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A CULTURA DA ENGENHARIA REVERSA:

RECORRÊNCIAS KAFKANIANAS EM BLACK MIRROR


Camilla da Silva Corrêa1

Resumo: O presente artigo tem como objeto principal de estudo a obra A


metamorfose de Franz Kafka. Serão analisados aspectos teóricos típicos da
narrativa kafkaniana segundo Bataille, Anders e Carone. Não se almeja a
realização de uma análise meramente literária, mas também cultural e social.
Nesse contexto, observaremos como é feita uma análise sociológica de uma
obra literária segundo Antonio Cândido, em Literatura e Sociedade. Buscarei
recorrências kafkanianas apresentadas pelo sexto episódio, da terceira
temporada da série britânica Black Mirror, denominado Engenharia Reversa.
Por fim, ambas as obras serão comparadas à luz dos conceitos de cultura e
emancipação do filósofo polonês Zygmunt Bauman.

Palavras-chave: Kafka, Bauman, Estudos culturais, Black Mirror

Résumé: Cet article a pour objet principal de l'étude de l'oeuvre la


Métamorphose de Franz Kafka. Seront analysés les aspects théoriques
typiques du récit de Kafka selon, Bataille et Anders Carone. Je propose aussi
de faire analyse, non seulement littéraire, mais aussi culturelle et sociale. Dans
ce contexte, nous observons comment nous pouvons faire une analyse
sociologique d'une œuvre littéraire selon, Antonio Cândido, en littérature et
société. On cherche aussi des récurrences présentés pour le sixième épisode
de la troisième saison de la série britannique Black Mirror, appelé Man against
fire. Enfin, les deux œuvres seront comparées à la lumière des concepts de la
culture et d’émancipation du philosophe polonais Zygmunt Bauman.
Mots-clés: Kafka, Bauman, études culturelles, Black Mirror

“O capitalismo é um sistema parasitário.


Como todos os parasitas, pode
prosperar durante certo período, desde
que encontre um organismo ainda não
explorado que lhe forneça alimento.”

(Zygmut Bauman)

1
Mestranda no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas/PPGICH pela
Universidade do Estado do Amazonas/UEA, graduada em Letras e Literatura Francesa pela Universidade
Federal do Amazonas/UFAM

1
1- Cultura, literatura e sociedade.

A metamorfose de Franz Kafka foi publicada na revista alemã Die Weissen


Blätter originalmente em 1915, embora tenha sido escrita em 1912. A trama de
Gregor Samsa, o homem que se metamorfoseou num gigantesco inseto logo
se tornou uma das maiores obras literárias da história, sendo amplamente
difundida e analisada pelas mais diversas óticas (literária, linguística,
psicológica etc.). No presente trabalho, proponho a realização de uma análise
sociocultural, embasada principalmente em dois teóricos contemporâneos,
Bauman e Cândido.

O teórico e sociólogo brasileiro Antonio Cândido, em literatura e sociedade


(1965) destaca na primeira parte destes ensaios, como se dá uma análise que
aproxime literatura, cultura e sociedade. Candido considera seus estudos como
paralelísticos, uma vez que seus objetivos são de demonstrar os aspectos
sociais e a presença dos mesmos em algumas obras selecionadas.

Candido ocupa-se em “averiguar como a realidade social se transforma em


componente de uma estrutura literária”. 2A problemática apontada pelo autor é
justamente como a literatura pode se desvincular dela mesma, a ponto que ela
possa ser estudada de forma independente, mas não de forma
estruturalista/hermética.

No primeiro capítulo, denominado Crítica e Sociologia, Candido, num breve


panorama histórico nos diz que o estudo da relação entre obra e contexto
social passou por três fases. Inicialmente, para se valorar uma obra, era
necessário analisar se esta exprimia ou não determinados aspectos da
realidade. Depois, buscou-se valorar uma obra através da riqueza de seus
aspectos formais e ignorando seus aspectos sociais.

2 CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história literária. 8º ed. São Paulo. T.A.Queiroz,
2000, p.9

2
Em nosso contexto atual e complexo (no sentido de estarmos no caminho
do rompimento de paradigmas simples e simplistas), onde os estudos culturais
estão cada vez mais inseridos no campo acadêmico, entende-se que é
necessário unir “texto e contexto”, para que se possa chegar a determinar
aspectos ricos numa obra literário-artística. E que o externo, ou seja, o social,
influi diretamente no interno, ou seja, na estrutura de como a obra foi concebida.

Aqui, é preciso estabelecer uma distinção de disciplinas,


lembrando que o tratamento externo dos fatores externos pode ser
legítimo quando se trata de sociologia da literatura, pois esta não
propõe a questão do valor da obra, e pode interessar-se, justamente,
por tudo que é condicionamento. Cabe-lhe, por exemplo, pesquisar a
voga de um livro, a preferência estatística por um gênero, o gosto das
classes, a origem social dos autores, a relação entre as obras e as
idéias, a influência da organização social, econômica e política etc. É
uma disciplina de cunho científico, sem a orientação estética
necessariamente assumida pela crítica. (CANDIDO, 2000, pág. 17)

O perigo na sociologia da literatura, segundo Cândido, é o de que ela


suprima o pressuposto real, a verdade impressa na obra, ou ainda que a obra
seja considerada extremamente autônoma e assim, faça inferências
exageradas a respeito dos aspectos histórico-sociais, e acabe por perder o
sentido do objeto da análise.

De qualquer modo, convém evitar novos dogmatismos,


lembrando sempre que a crítica atual, por mais interessada que
esteja nos aspectos formais, não pode dispensar nem menosprezar
disciplinas independentes como a sociologia da literatura e a história
literária sociologicamente orientada, bem como toda a gama de
estudos aplicados à investigação de aspectos sociais das obras, —
frequentemente com finalidade não literária.Para fixar idéias e
delimitar terrenos, pode-se tentar uma enumeração das modalidades
mais comuns de estudos de tipo sociológico em literatura, feitos
conforme critérios mais ou menos tradicionais e oscilando entre a
sociologia, a história e a crítica de conteúdo. (CANDIDO, 2000, pág.
18)

Cândido divide os estudos de sociologia da literatura em seis tipos


principais, mostrando seus prós e contras. O primeiro tipo de estudo busca
estabelecer relações entre um conjunto ou coleção de literatura, agrupando-as
por gênero, período, condições sociais, temas etc. Este é o método mais trivial.

3
Sua principal vantagem é que, usando desta metodologia, torna-se possível
estabelecer uma ordem geral 3 , ou seja, um panorama histórico-social bem
organizado, que mostra com clareza onde e de que forma o objeto de estudo
está inserido na sociologia da literatura.

Sua desvantagem é a dificuldade de mostrar de fato onde as condições


sociais e as obras se encontram, sem que pareça forçado. Embora a sociologia
da literatura seja um campo de estudo complexo e rizomático, envolvendo
diversas áreas e visões de mundo, o estudioso deve ter cautela, para não
inserir seus objetos de estudo nas caixas, tornando sua pesquisa fechada, ao
contrário do que propõe os estudos culturais.

O segundo e terceiro tipos de metodologias, consistem na busca de obras


que retratam ou propõe representações da sociedade. Neste caso, buscam-se
correspondências entre o contexto real e o ficcional. Este tipo de metodologia
é mais voltado à sociologia que à crítica literária, se aproximando mais do
campo da literatura comparada.

O quarto tipo de estudo da sociologia da literatura se ocupa de observar o


rôle, ou seja, o papel ou função social do escritor, relacionando estas
informações com a obra produzida pelo mesmo. Tais estudos podem ser
perigosos devido às suas inexatidões. Esta temática gera muita polêmica até o
presente momento, sobretudo a respeito das influências da biografia do autor
em sua obra, dos limites da literatura ficcional, da história como literatura e
vice-versa.

O quinto tipo, segundo Cândido, é um desdobramento do supracitado, onde


o estudioso investiga a função da política nas obras e autores. A principal
desvantagem é a de que por muitas vezes, o estudioso adota posicionamentos
ideológicos muito fechados. Os estudos literários marxistas são os mais
adotados neste tipo de metodologia. E finalmente, o sexto e último tipo de

3 CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história literária. 8º ed. São Paulo. T.A.Queiroz,
2000, p.18

4
estudo, tem como objeto de pesquisa a investigação hipotética das origens4,
tanto da literatura quanto de gêneros e temas específicos.

Segundo Cândido, todas as metodologias de estudo apresentadas têm


relevância, se bem executadas:

Todas estas modalidades e suas numerosas variantes são


legítimas e, quando bem conduzidas, fecundas, na medida em que as
tomarmos, não como crítica, mas como teoria e história sociológica
da literatura, ou como sociologia da literatura, embora algumas delas
satisfaçam também as exigências próprias do crítico. Em todas nota-
se o deslocamento de interesse da obra para os elementos sociais
que formam a sua matéria, para as circunstâncias do meio que
influíram na sua elaboração, ou para a sua função na sociedade.
(CANDIDO, 2000, pág.20)

Na analise sociológico-literária, faz-se necessário que sejam analisados os


fatores socioculturais que influenciam diretamente a obra, ligando o contexto
histórico, social, ideológico e cultural em que a obra fora concebida. Para isso,
são analisados alguns aspectos, “a) o artista, sob o impulso de uma
necessidade interior, orienta-o segundo os padrões da sua época, b) escolhe
certos temas, c) usa certas formas e d) a síntese resultante age sobre o
meio.”5 Estes aspectos são de extrema importância para a sociologia da
literatura, comenta Cândido:

Como se vê, não convém separar a repercussão da obra da sua


feitura, pois, sociologicamente ao menos, ela só está acabada no
momento em que repercute e atua, porque, sociologicamente, a arte
é um sistema simbólico de comunicação inter-humana, e como tal
interessa ao sociólogo. (CANDIDO, 2000, pág.31)

A metodologia de estudo adotada nesta análise se aproxima do segundo


tipo de modalidade descrito por Cândido. Será adotado um paralelismo entre
obras e os conceitos de cultura e emancipação de Zygmunt Bauman. Sendo
assim, é necessário que estabeleçamos e compreendamos um conceito padrão
de cultura para nortear esta análise.

4 CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história literária. 8º ed. São Paulo. T.A.Queiroz,
2000, p.21
5 CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história literária. 8º ed. São Paulo. T.A.Queiroz,

2000, p.31

5
Em Ensaios sobre o conceito de cultura, Bauman propõe uma crítica do
conceito de cultura. O teórico realiza um detalhado percurso teórico sobre os
diferentes conceitos de cultura através das eras. Desde o período helênico até
o contexto pós-moderno que estamos inseridos. Bauman vê a cultura como
práxis, como um conjunto de fatores que englobam identidade, estrutura,
hierarquia e outros fatores.

Bauman afirma que inicialmente a ideia de cultura foi cunhada para


diferenciar as realizações humanas, das naturais, ou seja, a cultura era
proveniente da realização humana e a natureza era algo que deveria ser
obedecido. Mais tarde, que passou-se a entender o conceito de “ fatos sociais”
até chegarmos a culturalização da natureza6.

A “cultura” não precisava mais mascarar sua própria fragilidade


humana e desculpar-se pela contingência de suas escolhas. A
naturalização da cultura foi parte e parcela do moderno
desencantamento do mundo. Sua desconstrução, que se seguiu à
culturalização da natureza, tornou-se possível – talvez inevitável –
com o reencantamento pós-moderno do mundo. (BAUMAN, 2012)

No âmbito da modernidade, a cultura já não é mais analisada de forma


única e monovalente, esta passa a ser multicultural e ambivalente. Essa
ambivalência se dá pelo paradoxo da construção da cultura moderna, que é
apoiada no conceito de liberdade, emancipação e livre-arbítrio, porém, para
que o indivíduo torne-se parte da sociedade, vivenciando de fato essa cultura
como práxis, é necessário que ele abra mão desta “liberdade”.

Se o que se deve ordenar é um conjunto de seres humanos, a


tarefa consiste em incrementar a probabilidade de certos padrões de
comportamento, ao mesmo tempo em que se restringe, ou se elimina
totalmente, a possibilidade de outros tipos de conduta. Essa tarefa
envolve dois requisitos: primeiro, deve-se projetar uma distribuição
ótima das probabilidades; segundo, deve-se garantir a obediência às
preferências projetadas. O primeiro requisito pressupõe a liberdade
de escolha; o segundo significa sua limitação, ou mesmo sua
eliminação total. (BAUMAN, 2012)

6 BAUMAN, Zygmunt. Ensaios sobre o conceito de cultura. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro:
Zahar, 2012.

6
Em Modernidade líquida, Bauman voltará a falar sobre o conceito de
emancipação, como ele se encontra na modernidade. No presente trabalho,
desenvolverei como a emancipação está presente de maneiras diferentes, nas
duas obras selecionadas como objeto de estudo.

2. Do universo Kafkaniano

Como nos aponta Güthen Anders em Kafka: prós e contras (2007),


Kafka foi considerado inclassificável “Nous ne classerons pas Kafka
inclassable”7. Em A literatura e o mal , George Bataille inicia o capítulo com o
questionamento “ É preciso queimar Kafa?”. O próprio autor austríaco,
expressa o desejo que queimar seus escritos, motivado principalmente por
tormentos pessoais e a sensação de não pertencimento, característica
marcante nas obras de Kafka, como comenta Anders:

Como judeu, não pertencia de todo ao mundo cristão. Como judeu


indiferente [...] não se integrava inteiramente aos judeus. Por falar
alemão, não afinava a fundo com os tchecos. Como judeu de língua
alemã, não se incorporava por completo aos alemães da Boêmia.
Como boêmio, na pertencia integralmente à Áustria. Como
funcionário de uma companhia de seguros de trabalhadores, não se
enquadrava por completo na burguesia. Como filho de burguês, não
se adaptava de vez ao operariado. Mas também não pertencia ao
escritório, pois sentia-se escritor. Escritor, porém, também não era,
pois sacrificava suas forças pela família; (ANDERS, 2007, p.26).

Kafka é um autor híbrido, não apenas pela temática e pela ambiguidade


metafórica em suas obras, mas também por sua forma peculiar de narração e
construção semântica e poética. Anders, no capítulo denominado O aquém
enquanto além, descreve o universo kafkaniano, suas particularidades e como
a vida do próprio autor influenciava de forma direta em suas obras.

A fisionomia do mundo kafkaniano parece desloucada, Mas Kafka


deslouca a aparência aparentemente normal do nosso mundo louco,
para tornar visível sua loucura. Manipula, contudo, essa aprencia
louca como algo muito normal e, com isso, descreve até mesmo o

7
Anders cita E. mounnier em “Introduction aux existencialismes”, in Esprit, abril de 1946,p.526
ANDERS, Günther. Kafka: Pró e contra. São Paulo: Ed. Cosac Naify,2007

7
fato louco de que o mundo louco seja considerado normal. (ANDERS,
2007, p.26).

O universo criado por Franz Kafka é repleto de personagens e situações


insólitas, porém, em momento algum se admite a presença de algum fato
mágico ou sobrenatural que explique tais ações. Anders afirma que Kafka é um
“fabulador realista” e que ele, ao deformar ou ressignificar o universo, também
utiliza um método que se assemelha muito ao método científico experimental,
como propunha Claude Bernard em sua medicina experimental.

Um objeto é inserido a uma situação criada de maneira artificial, a


experimentação, que gera um resultado, é o que o autor chama de fixação. No
âmbito literário, Zola, realizou processos parecidos em seu Romance
Experimental, posteriormente, no mundo contemporâneo Bretch também o fez,
porém, a experiência em Kafka é diferente. Embora antropomorfizações e
zoomorfizações sejam temas recorrentes, ele não é naturalista. Kafka mostra
situações extremamente ligadas ao cotidiano e da condição humana, há a
presença natural do insólito, por isso, ele não pode ser considerado um realista.

Alguns cogitam que o fantástico poderia abarcar Kafka, porém segundo


Tzvetan Todorov, em Introdução à literatura fantástica (1975) o fantástico se
torna possível quando a personagem, inserido num contexto cotidiano, cruza
com um evento insólito ou desconhecido. Porém, esta tem a autonomia de
aceitar a afirmação da influência do sobrenatural, (que algo que não possa ser
explicado pelas leis naturais passa a reger determinado universo), ou sua
negação, embasada em justificativas diversas, (como a responsabilização do
onírico, algum estado de psicopatia ou uso de substâncias psicotrópicas). A
hesitação gerada se traduz exatamente no efeito:

O fantástico dura somente o tempo de uma hesitação:


hesitação comum ao leitor e ao personagem, os quais devem
decidir se aquilo que percebem faz parte ou não do campo da
realidade existente para o senso-comum. (TODOROV, 1975).

Em Kafka, não há hesitação. O insólito é aceito com naturalidade e


colocado como verdade absoluta, apenas é o que é. Passado o momento de
hesitação, ao aceitar o insólito como real, automaticamente sai-se do efeito do

8
“fantástico puro” todoroviano, e este, passa a ser classificado entre suas
categorias vizinhas, o estranho ou o maravilhoso.

Todorov discorre a respeito das características que diferenciariam o


fantástico puro de seus gêneros correlatos:

Como vemos o estranho não cumpre mais que uma das


condições do fantástico: a descrição de certas reações, em
particular, a do medo. Relaciona-se unicamente com os
sentimentos das pessoas e não com um acontecimento
material que desafia a razão (o maravilhoso, pelo contrário,
terá que caracterizar-se exclusivamente pela existência de
feitos sobrenaturais, sem implicar a reação que provocam nos
personagens). (TODOROV, 1970)

Outro teórico a discorrer sobre o “estranho”, foi o psicanalista alemão


Sigund Freud, em sua obra Das Unheimliche, (1815), ele diz que a temática do
estranho como gênero literário e está diretamente relacionado com algo
assustador. O psicanalista tenta conceituar o sentido da palavra alemã
unheinlich, que esta se encontra em oposição à “heimlich [doméstica’],
heimisch [nativo’] – o oposto do que é familiar”.

Neste contexto, observamos a importância do papel do duplo, pois, ao


mesmo tempo em que o estranhamento do unheinlich se dá precisamente
porque não é conhecido e familiar, este também pode surgir, através de algo
que é familiar, mas que deve ser escondido, porém, em Kafka, os personagens,
principalmente os que sofreram algum tipo de metamorfose, não estão
escondidos ou ocultos.

Cogita-se também o pertencimento ao Maravilhoso, este seria


encontrado, quando a personagem aceitasse a presença do desconhecido, do
insólito e do onírico em sua realidade com naturalidade, o que de fato ocorre no
universo Kafkaniano, porém, não seria um gênero puro. Todorov afirma que no
maravilhoso-puro “os elementos sobrenaturais não provocam nenhuma reação
particular nem nos personagens, nem no leitor implícito” (p.60).

As obras de Kafka realmente se encontram numa categoria


incategorizável, híbrida e multifacetada, justamente por se encaixar em
diversas categorias, mas sem pertencer a nenhuma. Anders diz que “o
espantoso em Kafka, é que o espantoso não espanta ninguém”, precisamente

9
pela naturalidade com que os personagens reagem diante dos acontecimentos
anormais, como o que acontece em A Metamorfose, nosso próximo objeto de
estudo deste trabalho. Anders chama este princípio de “ princípio da explosão
negativa”8.

Na realidade, a premissa kafkania é a de falar da loucura impressa em


nosso realismo cotidiano. Ele nos faz questionar sobre a anormalidade do que
é comum, do espanto da vida social, da condição humana desloucada num
mundo também desloucado, mas que por convenções sociais, é visto como
normal. Essa é a inversão kafaniana, onde o “natural” e o “não espantoso” do
mundo real é o que é realmente assustador, segundo Anders “essa técnica de
“inversão” da fábula tem função estritamente didática. Demonstra-se sem
cerimônia quão pouco, na realidade, o espantoso espanta e o horrível horroriza
[...]”.

Para compreender de fato o universo de Kafka, é necessário que


entendamos o que é o “ser kafkaniano”. Só através dessa compreensão que
entenderemos sua temática e a estrutura real de suas obras. O “ser” se
encontra desvinculado dos demais. Essa não vinculação, na concepção de
Kafka se traduz em liberdade, em não pertencimento, assim como o próprio
autor se sentia, comenta Anders; “o existente, o mundo tal como parece ao
estranho (ou seja, estranho); e o esforço desesperado do não-existente (ou
seja, daquele que não pertence) para ser aceito pelo mundo” 9 . Essas
características tão sui generis da literatura kafkaniana são um reflexo do
próprio autor e suas visões de mundo, daí a importância de compreender o “ser”
segundo Franz Kafka se torna imprescindível para o entendimento completo de
suas obras.

Ora, os “estranhamentos” hoje universalmente vigentes


(entre o homem e o mundo tornado “mercadoria”, entre o
homem e o homem) nada têm a ver com a constelação
especial em que Kafka nasceu com o fato de ter pertencido a
tantos grupos e só “pela metade”. (ANDERS, 2007, p.29)

8 “consiste em não fazer soar sequer um pianíssimo onde cabe esperar um fortíssimo: o mundo
simplesmente conserva inalterada a intensidade do som. Com efeito, nada é mais assombroso do que a
fleuma e a inocência com que Kafka entra nas histórias mais incríveis” (ANDERS, 2007, P.20).
9 ANDERS, Günter. Kafka: Pró e Contra. Tradução e introdução de Modesto Carone. São Paulo:

Perspectiva, 2007

10
3. Recorrências Kafkanianas em Black Mirror

Agora que já compreendemos algumas particularidades da escrita e


temática de Kafka, nos debruçaremos sobre dois outros objetos de pesquisa,
almejando a realização de uma espécie de estudo de literatura comparada
entre texto literário e texto filmístico. Os objetos desta comparação são; A
metamorfose de Franz Kafka, e o episódio Engenharia reversa (título original:
Man against fire) da série Black Mirror. As obras foram escolhidas por se
aproximarem em diversos aspectos, como referências encontradas e
similaridades temáticas. Para isso, falaremos brevemente das premissas das
duas produções selecionadas.

A metamorfose (1912) pode ser dividida em três partes distintas. Na


primeira parte, o protagonista Gergor Samsa, acabara de se transformar num
monstruoso inseto de proporções homéricas. O narrador não fala com clareza,
mas tudo indica que Gregor está metamorfoseado na figura de uma barata.

“Certa manhã, após um sono conturbado, Gregor Samsa acordou e viu-


se em sua cama transformado num inseto monstruoso” – Nas primeiras linhas
do romance, o leitor é surpreendido com um fato insólito – o protagonista não
se encontra mais na forma humana – fato este, que determinará todo o rumo
da narrativa.

Por se tratar de um narrador heterodiegético, o leitor sente um


estranhamento, por este saber tanto quanto o personagem e o próprio leitor, ou
seja, praticamente nada. O narrador limita-se a contar fatos. Quando Gregor
questiona-se sobre o que terá ocorrido com ele, o narrador afirma que de fato,
não se tratava se um sonho, logo o leitor necessita aceitar a metamorfose
como verdade, sem margem para outras interpretações.

Para maior clareza nesta análise, dividirei Engenharia Reversa também


em três partes. Na primeira parte, entendemos o contexto moderno e distópico
em que o universo da série se passa e conhecemos o protagonista, o soldado
Stripe, que vai partir em sua primeira missão, que consiste em visitar um

11
vilarejo próximo, onde houve indícios de um saque realizado por seres não-
humanos denominados de “baratas” (eis a primeira referência ao universo
kafkaniano retratado em A metamorfose).

Mas qual a razão da escolha deste inseto para designar tanto a


metamorfose de Samsa, quanto os não-humanos de Engenharia Reversa? –
este questionamento, deixaremos em aberto para respondermos mais adiante
– Nos são apresentadas algumas características das baratas retratadas na
série, seres que não tem aparência humana, são desfigurados, vivem em
ambientes escondidos, escuros e insalubres, não falam, para se comunicar
emitem apenas grunhidos irreconhecíveis.

Ao adentrar a casa de Parm Heidekkan, um fazendeiro local, Stripe e os


outros solados vasculham toda a área em busca de baratas, enquanto a
comandante Medina conversa com Heidekkan. Neste diálogo, observamos que
há ainda, civis que se preocupam em proteger as baratas. Neste momento, o
espectador se questiona, “se são seres tão detestáveis e repulsivos, porque
alguém se preocuparia em protegê-los?”, o espectador também começa a
observar que há algo de humano nestes seres.

“– Você tem uma cruz na parede (Medida aponta e se dirige a


Heidekkan), tem princípios, acha que toda vida é sagrada. Eu
entendo. Se toda vida é sagrada, você se vê obrigado a proteger as
baratas [...] mas temos que acabar com elas para que a humanidade
continue existindo. Temos que fazer sacrifícios” (Engenharia reversa,
Black Mirror, T03, E05, 2016).

Paralelamente, Strike luta e mata duas baratas, porém, antes de matar


uma delas, um estranho objeto, semelhante a uma lanterna é apontado para
ele. Posteriormente, saberemos que o objeto foi construído para danificar a
tecnologia que o exército implantou nos soldados, um sistema de máscara que
altera sua percepção, fazendo com que eles vejam apenas o que convém ao
próprio exército, e não o que é real.

Quase ao final do episódio, o espectador descobre que as baratas ainda


eram seres humanos, e que devido a uma conjuntura de fatos, foram

12
marginalizados, pelo que foi ensinado à sociedade, já que os civis não
enxergavam monstros disformes, e sim, humanos.

Figura 1 - Black Mirror, temporada 3, episódio 5, Engenharia Reversa, 2016

Embora de formas diferentes, ambas as obras tratam de metamorfoses


no mesmo inseto anteriormente citado. No caso da obra, o leitor se choca
principalmente por estar acostumadas a metamorfoses reversíveis ou
explicadas por alguma magia, ou fato sobrenatural. Já no caso da série, a
metamorfose que ocorre, é social. Como observamos neste diálogo:

“– Depois do pós-guerra com os programas de tiragem, com


os exames de DNA, depois o registro, as medidas de emergência. De
repente todos passaram a nos chamar de criaturas. Criaturas
imundas. Por toda parte, na TV, no computador. Dizem que somos
doentes, que temos uma fraqueza em nosso sangue; Dizem que
nossa linhagem não pode continuar existindo, que nós não podemos
existir. Meu nome era Catarina. O dele era Alec. Agora somos apenas
baratas.” (Engenharia reversa, Black Mirror, T03, E05, 2016).

Já na obra de Kafka, a metamorfose provoca um estranhamento maior


por dois motivos, a) a narrativa é contada da forma inversa, onde o fato
determinante é contado no início, e não no decorrer do romance, b) pelo
recurso do narrador heterodiegético, como aponta Modesto Carone em Lição
de Kafka (2009):

Sua peculiaridade consiste no fato de que não é o inseto-


personagem quem conta a história, não obstante ela seja narrada da
perspectiva do herói. Essa manobra é possível, aqui, graças à
existência de um narrador desprovido de qualquer marca pessoal que
o autorizasse, por exemplo, a fazer reflexões ou comentários
esclarecedores sobre a história que está relatando. Em outros termos,

13
esse narrador se comporta como uma câmera cinematográfica na
cabeça do protagonista [...] (CARONE, 2009, P.154).

O narrador tradicional, fora das obras de Kafka, tem acesso aos


pensamentos, desejos e a detalhes que o herói/protagonista não possui, de
acordo com princípios Bakthinianos do volitivo-emocional 10 . Já em Kafka, o
narrador tem acesso apenas aos fatos que são apresentados e nada mais.
Portanto é tão impotente quanto o personagem e o próprio leitor.

No caso da Engenharia reversa, a metamorfose social que sofreram os


humanos, pode ser compreendida como uma perda de identidade, mas em
Kafka, a transformação não tem exatamente os mesmos efeitos. Gregor
continua sendo ele, o narrador se refere a ele nos termos “no atual estado”
e ”nesta forma”. Ele é privado de se comunicar, de sua aparência e funções,
mas nunca deixa de ser ele mesmo.

Em determinado momento do romance, Gregor é atingido por uma maçã

arremessada pelo próprio pai “(...) algo passou raspando sua cabeça e rolou

até um pouco mais à frente: era uma maçã, logo seguida de outra. Temeroso,
Gregor deteve-se, considerando inútil continuar correndo, pois o pai havia
decidido bombardeá-lo (...)” (KAFKA, 2001, p. 52). A fruta penetra em seus
flancos, abandonado, rejeitado por todos, ferido e sem cuidados, Gregor acaba
morrendo. O que gera, de certa forma, um alívio para sua família.

A figura da maçã é mostrada algumas vezes em Engenharia Reversa,


principalmente em contextos ligados a saúde/doença, quando o soldado Stripe
vai a uma consulta com o médico, por desconfiar que haja algo de errado com
seus implantes, e logo em seguida, quando é encaminhado ao psiquiatra
Arquette, que acaba se relacionando com a figura do Sr. Samsa, pai de Gregor.
Ambos os personagens deveriam remeter a segurança e confiabilidade, porém
mostram o oposto disso. Arquette é quem tortura Stripe com as imagens reais
do seu primeiro extermínio as baratas, e o Sr. Samsa é diretamente
responsável pela morte do próprio filho.

10
BAKHTIN, M. A forma espacial do herói. In: ______ (Org.). Estética da criação verbal. Trad. Paulo
Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

14
Figura 3 Black Mirror, temporada 3, episódio 5,
Engenharia Reversa, 2016
Figura 2 Black Mirror, temporada 3, episódio 5,
Engenharia Reversa, 2016

Quanto ao questionamento que havíamos deixado em aberto, “qual a


razão da escolha da barata para designar tanto a metamorfose de Samsa,
quanto os não-humanos de Engenharia Reversa?”. A barata não foi escolhida
ao acaso, evidentemente. A simbologia deste inseto não trata apenas de
repulsa e ojeriza. Aqui, mostra-se como um escapismo, algo que precise ser
escondido. É a condição de não ser aceito pela sociedade, que esmaga o
diferente. A barata também simboliza a resistência, portanto, é necessário que
o metamorfoseado se liberte do sistema, de uma maneira ou de outra.

Essa libertação ocorre de maneiras diferentes nas duas obras. Para


analisá-las através da sociologia da literatura, tomaremos como referencial
teórico o conceito de “emancipação” de Zygmunt Bauman. Em Modernidade
líquida, Bauman fala do conceito de liquidez, e de como estes são fluídos e
facilmente se moldam e adaptam a diferentes formas e recipientes. Indo mais
profundamente na metáfora da liquidez, os líquidos tem a capacidade não só
de moldar-se, mas também mudar de estado são plenamente mutável, assim
como o ser no contexto moderno.

Os fluidos se movem facilmente. Eles “fluem”, “escorrem”, “esvaem-


se”, “respingam”, “transbordam”, “vazam”, “inundam”, “borrifam”,
“pingam” são “filtrados”, “destilados” diferentemente dos sólidos, não
são facilmente contidos — contornam certos obstáculos, dissolvem
outros e invadem ou inundam seu caminho. [...] Associamos “leveza”
ou “ausência de peso” à mobilidade e à inconstância: sabemos pela
prática que quanto mais leves viajamos, com maior facilidade e
rapidez nos movemos. Essas são razões para considerar “fluidez” ou
“liquidez” como metáforas adequadas quando queremos captar a
natureza da presente fase, nova de muitas maneiras, na história da
modernidade. (BAUMAN, 2001)

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Em seu capítulo intitulado “Emancipação”, Bauman reflete sobre o
conceito de liberdade. Segundo o filósofo, a libertação, ou emancipação, tem
um significado bastante literal:

Para simplificar: poucas pessoas desejavam ser libertadas, menos


ainda estavam dispostas a agir para isso, e virtualmente ninguém
tinha certeza de como a “libertação da sociedade” poderia distinguir-
se do Estado em que se encontrava. “Libertar-se” significa
literalmente libertar-se de algum tipo de grilhão que obstrui ou impede
os movimentos; começar a sentir-se livre para se mover ou agir.
“Sentir-se livre” significa não experimentar dificuldade, obstáculo,
resistência ou qualquer outro impedimento aos movimentos
pretendidos ou concebíveis. Como observou Arthur Schopenhauer, a
“realidade” é criada pelo ato de querer; é a teimosa indiferença do
mundo em relação à minha intenção, a relutância do mundo em se
submeter à minha vontade, que resulta na percepção do mundo como
“real”, constrangedor, limitante e desobediente (BAUMAN, 2001)

A partir desse conceito de liberdade, Bauman questiona se esta seria


uma benção ou maldição. Em modernidade líquida, a liberdade se
caracterizaria como benção quando o indivíduo pode agir de forma plena,
conforme seus desejos, e maldição quando este assume a responsabilidade
sobre seus próprios atos e escolhas, portanto o indivíduo deve ter equilíbrio ao
buscar emancipação, já que a sociedade delimita e cerceia a liberdade.

Esta liberdade divide-se em duas, a subjetiva e a objetiva. A primeira


tem relação com o princípio da realidade, onde o indivíduo se sente livre, caso
seus desejos estejam dentro das possibilidades, mas que sua liberdade não
pode ser plenamente comprovada. Enquanto a liberdade objetiva está atrelada
a situações reais e práticas, inclusive das limitações impostas pela sociedade.

Pode ser que o desejo de melhorar tenha sido frustrado, ou nem


tenha tido oportunidade de surgir (por exemplo, pela pressão do
“princípio de realidade” exercido, segundo Sigmund Freud, sobre a
busca humana do prazer e da felicidade); as intenções, fossem elas
realmente experimentadas ou apenas imagináveis, foram adaptadas
ao tamanho da capacidade de agir, e particularmente à capacidade
de agir razoavelmente — com chance de sucesso. Por outro lado,
pode ser que, pela manipulação direta das intenções — uma forma
de “lavagem cerebral” — nunca se pudesse chegar a verificar os
limites da capacidade “objetiva” de agir, e menos ainda saber quais
eram, em primeiro lugar, essas intenções, acabando-se, portanto, por
colocá-las abaixo do nível da liberdade “objetiva”. (BAUMAN, 2001)

Convém questionar, como a emancipação está presente nas obras


selecionadas e de que forma liberdade é uma benção ou uma maldição. O

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estado eterno de não-pertencimento kafkaniano, de certa forma contribui para
que seus personagens busquem uma forma de libertar-se do universo em que
estão inseridos. A verdade é que as obras de Kafka seguem um padrão, como
cita Anders.

Esse padrão pode ser descrito em sete características; a) o personagem


se sente excluído do mundo ou de vários mundos sociais ou étnicos, b)Por isso,
ele não sabe onde é o sujeito de deveres, c)A insciência se torna má
consciência, d)Portanto, não reclama de direitos de parte alguma, e)Uma vez
que não têm direitos, ele não está certo, f)O “não estar certo” aumenta seu
tormento moral, g)O tormento moral coloca-o fora do mundo.

Se analisarmos a trajetória de Gregor Samsa, notaremos que o


personagem sofre quase todas essas ações, assim como o soldado Stripe em
Engenharia reversa. Quando Stripe descobre a verdade, contada por Catarina,
de como o exército o controlava através de sua máscara, ele se sente
deslocado, não sabe mais como agir. Ao ajudar as “baratas”, ele acabou
infringindo as leis do mundo, que até o momento, ele considerava como certo.
Ele acaba sendo preso, e numa conversa com o psiquiatra Arquette, ele
descobre que consentiu que seus sentidos fossem alterados, logo, ele se culpa
por estar errado e entra no estado de tormenta moral, e este estágio que o leva
a emancipação.

Figura 4 Black Mirror, temporada 3, episódio 5, Engenharia Reversa, 2016

A emancipação baumaniana, também é alcançada por Gregor Samsa


pela mesma maneira, porém com uma roupagem diferente. Ao metamorfosear-
se num inseto, ele não pode mais exercer sua profissão de caixeiro viajante,

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função que ele odiava, e só o fazia, para livrar a família de dívidas que o pai
anteriormente fizera.

As consequências imediatas desta são: 1) retirar da família a base


econômica do seu sustento (evidentemente fundado na exploração
do trabalho do filho) e 2) libertar Gregor da sua condição de escravo
assumido. Vistas as coisas por esse ângulo, é admissível supor que o
inseto Gregor é inútil porque já não produz, só consome; ao mesmo
tempo que Gregor, o inseto, é a forma sensível de uma libertação.
(CARONE, 2009).

A emancipação em A metamorfose representa uma benção, Gregor


antes sacrificava seus desejos e vontades, trabalhava numa profissão que o
deixava infeliz apenas para o agrado e sustento de sua família. A partir do
momento em que ele se transforma em inseto, não pode mais exercer o
trabalho que tanto detestava, e embora seja duro para ele, finalmente enxerga
como a família o tratava, apenas como um mero provedor, logo, a metamorfose
o liberta de ser parasitado por sua família.

A metamorfose de Gregor representa uma conversão do parasitado


da família ao suposto parasita dela, ou seja: a passagem daquele que
se sacrifica para aquele que já não pode ser sacrificado, do adequado
para o inadequado, do idêntico para o diferente, do reconhecido para
o que perdeu o reconhecimento, do familiar para o não familiar, do
“ele” para o “isso”, do manso para o monstro, do Gregor-homem para
o Gregor-inseto.(CARONE, 2009).

Em Engenharia reversa, Stripe deve decidir entre duas opções, ou ele


aceita que a máscara seja reimplantada e esquece todo o ocorrido, ou é preso
e torturado, não só por sua consciência, mas também pelas imagens do que
fez, sendo transmitidas em seus olhos a todo o momento.

Figura 5 Black Mirror, temporada 3, episódio 5, Figura 6 Black Mirror, temporada 3, episódio 5,
Engenharia Reversa, 2016 Engenharia Reversa, 2016

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Fica entendido que Stripe resolve esquecer todo o horror e tormento que
passara. Neste caso, a liberdade evidentemente representava uma maldição,
pois, caso escolhesse a segunda opção, estaria condenado a viver com a culpa
e o tormento. A máscara simboliza uma prisão da realidade assombrosa que
vivia, mas também era um escudo contra a fragilidade do ser humano. Como
Bauman nos relembra Ricoeur, “O ser humano autônomo só pode ser frágil”.
Não é possível haver autonomia sem fragilidade [...] A “autonomia é uma
característica do ser frágil, vulnerável”.

Figura 7 Black Mirror, temporada 3, episódio 5, Engenharia Reversa, 2016 - comparação do que o personagem via
com suas percepções alteradas

A relação dicotômica entre autonomia e fragilidade reflete no caráter


dúbio da liberdade. E que em contextos diversos, essa liberdade funciona de
forma diferente em ambas as obras analisadas, os dualismos só reforçam as
teorias de Bauman sobre emancipação em nosso contexto pós-moderno.
Embora sejam obras separadas por mais de um século de diferença, as duas
conseguem falar do mesmo assunto com brilhantismo, a condição humana na
modernidade

É destino dos indivíduos modernos – livres e, portanto,


subdeterminados –, subconstituídos e assim destinados à
autoconstituição, oscilar entre os extremos da força e da falta de
poder, e assim perceber sua liberdade como uma “bênção dúbia”,
uma modalidade saturada de ambivalência (BAUMAN, 2009).

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REFERÊNCIAS

ANDERS, Günther. Kafka: Prós e contras. São Paulo: Ed. Cosac Naify, 2007.
BATTAILLE, Georges. A literatura e o mal. Trad. Suely Bastos. Porto Alegre:
L&PM, 1989.
BLACK MIRROR, Engenharia reversa (título original: Man against fire),
Direção: Jakob Verbruggen,Roteiro: Charlie Brooker, Inglaterra/Estados Unidos, 2016

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.


BAUMAN, Zygmunt. Ensaios sobre o conceito de cultura. Tradução de
Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2012
CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história
literária. 8º ed. São Paulo. T.A.Queiroz, 2000
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001
CARONE, Modesto. Lição de Kafka. São Paulo, Companhia das Letras, 2009.

FREUD, S. (1919/1996). O estranho. Obras completas, ESB, v. XVII. Rio de


Janeiro: Imago Editora.
KAFKA, Franz. A Metamorfose. São Paulo, Nova Alexandria, 2001.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara


Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 1975. (Debates, 98). p. 29-63.

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