Autorretrato de Pablo Neruda – Tradução para o português
Por mim, eu tenho, ou creio ter, um nariz forte,
olhos pequninos, frangalhos de cabelos, crescente abdômen, longas pernas, pés chatos e tez amarelada. Sou generoso nos amores, impossível nos cálculos, confuso com as palavras, terno com as mãos, lento ao andar, inoxidável no coração, encantado pelas estrelas, marés, maremotos, admirador de escaravelhos, andarilho de areiais, descrente em instituições, chileno pela eternidade, amigo dos meus amigos, mudo de inimigos, curioso entre os pássaros, grosseiro em casa, tímido em salões, arrependido sem causas, horrível administrador, navegante de palavras, bóia-fria da pena, discreto entre os animais, rico de vapores, investigador de mercados, obscuro nas bibliotecas, melancólico nas cordilheiras, incansável nos bosques, lento nas contestações – me ocorrem depois de anos – vulgar durante todo o ano, resplandescente com meu caderno, de monumental apetite, tigre para dormir, sossegado na alegria, vigilante do céu noturno, trabalhador invisível, desordeiro, persistente, valente por necessidade, covarde sem pecado, sonolento por vocação, amante de mulheres, ativo por infortúnio, poeta por maldição e louco de papel passado.
Enfrentamos como primeira – e, certamente, maior − dificuldade nesse pequeno exercício
de tradução a manutenção do tom poético empregado. O fino humor, fio condutor do autorretrato original, foi truncadamente transcrito para o português. Por exemplo, a expressão inicial “soy o creo ser duro de nariz” trazia várias e simples possibilidades de versão, “sou, ou creio ser, narigudo” e “sou, ou creio ser, avantajado de nariz”, entretanto, em nenhuma mantinhamos o inusitado da expressão criada pelo poeta chileno. Assim, optamos por uma reforma sintática que ajudaria na manutenção do estranhamento: alteramos o verbo inicial “ser” por “ter”, possibilitando a construção “tenho, ou creio ter, um nariz forte”. Voltamos a inserir o verbo “ser” somente ao final da enumeração de atributos físicos, quebrando o fluxo contínuo da enumeração original, porque torno-se necessária a alteração da pontuação. Outra dificuldade foi a escolha entre a manutenção das metáforas originais somente vertidas para nossa língua ou o deslocamento para outras mais correntes. Em alguns casos, como em “mudo de enemigos” e “tigre para dormir”, decidimo-nos pela primeira opção, em outros arriscamo-nos a recriar, como em “yerbatero de la tinta” e “afortunado de nubarrones”.