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1 INTRODUÇÃO
Objetivamos apresentar neste texto uma breve discussão em torno dos aspectos
educativos da Literatura Infantil, em especial, no que concerne à produção brasileira no
período de ditadura civil-militar (1964-1985). Sendo assim, abordaremos a questão do
caráter educativo da literatura, a fim de entendermos em que medida ela contribui para a
manutenção e/ou superação de “verdades” estabelecidas socialmente.
Durante o período de 1964 a 1985, o Brasil vivenciou o processo denominado
ditadura civil-militar. De forma sucinta, as ditaduras do Cone Sul tinham por função a
redefinição da inserção da América Latina na Divisão Internacional do Trabalho;
consolidação de um capitalismo monopolista de Estado e predomínio interno da fração
monopólica nativa aliada ao capital estrangeiro.
Para alcançar esses objetivos e se afirmar enquanto poder inquestionável, esses
regimes se utilizaram de censura, seqüestros, assassinatos, repressão, fim de liberdades
democráticas, marcando significativamente o cenário latino-americano dos anos de
1960 aos anos de 1980. Segundo Padrós (1996), a seqüência de golpes de Estado “[...]
se alastra pela América Latina após a Revolução Cubana. [...] Em todos os casos uma
repressão implacável sobre um proletariado ativado na perspectiva de projetos
revolucionários (com grau variado de país para país).”
No Brasil, no ano de 1968, a ditadura militar começava a colher os resultados do
seu golpe de 1964: milhares de cidadãos, pertencentes a uma geração que se criou sob a
legalidade da Constituição de 1946, se rebelavam por todo o país contra o regime que se
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Esse texto é resultado das discussões oriundas da disciplina Cultura Política, Autoritarismo e Educação ministrada
pelo Professor Dr. Alexandre Fiuza, no segundo semestre de 2009, no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
nível de Mestrado em Educação – UNIOESTE, campus de Cascavel.
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Discentes regulares do Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu em Educação, em Nível de Mestrado, da
Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, campus de Cascavel.
impôs pelas armas. Os militares responderam com mais violência. Em 1969 já eram
muitos os casos de prisões, torturas, assassinatos de opositores políticos. Nesse sentido,
havia uma grande preocupação do regime com a divulgação e denúncias de seus crimes
e também com a circulação de idéias revolucionárias e subversivas.
Ao tentarmos compreender esse contexto, levantamos a seguinte questão: de que
maneira se comportou o processo de produção, publicação e censura das obras
destinadas ao público infantil? Além disso, questionamos de que modo essa produção se
constituiu como um elemento formativo/educador, nas condições históricas
mencionadas.
Discorreremos sobre alguns elementos referentes à história da literatura infantil
e seu desenvolvimento no Brasil. Partindo disso, traçaremos uma análise do caráter
educativo da literatura infantil, estabelecendo relações com a produção brasileira
durante a ditadura civil-militar. Para isso, apresentaremos “Era uma vez um tirano”, de
Ana Maria Machado, a fim de analisar os aspectos formativos presentes nessa obra.
No entanto, as autoras ressaltam que, por meio dos contos de fadas, a fantasia
assume um papel primordial nos livros infantis, visando por um lado o entendimento da
realidade e por outro conduzindo os leitores a figuração de um sonho, ou seja, ao mundo
da fantasia, do irreal, da moral. Nessa dualidade, entre fantasia e realidade, está posta a
finalidade social da literatura infantil, que é marcada em sua gênese no sistema
capitalista de produção.
No Brasil, a Literatura Infantil começou a ser constituída no início do século
XX, decorrente da acelerada urbanização ocorrida no final do século XIX. No período
de 1890 e 1920, Zilberman e Magalhães (1987) destacam que:
Ainda convém lembrar que, num primeiro momento, a literatura infantil editada
no Brasil era somente adaptações do modelo europeu, que geralmente chegavam por
meio de Portugal, ou seja, não existiam produções feitas a partir da realidade brasileira.
Desse modo, ocorreu também:
Essa nova orientação (que, obviamente, não pôde ser posta em prática
imediatamente em todas as escolas brasileiras, por falta de formação
adequada do professorado) vai suscitar uma crescente demanda de
livros literários; mas só se acelera realmente nos anos 70. E é em
função dessa nova tarefa (bem explicita no Programa acima), a ser
exercida pelos textos literários, que os livros de literatura infantil
começam a ser completados por uma ‘Ficha’ ou um ‘Roteiro’ de
questões, visando orientar as atividades decorrentes da leitura em sala
de aula ou extraclasse (p. 257).
3.1 Breve análise do aspecto emancipatório da literatura infantil: “Era uma vez
um tirano”, de Ana Maria Machado
Diante disso, algumas obras produzidas e publicadas no Brasil entre 1964 e 1985
apresentaram um teor de contestação da ordem vigente, questionando o autoritarismo e
apresentando problemas sociais. Assumindo essa faceta de emancipação, a literatura
infantil brasileira passou, também, a formar politicamente, inserindo temas da dura
realidade nacional nos livros para crianças.
Destacaremos, como exemplo, a autora Ana Maria Machado, que publicou seu
primeiro livro em 1977: Bento-que-bento-é-o-frade. A obra fala sobre questionamento e
obediência, liderança e consenso, solidariedade e mutirão e não contou com muito
destaque por conta do tema abordado. Em seu livro Raul da ferrugem azul (1979), ela
mostra as situações revoltantes pelas quais as pessoas passavam, mas preferiam calar a
reclamar. A autora conta que o livro foi rejeitado por oito editoras que, apesar de
gostarem da história, achavam uma afronta à ditadura, porém a Editora Salamandra,
nova no mercado editorial, decidiu editá-lo.
A obra que analisaremos é Era uma vez um tirano, que foi escrita e publicada
em 1981, período do governo militar em que, apesar da anistia, ainda vigorava as leis da
ditadura. O livro foi considerado “uma temeridade por muita gente” como contou
recentemente a autora em uma entrevista à Editora Moderna, porém foi publicado
também pela Editora Salamandra e traduzido para o espanhol e para o alemão.
A autora “possibilita” a observação do momento em que a autoridade se afasta
de sua função social e perde a sua legitimidade. Em Era uma vez um tirano, são
destacadas as ações autoritárias. Segundo a autora, as proibições do Tirano, lembradas
no livro, estavam na memória recente de todos (2003, p.38). Uma questão importante a
ser destacada é o fato de a autora utilizar o termo tirano substituindo o rei que sempre
foi bastante utilizado como protagonista dos livros infantis durante a ditadura. Muitos
autores produziram histórias em que o rei era símbolo do autoritarismo, entre eles estão
Ruth Rocha com O Reizinho Mandão, Sapo Vira Rei Vira Sapo, O que os Olhos não
Vêem e Eliardo França com O Rei de Quase Tudo. A própria substituição de termos por
Ana Maria Machado já indica uma afronta ao regime.
Em Era uma vez um Tirano, Ana Maria Machado conta a história de um povo
alegre e divertido, que discutia as formas de viver. Para isso conversavam muito, com o
objetivo de solucionar os problemas da maioria. Entretanto, apareceu o Tirano que,
desrespeitando as vontades do povo, expulsou o representante escolhido por todos,
implicou com as idéias, com as cores, com as estrelas, com a música e com a dança.
Tudo estava proibido e o país ficou todo cinza. Todos passaram a trabalhar sem
descanso, que era uma forma do tirano ocupar o tempo das pessoas para que elas não
conversassem nem brincassem mais. A tirania passa a perder força quando três crianças
se unem e começam a buscar alternativas mobilizando, deste modo, todo o povo. De
conversa em conversa, surgiram as idéias e propostas. Com a participação de todos,
voltaram as cores, as músicas e as estrelas. E o Tirano, percebendo que contra a força do
povo não tinha mais poder, fugiu. Nessa obra, percebe-se claramente a contraposição ao
regime militar e suas práticas, como a censura e a falta de liberdades, além da
exploração dos trabalhadores. A autora finaliza apontando como saída a organização
popular.
Compreendemos que, apesar de ainda prevalecer o regime ditatorial, algumas
modificações já eram perceptíveis. Entretanto, o caráter educativo é evidente nessa obra.
A atuação das personagens no sentido de interferir na realidade que não lhes agradava
incita a proposição de alternativas, indicando a necessidade de organização popular.
Além disso, a analogia com a realidade “bastante recente” permitia ao público leitor
refletir sobre a história do Brasil. Nesse sentido, o livro não se dirigia somente às
crianças, mas provocava reflexões na população brasileira como um todo.
A utilização de uma linguagem mais objetiva, com poucas metáforas, permite
uma associação quase que imediata com as práticas da ditadura militar. Quando fala do
Tirano, o narrador da história menciona que ele também poderia ser chamado de
Déspota ou Ditador. Outra questão bastante presente é a incerteza, que o narrador diz
ser resultado das ações do Tirano que não permitia que a história fosse escrita.
Desde que ele proibiu tudo, não se podia ter mais papel escrito, nem
desenho, nem cantiga, nem música, nem dança que contasse nada. Por
isso, uns se esqueceram de tudo. Outros confundiram tudo.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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