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M ARCHAS E CONTRAMARCHAS DA

CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL: A


INTERPRETAÇÃO DO DIREITO PRIVADO À LUZ DA
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
GUSTAVO TEPEDINO*

A constitucionalização do direito civil, de direito se vê em conflitos. O esquema se


designação algo ambígua e talvez deselegante, completava com a atribuição de grande espaço para
associa-se à mudança do papel do Código Civil nas a autonomia da vontade, de modo que as partes
relações jurídicas de direito privado. contratantes pudessem completar, nos casos
O Código Civil de 1916 refletia o pensamento concretos, a tarefa do legislador, que se limitava a
dominante das elites européias do século XIX, reprimir ilícitos. Transferem-se aos contratantes,
marcadamente individualista e liberal. O indivíduo, assim, os riscos e o sucesso da livre iniciativa,
considerado sujeito de direito por sua capacidade de destinada à acumulação de capital.
ser titular de relações patrimoniais, deveria ter plena Esse dogma, representando pela completude, na
liberdade para a apropriação, de tal sorte que o direito ideologia do liberalismo, fazia com que, de um lado,
civil se estruturava a partir de duas grandes colunas: tivéssemos o Código Civil como norma exclusiva,
o contrato e a propriedade, instrumentos que levando-se ao extremo o monopólio estatal da
asseguravam o tráfego jurídico de aquisição e de produção legislativa. Por outro lado, exasperava-se
manutenção do patrimônio. a dicotomia entre o direito público e o direito privado:
Expressão normativa da Escola da Exegese – o direito público, responsável pelas garantias do
movimento inspirado pelo racionalismo, cujas origens cidadão perante o Estado; e o direito privado,
romano-medievais foram retomadas e reelaboradas expressão da razão e da natureza das coisas,
nos séculos XVIII e XIX –, o Código Civil pretendia conferiam liberdade absoluta de contratação e de
ser o corpo jurídico único e exclusivo das relações apropriação.
patrimoniais. Tal exclusividade normativa constituía Tais circunstâncias explicam o chamado
elemento de segurança social. significado constitucional do Código Civil para as
O Código Civil exercia esse papel de corpo relações de direito privado, bem como a compreensão
normativo único das relações patrimoniais privadas da norma constitucional como mera norma de
e atendia plenamente à preocupação – que se tornou organização política, que tem como destinatário o
um verdadeiro mito – da completude, como forma legislador ordinário.
de oferecer segurança à sociedade burguesa quanto Este estado de coisas, cujo itinerário não se pode
às chamadas regras do jogo. O juiz tem que julgar aqui percorrer, vai se alterando na Europa desde o início
todos os casos que lhe são submetidos, e, em seu do século XX, e no Brasil a partir dos anos 30, com a
julgamento, deve se basear na lei, que por sua vez intervenção do Estado na economia, que resultaria no
trata de todas as possíveis situações em que o sujeito fenômeno conhecido como dirigismo contratual.

[Syn]Thesis, Rio de Janeiro, vol.5, nº 1, 2012, p. 15-21. 15


O Direito Civil, assim como os outros ramos do pública constitucional permite que possa sê-lo. E a
chamado direito privado, assiste a uma profunda solução interpretativa do caso concreto só se afigura
intervenção por parte do Estado, na tentativa de evitar legítima se compatível com a legalidade
que a exasperação da ideologia individualista – ao constitucional”.1
invés de gerar o que se imaginara no século anterior, O legislador constituinte, de maneira imperativa,
ou seja, a riqueza das nações e das pessoas –, pretende evitar que a iniciativa econômica privada
continuasse a acirrar as desigualdades, com a possa ser desenvolvida em maneira prejudicial à
formação de novos miseráveis, tornando inviável até promoção da dignidade da pessoa humana e à justiça
mesmo o regime de mercado, essencial ao social. Rejeita, igualmente, que os espaços privados,
capitalismo. como a família, a empresa e a propriedade, possam
A partir dessa intervenção do Estado e da representar uma espécie de zona franca para a
configuração do dirigismo contratual, verificam-se violação do projeto constitucional. 2 Daí, ter
mudanças profundas na técnica legislativa. O regulamentado, sem qualquer cerimônia, e malgrado
legislador deixa de simplesmente estabelecer as as violentas e tão mal-humoradas críticas que sofreu,
regras do jogo, passando a determinar metas todas as relações jurídicas de direito privado.
econômicas, as finalidades sociais a serem atingidas Explica-se, nesse contexto, as diversas expres-
mediante políticas públicas pré-definidas. E sões que, surgidas em doutrina, espelhavam a mu-
estabelece incentivos fiscais, subsídios, prioridades dança ocorrida na dogmática do direito civil. Socia-
em termos de financiamentos, intervém nas relações lização, despatrimonialização, repersonalização,
locatícias de bens imóveis, bem como na produção, constitucionalização do Direito Civil, em seus di-
na distribuição e no abastecimento de produtos versos matizes, tendem a significar que as relações
essenciais. patrimoniais deixam de ter justificativa e legitimida-
Verifica-se a introdução, na ordem pública, de de em si mesmas, devendo ser funcionalizadas a in-
valores não patrimoniais, de natureza social, voltados teresses existenciais e sociais, previstos pela própria
para a proteção da pessoa humana, aos quais devem Constituição – que ocupa o ápice da hierarquia
ser funcionalizadas as relações jurídicas privadas, normativa –, integrantes, portanto, da nova ordem
justamente para atender aos objetivos do Estado pública, que tem na dignidade da pessoa humana o
interventor. A funcionalização das situações jurídicas seu valor maior.
patrimoniais a valores não patrimoniais, atinentes à A Constituição da República, ao absorver toda
pessoa humana e à sua personalidade, torna-se uma série de valores não patrimoniais, intervém
postulado imperativo da ordem jurídica, introduzida diretamente no negócio jurídico, na família, nas
pouco a pouco pela legislação especial e consagrada, relações de trabalho, na empresa, nas relações de
no caso brasileiro, pela Constituição da República de consumo, coloca em xeque o dogmatismo próprio da
5 de outubro de 1988. Escola da Exegese, tão cioso de sua neutralidade e
Com efeito, a inclusão dos institutos de direito civil, pureza científica, que limitava deliberadamente os
como contrato, propriedade e família, na agenda horizontes do direito civil às relações patrimoniais.
atinente à ordem pública associa-se à irradiação dos A partir daí, três significativas conquistas se
princípios constitucionais nos espaços de liberdade estabeleceram fortemente na cultura jurídica
individual. A partir da interferência da Constituição brasileira, na esteira do que ocorreu na Europa
no âmbito antes reservado à autonomia privada, uma continental, que, desde o segundo pós-guerra, indica
nova ordem pública há de ser construída, coerente a progressiva funcionalização das relações jurídicas
com os fundamentos e objetivos fundamentais da patrimoniais a valores extrapatrimoniais.
República. Afinal, o código civil “é o que a ordem A primeira conquista consiste na descoberta do

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significado relativo e histórico dos conceitos jurídicos, Em relação aos novos institutos, reclama-se a
antes vistos como neutros e absolutos. Relativizaram- necessidade de novas classificações, aos moldes das
se os conceitos, a partir da compreensão de que o antigas, com leis que as regulamentem, sendo mais
direito é um fenômeno histórico e social, forjado na que natural, segundo se argumenta, diante do
tensão dialética entre a norma e o fato.3 surgimento de figuras jurídicas, que o direito se
A segunda conquista da cultura jurídica mobilize para adaptar seus velhos esquemas aos fatos
contemporânea é a superação da rígida dicotomia atuais, preservando-se, também sob esse ponto de
entre o direito público e o direito privado. O vista, a tradição.
surgimento de uma série de institutos, no âmbito das E, finalmente, quanto ao deslocamento dos
novas tecnologias, do direito bancário, da bioética e institutos de direito privado para a Constituição,
do biodireito, dizendo respeito à reprodução assistida, sustenta-se cuidar-se de mera atecnia, algo como
aos transplantes de órgãos, ao transexualismo e à um exagero do legislador constituinte. Afirmou-se
engenharia genética, bem como os desafios relativos mesmo que o excesso analítico do constituinte se deve
à responsabilidade civil, mostraram a insuficiência ao momento conturbado da vida nacional dos anos
dos compartimentos antes previstos para a sua 80.
classificação, não se podendo afirmar, diante da Procura-se minimizar, assim, as alterações
realidade social emergente, que os novos institutos valorativas profundas por que passou o direito civil.
estivessem exclusivamente no campo do direito Elas estão a significar, ao revés, no que tange às
público ou do direito privado. Mesmo porque a aludidas historicidade e relatividade de conceitos e
funcionalização das relações patrimoniais aos valores institutos, a necessidade absoluta e urgente de
constitucionais, anteriormente aludida, já tratara de compreensão do Direito não mais como um
subverter a vetusta dicotomia. instrumento de mera racionalização de movimentos
A terceira conquista, finalmente, revela-se na históricos que lhe são externos e anteriores, mas como
absorção definitiva, pelo Texto Constitucional, no um fenômeno dialético e essencialmente social.
Brasil como alhures, dos valores que presidem a Compreender o direito como um fenômeno social
iniciativa econômica privada, a família, a propriedade significa vê-lo como fruto da interação do dado
e demais institutos do direito civil, demonstrando que normativo com as demandas sociais e culturais que
tais matérias não se circunscrevem mais, se alteram a cada dia, forjando-o e alterando-o a todo
exclusivamente, no recesso do espaço privado, tempo.
inserindo-se, ao contrário, na ordem pública A eclosão dos novos institutos revelou a
constitucional, antes preocupada exclusivamente com insuficiência dos espaços destinados ao direito público
matérias do chamado direito público (circunscritas e ao direito privado. Daí não se justificar a tendência
às relações entre o cidadão e o Estado). de se considerar fora do direito civil tudo aquilo que
O grave perigo que se vislumbra na realidade extrapola os antigos postulados subjetivistas e
atual, ao fim e ao cabo de todo esse processo histórico, patrimonialistas, revelando a preocupação do sistema
é a ameaça de retrocesso em muitos setores da em restringir a autonomia privada em favor dos
cultura jurídica contemporânea, o que foi argutamente princípios constitucionais.4
antevisto, na Itália, por Stefano Rodotà, manifestado Assim como na música de Caetano Veloso, para
na simplificação ou na banalização de tais conquistas. quem Narciso acha feio tudo o que não é espelho,
Em relação à historicidade e à relatividade dos afirma-se que migraram do direito civil para outros
conceitos, afirma-se tratar-se de mera necessidade ramos todos os institutos em que se restringe o papel
de atualização das velhas leis, defasadas ou corroídas da vontade. A responsabilidade objetiva, por exemplo,
pelo tempo. considera-se como pertinente ao Direito

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Administrativo, assim como a propriedade gravada hoje já se constatou o colapso da atividade legislativa
por restrições administrativas. Caberia, segundo o casuística e regulamentar, verificando-se a
mesmo raciocínio, a um novo ramo, o direito do impossibilidade de se fazer frente aos avanços da
consumidor, cuidar da teoria contratual inaugurada economia e da sociedade, regulamentando todas as
pelo Código de Defesa do Consumidor, tão hostil à novas situações jurídicas.
liberdade de contratação. Ou seja, tenta-se preservar O legislador deve fazer uso, cada vez mais, das
o Direito Civil como campo da liberdade individual e cláusulas gerais e dos conceitos indeterminados. Tais
da propriedade, recusando-se às transformações cláusulas, contudo, não podem se constituir em modelo
valorativas que, embora presentes no ordenamento, de conduta, ou standard neutro, devendo estar
não alterariam a essência dos institutos do direito associadas aos princípios fundantes do ordenamento.
privado, agindo como restrições externas, próprias Evita-se, assim, o perigo da excessiva liberdade
do direito público. concedida ao juiz na interpretação das cláusulas
Rejeita-se, desse modo, a reformulação sofrida gerais e dos conceitos jurídicos indeterminados,
por cada um dos nossos institutos, e que atinge oferecendo-lhes parâmetros valorativos objetivos para
inevitavelmente a própria dogmática do Direito Civil, a solução dos casos concretos.
não sendo possível compreender as relações Lamentavelmente, todo o ensino jurídico ainda é
familiares, contratuais e patrimoniais sem a carga bastante impregnado pela preocupação com a
valorativa introduzida pelo Texto Constitucional. regulamentação dos direitos subjetivos, sendo o direito
Finalmente, com relação à absorção, pelo Texto de propriedade o grande paradigma. Imagina-se,
Constitucional, da prerrogativa de disciplinar, erroneamente, que bom direito só se pode ter com
principiologicamente, a totalidade das relações um direito subjetivo claramente definido em sua
jurídicas interprivadas, funcionalizando-as em favor estrutura, efeitos e ações postas à disposição de seu
da dignidade da pessoa humana, reflete-se aqui a titular.
criação de uma nova ordem pública, no âmbito da Todavia, a técnica regulamentar afigura-se
qual não se pode afastar o controle da atividade compatível com a Escola da Exegese, não com o
privada. direito civil contemporâneo, remodelado pela cláusula
Não por acaso a Constituição da República, em geral de proteção da personalidade humana e de
seus primeiros quatro artigos, nos princípios promoção da sua dignidade (basta pensar nos
fundamentais, consagra a dignidade da pessoa interesses coletivos, cuja regulamentação exaustiva
humana como fundamento da República, situada, apresenta-se impossível).
assim, no ápice do ordenamento, bem como o valor A pessoa humana deve ser tutelada em qualquer
social do trabalho e da livre iniciativa a situação em que se encontre, mesmo diante da
funcionalizarem a atividade econômica privada a inocorrência de um direito subjetivo previsto ou
postulados valorativos existenciais. tipificado pelo legislador. Tal preocupação parece,
O artigo terceiro da Constituição estabelece como pois, indispensável, não só em termos de produção
objetivo da República a solidariedade social e a legislativa, mas também de técnica interpretativa.
igualdade substancial, ou seja, vincula entes públicos Nos dias de hoje, verificam-se, relativamente ao
e privados na erradicação da pobreza e na redução termo constitucionalização, tendências contraditó-
das desigualdades sociais e regionais. rias. De um lado, observa-se o deslocamento do cen-
Se tais considerações são verdadeiras, deve-se tro das relações privadas para a própria Constitui-
ter cautela com as reformas legislativas, notadamente ção, que absorve os valores reconhecidos como
com as técnicas legislativas e interpretativas a serem prioritários na cultura social brasileira, os valores não-
utilizadas. Quanto às técnicas adotadas pelo legislador, patrimoniais. A propósito, os civilistas sustentam,

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desde a década de oitenta, no direito brasileiro, a intensificado – e jamais arrefecido – com a
imprescindibilidade da aplicação direta das normas promulgação de leis infraconstitucionais.
constitucionais nas relações jurídicas de direito pri- O desafio do jurista na atualidade consiste,
vado.5 De outra parte, contra tal corrente, configu- justamente, na harmonização das fontes normativas,
rou-se uma forte resistência dos civilistas mais tradi- a partir dos valores e princípios constitucionais. Sendo
cionais, ao argumento de que o processo designado o ordenamento jurídico composto por uma pluralidade
como constitucionalização do direito civil represen- de fontes normativas, apresenta-se necessariamente
taria, em realidade, uma redução do papel da como sistema heterogêneo e aberto; e, daí a sua
dogmática própria do direito privado no âmbito da complexidade que, só alcançará a unidade,6 caso seja
Teoria Geral. Ou seja, tende-se a minimizar o pro- assegurada a centralidade da Constituição, que
cesso de constitucionalização do direito civil, como contém a tábua de valores que caracterizam a
se se tratasse apenas de uma mudança topográfica identidade cultural da sociedade.7
das previsões legislativas. O Código Civil de 2002 deve contribuir para tal
Mostra-se, assim, inquietante que setores esforço hermenêutico, não devendo o intérprete
nostálgicos do voluntarismo queiram aproveitar a deixar-se levar por eventual sedução de nele imaginar
chegada do novo Código para considerar um microclima de conceitos e liberdades patrimoniais
desnecessário, a partir de agora, todo o esforço descomprometidas com a legalidade constitucional.
hermenêutico de compatibilização das fontes Dessa forma, o Código Civil deve ser interpretado à
normativas em torno da Constituição da República. luz da Constituição, seja em obediência às escolhas
Segundo tal raciocínio, a nova codificação restauraria político-jurídicas do constituinte, seja em favor da
ao civilista o seu estatuto orgânico das relações proteção da dignidade da pessoa humana, princípio
patrimoniais, servindo o Código como mediador entre fundante do ordenamento.
as normas de direito público e a autonomia privada. Tal postura interpretativa requer a superação da
A tese, contudo, mostra-se inteiramente metodologia positivista tradicional, que vinculava o
descabida. Em primeiro lugar, porque a aplicação magistrado à letra fria do Código (o juiz como a boca
direta das normas constitucionais não se reduz a uma do legislador, na conhecida síntese de um autor
simples questão de localização topográfica das francês). Exige-se, na esteira de tal transformação
normas aplicáveis às relações privadas. Cuida-se, de hermenêutica, o que se tem chamado de um diálogo
maneira muito mais ampla, da inserção permanente de fontes normativas, próprio do que seria o pós-
e contínua da tábua de valores constitucional nas positivismo, a anunciar a pós-modernidade.8 O
categorias de direito privado, processo que se Professor ERIK JAYME, de Heidelberg, refletindo sobre
intensifica com o advento de novos diplomas a existência de uma cultura jurídica da pós-
legislativos, codificados ou extracodificados. modernidade, identificou quatro características
Por outro lado, as novas tecnologias, como se veio centrais do momento presente, a saber: o pluralismo,
de demonstrar, rompem com os compartimentos do a comunicação, a narrativa e o revival dos direitos
direito público e do direito privado, invocando, a um humanos, ou seja, uma espécie de retorno aos
só tempo, regulação de natureza privada e de ordem sentimentos.
pública. Além disso, a dignidade da pessoa humana A comunicação e o pluralismo falam por si. É
há de ser tutelada e promovida, em última análise, inegável a rapidez e a eficiência das comunicações,
nos espaços públicos e privados, daí resultando a interferindo diretamente nos modelos e disciplinas
imprescindibilidade de um controle da atividade contratuais. Igualmente o pluralismo de fontes
econômica segundo os valores constitucionais, legislativas, intensificado pela produção sempre
processo hermenêutico que, em definitivo, há de ser crescente de normas supranacionais.

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Invocando o Prof. Erik Jayme, Cláudia Lima instantânea, com seus conflitos e contradições
Marques sublinha que, diante do “atual ‘pluralismo expostos via internet, estão aí a caracterizar, de fato,
pós-moderno’ de um Direito com fontes legislativas um direito pós-moderno, contraposto à racionalidade
plúrimas, ressurge a necessidade de coordenação dos tempos modernos, e sua unificação legislativa
entre as leis no mesmo ordenamento, como exigência estatal.
para um sistema jurídico eficiente e justo”.9 Na esteira O legislador e o intérprete de hoje devem fazer
de tal construção, sugere-se, no lugar do conflito de as contas com essa realidade plural e saber que a
leis, a visualização da possibilidade de coordenação narrativa e o retorno aos sentimentos, tão presentes
sistemática destas fontes: o diálogo das fontes.10 em nossa Constituição republicana, não significam
Nesta direção, a Constituição da República assume expediente demagógico, como muitos ainda hoje
papel prioritário na integração entre as fontes sustentam, mas a convergência de uma preocupação
normativas, de sorte a conferir unidade sistemática intensa com a solidariedade social.
e axiológica ao sistema jurídico. Ou seja: No conflito entre interesses patrimoniais e não
“reconhecendo embora a existência dos mencionados patrimoniais, entre a propriedade e a posse, nos
universos legislativos setoriais, é de se buscar a conflitos que emergem no direito de família, nas
unidade do sistema, deslocando para a tábua relações de consumo, em todos esses setores,
axiológica da Constituição da República o ponto de paulatinamente, a jurisprudência começa a definir as
referência antes localizado no Código Civil”.11 prioridades do ordenamento.
Com relação ao retorno aos sentimentos, parece Portanto, constitucionalização do Direito Civil, em
que realmente há essa preocupação no direito uma palavra, não é apenas um adjetivo a colorir a
contemporâneo com os direitos humanos e, no caso dogmática criada pela Escola da Exegese, que
do nosso direito civil, com a valorização da pessoa pudesse ser a cada momento purificada ou
humana, em suas relações concretas, quase que atualizada, mas uma definição metodológica, que
como uma forma de reação à impessoalidade e à retrata, ao mesmo tempo, uma alteração profunda
massificação ditadas pelas leis de mercado, na onda da ordem pública, a partir da substituição dos valores
da globalização. que permeiam o Direito Civil, no âmbito do qual a
Parece ser mesmo uma reação contra todas essas pessoa humana passa a ter prioridade absoluta.12
regras da economia mundial, que pretendem
maximizar os lucros e reduzir os custos (incluindo aí
os custos sociais!), sendo o revival dos direitos NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
humanos, quase como uma derradeira tentativa de *Professor Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da
se defender a cultura local, o solidarismo e o UERJ, Doutor em Direito Civil pela Universidade de Camerino
humanismo, ainda fortemente presentes nas Cartas (Itália); Professor Visitante das Universidades de Molise (Itália);
Constitucionais européias e na Constituição brasileira, São Francisco (Califórnia – EUA); Poitiers (França); e do
em particular. Instituto Max Planck de Direito Privado Comparado e
Com relação à narrativa, a que alude o Professor Internacional (Hamburgo – Alemanha).
Erik Jayme, as normas de hoje são realmente muito 1
Gustavo Tepedino, O novo e o velho direito civil, Editorial da
analíticas, marcadas por uma retórica às vezes Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 20, ano 5, in Temas de
Direito Civil, t. 2, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 401.
exagerada, embora essa característica talvez seja 2
Gustavo Tepedino, Do Sujeito de Direito à Pessoa Humana,
indispensável para assegurar uma maior efetividade
Editorial da Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 2, ano 1,
social do sistema normativo. in Temas de Direito Civil, t. 2, Rio de Janeiro: Renovar, 2006,
A narrativa, a preocupação com valores não p. 341.
patrimoniais, o pluralismo de fontes e a comunicação 3
V. neste sentido Pietro Perlingieri, Perfis de Direito Civil:

20
introdução ao direito civil constitucional, Rio de Janeiro: segunda solução ao lado da tradicional: a coordenação destas
Renovar, 2ª ed., 2002, p. 2. fontes. Uma coordenação flexível e útil (effet utile) das normas
4
Leciona Pietro Perlingieri que “a autonomia privada não é um em conflito no sistema a fim de restabelecer a sua coerência,
valor em si e, sobretudo, não representa um princípio subtraído isto é, uma mudança de paradigma: da retirada simples
ao controle de sua correspondência e funcionalização ao sistema (revogação) de uma das normas em conflito do sistema jurídico
das normas constitucionais” (Perfis de Direito Civil: introdução (ou do ‘monólogo’ de uma só norma possível à ‘comunicar’ a
ao direito civil constitucional, Rio de Janeiro: Renovar, 2ª ed., solução justa), à convivência destas normas, ao diálogo das
2002, p. 277). normas para alcançar a sua ratio, a finalidade ‘narrada’ ou
‘comunicada’ em ambas” (Cláudia Lima Marques, “Diálogo
5
Seja consentido remeter a Gustavo Tepedino, Premissas
entre o Código de Defesa do Consumidor e o Novo Código
Metodológicas para a Constitucionalização do Direito Civil,
Civil, cit, pp. 71-74).
Rio de Janeiro: Renovar, 2004, 3ª ed., p. 1 e ss.
10
Cláudia Lima Marques, “Superação das Antinomias pelo
6
A propósito, destaca Pietro Perlingieri: “a unidade do
Diálogo das Fontes: o modelo brasileiro de coexistência entre o
ordenamento não exclui a pluralidade e a heterogeneidade das
Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002”, in
fontes” (Perfis de Direito Civil: introdução ao direito civil
Revista de Direito do Consumidor, n. 51, 2004, p. 59.
constitucional, cit., pp. 7-8).
11- Gustavo Tepedino, Premissas Metodológicas para a
7
Como observa Maria Celina Bodin de Moraes, são os valores
constitucionalização do Direito Civil, in Temas de Direito Civil,
expressos pelo legislador constituinte que devem informar o
vol. I, p. 13, 2008, 4ª ed.
sistema como um todo. “Tais valores, extraídos da cultura, isto
12
Como já se afirmou em outra sede: “Uma última advertência se
é, da consciência social, do ideal ético, da noção de justiça
faz indispensável. A adjetivação atribuída ao direito civil, que
presentes na sociedade, são, portanto, os valores através dos
se diz constitucionalizado, socializado, despatrimonializado,
quais aquela comunidade se organizou e se organiza. É neste
se por um lado quer demonstrar, apenas e tão-somente, a
sentido que se deve entender o real e mais profundo significado,
necessidade de sua inserção no tecido normativo constitucional
marcadamente axiológico, da chamada constitucionalização ao
e na ordem pública sistematicamente considerada, preservando,
direito civil” (O Conceito de Dignidade Humana: substrato
evidentemente, a sua autonomia dogmática e conceitual, por
axiológico e conteúdo normativo, in Constituição, Direitos outro lado poderia parecer desnecessária e até errônea. Se é o
Fundamentais e Direito Privado, Ingo Sarlet (org.), Porto próprio direito civil que se altera, para que adjetivá-lo? Por que
Alegre: Livraria dos Advogados, 2003, p. 107). Nas palavras não apenas ter a coragem de alterar a dogmática, pura e
de Perlingieri: “Se allora i modelli di validità degli atti devono simplesmente? Afinal, um direito civil adjetivado poderia
confrontarsi col modello costituzionale di legitimità, questo suscitar a impressão de que ele próprio continua como antes,
primato non può non tradursi anche in centralità. La servindo os adjetivos para colorir, com elementos externos,
complessità, per divenire sistema, deve avere una centralità categorias que, ao contrário do que se pretende, permaneceriam
sulla quale fondarsi. (...) In un ordinamento complesso come imutáveis. A rigor, a objeção é pertinente, e a tentativa de
quello vigente, caratterizzato dalla indiscussa supremazia delle adjetivar o direito civil tem como meta apenas realçar o trabalho
norme costituzionali, queste non possono non avere una árduo que incumbe ao intérprete. Há de se advertir, no entanto,
posizione centrale. Da tale centralità è doveroso partire per desde logo, que os adjetivos não poderão significar a
l’individuazione dei princípi e dei valori sui quali costruire il superposição de elementos exógenos do direito público sobre
sistema. La centralità non è cosa diversa dalla supremazia” conceitos estratificados, mas uma interpenetração do direito
(Complessità e unitarietà dell’ordinamento giuridico vigente, público e privado, de tal maneira a se reelaborar a dogmática do
cit., pp. 202 e 209). direito civil. Trata-se, em uma palavra, de estabelecer novos
parâmetros para a definição de ordem pública, relendo o direito
8
O Diálogo de fontes normativas tem sido proposto, no Brasil,
civil à luz da Constituição, de maneira a privilegiar, insista-se
por Claudia Lima Marques (.”Diálogo entre o Código de Defesa
ainda uma vez, os valores não-patrimoniais e, em particular, a
do Consumidor e o Novo Código Civil: do ‘Diálogo das Fontes’
dignidade da pessoa humana, o desenvolvimento da sua
no Combate às Cláusulas Abusivas”, in Revisa de Direito do
personalidade, os direitos sociais e a justiça distributiva, para
Consumidor, n. 45, 2003, pp. 71-74). Sobre o tema, veja-se,
cujo atendimento deve se voltar a iniciativa econômica privada
ainda, na doutrina do direito constitucional, Luís Roberto
e as situações jurídicas patrimoniais” (Gustavo Tepedino,
Barroso, “Fundamentos teóricos e filosóficos do novo Direito
Premissas Metodológicas para a Constitucionalização do
Constitucional Brasileiro: pós-modernidade, teoria crítica e pós-
Direito Civil, Rio de Janeiro: Renovar, 2004, 3ª ed., p. 22).
positivismo”, in L.R. Barroso (coord.), A Nova Interpretação
Constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações
privadas, Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 1-48.
9
Por isso mesmo, “propõe Erik Jayme a convivência de uma

21

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