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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE ARTES
DEPARTAMENTO DE MÚSICA

HARMONIZAÇÃO DE MELODIA CORAL

PROF. FERNANDO LEWIS DE MATTOS


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE ARTES
DEPARTAMENTO DE MÚSICA

HARMONIZAÇÃO DE MELODIA CORAL

PROF. FERNANDO LEWIS DE MATTOS


SUMÁRIO

1. ESCOLHA DE ACORDES ...................................................................................................01


2. COMPLETAMENTO DA PRIMEIRA FRASE ....................................................................13
3. COMPLETAMENTO DA SEGUNDA FRASE....................................................................29
4. ORNAMENTAÇÃO DAS VOZES INFERIORES...............................................................35
5. HARMONIZAÇÕES DA MELODIA FREU DICH SEHR ..................................................56
5. BIBLIOGRAFIA GERAL SOBRE HARMONIA ..................................................................59
1

HARMONIZAÇÃO DE MELODIA

1. ESCOLHA DOS ACORDES

O exemplo abaixo consiste da primeira parte da melodia coral Freu dich


sehr, o meine Seele, de origem luterana, que foi harmonizada por diferentes
compositores, em épocas distintas. Esta linha melódica adapta-se
perfeitamente para iniciarmos o estudo de harmonização de melodia, em estilo
coral. Quando se tem esse caso de uma melodia que será harmonizada,
costuma-se chamar, no estudo de Harmonia, de ‘harmonização de um canto
dado’1.

Exemplo nº 1-1

Um canto dado pode ser harmonizado com qualquer tipo de acorde2,


com base em qualquer processo de organização sonora. Para simplificar,
vamos reduzir as possibilidades de escolha a somente três acordes básicos da
escala de Sol Maior, as tríades3 formadas sobre o I grau, sobre o IV grau e
sobre o V grau dessa escala. As tríades da escala de Sol Maior são as
seguintes:

1
Um ‘canto dado’ é uma linha melódica que será utilizada como base para a realização de uma
nova estrutura musical, seja por meio de harmonização, contraponto ou arranjo. O canto dado
é muitas vezes chamado de cantus firmus.
2
Existe uma tipologia de acordes, onde se busca sistematizar as possibilidades de
sobreposições sonoras possíveis. Uma tipologia bastante eficaz, formulada por Vincent
Persichetti, divide os acordes em quatro tipos: 1. tríades – são todos os acordes formados
apenas por superposição de intervalos de terça; 2. clusters – são os acordes formados
somente por sobreposição de intervalos de segunda; 3. harmonia quartal – é aquela em que
os acordes são construídos pela superposição de intervalos de quarta; 4. acordes mistos –
são aqueles em que são combinados diferentes tipos de intervalos para a formação de
estruturas harmônicas, como por exemplo, um acorde formado pelas notas dó/ré/sol, é um
acorde misto formado por um intervalo de segunda sobreposto a outro de quarta. Na teoria dos
acordes mistos não são consideradas as inversões de acordes do Sistema Tonal, pois os
acordes mistos podem ser interpretados como inversões de acordes formados por
superposição de terças, quartas ou segundas. Por exemplo, o acorde misto formado pelas
notas dó/ré/sol, citado acima, poderia ser interpretado como uma inversão de um acorde
quartal formado pelas notas ré/sol/dó.
3
Na tipologia de acordes, as tríades são subdivididas em quatro tipos: 1. tríade maior –
formada pela sobreposição de uma terça maior e uma terça menor; 2. tríade menor – formada
pela sobreposição de uma terça menor e outra maior; 3. tríade diminuta – formada pela
sobreposição de duas terças menores; 4. tríade aumentada – formada pela sobreposição de
duas terças maiores. Em uma escala maior, sobre o I, IV e V graus são formadas tríades
maiores; sobre o II, III e VI graus são formadas tríades menores, sobre o sétimo grau é formada
uma tríade diminuta. Nas escalas utilizadas no Sistema Tonal, somente se constrói uma tríade
aumentada sobre o terceiro grau da escala menor harmônica ou da melódica ascendente.
2

Exemplo nº 1-2

Note-se que, no exemplo acima, estão indicados os acordes, os graus e


as funções dos acordes da escala de Sol Maior que serão utilizados para a
harmonização do nosso canto dado. Na análise harmônica, serão empregados
esses três sistemas de cifragem (sistema cordal, sistema gradual e sistema
funcional)4 para indicar como é realizada a harmonização, isto é, quais as
intenções e quais os resultados do processo de escolha e encadeamento de
acordes.
Para a realização de uma harmonização eufônica5, é necessário levar
em conta a afinidade dos acordes com as notas da melodia, isto é, buscar
quais são os acordes que possuem cada uma das notas a serem
harmonizadas, para, posteriormente, escolher, entre esses acordes, qual o
mais adequado para a harmonização do trecho específico. Assim, por exemplo,
a primeira nota da melodia do exemplo nº 1-1 é a nota sol. Para que a
harmonização se apresente como um reforço da melodia, é necessário
escolher um acorde que possui esta nota (princípio da eufonia); neste caso,
dois dos acordes que vamos utilizar para a harmonização possuem a nota sol:
G (sol/si/ré) e C (dó/mi/sol)6.
Do ponto de vista do Sistema Tonal, que é o princípio de estruturação
sonora que seguiremos para harmonizar a melodia Freu dich sehr, toda a peça
de música deve iniciar e terminar em um ponto de repouso, ou seja, com a
função harmônica de tônica. Por isso, neste caso, vamos preferir iniciar e
terminar a harmonização com o acorde de G, I grau da escala.

4
Atualmente, há três sistemas de análise harmônica que são os mais utilizados
internacionalmente, denominados: 1. Análise Gradual – define a origem dos acordes como
graus de escalas e é realizada por meio de numerais romanos que indicam os respectivos
graus (p. ex.: o acorde formado sobre o primeiro grau da escala de Sol Maior é cifrado com o
símbolo ‘I’, o acorde sobre o quarto grau é cifrado com ‘IV’ e o quinto grau é cifrado com ‘V’); 2.
Análise Funcional – determina a função de cada acorde no contexto específico em que ocorre
em determinada frase musical e é realizada por letras que indicam as funções harmônicas
(assim, o acorde de primeiro grau da escala de Sol Maior, que tem função de Tônica, é cifrado
com ‘T’, o acorde sobre o quarto grau, que tem função de Subdominante, é cifrado com ‘S’ e o
acorde sobre o quinto grau, que tem a função de Dominante, se cifra com ‘D’); 3. Análise
Cordal – determina em detalhe as características de cada um dos acordes e também é
realizada com letras que indicam a fundamental dos acordes (p. ex.: o primeiro grau da escala
de Sol Maior é um acorde de sol maior e é cifrado com a letra ‘G’, o quarto grau, que é um
acorde de dó maior, é cifrado com ‘C’ e o quinto grau, um acorde de ré maior, é cifrado com ‘D’.
O estudo dos três sistemas de entendimento da harmonia proporciona um conhecimento amplo
das possibilidades e recursos do Sistema Tonal.
5
Eufonia é a combinação de sons que se inter-relacionam acusticamente por meio de frações
simples, isto é, são as formações harmônicas que produzem intervalos estáveis, que são
classificados na teoria tradicional como consonâncias perfeitas e consonâncias imperfeitas.
6
Com o intuito de uniformizar as cifras, vai-se empregar o hífen para mencionar seqüência de
notas sucessivas (p. ex.: ‘sol-lá-si’ significa um movimento melódico) e a barra para indicar
sons simultâneos (p. ex.: ‘sol/si/ré’ se refere a um acorde).
3

Essa consideração nos traz um outro princípio fundamental da


harmonização de linhas melódicas, que é a determinação dos pontos mais
importantes para a realização de uma harmonização efetivamente tonal. Esses
pontos são os inícios e os finais de frase. Na música coral, as frases são
geralmente indicadas por sinais de fermata colocados sobre as notas que
finalizam cada uma das frases. Assim, na melodia coral que estamos
harmonizando [cf. ex. nº 1-1], percebem-se duas frases, a primeira com
terminação na nota ré do quarto compasso e a segunda frase com finalização
na nota sol do oitavo compasso. Na fraseologia7 clássica, esse tipo
organização com frases de quatro compassos é denominada quadratura8.
Tem-se, desta maneira, na primeira parte da melodia coral Freu dich
sehr, duas frases, sendo que a primeira finaliza sobre a nota ré, que tem a
função de dominante da tonalidade de Sol Maior. A nota ré poderia ser
harmonizada com dois acordes, G (sol/si/ré) ou D (ré/fá#/lá), pois ambos
possuem essa nota. Para criar variedade harmônica na relação entre as
cadências, a melhor escolha para a harmonização da nota final da primeira
frase é o acorde de D, pois, com isso, se produz um contraste entre as duas
cadências: a primeira frase é tratada como uma frase suspensiva e a segunda
frase é harmonizada como uma frase conclusiva9.
Essas cadências (ou finalizações de frase) foram tão empregadas pelos
compositores do Período Tonal (aproximadamente, entre 1600 e 1900) que são
classificadas dentro de categorias específicas: a conclusão de uma frase sobre
um acorde de V grau, com função de dominante, chama-se cadência à
dominante (também pode ser denominada como semicadência ou meia
cadência); a terminação de uma frase sobre um acorde de I grau, com função
de tônica, chama-se cadência perfeita. Na cadência perfeita, o acorde final de I
grau deve ser precedido por um acorde de V grau, ambos em estado
fundamental. Na música coral dos séculos XVII e XVIII é bastante comum que
a primeira parte seja construída com duas frases, sendo a primeira suspensiva,
com cadência à dominante, e a segunda conclusiva, com cadência perfeita.
Com o que foi discutido sobre critérios de escolha dos acordes para a
harmonização de um canto dado, temos definidos alguns dos pontos mais
importantes da linha melódica que estamos harmonizando: o início da melodia
e as duas cadências [cf. ex. nº 1-3].

Exemplo nº 1-3

7
Fraseologia é o estudo das frases musicais, dos elementos que as compõem (incisos,
semifrases, frases e períodos) e das combinações e relações desses elementos entre si.
8
A quadratura, em fraseologia, consiste na elaboração de frases compostas por estruturas de
quatro compassos, ou por múltiplos de quatro (como, por ex., frases de oito ou dezesseis
compasso).
9
As frases conclusivas são aquelas que terminam sobre um acorde de tônica em estado
fundamental; essas cadências são a cadência perfeita (finalização com os acordes V-I) e a
cadência plagal (finalização os acordes IV-I). As frases suspensivas são finalizadas com todas
as outras cadências, como a cadência à dominante (finalização com os acordes: IV-V), a
cadência imperfeita (finalização com os acordes: V-I6) ou a cadência deceptiva (finalização
com os acordes: V-VI).
4

Para completarmos a escolha dos acordes mais importantes dessa


melodia, ainda falta definirmos o acorde que irá iniciar a segunda frase. A
escolha desse acorde também é crucial para a realização de uma
harmonização equilibrada. Há duas possibilidades de acordes para harmonizar
a nota sol que inicia a segunda frase: G e C. Se escolhermos o acorde de C
conseguiremos outro contraste, em dois níveis: 1. ao iniciar a segunda frase
com esse acorde, consegue-se contraste entre o início de cada uma das
frases, visto que a primeira começa com G e a segunda com C; 2. também se
produz variedade no interior da segunda frase, que inicia e finaliza com
acordes diferentes. Por essas razões, é preferível iniciar a segunda frase com o
acorde de C (note-se que se iniciarmos a segunda frase com o acorde de G, o
contraste e a variedade são eliminados em ambos os níveis, na relação entre
as frases e no decorrer da segunda frase). Assim, no ex. nº 1-4, têm-se
definidos os inícios e finais de frase:

Exemplo nº 1-4

Com os inícios de frase e suas cadências definidas, pode-se passar à


escolha dos acordes que irão gerar movimento no interior de cada uma das
frases. Nesse sentido, as melhores opções são aquelas que reforçam o
movimento harmônico progressivo, isto é, em que se mantém, ao máximo
possível, um processo denominado ciclo tonal, que é obtido pelo
encadeamento de acordes que seguem o processo tonal básico: T – S – D – T.
Isso significa que a melhor escolha, para a realização de uma progressão
harmônica, está embasada no princípio de que, após um acorde com função de
tônica é preferível um acorde com função de subdominante, após um acorde
com função de subdominante é preferível um acorde de dominante e após um
acorde de dominante é preferível um acorde de tônica. Com isso, obtém-se um
processo harmônico de caráter tonal.
O ciclo tonal poderia ser esquematizado da seguinte forma:

S
D

Seguindo o princípio do ciclo tonal (que segue o sentido horário, no


esquema acima), podem ser definidos os acordes que irão constituir a melhor
progressão harmônica, dentro dos limites dos acordes que temos à disposição.
Assim, o acorde mais indicado para preceder o V grau, no final da primeira
frase, é o acorde formado sobre o IV grau, pois se estabelece um movimento
harmônico progressivo nos dois últimos acordes da frase [cf. ex. nº 1-5], sendo
5

esse um ponto muito importante para a escolha de um movimento harmônico


progressivo.

Exemplo nº 1-5

O início da segunda frase também permite seguir um movimento


harmônico progressivo, a partir da subdominante, com a seqüência S – D – T –
S, isto é, com os acordes de C – D – G – C.

Exemplo nº 1-6

Com isso, a escolha dos acordes para a segunda frase está quase
completa, conforme se apresenta no ex. nº 1-6. Falta apenas o acorde que irá
harmonizar a nota si, que, neste caso, não pode ser outro senão G, pois este é
o único acorde, dentre os que estamos utilizando, que possui essa nota.
Com os acordes que estamos utilizando nesta harmonização, não é
possível manter um movimento harmônico progressivo constante, com base no
ciclo tonal, na primeira frase, pois a seqüência de notas da melodia exige um
encadeamento repetitivo com ||:I–V:||. A segunda nota da melodia não pode ser
harmonizada senão pelo acorde de D, pois, dentre os acordes que temos à
disposição, a nota lá existe somente neste acorde. A primeira nota do segundo
compasso (si) também pode ser harmonizada somente pelo acorde de G. O
emprego necessário do acorde de D na segunda metade do segundo
compasso exige a resolução do tipo V – I, no início do terceiro compasso, para
a permanência do ciclo tonal progressivo; segue-se, novamente, com um
acorde de D para harmonizar a nota fá# que se encontra na segunda metade
do terceiro compasso. Com isso, a primeira frase será harmonizada com uma
seqüência de tônica-dominante-tônica, repetida duas vezes, conforme indicam
os colchetes do ex. nº 1-7.

Exemplo nº 1-7

Para criar maior variedade na seqüência harmônica anterior, sem


empregar outros acordes além dos propostos (I, IV e V graus), é necessário
empregar alguns acordes invertidos. A inversão dos acordes irá produzir maior
variedade no colorido harmônico e um contraponto mais interessante entre o
soprano e o baixo, que são as vozes mais importantes na música tonal, devido
6

à polarização que normalmente ocorre entre as vozes externas10, neste tipo de


música. Uma boa maneira de realizar uma relação eficiente entre essas duas
vozes, é escrever um contraponto de primeira espécie11 (nota contra nota) com
base nas notas dos acordes escolhidos anteriormente.
Um contraponto possível entre soprano e baixo é este, presente no ex.
nº 1-8:

Exemplo nº 1-8

As próximas linhas serão dedicadas à análise dos critérios que levaram


à escolha dessa linha de baixo.
Inicialmente, deve-se chamar a atenção para os pontos mais
importantes de cada frase, isto é, os inícios e finais de frase. Geralmente, a
primeira frase de uma peça de música tonal inicia com um acorde em estado
fundamental; o mesmo serve para a cadência final e para as cadências que se
completam na dominante. A razão para isso está em que, na música tonal, toda
a peça musical inicia e termina no ponto máximo de estabilidade, o que é
alcançado com predomínio de consonâncias, sendo que os acordes em estado
fundamental são mais estáveis do que os acordes em primeira inversão e os
acordes em segunda inversão são considerados instáveis. Por isso, o primeiro
acorde do nosso exemplo, tanto quanto os dois acordes cadenciais, deverão
ficar em estado fundamental.
Alguns princípios gerais do contraponto, que podem ser úteis para a
obtenção de independência entre as vozes, são estes: buscar o máximo de
movimento contrário12 entre as duas vozes, obter tantos intervalos imperfeitos
(terças e sextas) quanto possíveis e conduzir as vozes inferiores13 pelo
caminho mais curto, isto é, alcançar o acorde seguinte por graus conjuntos ou
através de nota comum14. Esta última diretriz é geralmente menos empregada
na condução do baixo do que nas vozes de contralto e tenor. Por essa razão,

10
Vozes externas são a voz mais aguda e a voz mais grave presentes em determinado trecho
musical. Na música vocal, esta expressão se refere às vozes de soprano e baixo.
11
Johann Jospeh Fux (1660-1741) elaborou um sistema detalhado para o estudo do
contraponto, em que cada combinação rítmica, na relação entre as vozes, deveria ser
elaborada de uma maneira específica, no tratamento das dissonâncias Na primeira espécie
são combinadas vozes com a mesma figuração rítmica, portanto, esta espécie é chamada de
‘nota contra nota’. Somente são possíveis consonâncias, na relação entre as partes, no
contraponto de primeira espécie.
12
Movimento contrário é aquele produzido quando uma voz se movimenta ascendentemente e
a outra descendentemente.
13
No estudo de Harmonia, as vozes de contralto, tenor e baixo são consideradas ‘vozes
inferiores’, pois a melodia principal se encontra no soprano.
14
Nota comum entre dois acordes é aquela que pertence a ambos. Por exemplo, a nota
comum entre os acordes de G e C é sol, já que o acorde de C é formado pelas notas dó/mi/sol
e o acorde de G é formado por sol/si/ré. Note-se que a nota sol pertence aos dois acordes.
7

as linhas de baixo, na música coral do Período Tonal, são mais complexas do


que as vozes intermediárias15 (contralto e tenor).
Com base nos princípios abordados acima, podemos analisar como foi
pensado o contraponto entre soprano e baixo, no exemplo nº 1-8.
Na primeira frase, tem-se, logo no início, um movimento contrário, pois a
linha do soprano se movimenta ascendentemente (sol-lá), enquanto o baixo se
desloca por graus conjuntos descendentes (sol-fá#) para alcançar uma
consonância imperfeita (intervalo de terça menor composta: fá#/lá). Com isso,
obtém-se contraste na relação entre as duas vozes: após um intervalo
harmônico de 8ªJ (sol/sol), obtém-se um intervalo de 10ªm por movimento
contrário.
Na continuação, realiza-se um movimento paralelo16 entre soprano e
baixo, pois ambas as vozes se movimentam ascendentemente, partindo de
uma 10ª (fá#/lá) e alcançando uma 10ª (sol/si). Torna-se necessário discutir o
porquê desta escolha, visto que, do ponto de vista do contraponto, o
movimento paralelo é o menos favorável para alcançar a independência entre
as partes. Para justificar a escolha, vamos experimentar as outras
possibilidades de movimentação do baixo, que pode se movimentar do fá# para
o si (o que produziria a primeira inversão do acorde de G) ou para o ré
(gerando a segunda inversão do acorde de G). No exemplo abaixo, são
apresentadas várias possibilidades de movimento do baixo com base nessas
notas (fá#-si e fá#-ré).

Exemplo nº 1-9

No exemplo nº 1-9(a), ocorre uma oitava direta17, pois ambas as vozes


se dirigem ascendentemente para a nota si. Quando se trata de contraponto a
duas vozes, oitavas e quintas diretas são consideradas problemáticas em

15
As ‘vozes intermediárias’ são o contralto e o tenor, visto que a voz de soprano é a ‘voz
superior’ e a voz de baixo é a ‘voz inferior’. Assim, o emprego das terminologias ‘vozes
intermediárias’ e ‘vozes inferiores’ depende do contexto em que ocorrem. Quando comparadas
ao soprano, as vozes de contralto, tenor e baixo são chamadas de ‘vozes inferiores’; quando
comparadas às vozes externas (soprano e baixo), as vozes de contralto e tenor são chamadas
de ‘vozes intermediárias’; quando comparadas ao baixo, as outras três vozes são consideradas
‘vozes superiores’.
16
Movimento paralelo ocorre quando duas ou mais vozes se movimentam na mesma direção,
mantendo o mesmo intervalo harmônico. Por exemplo, se o baixo realiza o movimento
melódico sol-lá e o soprano realiza, simultaneamente ao baixo, o movimento melódico si-dó,
tem-se um movimento paralelo em terças, pois ambas as partes realizam movimentos
ascendentes e se mantém uma relação de terças entre as vozes (sol/si-lá/dó).
17
Movimento direto ocorre quando duas vozes se movimentam na mesma direção, porém não
se mantém o mesmo intervalo harmônico. Por ex.: se o baixo realiza as notas sol-lá e o
soprano realiza as notas mi-dó, tem-se uma terça direta, pois o intervalo harmônico de terça
(lá/dó) é alcançado a partir de um intervalo de sexta (sol/mi). Por isso, é um movimento direto e
não paralelo.
8

qualquer situação; com a textura mais transparente, a independência das


vozes fica comprometida com o movimento direto para esses intervalos, que
são os mais simples em termos de relações harmônicas entre dois sons por
serem os intervalos mais proeminentes na série harmônica. Porém, quando se
trata de textura a quatro ou mais vozes, as quintas e oitavas diretas ficam
diluídas em meio a outras ocorrências harmônicas e não se tornam tão
importantes. Por esta razão, ao longo dos séculos XVII e XVIII, os músicos
desenvolveram o hábito de considerar as oitavas e quintas diretas como sendo
corretas, desde que a voz superior que gera oitava ou quinta direta se
movimente por graus conjuntos, como ocorre no caso acima, em que o soprano
realiza o movimento conjunto lá-si. Assim, o exemplo nº 1-9(a), apesar de não
ser a melhor solução, não pode ser considerada incorreta quando ocorre em
textura a quatro vozes. De qualquer forma, quando se busca a sonoridade de
um acorde de G/B, é mais adequado, realizar movimento contrário entre as
vozes, como ocorre no exemplo nº 1-9(b). Neste caso, seria necessário
modificar também o registro de altura18 da primeira nota, para evitar um salto
de 7ªM entre as primeiras notas do baixo. No exemplo nº 1-10, está
demonstrada a resolução G-D/F#-G/B com a nota sol inicial transposta à oitava
superior, para obter um movimento de graus conjuntos, no início.

Exemplo nº 1-10

Esta versão ainda apresenta dois problemas: o que merece maior


consideração é o fato de que a nota sensível, a terça do acorde de dominante,
não é resolvida como nota atrativa19, isto é, não se dirige melodicamente para a
tônica; o segundo problema, que é menos importante, é o fato de que, no
terceiro acorde – G/B – haverá dobramento da terça do acorde, o que
enfraquece a percepção de sua função de tônica.
As soluções (c), (d) e (e), do exemplo nº 1-9, apresentam um problema
básico de contraponto modal, que se mantém como critério válido para a
condução de vozes, na música tonal: o intervalo de 4ªJ deve ser tratado como
dissonância, quando ocorre com relação ao baixo20. Isso leva à prática do

18
Registro de altura é a oitava precisa em que se encontra uma determinada nota ou linha
melódica. Por exemplo, a nota mi da primeira linha suplementar inferior da clave de fá
encontra-se no registro extremo grave da extensão vocal, a nota dó central (que se encontra na
primeira linha suplementar inferior da clave de sol) se encontra no registro médio e a nota sol
do primeiro espaço suplementar superior da clave de sol se encontra no registro extremo
agudo.
19
Uma das características importantes da música tonal é o uso da sensível como nota atrativa,
isto é, a nota sensível tem uma função melódica extremamente importante na definição da
tonalidade, pois essa nota exige a resolução por semitom ascendente, na fundamental do
acorde de tônica. Quando isso não ocorre, tem-se um movimento ‘regressivo’ de caráter modal
e não ‘progressivo’ de caráter tonal.
20
No contraponto a duas vozes, o intervalo de 4ªJ é considerado como sendo dissonante em
todas as situações, devido ao fato de que sempre ocorre com relação ao baixo. No contraponto
9

Período Tonal de sempre alcançar e resolver o baixo do acorde em segunda


inversão por graus conjuntos ou como nota comum. Além disso, outro
problema existente nas soluções presentes no ex. nº 1-9(c), 1-9(d) e 1-9(e), é o
fato da nota sensível não resolver na tônica, não cumprindo seu papel de nota
atrativa.
Por essas razões, chegamos à conclusão de que a melhor solução para
a condução da voz de baixo é aquela que apresentamos no exemplo nº 1-8,
pois a sensível resolve na tônica, como nota atrativa, e o movimento paralelo
com intervalos imperfeitos (terças e sextas) não é um problema, desde que não
se repita demasiadamente.
A condução de vozes que se estende entre o primeiro tempo do
segundo compasso e o primeiro tempo do terceiro compasso é um padrão
típico de utilização do acorde em segunda inversão como um acorde de
passagem21. Portanto, não passa de uma aplicação de um procedimento
técnico característico do século XVIII, que se mantém ainda hoje, na música
popular. O interessante resultado contrapontístico é a condução das vozes por
graus conjuntos, em movimento contrário, com as mesmas notas apresentadas
em retrogradação22: enquanto o soprano executa as notas si-lá-sol, o baixo
executa as mesmas notas em espelho, na ordem sol-lá-si. Esta é uma técnica
de contraponto que tem sido bastante empregado, desde o século XIV.
O encadeamento presente no terceiro compasso contempla os princípios
de condução de vozes apresentados anteriormente, pois se obtém um
movimento contrário (enquanto o soprano realiza o movimento descendente
sol-fá#, o baixo realiza o movimento ascendente si-ré) com utilização de
intervalos imperfeitos (a sexta si/sol e a terça ré/fá#). O único dos preceitos que
não é seguido é a preferência pelo uso de graus conjuntos, visto que o baixo
salta uma terça (si-ré). Neste caso, isso não se apresenta como problema,
mas, ao contrário, pode ser entendido como uma qualidade da condução de
vozes, neste ponto, pois se produz um contraste, na voz de baixo, com relação
ao restante da frase, que se movimenta inteiramente por graus conjuntos.
Com isso, tem-se outro princípio importante da condução de vozes, que
é o equilíbrio entre os processos utilizados, entendendo-se que qualquer
princípio empregado de maneira unívoca pode produzir uniformidade
indesejável. Assim, com o sentido de gerar equilíbrio melódico em determinada
voz que se movimenta abundantemente por graus conjuntos, podem-se realizar
alguns saltos em pontos específicos. A melhor maneira de obter diversidade
melódica, neste sentido, é através de saltos que são alcançados e/ou deixados
por movimento contrário aos graus conjuntos. Infelizmente, não foi possível
realizar esse procedimento, no terceiro compasso da nossa harmonização, pois
o salto ascendente (si-ré) é alcançado a partir de um movimento conjunto

a três ou mais vozes, o intervalo de 4ªJ somente é considerado dissonante quando ocorre com
relação ao baixo, pois produz um acorde em segunda inversão, tipo de acorde que foi
considerado dissonante até meados do século XIX.
21
O acorde de passagem é aquele em que três vozes são conduzidas por graus conjuntos e a
voz restante se mantém estática, mantendo a nota comum entre os acordes. Assim, no
encadeamento G-D/A-G/B, tem-se o acorde de D/A como um acorde de passagem entre duas
formações do acorde de tônica, que se apresenta em estado fundamental e, posteriormente,
em primeira inversão.
22
Movimento retrógrado ou retrogradação ocorre quando um segmento melódico é executado
de trás para frente, ou seja, da última à primeira nota.
10

ascendente (lá-si). Esse salto (si-ré), porém, é deixado por um grau conjunto na
direção oposta (ré-dó), o que é uma boa compensação.
Entrementes, na segunda frase do baixo de nossa harmonização [cf. ex.
nº 1-11], ocorre um movimento de baixo perfeito: após o movimento de graus
conjuntos ascendentes (mi-fá#-sol), realiza-se um salto descendente (sol-dó)
que resolve em outro grau conjunto ascendente (dó-ré) e se dirige a um salto
descendente (ré-ré), resolvendo ascendentemente (ré-sol), no acorde final [cf.
ex. nº 1-11].

Exemplo nº 1-11

Este é o exemplo de uma linha de baixo bastante comum na música


coral do século XVIII, especialmente nos dois últimos compassos, com a
cadência sendo preparada pelo salto descendente de oitava sobre a nota
dominante.
Voltando ao exame do baixo da primeira frase, falta ainda verificarmos
os dois últimos encadeamentos, presentes na segunda metade do terceiro
compasso e no quarto compasso do exemplo nº 1-8. Uma maneira de analisar
este processo é interpretá-lo como um movimento retrógrado do início da frase,
transposto à dominante. Nos primeiros compassos, o soprano realiza um
movimento ascendente por graus conjuntos, percorrendo uma distância de
terça, desde a tônica (sol-lá-si); o mesmo soprano realiza um movimento que
parte da terça da dominante em direção à própria dominante, por graus
conjuntos descendentes (fá#-mi-ré). O exemplo nº 1-12 demonstra o processo
de retrogradação e transposição.

Exemplo nº 1-12

Como o baixo realiza o mesmo processo, em ambos os segmentos23,


obtém-se um movimento similar ao do início da peça, realizado por movimento
retrógrado. O exemplo nº 1-13 demonstra este processo, em que se inverte
também a posição dos intervalos, pois a frase inicia com uma consonância
perfeita que se dirige a uma consonância imperfeita e finaliza em uma
consonância perfeita obtida a partir de uma consonância imperfeita. Com isso,
obtém-se homogeneidade entre os processos presentes no início e no final da
frase.

23
Como o processo realizado no baixo é uma bordadura, pode ser interpretado como sendo
somente uma transposição à quinta superior, porém, como o que está sendo analisado é a
relação entre o soprano e o baixo, o resultado é uma retrogradação transposta.
11

Exemplo nº 1-13

Desta maneira, têm-se três processos básicos de condução de vozes,


realizados entre baixo e soprano, nessa primeira frase, cada um deles
percorrendo três acordes: o primeiro é formado pelas três primeiras notas [ex.
nº 1-14(a)], o segundo é o emprego do acorde de passagem [ex. nº 1-14(b)] e o
terceiro é o retrógrado do primeiro [ex. nº 1-14(c)]. Este último é preparado pelo
único salto melódico [ex. nº 1-14(d)] existente na primeira frase. No exemplo
abaixo, estão identificados os três processos e o salto melódico que separa o
segundo processo do terceiro.

Exemplo nº 1-14

A segunda frase inicia com um movimento de três terças paralelas em


movimento ascendente, o que é um movimento unidirecional entre soprano e
baixo e vai exigir algum movimento contrário quando formos completar as
vozes de contralto e tenor. Para compensar esse movimento unidirecional entre
soprano e baixo, o passo seguinte é um salto de 5ªJ descendente (sol-dó), no
baixo, enquanto o soprano mantém o movimento ascendente por graus
conjuntos (si-dó); note-se que do ponto de vista da relação vertical entre as
vozes, também há um processo de compensação, pois uma seqüência de
intervalos imperfeitos (terças) é seguida por uma consonância perfeita (8ªJ).
Com isso, se alcança uma boa independência entre as vozes, como demonstra
o exemplo abaixo.

Exemplo nº 1-15
12

O restante da frase constitui-se de um movimento cadencial típico do


Período Tonal, realizado pela seqüência harmônica I 46 –V–I. Esse acorde de I
grau em segunda inversão é entendido, do ponto de vista funcional, como um
acorde de quarta e sexta apojatura com sentido cadencial. Assim, os intervalos
de quarta e sexta são interpretados como dupla apojatura que prepara um
acorde de V grau em estado fundamental, não sendo considerados, na
Harmonia Funcional, como parte de um acorde de tônica em segunda inversão,
mas como parte da função de dominante.
Os dois tipos de movimento melódico abaixo são comumente
harmonizados com o acorde apojatura cadencial (note-se que as cifras da
análise cordal, gradual e funcional diferem, neste caso):

Exemplo nº 1-16

Abaixo, está a análise completa da escolha preliminar dos acordes e


suas inversões, com a linha do baixo escrita, para a harmonização da melodia
coral Freu dich sehr:

Exemplo nº 1-17

Agora, falta completar a harmonização com as vozes de contralto e


tenor.
13

2. COMPLETAMENTO DA PRIMEIRA FRASE

Após a escolha da seqüência de acordes, conforme foi visto na primeira


parte deste estudo, deve-se completar a harmonização, preenchendo a textura
a quatro vozes. Para isso, é necessário pôr em prática as técnicas de
condução de vozes24. Muitas vezes, os problemas de movimento harmônico
podem ser solucionados através de uma condução de vozes bem realizada.
Em outras palavras: em muitos casos, uma seqüência harmônica deficiente
pode ser compensada através de um bom contraponto.
Da mesma forma que procedemos para a escolha de acordes, vamos
realizar o processo de condução das vozes intermediárias, passo a passo.
Em primeiro lugar, é importante ressaltar que a linha do baixo, no
exemplo nº 1-17, é apenas um primeiro esboço, pois, por razões de
contraponto, pode haver a necessidade de realizar alguma modificação no
baixo escrito inicialmente. O harmonizador deve estar aberto a realizar alguma
mudança naquilo que já considera resolvido, se isso proporcionar uma
harmonização mais equilibrada ou se for útil para solucionar possíveis
dificuldades na condução de vozes.
Com base nas notas que estão dispostas no soprano (sol) e no baixo
(sol), são possíveis as seguintes opções de preenchimento do primeiro acorde:

Exemplo nº 2-1

Vamos analisar cada uma dessas opções para verificar suas


propriedades. Podemos começar pelas opções em que há erros de disposição
das vozes, segundo as técnicas de harmonização do Período Tonal. A
possibilidade presente no exemplo nº 2-1(c) apresenta um problema de
distribuição das notas, pois ocorre um intervalo de 11ª entre o tenor e o
contralto – note-se que, para uma tríade soar equilibrada, é necessário dispor
as vozes superiores (soprano, contralto e tenor) de modo que não haja
intervalo maior que oitava entre elas; o baixo é a única voz que pode estar a
uma distância maior que oitava com relação ao tenor. Outra opção que
apresenta problema de disposição das notas é aquela do ex. nº 2-1(j), pois há
cruzamento entre as vozes de tenor e contralto (o cruzamento de vozes25

24
Para completar a escolha dos acordes, no sentido de definir as suas inversões, foi preciso
adentrar em critérios relativos à condução de vozes para definir as notas do baixo – esses
mesmos critérios serão aplicados para a composição das vozes de contralto e tenor.
25
Cruzamento de vozes ocorre quando uma voz mais grave se movimenta em um registro mais
agudo do que uma voz mais aguda (por ex.: se o tenor canta uma nota ré3 e, no mesmo
14

também produz um problema de contraponto, quando se está trabalhando com


formações vocais ou instrumentais que possuem o mesmo timbre, pois o
ouvinte passa a perceber uma voz como se fosse a outra). As opções (b), (c),
(e), (k) e (l), do exemplo nº 2-1, apresentam outro problema, que é a formação
de acorde vazio26 (essa formação de um acorde sem a terça para iniciar uma
peça é desaconselhada porque não esclarece logo de início qual é o modo em
que se encontra a música, pois tanto poderia ser Sol Maior, se a terça fosse a
nota si, como Sol Menor se a terça fosse sib). Por isso, os acordes vazios (sem
a terça) foram evitados pelos músicos do Período Tonal e é ainda hoje
considerado como um problema quando se deseja esclarecer o modo de
determinado acorde. A solução do ex. nº 2-1(g), em que há dobramento27 da
terça e supressão28 da quinta, não pode ser considerada errada, porém, produz
desequilíbrio na sonoridade do acorde por duas razões: em primeiro lugar, o
acorde está disposto como se fossem apenas três vozes, devido ao
dobramento da nota si em uníssono, no tenor e no contralto; além disso,
metade dos cantores entoará essa nota, desequilibrando a sonoridade ao
reforçar o registro médio, sendo que o característico, na música tonal, é a
polarização das vozes externas (soprano e baixo).
Outras duas soluções também efetuam a supressão da quinta e o
dobramento da terça, porém são casos mais comuns na música do Período
Tonal – são as opções do exemplo nº 2-1(d) e 2-1(i). Esta última possibilidade
ainda mantém um desequilíbrio ao dobrar a nota sol em uníssono, no contralto
e no soprano. Isso não é um problema sério, pois a nota dobrada é a própria
fundamental do acorde, isto é, aquela que deve ser enfatizada; outra razão que
faz possível esta opção é o fato de que o dobramento em uníssono ocorre no
registro superior, que é normalmente enfatizado em primeiro plano. De
qualquer forma, apesar de ser possível, a solução (i) não é totalmente
equilibrada e, por isso, não será a escolhida para iniciar a nossa harmonização
da melodia coral Freu dich sehr. A opção do ex. nº 2-1(d) é uma solução
bastante comum, na música dos séculos XVI a XIX, pois a triplicação29 da
fundamental ocorre de forma bastante equilibrada, em três oitavas distintas. No
entanto, esse tipo de distribuição das notas do acorde de tônica é mais comum
nas cadências do que nos inícios de frase, pois normalmente se procura iniciar
as frases (especialmente a primeira frase da música) com o acorde de tônica
completo.
Outra possibilidade bastante incomum na música coral, mas que na
música instrumental aparece com relativa freqüência, é o dobramento da

momento, o contralto canta um si2, estas vozes estão cruzando). O cruzamento de vozes
prejudica a noção de independência entre as partes e dificulta a percepção da disposição das
vozes na textura geral.
26
Acorde vazio é um termo que se utiliza para designar as tríades em que a terça foi suprimida,
isto é, em que há somente a fundamental e a quinta. Já o século XVI, se considerava que esse
tipo de acorde possuía sonoridade ‘gótica’, isto é, ‘bárbara’ ou ‘desajeitada’. A rejeição ao
acorde vazio permaneceu ao longo do Período Tonal, por lembrar a música antiga ou oriental.
27
Dobramento de uma nota de acorde ocorre quando uma mesma nota é executada por mais
de uma voz.
28
Supressão ocorre quando determinada nota de um acorde não está presente no conjunto
das quatro vozes.
29
Triplicação ocorre quando uma das notas de um acorde é executada por três vozes,
simultaneamente. Note-se que, na textura a quatro vozes, sempre que há triplicação de uma
das notas, outra nota será necessariamente suprimida.
15

fundamental do acorde (nota sol) em todas as vozes, como ocorre na opção do


ex. nº 2-1(f). Isso pode ser bastante interessante quando se deseja enfatizar
determinada melodia, no decorrer de uma peça; porém, como estamos
exercitando a técnica modelar de construção harmônica, essa não seria a
melhor escolha para iniciarmos a harmonização.
Restam ainda as opções (a) e (h) do ex. nº 2-1, que são as duas
soluções mais adequadas para iniciarmos a harmonização. A escolha por uma
ou outra depende de vários fatores, como a intenção expressiva, os métodos
de representação do texto (em se tratando de música vocal), ou simplesmente
a sonoridade pretendida. Vamos analisar as características de cada uma
dessas disposições das notas do acorde, para determinarmos com qual delas
iremos começar nossa harmonização.
As vozes de tenor e contralto da solução presente no ex. nº 2-1(a)
apresentam-se em um registro mais grave do que a distribuição das notas da
opção 2-1(h). Por isso, seria mais adequado iniciar nossa harmonização com a
solução (a) em peças com andamento lento, com caráter solene, dramático ou
melancólico; já em peças com andamento vivo, com caráter delicado, agitado
ou alegre, com texto animado ou jocoso, seria mais próprio iniciar com a
solução (h). (Essas escolhas, naturalmente, dependeriam de diversos outros
fatores, além dos mencionados aqui).
Também seria valioso realizarmos a análise dos dois acordes pelo
prisma de suas propriedades acústicas, com base na série harmônica30 da nota
fundamental sol.

Exemplo nº 2-2

A série harmônica é o critério mais importante para o entendimento das


propriedades acústicas de qualquer relação intervalar; a forma como os
intervalos são distribuídos e como se inter-relacionam ao longo da série
harmônica pode oferecer valiosas contribuições para a formulação de critérios,
processos e princípios de organização da harmonia com base nas relações
naturais existentes entre os sons. Isso, porém, também não pode ser tomado
como princípio único para o encadeamento de acordes ou para a condução de
vozes, pois as escolhas dos músicos podem ser feitas a partir de seus
interesses individuais, sua formação cultural, sua posição com relação aos
problemas históricos, sociais ou geográficos, entre outras tantas possibilidades.
De qualquer forma, porém, a série harmônica é um ponto de partida
consistente.
O primeiro aspecto importante a ser percebido na série harmônica é o
fato de que os harmônicos mais graves (que se encontram à esquerda, no
exemplo 2-2) estão dispostos a distâncias maiores, enquanto os harmônicos
mais agudos se dispõem a intervalos mais curtos. Por exemplo, o primeiro som

30
A Série Harmônica é um conjunto de sons que aparecem simultaneamente quando se escuta
qualquer nota. Chama-se som fundamental à nota mais grave e mais proeminente da série
harmônica; os outros sons são chamados de parciais ou harmônicos superiores.
16

parcial (harmônico nº 2) está posicionado à oitava superior da nota


fundamental; o segundo som parcial (harmônico nº 3) se encontra à distância
de 5ªJ do anterior; o harmônico nº 4 se encontra à 4ªJ superior do harmônico nº
3; os harmônicos de nº 4 a 7 se encontram à distância de terça, um do outro; a
partir do harmônico nº 7 aparece uma seqüência de tons inteiros e os últimos
quatro harmônicos se encontram à distância de semitom. A verificação dessa
constância, na série harmônica, tem levado muitos músicos a preferirem
(consciente ou inconscientemente) dispor as notas dos acordes de forma a
reproduzir esse princípio, isto é, em geral as notas mais graves são dispostas a
distâncias maiores, enquanto as notas mais agudas (presentes nas vozes
superiores) são posicionadas mais próximas, umas das outras. Esse
procedimento encontra-se, explícita ou implicitamente, na música de várias
culturas, visto que se trata de um princípio natural, existente na série
harmônica de qualquer nota cantada ou tocada31.
Ao analisarmos os acordes presentes nos exemplos nº 2-1(a) e (h),
percebe-se que a disposição das notas deste último estão mais de acordo com
a distribuição dos sons parciais da série harmônica, visto que há uma distância
maior entre o baixo e o tenor, que se encontram em posição aberta32, enquanto
que as notas de tenor, contralto e soprano estão dispostas em posição
fechada33. Já, no acorde presente em (a), as relações se invertem, pois as
notas de baixo e tenor se encontram à distância de 5ªJ, intervalo com extensão
menor do que os intervalos de sexta que estão distribuídos entre as notas
presentes nas vozes de tenor, contralto e soprano.
Entretanto, do ponto de vista da distribuição dos intervalos, o acorde do
ex. nº 2-1(a) se encontra mais equilibrado, pois os intervalos são, entre baixo e
tenor: 5ªJ (7 semitons); entre tenor e contralto: 6ªM (9 semitons) e entre
contralto e soprano: 6ªm (8 semitons). Os intervalos do acorde presente no ex.
nº 2-1(h) estão distribuídos de forma a distanciar o baixo das outras vozes (o
que gera maior desequilíbrio na distribuição dos intervalos) – entre baixo e
tenor: 10ªM (16 semitons); entre tenor e contralto: 3ªm (3 semitons) e entre
contralto e soprano: 4ªJ (5 semitons).
Com as considerações apresentadas nos últimos parágrafos, percebe-se
que a escolha por uma outra distribuição de notas do acorde de G – presentes
no ex. nº 2-1(a) e no ex. nº 2-1(h) – depende mais do interesse por uma ou
outra sonoridade do que de razões propriamente acústicas, pois ambos os
acordes estão equilibrados, dependendo da abordagem: se tomarmos a série
harmônica como critério para o equilíbrio do acorde, o acorde do ex. nº 2-1(h)
seria mais adequado; se o critério for a distribuição dos intervalos, o acorde
mais apropriado seria aquele do ex. nº 2-1(a).
Como o nosso interesse, para fins de exercício, está em facilitar a
condução de vozes, será preferível iniciarmos com o acorde apresentado no
ex. nº 2-1(h). Na opção do ex. nº 2-1(a), as vozes de tenor e contralto são

31
Há exceções a esse princípio acústico, dependendo da fonte sonora, isto é, a voz ou o
instrumento que produz o som. Por exemplo, no clarinete, os harmônicos ímpares são mais
proeminentes do que os harmônicos pares, o que produz outras relações harmônicas para a
definição da sonoridade dos acordes e para as inter-relações entre diferentes acordes.
32
Um acorde se encontra em posição aberta quando suas notas estão dispostas de maneira
que seria possível introduzir outras notas do mesmo acorde entre as notas que se encontram
em determinado ponto da música.
33
Posição fechada (ou cerrada) é aquela em que não é possível acrescentar nenhuma nota do
acorde entre as notas que estão dispostas na textura de determinado ponto musical.
17

apresentadas em seu registro extremo grave, o que não permitiria conduzir


essas vozes por movimento descendente, se isso fosse necessário. Esse é
outro problema que pode ser levado em consideração, pois quando as notas de
um acorde estão dispostas tendendo para o registro grave ou agudo de uma ou
mais vozes, pode haver dificuldade para a realização do contraponto. Por isso,
um procedimento útil seria iniciar as frases no registro médio de todas as
vozes, para que se tenha maior liberdade na condução do contraponto.
Após a escolha da distribuição das notas do primeiro acorde,
seguiremos para a condução de vozes do primeiro para o segundo acorde.
Como o primeiro acorde e as vozes exteriores do segundo já estão definidos,
devemos completar as vozes intermediárias (contralto e tenor) deste. O que já
está feito aparece no ex. nº 2-3, abaixo:

Exemplo nº 2-3

Como se trata do acorde de V grau, as notas que estão presentes no


baixo (fá#) e no soprano (lá) são, respectivamente, a terça e a quinta do
acorde. Por isso, para que esse acorde fique completo, falta acrescentar sua
fundamental (ré). A maneira mais simples de realizar a condução de vozes é
procurar se há notas comuns entre os acordes que se sucedem. Neste caso, a
nota comum é a nota ré, pois é a quinta do acorde de G (sol/si/ré) e a
fundamental do acorde de D (ré/fá#/lá). Quando há nota comum entre acordes,
é preferível mantê-la na mesma voz. Por esta razão, o mais indicado, no
exemplo acima, seria manter a nota ré no contralto (costuma-se colocar
ligaduras nas notas comuns, para identificá-las visualmente na escrita a quatro
vozes).

Exemplo nº 2-4

Com isso, obtém-se uma condução de vozes bastante equilibrada, pois


ocorrem os tipos mais eficientes de relação entre as vozes, no sentido da
independência das partes: movimento contrário entre baixo e soprano e
movimento oblíquo entre contralto e as outras vozes. Assim, pode-se tomar a
identificação de notas comuns e sua permanência nas mesmas vozes como
procedimento técnico básico de encadeamento harmônico.
Agora, falta apenas definir a voz de tenor. Partindo-se do princípio de
dobramento da fundamental do acorde, a nota dobrada seria ré; poderia ser
18

ré3, posicionado à terça menor superior da nota si, ou ré2, que está à sexta
maior inferior da mesma nota. Se tomarmos o princípio do caminho mais curto,
a escolha recairia sobre a nota ré3, pois seria o menor intervalo entre si e ré
(terça menor). Com isso, a condução de vozes ficaria como segue no ex. nº 2-
5:

Exemplo nº 2-5

Outra possibilidade, porém, seria dobrar a quinta do acorde. Com o


dobramento da quinta do acorde, a condução de vozes seria mais eficaz, visto
que todas as vozes se movimentam por graus conjuntos e as duas vozes que
dobram o lá (soprano e tenor) são conduzidas por movimento contrário (ao
passo que há uma quinta direta entre estas vozes, no ex. nº 2-5). A escolha
que faremos para a condução de vozes do primeiro ao segundo acorde será
esta34:

Exemplo nº 2-6

Há, ainda outras possibilidades que podem ser consideradas, porém


todas apresentam problemas de condução de vozes [cf. ex. nº 2-7].

Exemplo nº 2-7

Os encadeamentos apresentados nos exemplos 2-7(a) e 2-7(b) contêm


dobramento de sensível. Note-se que a terça do acorde de dominante é a
sensível da tonalidade e o seu dobramento tem como característica
desestabilizar a sonoridade do acorde, pois a sensível é a nota melódica mais

34
A escolha da nota ré, no tenor, também seria perfeitamente factível.
19

proeminente, tanto na escala maior quanto na escala menor. Por isso, na


música tonal, é raro o dobramento de sensível. Nos corais de J. S. Bach, por
exemplo, a sensível somente é dobrada nos trechos em que o acorde de V
grau não resolve na tônica.
O encadeamento presente no ex. nº 2-7(c) também apresenta um
problema de condução de vozes, porque provoca um uníssono oculto entre
contralto e tenor, sendo que a voz superior (contralto) realiza um salto
descendente ao mesmo tempo em que a voz inferior (tenor) se movimenta por
graus conjuntos (o adequado para uma condução de vozes aceitável, em que o
movimento de quinta ou oitava direta se torna menos perceptível, seria o
contrário: a voz superior se movimentar por graus conjuntos e a voz inferior
saltar).
No encadeamento do acorde de V grau para o I grau seguinte, há um
moto obligato (movimento obrigatório) de resolução da nota atrativa, que é a
condução da sensível, presente no acorde de dominante, para a fundamental
do acorde de tônica. Assim, o baixo (que já foi resolvido anteriormente, em
nossa harmonização) deve ser conduzido da maneira como fizemos: sensível-
tônica. O segundo passo, consiste em verificar a ocorrência de nota comum,
que, neste caso, é novamente a nota ré, que será mantida na voz de contralto.
O melhor passo para a voz de tenor é realizar movimento contrário com relação
às vozes externas (soprano e baixo), para compensar o movimento paralelo
existente entre estas vozes. Com isso, tem-se o dobramento da fundamental
do acorde de G (nota: sol), nas vozes de baixo e tenor [cf. ex. nº 2-8].

Exemplo nº 2-8

Outra possibilidade correta seria movimentar o tenor descendentemente


para a nota ré2:

Exemplo nº 2-9

Apesar de correta, a solução do ex. nº 2-9 não é tão eficaz quanto a


apresentada no ex. nº 2-8, por duas razões: 1. o movimento melódico de 5ªJ
descendente (lá-ré, do ex. nº 2-9) é mais amplo do que o graus conjuntos (lá-
sol, do ex. nº 2-8), o que contraria o princípio de conduzir as vozes pelo
caminho mais curto; 2. a voz de tenor se movimenta para seu registro extremo
grave, o que pode provocar problemas para a sua continuação. Além disso, o
20

acorde não fica tão equilibrado acusticamente quanto aquele do exemplo 2-8,
pois o intervalo mais amplo está entre tenor e contralto, e não entre as duas
vozes inferiores (baixo e tenor), como seria o mais adequado de acordo com o
princípio deduzido da análise da série harmônica. De qualquer forma, esta
última resolução está corretamente realizada e a escolha por uma ou outra
dessas versões pode ser entendida apenas como o resultado de certa
intencionalidade ou gosto pessoal. Schoenberg, em seu Tratado de Harmonia,
por exemplo, desaconselha o princípio do ‘caminho mais curto’ por considerá-lo
como um critério sem justificativa de um ponto de vista estritamente musical.
De qualquer forma, sabe-se que esse preceito surgiu com o sentido de facilitar
a execução do canto, pois se sabe que cantar linhas melódicas em graus
conjuntos é mais fácil do que entoar uma melodia repleta de saltos.
Qualquer outra solução, na voz de tenor, incorreria em erro de condução
de vozes. Na solução apresentada no ex. nº 2-10(a), abaixo, ocorrem oitavas
paralelas entre as vozes de tenor e soprano; na solução do ex. nº 2-10(b), há
quintas ocultas35 entre baixo e tenor.

Exemplo nº 2-10

No encadeamento para o tempo seguinte (que se encontra na segunda


metade do segundo compasso), a quinta do acorde de D está dobrada nas
vozes de baixo e soprano, o que significa que devemos completar as vozes
intermediárias (contralto e tenor) com as duas notas que faltam. A melhor
solução, na voz de contralto, é manter a nota comum (ré). Com isso, deve-se
completar o acorde com a terça (nota: fá#; sensível), na voz de tenor, o que é
bastante fácil porque é o caminho mais curto a partir do sol do acorde anterior.
Assim, tem-se a solução abaixo, ex. 2-11, como a solução mais adequada, do
ponto de vista técnico:

Exemplo nº 2-11

35
Chamaremos de ‘quintas ocultas’ e ‘oitavas ocultas’ aquelas quintas ou oitavas diretas em
que a voz superior se movimenta por salto, pois o salto na voz superior reforça a percepção
das quintas e oitavas e se torna indesejável para a realização de uma harmonização eufônica.
21

Entretanto, pode-se considerar que a voz de contralto fica muito


empobrecida, por permanecer melodicamente estática [cf. contralto no ex. 2-
11].
Se a intenção for produzir algum movimento na voz de contralto, pode-
se optar pela solução seguinte [ex. nº 2-12], que, apesar de não seguir o
critério do caminho mais curto, também está correta.

Exemplo nº 2-12

Para manter nosso exercício seguindo os preceitos mais rigorosos da


harmonização, preferimos manter a voz de contralto estática (o que não é uma
opção ‘artística’, mas que obedece a critérios técnicos e didáticos) e
permanecer com a nota comum.
Nos dois encadeamentos seguintes, a nota ré ainda pode permanecer
como nota comum entre os acordes:

Exemplo nº 2-13

Com isso, falta apenas preencher a voz de tenor para completarmos a


harmonização do terceiro compasso. Outra razão que define a escolha do
princípio do ‘caminho mais curto’ é o fato de que manter as notas comuns
durante o maior tempo possível facilita a realização da condução de vozes
(novamente, é importante salientar que esse é um critério apenas didático, para
facilitar o trabalho do estudante que ainda não tem domínio técnico na
harmonização a quatro vozes – não há nenhuma razão musical para
decidirmos por um ou outro preceito). Uma boa solução seria conduzir a voz de
tenor por movimento contrário com relação ao soprano, com as notas fá#-sol-
lá.

Exemplo nº 2-14
22

Com isso, se produz uma espécie de contraponto invertido36, pois o


movimento contrário que se realiza entre soprano e tenor, nos três primeiros
acordes, é efetuado entre baixo e soprano, a partir do segundo compasso. O
exemplo nº 2-15 demonstra como a seqüência de notas sol-lá-si é apresentada
no soprano e, posteriormente é imitada no baixo; enquanto isso, o retrógrado
dessa seqüência (notas: si-lá-sol) é apresentado no tenor e depois imitado no
soprano. A nota si, presente no soprano, no primeiro tempo do segundo
compasso, serve como elisão37 entre as duas apresentações, pois é,
simultaneamente, o final do primeiro grupo melódico e o início do grupo
seguinte. O resultado assemelha-se ao contraponto invertido porque a linha
melódica superior (sol-lá-si) é repetida na parte inferior, ao mesmo tempo em
que a linha melódica inferior (si-lá-sol) se repete na parte superior.

Exemplo nº 2-15

Ocorre, também, neste trecho, um bicínio38 por movimento contrário, que


se desloca entre as vozes: inicialmente ocorre entre soprano e tenor [cf. ex. 2-
16(a)], depois passa para soprano e baixo [cf. ex. 2-16(b)] e volta para soprano
e tenor [cf. ex. 2-16(c)], no terceiro compasso. Nesta última exposição, o bicínio
é transposto à segunda inferior (notas: fá#, sol e lá).

36
Contraponto Invertido (ou Contraponto Duplo) é um tipo de contraponto em que as vozes
mudam de posição, ou seja, a voz superior se torna mais grave e a voz inferior, mais aguda.
Quando a mudança da posição das vozes ocorre com base na mudança de oitava, chama-se
‘contraponto invertido à oitava’. Qualquer intervalo pode servir de base, produzindo
‘contraponto invertido à quinta’, ‘contraponto invertido à quarta’, ‘contraponto invertido à sexta’,
etc.
37
Entende-se por elisão o emprego de um elemento (uma nota, um acorde, etc.) com dupla
função, isto é, o mesmo elemento é utilizado para finalizar um segmento e para iniciar o
segmento seguinte. O termo vem da fonética, em que significa a eliminação de uma vogal
átona, no final de uma palavra, que se liga ao início do vocábulo seguinte, como, por exemplo,
ocorre em: minh’alma [minha alma], copo d’água [de água], dele [de ele], daqui [de aqui], etc.
38
Bicínio (latim: bicinium) é a combinação de duas vozes que são utilizadas como um par
contrapontístico, isto é, cada uma das partes do contraponto é formada não por uma, mas por
duas vozes, que são geralmente imitadas por outras duas. A técnica do bicínio foi bastante
aplicada ao longo do século XVI. O termo também era usado pelos luteranos para indicar
composições com apenas duas vozes.
23

Exemplo nº 2-16

Para voltarmos ao estudo da condução de vozes, podemos chamar a


atenção de que, na segunda metade do terceiro compasso, ocorre uma quinta
direta entre baixo e tenor:

Exemplo nº 2-17

Essa quinta direta não apresenta problema porque a voz superior se


movimenta por graus conjuntos.
O problema irá aparecer na condução para o próximo acorde, pois
surgirá um impasse no encadeamento do acorde de V grau para o IV grau.
Essa dificuldade é comum quando se encadeiam dois acordes que não
possuem nota comum39. Para manter o acorde de C completo, em qualquer
solução sem cruzamento de vozes, produzem-se oitavas paralelas [cf. solução
do ex. nº 2-18(a)], quintas paralelas [soluções dos ex. nº 2-18(a) e (b)] ou
uníssono oculto [solução do ex. nº 2-18 (c)].

Exemplo nº 2-18

Assim, a única solução correta possível seria obtida com a supressão da


quinta do acorde, dobramento da fundamental em oitava, entre baixo e tenor, e
dobramento da terça em uníssono, entre contralto e soprano, conforme
aparece no exemplo nº 2-19.

39
Os acordes que não possuem notas comuns são aqueles cujas fundamentais se encontram
à distância de segunda (maior ou menor) entre si. No encadeamento de acordes sem notas
comuns, a condução de vozes se torna mais difícil.
24

Exemplo nº 2-19

Esta solução, apesar de correta, produz outra dificuldade na condução


de vozes para a cadência à dominante que vem a seguir. Como a voz de
soprano se movimenta descendentemente (notas: mi-ré), o uníssono com o
contralto gera um problema de contraponto, pois haverá um tipo de cruzamento
de vozes, em que a voz inferior aparece com uma nota mais aguda do que a
nota quer aparece na voz superior, em um momento imediatamente posterior.
Neste caso [cf. ex. nº 2-20], a voz de contralto, na primeira metade do
compasso (nota: mi), será necessariamente mais aguda do que a voz de
soprano (nota: ré) presente na segunda metade do mesmo compasso40.

Exemplo nº 2-20

De qualquer forma, a solução do ex. nº 2-20 é possível, visto que,


apesar de considerada como sendo incorreta em alguns tratados, esse
procedimento foi empregado com relativa freqüência ao longo do Período
Tonal, inclusive nos corais de J. S. Bach. O problema intransponível aparece
na condução da voz de tenor, em que deve ser completado o acorde de
dominante cadencial com a sensível da tonalidade, isto é, a terça do acorde de
D (nota: fá#). Para isso, a voz de tenor deverá realizar, necessariamente, um
salto melódico de trítono (dó-fá#), que é considerado o intervalo de mais difícil
entonação.

40
Note-se que não há outra solução possível para o encadeamento do contralto, neste ponto:
dobrar a nota ré do soprano, em uníssono, implicaria em uníssono paralelo, o que é incorreto
quando se pretende produzir independência das vozes; conduzir o mi do contralto para o fá#
superior geraria cruzamento de vozes que prejudicaria a percepção da linha melódica do
soprano, pois a nota fá# apareceria como sendo a mais aguda; também não é possível realizar
o salto de sétima do mi para o fá# grave, pois seria um movimento melódico difícil de ser
entoado.
25

Exemplo nº 2-21

Como não é possível apresentar a terça do acorde de V grau na voz de


contralto nem na voz de tenor, chegamos a um impasse em nossa
harmonização. Esta é uma situação bastante comum, pois somente é possível
perceber que haverá um problema intransponível de condução de vozes
quando ele se aproxima. Por essa razão, é freqüente que se tenha que retomar
a harmonização de algum ponto anterior para podermos resolver um problema
que se mostra insolúvel, isto é, tem-se que modificar algum trecho anterior da
condução de vozes para chegarmos a um resultado satisfatório. Para isso, o
melhor seria revisar a condução de vozes de trás para frente. O primeiro passo
é definirmos como seria a melhor disposição das notas no penúltimo acorde,
para uma boa preparação da cadência. Note-se que a única colocação possível
das notas do acorde cadencial de V grau completo, que ficará em posição
cerrada, é a que se encontra no exemplo nº 2-21. Assim, a melhor condução
de vozes, no encadeamento IV–V é esta, apresentada no ex. nº 2-22:

Exemplo nº 2-22

Note-se que, no exemplo acima, os intervalos problemáticos (quinta e


oitava, que podem gerar movimentos ocultos ou paralelos) se relacionam por
movimento contrário (oitava, entre o baixo e o soprano; quinta entre o baixo e o
contralto). O tenor conduz da quinta do acorde de C para a terça do acorde de
D (sol-fá#), o que tem sido considerado como o melhor encadeamento que
conduz à sensível, ou seja, movimento descendente de semitom. Por essas
razões, essa é a condução de vozes ideal para conduzir à cadência. Porém,
surge outro problema: chegar no acorde de C que prepara a cadência à
dominante. Da maneira como vinha nossa harmonização, não é possível, pois
se produzem quinta e oitava paralelas [cf. ex. nº 2-23].
26

Exemplo nº 2-23

Reconhecido o problema, temos que ver como conduzir de um acorde


para o outro, no caso anterior. A melhor forma de solucionar este problema é
inverter o encadeamento: em vez de produzir movimentos paralelos entre as
três vozes inferiores, deve-se buscar movimento contrário com relação ao
baixo, já que ambos os paralelismos se dão com esta voz. Uma solução
possível é a do ex. nº 2-24, em que a quinta (entre baixo e tenor) e a oitava
(entre baixo e contralto) aparecem por movimento contrário:

Exemplo nº 2-24

Com isso, tem-se a sensível (terça da dominante; nota: fá#) dobrada, o


que, neste caso, não se configura como um problema, pois o acorde de V grau
conduz para o IV grau e não para o I grau41.
Novamente, temos que conferir o encadeamento que conduz ao primeiro
dos acordes do exemplo anterior, para verificar se há algum problema e
resolvê-lo. O exemplo nº 2-25, abaixo, mostra o encadeamento do acorde
anterior para o acorde atual, conforme o havíamos definido no ex. nº 2-24:

Exemplo nº 2-25

Percebe-se que há uma oitava paralela entre as vozes de soprano e


tenor. Por isso, temos que fazer mais uma modificação em nossa condução de
vozes previamente estabelecida. Neste caso, temos que modificar apenas o
tenor, que, em vez de sol pode cantar a nota ré2. Assim, os intervalos de oitava
41
Conforme já foi comentado, evita-se dobrar a sensível no acorde de dominante que conduz à
tônica porque esta é uma nota atrativa, isto é, exige um movimento obrigatório, na linha
melódica que conduz para a tônica. Assim, o dobramento da terça da dominante que resolve
na tônica produz a tendência à realização de oitavas paralelas. No entanto, quando o acorde
de V grau não se movimenta para a tônica, pode-se dobrar sua terça.
27

(entre tenor e soprano) e de quinta (entre baixo e contralto) são conduzidos por
movimento contrário (sendo que há um movimento de terça paralela entre
baixo e tenor e de sexta direta entre contralto e soprano – o que soa bastante
eufônico), conforme demonstra o exemplo nº 2-26:

Exemplo nº 2-26

O próximo passo seria verificar a condução para o primeiro dos acordes


presentes no exemplo nº 2-26.

Exemplo nº 2-27

Conforme se pode perceber no exemplo nº 2-27, não há nenhum


problema de condução de vozes, pois a única oitava presente no acorde, entre
tenor e contralto, ocorre por movimento oblíquo.
Como não há mais problemas a serem solucionados, a harmonização da
primeira frase da melodia coral Freu dich sehr está completa. O exemplo nº 2-
28, abaixo, pode ser considerado plenamente adequado, segundo os princípios
de harmonização e condução de vozes do Sistema Tonal.

Exemplo nº 2-28

Com o que foi discutido acima, percebe-se em que sentido Schoenberg


tem razão ao afirmar que nem sempre a melhor escolha para uma boa
condução de vozes é o caminho mais curto. O processo de harmonização
demonstra que, muitas vezes, a realização de alguns saltos melódicos pode
ser a solução mais eficaz para obter uma harmonização com condução de
vozes satisfatória. Note-se que, no ex. nº 2-28, entre a segunda metade do
segundo compasso e a primeira metade do quarto compasso, há saltos
melódicos nas vozes de tenor e contralto que não implicam em problemas de
28

harmonização. Ao contrário, podem ser considerados como boas soluções


melódicas (no âmbito de cada voz) e como uma boa solução contrapontística
(no âmbito da relação entre as vozes). Pode-se considerar que estes saltos
melódicos produzem diversidade na textura, por se apresentarem como um
segmento contrastante no interior de uma frase que inicia e termina com
predomínio de notas comuns e graus conjuntos.

O próximo passo de nossa harmonização será completar a condução de


vozes da segunda frase, acrescentando as vozes intermediárias.
29

3. COMPLETAMENTO DA SEGUNDA FRASE

Agora, podemos completar a harmonização da segunda frase,


preenchendo as vozes de contralto e tenor.
Inicialmente, algumas considerações sobre o encadeamento entre o
acorde cadencial da primeira frase e o primeiro acorde da segunda frase.
Geralmente, nas harmonizações realizadas pelos músicos do Período Tonal,
com relação à condução de vozes de acordes que pertencem a frases
diferentes, não se encontra o mesmo rigor que existe no interior de cada frase.
Isso se explica pelo fato de que, após uma cadência, há uma breve suspensão
do tempo musical e, por isso, a passagem entre o último acorde de uma frase e
o primeiro da frase seguinte não é tão importante quanto as passagens de
acordes no decorrer de cada frase. Assim, são possíveis movimentos
melódicos incomuns, como saltos de sétima ou trítono, e até mesmo oitavas e
quintas ocultas, em mudanças de frase. Por outro lado, oitavas e quintas
paralelas devem ser evitadas em todas as situações, em harmonizações
estritamente tonais. Assim, uma condução de vozes possível, na passagem da
primeira à segunda frase da melodia coral Freu dich sehr, poderia ser a
seguinte:

Exemplo nº 3-1

Note-se, no exemplo nº 3-1, acima, como, propositalmente, foram


tomadas algumas liberdades com relação à escrita contrapontística mais
rigorosa: entre baixo e contralto ocorre uma oitava oculta, isto é, um movimento
direto em que a voz superior se movimenta por salto; o tenor realiza um salto
melódico de trítono (fá#-dó); entre tenor e soprano há uma quinta oculta, em
que a voz superior se movimenta por salto; todas as vozes se movimentam na
mesma direção, sendo que as três vozes superiores saltam. Esses
procedimentos devem ser evitados quando se trata de um encadeamento de
acordes no interior de uma frase musical, mas podem ser empregados na
passagem de uma frase a outra.
Com a escolha do primeiro acorde completo, parte-se para a disposição
das notas do segundo acorde, o qual já tem as vozes exteriores definidas [cf.
ex. 3-2]:
30

Exemplo nº 3-2

Se a nota mi do contralto, no ex. nº 3-2, for conduzida pelo caminho


mais curto, tanto pode ir para fá# como para ré. A escolha correta recai sobre o
movimento contrário com relação ao soprano e ao baixo, isto é, a nota ré, pois
se escolhêssemos conduzir ascendentemente para fá#, produziríamos uma
oitava paralela entre o baixo e o contralto. Com isso, resta escolhermos a nota
do tenor, que poderia ser ré ou lá. A escolha sobre a nota ré preenche dois
critérios da condução de vozes: é o caminho mais curto e resulta no
dobramento da fundamental do acorde, porém produziria uma quinta paralela
entre o tenor e o soprano, o que seria um erro de condução de vozes. Assim, a
escolha correta seria a nota lá, no tenor, que se relaciona por movimento
contrário com relação ao soprano e ao baixo.
O exemplo nº 3-3 apresenta o resultado do encadeamento de vozes do
primeiro ao segundo acorde da segunda frase.

Exemplo nº 3-3

Na seqüência, têm-se as notas sol (fundamental) e si (terça) do acorde


de G, no soprano e no baixo, respectivamente. Para deixar o acorde com todas
as notas (sol, si e ré), basta manter a nota comum (ré), na voz de contralto.

Exemplo nº 3-4

Para a condução do tenor há várias dificuldades, pois se esta voz se


movimentar por grau conjunto ascendente, para a nota si, produzirá oitava
paralela com o soprano [cf. ex. nº 3-5(a)]; se o tenor se dirigir
descendentemente para a nota ré, irá cruzar com o baixo [cf. ex. nº 3-5(b)]; se
o tenor saltar para o ré agudo, produzirá quinta oculta com o baixo [cf. ex. nº 3-
31

5(c)]. Assim, a única possibilidade de condução da voz de tenor, neste trecho,


é dobrar em uníssono com o baixo (nota: sol) [cf. ex. nº 3-5(d)].

Exemplo nº 3-5

Vamos avançar um pouco no encadeamento da voz de tenor e ver como


a nota sol pode permanecer como nota comum ao longo de três acordes, que
são: G-C-G/D. Por esta razão, pode-se adiantar e definir previamente a parte
de tenor, neste trecho, conforme está demonstrado no ex. nº 3-6 (note-se que
as vozes de soprano e baixo já estavam realizadas).

Exemplo nº 3-6

No exemplo nº 3-6, acima, falta completar a parte de contralto do


segundo e terceiro acordes. O segundo, que é um acorde de C em estado
fundamental, necessita da terça para soar com todas as suas notas. Por isso, é
necessário que a nota mi seja colocada no contralto. Esta é a única solução
adequada (note-se que se não fosse possível, por alguma razão, preencher o
contralto com a nota mi, deveríamos revisar o que já foi feito, desde o início da
frase, para evitar a presença de um acorde vazio). Como a presença da nota
mi no contralto não incorre em nenhum erro, podemos deixá-la no contralto e
passar para o acorde seguinte, que deve ter, necessariamente, a nota ré
dobrada. Com isso, tem-se também o contralto completo até o penúltimo
compasso, conforme demonstra o ex. nº 3-7.

Exemplo nº 3-7

Deve-se, neste ponto, entender como funciona o encadeamento do


acorde cadencial de quarta e sexta apojatura (que é o terceiro acorde do
32

exemplo nº 3-7). Esta formação tem as notas do acorde de tônica em segunda


inversão (ré/sol/ré/si), porém aparece com função de dominante (pois não soa
como um ponto de repouso) e exige continuação para resolver na tônica em
estado fundamental. Por esta razão, interpreta-se este acorde como uma
dominante à qual foram aplicadas duas apojaturas (a nota sol e a nota si). Ao
analisar o exemplo nº 3-7, percebe-se que a nota ré está dobrada como
fundamental do acorde de V grau. Entende-se que a nota si (que está no
soprano, no exemplo acima) é uma dissonância no acorde de D (que tem as
notas ré, fá# e lá) e deve resolver na nota lá (quinta do acorde de dominante) e
que a nota sol é outra dissonância, que deve resolver na nota fá# (sensível;
terça da dominante).
O processo de condução de vozes é realizado da seguinte maneira:
antes de qualquer coisa, conduz-se a voz que permanece com a nota comum,
que, neste caso, é a voz de contralto [cf. ex. nº 3-8].

Exemplo nº 3-8

Para completar a voz de tenor, no exemplo nº 3-8, há apenas um


movimento possível, pois no acorde de V grau que prepara a cadência, está
faltando sua nota mais característica, que é a sensível da tonalidade. Por esta
razão, a nota do tenor deverá ser, necessariamente, fá# [cf. ex. nº 3-9].

Exemplo nº 3-9

Com os procedimentos realizados acima, percebe-se aquilo que foi


mencionado anteriormente: as notas sol e si são tratadas como dissonâncias
que ocorrem no acorde de D. A nota ré (fundamental do acorde de V grau) é
mantida como nota comum nas vozes onde aparece (baixo e contralto, neste
caso), sendo que, no baixo, o movimento cadencial característico é o salto de
oitava descendente. Os numerais arábicos, no ex. nº 3-9, indicam que a nota si
é uma sexta apojatura que resolve na quinta do acorde de dominante (6–5),
enquanto a nota sol é uma quarta suspensa que resolve na terça do mesmo
acorde (4–3).
33

Falta-nos, agora, realizar a resolução da dominante na tônica final. Com


o baixo e o soprano predefinidos, o primeiro procedimento deve ser a resolução
melódica da sensível na fundamental do acorde de tônica, ou seja, realizar o
movimento fá#-sol, na voz de tenor.

Exemplo nº 3-10

Como o movimento sensível-tônica é obrigatório na cadência final, por


se tratar da resolução de uma nota atrativa, o acorde cadencial ficará
incompleto devido à triplicação da fundamental (note-se que a nota sol está
presente no baixo, no tenor e no soprano). Com isso, não se pode manter o
princípio da permanência da nota comum (nota ré) no contralto, pois a
harmonização finalizaria com um acorde vazio (sem a terça). Assim, a nota ré
do contralto deve saltar à terça menor inferior para a nota si (terça do acorde
de tônica) para obter uma boa condução de vozes e uma cadência autêntica
perfeita típica. Note-se, no ex. nº 3-11, como ocorre uma quinta direta entre
baixo e soprano, na passagem do primeiro ao segundo acorde, e uma oitava
direta entre baixo e tenor, na resolução do movimento V-I final (ambas são
consideradas corretas, em textura a quatro vozes). O encadeamento
apresentado no ex. nº 3-11 é um tipo de terminação muito comum nos corais
de J. S. Bach.

Exemplo nº 3-11

Com isso, temos nossa melodia coral completamente harmonizada. O


resultado da harmonização – com a análise cordal, a análise gradual e a
análise funcional – está no exemplo nº 3-12. Note-se como a cifra gradual
presente no penúltimo compasso difere daquela apresentada no ex. nº 3-9.
Ambas as formas de cifrar são possíveis, porém significam interpretações
diferentes: a cifra apresentada no ex. nº 3-9 sugere que se trata de um acorde
de V grau com dupla apojatura (ou um acorde de quarta e sexta apojatura); a
cifra presente no penúltimo compasso do exemplo 3-12 indica que se trata de
um acorde de V grau que possui as notas do acorde de I grau em segunda
inversão.
34

Exemplo nº 3-12

Com a melodia coral Freu dich sehr harmonizada com base em um


processo do tipo nota-contra-nota, o próximo passo será a aplicação de
ornamentação melódica nas vozes inferiores, através do emprego de notas de
passagem, bordaduras, suspensões e outros métodos de enriquecimento da
textura.
35

4. ORNAMENTAÇÃO DAS VOZES INFERIORES

A harmonização que acabamos de realizar pode ser comparada a um


contraponto de primeira espécie, pois é completamente homofônica. Essa
textura do tipo nota-contra-nota ainda pode ser enriquecida com acréscimo de
notas de passagem, bordaduras, suspensões e outras ornamentações
melódicas nas vozes inferiores. Vamos proceder passo a passo, para o
desenvolvimento das técnicas de ornamentação das vozes inferiores, a partir
da harmonização que acabamos de realizar.
Inicialmente, podem-se averiguar os pontos em que se encontram
intervalos melódicos de terça, nas vozes de contralto, tenor e baixo. Sempre
que há intervalos de terça, esses podem ser preenchidos com notas de
passagem. A ornamentação mais usual ocorre na passagem de acordes
cadenciais. Por exemplo, na cadência final, em nossa harmonização, há um
movimento descendente ré-si, entre as duas últimas notas da voz de contralto.
Esse salto melódico pode ser preenchido com a nota dó de passagem
(indicada com a abreviatura ‘[np]’, no exemplo nº 4-1), conforme o exemplo
abaixo.

Exemplo nº 4-1

O resultado desse procedimento, comumente chamado de sétima de


passagem (note-se que a nota dó é a sétima do acorde de D), é muito comum
nas cadências com textura a quatro ou mais vozes, desde a época do
Renascimento. O ex. nº 4-2 demonstra este processo.

Exemplo nº 4-2

Com o passar do tempo, já na época de Claudio Monteverdi, no início do


século XVII, essa sétima foi incorporada ao acorde cadencial de V grau,
gerando a típica formação de sétima da dominante. Note-se que, no ex. nº 4-3,
a nota dó já aparece como parte do contraponto nota-contra-nota, ou seja, a
sétima é incorporada como ‘nota de acorde’, deixando de ser tratada apenas
como ‘nota estranha á harmonia’.
36

Exemplo nº 4-3

Na ornamentação melódica das vozes inferiores, tem-se que ter o


cuidado de não produzir quintas ou oitavas paralelas. Estas ocorrem, no
acréscimo de notas de passagem, sempre que se tem uma quinta ou oitava por
movimento direto, quando a voz superior se movimenta por graus conjuntos e a
voz inferior salta uma terça na mesma direção. A maneira mais eficaz de evitar
essas quintas ou oitavas paralelas é não acrescentar notas de passagem
quando há quintas ou oitavas diretas. No exemplo abaixo é demonstrado este
problema. No encadeamento do exemplo nº 4-4(a), entre os acordes de
Bm(b5)/D e Am, ocorre uma quinta direta corretamente elaborada, entre as
vozes de tenor e contralto. Note-se que, no tenor, há um salto de terça
ascendente, que poderia ser preenchido com uma nota de passagem,
conforme demonstra o encadeamento do ex. nº 4-4(b). Essa nota de
passagem, porém, produz um erro de condução de vozes, pois gera uma
quinta paralela, que está destacada no ex. nº 4-4(c). Visto que a nota que
conduz para o lá do tenor passa a ser o sol, que é uma quinta inferior com
relação ao ré do contralto, se formará um movimento de quintas paralelas entre
tenor e contralto (sol/ré-lá/mi).

Exemplo nº 4-4

Assim, tem-se que ter cuidado, no acréscimo de notas de passagem e


outras ornamentações melódicas, para evitar que se produzam movimentos
paralelos indesejáveis nas vozes inferiores.
Voltemos à ornamentação da harmonização da melodia coral Freu dich
sehr. Se acrescentarmos notas de passagem em todos os pontos possíveis,
obteremos o seguinte resultado:
37

Exemplo nº 4-5

Se considerarmos que o dobramento em terças entre baixo e tenor,


presente no terceiro compasso, soa pesado e pretendemos obter uma
sonoridade mais leve e transparente, podemos eliminar a nota de passagem de
uma dessas duas vozes42. Como a voz que geralmente apresenta mais saltos
melódicos é a voz de baixo, poderíamos eliminar o salto de terça no baixo,
neste compasso [cf. ex, nº 4-6, c. 3], o que ainda contribuiria para gerar
contraste nesta voz, visto que todo o restante da frase está conduzido por
graus conjuntos.

Exemplo nº 4-6

Outra possibilidade de ornamentação das vozes inferiores seria


acrescentar bordaduras nos trechos em que há notas repetidas. Da mesma
forma como foi comentado com relação às notas de passagem, deve-se tomar
cuidado com relação à produção de oitavas e quintas paralelas ou ocultas
quando se acrescentam bordaduras. Aqui, os cuidados devem ser redobrados,
porque não ocorrem em apenas um tipo de condução de vozes, como acontece
com relação ao acréscimo de notas de passagem, em que somente podem
surgir oitavas ou quintas paralelas nos pontos em que já havia oitavas ou
quintas diretas.
Vamos proceder ao acréscimo de bordaduras em todos os pontos para
discutir a possibilidade, ou não, de sua inclusão. No início da parte de contralto
ocorrem cinco repetições da nota ré. Isto poderia ser ornamentado com
alternância de bordaduras superiores e inferiores, ou vice-versa. Assim,
poderíamos obter as duas ornamentações seguintes: a ornamentação existente
no ex. nº 4-7(a) é uma seqüência de bordaduras superior-inferior; no ex. nº 4-
7(b), tem-se a seqüência do tipo bordadura inferior-superior.

42
Naturalmente, que se buscamos um caráter pesante, não há problema algum em deixar a
condução de vozes como está no exemplo nº 4-5; neste caso, poderíamos, inclusive,
acrescentar outros dobramentos desse tipo.
38

Exemplo nº 4-7

Sa for aplicada a ornamentação do ex. nº 4-7(a) à voz de contralto da


nossa harmonização, teremos:

Exemplo nº 4-8

A primeira bordadura (ré-mi-ré), no exemplo acima, está correta; a


segunda bordadura (ré-dó-ré) produz uma quinta paralela (fá#-dó/sol-ré), entre
baixo e contralto, que não é problemática, pois a primeira quinta é diminuta43.
De um ponto de vista acústico, porém, são dois intervalos com qualidades
harmônicas completamente distintas, já que a quinta diminuta é o intervalo
mais instável harmonicamente, que requer resolução em alguma nota que não
compõe esse intervalo [cf. a resolução de notas atrativas], enquanto que a
quinta justa é o intervalo mais estável entre duas notas diferentes e, por isso é
completamente estático. Além disso, a relação entre os sons (fundamental e
seus harmônicos) que formam o trítono (quinta diminuta) é extremamente
complexa (proporção de 140/99)44; enquanto que a quinta justa é o intervalo
mais simples entre duas notas distintas (proporção de 3/2). Assim, percebe-se
que um movimento entre uma quinta diminuta e uma quinta justa na mesma
direção não pode ser considerado como uma quinta paralela, pois se trata de
dois intervalos com qualidades intrínsecas bastante diferentes.
A bordadura seguinte (ré-mi-ré), presente no início do segundo
compasso do ex. nº 4-8, produz uma quinta paralela entre contralto e soprano
(mi/si-ré/lá). Por essa razão, essa bordadura não pode ser empregada, pois
seu uso incorreria em erro de condução de vozes. A bordadura seguinte (ré-dó-
ré) está correta. Com isso, iniciando com uma bordadura ascendente, teríamos

43
É importante notar que alguns tratados de harmonia consideram incorreto esse tipo de quinta
paralela quando aparece uma quinta diminuta antes de uma quinta justa (5ªd-5ªJ). Como este
tipo de movimento é comum na música coral de J. S. Bach (que é tomado como o modelo para
o estudo de harmonia em estilo coral), consideraremos correto o emprego de quintas paralelas
quando uma das quintas for diminuta.
44
A proporção entre duas freqüências que se relacionam por quinta diminuta é de 140/99 (se o
lá3 tem a freqüência de 440Hz, o mib4 terá a freqüência de 622Hz), ao passo que os intervalos
justos têm proporções mais simples: o intervalo de oitava justa tem a proporção de 2/1 (se
lá3=440Hz, então lá4=880Hz), a quinta justa tem a proporção de 3/2 (se lá3=440Hz, então
mi4=660Hz) e a quarta justa tem a proporção de 4/3 (se lá3=440Hz, então ré4=586Hz). Essas
relações entre os sons demonstram o nível de estabilidade ou de tensão dos intervalos que os
compõem. [Obs.: as freqüências não apresentam números decimais, isto é, estão anotados
apenas os números inteiros que compõem as freqüências].
39

o seguinte movimento melódico [cf. ex. nº 4-9], na parte de contralto, no início


da harmonização:

Exemplo nº 4-9

Podemos, agora, experimentar a ornamentação da voz de contralto


presente no exemplo nº 7(b), isto é, iniciando com a bordadura inferior (ré-do-
ré). Assim, obteríamos:

Exemplo nº 4-10

Neste caso, a primeira bordadura (ré-dó-ré) já atinge uma quinta paralela


(dó/sol-ré/lá) entre contralto e soprano devendo, por isso, ser evitada; a
segunda bordadura (ré-mi-ré) também produz uma quinta paralela entre tenor e
contralto (lá/mi-sol/ré); a primeira bordadura do segundo compasso (ré-dó-ré)
atinge a quinta entre contralto e soprano por movimento contrário e, assim,
pode ser mantida; a última bordadura (ré-mi-ré), do exemplo nº 4-10, produz
uma oitava direta (fá#/ré-ré/ré), entre contralto e tenor, que pode ser mantida,
visto que a voz superior se movimenta por graus conjuntos. Mantendo-se
somente as bordaduras que não contêm erros, tem-se o que aparece no ex. nº
4-11, abaixo:

Exemplo nº 4-11

Para a versão definitiva de nossa harmonização ornamentada, tanto


poderíamos escolher a versão presente no exemplo nº 9 quanto aquela do
exemplo nº 11. Poder-se-ia, ainda, combinar ambas as versões, sendo que há
mais de uma possibilidade de combinação entre as duas versões, conforme se
apresenta no ex. nº 4-12.
40

Exemplo nº 4-12

No exemplo nº 4-12, acima, aparecem quatro versões de ornamentação


da voz de contralto, com base no que foi discutido anteriormente (naturalmente,
ainda haveria outras possibilidades). A ornamentação presente no ex. nº 4-
12(a) é a combinação do compasso mais ornamentado de cada um dos
exemplos anteriores – o primeiro compasso do ex. nº 4-9 e o segundo
compasso do ex. nº 4-11. O resultado torna-se interessante pelo fato de que
um compasso aparece como a inversão do outro, isto é, no primeiro compasso
do ex. nº 4-12(a) tem-se a seqüência bordadura superior-bordadura inferior; no
segundo compasso, tem-se a seqüência bordadura inferior-bordadura superior.
Pode-se considerar a versão do ex. nº 4-12(a) muito pesada, com
bordaduras em demasia em apenas uma das vozes, o que pode desequilibrar a
textura geral a quatro vozes. Por isso, poder-se-ia escolher alguma das outras
versões. As versões (b) e (c), do ex. nº 4-12, são similares em sua estrutura,
pois em cada uma delas permanece a ornamentação no mesmo ponto do
compasso: na versão (b), a bordadura é mantida na primeira metade do
compasso; na versão (c), mantém-se na segunda parte do compasso. Além
disso, em ambas as versões, no segundo compasso, o movimento melódico é
invertido – na versão (b), há uma bordadura superior, no primeiro compasso, e
uma bordadura inferior, no segundo; na versão (c) ocorre o inverso. Esses
procedimentos (repetição ou imitação45 de um segmento melódico por
inversão46 e na mesma posição métrica47) são comuns nas técnicas de
contraponto encontradas na música de várias épocas.

45
Entende-se, por repetição, a reprodução de um trecho musical na mesma voz ou parte; por
imitação, entende-se a reprodução de um segmento musical em outra voz ou parte.
46
A inversão consiste na execução do mesmo padrão melódico, porém em direção oposta ao
modelo original. Assim, um intervalo de segunda maior ascendente será apresentado, na
inversão, como segunda maior descendente.
47
A posição métrica é o ponto do compasso em que determinada frase melódica é
apresentada. Considera-se que há três tipos de início: 1. tético, quando uma melodia inicia no
tempo forte do compasso; 2. acéfalo, quando a linha melódica inicia após o tempo forte, isto é,
quando se elimina o tempo forte inicial; 3. anacrúsico, quando a melodia inicia como
preparação para um tempo forte, ou seja, com anacruse. Há dois tipos de desinência: 1.
desinência masculina, aquela que termina em um tempo forte; 2. desinência feminina, que
41

Conforme ocorre na versão presente no ex. nº 4-12(d), também seria


possível realizar o procedimento inverso, isto é, manter o mesmo tipo de
bordadura (mantém-se a bordadura superior, neste caso48) com deslocamento
métrico49 (no primeiro compasso, a bordadura aparece na primeira metade,
sendo deslocada para a segunda metade do segundo compasso). Todas essas
possibilidades mantêm algumas características comuns (tipo de bordadura ou
posição métrica da mesma) e modifica outras dessas características, o que tem
sido considerado pelos músicos em geral como sendo um bom critério para a
organização do contraponto50.
Na segunda frase da nossa harmonização da melodia coral Freu dich
sehr, também ocorrem notas imediatamente repetidas, na voz de contralto e na
voz de tenor. Vejamos como poderiam ser ornamentadas essas vozes por meio
do uso de bordaduras.
No contralto, há duas repetições da nota ré; a primeira ocorre já na
passagem do primeiro para o segundo compasso da frase e a segunda ocorre
no penúltimo compasso da melodia. Se fizéssemos uma bordadura superior [cf.
ex. nº 4-13(a)], no primeiro ré, originaria uma quinta paralela (lá/mi-sol/ré) com
relação ao tenor; uma bordadura inferior, neste ponto, [cf. ex. nº 4-13(b)] seria
possível, pois geraria uma quinta por movimento contrário, entre contralto e
tenor e uma quinta paralela, entre contralto e baixo, em que a primeira é
diminuta e a segunda é justa, o que, conforme já foi mencionado anteriormente,
não implica em nenhum problema acústico. Algo similar ocorre com relação à
nota ré presente no penúltimo compasso da música: a bordadura superior [cf.
ex. nº 4-13(c)] implicaria em quinta paralela (mi/si-ré/lá) entre o contralto e o
soprano; a bordadura inferior [cf. ex. nº 4-13(d)] poderia ser empregada, já que
não incorre em erro de condução de vozes – a quinta entre contralto e soprano
ocorre por movimento contrário.

Exemplo nº 4-13

Na voz de tenor, há repetição da nota sol, nos dois compassos que


antecedem a cadência. Isso permite realizar bordaduras nessa voz. Vejamos a

finaliza em tempo fraco. Para evitar terminologia sexista, atualmente podem-se empregar as
expressões: terminação forte e terminação fraca.
48
Seria impossível manter a bordadura inferior, pois incorreria em erro de condução de vozes
(quintas paralelas).
49
Deslocamento métrico ocorre quando um trecho melódico é apresentado pela primeira vez
em determinada posição métrica (início tético, acéfalo ou anacrúsico; terminação forte ou fraca)
e posteriormente é repetido ou imitado em outra posição métrica. Por exemplo, se um tema é
apresentado com início tético – |     | – e é reapresentado (repetido ou imitado) com início
acéfalo – |     |   –, considera-se que há deslocamento métrico.
50
No século XVIII, por exemplo, foi bastante difundido o princípio estético de “variedade na
unidade e unidade na variedade”.
42

possibilidade de acrescentar bordaduras, no ex. nº 4-14: em (a) ocorre uma


bordadura superior que pode ser utilizada, pois produz uma quinta direta com
relação ao baixo, em que a voz superior se movimenta pro graus conjuntos; já
a bordadura superior presente em (b) gera quintas paralelas (lá/mi-sol/ré) entre
tenor e contralto e, por isso, deve ser descartada; apesar do cruzamento de
vozes que ocorre entre tenor e baixo, a bordadura inferior presente em (c)
poderia ser utilizada, desde que com moderação; também está correta a
bordadura inferior apresentada em (d) – note-se que uma bordadura superior
(notas: sol-lá-sol), neste ponto, acarretaria quintas paralelas entre tenor e
contralto.

Exemplo nº 4-14

Com o que foi discutido acima, demonstra-se que há algumas


possibilidades de ornamentação através de bordaduras na segunda frase da
harmonização da melodia coral Freu dich sehr.
No exemplo nº 4-15(a), realiza-se um processo imitativo entre as vozes
de contralto e tenor, em que o tenor realiza imitação em stretto51 da linha de
contralto, à quinta inferior, com deslocamento métrico (note-se que o contralto
inicia no tempo forte do compasso e o tenor inicia no tempo fraco). Em seguida,
o contralto repete a melodia, imitando o tenor na mesma altura da primeira
apresentação do ponto de imitação52, porém com a posição métrica existente
no tenor – o que gera uma inter-relação interessante entre as vozes, pois a
reapresentação do motivo aparece, no contralto, na mesma altura da primeira
apresentação e com a posição métrica existente na imitação por parte do tenor.
Este procedimento gera um pequeno stretto ao longo da segunda frase (o tenor
entra com o ponto de imitação antes deste ser finalizado no contralto, que
repete o mesmo motivo antes do tenor tê-lo completado).
No exemplo nº 4-15(b), aparece outro tipo de tratamento do contraponto,
em que se realiza contraponto livre53 entre as partes de contralto e tenor: a
bordadura inferior apresentada pelo contralto é respondida por meio de uma
bordadura dupla, no tenor. Outra maneira de analisar esse procedimento seria
dizer que a bordadura dupla da parte de tenor é emoldurada pela bordadura
inferior da voz de contralto.

51
Imitação em stretto consiste na imitação de determinado trecho melódico antes que tenha
sido exposto por inteiro, isto é, a resposta inicia enquanto a proposta ainda está sendo
apresentada. No ex. nº 4-15(a), o motivo imitado está assinalado por colchetes.
52
Ponto de imitação é o fragmento melódico imitado em diferentes vozes.
53
Contraponto livre consiste na livre combinação das vozes, sem a presença de uma cantus
firmus, de um ponto de imitação e sem o emprego da técnica do contraponto invertido. Note-se
que, no ex. nº 4-15(b), o contraponto livre ocorre apenas entre as vozes de contralto e tenor,
pois a melodia coral Freu dich sehr aparece como um cantus firmus, no soprano.
43

Exemplo nº 4-15

Pode-se, ainda, combinar as notas de passagem e as bordaduras


discutidas anteriormente, o que amplia consideravelmente as possibilidades de
ornamentação. A seguir, serão comentadas algumas dessas possibilidades.
No exemplo nº 4-16, abaixo, a preocupação principal é com relação à
textura. No trecho marcado com (a), ocorre intensificação do contraponto para
preparar a cadência à dominante, isto é, no primeiro compasso, somente uma
das vozes (contralto) é ornamentada, sendo que a partir da metade do segundo
compasso inicia-se um processo de bicínio, em que as vozes são
ornamentadas de duas a duas até a conclusão da frase; esse processo
provoca um adensamento da textura para preparar a cadência à dominante. Na
segunda frase, a textura se torna mais transparente, pois somente uma voz é
ornamentada em cada momento. São empregados os seguintes
procedimentos: em (b) ocorre contraponto livre; em (c) se realiza um típico
movimento cadencial, em que a nota repetida (ré, do penúltimo compasso) é
ligada54 e, posteriormente, cede lugar à sétima, que aparece como nota de
passagem.

Exemplo nº 4-16

No exemplo nº 4-17, ocorre trabalho de elaboração motívica mais


aprofundado, isto é, cada um dos recursos ornamentais são empregados com
o sentido de produzir interesse temático nas vozes inferiores. A voz de
contralto repete um motivo (ré-dó-ré) que termina por se tornar característico
desta versão, pois é repetido diversas vezes: é apresentado em (a) e é
reiterado na segunda frase, no primeiro e no penúltimo compasso. Outro
trabalho motívico está indicado pela letra (b): um ponto de imitação aparece na
voz de tenor (na segunda parte do c. 2) e é imitado por inversão, no contralto –
note-se que a série de intervalos apresentada na parte de contralto, entre a
segunda metade do c. 3 e a primeira metade do c. 4, está invertida com relação
ao o tenor, no compasso anterior. Em (c), ocorre aquele processo imitativo já
comentado anteriormente, em que o tenor realiza imitação à quinta inferior com

54
Neste caso, a nota ré do contralto está escrita como semínima pontuada, em vez de ser uma
mínima ligada a uma semínima.
44

deslocamento métrico, conforme indicam os colchetes. Isto gera um processo


de compensação com relação à imitação que ocorre em (b), pois, se em (b) é o
contralto que imita o tenor, em (c) é o tenor que imita o contralto.

Exemplo nº 4-17

Vistas várias possibilidades de uso de notas de passagem e bordaduras,


pode-se passar para o emprego de suspensões na harmonização da melodia
coral Freu dich sehr.
Sempre que uma nota se movimenta por graus conjuntos descendentes,
no encadeamento de um acorde a outro, podem ser aplicadas suspensões.
Tem-se que ter os mesmos cuidados de evitar quintas e oitavas paralelas ou
ocultas que nos casos anteriores. Por esta razão, ao longo dos séculos XV a
XVIII, a técnica da suspensão (estudada na quarta espécie de contraponto)
consistia em resolver a dissonância em uma consonância imperfeita (terça ou
sexta), o que, por si só, já elimina quintas ou oitavas paralelas, em contraponto
a duas vozes, pelo fato de que esses intervalos não estão presentes quando se
trabalha com consonâncias imperfeitas. Quando se está trabalhando com
textura a quatro vozes, porém, a preocupação de “resolver a suspensão em
uma consonância imperfeita” deixa de ser necessária, pois sempre haverá
consonâncias imperfeitas quando se empregam tríades completas a quatro
vozes. O principal cuidado é que os intervalos de quinta ou oitava, presentes
nas demais vozes, sejam conduzidos por movimento contrário à resolução da
suspensão. Se, na condução de vozes original (sem ornamentação) há quintas
ou oitavas diretas, o contraponto poderá resultar em quintas ou oitavas
paralelas quando se aplica o processo de suspensão.
Os comentários a seguir, com base em resoluções adequadas e
impróprias de suspensões, esclarecerão o problema. Logo no início da nossa
harmonização da melodia coral Freu dich sehr, a voz de tenor se movimenta
descendentemente. Como foi mencionado anteriormente, sempre que uma voz
se movimenta descendentemente, podem ser acrescentadas suspensões a
esta voz. Quando há várias suspensões em seqüência, costuma-se denominar
o conjunto de cadeia de suspensões. Conforme se estuda no contraponto de
quarta espécie, a suspensão implica na sincopação da voz em questão (por
isso, também se chama contraponto sincopado). Isso significa que se poderiam
aplicar síncopes à parte de tenor e resolvê-las como suspensões, no início da
nossa harmonização, conforme demonstra o exemplo nº 4-18.
Há duas maneiras de escrever estas síncopes: como no exemplo nº 4-
18(a), que é a maneira realizada nos estudos de contraponto, em que as notas
são escritas ligadas; e como no exemplo nº 4-18(b), em que as ligaduras são
substituídas por notas longas que preenchem sua duração. Esta é a maneira
45

comumente empregada nas partituras publicadas, por oferecer uma escrita


mais clara e transparente.

Exemplo nº 4-18

Vejamos, agora, a possibilidade de realizar as suspensões em nossa


harmonização.
No ex. nº 4-18, a primeira suspensão é a nota si do terceiro tempo do
primeiro compasso, que é a terça do acorde de G, porém não pertence ao
acorde de D que vem a seguir. Portanto, deve resolver descendentemente na
nota lá, que é a quinta deste acorde. Esta nota lá não apresenta problema
algum, em sua resolução a partir do si, pois não tem nenhum intervalo de
quinta com relação ao lá e a oitava, que aparece no soprano, é conduzida por
movimento contrário à resolução da suspensão. Para dar continuidade à cadeia
de suspensões, a nota lá permanece ligada no próximo compasso e deve
resolver no sol, que é a fundamental do novo acorde. Como este sol está
sendo conduzido por movimento contrário com relação ao baixo e por
movimento oblíquo com relação ao contralto, pode permanecer, pois não
apresenta erro de condução de vozes. Este sol também pode ficar como
suspensão para o segundo tempo do segundo compasso, sendo que deve
resolver no fá#, que é a terça do novo acorde.
A melhor suspensão é aquela que resolve na terça de um acorde, pois
não se corre o risco de produzir quintas ou oitavas paralelas, desde que a terça
do acorde não seja dobrada, como é o caso aqui. Com isso, todas as
suspensões que planejamos para o início da nossa harmonização são
possíveis e poderiam ser perfeitamente acrescentadas à condução de vozes.
Em geral, quando se tem como base uma boa condução de vozes, em que há
uma seqüência de movimentos descendentes por graus conjuntos em alguma
das vozes, é perfeitamente possível aplicar uma cadeia de suspensões.
Os pontos mais característicos para aplicação de suspensões, na
harmonização de melodia coral, são as cadências. Na cadência à dominante
da primeira frase, a voz de tenor se movimenta descendentemente por graus
conjuntos e, por essa razão, pode-se acrescentar uma suspensão, que será
especialmente eficaz, pois a resolução da suspensão será sobre a terça do
acorde de dominante, isto é, a sensível da tonalidade. As suspensões que
resolvem na sensível são eficientes porque deixam o acorde cadencial de
dominante com a quarta suspensa, proporcionando um movimento do tipo: 4–
3. Com isso, se inverte de forma expressiva a função dos graus melódicos da
escala, pois a tônica, que, geralmente, é o ponto de repouso, permanece
suspensa (como uma dissonância, no acorde de dominante), e resolve
descendentemente na sensível, que normalmente é a nota melódica de maior
tensão da tonalidade e, neste ponto, aparece como um repouso, por ser a nota
de resolução de uma suspensão.
46

Conforme aparece no exemplo nº 4-19, pode-se escrever uma fermata


sobre a nota cadencial de resolução da suspensão (o que não é estritamente
necessário, visto que já existe um sinal de fermata sobre o acorde cadencial).
Da mesma forma que as outras suspensões, a suspensão cadencial pode ser
escrita tanto com ligadura [cf. ex. nº 4-19(a)], quanto por extenso [cf. ex. nº 4-
19(b)].

Exemplo nº 4-19

Ainda seria possível aplicar suspensões à voz de soprano, na primeira


frase, pois o canto dado apresenta vários movimentos descendentes por graus
conjuntos. A prática de produzir variações nas melodias corais utilizadas como
cantus firmus foi bastante comum entre os compositores do Período Tonal.
Entretanto, não é comum modificar o canto dado nos exercícios de
harmonização de melodias. Sendo que a modificação de melodias dadas é
muitas vezes interditada pelos professores de harmonia e contraponto, pois, no
momento de aplicação de testes ou provas não se permite a modificação do
cantus firmus, pois essa prática poderia prejudicar a adequada avaliação do
aprendizado dos estudantes. Por essa razão, deixaremos a melodia coral
intacta. É importante, porém, frisar que, ao longo da História da Música,
sempre que são aproveitadas linhas melódicas preexistentes, elas têm sido
livremente modificadas para a criação de novas obras musicais. Isso pode ser
facilmente constatado na prática atual de arranjos de canções populares para
grupos vocais, em que os arranjadores não permanecem ‘presos’ às melodias
originais, mas as modificam de acordo com as necessidades técnicas ou
expressivas de seus arranjos. Neste campo, pode-se dizer que uma melodia
popular é um cantus firmus a partir do qual se gera uma nova composição, ao
escrever um arranjo.
Na segunda frase da nossa harmonização, também são possíveis
algumas suspensões na voz de contralto e na voz de tenor. O exemplo nº 4-20
demonstra como funciona um processo de contraponto imitativo através do
emprego de suspensões nas vozes de contralto e tenor, na segunda frase (da
mesma maneira como foi possível gerar imitações ao acrescentarmos
bordaduras nessas vozes).

Exemplo nº 4-20
47

Um tipo de suspensão característico das cadências perfeitas é o uso da


sétima suspensa, que resolve na terça do acorde de tônica. Para isso, a sétima
deve ser empregada como nota real do acorde de V grau, isto é, tem que ser
atacada juntamente com o acorde, conforme aparece no ex. nº 4-21(a). A partir
desta formação de V7, a sétima passa a ser entendida como nota real e,
portanto, pode ser mantida para gerar uma suspensão. O exemplo nº 4-21
demonstra este processo: em (a), a sétima é atacada como nota real e resolve
na terça do acorde de tônica; em (b), a sétima permanece suspensa, gerando
um contraponto sincopado.

Exemplo nº 4-21

Com isso, podem-se combinar as suspensões comentadas


anteriormente, presentes no exemplo nº 4-20, com a suspensão cadencial do
ex. nº 4-21(a) para obter a seguinte estrutura para a segunda frase [cf. ex. nº 4-
22].

Exemplo nº 4-22

Após termos estudado a aplicação de notas de passagem, bordaduras e


suspensões, pode-se estudar as possibilidades de combinação desses tipos de
ornamentação.
No exemplo nº 4-23 são combinados os três tipos de ornamentação: as
suspensões foram acrescentadas às ornamentações já comentadas, presentes
no exemplo nº 4-17. Note-se que algumas síncopes não são apenas o
resultado de suspensões, mas da combinação de suspensão com algum outro
processo (as suspensões estão assinaladas com colchetes).
48

Exemplo nº 4-23

No exemplo nº 4-23, acima, em (a), a nota sol do tenor, que está escrita
como mínima, é atacada como uma resolução da suspensão anterior (nota lá
do acorde de D), porém quando essa nota sol permanece ligada, ela é nota
real do acorde de C e, por essa razão, não é uma suspensão. Neste caso, a
síncope é o resultado do princípio de acrescentar ligaduras em notas comuns
entre acordes. No exemplo nº 4-24, se explica o processo: em (a), se percebe
que a nota sol é atacada como resolução da nota lá suspensa do acorde
anterior; em (b), a nota sol é a quinta do acorde de C; em (c) a repetição da
mesma nota (sol) é ligada, conforme princípio já mencionado anteriormente;
em (d) se escreve a ligadura de semínimas como uma mínima. É assim que
está escrito no exemplo nº 4-23.

Exemplo nº 4-24

O mesmo acontece com a nota ré do contralto, no penúltimo compasso


do ex. nº 4-23(b). O exemplo nº 4-25 demonstra o processo: em (a), a nota ré
aparece como resolução da suspensão; em (b), a mesma nota é repetida como
fundamental do acorde de V grau; em (c) a nota repetida é conectada por meio
de ligadura; em (d) as duas semínimas ligadas são substituídas por uma
mínima.

Exemplo nº 4-25

O exemplo nº 4-26 apresenta outra possibilidade de ornamentação com


notas de passagem, bordaduras e suspensões, que estão indicadas por
colchetes. Note-se que, com relação ao exemplo nº 4-23, o exemplo nº 4-26
apresenta uma textura mais transparente, pois se evitaram ornamentações
simultâneas das vozes. A exceção está na última semínima do primeiro
49

compasso da segunda frase, em que a voz de contralto se movimenta


simultaneamente à voz de tenor.

Exemplo nº 4-26

No último compasso do exemplo nº 4-26, há uma combinação de


técnicas de ornamentação. A nota dó permanece como sétima suspensa e
resolve na terça do acorde de G (nota: si), porém a resolução do tipo 4–3
(notas: dó-si, no último compasso) é realizada através de uma bordadura. O
processo ocorre da seguinte maneira: no exemplo nº 4-27(a), tem-se a
resolução típica da suspensão, em que a nota dó, mínima, resolve em um si,
também mínima; em (b), aparece uma ornamentação dentro de outra
ornamentação, pois a nota dó suspensa é subdividida em uma bordadura (si-lá-
si) que prepara a resolução. Para não finalizar a frase na terça do acorde, é
comum repetir a fundamental que se encontra em uma das vozes inferiores;
neste caso, no tenor. Esta técnica de ornamentação é bastante empregada em
cadências, nas harmonizações de caráter modal ou tonal, sendo encontrada,
com outras variantes possíveis, em várias composições e arranjos desde o
Renascimento até os dias de hoje.

Exemplo nº 4-27

As técnicas de ornamentação mencionadas anteriormente (notas de


passagem, bordaduras e suspensões) são as mais usuais na música tonal. Há,
porém, outras possibilidades de ornamentação melódica das vozes inferiores
que vale a pena serem brevemente discutidas. São elas: o retardo, a apojatura,
a antecipação, a escapada e a cambiata.
A primeira delas, o retardo, pode ser entendido como uma suspensão
articulada, isto é, em que a nota que permanece suspensa não é ligada ao
tempo anterior, mas atacada novamente. Neste sentido, a técnica para a
realização do retardo não difere em nada da técnica da suspensão. Conforme
pode ser notado no exemplo nº 4-28, basta não ligar as notas suspensas para
que o processo seja considerado como sendo um retardo.
50

Exemplo nº 4-28

Há autores que utilizam este mesmo termo, ‘retardo’, para designar


suspensões que resolvem ascendentemente. Durante os séculos XVI a XVIII,
era bastante incomum resolver uma suspensão por graus conjuntos
ascendentes, pois se considerava que esse tipo de condução não seria
propriamente uma ‘resolução’, visto que o movimento ascendente tem caráter
mais progressivo do que o movimento descendente. De qualquer forma, alguns
compositores do século XVII, como Claudio Monteverdi, na música vocal, e
Girolamo Frescobaldi, na música instrumental, ficaram conhecidos por
resolverem ascendentemente as notas suspensas. Por volta de meados do
século XIX, este procedimento tornou-se mais comum, na busca dos
compositores românticos por novas sonoridades e maior originalidade com
relação às técnicas tradicionais. O caso mais conhecido é o ‘acorde de Tristão’,
de Richard Wagner, que pode ser interpretado como um retardo (suspensão
que resolve ascendentemente).
No Brasil, os compositores de modinhas do século XIX empregaram
bastante esse recurso da resolução ascendente de suspensões e apojaturas,
com o intuito de representar os suspiros provocados pelos desencantos
amorosos. Várias canções brasileiras do século XIX, escritas a partir da série
de poemas intitulada Marília de Dirceu, do poeta árcade mineiro Tomás Antônio
Gonzaga, empregaram esse recurso para descrever musicalmente os lamentos
do poeta apaixonado e distante de sua amada.
Quando se resolve ascendentemente uma suspensão ou uma apojatura,
tem-se que ter os mesmos cuidados para evitar quintas ou oitavas paralelas
que quando se resolve descendentemente. Se, para realizar resoluções
descendentes se procuram movimentos por graus conjuntos descendentes, na
condução de vozes sem ornamentação, para a realização de suspensões que
resolvem ascendentemente basta procurar movimentos de graus conjuntos
ascendentes. Assim, pode-se aplicar uma cadeia de suspensões ascendentes
(ou cadeia de retardos, na nomenclatura de certos tratados), nos seguintes
pontos de nossa harmonização (indicadas por meio de colchetes):

Exemplo nº 4-29
51

Naturalmente, a aplicação de suspensões ascendentes em todos os


pontos possíveis soa um tanto artificial (assim como qualquer tipo de
ornamentação realizada em exagero). O ideal seria equilibrar o emprego dos
diferentes tipos de ornamentação. Os processos de ornamentação menos
usuais devem ser empregados com cuidado especial, para não produzir uma
harmonização ou arranjo desequilibrado ou desajeitado. Note-se que, no
exemplo nº 4-29, na passagem do antepenúltimo para o penúltimo compasso,
seria possível aplicar uma suspensão ascendente no baixo (notas: dó-ré),
porém isso prejudicaria a percepção do acorde de quarta e sexta apojatura que
prepara a dominante cadencial, já que o baixo não seria atacado com a nota
dominante que caracteriza esta sonoridade. Por esta razão, é desaconselhável
aplicar ornamentações em baixos com este tipo de formação.
Assim como o retardo, a apojatura também é derivada da suspensão e
pode ser interpretada como uma suspensão sem preparação, isto é, uma
suspensão que não é preparada através de uma consonância ligada ao tempo
seguinte. Assim, a apojatura consiste em uma nota estranha ao acorde
(dissonância) que não é preparada, mas é alcançada por salto ou grau
conjunto ascendente. A apojatura normalmente é alcançada por movimento
contrário ao da resolução, que é tipicamente descendente. Nada impede,
porém, que a apojatura seja preparada por grau conjunto descendente, sendo,
este tipo de condução denominado, por alguns autores, como nota de
passagem acentuada.
No exemplo nº 4-30 são comparados alguns tipos diferentes de
ornamentação derivadas da suspensão. Note-se que, em todas as
ornamentações que têm sua origem na suspensão, a apresentação da
dissonância ocorre em tempo forte ou em parte forte do tempo, sendo esta a
característica mais importante da suspensão, do retardo e da apojatura55. No
ex. nº 4-30(a) ocorre uma sétima suspensa, com a dissonância sendo
preparada, apresentada e resolvida de forma convencional; em (b) aparece um
retardo como suspensão articulada, isto é, em que a nota dissonante não está
ligada ao tempo anterior; em (c) aparece um retardo produzido como uma
suspensão que resolve ascendentemente; em (d) ocorre uma apojatura
produzida por um movimento de graus conjuntos descendentes (o que é
chamado de nota de passagem acentuada por alguns autores); em (e) aparece
uma apojatura em que a dissonância é alcançada por salto ascendente e
resolve por grau conjunto descendente, que é o modelo característico de
apojatura.

Exemplo nº 4-30

55
Nos outros tipos de ornamentação (nota de passagem, bordadura, antecipação, escapada e
cambiata), a dissonância é apresentada no tempo fraco ou na parte fraca do tempo.
52

No exemplo nº 4-31, abaixo, as apojaturas acrescentadas à nossa


harmonização da melodia coral Freu dich sehr estão indicadas por meio do
sinal ‘+’ e o processo de preparação, apresentação e resolução das apojaturas
está indicado entre colchetes. A sétima de passagem, no encadeamento do
penúltimo para o último acorde, foi acrescentada exclusivamente para dar
algum equilíbrio ao exemplo, que, de qualquer modo, está pesado demais pelo
excesso de apojaturas.

Exemplo nº 4-31

No exemplo acima, o tenor já inicia com uma apojatura sem preparação,


visto que se trata da primeira nota da frase [cf. ex. nº 4-31(a)]; iniciar sem
preparação não seria possível nem com suspensão, nem com retardo, pois
ambos precisam ser preparados como nota comum, no acorde anterior. A
apojatura seguinte, [indicada por (b), no ex. nº 4-31], na voz de contralto,
poderia ser confundida com uma bordadura, porém se diferencia desta porque
a bordadura ocorre em tempo fraco ou parte fraca do tempo, enquanto que,
como já foi mencionado, a apojatura se dá em tempo forte ou em parte forte do
tempo. Note-se que esta apojatura é preparada por grau conjunto. As
apojaturas presentes em (c) e em (d) do ex. nº 4-31 são conduzidas da forma
mais adequada possível, pois cada uma delas é preparada com um salto
ascendente que conduz para a dissonância. No caso apresentado em (c), a
nota de resolução da apojatura – o fá# presente no último tempo do terceiro
compasso, no tenor – não se encontra em situação ideal, pois é preferível que
a nota de resolução de suspensões, retardos e apojaturas não apareça em
outras vozes. Nesse caso, a nota fá# (sensível) está dobrada no soprano. Já
na solução apresentada em (d), o dobramento da nota de resolução (dó), no
baixo, não gera nenhum problema, pois esta nota é a fundamental do acorde
de C e está no baixo.
Com isso, tem-se um princípio geral, que é o seguinte: deve-se evitar
que a nota de resolução de suspensões, retardos e apojaturas apareça
dobrada em outra voz, com exceção de quando se trata da fundamental do
acorde, que funciona muito bem, especialmente quando dobrada no baixo. Se
este princípio fosse seguido rigorosamente, a apojatura apresentada no ex. nº
4-31(c) seria considerada incorreta, enquanto que a apojatura do ex. nº 4-31(d)
estaria bem realizada. Esse princípio, porém, é mais teórico, pois consta como
regra nos tratados de Harmonia e Contraponto, do que prático, pois são
freqüentemente encontradas apojaturas em situações similares à do ex. nº 4-
31(c) na obra dos músicos do Período Tonal, que serviram de modelo para a
formulação dessas regras. De qualquer forma, é importante ao estudante ter
conhecimento de que, na maior parte dos tratados de Harmonia e Contraponto,
considera-se incorreto o dobramento da nota de resolução de dissonâncias
quando não é a fundamental do acorde.
53

No exemplo nº 4-31(f) também aparece um caso de apojatura


considerada correta pelos tratadistas, pois é preparada por meio de um salto
melódico ascendente e a nota de resolução da apojatura é a terça do acorde,
que não está dobrada em outra voz (note-se que a quinta direta produzida,
entre soprano e contralto, é uma quinta diminuta). O caso que aparece em (e) é
considerado por alguns tratadistas como uma nota de passagem acentuada,
por ser conduzida através de graus conjuntos descendentes. Note-se que o si
seria incontestavelmente uma nota de passagem, se as notas da voz de tenor
tivessem outras durações, como no exemplo 4-32(a), abaixo. Tratar-se-ia
incontestavelmente de uma apojatura se a nota si fosse conduzida a partir de
um salto ascendente [cf. ex. nº 4-32(b)]. O caso presente no ex. nº 4-32(c)
pode ser considerado como uma combinação de nota de passagem e
apojatura, o qual alguns tratadistas denominam como nota de passagem
acentuada e outros preferem interpretar como apojatura preparada por graus
conjuntos.

Exemplo nº 4-32

A antecipação é o tipo mais simples de nota ornamental, pois basta


antecipar uma nota do acorde no tempo anterior para obtê-la. Geralmente, as
antecipações são realizadas em resoluções cadenciais, isto é, em finais de
frase. No entanto, é possível adicioná-las em qualquer trecho.
Para que se possa produzir antecipação, é necessário que ocorra
mudança de nota no encadeamento de acordes; ou, em outras palavras, onde
há notas repetidas, não é possível o uso de antecipações. No exemplo nº 4-33,
abaixo, são apresentadas antecipações cadenciais no final de cada uma das
frases [indicadas pelo sinal ‘+’]. Note-se que as antecipações geralmente
ocorrem na voz principal (soprano) e são precedidas por uma figura pontuada.
Além disso, foram acrescentadas outras antecipações, nas outras vozes e no
decorrer das frases, como exemplos de suas possibilidades. Para gerar algum
equilíbrio na condução de vozes, foram acrescentadas uma nota de passagem
– indicada com [np] – e uma bordadura – indicada por [b]. Nem toda a
antecipação necessita ser preparada por uma figura pontuada, mas pode ser
conduzida com qualquer tipo de figuração rítmica (no exemplo nº 4-33, por
exemplo, as antecipações poderiam aparecer em semínimas, em vez de
colcheias precedidas por semínimas pontuadas).
54

Exemplo nº 4-33

A escapada é uma nota estranha à harmonia que é deixada e/ou


alcançada por salto; essa nota é dissonante, porém aquela que a precede e
aquela para onde conduz são notas do acorde. No exemplo nº 4-34 são
apresentados os três tipos de escapada: (a) aquela que é alcançada por salto e
resolvida por grau conjunto; (b) aquela que é obtida a partir de um grau
conjunto e é deixada por salto (este é o tipo mais comumente citado nos
tratados); (c) aquela que é alcançada e deixada por salto. Como não exige
preparação ou resolução rigorosas, a escapada é uma espécie de
ornamentação bastante livre, em que o único requisito consiste em ser
preparada ou deixada por um salto melódico, que aparece em tempo fraco ou
parte fraca do tempo. A escapada pode ser deixada em direção contrária à sua
apresentação, isto é, pode ser conduzida ou abandonada por movimento
ascendente ou descendente [cf. ex. nº 4-34(d) e 4-34(e)].

Exemplo nº 4-34

Pode-se dizer que a cambiata é um tipo de escapada que foi


sistematizada ao longo dos séculos XV e XVI, já que consiste em uma nota
alcançada por salto descendente e resolvida por grau conjunto ascendente. Há
um caso típico de cambiata que pode ser adicionada à nossa harmonização da
melodia coral Freu dich sehr, no terceiro compasso da voz de contralto [cf. ex.
nº 4-35(a)]. A nota dó desse compasso é uma cambiata, pois se trata de uma
dissonância em parte fraca do tempo que é conduzida por salto de terça
descendente e segue por graus conjuntos ascendentes.

Exemplo nº 4-35
55

Com o que foi discutido acima, percebe-se que são possíveis várias
soluções para a ornamentação das diferentes vozes, aplicando somente um
tipo de ornamentação (notas de passagem, bordaduras, suspensões, etc.) ou
combinando diferentes tipos. O exemplo nº 4-36, abaixo, ilustra uma das
inúmeras possibilidades de combinação de vários tipos de ornamentação
melódica que foram discutidas neste capítulo. As notas ornamentais estão
indicadas por meio de abreviaturas: nota de passagem: [np]; bordadura: [b];
suspensão [sus]; retardo [ret]; apojatura [ap]; antecipação [ant]; escapada:
[esc]; cambiata: [cam].

Exemplo nº 4-36
56

5. HARMONIZAÇÕES DA MELODIA FREU DICH SEHR

Abaixo, encontram-se três harmonizações da melodia coral Freu dich


sehr, o meine Seele completa, por músicos de épocas distintas: pelo
compositor do Renascimento Claude Gaudimel (1510-1572), pelo compositor
do período Barroco Johann Sebastian Bach (1685-1750) e pelo compositor do
Romantismo Robert Schumann (1810-1858).
Nas harmonizações abaixo, são empregados outros acordes da escala,
além daqueles formados sobre o I grau, sobre o IV grau e sobre o V grau. São
também empregados acordes alterados com função de dominantes
secundárias, além de notas de passagem cromáticas e outros tipos de
alteração que não foram utilizadas em nossa harmonização.
A análise minuciosa destas harmonizações pode revelar diversos
processos de arranjo coral de melodias preexistentes.

Harmonização de Claude Gaudimel (1510-1572)


57

Harmonização de Johann Sebastian Bach (1685-1750)


58

Harmonização de Robert Schumann (1810-1858)


59

6. BIBLIOGRAFIA GERAL SOBRE HARMONIA

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