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TEMA I | ANTES DE MIM

O Cérebro

p. 39
Traçando o mapa do cérebro: 1861-1950
O mapa exterior do cérebro, parcelado nas suas várias províncias, já nos é tão familiar que se torna
difícil imaginar como, durante milhares de anos, poderia ter parecido tão misterioso como um continente
por descobrir. Foi então que, em 1861, o neurocirurgião francês Pierre Paul Broca descobriu o seu
primeiro grande marco: o centro da fala, localizado no lado esquerdo do cérebro. Nesta tão conhecida
história, Broca admitiu ao seu cuidado no Hospital Bicetre, em Paris, um homem que todos conheciam
por “Tan” – o único som que alguma vez fora capaz de proferir desde que sofrera um AVC, trinta anos
antes. Tan depressa morreu devido à gangrena que lhe afetava os membros e, na posterior autópsia do
seu cadáver, Broca identificou uma discreta zona danificada, na parte posterior do lóbulo frontal
esquerdo, chegando à seguinte conclusão: «Nous parlons avec notre hémisphère gauche» («falamos
com o nosso hemisfério esquerdo»), originando uma corrida ao ouro de descobertas semelhantes. Não
tardou que o neurologista alemão Karl Wernicke descrevesse um defeito comparável a este em pacientes
que, embora falassem fluentemente, não conseguiam compreender o discurso e que, na autópsia,
revelavam indícios de danos na parte posterior do lóbulo temporal – a primeira indicação de que
componentes distintas da mesma função mental, a faculdade da linguagem, eram processadas em
partes diferentes do cérebro.
As mortes nas trincheiras durante a Primeira Guerra Mundial forneceram muitas oportunidades para se
aperfeiçoar ainda mais “o mapa”. Mais notoriamente, o neurologista irlandês Gordon Holmes testou os
campos visuais dos soldados que haviam sofrido ferimentos de bala e estilhaços no córtex visual, na
parte de trás do cérebro, demonstrando que a mais diminuta zona afetada poderia produzir cegueira.
Desde os anos 1930 que o mais prolífico cartógrafo do cérebro, o neurocirurgião canadiano Wilder
Penfield, começou a investigar os efeitos produzidos pela estimulação da superfície do cérebro com uma
corrente elétrica de baixa intensidade, enquanto os seus pacientes estavam na mesa de operações. Foi
assim que conseguiu identificar a sensação e o movimento das duas discretas bandas do córtex sensorial
e motor, localizadas em ambos os lados do cérebro, e demonstrar como as partes mais sensíveis das
mãos, da boca e dos órgãos genitais estavam desproporcionalmente representadas.
Em 1950, o grande projeto para identificar as propriedades da mente com regiões específicas do cérebro
estava, pelo menos em traços gerais, essencialmente completo: o córtex motor e o córtex sensorial,
representando partes discretas do corpo, ocupam duas faixas descendentes no aspeto lateral, de ambos
os lados; o centro da linguagem ocupa uma parte difusa do hemisfério esquerdo; o córtex visual fica no
lóbulo posterior; e os dominantes lóbulos frontais abrangem as funções mentais superiores, tais como o
planeamento e o pensamento racional. (…)
Então, observando o mapa dos territórios cerebrais, poderia parecer que a maior parte se explica por
uma função ou outra. Mais uma vez, e ao contrário, tanto os centros da fala como o córtex visual e o
córtex motor e sensorial constituem apenas uma pequena parte do todo. Estes são ultrapassados pelas
áreas muito mais alargadas dos lóbulos frontais e parietais, na parte lateral do cérebro, vulgarmente
conhecidas como as áreas “silenciosas” ou “associativas”, não por serem “silenciosas” mas por não ser
possível atribuir qualquer função específica a qualquer área discreta por elas abrangida. Em vez disso,
são o centro das propriedades cognitivas “superiores” da mente humana, integrando as impressões
difusas dos sentidos num todo coerente e sendo a fonte (de alguma forma) das emoções humanas do
amor, do ódio, da surpresa e da paixão – bem como dos atributos intelectuais da sabedoria, do
discernimento, da reflexão e da criatividade.

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Essas funções integrativas dos lóbulos frontais são ilustradas pelo infortúnio que sofreu Phineas Gage,
um jovem de 25 anos de Nova Inglaterra, capataz de uma equipa de trabalhadores das vias-férreas. Em
1848, Gage sofreu um terrível ferimento quando um ferro de atacamento para explosivos nas rochas lhe
penetrou os lóbulos frontais, mesmo abaixo do olho esquerdo, e saiu pelo topo do crânio, aterrando a 15
metros de distância. Espantosamente, Gage sobreviveu, mas, tal como comentaria mais tarde um dos
seus médicos, «já não era Gage», tendo-se tornado «voluntarioso e caprichoso, sempre a fazer planos,
que, mal começa, abandona». Assim, embora o défice de linguagem de Tan fosse altamente específico,
o dano causado pelo ferro aos lóbulos frontais de Phineas Gage afetou negativamente todos os aspetos
da sua mente – a capacidade para tomar decisões, para resolver problemas, para discernir, para sentir
compaixão, para a competência e daí por diante.
Embora os esforços para traçar o mapa do cérebro de Pierre Broca, Gordon Holmes, Wilder Penfield e
muitos outros tivessem marcado o primeiro passo essencial para a revelação dos seus segredos, o
progresso futuro exigiria algo intelectualmente mais substancial – uma forma de imaginar como é que o
cérebro físico poderia dar origem à mente imaterial. Em 1936, o brilhante matemático britânico Alan
Turing concebeu uma “máquina universal” que, em princípio, poderia executar qualquer tarefa
matemática, usando um código “binário” de apenas dois símbolos: um “1” ou um “0”. Da mesma
maneira, cada neurónio cerebral teria dois modos – tanto pode “excitar” como “inibir” a atividade
elétrica dos outros neurónios mais próximos. Assim, o cérebro ganhou outra metáfora – o computador
digital – que definiria o segundo capítulo da sua revelação e, em particular, a forma como a síntese da
“natureza”, (o “hardware” dos seus circuitos neuronais) e da “educação” (o “software” programador da
experiência) poderia criar, a partir da sua monótona estrutura, a singular individualidade de caráter que
nos caracteriza a cada um de nós.

LE FANU, J. (2009). Porquê Nós? – O Mistério da Nossa Existência,


pp. 217-221. Porto: Civilização. Adaptado.

p. 39
A frenologia
A história da descoberta das regiões da linguagem é o mito fundador da neuropsicologia. Esta
descoberta confunde-se de facto com a ideia geral de especialização cerebral: todas as partes do
cérebro têm funções bem distintas, mesmo para as faculdades mentais mais elaboradas como a
linguagem, as emoções, a adaptação social. Como todos os mitos de origem, reduz-se a alguns grandes
homens e negligencia quase sempre o seu contexto intelectual, muitas vezes complexo.
A história começa com a personalidade ambígua de Franz Josef Gall, médico, anatomista e filósofo,
nascido na Áustria em 1758. Imerso nos debates sobre o corpo e a alma que tinham agitado os círculos
dos filósofos, dos naturalistas, dos anatomistas e dos fisiologistas ao longo de todo o século XVIII,
propôs, por volta de 1800, uma teoria que pretendia nada menos que tirar a limpo os fundamentos
materiais da alma humana. Esta doutrina, conhecida como “frenologia”, pode ser resumida em poucas
linhas. Para começar, Gall pensava que o espírito não poderia ser estudado como entidade indivisível,
que devia ser considerado como associação de faculdades distintas e relativamente independentes.
Identificou vinte e sete, entre as quais a vaidade, o sentido da mecânica e o talento poético. Os seus
discípulos acrescentaram-lhe oito, o que nada alterou ao pano de fundo da questão. Esta fragmentação
psicológica tinha uma contrapartida anatómica: segundo os frenologistas, cada uma destas faculdades
teria como suporte uma parte determinada do córtex cerebral, um “órgão” cerebral. Estaria aí a origem
de todas as particularidades individuais. De facto, o maior ou menor desenvolvimento, num indivíduo
dado, destas diferentes faculdades resultaria das maiores ou menores dimensões das regiões cerebrais

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correspondentes. Ora, como para Gall a forma precisa do cérebro era inata, o “perfil mental” que daí
resultava também o era. (…)
Atualmente esquecida, ou atirada para o inferno do charlatanismo, como a astrologia, a quiromancia ou
a numerologia, a frenologia teve, no entanto, um imenso sucesso ao longo de todo o século XIX, tanto
na Europa como nos Estados Unidos. De facto, a frenologia propunha uma “ciência do homem” fácil de
compreender, sem referências a conceitos religiosos ou metafísicos, e aplicável a todos os tipos de
situações quotidianas. Antes de escolherem um ofício ou um cônjuge, as pessoas sujeitavam o crânio a
uma apalpação, da mesma forma que os empregadores sujeitavam os candidatos a um lugar ao mesmo
processo. O próprio Gall não deixou de aplicar a sua doutrina ao diagnóstico de criminosos (…). A
narração abunda em exemplos de clarividência da parte de Gall, que teria adivinhado com a maior
facilidade a natureza exata dos defeitos e das qualidades de cada prisioneiro e as causas constitucionais
dos seus crimes (…).
Esta frenologia aplicada viria a desaparecer sem deixar rasto. De facto, tudo nela era falso, à parte,
talvez, uma certa conceção da especialização cerebral: a lista das faculdades estabelecida por Gall e
pelos seus discípulos é arbitrária e heteróclita; a ideia de as bossas do crânio revelarem os pormenores
da forma do cérebro é absurda. Contudo, dois dos princípios propostos por Gall revelaram-se
cientificamente fecundos para compreensão da organização cerebral e tornaram-se axiomas centrais da
neuropsicologia moderna. Por um lado, o que devemos estudar não é o espírito em geral, mas as
diferentes faculdades mentais que o compõem; por outro lado, as diferentes regiões do cérebro
desempenham diferentes funções, mesmo que consideremos as mais abstratas, como memória ou as
emoções.
A ideia de especialização cerebral foi vivamente discutida durante os dois primeiros terços do século XIX.
Os seus adversários, partidários de uma não localização das funções, pensavam que o cérebro era uma
massa homogénea e indiferenciada, que funcionava tanto melhor quanto maior fosse. O cérebro seria
como os pulmões ou o fígado, em que a parte superior e inferior, a esquerda e a direita têm as mesmas
funções. Gall, pelo contrário, reconhecia no cérebro uma “maravilhosa coleção de aparelhos”.

COHEN, L. (2006). O Homem-Termómetro – O Cérebro em Peças Soltas,


pp. 27-30. Lisboa: Gradiva. Adaptado.

p. 41
Homem amputado voltou a sentir objetos com mão biónica
O movimento de uma mão é o resultado de informação vinda de duas direções. Por um lado, o nosso
tato dá-nos a conhecer o que a mão está a sentir. Por outro, o cérebro interpreta esta informação e
comanda os movimentos da mão de acordo com a nossa vontade. É assim que sabemos quando
estamos a apertar com demasiada força uma garrafa de plástico. Também por isso é tão difícil criar uma
mão para pessoas amputadas que replique este sistema complexo.
Mas uma equipa internacional criou a primeira mão biónica que fez um homem amputado voltar a sentir.
Para isso, quatro elétrodos foram implantados, por cirurgia, nos nervos do braço de um dinamarquês
que há nove anos ficou sem a mão esquerda. A novidade foi publicada num artigo da revista Science
Translational Medicine.
«O feedback sensorial foi incrível», diz Dennis Aabo Sørensen, 36 anos. «Pude sentir coisas que não
sentia há nove anos», explicou, citado num comunicado da Escola Politécnica Federal de Lausanne, na
Suíça. O dinamarquês perdeu a mão quando estava a manusear fogo de artifício, durante um feriado.
Quando o acidente aconteceu foi imediatamente levado para o hospital, onde lhe amputaram a mão.
Desde aí tem uma mão prostética que deteta o movimento muscular no que resta do braço, o que
permite à mão artificial abrir-se ou fechar-se para agarrar objetos. «Funciona como o travão de uma

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mota», explica Dennis Aabo Sørensen. «Quando se aperta o travão, a mão fecha. Quando se relaxa, a
mão abre.»
A nova mão biónica assenta num sistema muito mais complexo que imita o que se passa na natureza. A
equipa europeia de Silvestro Micera, que trabalha na Escola Superior de Sant’Anna, em Pisa, Itália,
fabricou uma mão com sensores que detetam informação sobre o toque. A partir de algoritmos, os
cientistas conseguiram transformar a informação de toque dada por estes sensores em impulsos que
podem ser interpretados pelos nervos sensoriais. A sensação de toque é codificada em informação que
atravessa cabos finos e chega a quatro elétrodos.
Em janeiro de 2013, Dennis Aabo Sørensen fez uma cirurgia em Roma, onde foram colocados aqueles
quatros elétrodos, nos nervos que ainda tinha no braço esquerdo. Passados 19 dias de testes médicos, a
mão biónica foi ligada a estes elétrodos. Os elétrodos, ultrafinos e muito delicados, foram colocados de
uma forma muito precisa para se conseguir passar sinais elétricos muito fracos diretamente para o
sistema nervoso do doente.
Depois, vendado e com auscultadores para o isolar do som, Dennis Aabo Sørensen tocou em vários
objetos e conseguiu sentir a força com que estava a agarrá-los, além de perceber a forma e a
consistência do que agarrava: «Quando agarrava um objeto, sentia se era macio ou duro, se era
redondo ou quadrado.»
«Esta foi a primeira vez em neuroprostética que o feedback sensorial foi restaurado e utilizado por um
amputado em tempo real para controlar um membro artificial», explica Silvestro Micera, em
comunicado. Os próximos passos, para se conseguir um objeto comercializável, passam por miniaturizar
a eletrónica que permitiu este avanço e aprimorar a sensação de toque.
Para Dennis Aabo Sørensen, que passado um mês teve de retirar a nova mão biónica por questões de
segurança impostas pelos testes clínicos, a experiência foi importante: «Fiquei mais do que contente por
me voluntariar para este teste clínico, não só por mim, mas também para ajudar outros amputados.»

FERREIRA, N. (2014). «Homem amputado voltou a sentir objetos com mão biónica».
Público em linha, 06-02-2014. Disponível em: http://www.publico.pt/ciencia/
[consultado a 28-02-2014].

p. 42
Realidade virtual ajuda a diminuir a dor de homem que ficou sem antebraço
Um homem de 72 anos que perdeu o antebraço direito em 1965 e, desde aí, sente diariamente dor no
braço-fantasma, voltou a ter momentos sem dor depois de “usar” o seu membro perdido num jogo de
computador. O caso vem descrito num artigo publicado agora na Frontiers in Neuroscience, uma revista
em linha de acesso livre.
«Estes períodos sem dor são uma coisa quase nova para mim, é uma sensação extremamente
agradável», diz o paciente, citado no artigo da revista.
É relativamente normal às pessoas a quem foi amputado um membro continuarem a senti-lo como se
ele estivesse lá. Infelizmente, 70% das pessoas sentem dores no membro-fantasma.
No caso deste homem de 72 anos, que foi submetido a um tratamento inovador na Universidade de
Tecnologia de Chalmers, em Gotemburgo, na Suécia, num trabalho liderado pelo investigador Max Ortiz-
Catalan, a dor que sentia no antebraço-fantasma, nos últimos 48 anos, era constante. Apesar de usar
normalmente um braço artificial, durante a maior parte do tempo tinha uma dor moderada e várias
vezes por dia a dor tornava-se insuportável. Além disso, era comum acordar à noite com estas dores.
Não se sabe muito bem quais as causas da sensação dolorosa, mas existem vários tratamentos para
tentar aplacá-la: desde medicação até à acupunctura ou hipnose. Há ainda a técnica do espelho, em que
se tenta enganar o cérebro das pessoas. Neste caso, o paciente tem de fazer movimentos com o
membro intacto e, ao mesmo tempo, tentar fazer os mesmos movimentos com o membro amputado.

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Mas estes exercícios são feitos em frente a um espelho que reflete os movimentos e faz com que a
pessoa só veja o membro saudável a mover-se. Este truque dá ao paciente a ilusão de que o membro
amputado está a movimentar-se normalmente. No caso do homem de 72 anos, todos os tratamentos
falharam, até agora.
O método usado na universidade sueca é um salto em relação à técnica do espelho. A equipa de Max
Ortiz-Catalan colocou elétrodos no braço amputado do homem que transmitem um sinal vindo dos
músculos. Estes elétrodos estão ligados a um programa informático. Os sinais musculares são traduzidos
para os movimentos de um antebraço e mão virtuais por um sistema de algoritmos.
O paciente fez vários exercícios de controlo do braço virtual e guiou carros num jogo de corridas. Estes
movimentos eram controlados pelos músculos do braço amputado. O paciente, que era ao mesmo
tempo filmado, via-se num ecrã a fazer aqueles movimentos com um antebraço e mãos virtuais, num
sistema de realidade aumentada.
«Os nossos métodos são diferentes dos tratamentos anteriores, porque os sinais que controlam [o braço
virtual] são aproveitados a partir do coto do braço», explica Max Ortiz-Catalan, num comunicado. As
sessões de dez minutos de exercícios prolongaram-se durante 18 semanas. Gradualmente, o homem foi
sentindo uma dor cada vez mais leve no braço-fantasma. A partir das últimas semanas, a seguir às
sessões, o paciente tinha pequenos períodos de tempo sem dor nenhuma.
«Há várias características deste sistema que combinadas podem causar o alívio da dor», considera Max
Ortiz-Catalan. «As áreas motoras do cérebro necessárias para o movimento do braço amputado são
reativadas, e o paciente obtém o retorno visual que faz com que o cérebro acredite que existe um braço
a executar aqueles comandos motores. O paciente experiencia-se como um todo, com o braço amputado
de volta ao seu sítio.»

Do punho fechado à mão aberta


Há outras conquistas feitas pelo homem de 72 anos. Durante 48 anos, o paciente continuou a sentir a
mão-fantasma, mas sentia a mão fechada com muita força. Depois de seis sessões, a sensação do
punho fechado evoluiu para uma mão meio aberta que coincidia com a posição relaxada e neutral da
mão virtual que via no ecrã do computador. «Esta é agora a perceção permanente da posição da mão-
fantasma que é muito apreciada pelo paciente», lê-se no artigo.
Antes de iniciar as sessões de tratamento, o paciente sentia ainda que a mão-fantasma estava situada
logo a seguir ao coto e não na posição normal, depois do pulso. Mas, quando começou a fazer as
sessões virtuais, o homem passou a sentir a posição da mão-fantasma no local correto. Além disso,
aprendeu a mover o braço virtual e consegue agora "mexer" cada um dos dedos da mão-fantasma.
A equipa não sabe quais serão os efeitos a longo prazo deste tratamento: se a diminuição da dor se
mantém depois de as sessões terminarem. Por isso, decidiram manter os exercícios com este paciente.
Uma alternativa é o programa virtual ser instalado na casa do homem. Está ainda em curso um
programa que reúne hospitais suecos e clínicas de outros países europeus para aplicarem a técnica a
outras pessoas que estão na mesma situação.
A razão de a dor ser suprimida permanece uma incógnita – pode ser causada pela nova atividade dos
músculos do braço amputado durante os exercícios ou pode estar ligada ao cérebro acreditar que, afinal,
o braço e a mão existem, estão ali e funcionam. De qualquer forma, para os autores, este tratamento
poderá ser aplicado a outro tipo de pacientes que «necessitam de reabilitação neuromuscular no caso
dos acidentes vasculares cerebrais (AVC) e de lesões parciais da medula espinal», explica-se no artigo. A
única condição necessária é que ainda haja sinais elétricos dos músculos que possam ser lidos pelos
elétrodos.
Quanto ao homem de 72 anos, as mudanças que ocorreram graças a este tratamento experimental são
notadas pela família, diz a mulher, citada no artigo: «O meu marido pode viver mais dez anos do que eu

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esperava, agora que a dor tem um papel menos importante na sua vida, e os que estão próximos dele
veem isso.»
FERREIRA, N. (2014). «Realidade virtual ajuda a diminuir a dor de
homem que ficou sem antebraço». Público em linha, 27-02-2014.
Disponível em: http://www.publico.pt/ciencia/ [consultado a 23-03-2014].

p. 43
Um caso de agnosia visual (a Sra. S.)
A Sra. S., uma mulher inteligente com cerca de sessenta anos, teve uma trombose que lhe afetou a
zona posterior do hemisfério cerebral direito. A inteligência e o humor mantiveram-se perfeitamente
preservados mas, às vezes, queixava-se que as enfermeiras se tinham esquecido de pôr a sobremesa ou
o café no tabuleiro. Quando lhe diziam que o café ou a sobremesa estavam do lado esquerdo, ela
parecia não compreender e nem olhava para a esquerda. Se virava ligeiramente a cabeça de forma que
a sobremesa lhe aparecesse no campo de visão, dizia: «Agora está aqui, mas não estava». Perdeu
completamente a noção de esquerda, quer em relação ao mundo, quer em relação ao seu próprio corpo.
Às vezes, queixava-se que lhe davam pouca comida porque só come o que está do lado direito do prato,
e nem lhe ocorre que o prato também tem um lado esquerdo. Às vezes, maquilha o lado direito do
rosto, deixando o lado esquerdo sem nada.
É quase impossível tratar estes pacientes porque não lhes conseguimos chamar a atenção para o
problema (...), pois eles nem se apercebem que têm um problema. Do ponto de vista intelectual e
dedutivo, a Sra. S. compreende o que lhe digo, e até acha engraçado, mas não consegue ter a noção
imediata do que se passa. Depois de ter percebido qual era o seu problema, inventou estratégias para
lidar com a sua falta de perceção. Não pode olhar diretamente, nem virar o rosto para a esquerda. Por
isso, o que faz é virar-se para a direita e continuar a virar-se até completar um círculo. Pediu, e
conseguiu que lhe dessem, uma cadeira de rodas giratórias. Agora, se não consegue encontrar alguma
coisa que sabe que deveria estar naquele sítio, gira para a direita, fazendo círculo, até que aquilo que
procura entre no seu campo de visão. Se não ficar totalmente satisfeita, se não consegue encontrar o
café ou a sobremesa, se as doses lhe parecem pequenas, continua a girar para a direita, mantendo os
olhos nessa direção até que apareça a metade que ainda não vira. Come-a, ou come metade do que
encontrou, e fica com menos fome. Mas, se ainda tem fome, ou se ainda quiser comer mais, e se se
tiver apercebido, na altura, que talvez só tenha visto metade da metade que faltava, dá uma terceira
volta até ver o quarto que resta e volta a comer só metade. Normalmente para por aqui (já comeu sete
oitavos da dose), mas, se ainda tem fome ou se está obcecada com a ideia de comer tudo, pode dar
uma quarta volta e comer mais um dezasseis avos da dose (deixando, claro, os outros dezasseis avos,
aquilo que está no lado mais à esquerda do prato). «É absurdo», diz, «sinto-me como um carrossel,
nunca posso parar de girar. Pode parecer engraçado, mas, dadas as circunstâncias, o que é que eu
posso fazer?».
Pareceu-nos que talvez fosse mais fácil girar o prato em vez da cadeira e ela concordou e tentou fazê-lo
(...), mas é muito difícil para ela, não é uma coisa que lhe surja naturalmente, enquanto girar na cadeira
surge, porque o seu olhar, a sua atenção, os seus impulsos e movimentos espontâneos são exclusiva e
instintivamente para a direita.
SACKS, O. (1985). O Homem que Confundiu a Mulher com um Chapéu,
pp. 102-103, Lisboa: Relógio d’Água.
p. 44
Afasia de Wernicke - «Este peixe já não é válido»
O próprio Broca tinha as ideias claras em relação a um ponto particular: a região que atualmente é
designada com o seu nome era sede apenas do comando dos movimentos da palavra, e não da
faculdade da linguagem em geral. De facto, a grande revelação dos anos que se seguiram foi a da

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diversidade da afasia, ou antes, das afasias. Os neurologistas descreveram outros pacientes, com
perturbações da linguagem muito diferentes da de Leborgne, surgidas na sequência de lesões do
hemisfério esquerdo distantes da região de Broca. O caso mais famoso é o dos pacientes descritos na
Alemanha por Karl Wernicke em 1874: tagarelas, conversadores, prolixos, com facilidade de articulação,
mas apesar disso com um discurso incompreensível, cheio de neologismos absurdos e aparentemente
incapazes de perceber mesmo as perguntas mais simples. O seu linguajar abundante e a sua
incapacidade total de compreensão contrastavam com perturbações dos doentes descritos por Broca,
com reduzida capacidade de falar, mas com uma capacidade de compreensão normal. As suas lesões
diferiam igualmente por dizerem muitas vezes respeito à parte superior do lobo temporal esquerdo,
região a que o nome de Wernicke ficou ligado e que desempenha um papel crucial na compreensão da
linguagem, entre outras faculdades.
Mas não há nada como um bom exemplo. Em seguida transcreve-se um fragmento de um diálogo
filmado há vinte anos na Salpêtrière entre Jean-Louis Signoret e o Sr. S., na altura com 68 anos, vítima,
poucos dias antes, de um acidente vascular cerebral. O Sr. S., distinto e sorridente, fala
abundantemente e com clareza, com a pronúncia um pouco afetada e a articulação escrupulosa da
burguesia do Paris de outros tempos. As suas palavras são acompanhadas por gestos precisos e
expressivos. No entanto, dificilmente podemos chamar “diálogo” àquilo que ali se passa. Pedimos ao Sr.
S. que repita a palavra peixe: «Peixe! Condoído o peixe, o derrante foi vertido, estava morto! Este peixe
já não é valido, já não é errapante, já não tem o seu rimpante, perde, verte, verte, verte… mas não era,
não tinha… nós vestimo-lo, a este peixe, durante x tempo (…)».
E por aí adiante. Quer solicitemos ao Sr. S. que nos conte a sua vida, quer lhe digamos que nos leia
fábulas de La Fontaine, o resultado é sempre o mesmo linguajar, testemunha de uma profunda
desorganização da linguagem. Profunda, mas não geral: a articulação é boa, todas as palavras que
inventa podiam ser verdadeiras e sabe construir frases (incompreensíveis) com sujeito, verbo e
complementos. Esta afasia de Wernicke caricatural, desastrosa, é muito diferente da afasia que afetou o
Sr. Leborgne, o Tan-Tan: as perturbações da linguagem oferecem uma infinidade de variantes. Região
de Broca, região de Wernicke, outras regiões ainda: nos últimos decénios do século XIX descobriu-se
que a linguagem assenta no funcionamento de um conjunto de zonas do hemisfério esquerdo. Estas
zonas estão ligadas entre elas e cada uma tem funções diferentes, embora ainda hoje difíceis de
identificar com rigor. (…)
A nossa abordagem destas questões não está muito distante da dos neurologistas do fim do século XIX.
Tal como eles, procuramos determinar quais as regiões cerebrais envolvidas, quais as funções
desempenhadas por cada uma delas, a forma como comunica, etc. Tal como nessa época, procuramos
formular essas ideias sob a forma de hipóteses anatomofuncionais: que estruturas anatómicas e que
funções? Com base na observação de pacientes “do tipo Broca” e de pacientes “de tipo Wernicke”, o dito
Wernicke propôs uma teoria anatomofuncional cuja influência foi duradoura. De forma esquemática,
pesava que a “sua” região continha a memória auditiva das palavras, a recordação dos sons que
permitia reconhecer as palavras correspondentes. Quanto à região de Broca, permitia produzir, articular
as palavras. Compreendia além disso a oposição esquemática entre os “afásicos de Broca”, que falam
pouco e mal, mas percebem bem, e os “afásicos de Wernicke”, que percebem mal, mas falam muito.
Muito, mas não normalmente: Wernicke sugeriu que as anomalias da linguagem dos afásicos do tipo do
Sr. S. resultavam da perda do domínio do sistema de produção, intacto, pelo sistema de compreensão,
destruído.
COHEN, L. (2006). O Homem-Termómetro – O Cérebro em Peças Soltas,
pp. 38-41. Lisboa: Gradiva.

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p. 44
A ideia da predominância do hemisfério esquerdo
Broca sugeriu que, no momento em que adquirem as competências mais elaboradas e mais exigentes,
como a linguagem e a utilização das mãos, as crianças se apoiam sobretudo no hemisfério mais
desenvolvido, isto é, no esquerdo. E foi assim que fez passar a assimetria cerebral do estatuto de
observação aberrante ao de marca distintiva de elevação intelectual da espécie humana e promoveu o
hemisfério esquerdo ao papel prestigiado de hemisfério dominante.
A ideia da predominância da esquerda impôs-se nomeadamente pela observação dos danos causados
pelas lesões do lado esquerdo, em particular a perda do uso da mão direita e da linguagem. As
consequências das lesões do lado direito sobre as funções intelectuais só mais tarde foram esclarecidas,
depois de se ter imposto a ideia da predominância global do hemisfério esquerdo. As lesões do
hemisfério direito podem impedir-nos de reconhecer os rostos mais familiares, de nos orientarmos no
espaço, de perceber o sentido da entoação e a prosódia do discurso.
O estudo antropológico do cérebro humano estava já sobrecarregado por duas grandes escalas de valor:
o valor de um ser humano, ou da sua “raça”, seria proporcional, por um lado, ao volume do seu cérebro
e por outro à proeminência das suas regiões frontais. Com o conceito da prevalência do hemisfério
esquerdo surgiu uma terceira escala: a superioridade intelectual seria marcada por uma maior
assimetria cerebral, em que, evidentemente, o hemisfério esquerdo ficaria favorecido. Em busca de uma
justificação biológica, os preconceitos sociais, racistas e sexistas lançaram as suas pretensões sobre a
assimetria entre os hemisférios e surgiram cientistas dispostos a afirmar que os homens são mais
assimétricos que as mulheres, os ricos que os pobres, os brancos que os negros (…).
A valorização intrínseca da prevalência do hemisfério esquerdo já deixou de fazer parte das nossas
ideias feitas. Em compensação, continuamos a viver sob a influência de um segundo efeito perverso da
descoberta de Broca: a caricatura da oposição entre hemisfério esquerdo e hemisfério direito. Uma das
características dos seres humanos é apreciarem as descrições da realidade, nomeadamente do espírito,
em que entram pares: bem e mal, consciente e inconsciente, racional e instintivo, lógico e artístico,
masculino e feminino, etc. Todas estas dicotomias, e muitas outras, foram, num ou noutro momento,
relacionadas com a oposição direita-esquerda, e não se passa um mês sem que apareçam vários artigos
a exaltar os dons ocultos no hemisfério direito, a sua libertação da hegemonia racionalista do “cérebro
esquerdo”, etc.
(…) Evitaremos envolver-nos em debates ociosos sobre a prevalência de um ou de outro hemisfério, e
renunciaremos mesmo a essa expressão para a substituir por outra, mais aberta e exata, a de
especialização hemisférica: certas funções dizem respeito ao hemisfério esquerdo (…) e outras ao
hemisfério direito.

COHEN, L. (2006). O Homem-Termómetro – O Cérebro em Peças Soltas,


pp. 37-38. Lisboa: Gradiva.

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