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Palmira Margarida

: Notas Perfumadas :

As plantas sagradas do
feminino, suas deusas e
aromas
20 • 05 • 2017 | por Palmira Margarida
“Se todos os seres vivos morressem e só sobrassem as plantas, elas viveriam por muito tempo e se multiplicariam. No
entanto, se todas elas morressem, nenhum ser vivo perduraria na Terra por mais que alguns meses.”
Quando a primeira planta nasceu no planeta, há uns 500 milhões de anos, singela e simples, uma pequena alga
nadando pelo grande oceano azul, talvez ali tenha surgido a primeira deusa. As plantas não têm gênero, o que ocorre é
que uma presença feminina reside em todas elas (como a figura folclórica das dríades que moram no interior dos
carvalhos), mas algumas, em especial, sustentam em si a sabedoria matricaria, ou seja, a própria divindade feminina
que é uma espécie de energia/inteligência/sensoridade que emana de todas as mulheres.
Lembro que a palavra matricaria designava, na Grécia antiga, não apenas o órgão útero como concebemos hoje, mas o
complexo anatômico feminino (canal vaginal, trompas, seios, leite). Ainda, como historiadora, arrisco-me a aprofundar
que matricaria ia além de nomear uma anatomia ou fisiologia, mas compreendia toda uma emanação
“energética”/sensorial/criativa exalada pelas mulheres, e que nossas ancestrais conheciam bem e dominavam. Essa
“existência matricaria” ou “forma de ser/existir matricaria” foi sendo silenciada conforme as sociedades tornavam-se
patriarcais, processo que teve o seu ápice com o cristianismo, que transformou, de vez, a matricaria em algo demoníaco
(aprofundarei esse “modo de ser matricaria” nos próximos artigos).
Com o processo de solapamento da “entidade matricaria”, a interação entre o ser feminino e seu meio foi
enfraquecendo-se, e, assim, as mulheres perderam de vista e nas vísceras, em um processo de longa duração, suas
sensoridades e capacidades de “mulheres farejadoras”, conhecedoras dos ciclos naturais, de seus próprios ciclos, das
trocas entre eles e, principalmente, do material curador doado e trocado com suas irmãs plantas.
Traçando um paralelo com as mulheres, que são banalizadas em seus conteúdos e essências, as plantas também foram
vulgarizadas (de vulgar mesmo, para ser irônica com o termo tão utilizado para desqualificar mulheres) apenas como
aromas para perfumaria, sintetização de alopáticos ou, ainda, como compêndios de “decorebas” sobre “para que
servem”, enquanto seria interessante e sensorial (assim como é a medicina popular), antes de gravar nomes como
“emenagoga ou antivermífuga” e várias “formas de uso”, viver a planta, pois ela é muito mais que categorias como
nota baixa ou alta, magra ou gorda, forte ou fraca. Reconhecem? Eu mesma já contei aqui na Vertigem que, se tivesse
seguido apenas as normas e decorebas (que logicamente têm suas importâncias) sobre a camomila, jamais teria me
curado de candidíase com ela. É preciso religar-se a um “faro de matricaria”!
Nós não somos só nossas belas capas (corpos) e perfumes. Uma planta ou mulher são todas as chuvas que pegaram,
todos os climas que enfrentaram, o solo em que nasceram e como sobreviveram a ele e à aridez do deserto, com suas
raízes ou troncos exalando cheiros pulsantes de histórias de sobrevivência e coragem. Somos os infindáveis invernos
que quase nos congelaram, mas somos a primavera também. Ora plantas floridas, como Perséfone ao sol, ora plantas
quase secas e sem folhas, como Perséfone no submundo, mas ainda vivas e nunca antes tão fortes. Algumas de nós
apresentam grandes raízes, como uma vetiver, e fazem partes das florestas viscerais de Baba Yaga. Outras, são flores
de lótus, conhecem sua própria lama, mergulham sem medo em sua escuridão e têm total capacidade de vir à tona e
banhar-se à luz do sol.
Algumas ostentam em si a graça de uma flor ylang ylang e desabrocharam, após muita luta interna, por entenderem
que é possível ter prazer sem culpa. Culpa, esse sentimento do mundo patriarcal que só os seres humanos conhecem. A
flor de jasmim e a ylang ylang e nenhuma outra planta conhecem a culpa. Há mulheres que riem de tudo, são sábias
em sentirem graça na própria desgraça, descobriram, a duras penas, que essa vida é para ser prazer, são mulheres
tangerinas ou mulheres alecrins, plantas alegres e que apresentam a capacidade de enxergar o belo no caos. Em alguns
momentos, florescemos; em outros, perdemos todas as nossas folhas e o viço, murchamos, choramos, assim como as
árvores choram suas resinas. Não importa, há uma matricaria em nós, essa força/energia fêmea que nos move e nos
traz de volta à vida, afinal, se somos nós que damos a vida, sabemos como sobreviver e viver.
A diferença entre nós, mulheres, e nossas amigas vegetais é que elas não andam, pois não precisam, já que estão em
constante estado de meditação, se adaptam e, apesar de, aparentemente, estarem estáticas, elas se movimentam
vagarosamente. Sobem, descem, mexem seus quadris, espicham suas espinhas, alongam-se, encolhem-se quando em
perigo, desviam-se, se nutrem na chuva e no sol, puxam nutrição de sua ancestral, a terra, agarram-se para não cair,
envergam, mas não quebram, às vezes, quebram, mas formam novos galhos e crescem de novo. Por vezes, são
abusadas, molestadas, inferiorizadas, cortadas, mas, antes disso, muito antes, elas já espalharam suas sementes e
deixaram sua descendência crescendo aqui na Terra, passando suas sabedorias entre as gerações, assim como fazem
nossas erveiras, parteiras e benzedeiras.
E, nesse vai e vem de galhos e quadris, cada uma se movimenta como pode, como aprendeu, como dá: algumas são do
deserto, outras do frio, outras das águas, algumas com um forte tronco, outras com um longo e fino caule. Algumas dão
flores, outras dão medo. Somos todas plantas-deusas e não somos só o perfume. Escrever sobre plantas para o sagrado
feminino é ouvir e sentir a história das mulheres e a forma como elas falam sobre suas ancestrais, é observar o formato
da planta, vê-la crescer, observar como se movimenta, de onde ou de quem se desvia, para onde cresce e quando seca.
Pesquisar sobre deusas é mais que decorar mitologias, é buscá-las e reconhecê-las nas mulheres de sua proximidade.
Unir toda essa riqueza sobre plantas e mulheres é alquimizar o mais belo perfume que já senti na Terra: o cheio de
matricaria, esse “ser/estado matricaria”, que, como uma rede invisível, mas totalmente real, enlaça a todas nós, as
deusas e as plantas.
Por fim, somos uma só, assim como todas as deusas são uma. A partir deste artigo, inicio uma viagem de oito contos
sobre as plantas das deusas e seus aromas. Vou começar pelas plantas notas baixas e deusas que nomeei de
vermelhas, depois vamos conhecer as plantas notas médias junto às deusas do coração e, por último, as plantas notas
altas, com as suas deusas da cabeça. Esses artigos são uma pequena amostra da minha tese de doutorado, que trago
aqui na Vertigem com uma linguagem simples e nada acadêmica, para que todas possam se beneficiar. A universidade
existe para servir à sociedade, e seria triste eu não dividir minhas pesquisas com vocês. Afinal, a matricaria deseja falar
com as mulheres!
Palmira Margarida é historiadora e atualmente é doutoranda na UFRJ. Pesquisa sobre neurociências, os cheiros e as
emoções. Estuda também neurobiologia das plantas e é a pisciana mais ariana de que se tem conhecimento. Descende
de italianos e adora uma massa, mas fala sem gesticular. Ama viajar e captar os aromas das trilhas, das culturas e das
ideias. Está em busca do profundo perfume do Ser. Escreve neste espaço às quintas-feiras. Para informações sobre seu
trabalho com aromas, visite o site www.perfumebotanico.com.br ou entre em contato pelo e-
mail: palmira.margarida@revistavertigem.com

http://www.revistavertigem.com/artigo/as-plantas-sagradas-do-feminino-suas-deusas-e-
aromas/

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