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INDÍGENAS BRASILEIROS:

EM BUSCA DE UMA MEMÓRIA COMPARTILHADA*


JULIANA CARVALHO RODRIGUES **

Resumo: Este artigo apresenta uma reflexão sobre a possibilidade de construção de uma
memória compartilhada acerca dos indígenas brasileiros a partir de uma visão que abarque a
diversidade de culturas e identidades desenvolvidas por estes. Pensamos em como as políticas
interculturais podem criar espaços de memória que auxiliam na superação da crise identitária
indígena, já que tentam mostrar quem são os indígenas brasileiros em suas interrelações, ao
invés de absolutizar as diferenças ou simplesmente assimilá-las. Buscamos corroborar a
hipótese de que através de relações interculturais é possível a construção de uma memória
compartilhada que considere mais a identidade étnica do que os interesses e os poderes
socialmente determinantes.
Palavras-chave: memória, indígenas, educação intercultural.

Abstract: This paper presents a reflection on the possibility of building a shared memory about
Brazilian Indians from a vision that embraces the diversity of cultures and identities developed
by them. Intercultural policies can create memory spaces that help in overcoming the
indigenous identity crisis, by trying to show who are the indigenous Brazilians in their
interrelations, rather than think of absolute differences or simply assimilating them. In this work
we try to corroborate the hypothesis that through intercultural relations it´s possible the
construction of a shared memory that considers more the ethnic identity than the interests and
the social determinant powers.
Key-words: memory, indigenous, intercultural education.

Segundo Mércio Pereira Gomes, podemos pensar em diferentes possibilidades de ser


indígena no Brasil hoje (GOMES, 2012, p.13). Assim, partindo do pressuposto de que a
memória acerca dos indígenas brasileiros é fragmentada, buscou-se fazer uma reflexão sobre a
possibilidade de construção de uma memória compartilhada, que abarque a diversidade de

*
O presente artigo é resultado da pesquisa apresentada em 2016 para conclusão do curso de Bacharel em História
pela Universidade Federal de Ouro Preto, sob orientação da Prof. Drª. Virgínia Buarque
**
Graduada em História pela Universidade Federal de Ouro Preto
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culturas e identidades desenvolvidas por estes. O tema da pesquisa veio da percepção da


dificuldade de afirmação dos indígenas em suas lutas por direitos, havendo uma necessidade de
legitimar as políticas de inclusão destes, a partir de diálogos verticais e não impositivos.
Portanto, tentamos corroborar a hipótese de que através de relações interculturais é possível a
construção de uma memória compartilhada que considere mais a identidade étnica do que os
interesses e os poderes socialmente determinantes. As políticas interculturais podem criar
espaços de memória que auxiliam na superação da crise identitária indígena, tentando mostrar
quem são os indígenas brasileiros em suas interrelações, ao invés de absolutizar as diferenças
ou simplesmente assimilá-las.
Os principais objetivos do trabalho foram: refletir sobre as motivações histórico-
culturais para a crise identitária indígena, em suas articulações com o risco de perda das
memórias, face às mudanças do tempo presente; apontar a importância das relações
interculturais nas configurações identitárias indígenas; analisar as possibilidades de uma
memória compartilhada e o papel da educação nessas construções.
A pesquisa foi dividida em três partes. Começamos tentando definir alguns conceitos
que se mostraram essenciais para a compreensão do tema. Assim, buscamos compreender o que
é cultura; qual o papel das relações interculturais e das hibridizações nas construções culturais;
como se dá a construção das identidades étnicas; e como essas questões se articulam na
construção das memórias. Na segunda parte tentamos indicar que a memória que foi construída
sobre os indígenas brasileiros é fragmentada. De um lado, possuímos a visão do indígena sobre
sua própria cultura, de outro, a memória “oficial” que vem sendo construída desde o século
XVI. Tentamos pensar a quais propósitos estas memórias servem e de que forma foram
constituídas. Na última parte, pensamos na possibilidade de construção de uma memória
compartilhada através de políticas interculturais voltadas para a educação. Assim, apresentamos
dois projetos e suas contribuições para o tema. Por fim, discorremos sobre a concepção do
“novo bom selvagem” que vem sem construída e a forma como ela vem sendo apropriada pelos
indígenas, refletindo sobre seus desdobramentos para o compartilhamento da memória.
Devido à grande variedade de interpretações do conceito de cultura, foi importante
começar a pesquisa tentando delimitar o significado desse termo, já que se pretende mostrar
que as reivindicações de memória e identidade feitas por muitos indígenas brasileiros apoiam-
se numa ideia de preservação cultural. Assim, trabalhamos com um conceito de cultura de viés
semiótico. Seguindo Geertz, “acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal
amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias
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e a sua análise” (GEERTZ, 2008, p. 15). A cultura seria então uma hierarquia de estruturas
significantes, simbólicas e de ordem pública, que possibilitaria a compreensão de algo (um
processo, uma ação, um evento, etc.).
Ela seria um discurso social, construído e reconstruído a partir das necessidades de
cada tempo e de cada sociedade. Podemos pensar, como diz Sahlins, que a cultura é
reproduzida, historicamente na ação, já que os esquemas são repensados, criativamente, na
prática. Cada evento (fato, acontecimento) seria uma atualização singular de um fenômeno geral
(tem maior alcance, uma tradição, um movimento), uma realização incerta, casual, acidental do
padrão cultural (SAHLINS, 1990, p. 7). Essas atualizações de cultura se relacionam muitas
vezes ao contato com diferentes sociedades. Portanto, se fez importante analisar como as
relações sociais contribuem para a elaboração e a configuração das culturas e consequentemente
para a construção da memória, já que a esta se constrói através das representações culturais.
Sahlins chama de “reavaliação funcional de categoria” às atualizações culturais
mencionadas acima. Grupos diversos, partindo de suas concepções próprias, avaliam e
interpretam diferentes eventos de formas variadas. Ao se relacionarem com outras sociedades,
eles se apropriam, de forma diversificada, dos esquemas culturais disponíveis, reelaborando
constantemente os próprios esquemas (Ibidem, 1990, p. 10). Podemos pensar que, ao se estudar
qualquer sociedade é necessário considerar as relações culturais. Pensamos essas relações e
seus caráteres potencializadores ou destrutivos, a partir do conceito de multiculturalismo1.
Há diversos enfoques possíveis a respeito do multiculturalismo, mas em linhas gerais,
é o reconhecimento do outro na dinâmica das relações entre os diferentes povos, influenciando
diretamente na construção e reconstrução de suas representações culturais. O multiculturalismo
é apropriado pelas teorias políticas que tentam mediar as diferentes relações, que serão então
construídas e representadas através da educação.
Seguindo as ideias de Vera Candau podemos pensar em três perspectivas. A primeira
é o multiculturalismo assimilacionista, onde percebe-se que há diferenças culturais, não
havendo igualdade de oportunidades. Para resolver essa desigualdade há uma tentativa de

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O termo multiculturalismo é entendido aqui como o reconhecimento oficial da diversidade cultural. Ele foi
inicialmente utilizado em 1960 no Canadá, em resposta aos movimentos separatistas, buscando uma conciliação
política. Seu uso se populariza em 1971 após o discurso de Pierre Elliot Trudeau, “Multiculturalismo dentro de
uma base bilíngue”. Em 1982 é incorporado à Constituição canadense como uma promessa de ampliação dos
direitos de cidadão. No final do século XX, com o neoliberalismo, as lutas sociais começam a se utilizar dessa
terminologia em sua busca por igualdade (FAUSTINO, 2006, p.76-77).
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assimilação dos grupos marginalizados à cultura hegemônica, havendo uma hierarquização de


culturas onde se tenta a supressão das consideradas inferiores (CANDAU, 2008, p. 50).
A segunda perspectiva é o multiculturalismo diferencialista ou monoculturalismo
plural. Essa concepção se coloca em contraposição a ideia de assimilição, entendendo que essa
nega as diferenças. A ênfase agora é colocada no reconhecimento da alteridade, buscando-se
então espaços para a promoção das diferenças. No entanto, essa visão acaba por suportar uma
ideia de estaticidade das culturas já que acredita na manutenção das matrizes culturais de base.
Aqui também se pensa em uma homogeneização cultural, no entanto, limitada aos diferentes
grupos. Esses dois modelos se relacionam de forma complexa e são os mais comuns na
educação vigente (Ibidem, p. 50-51).
Por fim, temos o multiculturalismo interativo ou interculturalismo2, visão que tem se
apresentado como uma boa alternativa para a construção de relações multiculturais, mesmo que
ainda seja vista de forma utópica. Ela apresenta um caráter colaborativo, promovendo as inter-
relações e o diálogo. Valoriza as diferenças, mas percebe que as culturas estão em um processo
contínuo de reestruturação. As raízes culturais são vistas como históricas e dinâmicas, não
havendo um padrão cultural fixo. Nessa perspectiva, há o reconhecimento das diferentes
relações de poder que perpassam as relações multiculturais, e que criam relações hierarquizadas
e marcadas por preconceitos e discriminações. No âmbito educacional, busca-se a percepção da
alteridade através do diálogo de grupos diversos. Para que essa visão seja possível de ser
desenvolvida, é necessária uma negação da universalização das culturas, assim como a
percepção de que nenhuma cultura é completa, por isso há uma necessidade de interação entre
elas (Ibidem, p. 51-53).
É importante é ressaltar que, desde o final do século XX, cada vez mais projetos e
teorias vem surgindo envolvendo temas como cultura, multiculturalismo, interculturalismo,
diversidade cultural. Eles surgem de uma necessidade contemporânea de lidar com as diversas
identidades, que se relacionam de forma cada vez mais próxima, tentando aumentar a inclusão
social. No Brasil, no que concerne à educação, onde as políticas multiculturais se apoiam em

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O termo interculturalismo começa a ser usado nos anos de 1970 na Europa, dentro de uma política
governamental de trato com imigrantes. O termo faz sempre referência a relação com o outro. Apesar de muitas
vezes ser usado com a mesma significação que o termo multiculturalismo, esse é visto aqui como sendo o
reconhecimento da diferença, enquanto interculturalismo significaria o diálogo entre os diferentes.
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busca de formas de lidar com essas relações, isso se dá no início dos anos 1990, quando o MEC
começa a pensar na diversidade cultural e na educação das minorias.
Assim, nas últimas décadas, em decorrência dos debates sobre multiculturalismo e
cultura, há uma tentativa cada vez maior de reconhecimento das diferentes identidades. Na
busca por justiça social, coloca-se a aceitação das diversas identidades culturais em prol de uma
sociedade diversificada. Assim, ao falar de indígenas brasileiros, é necessário pensar qual(is)
seria(m) essa(s) identidade(s).
A identidade pode ser entendida como um modelo mental através do qual se organiza
e compreende o mundo. Ela tem a cultura como fundamento, mas não é definida por essa. Já a
identidade cultural ou etnicidade seria uma forma de organização política e econômica,
construída a partir de um imaginário social que é constantemente reelaborado. Ela está
associada às lutas políticas, sendo uma forma de resistência. A identidade é uma forma de
relação social e, como tal, baseia-se em relações de poder. Ela produz e reproduz a alteridade,
sendo uma construção em constante processo de ressignificação e reconstrução. A identidade
étnica é percebida através da autoidentificação e da identificação pela sociedade e é construída
a partir de elementos culturais extraídos da tradição, mas que podem adquirir novos
significados. Um grupo étnico é um grupo que se mantém em estreita união e que traz a noção
de “espírito de corpo”, traduzido nas festas, cerimônias, etc, mantendo então sua a identidade
através de manifestações culturais (CUNHA, 1986. p. 95).
A cosmologia indígena é o que serve de base para as tradições e para as configurações
identitárias, podendo ou não servir também para a construção da memória. A concepção
cosmológica das sociedades indígenas, conforme apresentado por Castro, seria a de
“relatividade perspectiva”, somada a de “multinaturalismo” (CASTRO, 2002, p. 347-349). A
forma de objetivação da natureza mais comum a essas sociedades é o animismo. O mundo
humano é transposto para o não-humano não havendo oposição entre cultura e natureza, apesar
de haver uma diferenciação (Ibidem, p. 361-362).
A questão do corpo selvagem também parece de fundamental importância, dada sua
relação com demonstrações identitárias. Essa relação é expressa, principalmente, nas dietas
alimentares e na produção e estilização do corpo. É através dos corpos que a diferença é
percebida, onde as diferentes perspectivas são construídas. Esse corpo é mutável, pois
acompanha mudanças espirituais, ele se metamorfoseia (Ibidem, p. 393).
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Outro aspecto importante é o mito que é percebido como uma história de um tempo
onde não se fazia a diferenciação entre humanos e animais, não havendo assim diferentes
perspectivas (Ibidem, p.355).
Apesar de o critério vigente para a determinação de um grupo étnico ser o da
autoidentificação e identificação pela sociedade, as outras formulações deixaram suas marcas
na forma como são percebidos os indígenas brasileiros. Essas percepções são ainda apoiadas
pelas construções narrativas construídas acerca dos índios. As várias tentativas de assimilação,
exploração e dominação são uma constante ameaça para a consolidação das identidades
indígenas, que se encontram, em muitos casos, em crise. Os preconceitos e as discriminações
sofridas pelos indígenas provêm de uma visão estatizada de suas culturas, e os coloca como
pertencentes a um único grupo étnico, não entendendo a diversidade cultural dentro deste grupo
maior que seria o “indígena”. A forma diferente com que concebem o mundo, ou o mundo
diferente que é concebido por eles também dificulta a consolidação dessas identidades, que,
muitas vezes privadas de condições necessárias para sua demonstração, acabam tendo que criar
novas formas de sociabilidade, nem sempre compatíveis com traços tradicionais de suas
culturas.
A fluidez e dinamismo das culturas, aliadas as questões identitárias, ecoam de forma
direta na construção das memórias dos indígenas. Memória aqui é entendida, seguindo a visão
de Ricoeur, como uma ferramenta de guardar dados mnemônicos que podem ser acessados
pelas lembranças, sendo então resignificados, criando representações de coisas que já passaram.
A memória se relaciona ao ato de refletir, de repensar a realidade (RICOEUR , 2008, p. 142).
Ela apresenta uma forte relação com a construção da identidade, que é pensada e repensada a
partir dessas memórias e das tradições, tanto de forma individual como coletiva. E essa memória
coletiva viria de uma interação entre a identidade pessoal e a identidade comunitária (Ibidem,
p. 92).
A memória tem uma pretensão de realidade e muitas vezes é tomada como a própria
noção de verdade, mas a questão da confiabilidade da memória deve ser levantada, já que a
capacidade de rememorar apresenta dificuldades intrínsecas, sendo a deficiência mais
reconhecida, o esquecimento. Assim, algumas memórias artificiais podem ser criadas. Ricoeur
então trabalha com o que chama de usos e abusos da memória através de três abordagens, sendo
elas: a memória impedida; a memória manipulada; e a memória obrigada. No primeiro caso ele
usa categorias clínicas da psicanálise para mostrar que algumas relações podem deixar
cicatrizes simbólicas que impossibilitam a construção de uma memória, que se torna então
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impedida. No segundo caso, a construção de memória seria mediada por interesses ideológicos,
criando uma memória instrumentalizada através dos esquecimentos e da manipulação. Por fim,
a memória obrigada se basearia no “dever de memória”, no valor ético desta (Ibidem, p. 82-
105).
Nessa ótica, tentamos mostrar que a manipulação das memórias é o principal fator para
se pensar a fragmentação da memória dos índios brasileiros, já que a partir da negação (ou
esquecimento) dos traumas sofridos por esses, e das necessidades dos setores detentores de
poder, uma memória oficial foi se criando, não levando em consideração as identidades
construídas por eles ou as relações que teceram com o mundo que os cerca.
Desde o século XVI, foram construídos alguns relatos de memória sobre os indígenas,
que se mantiveram ao longo dos séculos. Eles não se relacionam com a construção de identidade
dos mesmos e sim com as relações de poder entre as diferentes culturas. Essas narrativas
persistiram na forma como os índios são retratados nos livros didáticos, transformando-se assim
em uma memória “oficial”. Essas narrativas que são construídas e reconstruídas por diversos
viajantes e colonos, passando pelas ideias de tábula rasa, de cães canibais, de sodomitas, de
inocentes, de bárbaros, seguiam fórmulas de retórica próprias, guiadas pelos princípios morais
da época e pelas necessidades de escravização ou catequese, não se voltando para uma
construção de memória em que os índios fossem ouvidos.
No século XIX, com o Romantismo, a historiografia do IHGB e as propostas de ensino
do Colégio Pedro II, algumas visões sobre o indígena começaram a se consolidar. Elas partiram
das concepções anteriores e adaptaram-se aos interesses do período, no caso a consolidação da
identidade brasileira. O índio continua sendo visto de forma genérica. Na literatura, vê-se a
criação do estereotipo do indígena heroico, mas portando virtudes tipicamente europeias.
Representava-se o índio como parte do passado, sinalizando para seu desaparecimento. No
entanto, com relação aos índios contemporâneos, continua-se a percepção de que seriam povos
bárbaros, que seriam um empecilho ao progresso e a evolução. Essas visões do índio, que deve
ser combatido ou assimilado, seguiram até o final do século XX (PALHARES, 2014, p. 373).
Apenas nas décadas de 1970 e 1980 inicia-se uma revisão historiográfica sobre a
questão indígena, impulsionada pelo alargamento do conceito de fonte e também pela
aproximação da História a outras áreas das Ciências Sociais. A história seria usada agora para
ser a voz dos que foram silenciados. No entanto, essa percepção, apesar de denunciar os abusos
sofridos, continuava colocando o índio no passado, não reconhecendo a continuidade de sua
história. Também nesse período começa-se a pensar em múltiplas identidades étnicas que se
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identificam e unificam apenas na luta pela positivação e reconhecimento de sua multiplicidade.


No entanto, apesar dos avanços na historiografia, é possível perceber que algumas “ideias
equivocadas” em relação aos indígenas foram perpetuadas ao longo do tempo.
Essas ideias são muitas vezes perpetuadas através dos livros didáticos, o que é
perceptível quando analisamos os temas aos quais os índios estão relacionados nessas
publicações. Gobbi faz uma análise das coleções de livros didáticos recomendados pelo
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) para o Ensino Fundamental nos anos de 1999,
2002 e 2005 (GOBBI, 2007). Apesar dos livros analisados se aterem a um pequeno recorte
temporal, muitos aspectos apontados podem ser remetidos a períodos anteriores.
Segundo sua pesquisa a associação entre “povos indígenas” e “primitivos” é comum.
Os indígenas são abordados a partir de sua relação com os portugueses, indicando-se
implicitamente uma relação de superioridade de uma cultura sobre a outra, possibilitada por
uma concepção evolucionista de História. Os povos indígenas apareceram também associados
à “Pré-História”, o que, a partir de uma visão etnocêntrica, cria uma ideia de congelamento de
algumas culturas em determinados períodos, ou seja, os índios passariam a existir a partir do
contato com o europeu. Há também inúmeras referências ao passado que se fazem muitas vezes
sem contextualização, criando uma percepção de que os índios são parte do passado e estariam
em extinção (Ibidem, p.58).
Uma segunda construção memorialística foi estudada partindo dos estudos de Eduardo
Viveiro de Castro (CASTRO, 2002) e da análise do filme “Awê iõ txonang – Festa das Águas
– Um filme de Isaque Pataxó”3, para refletir sobre a construção da memória e da identidade
indígena brasileira através de sua cosmologia. Essas memórias estão mais atreladas à identidade
étnica e refletem a forma como esses índios vivem e interagem com o mundo. A escolha da
fonte se deu devido a importância dos rituais na construção das memórias e das identidades
indígenas.
O mito é a base da estruturação dessas comemorações e consequentemente da
memória. Ele pode ser entendido como uma forma de orientação no mundo que justifica os
comportamentos e a forma como são as coisas. É um referencial temporal e conceitual
(CASTRO, 2007, p. 69). O ritual, por sua vez, é percebido como uma representação do mito;

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Awê iõ txonang – Festa das Águas – Um filme de Isaque Pataxó. Direção: Isaque Pataxó. 2006-2011.
Filme produzido com o apoio da Faculdade de Educação/UFMG , da Biblioteca Universitária/UFMG, da Fundação
Nacional do Índio, e da Secretaria de estado da Educação de Minas Gerais.
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enquanto o ritual é uma representação, o mito é entendido como uma realidade de um tempo
passado.
O filme “Awê iõ txonang – Festa das Águas – Um filme de Isaque Pataxó”, filme
produzido como parte curso de Formação Intercultural de Educadores Indígenas (FIEI) da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), fala sobre o ritual das águas chamado de “O
tempo da Chuva”. Essa festa ocorre sempre em outubro, quando começa o período da chuva,
que para eles simboliza a fartura e a harmonia. A “Festa das Águas” é como um ritual que
acontece desde o tempo dos antepassados. Na festa em questão a relação com o tempo mítico é
bem perceptível. Na mitologia Pataxó, os índios dessa etnia teriam vindo da água 4. A temática
da água se faz presente no uso do “pau de chuva” e do banho, ao final do ritual, que representa
uma purificação do corpo e a recepção destes espíritos. A água também é importante nos
batizados simbolizando essa recepção dos espíritos protetores. O espírito do Pai da Mata,
principal protetor dos Pataxó, é evocado. Ele aparece antes dos batismos, participando destes.
Ele é o principal espírito para os Pataxó, sendo considerado como um símbolo da continuação
da cultura Pataxó antiga, e por tanto um símbolo importantíssimo na construção da identidade
e na configuração da memória.
A questão do corpo é muito abordada no filme. As pinturas têm significados diversos
e são utilizadas por índios de todas as idades. Elas são vistas como uma forma de identificação
com os antepassados, mostrando-se como uma representação memorial de tempos idos ao
mesmo tempo que refletem sentimentos, sendo uma forma de expressão. No que concerne as
restrições alimentares, elas não são muito evidentes nos Pataxó de Carmésia devido ao maior
contato com o não-índio.
Percebemos então, que a cosmologia está intimamente ligada à memória e à
identidade. A memória é construída e reconstruída através dessas percepções e relações com o
mundo. O filme apresenta-se como um enunciado de memória, que busca a consolidação de
uma identidade. Há uma preocupação maior em mostrar a perspectiva indígena do que em
montar um documento histórico, o que fica claro pela ausência de falas e predomínio do canto.

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Esses dados vieram da cartilha “Niatum miãga hãmãgui – filhos das águas e da mata”. Essa cartilha foi
produzida pelo povo Pataxó de Minas Gerais, com o apoio do Ministério do Meio Ambiente, da FUNASA, do IEF
– regional do Rio Doce, da PUC Minas, do CIPAC e da FUNAI. A cartilha fala sobre a relação dos Pataxó com a
natureza tentando criar uma conscientização sobre a importância de sua preservação.
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Ele reafirma a percepção de uma diferente relação, de caráter interrelacional entre memória,
identidade e história.
As memórias indígenas então foram elaboradas de forma fragmentada. Enquanto os
índios constroem sua memória com base na cosmologia, relacionando-se com os mitos de seus
antepassados e com suas relações com a natureza, a memória oficial continua apoiando-se em
imagens que começaram a ser construídas no século XVI. Desde aquela época eles continuam
seguindo os interesses da cultura predominante, reforçando as relações de poder.
Deslegitimando a memória indígena, deslegitimam-se suas lutas por direitos. No entanto, novas
iniciativas vêm surgindo, abrindo a possibilidade de consolidação de uma memória
compartilhada através de políticas interculturais.
Para tanto, alguns desafios devem ser transpostos. Primeiro, é necessário que haja uma
ênfase nos processos de construção das identidades culturais através das memórias. Essas
devem ser contadas e narradas nos contextos educacionais, reforçando a ideia da dinamicidade
das culturas e identidades e buscando o diálogo entre diferentes saberes e práticas (CANDAU,
2008, p. 53-54). É necessário também pensar na interação com o “outro”. Não apenas em
situações pontuais, mas em dinâmicas sistemáticas, que busquem uma construção conjunta do
conhecimento através dos processos educativos. E por fim, é necessário o “empoderamento”
dos diferentes atores sociais, para que sejam reconhecidos seus papéis ativos na constituição da
sociedade civil.
Tendo essa perspectiva em mente, como pensar na consolidação de uma memória
indígena brasileira compartilhada? Os materiais didáticos, principalmente em sua função
ideológica e cultural, podem ser entendidos como espaços de memória. Apesar de os livros
didáticos que vêm sendo utilizados se apoiarem numa visão hierarquizada da sociedade, através
de algumas iniciativas interculturais novos materiais vêm surgindo, a questão que fica é a forma
como eles serão apropriados pelos docentes.
Nesse sentido podemos falar sobre o Curso de Formação Intercultural de Educadores
Indígenas (FIEI)5, cujo objetivo é habilitar professores indígenas, através de uma educação

5
Esse curso existe desde 1995. Ele foi criado através de diálogos entre índios das etnias pataxó, xacriabá,
maxakali e krenac, a UFMG, o Instituto Estadual de Florestas (IEF) e a Administração Regional de Governador
Valadares da Fundação Nacional do índio (FUNAI). Seu objetivo é habilitar professores indígenas, através de uma
educação intercultural, para ensinarem em escolas de Ensino Médio e Fundamental - Informações tiradas do
Projeto Pedagógico do curso. Disponível em: < https://www2.ufmg.br/prograd/prograd/Pro-Reitoria-de-
Graduacao/Cursos/Humanas/Educacao-Basica-Indigena-Formacao-Intercultural-de-Professor-FIEI>.
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intercultural, para ensinarem em escolas de Ensino Médio e Fundamental. Essa iniciativa


destaca-se pela grande produção de materiais didáticos, além da tentativa de “empoderamento”
das sociedades indígenas envolvidas. Incentiva-se o diálogo tanto entre índios e não-índios,
como entre índios de diferentes etnias, reforçando a ideia da diversidade dentro das culturas
indígenas. Busca-se também o diálogo entre diferentes saberes e práticas, pensando-se em
novos métodos educacionais. No entanto, apesar da abertura ao diálogo, as ações são mais
voltadas às comunidades indígenas, sendo então mais importante na consolidação das
identidades étnicas do que na construção de uma memória compartilhada.
Além do curso oferecido pela UFMG, achamos interessante destacar a plataforma on-
line “Índio Educa”6, criada pela organização não governamental (ONG) Thidêwá7, que busca a
disseminação de uma história e cultura reconhecidas como autênticas pelos povos indígenas
através das mais variadas formas, especialmente via internet. Este é um site que aborda
diferentes aspectos da cultura indígena, apresentando textos e multimídias. O site apresenta uma
seção chamada de “Ajudando o professor” que é voltada para auxiliar professores na forma de
trabalharem a temática indígena nas escolas. Através do diálogo, os integrantes do projeto
tentam auxiliar nos planejamentos de aula e também disponibilizar materiais didáticos mais
diversos. Essa iniciativa é interessante, pois amplia o espaço para debate, além de incitar à
utilização de materiais didáticos diferenciados.
Por fim, abordamos a ideia de “novo bom selvagem” que vem sendo difundida e
aparece como constante na produção didática indígena. Palhares a coloca como uma ideia
equivocada que viria de uma suavização de antigas concepções, mas que atribuiria ao indígena
um lugar moral e ao mesmo tempo preservacionista. Nessa perspectiva, os índios continuariam
a ser entendidos como uma única etnia e como presos à floresta. O autor usa a concepção de
Norbert Elias, que amplia a questão do conflito pelo poder e as tensões entre sociedades no
interior do Estado e pensa em uma fossilização do habitus em reservas indígenas, como uma
forma de evitar a modernidade e se apegar as tradições (PALHARES, 2011, p.1771).

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Além do apoia da ONG Thidêwá, o grupo conta com o com a parceria do Pontão de Cultura Viva:
Esperança da Terra, parceria entre a ONG Thydêwá e o Ministério da Cultura - Disponível em:
<http://www.indioeduca.org/?p=69>. Acesso em: 12 fev. 2016.
7
ONG foi criada em 2002, com três objetivos principais: a sustentabilidade; o diálogo intercultural e o
cruzamento de saberes; e a cultura da paz e a valorização da diversidade - Disponível em:
<http://www.thydewa.org/thydewa/>. Acesso em: 12 fev. 2016.
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2

Mas a despeito da importância das críticas apresentadas por Palhares, podemos pensar
se a atual apropriação dessa noção pelos indígenas não pode ser entendida como uma tática de
afirmação identitária, de forma a propiciar-lhes um diferencial cultural perante o não-índio.
Será que não podemos pensar que os grupos indígenas vêm reconfigurando uma memória
manipulada a seu respeito, em prol de um fortalecimento simbólico, em uma busca da
sobrevivência cultural?
Cunha ressalta que em situações de intenso contato, a cultura original assume uma
outra função, se tornando uma cultura de contraste, o que causa uma acentuação dessas culturas,
que ao se simplificarem, diminuindo os traços que se tornam diacríticos, se enrijecem, buscando
uma maior visibilidade (CUNHA, 1986, p.99). Assim, podemos pensar nessa apropriação da
memória do bom selvagem como uma forma de diferenciação e oposição. Diante dos abusos
das sociedades modernas com relação à natureza, ao se colocarem como “guardiões” ou
“protetores” desta, os indígenas se afirmam na diferença, se consolidando como um grupo
diverso. Ao mesmo tempo em que se unem e fortificam em suas lutas políticas e justificam suas
reinvindicações por territórios, afirmando sua maior pertença e cuidado com estes.
Apesar da compreensão dos receios de manipulação identitária envolvidos nessa
construção, acreditamos que os indígenas têm se apoiado nessa ideia como forma de afirmação
da alteridade étnico-cultural. Assim, a ideia do “novo bom selvagem” seria uma tática simbólica
a lhes prover reconhecimento político.
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Referências documentais
Awê iõ txonang – Festa das Águas – Um filme de Isaque Pataxó. Direção: Isaque Pataxó.
2006-2011. Filme produzido com o apoio da Faculdade de Educação/UFMG , da Biblioteca
Universitária/UFMG, da Fundação Nacional do Índio, e da Secretaria de estado da Educação
de Minas Gerais.
Niatum miãga hãmãgui – filhos das águas e da mata. Cartilha produzida pelo povo Pataxó
de Minas Gerais, com o apoio do Ministério do Meio Ambiente, da FUNASA, do IEF – regional
do Rio Doce, da PUC Minas, do CIPAC e da FUNAI.
Pataxó, Lucidalva. Ãgohó Lua Pataxó. 1ª ed. Belo Horizonte: Faculdade de Letras, 2011.
Site da Organização não-governamental Thidéwá. Disponível em:
<http://www.thydewa.org/thydewa/>.
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