifico. Processo mais ou menos anilogo 20 a ciéncia em sua superacio do empirismo. Nem tudo 0 que se chama arte moderna, é claro, cabe nessa denomi- nagdo. Enquanto Tétlin, por exemplo, compreendia corretamente 0 rompimento 3% do cariter metaférico por parte do trabalho de arte do século xx ¢ construia seus contra relevos — sem espa¢o interior, metaférico, funcionavam como elementos do proprio ambiente onde se inseriam ~, pintores 30 enakecidos como Rouault e Chagall nada mais faziam do que retomar a uma concep Gio representacional, a uma idéia da arte como expressio de contetidos subjetivos Kasimir Maligvtch que agiam de modo manifestamente conservador. O que no impediu, por certo, Ar#wekonik 1926-27 «que fossem chamados de modernos. No Brasil, pensamos, a arte moderna, em seus conceitos fundamentals, s6 veio de fato a ser compreendida e praticada a partir da “vanguarda construtiva” ‘Tasila, Di Cavalcanti, Guignard, Portinari, entre outros, realizaram a passagem © tiveram uma atuagio mais ou menos semelhante & dos grupos que precederam na Rissia 0 surgimento do suprematismo ¢ do construtivismo, como relata Camilla Gray, Foi na década de 50 que 0 meio de arte brasileira comegou a lidar com os conceitos da arte modema e as implicagées deles advindas, sea critica ou produtiva- mente, E é a partir do contato com esses conceitos que vio se produzir os discursos concretos e neoconeretos, com a intengdo explicita de levi-los adlante De inicio, a formulacio bisica do concretismo plistico brasileiro é a especi- ficidade da arte enquanto processo de informagio, sua irredutibilidade aos conteti- dos ideolégicos e a objetividade de seu modo de produgio, Waldemar Cordeiro, até certo ponto, dos pintores concretos de Sio Paulo, dizia Tider, A parcialidade dos rominticos, que pretendem fazer da arte um mistério uum milagre, desacredita a potencialidade social da criacio formal. © intelec- tualismo dos idedlogos, de outro Ido, atribui 4 arte tarefas que esta ndo pode ‘cumprir, por serem contrérias & sua natureza ‘Tratava-se de levar & frente o trabalho de Maliévitch e Mondrian e, mais para perto, de Max Bill e dos concretistas suigos. © prémio da Bienal de Sio Paulo de 19st concedido 3 peca de Bill Unidade tripartida foi sintoma do entusiasmo local pelos postulados racionalistas da arte concreta. Esse entusiasmo levou para Kasimir Maligviteh, Pinwura suprematisia (com ito retangulos vermelhos) 1914 Georges Vantongesion Consirugio de relies ddevolume 1921 a Europa desde logo dois jovens artistas que de lé no mais voltaram: Mary Vieira e Almir Mavignier. B fez grassar entre os que aqui estavam uma tendéncia geo- métrica inequivoca © o$ conceitos construtivos impli- citos nessa tendéncia. Enquanto a Europa e os Estados, Unidos comegavam a mergulhar no informalismo, na América Latina, o Brasil ea Argentina em particular reto- mavam @ tradi¢io construtiva ¢ transformavam-na no seu projeto de vanguarda Essa adiggo construtiva tinha como represen- i tante internacional méximo a arte concreta de Max Bill, a tltima das formulagdes construtivas importantes da primeira metade do século, Sobre o passado dessa tradigio, a arte concreta (1936) pretendia operar duas transformarSes/continuagdes bisicas: a incorpo- ragio radical de processos matemiticos & produgdo artistica — levando as tiltimas. conseqiiéncias as idéias de um Vantongerloo, por exemplo ~ ¢ 0 estabelecimento, com suportes mais firmes, do projeto construtivo de integracio da arte na sociedade industrial, resultando na abertura da Escola de Ulm (Escola Superior da Forma) em 1951. A arte concreta se pretendia uma espécie de consciéncia da idade adulta das tendéncias construtivas ~ umta seqiiéncia do movimento moder- no, fortemente abalado depois da Segunda Guerra Mundial ~ e representava a saida tipica para essas tendéncias nas sociedades capitalistas contemporineas. Do ponto de vista tedrico, as formulagdes de Bill sio pouco mais do que um arremate € uma sintese do que jé se vinha pensando nessa diregio: retomando termo concreto, criado por Van Doesburg, ele pretendeu consolidar a autonomia dos processos de produgdo em arte com relagio ao mundo natural e acentuar © seu carter construtivo € sistemitico. De inicio, com Van Doesburg, 0 termo significava apenas uma redefini¢io do conceito de abstraco, em busca de uma maior adequagio 4 verdade do trabalho de arte, Dizia ele (citado por Gulla em seu artigo “Arte concreta”) Pintura concreta © ndo abstrata, porque jd passariios o perfodo das pesquisas & experiéncias especulativas. km busca da pureza eram os artistas abrigados a abstrair as formas naturals que escondem os elementos plisticos... Pintura conereta e nio abstrata, porque nada mais concreto, mais real que uma linha, uma cor, uma superficie Com a tempo, entretanto, o termo concreto passou mais € mais a indicar uma diregdo construtiva no interior das tendéncias nio figurativas e a opor-se formal- mente ao informalismo. Enquanto o iiltimo recuperava multas vezes uma ideolo- gia roméntica — subjetivistae intuicionista -, a arte concreta tornava-se na década dle 40 € no inicio da de 50 sindnimo de um trabalho racionalista, objetivista, pri vilegiador de procedimentos mateméticos e de uma integracio positiva na socie- dade, Ela cerava fileira em tomo da participacio do artista ~ transformado numa espécie de designer superior, pesquisador de formas a serem aproveitadas pela inckistria ~ nos varios setores da vida urbana da complexa sociedade industrial [A Bscola Superior da Forma, em Ulm, é em muitos sentidos o prosseguimento da Max Bill Bauhaus, adaptado &s cixcunstancias histéricas dos anos 50, pert De certa maneira, ela pode ser olhada como a cristalizagio de uma das prin 1948-49 cipais correntes que dominavam a Baubaus: 0 racionalismo formalista. Nao ha vestigios de negatividade na pritica da Escola de Ulm ~ representa um esforgo para informar com “valores estéticos” e, implicitamente, com valores oriundos de uma ideologia funcionalista a producio de formas na sociedade. © seu desejo € racionalizar essa produgio de for- ras, submeté-la a um controle técnico de sua estética € de sua operacionalidade. E nesse controle estético e funcional cestd 0 seu 2 priori, 0 nio-pensado, a sua ideologia, enfim. © velho projeto reformista de racionalizar as relagbes de produgio no interior do sistema capitalista esta na base do seu raciocinio. ‘A-concepeio de politica cultural implicita em Ulm eno concretismo suigo de um modo geral estaria baseada ‘mima racionalidade programitica, Algo que poderia ser definido mais ou menos assim: cultura € uma atividade especifica, com desenvolvimento auténomo (Iela-se nio Max ill Construgio derivada de uma coroa circular Escola de Ulm Exerccio de retodologia visual ldeolgico), que demanda trabalho especializado € exige programa centrali- zado por parte do proprio Estado, Ha sempre € nei essariamente um aspecto institucional envolvido nas priticas ditas culturais, © campo de operagio dos significados produzidos por essas priticas é a coletividade — a sociedade como totalidade -, € no as classes sociais com sua dinimica de choque. Ha uma determinada idéia do social ~ idéia weberiana, quem sabe — implicita na arte conereta , ela se pretende fonte de informagio social pura, atingindo a cole- tividade mais ox menos indistintamente. Nio se postula, por exemplo, um campo ideolégico em que essas informagdes entrassem em. contato com outras diversas, derivadas de interesses outros. A luta cultural € uma Tura linear, voltada apenas contra 0 pasado da prépria cultura e que se passa exclusivamente no terreno das idéias puras ¢ dos esquemas formais puros. O recalque € dbvio: em tudo isso onde esti a Tua Ideolégica, esta que se pode observar € acompanhar diariamente nos meios de commicagio de massa, nos chamados costumes, na sexualidade, na produgdo de arte também? COptar pela arte concreta no inicio dos anos 0 significava optar por uma estratégia cultural universalista e evolucionista Paremos um pouco na produgio visual do movimento ¢ tentemos analisar os efcites ned pacientes el teeter ee eineceec rated etc tando por sua teorla de produgdo. Sem diivida, o concretismo brasileiro tina consciéncia de sua posigio na linha de desenvolvimento da histéria de arte — ele se pretendia declaradamente um novo lance da seqtiéncia de uma busca das ver- dadeiras bases nas quais se calcava a pesquisa artistica, Era, assim, uma proposta informada teoricamente. F mais: como o concretismo suigo era mais ou menos ‘cientificsta”, nfo s6 a sua idéia da percepcio visual e do campo éptico jé estava Informada pela teoria da Gestalt e suas leis como a concepeio implicita em seu processo de produgdo se aproximava metaforicamente dos procedimentos colo- cados em pritica pela ciéncia e pela tecnologia. Nio se estava mais, com referéncia 4 arte, no campo da criagio, mas no Ambito da invengZo: o jogo consistia em manipular inventivamente as formas, produzir uma ordem maximal de informagdes visuais, estabelecer processos semiticos que forgassem o espectador a romper os esquemas convencionais de 2° percepeio e exercitar-se na nova ordem proposta. Hii uma valorizagio dos efeitos da pesquisa e invencio de formas, hé uma fé “na potencialidade social da criagio formal”, Ante o esquema tradicional, a arte concreta coloca-se de modo anlogo ao da poesia concreta diante do “velho alicerce formal e silogistico-discursivo” da poética convencional e discursiva. Em ambos 03 casos, 2 questio € romper um esquema formal dominante e todo o sistema de significagées a ele necessaria- mente solidério. E uma operasio de reestruturacio das linguagens de maneira a torné-las aptas a captar, “sem desgaste ou regressio”, a dinamica das significagées corren- tes mum mundo onde as organizagdes formais convencionais restaram.caducas ¢ inoperantes. Trata-se de atuar sobre a propria sintaxe das linguagens, sintaxes esclerosadas ¢ esclerosantes, € promover uma ruptura no modo dominante de suas articulagSes significantes. No caso da poesia ¢ da Literatura, 0 raciocinio linear e convencional de seqiiéncia logico-discursiva ("a organizagio sintitico- perspectivista”, segundo Augusto de Campos) representado, por exemplo, pela unidade verso, No caso das artes visuais, 0 espaco renascentista, com a perspecti- va. 0 esquema “figura e findo” 0 sentido necessariamente metaforico do quadro como espaco de representagio do real, presenga apenas simbélica a indicar plano da realidade, do qual estava até certo ponto alijado. Em tiltima instincia, a fungio da arte nessa ordem epistémica era ilustrar o real, reexibi-lo. © rompi- mento desse esquema de representacio significa, é claro, 0 reconhecimento ou a demanda da especificidade do trabalho plistico. Li Sacitorto Concregio 5521 1955 Esmalte sobre madeira sex gocm Col Adalpho Lelrner ‘Museum of Fine Ars Houston Hermelindo Fiaminghi _Hevagio vertical com ‘movimento horizontal 1965 Esme sntéico sobre aglomerado de madeira Museu de Arte Contemporinea Universidade de Sio Paslo A partir dessa recém-conquistada autonomia, os concretos projetavam um método de produsio artistica que reunisse manipulagio inventiva das formas e equacionamento rigoroso dos dados (3 moda da ciéncia). Nao estavam, fora de iivida, longe de pensar a questéo da arte com base na organizagio cibemnética influenciados por Robert Wisner com seu Engineering of Human Behavior. Quer dizer: a arte seria uma espécie de engenharia de processos de comunicagdo visual Uma anilise mesmo répida da produgdo visual concreta revela de imediato seus. polos de interesse e, portanto, até certo ponto, sua verdade. Bssa produgio se caracterizou pela sistemiética exploragdo da forma seriada, do tempo como movi- mento mecinico, ¢ se definiu por suas intengGes estritamente dptico-sensoriais. Isto & contra © conteudismo representacional, propée 0 jogo perceptivo — um programa de exercicios épticos que fossem “belos” ¢ significativos em si mesmos, que significassem a exploracio € a invengio de novos sintagmas visuais cujo inte- resse estaria na sua capacidade de renovar a possibilidade de comunicagdo. Na sua capacidade de agir como feedbacks, fatores de Inta contra a entropia, para usar a terminologia da teoria da informagio. A arte concreta € um agenciamento estético das possibilidades épticas e sensoriais prescritas pela teoria da Gestalt ‘Uma apreensio gestéltica do espaco — uma apreensio no apenas intuitiva— servia de base para as formmlagdes visuais concretas. Estas procuravam evitar a fruigio conteudistica em favor de uma leitura que extraisse © que os concretos consideravam © centro do trabalho de arte: sobretudo mensagens e processos informacionais cujo interesse fundamental estava justa- mente na sua organizagio enquanto mensagem. Daf a recusa do grupo conereto patllsta (nesse aspecto, como veremos, sempre houve uma diferenga com relagio a0 grupo carioca) de utilizar expressivamente a cor Esta no deveria se constituir mim valor auténomo — prova- velmente porque se tornaria entio um valor metafisico, um valor em si, no relacional, ¢ sim funcionar como clemento divisor de espaco, parte da dinamica informa- ional do trabalho. Accor concreta € apoio ¢ inflexio ao sentido global do trabalho-mensagem que serd de ordem sobretudo ritmica, A autonomia da cor nfo pode ser tolerada pela ortodoxia concretista por algumas boas razGes: a pes- quisa da cor seria ela mesma uma sobrevivéncia subjetivista num-projeto de van Serpa produgdo de mensagens objetivas que nio pode assimilar sutilezas inefiveis, ¢ Faas riemadas 1953 ina indus se até pouco econdmicas, do ponto de vista da reprodugio industrial (0 préprio © Vasarély teria de ser considerado, de um ponto de vista concreto rigoroso, um yn x 8:,5 em artista decorativo € inconseqiiente); ¢, além do mais, isolaria no conjunto do Col. Adolpho Leiner trabalho um foco conteudistico que convidaria o espectador a um mergulho pee ofa ars introspectivo, a uma investigacdo de tipo psicologista Quanto A utilizacio da forma seriada e a propria inclusio da dimensio do tempo enguanto movimento mecinico, devem ser tomados como algo além de simples elementos de repertério, SZo procedimentos que informavam diretamente o sistema dos artistas e chegavam mesmo, segundo a acusa¢io unanime dos neo concretos, a substituir um processo de investigagio mais profundo, funcionando como uma espécie de regra composicional. De inicio, é preciso explicar a razio da eleicio desses procedimentos pelo programa concretista, & simples, provavelmente. [As formas seriadas, repetidas de modo a configurar uma organizagio visual abs- trata, sio tomadas pela evidente necessidade de trabalhar com elementos discretos, material manipulével pela formalizagio matematica ao nivel em qué pretendiam opera os concretos. Nio se tratava mais de fazer uma arte formada (0 trabalho em tomo da forma como objeto de pesquisa da intuigio artistica), mas sim uma

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