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Ambientalização dos Bancos e
Financeirização da Natureza
Um debate sobre a política ambiental do BNDES e
a responsabilização das Instituições Financeiras

Organizado por:
João Roberto Lopes Pinto

Brasília
1a edição
2012
Ambientalização dos Bancos e Financeirização
da Natureza - Um debate sobre a política ambiental do BNDES
e a responsabilização das Instituições Financeiras

Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais

Organizado por João Roberto Lopes Pinto

Brasília, 1a edição, 2012.

ISBN 978-85-88232-05-1

1. Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES


2. Salvaguardas socioambientais 3. Financeirização da natureza
4. Ambientalização das Instituições Financeiras
5. Violações de Direitos Humanos
6. Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)

Edição: Patrícia Bonilha

Revisão: Daniela Lima

Projeto Gráfico e Capa: Guilherme Resende - guileresende@gmail.com

Apoio:
Ambientalização dos Bancos e
Financeirização da Natureza
Um debate sobre a política ambiental do BNDES e
a responsabilização das Instituições Financeiras

Organizado por:
João Roberto Lopes Pinto

Brasília
1a edição
2012
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SUMÁRIO
7 Apresentação - Coordenação RB

9 Introdução - João Roberto Lopes Pinto

19 BNDES e violações de direitos - Marilda Teles Maracci

31 Ambientalização dos bancos: da crítica reformista


à crítica contestatária - Fabrina Furtado e Gabriel Strautman

55 Banco Mundial: um exemplo para o BNDES? - Lucia Ortiz

75 A responsabilidade do BNDES pelas violações


de direitos humanos - Jadir de Anunciação de Brito

94 Considerações e Recomendações - João Roberto Lopes Pinto

Contexto Internacional
111 A história se repete como farsa - Diana Aguiar

Contexto Territorial

131 BNDES e violações de direitos: fichário dos casos - Marilda Teles Maracci
Caso TKCSA – Companhia Siderúrgica do Atlântico
Caso UHE Belo Monte
Caso UHE Santo Antônio e UHE Jirau
Caso Veracel Celulose
Caso Megaeventos esportivos (Copa do Mundo 2014 e Olimpíadas 2016)
Caso Vale Moçambique
O Estado brasileiro tem financiado a destruição da natureza: impactos em suas populações

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Apresentação
Coordenação Nacional da Rede Brasil*

C
om um acúmulo de quase duas décadas na articulação e Teles Maracci, aprofundadas em um fichário apresentado no
luta contra-hegemônica no campo do monitoramento final da publicação, colocam em xeque a abordagem da política
crítico das Instituições Financeiras Multilaterais (IFMs), a socioambiental do BNDES.
Rede Brasil apresenta esta publicação com o objetivo de contribuir As contradições do modelo de desenvolvimento, promovido
para o debate sobre a atuação e as políticas socioambientais pelas IFMs e defendido pelo Estado brasileiro, capturado pelas
do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social corporações que compõem os blocos hegemônicos de poder no
(BNDES). Outro propósito que se busca alcançar aqui é a cenário nacional, são abordadas nos textos de Fabrina Furtado e
valorização das experiências de resistência nos territórios, Gabriel Strautman, ex-secretários executivos, e por Lúcia Ortiz e
desenvolvidas pelas organizações-membros e pelas parceiras da João Roberto Lopes Pinto, membros da Coordenação Nacional
Rede, diante de projetos e políticas destas instituições. da Rede Brasil. Estes autores explicitam as semelhanças das
Desafiada a aportar na análise sobre as salvaguardas políticas socioambientais em desenvolvimento pelo BNDES
socioambientais do BNDES, como estratégia potencial de controle vis-à-vis o processo de ambientalização do financiamento ao
social de um dos maiores bancos públicos de desenvolvimento desenvolvimento acompanhado de estratégias de financeirização
do mundo, a Rede Brasil desenvolveu este estudo com o apoio da natureza promovidas pelo Banco Mundial.
financeiro da articulação de fundações CLUA (Climate and Na sequência, o estudo aponta perspectivas baseadas em uma
Land Use Alliance). Aliando conhecimentos e a expertise de estratégia política de abordagem jurídica sobre a responsabilidade
pesquisadores de diversas áreas, a Rede buscou fortalecer o subsidiária dos agentes financeiros, apresentada por Jadir Brito,
debate interno, apresentado aqui por ex-secretários executivos e apresenta recomendações para a atuação da Rede Brasil e dos
e membros da sua Coordenação, articulado ao acúmulo de movimentos sociais que, de forma mais ampla, convergem para
redes parceiras, como a Plataforma BNDES e a Rede Brasileira uma maior e necessária incidência da sociedade organizada sobre
de Integração dos Povos (Rebrip), e à valiosa colaboração o BNDES e os rumos de desenvolvimento do país.
acadêmica de especialistas na área jurídica e de análise de O texto complementar de Diana Aguiar apresenta uma análise do
conflitos socioambientais. São textos autorais que não expressam contexto internacional de fortalecimento e reconfiguração das IFMs
necessariamente o posicionamento da Rede Brasil, mas que no período pós-crise financeira de 2008. Fruto de um projeto apoiado
convergem e contribuem para as conclusões e recomendações pela Fundação C.S. Mott, este artigo integra a proposta da Rede Brasil
deste processo de debates empreendido pela Rede. de atualizar-se sobre o novo papel das IFMs e a atuação do G20.
O primeiro artigo é fundamentado em casos concretos que Como parte do processo de incidir sobre o tema do
explicitam os impactos socioambientais e as violações de direitos financiamento ao desenvolvimento e, especialmente, sobre
humanos de projetos financiados pelo BNDES, tanto dentro o BNDES, a Rede Brasil participou de debates regionais,
como fora do Brasil. As evidências elencadas no texto de Marilda organizou oficinas e publicou duas revistas Contra Corrente

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com os temas da ambientalização do financiamento e da de todo este acúmulo e dos diversos ângulos de análise brindados
financeirização da natureza. Nesse contexto, merece destaque a pelos autores. Ela também é reforçada em um contexto em que as
oficina “Serviços Ambientais, REDD e Fundos Verdes do BNDES: estratégias e políticas socioambientais das instituições financeiras,
Salvação da Amazônia ou Armadilha do Capitalismo Verde?”. longe de garantir os direitos das populações ou reconhecer
Realizada em Rio Branco, no Acre, em outubro de 2011, esta atividade os direitos da natureza, representam novas formas de impor a
foi promovida com o apoio do Fórum da Amazônia Ocidental velha ideologia neoliberal e implementar, ao mesmo tempo que
(Faoc), do Centro de Defesa dos Direitos Humanos e Educação mascarar, um novo ciclo de acumulação do capital. Tendo como
Popular (CDDHEP), da CLUA e da Fundação Heinrich Boell. base o aprofundamento da apropriação dos espaços e serviços
Antecipada por visitas a campo, a oficina priorizou os públicos, este ciclo também se fundamenta na financeirização
testemunhos de organizações, pesquisadores, trabalhadores e dos bens comuns e da vida num sentido mais amplo.
trabalhadoras das diversas regiões da Amazônia. A partir dessa Neste momento de reconfiguração da economia, as mesmas
perspectiva, o debate abordou, principalmente, o distanciamento instituições financeiras geradoras das crises se fortalecem,
entre os anseios e propostas populares para a sustentabilidade apresentando-se como uma “solução”, a ponto de lograrem
na Amazônia e a real possibilidade de resguardo de direitos em substituir a política e os direitos por suas condicionantes e
diante da implementação de projetos definidos pelas políticas salvaguardas. Enquanto atuam para garantir privatizações, demissões
de aceleração do crescimento econômico, financiadas pelos massivas, redução dos benefícios e perda dos direitos conquistados
bancos de desenvolvimento. Esta oficina também trouxe à tona o pelos trabalhadores no Norte Global, avançam, no Sul, suas políticas
questionamento sobre a efetividade da estratégia de salvaguardas, de privatização da gestão ambiental e de apropriação do intangível.
especialmente quando são definidas pelas instituições financeiras, Através de reformas políticas e novas leis, permite-se classificar os
sem adequadas condições de participação e controle social e de componentes da natureza como “capital natural” para que os bancos
respeito e incorporação das visões locais de desenvolvimento. e as corporações os transformem em títulos financeiros que podem
A Rede Brasil, com base de definições de suas Assembleias de ser especulados em bolsas de valores.
2007, 2010 e 2012, como membro fundador da Plataforma BNDES É, portanto, mais do que nunca necessário rever os velhos
e integrante do Grupo Operativo desta articulação, decidiu discursos e formas de atuação das instituições financeiras e
focar sua contribuição nas estratégias de responsabilização do fortalecer a resistência e a mobilização social no questionamento
BNDES. Neste sentido, ancora-se em sua própria experiência do papel do Estado no atual modelo de desenvolvimento.
no monitoramento crítico das políticas e salvaguardas Esperamos que as diversas contribuições deste estudo aportem na
socioambientais das IFMs, na articulação regional e internacional reflexão das organizações, redes e movimentos sociais para além
com organizações sociais e redes parceiras para a denúncia dos do âmbito da Rede Brasil e animem ações da Plataforma BNDES
impactos da atuação nacional e internacional do BNDES e no no controle social e redirecionamento de um dos maiores bancos
papel deste Banco e das IFMs na geração de dívidas e violações públicos na busca por justiça econômica, social e ambiental.
de direitos sociais e ambientais na implementação de projetos
* A partir de 17 de agosto de 2012, data de encerramento da IX Assembleia Geral da Rede Brasil,
relacionados à infraestrutura e aos megaeventos esportivos. a sua Coordenação Nacional passou a ser composta das seguintes organizações: Amigos da Terra
Brasil, Fórum da Amazônia Ocidental (Faoc), Fórum da Amazônia Oriental (Faor), Fórum em Defesa
A tese da responsabilização subsidiária do BNDES, fortalecida da Zona Costeira do Ceará e Instituto Mais Democracia. No entanto, é importante ressaltar que esta
publicação foi concebida e produzida pela Coordenação anterior, composta por: Amigos da Terra
nos debates realizados na IX Assembleia Geral da Rede Brasil, que Brasil, Centro de Pesquisa e Assessoria - Esplar, Fórum da Amazônia Ocidental (Faoc), Fórum da
contou com a presença do Ministério Público Estadual do Pará, Amazônia Oriental (Faor), Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), Instituto de
Estudos Sócio-Econômicos (Inesc), Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs) e Rede
além dos pesquisadores desta publicação, é defendida aqui a partir Alerta Contra o Deserto Verde.

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Introdução
João Roberto Lopes Pinto*

O
presente estudo se inscreve no contexto de democratizar e transformar as práticas do banco em prol do
monitoramento e incidência sobre o Banco Nacional desenvolvimento com justiça social e ambiental.
de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), O BNDES, um dos maiores bancos de desenvolvimento
realizado, desde 2007, tanto pela Rede Brasil sobre Instituições do mundo, não possui política de transparência, de acesso
Financeiras Multilaterais como pela Plataforma BNDES, à informação, não aplica critérios de gênero e raça nem
articulação de organizações e movimentos sociais brasileiros salvaguardas socioambientais que tenham sido construídas
voltada a democratizar o referido Banco, da qual a Rede Brasil é sob o controle ou com participação da sociedade civil. Ao
membro fundador. mesmo tempo, o Banco viabiliza projetos controversos, de alto
Em sua última reunião geral, ocorrida na Escola Florestan risco socioambiental e com elevada concentração dos fluxos
Fernandes em junho de 2011, as organizações que compõem financeiros a grandes empresas nacionais atuando dentro e
a Plataforma BNDES reafirmaram que “a crítica ao padrão fora do Brasil.
de financiamento do BNDES que sustenta o modelo de A partir da exigência de um empréstimo do Banco Mundial
desenvolvimento em curso é o ponto central de unificação direcionado às políticas de gestão ambiental - aprovado em 2008
da Plataforma”. Após estes cinco anos de atuação, percebe-se e um dos maiores recebidos na história das relações do Brasil com
que as questões levantadas pela Plataforma não apenas o Banco - o BNDES comprometeu-se com o desenvolvimento de
permanecem justas e necessárias, mas ganharam um uma política de salvaguardas sociais e ambientais, sem ter tornado
sentido de urgência dadas a escala alcançada pelo BNDES no público e transparente o processo ou os procedimentos resultantes
financiamento ao desenvolvimento e as resistências do Banco, deste compromisso.
ainda muito fortes, em se abrir para um debate mais amplo com Através de um projeto apoiado pelo consórcio Climate and
a sociedade organizada. Land Use Alliance (CLUA), a Rede Brasil contratou este trabalho
Como um dos eixos prioritários de seu plano de ação, as com três objetivos/hipóteses, assim descritos no termo de
organizações da Plataforma defendem a “corresponsabilização referência que orientou o presente estudo:
e responsabilização judicial do BNDES: a Plataforma reunirá “1) Demonstrar, através de estudos de caso concretos que
argumentos para comprovar a responsabilidade judicial do envolvam a violação de leis nacionais e acordos internacionais
BNDES pelas violações de direitos dos trabalhadores e das e a aplicação de instrumentos jurídicos por parte do Ministério
populações atingidas pelos empreendimentos financiados Público ou da sociedade civil organizada, que o fortalecimento
pelo Banco”. Nesse sentido, a Rede Brasil assumiu a tarefa e aplicação das leis nacionais constituem uma via passível de
de subsidiar o processo de aprofundamento das discussões corresponsabilização do BNDES e de pressão pela adequação
sobre salvaguardas socioambientais e corresponsabilização das suas políticas sociais e ambientais.
do BNDES como via de controle social e de pressão pública a 2) Analisar os êxitos, falhas e desafios das políticas de critérios

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e salvaguardas ambientais e dos instrumentos de compliance Já na quarta seção, o pesquisador Jadir Brito empreende
por parte de Instituições Financeiras Multilaterais como o Banco uma análise, partindo do caso do BNDES, do processo de
Mundial vis-à-vis o processo de construção de políticas e ambientalização das instituições financeiras, bem como
salvaguardas socioambientais no BNDES. do marco legal da “responsabilidade solidária” do agente
3) Explicitar as contradições nas políticas de salvaguardas financeiro por danos sociais e ambientais associados aos
sociais e ambientais do Banco Mundial e sua incorporação projetos financiados. Por fim, o pesquisador João Roberto Lopes
nas políticas do BNDES, sem transparência e por meio de apresenta um conjunto de Considerações e Recomendações a
empréstimos que impliquem o ajuste estrutural das políticas partir do estudo realizado, no intuito de responder não apenas
ambientais nacionais, no sentido de sua flexibilização e não de aos objetivos/hipóteses inicialmente propostos, mas também
sua salvaguarda”. de contribuir para a atuação da Rede Brasil no monitoramento e
Para dar conta destes objetivos, o estudo foi subdividido incidência sobre o BNDES.
em quatro partes, que ficaram a cargo de diferentes Para que se possa melhor contextualizar este estudo, é
pesquisadores. Na primeira parte, a pesquisadora Marilda importante descrever, mesmo que brevemente, sobre o
Maracci sistematiza casos de violações de direitos associadas histórico da Rede Brasil, o papel e a importância do BNDES,
a empreendimentos financiados pelo BNDES. O estudo a trajetória da Plataforma BNDES e, por fim, a “Política
se baseia nos seguintes casos de megaprojetos: Usinas Socioambiental do BNDES”.
Hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, em Porto Velho (RO),
e de Belo Monte, em Altamira (PA); Polo Siderúrgico da Histórico da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras
ThyssenKrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA), Multilaterais
no Rio de Janeiro (RJ); monoculturas de celulose da Veracel,
na Bahia; Megaeventos esportivos (Copa do Mundo 2014 e A Rede Brasil tem como tema central de sua atuação uma
Olimpíadas 2016); e o projeto da Vale de extração de carvão no perspectiva crítica sobre o financiamento ao desenvolvimento.
distrito de Moatize na província de Tete, em Moçambique. Na Dentre suas 80 organizações filiadas, estão movimentos sociais,
sistematização, além das características do empreendimento entidades sindicais, institutos de pesquisa e assessoria, associações
e da participação do Banco, foram levantados os impactos profissionais e ONGs de todas as regiões do país, com atuação
sociais e ambientais, bem como ações judiciais existentes. em âmbito local, regional e nacional. Essas organizações
Na segunda parte, os pesquisadores Fabrina Furtado e Gabriel trabalham em diversos temas e setores das políticas públicas,
Strautman contextualizam e analisam a efetividade do processo como educação, saúde, trabalho, seguridade social, infância,
de construção e aplicação de salvaguardas socioambientais e de infraestrutura, gênero, meio ambiente, agricultura, reforma agrária,
mecanismos de participação e resolução de conflito pelas IFMs, urbanização, planejamento econômico, entre outros.
particularmente pelo Banco Mundial e pelo Banco Interamericano O objetivo geral da Rede Brasil é ser articuladora da sociedade
de Desenvolvimento (BID), e sua relação com o BNDES. Na terceira civil brasileira, através de suas representações, para atuarem
parte, a pesquisadora Lúcia Ortiz recupera e avalia a influência como sujeitos no monitoramento, na elaboração e execução
recente do Banco Mundial, através de empréstimos, estudos das políticas públicas e no acompanhamento de ações pontuais
e cooperação técnica, na formulação das políticas públicas na do setor privado, garantindo, principalmente, os interesses da
área de meio ambiente no Brasil, bem como a reprodução deste sociedade diante das Instituições Financeiras.
modelo e receituário pelo BNDES. A constituição da Rede Brasil, em 1995, foi resultado de dois

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anos de debate e avaliação crítica entre diversas organizações e Desde a VII Assembleia Geral, realizada em 2007, a Rede
movimentos sociais sobre a atuação das Instituições Financeiras Brasil passou a monitorar também as ações do BNDES, que,
Multilaterais (IFMs) no Brasil. Foram identificadas a amplitude, atualmente, ocupa a posição de segundo maior banco de
a diversidade e a complexidade do conjunto de problemas fomento do mundo. Vale dizer que foi durante a referida
em diferentes setores compreendendo políticas e projetos Assembleia que Luciano Coutinho, presidente do BNDES,
do governo brasileiro com financiamento e assistência de comprometeu-se com a agenda da Plataforma BNDES. Em
IFMs, como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de 2010, a Rede Brasil criou, no âmbito da sua coordenação, o GT
Desenvolvimento (BID). BNDES, responsável por cuidar da agenda de acompanhamento
Ao mesmo tempo, identificou-se a ausência de mecanismos do Banco por dentro da Rede e fazer a interlocução com a
que favorecessem o enfrentamento destes problemas através de Plataforma BNDES.
processos nacionais. Era necessário compreender o tratamento
de políticas e projetos financiados pelas IFMs no país como uma O papel e a importância do BNDES
questão de interesse nacional, com ênfase nas responsabilidades
das várias partes direta e indiretamente envolvidas, no governo e Ao longo da sua história, o BNDES não assumiu apenas o papel
nas IFMs. Alguns dos marcos históricos da atuação da Rede Brasil de vultoso financiador. Devido à qualificação técnica do seu
estão referidos nos artigos dos pesquisadores Fabrina Furtado, corpo burocrático e do acesso às informações sobre os agentes
Gabriel Strautman e Lúcia Ortiz. econômicos, este Banco contribuiu na modelagem das diferentes
Tal percepção levou à avaliação de que ações conjuntas etapas do desenvolvimento brasileiro.
ou articuladas da sociedade civil junto às IFMs e ao O BNDES foi peça-chave no fomento ao nacional-
governo brasileiro poderiam contribuir para a formação desenvolvimentismo, patrocinando a investida do Estado em
de tais mecanismos e apresentar resultados mais amplos e projetos de infraestrutura, insumos básicos e indústria de base,
eficazes para o enfrentamento e a superação dos problemas voltados a dar suporte à industrialização do país, valendo-se do
identificados do que iniciativas individuais, fragmentadas e modelo de “substituição de importações”. Com o esgotamento
dispersas, como vinha ocorrendo até aquele período. deste modelo, no contexto de liberalização econômica dos anos
A Rede Brasil foi concebida basicamente para: 1990, o Banco tornou-se formulador, gestor e financiador do
::. Propiciar a socialização de informações sobre políticas programa de desestatização, voltado a assegurar a “inserção
e projetos, fortalecendo o engajamento de grupos sociais competitiva” do Brasil na economia global. Atualmente, o BNDES
interessados, afetados ou beneficiados, seus representantes e tem contribuído, na esteira das privatizações, para a formação
organizações da sociedade civil em geral; de grande grupos econômicos privados, sob o discurso dos
::. Servir como um fórum coletivo de discussão sistemática e “campeões nacionais”, centrados no setor de commodities
permanente e facilitar a formação de consensos sobre as várias (agropecuária, etanol, papel e celulose, mineração e siderurgia,
problemáticas identificadas; petróleo e gás), com participações cruzadas nos setores de
::. Subsidiar a articulação entre organizações da sociedade civil construção civil, hidroeletricidade e telecomunicações.
no país para ações e intervenções diante do governo e das IFMs; É importante ressaltar que o BNDES foi o condutor oficial
::.Contribuir para o estabelecimento de canais de interlocução e fornecedor de crédito para as privatizações no Brasil, que
com o governo e as IFMs sobre questões relativas a políticas e alienaram centenas de companhias públicas a preços abaixo
projetos de desenvolvimento. do mercado. Juntamente com consultorias internacionais,

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o Banco elaborou os editais de privatização de estatais mercante, saneamento, urbanização e metrôs. O PAC 2, lançado
e disponibilizou recursos públicos subsidiados para os naquele mesmo mês, previa investimentos de R$ 958,9 bilhões
vencedores dos leilões de desestatização. até 2014 e de mais R$ 631,6 bilhões em obras a partir de 2015 –
Como o modelo brasileiro das privatizações priorizou totalizando R$ 1,59 trilhão (US$ 886 bilhões), para os quais o
a venda das estatais em blocos, estimulou a formação de BNDES, a se manter a tendência atual, deve contribuir com
consórcios entre empresas, contando com a participação mais de 50%.
também do BNDES no capital das empresas privatizadas. Os beneficiários preferenciais do crédito do Banco têm sido os
Vários conglomerados dos setores de construção civil, grandes grupos econômicos, forjados no contexto anteriormente
agricultura, extrativismo e energia, que hoje se expandem descrito. Destacam-se aí os grupos Bradesco, Itaú, Votorantim/
internacionalmente graças ao crédito facilitado do BNDES, Aracruz, Odebrecht, Andrade Gutierrez, Grupo Vicunha, Queiroz
ganharam escala internacional exatamente a partir da Galvão, Camargo Corrêa, Grupo EBX, Gerdau, Perdigão/Sadia,
incorporação do patrimônio público, via privatizações. JBS/Bertin, Vale/Bradesco.
Nos anos 2000, com esses capitais já tendo alcançado
internamente ao Brasil taxas de lucro e esquemas de acumulação Tabela 1 - Desembolsos do BNDES
expressivos, foi ainda mais aprofundada a aliança histórica das
Ano Valores
elites com o Estado brasileiro, que, com o impulso creditício (em R$ bilhões)
do BNDES, dedicaram-se com vigor à internacionalização
2003 35,1
das empresas brasileiras. A concentração dos investimentos
2004 40
destes grandes grupos no setor de commodities responde,
2005 47,1
particularmente, à explosão de demanda por estes produtos na
esteira do vigoroso e continuado crescimento chinês1. 2006 52,3

Desde 2003, primeiro ano do governo do ex-presidente Lula 2007 64,9


da Silva, os desembolsos do BNDES aumentaram em quatro 2008 92,2
vezes, tendo passado de R$ 35,1 bilhões (US$ 12,15 bilhões) para 2009 137,4
R$ 139,7 bi (US$ 74,5) no final de 2011, segundo ano do primeiro 2010 168,4
mandato de Dilma Roussef, sucessora e membro do Partido dos 2011 139,7
Trabalhadores (PT), o mesmo de Lula (ver Tabela 1). Fonte: sítio do BNDES na internet.
Esse crescimento da centralidade do BNDES pode ser bem
exemplificado na participação do Banco no financiamento dos Com este volume de desembolsos, o Banco é responsável
quase 400 projetos de infraestrutura que constavam da primeira por 20%, em média, de todo o crédito no país. Sem dúvida, esta
etapa do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado expressiva participação tem ajudado nas taxas positivas de
em 2007, que simboliza os governos Lula e Dilma e que está crescimento da economia, mas com expressivos custos sociais
centrado em obras físicas – aquelas mais visíveis à população. e ambientais não apreciados ou contabilizados. Os grandes
Os financiamentos do BNDES na primeira parte do PAC projetos agropecuários,minerossiderúrgico, hidroelétricos e
somavam, em março de 2010, R$ 117,5 bilhões (US$ 66 bilhões) extrativos têm gerado, por todo o país, graves impactos sobre
de um total de R$ 208 bilhões (US$ 116 bilhões) nos setores de os territórios e o mundo do trabalho. No caso destes grandes
energia elétrica, petróleo e gás, rodovias, ferrovias e marinha empreendimentos, o Banco se compromete, normalmente,

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com o financiamento de 60 a 80% do valor total do projeto, dos desembolsos para a região Nordeste, mas sem, contudo,
tornando-se desta forma fiador e viabilizador dele. alterar o perfil desigual da distribuição regional: em 2010, o valor
Os recursos do Banco têm origem em quatro fontes principais: dos desembolsos para o Sudeste foi de mais de cinco vezes o
repasse do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), voltado para valor destinado para o Nordeste (ESTATÍSTICAS, 2012).
financiar atividades de geração de trabalho e renda e qualificação A presença do BNDES no setor de micro e pequenas empresas
de mão de obra; o retorno dos créditos concedidos; os ganhos é ainda menor se considerarmos que o Banco classifica como
com aplicações e participações; e repasses do Tesouro. A microempresas empreendimentos com faturamento anual de
participação do FAT na receita do Banco é, em média, de 44%, até R$ 2,4 milhões e pequena empresa com até R$ 16 milhões,
sendo, portanto, sua principal fonte de recursos. Sobre o peso um valor dez vezes maior do que o que estabelece o Estatuto
dos repasses do Tesouro, vale assinalar que, de 2008 (no quadro da Microempresa, R$ 244 mil e R$ 1,2 milhão, respectivamente.
da crise financeira internacional) até 2011, foram repassados R$ Estes dados revelam, de um lado, o reforço da desigualdade
230 bilhões por meio de emissões de títulos da dívida pública, regional e, de outro, o insuficiente apoio aos setores mais
segundo dados do Relatório Gerencial do BNDES, de janeiro de geradores de empregos.
2012 . Desse modo, os repasses do Tesouro já têm se constituído
2
O Banco também atua comprando ações no mercado de
na segunda fonte mais importante de receita do Banco. capitais por meio de sua subsidiária, o BNDESPar, cujo volume
O Banco trabalha com diferentes taxas, sendo elas fortemente de participações societárias em 2010 somava R$ 103 bilhões.
subsidiadas e com períodos de carência e pagamento dilatados Com participações no capital dos principais grupos econômicos
nos empréstimos de longo prazo. Normalmente, o BNDES privados do país, o Banco participava, em 2009, no capital de 22
trabalha com a taxa de juros de longo prazo, atualmente em 5,5% das 30 maiores multinacionais brasileiras (ALMEIDA, 2009).
ao ano, acrescida da sua taxa de remuneração (spread) e taxa São também conhecidos os casos de envolvimento direto do
de risco de crédito. Segundo um estudo produzido pelo próprio Banco no financiamento e formatação das fusões e aquisições,
Banco, a taxa média anual de remuneração, com maior peso na como nos casos da Votorantim e Aracruz, Perdigão e Sadia, Itaú
composição da taxa final, caiu de 2,3%, em 2005, para 1,2%, em e Unibanco, Brasil Telecom e Oi, JBS e Bertin e na malfadada
2008 (GIAMBIAGI; RIECHE; AMORIM, 2009). No caso da Usina tentativa de aliança entre o Pão de Açúcar e o grupo francês
Hidrelétrica de Jirau, no Rio Madeira, a previsão é que o consórcio Carrefour. O nível de concentração da economia patrocinado
vencedor tenha cinco anos de carência e vinte para pagar. pelo Banco tem efeitos diretos sobre a vida dos brasileiros. No
Segundo as estatísticas operacionais do BNDES, nos últimos caso, por exemplo, da Perdigão/Sadia, tal fusão representou, em
dez anos, os desembolsos se concentraram,
Tabela 2
em média, 75% em empresas de grande
Comparativo Desembolsos - US$ bilhões
porte e 55% na região Sudeste. No caso do
Ano BNDES BID BID/Bird
porte das empresas, verifica-se, a partir
2005 19,34 9,72 15,05
de 2010, uma tendência de elevação dos
2006 24,03 11,83 18,32
desembolsos para as micro e pequenas
2007 33,32 11,06 18,18
empresas, mas que permanecem abaixo
2008 50,26 10,49 18,1
dos 20% do total desembolsado no período.
Sobre a distribuição regional, verifica-se 2009 68,78 18,56 30,42

uma elevação importante, a partir de 2009, Fonte: Demonstrativos de desembolso BNDES, BID e Bird

13
publicada na imprensa, 80% dos seus financiamentos no
exterior tinham como beneficiários as “quatro irmãs”: as
empreiteiras Odebrecht, Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez e
Queiroz Galvão.
O Banco abriu, em 2009, um escritório de representação
em Montevidéu, no Uruguai, e, em 2010, a “BNDES Limited”,
na cidade de Londres. Esta nova subsidiária em território
europeu tem como objetivos captar recursos e fortalecer
os investimentos brasileiros no exterior. Além disso, ela
foi indicada pelo próprio Luciano Coutinho como possível
administradora do Fundo a ser constituído com os recursos
gerados com a venda do petróleo da camada Pré-Sal. Ainda
em 2010, o BNDES abriu outra subsidiária, a Agência de
As populações têm seus direitos sistematicamente violados: em nome do lucro
Crédito à Exportação do Brasil SA – Exim Brasil, bem como um
alguns segmentos de produtos alimentícios, um controle de até Fundo Garantidor do Comércio Externo. No final de 2011, o
80% do mercado, como alertado pelo Conselho Administrativo governo brasileiro autorizou o Banco a patrocinar processos de
de Defesa Econômica (Cade), órgão responsável pela defesa da aquisição e fusões de grupos brasileiros no exterior. Também
concorrência no país. em 2011, o BNDES fechou, no âmbito dos BRICS (Brasil, Rússia,
A internacionalização de empresas brasileiras patrocinada Índia, China e África do Sul), um acordo de cooperação com
pelo BNDES é notável, particularmente, na América Latina, os bancos de desenvolvimento dos países do bloco. Nele,
Caribe e África Lusófona. Nesse sentido, o Banco vem preveem-se a facilitação de transações e projetos em comum e
constituindo diferentes e agressivos mecanismos institucionais a formulação de um arcabouço que possa prover financiamento
e financeiros para ampliar os investimentos destas mesmas a projetos de interesse comum, visando à constituição de uma
empresas em outros países. É importante chamar a atenção entidade interbancária no futuro.
para o fato de que a entrada do BNDES no financiamento Se a escala alcançada hoje pela atuação do BNDES já
a projetos de empresas brasileiras no exterior não tem se nos obriga a falar de uma nova centralidade do Banco, no
limitado à operação de linhas específicas de financiamento para cenário que se projeta para a próxima década, seu papel
comércio exterior. Assiste-se, com efeito, a um processo rápido tende a se agigantar em conexão com a oligopolização da
de internacionalização do próprio Banco, que hoje já supera economia brasileira. Sem dúvida alguma, tal oligopolização,
em muito, em termos de desembolsos, o Banco Interamericano com todos os seus passivos sociais e ambientais, vem sendo
de Desenvolvimento (BID) e o Banco Internacional para concebida e fomentada deliberadamente como condição da
Reconstrução e Desenvolvimento (Bird),um braço do Grupo internacionalização dos grandes grupos econômicos. Cabe
Banco Mundial (ver Tabela 2). ressaltar, portanto, que a centralidade não se refere apenas
A partir de 2002, o Banco passa a financiar projetos fora ao seu papel de financiador ou de mero executor de políticas
do país, com a contrapartida de que sejam contratados bens definidas pelo governo federal. O Banco é também formulador
e serviços de empresas nacionais. A carteira do BNDES no e compõe o centro decisório do governo sobre as políticas
exterior, somava US$ 13 bilhões em 2010. Segundo matéria de desenvolvimento.

14
em duas agendas prioritárias: a adoção pelo Banco de uma
Trajetória da Plataforma BNDES política pública de informação e a adoção de critérios sociais
e ambientais em seus financiamentos, particularmente
Em julho de 2007, a Plataforma BNDES nascia com o objetivo para os setores de etanol e hidroelétrico. A forma como o
de incidir sobre os rumos do desenvolvimento brasileiro, a Banco recepcionou estas duas agendas revela o seu papel na
partir da atuação sobre o BNDES, órgão do Estado que exerce, viabilização da concentração da economia brasileira.
historicamente, papel central no fomento e na formulação do Após muitas pressões, o BNDES abriu, pela primeira vez na sua
desenvolvimento da base produtiva e financeira do país. O história, de modo parcial, as informações sobre a sua carteira
documento “Plataforma BNDES”, encaminhado ao presidente do de projetos. Em 2009, o Banco criou o “BNDES Transparente”.
Banco, Luciano Coutinho, em junho de 2007, traz um diagnóstico No entanto, os dados constantes no sítio eletrônico do Banco
crítico sobre a atuação desta instituição financeira, bem como cobrem apenas os projetos contratados a partir de 2008; antes
proposições no sentido da sua reorientação. disso não se tem informação acerca dos projetos. Isso fere não
O diagnóstico já destacava a reorientação do Banco, a apenas o princípio da publicidade na administração pública,
partir das privatizações dos anos 1990, como “agente de um assegurado pelo Art. 37 da Constituição Federal, como também
desenvolvimento que persegue a ‘inserção competitiva‘ do País contraria a lei de acesso à informação pública (Lei No12.527/2011),
no contexto global (...) no sentido de priorizar o atendimento que entrou em vigor no dia 16 de maio de 2012.
dos mercados externos; favorecer setores exportadores, em Já no caso dos critérios sociais e ambientais, o Banco vem
geral com baixa agregação de valor; e internacionalizar capitais assumindo o “discurso verde” e a “prática cinza”. Às investidas da
de origem nacional”. Plataforma no sentido de contribuir para a adoção de critérios e
A crítica dirigia-se ao papel do BNDES no financiamento à salvaguardas sociais e ambientais nos procedimentos e contratos,
concentração econômica, viabilizando grandes conglomerados o Banco foi evasivo, quando não refratário. As resistências do
empresariais e financeiros, prioritariamente nos setores de Banco em mudar procedimentos e práticas conduziram as
mineração e siderurgia, papel e celulose, agropecuária, petróleo organizações da Plataforma BNDES a chamar atenção para o fato
e gás, hidroelétrico e etanol, com intensos e extensos impactos de que, ao não assumir sua responsabilidade social e ambiental,
sociais e ambientais. o Banco agia como corresponsável pelas violações de direitos
As proposições contidas no documento apontam para a geradas pelos projetos por ele financiados.
necessidade de se estabelecer mecanismos de controle social Dessa forma, a Plataforma organizou no final de 2009 o I
sobre a atuação do Banco, bem como sua reorientação em Encontro Sul-Americano de Populações Atingidas por Projetos
favor de uma maior diversificação produtiva e descentralização Financiados pelo BNDES. Uma carta, resultado do Encontro,
econômica. Tais proposições foram formuladas em quatros em que a Plataforma reafirmava suas reivindicações, foi
eixos: publicidade e transparência; mecanismos de participação encaminhada a Luciano Coutinho, em 25 de novembro de 2009.
e controle social; critérios sociais e ambientais a serem Ele limitou-se a dizer, diante de uma delegação de representantes
observados na análise, aprovação e acompanhamento dos de populações atingidas pelas Hidrelétricas de Jirau e Santo
projetos; e políticas setoriais voltadas à inversão de prioridades da Antonio, no Rio Madeira, e de Belo Monte, em Altamira, pelas
política operacional do Banco. plantações de eucalipto no sul da Bahia e norte do Espírito Santo
Até o final de 2009, a Plataforma estabeleceu uma interlocução e pelas intervenções brasileiras na Bolívia e no Equador, que não
direta com o gabinete da presidência do Banco, concentrando-se se preocupassem porque medidas já estavam sendo tomadas

15
para a adoção de uma política socioambiental pelo Banco. Após que já indicava a necessidade de maior eficiência, leia-se
esta conversa, a interlocução da Plataforma com a presidência celeridade, nos processos de licenciamento ambiental. Como
do Banco foi totalmente interrompida. No final de 2010 foi se verá ao longo deste trabalho, o SEM DPL apresenta outras
formalmente aprovada a “Política Socioambiental do Sistema do condicionalidades que também apontam para a flexibilização
BNDES”, sem que o Banco tivesse feito uma consulta ampla com da legislação e gestão ambiental e para a criação de um
setores organizados da sociedade. mercado do clima no país.
Diferentemente do que a formalização da iniciativa faria
Política Socioambiental do BNDES supor, persiste no BNDES, mesmo depois de instituída a
sua Política Socioambiental, a situação reconhecida em um
Embora já dispusesse de uma nomeada “política ambiental” documento do próprio SEM DPL, do Bird, de que “um problema
desde os anos 1980, foi somente em novembro de 2010 que o que o Departamento Ambiental e Social do BNDES reconhece e
BNDES incorporou, em um capítulo específico de sua Política que luta para resolver é que a maioria dos projetos financiados
Operacional, a “Política Socioambiental”. De acordo com o diretamente pelo BNDES não passaram pelo pleno processo de
próprio Banco, “a decisão por essa nova forma de organização avalização ambiental e social” (grifo nosso).
da Política Operacional reforça tanto a aplicação das diretrizes Nas diretivas da Política Socioambiental está o
socioambientais para elaboração de produtos, linhas, comprometimento formal do Banco com o que determina a
programas e fundos do BNDES, como a prática mais alinhada legislação ambiental brasileira, seja a observância das devidas
à incorporação das questões social e ambientais no principal licenças (prévia, de instalação e operação), seja o compromisso
macroprocesso operacional do BNDES: o fluxo de concessão com a avaliação e correção de impactos esperados nos projetos.
de apoio financeiro”. Tal fluxo compreende o que também Mas, como se verá adiante, se o Banco avança em instrumentos
se chama, na linguagem do Banco, de “ciclo do projeto”, de avaliação de riscos socioambientais, ele não deixa claro os
compreendendo as etapas de enquadramento, análise, mecanismos contratuais de que se vale para a mitigação e/
aprovação, contratação e acompanhamento das operações. ou correção de impactos esperados, nem tampouco de que
A “Política Socioambiental do Sistema BNDES” foi instituída instrumentos e procedimentos de acompanhamento das
como contrapartida do Empréstimo Programático de Política operações dispõe para a correção de tais impactos. Dito de outro
para o Desenvolvimento em Gestão Ambiental Sustentável modo, o Banco avalia os riscos socioambientais dos projetos
Brasileira (SEM DPL, na sigla em inglês) do Banco Mundial, que financia, mas não parece, de fato, levá-los em conta na
no valor de US$ 1,3 bilhão – em que a política ambiental desta operacionalização de seus financiamentos.
instituição serve de referência para o BNDES. Os empréstimos Para além da exigência do licenciamento, na fase de
do Bird, historicamente associados às malfadadas políticas enquadramento e análise dos projetos, o Banco vem
de ajuste fiscal, apresentam-se agora em sua versão soft de estabelecendo alguns mecanismos de aferição e avaliação
condicionalidades socioambientais. dos riscos socioambientais dos projetos. Já em 2008, o Banco
Vale dizer que este empréstimo foi precedido, como anexou ao Roteiro de Informações para a Consulta Prévia dois
contextualiza a pesquisadora Lúcia Ortiz, por outro questionários, com a finalidade de avaliar o impacto ambiental
empréstimo do Bird para o Ministério do Meio Ambiente e social esperado do projeto (Anexos 6 e 7, respectivamente).
(MMA), intitulado Projeto de Assistência Técnica para a O Banco se comprometeu, igualmente, em produzir “guias
Agenda de Sustentabilidade (TAL SAL, na sigla em inglês), socioambientais setoriais” a fim de “apoiar tecnicamente as

16
unidades operacionais do BNDES na análise socioambiental
de projetos”, com a indicação de “diretrizes de desempenho
socioambiental”, bem como de “riscos socioambientais
relacionados com a operação” por setor. Os primeiros guias
produzidos foram para os setores de açúcar e álcool, soja
e pecuária. Segundo consta na própria política, “os guias
têm caráter orientador e seu conteúdo não cria obrigações
adicionais às decorrentes da legislação brasileira e das
resoluções da Diretoria do BNDES” (grifo nosso).
Na etapa do enquadramento das operações, o Banco realiza,
com base na avaliação dos aspectos sociais e ambientais
dos beneficiários, a “Classificação da Categoria Ambiental”
do empreendimento:
A – “atividades intrinsecamente relacionadas a riscos
de impacto ambiental significativos, em que o licenciamento
requer estudos de impacto, medidas preventivas e ações
mitigadoras”;
B – “atividades envolvendo impactos ambientais mais leves
ou locais e requer avaliação e medidas específicas”;
C – “atividade não apresenta, em princípio, risco ambiental
significativo”.
Segundo o que determina a Política Socioambiental, “a
Categoria Ambiental estabelecida para o empreendimento
determina procedimentos distintos nas fases de Análise
e Acompanhamento da operação”. Embora a Plataforma
BNDES tenha reclamado sem sucesso de que o Banco desse
publicidade ao enquadramento dos projetos pelas categorias
ambientais, pode-se constatar, valendo-se dos casos de
megaprojetos apresentados neste estudo, que tal classificação
não tem redundado em procedimentos distintos nem de
análise, muito menos no acompanhamento da operação. As
informações sobre impactos ambientais esperados não se
transformam em condicionantes ou salvaguardas nos contratos
de financiamento, caracterizando-se como mero levantamento
de informações a respeito dos projetos financiados e não, como
deveria ser, de instrumentos efetivos de qualificação ambiental
dos desembolsos do Banco.

17
Na etapa de análise, aprovação e contratação dos projetos, o não poderiam ser beneficiados em áreas dos biomas da Amazônia
Banco afirma realizar a “avaliação do beneficiário sobre a sua e do Pantanal; de termelétrica a combustíveis, que estabelece
regularidade junto aos órgãos de meio ambiente, pendências restrições na emissão de partículas na atmosfera; e da pecuária/
judiciais e efetividade da atuação ambiental”. Considerando frigoríficos, que determina o cadastramento dos fornecedores e
novamente os casos aqui tratados, em que ocorrem graves e a exigência da rastreabilidade progressiva do gado. Vale dizer que
recorrentes irregularidades e violações de direitos associadas a a aplicação de tais salvaguardas está baseada, invariavelmente,
projetos financiados pelo Banco, fica também evidente que esta na autodeclaração do tomador do empréstimo, não contando
avaliação, caso efetivamente ocorra, não tem efeitos práticos. novamente o Banco com instrumentos de monitoramento e
O Banco afirma, ainda, que nesta etapa empreende a “avaliação fiscalização do seu cumprimento.
dos empreendimentos quanto aos principais impactos sociais e Além da revisão de suas práticas operacionais, a Política
ambientais, inclusive no seu entorno, sua correspondência, quando Socioambiental do BNDES inclui mudanças na estrutura
for o caso, com as ações preventivas e mitigadoras propostas no organizacional do Banco. Foi instituída, também em 2010, a área
licenciamento ambiental”, bem como a “inclusão de possíveis ambiental, que elevou o status da temática ambiental, anteriormente
condicionantes de natureza social e/ou ambiental estabelecidas a limitada a um departamento para uma superintendência
partir da análise realizada (do cliente e do empreendimento), em do Banco. Tal superintendência compreende hoje o antigo
complemento às exigências previstas em lei, quando for o caso”. Departamento Ambiental do Banco e o Fundo Amazônia.
Embora nos faltem os termos dos contratos de financiamento A regulamentação do Fundo Amazônia, em 2008, também
firmados pelo Banco e os empreendimentos estudados, pode-se consta como uma das contrapartidas do empréstimo SEM
afirmar, tomando mais uma vez os casos deste estudo, que tais DPL, do Banco Mundial. A gestão pelo BNDES de novos fundos
avaliações e condicionantes ou não são praticadas ou são nulas. ambientais voltados a estruturar um mercado do clima no país,
Mas, talvez, o que mais chame a atenção na descrição da Política como o Fundo Amazônia e o Fundo Nacional sobre Mudança
Socioambiental do BNDES seja a forma como o Banco descreve a do Clima, será tratada no artigo de Lúcia Ortiz. Outro aspecto
etapa de “acompanhamento das operações”, onde se lê que “são da Política Socioambiental a ser abordado pela pesquisadora
verificados: o cumprimento de eventuais medidas mitigadoras, diz respeito à abertura de uma linha de crédito pelo Banco para
obrigações em termos de ajuste de conduta e condicionantes qualificar órgãos estaduais de licenciamento, no contexto de
presentes no contrato e nas licenças ambientais, quando for o avanço das reformas no sistema de concessão de licenças e
caso”. Restaria perguntar, à luz dos casos aqui estudados, quando gestão ambiental, avaliado pelo Banco Mundial como um dos
é que o Banco entende ser o caso de ele verificar o cumprimento principais entraves para o desenvolvimento brasileiro.
de condicionantes, pois, novamente, parece tratar-se de letra
morta. Tal percepção é ainda mais reforçada pelo fato de que não
há nenhuma menção do Banco sobre se há e quais seriam os
* Responsável pela organização desta publicação, João Roberto Lopes Pinto é Coordenador do
mecanismos de acompanhamento dos projetos intrinsecamente Instituto Mais Democracia e desde a IX Assembleia Geral da Rede Brasil, realizada em agosto de
2012, é membro da Coordenação Nacional da Rede Brasil.
impactantes em termos sociais e ambientais.
Somente para três setores específicos o BNDES estabelece 1 Para uma análise mais detida sobre o papel do BNDES nos últimos vinte anos, ver TAUTZ, C. Et alli, 2011.
obrigações adicionais ao que determina a lei, o que o Banco chama 2 Segundo o economista Mansueto Almeida, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
de “diretrizes e critérios socioambientais setoriais específicos”. Este é (Ipea), “até 2008, o estoque de empréstimos do Tesouro ao BNDES era de R$ 10 bilhões, e hoje está em R$
311,8 bilhões (dados de fevereiro de 2012). Com os R$ 45 bilhões a mais que o governo vai emprestar ao
o caso das salvaguardas estabelecidas para os setores de etanol, que BNDES [provavelmente, entre 2012 e 2013], o volume chegará a quase R$ 360 bilhões” (O ESTADO, 2012).

18
Megaprojetos
e violações de direitos
Marilda Teles Maracci*

E
ste texto apresenta exemplos emblemáticos de grandes Os estudos de caso apresentados nesta publicação abordam
empreendimentos que se caracterizam pela lógica quatro setores e se aprofundam em oito megaempreendimentos,
da minimização de custos financeiros relacionados à sendo um deles fora do Brasil. São eles: no setor celulósico,
mitigação e compensação dos impactos socioambientais , em 1
a Veracel Celulose S.A., no extremo sul da Bahia, e a CMPC
detrimento dos critérios de eficiência econômica e de justiça Celulose Riograndense, em Guaíba, no Rio Grande do Sul; no
social e ambiental. Atuam em consonância com “um certo setor energético, as Usinas Hidrelétricas (UHEs) Santo Antônio
padrão de acumulação do capitalismo brasileiro, inaugurado e Jirau, no Rio Madeira, em Rondônia, e Belo Monte, na bacia
com as privatizações e a liberalização comercial dos anos 1990, do Rio Xingu, no Pará; no setor da construção civil, o ProCopa,
baseado na formação e fortalecimento de conglomerados em Fortaleza, no Ceará, e outras grandes obras urbanas nas
Atossa Soltani/Amazon Watch

privados (nacionais e estrangeiros), fomentados pelos fundos doze cidades brasileiras que sediarão a Copa do Mundo, em
públicos, via capital estatal e paraestatal (empresas estatais e 2014, e as Olimpíadas, em 2016, no Rio de Janeiro; e, por último,
fundos de pensão)” .2

19
no setor da mineração/siderurgia, o conglomerado industrial- megaempréstimos concedidos pelo Banco Nacional de
siderúrgico-portuário da ThyssenKrupp Companhia Siderúrgica Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), com condições
do Atlântico (TKCSA), na Baía de Sepetiba, no Rio de Janeiro, e incrivelmente favoráveis. No caso do projeto de exploração
a Vale Moçambique Ltda., na Bacia Carbonífera de Moatize da de carvão mineral da Vale em Moçambique, o BNDES não
província de Tete, em Moçambique, na África. Um fichário repleto disponibiliza informações sobre a sua participação nos
de informações e detalhes sobre estes oito casos simbólicos investimentos. No entanto, o Banco possui aproximadamente
encontra-se no Contexto Territorial, na parte final deste livro. 10% do consórcio ValePar, controlador da Vale com 53% do capital
Eles explicitam que o mesmo padrão de sistemáticas e graves votante. Ele é também detentor das denominadas “ações de ouro”
violações de direitos é repetido pelos mesmos conglomerados (golden share), adquiridas no período da privatização, o que lhe
empresariais onde quer que eles se instalem, independente das confere o poder de veto sobre as principais decisões da empresa.
diferenças de dinâmicas e da diversidade regional, cultural, social, É importante ressaltar que o BNDES cumpre, nos governos
econômica e ambiental dos povos e das regiões. Lula e Dilma, o papel de indutor do crescimento, promovendo
Os megaprojetos em questão ilustram, de modo quase a “transferência massiva de recursos públicos, acompanhada
visceral, o desenvolvimentismo historicamente praticado no de flexibilização institucional”4. Neste sentido, “chama atenção
Brasil que é fundamentado na concepção de crescimento os setores de mineração e siderurgia, etanol, papel e celulose,
econômico (aumento da quantidade de bens, produtos e petróleo e gás, hidroelétrico e agropecuária, que receberam
serviços produzidos) e na busca da inserção competitiva do juntos quase a totalidade do meio trilhão de reais desembolsados
Brasil no contexto global, através do “aumento na quantidade pelo BNDES, no período Lula”5.
dos produtos exportados e na quantidade de grandes empresas Desde a década de 1950, o BNDES atua como instrumento
brasileiras com presença forte no mercado internacional” (Rede de fomento da indústria brasileira. Desse modo, favoreceu
Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, consideravelmente, por exemplo, a implantação de complexos
2008, p. 13) . Trata-se de um modelo que concentra renda e
3
agroindustriais celulósicos, como a Veracel e a Riograndense,
poder e produz elevados custos socioambientais. que ainda hoje contam com tais fomentos. Através dos Planos
É oportuno observar que, no que se refere aos de Aceleração do Crescimento (PAC I e PAC II), os governos Lula
empreendimentos produtivos, grande parte ou quase a totalidade e Dilma direcionam prioritariamente recursos, via BNDES, na
da produção destina-se à exportação direta, a exemplo da expansão da infraestrutura. Como é o caso da construção das
celulose, mineração e siderurgia, ou à exportação indireta, caso criticadas usinas hidrelétricas na Amazônia, que são implantadas
das hidrelétricas em construção na Amazônia, em que grande sobre áreas de rica sociobiodiversidade, a exemplo dos territórios
parte da energia produzida será destinada a “grandes indústrias indígenas. Nessa mesma linha de “aceleração do crescimento”
eletrointensivas que exportam alumínio e minério de ferro com a partir de grandes investimentos públicos, megaobras urbanas
baixo valor agregado, gerando pouquíssimos empregos na de preparação para a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016
região; e não para atender as populações mais pobres, como são construídas seguindo referências urbanísticas das Cidades
afirma o discurso oficial do governo” (Carta da Aliança em Globais e promovendo dramáticos deslocamentos compulsórios
Defesa dos Rios Amazônicos para Dilma Rousseff, das populações de baixa renda.
Brasília, 8 de fevereiro de 2011). Indiferente aos questionamentos de parte da sociedade civil
Todos os megaempreendimentos aqui abordados têm organizada em relação às suas prioridades de investimento, o
outra característica comum: contam privilegiadamente com BNDES cresce visivelmente: “desde 2005 o volume de créditos

20
do BNDES aumentou 391% e é maior
do que o Banco Mundial” (Garcia,
2011)6. Com participação acionária na
maioria das empresas envolvidas com
os megaempreendimentos, o BNDES
não apenas financia, como é também
corresponsável pelas opções de
investimentos. De janeiro a agosto de
2006, o BNDES aprovou financiamentos
de R$ 3 bilhões para projetos de expansão
da produção de papel e celulose,
que somam R$ 5,5 bilhões7. “Para a
Veracel II [ampliação da Veracel], o
BNDES desembolsará R$ 1,4 bilhão8. Se
compararmos este valor com a quantidade
de empregos gerados, cada posto de
trabalho no novo projeto da Veracel

Renato Cosentino
custará R$ 486.111,009.“
Para os empreendimentos das UHEs
de Santo Antônio e Jirau, em Porto Mais de 150 mil pessoas serão removidas de suas casas por causa dos megaeventos esportivos: jogo sujo
Velho, o BNDES destinou um total de
R$ 13,3 bilhões, apesar dos pesados questionamentos quanto certo comportamento padrão ou falhas crônicas compondo as
à viabilidade econômica e ambiental dessas obras desde o violações constatadas tanto no processo de planejamento quanto
início dos processos de licenciamento . “O valor do possível
10
nas fases de construção, agravando-se na fase de operação.
novo empréstimo, anunciado pelo presidente do Banco, E, como já afirmado anteriormente, o BNDES não se vale de
Luciano Coutinho, não foi informado, mas o BNDES havia se critérios socioambientais na análise e aprovação dos projetos,
comprometido a financiar até 80% (cerca de R$ 25 bilhões) dessas nem tampouco de mecanismos de acompanhamento dos
obras” (Plataforma BNDES, 2011) . Segundo informações
11
impactos dos projetos que financia.
do Ministério Público Federal (MPF), disponibilizadas no sítio Os megaempreendimentos são especialmente emblemáticos
eletrônico do Movimento Xingu Vivo Para Sempre, em fevereiro no que se refere às injustiças socioambientais, pois geram uma
de 2012, “o empréstimo solicitado pela Norte Energia para enormidade de graves impactos sociais, ambientais, fundiários,
Belo Monte é de R$ 24,5 bilhões e existem onze processos violações sistemáticas de direitos ambientais, trabalhistas e
questionando o empreendimento que ainda não foram julgados direitos da pessoa humana (indivíduo e coletivo), violam acordos
(...) considerando um cenário de custo total do empreendimento internacionais, leis nacionais, políticas fiscais ou políticas
de aproximadamente R$ 30 bilhões (previsão mais recente de setoriais específicas, além de forjar e aprofundar desigualdades
custos para Belo Monte)” . 12
econômicas, sociais e regionais, historicamente produzidas
Observa-se, em todos os empreendimentos aqui tratados, um nas áreas de implantação dos referidos empreendimentos e

21
migração na fase da construção da UHE
Belo Monte, estimada em mais de 100
mil pessoas, é um exemplo recente
deste recorrente subdimensionamento.
O resultado é o aumento exponencial da
população e da ocupação desordenada
dos aglomerados urbanos nos locais
próximos à implantação da obra. Os
problemas decorrentes são o aumento
considerável da violência, de homicídios,
do tráfico de drogas, da venda de
bebidas, da prostituição (inclusive
infantil), o colapso nos serviços e
espaços públicos (hospitais, ruas, escolas,
postos de saúde, etc.), a elevação do

Alexis Bastos/Rioterra
custo de vida, entre outros.
Estas violações “contribuem para a
fragilização dos mecanismos de controle
Antes mesmo do início das obras no Rio Madeira, a população já sofria os impactos: mercantilização da natureza social conquistados pela sociedade
civil e impactam de modo severo
seu entorno. Todas estas violações se avolumam na conta do e, às vezes, irreversível o meio ambiente e as populações”13,
passivo das empresas financiadas pelo BNDES e, portanto, na muitas destas já fragilizadas no campo dos direitos territoriais
conta do próprio Banco, o que o torna inquestionavelmente e/ou socioambientais. Dentre outros feitos perversos da
corresponsável pelas violações. implementação dos megaprojetos, destacam-se o das remoções
Este é o caso da migração de trabalhadores, recorrentemente compulsórias de comunidades urbanas empobrecidas e o da
subdimensionada nos Estudos de Impactos Ambientais expropriação de populações das áreas rurais de seus meios de
(EIAs). Trata-se dos deslocamentos de expressivas massas de produção, territórios e modos de viver, acentuando os níveis de
trabalhadores que ocorrem em função das ofertas temporárias degradação ambiental e de pobreza. Este é o caso das populações
de empregos na fase de construção/implantação dos projetos. que trabalham e vivem no meio rural em regime de economia
No entanto, após a finalização desta fase, os trabalhadores familiar e relação comunitária, como os ribeirinhos, extrativistas,
ficam sem emprego e têm suas condições de vida agravadas no pescadores, agricultores familiares, indígenas e quilombolas.
território que, via de regra, já é bastante limitado no provimento Explicitamente, diversas categorias de trabalhadores envolvidos
dos serviços públicos. O subdimensionamento de problemas nestes empreendimentos sofrem as mais variadas violações de
associados ao deslocamento de milhares de trabalhadores para direitos, inclusive condições de trabalho análogo ao escravo,
as áreas atingidas, gerando inchaços urbanos, crescimento conforme amplamente denunciado pelos movimentos sociais.
desordenado e falta de perspectivas, constitui uma característica Entre as características que compõem este quadro estão
comum a estes megaprojetos financiados pelo BNDES. A as chamadas “relações promíscuas” entre diversas escalas

22
governamentais e do parlamento e as grandes corporações que se verifica, além da ausência de diálogo e transparência, a
empresariais (nacionais/transnacionais), a exemplo da relação falta de negociação prévia de projetos de remoções populacionais
entre o setor elétrico do governo – Ministério de Minas e Energia compulsórias, bem como das alternativas existentes. Inclui-
(MME), Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e Eletrobrás – se, em relação aos demais casos no Brasil, o processo de
e grandes construtoras, como Odebrecht, Camargo Corrêa e licenciamentos por órgãos ambientais de EIAs “incompletos
Andrade Gutierrez . Vale destacar também que as construtoras
14
e distorcidos da realidade como base para a realização de
ocupam, juntamente com o setor celulósico, mineradoras audiências públicas” que têm apenas caráter protocolar (e não de
e siderúrgicas, lugares privilegiados no ranking dos grandes sério e democrático debate público), conforme exaustivamente
doadores para campanhas eleitorais a cargos executivos e denunciado pelos movimentos sociais. Incluem-se, ainda,
proporcionais. Os favorecimentos decorrentes destas relações as desconsiderações dos parcos resultados das audiências
são viabilizados pela ausência de transparência e de vigilância na tomada de decisões sobre a viabilidade ambiental, social
social, situação esta que se agrava “quando se tem, por um e econômica dos empreendimentos em questão, bem como
lado, a hipertrofia do poder de algumas corporações e, de o descumprimento das já insuficientes condicionantes
outro, a fragilidade do sistema brasileiro de financiamento de determinadas nos EIAs, mesmo estas sendo apresentadas sempre
campanhas, abrindo brechas para que tais favorecimentos sejam de modo subestimado nos relatórios.”Inúmeras denúncias,
recompensados por apoios de campanha, declarados ou não” apelos, demandas e preocupações dos povos indígenas e dos
(BADIN, PINTO, TAUTZ & SISTON, 2010, p. 7) . A sobreposição
15
movimentos sociais são ignoradas pelo governo”, denuncia o
de interesses privados sobre os públicos torna-se ainda mais Movimento Xingu Vivo16.
incidente se considerarmos a realidade local, de maior fragilidade Dentre as violações envolvendo os projetos relativos à
institucional, em que, na maioria dos casos, as prefeituras Copa e às Olimpíadas, são simulados estudos ambientais e
municipais são carentes de recursos e as possibilidades de processos de licenciamento ambiental, em um procedimento
controle social são ainda mais frágeis. de exceção que revela clara infração ao estado de direito
Observa-se, portanto, que em todos os casos aqui vigente, segundo denúncias feitas pela Articulação Nacional
apresentados as decisões no planejamento das implantações dos Comitês Populares da Copa e das Olimpíadas (Ancop),
destes megaprojetos “são tipicamente orientadas mais por que reúne organizações populares das doze cidades-sede da
uma lógica privada do que critérios de eficiência econômica, Copa, Segundo o “Dossiê Megaeventos e Violações de Direitos
justiça social e sustentabilidade ambiental, ou seja, interesses Humanos no Brasil”, verificam-se “(...)atropelos legais, aportes
públicos estratégicos, consagrados no arcabouço legal a partir da adicionais de recursos públicos, irregularidades nos processos
Constituição Federal de 1988” (Movimento Xingu Vivo Para de licenciamento de obras e inconsistência e incompletude de
Sempre, Carta para Dilma, 8 de fevereiro de 2011). alguns projetos licitados sem qualquer segurança econômica,
É bastante grave a falta de acesso à informação e de ambiental e jurídica”. Esta situação repercute nas “violações de
participação informada das populações locais e, ainda, a direitos dos trabalhadores nas obras dos estádios e dos projetos
ausência de diálogo entre o governo e a sociedade civil no de infraestrutura,(...) a despeito das cifras milionárias destinadas
planejamento destes setores econômicos, o que constitui outro às obras”. Por estas e outras violações envolvendo as obras para
comportamento padrão em todos os estudos de caso abordados a Copa e as Olimpíadas, constata-se que o padrão de violações
aqui. Nesse sentido, cabe destaque para o caso das obras de perpetradas no campo é reproduzido no espaço urbano.
infraestrutura para a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016, em Tal procedimento revela a total desconsideração e abandono

23
agressivamente pelas transgressões aos seus
direitos, negando a existência de impactos
negativos e riscos associados (desconsiderando,
inclusive, informações científicas disponíveis),
a exemplo dos grupos indígenas que vivem
especialmente nas áreas do avanço desenfreado
de hidrelétricas na Amazônia. É também o que
ocorre nas regiões onde enormes extensões
de terras são apropriadas para o plantio da
Leonardo Melgarejo

monocultura de eucalipto para indústrias de


celulose, desterritorializando preferencialmente
populações tradicionais camponesas e
indígenas, como é o caso dos Tupinambás
no extremo sul da Bahia, onde opera a
transnacional Veracel Celulose20. A não realização da oitiva das
comunidades indígenas, num claro descumprimento do artigo
231 da Constituição Federal e da Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), compõe o rol das falhas crônicas
mais evidentes nestes casos.
Leonardo Melgarejo

Em relação ao costumeiro descumprimento da legislação


ambiental, ocorre uma franca violação das normas que regem
os procedimentos de licenciamento ambiental, a exemplo das
As mulheres têm feito um enfrentamento permanente à indústria da celulose: em defesa da vida concessões das licenças de instalação e de operação antes
de serem atendidas as condições das licenças prévias. Esta
de experiências inovadoras com capacidade de propostas violação figura como um comportamento padrão nestes tipos de
alternativas ao modelo de desenvolvimento hegemônico, tanto empreendimentos no Brasil. Neste contexto, verifica-se uma forte
aquelas protagonizadas pelas camadas populares em suas ocorrência de atos de improbidade administrativa envolvendo o
diferentes expressões socioculturais quanto aquelas resultantes poder Executivo nas escalas local e federal dos empreendimentos.
de subsídios, análises e recomendações de renomados Alguns exemplos são o favorecimento de interesses das empresas
especialistas, como o estudo crítico realizado por um Painel de em detrimento dos direitos socioambientais, bem como o delito
Especialistas tornado público em 2008 , a Carta à Presidente
17 de corrupção passiva e ativa no poder Legislativo, particularmente
Dilma, enviada por Vinte Associações Científicas em 19 de maio na escala local, conforme denúncia apresentada em fartos
de2011 , e a Carta à Dilma Rousseff, enviada por mais de 350
18 documentos e relatórios produzidos pelos movimentos sociais, e
acadêmicos em 1o de junho de 201119. já mencionado anteriormente.
Ainda em relação aos estudos prévios, estes desconsideram a Os processos de planejamento, implantação e operação destes
dinâmica ambiental e social dos territórios (relações territoriais empreendimentos são fortemente marcados pela atuação do
específicas), das populações tradicionais atingidas direta e Ministério Público (Federal e Estaduais), inclusive do Trabalho,

24
pelo ajuizamento de grande quantidade de Ações Civis Públicas, problemas de transporte e segurança, incluindo demissões e
envolvendo também expressiva quantidade de disputas judiciais ameaças de demissão.
em função de um largo espectro de crimes de violações de Chamou a atenção da sociedade civil organizada no Brasil o
direitos trabalhistas e socioambientais, constituindo uma situação fato de os governos do distrito de Moatize e da Província de Tete
de extrema gravidade no campo dos direitos humanos. terem acionado a Polícia da República de Moçambique (PRM) e
Segundo a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego a Força de Intervenção Rápida (FIR) para reprimirem de forma
no Estado de Rondônia (SRTE/RO), as hidrelétricas de Santo brutal e violenta os protestos das mais de 700 famílias reassentadas
Antônio e Jirau receberam, cada uma, mais de mil autuações pela empresa Vale Moçambique na região de Cateme, no dia 10
por violações à legislação trabalhista. Esta situação decorre de janeiro de 2012. A FIR é uma unidade da polícia moçambicana
do elevado nível de terceirização dos empregos e da intensa conhecida no país pelas repressões violentas e pelo uso excessivo
precarização do trabalho, incluindo casos comprovados de de força contra civis desprotegidos. Curiosamente, uma unidade
trabalho escravo. Também cabe destacar que a Veracel Celulose da FIR, alimentada por fundos da empresa Vale, está instalada nas
está sob investigação do Ministério Público do Trabalho, estradas que conduzem a Tete e Cateme22.
envolvida em 863 processos na Justiça do Trabalho (dados
até 2007) e um acúmulo de multas determinadas pelos órgãos
públicos ambientais, além das dezenas de Ações Civis Públicas
movidas pelos Ministérios Públicos Federal e Estadual da Bahia.
No caso da UHE Belo Monte, já se acumulam treze ações
ajuizadas pelo Ministério Público Federal, no estado do Pará,
contra as ilegalidades e violações de direitos humanos21, além das
ações movidas pelo Ministério Público do Trabalho (MPT).
Neste contexto de dramáticos conflitos sociais e ambientais, as
cooptações, perseguições, criminalizações e ameaças de morte,
entre outras ações por parte das empresas, em parceria com forças
policiais militares e da área judicial, compõem praticamente o

Daniele Ribeiro, Justiça Ambiental (JA)- Amigos da Terra Moçambique


cotidiano de pessoas, comunidades, movimentos e entidades
civis que integram os coletivos de resistência às violações dos
direitos aqui tratados. Este processo é verificado em todos os
oito casos de megaprojetos trazidos nesta publicação. É bastante
fácil constatar o forte aparato policial que fornece segurança às
empresas construtoras, como a situação em pleno curso vivida
pelos trabalhadores da construção da UHE Belo Monte e do
complexo hidrelétrico no Rio Madeira. Mais grave ainda são as
denúncias do uso de milícias na segurança da TKCSA. As greves
dos operários dos canteiros de obras destes empreendimentos
denunciam situações de superexploração do trabalho, com longas
jornadas e baixos salários, falta de atendimento adequado à saúde, A Vale Moçambique tem impactado de modo drástico a comunidade de Moatize: acima da lei

25
A chantagem locacional também é um dos aspectos do intensivo de agrotóxicos e formicidas24. Nessa conta, devem-
comportamento padrão destes projetos. Ela é efetivada por meio da se incluir o alto consumo de água pelas plantações e fábricas
fábula da geração de empregos e de “(...) informações distorcidas e de celulose e a consequente redução de água disponível nas
enganosas sobre os empreendimentos, caracterizando-se como comunidades vizinhas devido à rápida secagem de rios, córregos
uma espécie de panaceia para os problemas de desenvolvimento e lagos, resultante dos cultivos de eucalipto. Alguns anos depois
regional, como se, em um passe de mágica, os empreendedores do plantio, as plantações de monocultura têm um impacto
fossem capazes de zerar um déficit histórico de políticas públicas considerável sobre a recarga hídrica na superfície e no lençol
(...)” (Carta da Aliança em Defesa dos Rios Amazônicos freático (REVISTA SCIENCE, 2004)25. “(...) Os rios e lagos que restam
para Dilma Rousseff; 8 de fevereiro de 2012)23 e a produção de estão envenenados por causa do uso de veneno na plantação”,
desigualdades econômicas e sociais. afirmam moradores da comunidade de Ponto Maneca, município
As localizações destes empreendimentos, que na sua maioria de Eunápolis, na Bahia. É fato que a implantação da Veracel, nesta
obedecem a uma lógica de intervenções físicas de grande região, causou uma considerável redução da sociobiodiversidade,
envergadura, resultam basicamente de escolhas que se dão atingindo milhares de pessoas, entre indígenas, agricultores
conjuntamente ou com o aval dos governos federal, estaduais familiares, quilombolas e pequenos povoados26.
e municipais. São áreas de vulnerabilidade social (situações de Nos casos que envolvem as atividades da empresa Vale, por
pobreza, privação social e vulnerabilidade institucional diante exemplo, são alarmantes os níveis de poluição atmosférica
da precarização de políticas públicas), áreas de vulnerabilidade com particulados provenientes de ferro e de emissões de CO2: a
socioambiental no território, áreas com populações já Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA), uma joint venture
enraizadas desprovidas de regularização fundiária e áreas onde da Vale com a ThyssenKrupp, “vem causando inúmeros impactos
aparecem como primeiras vítimas povos indígenas, ribeirinhos, negativos na saúde, no meio ambiente e na renda de cerca de
comunidades de pescadores, quilombolas, entre outras. Foi assim 8.000 famílias de pescadores artesanais e centenas de famílias
em Moçambique, na Baía de Sepetiba, no extremo sul da Bahia e residentes em Santa Cruz, no Rio de Janeiro” (Campanha
assim continua, sucessivamente, a acontecer. Esta mesma lógica ‘PARE A TKCSA!’, 2012). Segundo o Instituto de Geociências da
está em pleno curso nas cidades brasileiras que sediarão a Copa Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), esta companhia
2014 e no Rio de Janeiro, que também sediará as Olimpíadas causou um aumento de 600% na concentração média de ferro
2016. Para estas populações, o eixo central das violações de seus no ar na área de sua influência em relação ao período anterior
direitos está no “direito de ficar”, que se desdobra em um amplo ao início da pré-operação. Este crime ambiental foi constatado
espectro de violações dos direitos humanos e ambientais. e denunciado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro em abril
A contaminação química (efluentes, dejetos e emissões de 201227. De acordo com dados da própria empresa, a TKCSA
industriais,) dos solos, das águas e do ar faz parte deste vasto também elevará em 76% as emissões de CO2, o que significa mais
espectro, comprometendo a segurança alimentar, a saúde das de 12 vezes o total da emissão de todo o município. Reforçando as
comunidades no entorno e a própria vida nessas terras. Essa críticas feitas pelos moradores da região, a Fiocruz constatou um
é a realidade, há décadas, nas áreas onde se estabeleceram aumento de 1.000% 28 na concentração de ferro no ar da região”
as indústrias de celulose a partir da apropriação de largas (Relatório de Insustentabilidade da Vale 2012). Isso
extensões de terras para o cultivo de monoculturas de eucalipto. revela que a “CSA, sozinha, produzirá 9,7 milhões de toneladas
Nelas, é grande a contaminação química do solo, das águas de dióxido de carbono (CO2)”, de acordo com informações do
e dos trabalhadores (especialmente os terceirizados) pelo uso Departamento de Geografia da Universidade Federal Fluminense

26
(UFF), em 2010, ultrapassando em três ou quatro vezes o
estipulado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), segundo
requerimento do MPRJ29.
Além disso, as atividades da pesca e a renda dos pescadores
estão gravemente prejudicadas pela obra da TKCSA, o que
resultou em seis processos judiciais (do total de nove movidos
contra a empresa) que preveem indenizações para 5.763
pescadores da Baía de Sepetiba (Rede Brasil Atual, 18 de

Rio+Tóxico 2012
abril de 2012). Na Bacia Carbonífera de Moatize, na província de
Tete, as comunidades atingidas denunciam a poluição gerada
pelas minas da Vale Moçambique (de Chipanga e do Vale), bem
como a contaminação das águas com impactos diretos à saúde, A TKCSA emitiu, sem controle, grande quantidade de substâncias tóxicas: sérios danos à saúde
da população
além das alterações nas relações sociais, destruição das formas
de sustento, deslocamento de atividades econômicas locais e involuntários) de famílias são feitas, com claras violações de
mudanças radicais nas culturas tradicionais30. direitos humanos, nas áreas das obras de preparação para a
Os casos emblemáticos abordados nesta publicação vitimam, Copa do Mundo e as Olimpíadas. No caso da UHE Belo Monte,
portanto, populações tradicionais e originárias cujas existências que alagará 668 km2 e secará 100 km do rio na chamada Volta
se vinculam necessariamente a ambientes sociobiodiversos, Grande do Xingu, está previsto o deslocamento forçado de cerca
ampliando, aprofundando ou gerando conflitos territoriais/ de 40 mil pessoas, atingindo direta e indiretamente catorze
fundiários e socioambientais. Inclui-se nesse comportamento comunidades indígenas do Médio Xingu, incluindo também
padrão dos empreendimentos a vitimação de populações ribeirinhos, quilombolas, agricultores familiares e outras
em situação de fragilidade econômico-social numa relação populações que habitam ao longo dos rios amazônicos31.
direta com a segregação socioespacial urbana, decorrentes das No caso das obras de construção dos megaprojetos de
forças do mercado seguidas de práticas discriminatórias das mobilidade urbana no contexto da Copa do Mundo e das
agências governamentais. Olimpíadas, as remoções compulsórias têm sido feitas de modo
Os expressivos deslocamentos populacionais, como os dramático e, muitas vezes, truculento. Elas são feitas sem que
forçados (literalmente expulsões) ou as remoções compulsórias, sejam providenciados os serviços e meios de subsistência nas
em áreas rurais ou urbanas, feitos inclusive com uso de áreas de realocação dessas famílias, sem que as comunidades
violência e intimidação, figuram notadamente como removidas tenham participado do planejamento das remoções,
comportamento padrão constatado em todos os casos aqui sem que tenham recebido avisos sobre as remoções com
relatados. A expulsão de famílias e/ou de comunidades inteiras antecedência suficiente e tendo indenizações bastante limitadas.
pelo uso da violência consta, por exemplo, no passivo da “Ao invés de informações, o que recebemos foram ameaças”
empresa Veracel (esta também foi a prática empregadapela ex- (Carta à presidenta Dilma Roussef, ao governador
Aracruz Celulose, atual Fibria, no Espírito Santo). Expulsões por do Ceará, Cid Gomes, e à sociedade cearense. Comitê
desestruturação das economias locais podem ser constatadas Popular da Copa - Fortaleza, 26 de fevereiro de 2012).
nas áreas de atuação da TKCSA, da Veracel e das hidrelétricas Os movimentos sociais urbanos que compõem os Comitês
na Amazônia. Remoções compulsórias (ou reassentamentos Populares da Copa são unânimes na percepção de um claro
27
processo de gentrificação fortemente relacionado à produção dos seus investimentos. “Na percepção de muitos movimentos
da assepsia urbana, “uma vez que a adequação das cidades ao e organizações sociais destas regiões já está ficando claro que
megaevento pressupõe a formatação de Cidades Globais” . 32
o BNDES vem substituindo o BID [Banco Interamericano de
Segundo o “Dossiê Megaeventos e Violações dos Direitos Desenvolvimento] e o Banco Mundial em financiamentos a
Humanos no Rio de Janeiro”, produzido pelo Comitê Popular da projetos com graves impactos sociais e ambientais em seus
Copa e das Olimpíadas deste município (18 de abril de 2012) , a33
territórios [...]” (BADIN, LOPES PINTO, TAUTZ & SISTON, 2010,
política de preparação da cidade é de militarização. p. 3). A subordinação do direito público ao direito privado está,
A Vale Moçambique, por sua vez, na conclusão da primeira sem dúvida, na raiz do conjunto destas violações. O fichário dos
fase do seu projeto de mineração, reassentou 1.313 famílias, o estudos de casos, apresentados com riqueza de informações
equivalente a 7 mil pessoas, que estão vivendo em precárias mais adiante neste livro, explicita a urgência de questionar e
condições, inclusive passando fome. Segundo o jornalista transformar o atual padrão de acumulação capitalista sustentado
moçambicano Jeremias Vunjanhe , o reassentamento
34
pelo Estado brasileiro.
feito pela empresa apresenta infraestrutura de má qualidade
comprometendo, desde o início, as condições mínimas de
habitação. Não há transporte nem acesso à água e energia. A terra * Marilda Teles Maracci é Doutora em Geografia pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e
membro da Rede Alerta Contra o Deserto Verde.
é imprópria para a agricultura, o que resulta na fome aguda e
1 Carta da Aliança em Defesa dos Rios Amazônicos para Dilma Rousseff. Brasília, 8 de
subnutrição. Esta situação é ainda agravada pelo descumprimento,
fevereiro de 2011. Disponível em: http://www.xinguvivo.org.br/2011/10/21/referencias-
por parte da empresa, dos compromissos assumidos de utilizadas-na-elaboracao-de-cartas-de-advertencia-a-instituicoes-financeiras-sobre-o-
complexo-belo-monte/.
indenização e da “provisão trimestral de produtos alimentares
2 BADIN, PINTO, SISTON & TAUTZ. “O BNDES no período Lula e a reorganização do capitalismo
durante os primeiros cinco anos de reassentamento”. O jornalista brasileiro”. Disponível em: www.plataformabndes.org.br.
moçambicano denuncia ainda a “restrição à circulação de
3 “BNDES – que desenvolvimento é esse?”. Por: Rede Brasil Sobre Instituições Financeiras
pessoas através da instalação de uma vedação em volta da Vila Multilaterais, julho de 2008. Disponível e m: http://www.plataformabndes.org.br/site/index.
php/biblioteca/category/11-analises-do-desenvolvimento.
de Moatize e das vias de acesso aos recursos minerais”. Ele
4 BADIN, LOPES PINTO, TAUTZ & SISTON. “O BNDES e a reorganização do capitalismo brasileiro: um
também critica o “permanente abandono e desamparo a que debate necessário”. In: Os anos Lula: Contribuições para um balanço crítico 2003-2010. Rio de Janeiro:
as comunidades reassentadas foram sujeitas pelas instituições Garamond, 2010. Disponível em: http://www.plataformabndes.org.br/site/index.php/biblioteca/
category/11-analises-do-desenvolvimento. Cf. também: “Desembolsos do BNDES crescem 568% na
de Justiça, do Estado, do governo, às quais organizações sociais década”. Sabrina Lorenzi, iG RJ, 27/1/2011. http://economia.ig.com.br/desembolsos+do+bndes+cresce
m+568+na+decada/n1237970078829.html.
têm recorrido, nos últimos dois anos, com vistas à reposição dos
5 ______________. “O BNDES e a reorganização do capitalismo brasileiro: um debate necessário”.
direitos violados, através de petições, queixas e reclamações que,
In: Os anos Lula: Contribuições para um balanço crítico 2003-2010. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.
infelizmente, continuam sem respostas” . 35 Disponível em: http://www.plataformabndes.org.br/site/index.php/biblioteca/category/11-analises-
do-desenvolvimento.
A remoção forçada representa, assim, uma ruptura na
6 GARCIA, Ana S. “BNDES e a expansão internacional de empresas com sede no Brasil”. Outubro
sociabilidade, a perda de referências e um sofrimento social de 2011. Disponível em: http://www.plataformabndes.org.br/site/index.php/biblioteca/category/11-
que se estabelece pela involuntariedade, pelo constrangimento analises-do-desenvolvimento.

e por se tratar de uma transição para condições de vida 7 MOTA, Marcelo. “BNDES vê investimentos de R$ 20 bi em papel e celulose até 2010”. Disponível
em: www.ibtimes.com.br/articles/20060920/bndes.htm.
invariavelmente mais precárias que as anteriores.
8 “A primeira fábrica da Veracel foi um dos maiores investimentos privados no primeiro governo
Por fim, os casos aqui apresentados explicitam as distorções de Lula. O empréstimo do BNDES foi da ordem de U$ 1,25 bilhão e a empresa gera, atualmente,
da política de financiamento do BNDES, que ignora todos os um pouco mais de 3.000 empregos; sendo apenas 700 empregos diretos e o restante indiretos,
precarizados” parecer crítico ao relatório de impacto ambiental do projeto Veracel II” – Fórum
impactos e violações mencionados anteriormente e que resultam Socioambiental do Extremo Sul da Bahia, julho de 2011, pág. 10).

28
9 “Parecer crítico ao relatório de impacto ambiental do projeto Veracel II” – Fórum Socioambiental 21 “Nota Pública sobre a ocupação do canteiro de obras de Belo Monte”. Movimento Xingu Vivo Para
do Extremo Sul da Bahia – julho 2011 (pág.10). Parecer crítico referente ao Relatório de Impacto Sempre et all. Altamira (PA), 28 de outubro de 2011.
Ambiental do Projeto Veracel II realizado pelo Centro de Estudos e Pesquisas para o Desenvolvimento
do Extremo Sul da Bahia e Fundação Padre José Koopmans. 22 “O que vale o preço do desenvolvimento?”. Macua Blog - A opinião de Justiça Ambiental (JA!), 20
de janeiro de 2012. Disponível em: http://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2012/01/o-que-
10 Repórter Brasil. “O BNDES e sua política socioambiental: uma crítica sob a perspectiva -vale-o-pre%C3%A7o-do-desenvolvimento.html.
da sociedade civil organizada”. Fevereiro de 2011. Cf. também: “Desembolsos do BNDES crescem
568% na década”: http://economia.ig.com.br/desembolsos+do+bndes+crescem+568+na+decada/ 23 Disponível em: http://terradedireitos.org.br/biblioteca/carta-da-alianca-em-defesa-dos-rios-
n1237970078829.html amazonicos-para-dilma-rousseff/.

11 “BNDES se apressa em garantir recursos para Belo Monte”. 18 de outubro de 2011. Disponível 24 Uso de agrotóxicos à base de glifosato (Roundup da Monsanto) nas plantações.
em: http://www.plataformabndes.org.br/site/index.php/noticias/143-bndes-se-apressa-em-garantir-
recursos-para-belo-monte. 25 Revista Science. “Trading Water for Carbon with Biological Sequestration”. Robert B. Jackson
et al. Dezembro de 2004, vol.310 p.1944-1947 (citado por: “Parecer Crítico referente ao Relatório
12 “Depois de recusa do Banco Central, MPF insiste em fiscalização no BNDES para Belo Monte. MPF de Impacto Ambiental do Projeto Veracel II”, realizado pelo Centro de Estudos e Pesquisas para o
pediu a fiscalização por causa da envergadura da operação de empréstimo, que pode ser um dos Desenvolvimento do Extremo Sul da Bahia (Cepedes)) e Fundação Padre José Koopmans (Eunápolis,
maiores da história do Banco”. Publicado em 28 de fevereiro de 2012. Disponível em: http://www. Bahia, julho de 2011).
xinguvivo.org.br/2012/02/28/depois-de-recusa-do-banco-central-mpf-insiste-em-fiscalizacao-no-
bndes-para-belo-monte/. 26 Situação idêntica ocorre no norte do Espírito Santo (municípios de Aracruz, São Mateus e Con-
ceição da Barra), onde a empresa Fibria (antes denominada Aracruz Celulose), uma das proprietárias
13 Nota Pública de Repúdio à realização do “Workshop Internacional sobre Deslocamentos da joint venture Veracel Celulose S.A. na Bahia, desenvolve a mesma atividade da monocultura de
Involuntários”. Março de 2012. Disponível em: http://www.agb.org.br/index.php?option=com_ eucalipto em grandes extensões de terras.
content&view=article&id=121; http://comitepopulario.wordpress.com/2012/03/28/nota-publica-de-
repudio-a-realizacao-do-workshop-internacional-sobre-deslocamentos-involuntarios/ e outros. 27 “Relatório dos atingidos pela Vale cita ‘insustentabilidade’ e critica ‘incoerente posição’ da
mineradora”. Virginia Toledo/Rede Brasil Atual. Publicado em 18/04/2012. Disponível em: http://
14 “(...) é motivo de grande espanto e preocupação a verdadeira corrida para construir uma www.redebrasilatual.com.br/temas/ambiente/2012/04/relatorio-dos-atingidos-pela-vale-denuncia-
quantidade enorme e sem precedentes de novas hidrelétricas na Amazônia nos próximos anos: em insustentabilidade-e-critica-a-antagonica-posicao-da-mineradora.
torno de 70 grandes barragens (UHEs) e 177 PCHs, inclusive 11 grandes hidrelétricas somente na
bacia do Tapajós/Teles Pires, segundo dados do PNE e do PDE” (Movimento Xingu Vivo Para Sempre. 28 Relatório da Fiocruz caso TKCSA 2011: “Avaliação dos impactos socioambientais e de saúde em
Carta à Dilma, 8 de fevereiro de 2011). Santa Cruz decorrentes da instalação e operação da empresa TKCSA”.

15 Cf. nota 4. 29 Requerimento do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) à 2ª Vara Criminal do
bairro Santa Cruz, zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, que faz parte da segunda ação penal
16 Movimento Xingu Vivo Para Sempre. Carta à Dilma, 8 de fevereiro de 2011. contra a TKCSA, de junho de 2011, por crime ambiental, conforme a Lei 9.605/1998 (Lei dos Crimes
Ambientais).
17 “Painel de Especialistas - Análise Crítica do Estudo de Impacto Ambiental do Aproveitamento
Hidrelétrico de Belo Monte. Especialistas vinculados a diversas Instituições de Ensino e Pesquisa 30 Segundo o “Dossiê dos Impactos e Violações da Vale no Mundo” (abril de 2010), referindo à
identificam e analisam, de acordo com a sua especialidade, graves problemas e sérias lacunas no EIA exumação de corpos pela Vale em Moçambique, “a população se recusa a ceder os cemitérios que se
de Belo Monte”. Organizado por Sônia Maria Simões Barbosa Magalhães Santos e Francisco del Moral encontram dentro das áreas de concessão mineira da Vale. Enquanto a Vale se desdobra no fabrico
Hernandez. Belém, 29 de outubro de 2009. Disponível em: http://www.xinguvivo.org.br/2011/10/21/ de caixões para a exumação dos corpos, as populações entendem que é absurdo remover os corpos
referencias-utilizadas-na-elaboracao-de-cartas-de-advertencia-a-instituicoes-financeiras-sobre-o- dos seus entes queridos, e é uma violação gravíssima a uma tradição secular”. Disponível em: http://
complexo-belo-monte/. atingidospelavale.files.wordpress.com/2010/04/dossie_versaoweb.pdf.

18 Vinte Associações Científicas, dentre as quais a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a 31 “Vale candidata a pior empresa do mundo”. Justiça nos Trilhos, 09 de janeiro de 2012. Disponível
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências, já haviam em: http://www.justicanostrilhos.org/comment/reply/876.
enviado carta à presidente Dilma pedindo o cumprimento dos direitos constitucionais dos povos
indígenas, especialmente o de consulta prévia, livre e informada. A violação deste direito resultou, 32 “Copa do Mundo para Todos – O retrato dos vendedores ambulantes nas cidades-sede da Copa
em abril (2011), na recomendação da Comissão Interamericana dos Direitos Humanos (CIDH) da do Mundo de 2014”. Publicado em abril de 2012 por StreetNetInternational. Disponível em: http://
Organização dos Estados Americanos (OEA) pela paralisação das obras de Belo Monte. Disponível em: apublica.org/2012/04/copa-nao-e-para-pobre-os-ambulantes-zonas-de-exclusao-da-fifa/
http://www.advivo.com.br/sites/default/files/documentos/cartaassociacoescientificas.pdf.
33 “Dossiê Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro. Comitê Popular
19 Mais de 350 acadêmicos, incluindo professores, pesquisadores, cientistas e intelectuais brasileiros, da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro”. Disponível em: https://www.dropbox.com/s/
enviaram uma carta à presidente Dilma Rousseff expressando sérias preocupações relativas a qwd9xw10jsknc55/Dossi_Megaeventos_e_Viola_es_dos_Direitos_Humanos_no_Rio_de_Janeiro.pdf.
violações de direitos humanos e descumprimento da legislação ambiental brasileira no processo
de Belo Monte (Informe nº 966: Ibama autoriza Belo Monte sem cumprimento de condicionantes. 34 Jeremias Vunjanhe é jornalista graduado pela Escola de Comunicação e Artes da
Conselho Indigenista Missionário (Cimi), 2 de junho de 2011. Disponível em: http://www.cimi.org.br/ Universidade Eduardo Modlane de Maputo, Moçambique. Atualmente é coordenador da Área
site/pt-br/?system=news&action=read&id=5595.). de Mídia da Justiça Ambiental (JA!) e da campanha de Monitoria do Projeto de Mineração
da Vale em Moatize.
20 É importante considerar que uma situação praticamente idêntica ocorre no norte do Espírito
Santo, área em que a Fibria opera (antes denominada de Aracruz Celulose). Nesta região, atualmente 35 “Vale: novos conflitos em Moçambique. Entrevista especial com Jeremias Filipe Vunjanhe”.
vivem dezenas de comunidades, entre indígenas e quilombolas, que ainda resistem ilhadas em meio à Instituto Humanitas Unisinos. 26 de janeiro de 2012. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/
monocultura de eucalipto, expostas a toda sorte de impactos socioambientais dramáticos e violações entrevistas/506152-vale-novos-conflitos-em-mocambique-entrevista-especial-com-jeremias-filipe-
dos direitos humanos. vunjanhe-.

29
30
Ambientalização dos bancos:
da crítica reformista
à crítica contestatória
Fabrina Furtado e Gabriel Strautman

O
ano de 2009 foi um marco para o Banco Nacional Os representantes de comunidades atingidas por projetos
de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES): financiados pelo BNDES no Brasil e na América do Sul (região de
pela primeira vez a instituição ultrapassou a casa crescente atuação do banco nos últimos anos) vivenciaram, no
dos R$ 100 bilhões em desembolsos, alcançando a marca de Encontro do Rio de Janeiro, três dias de intensos debates e de
R$ 137,4 bilhões . Em novembro daquele mesmo ano o Rio de
1
um rico processo de intercâmbio de experiências de resistência
Janeiro, cidade que abriga a sede do Banco, foi também o local e contestação aos grandes projetos de infraestrutura e empresas
do I Encontro de Populações Sul-Americanas Atingidas por transnacionais. Ao final, eles enviaram uma importante mensagem
Projetos Financiados pelo BNDES. à opinião pública: o BNDES, através dos projetos que financia e
Ao longo da última década a economia brasileira vem ajuda a conceber, é também responsável pelos irreversíveis impactos
experimentando um expressivo ciclo de expansão, caracterizado causados às comunidades e ao meio ambiente.
por consecutivas taxas de crescimento econômico. Dificilmente A escalada dos conflitos sociais e ambientais em contextos
isso teria sido possível sem a existência do BNDES, instituição de expansão da economia é algo que tem sido cada vez mais
financeira integralmente pública, fundada em 1952, e principal comum, especialmente nos países do chamado mundo
instrumento para a implementação das políticas industrial, de em desenvolvimento. Ao mesmo tempo, a pressão de
infraestrutura e de comércio exterior brasileiras. O BNDES é a organizações da sociedade civil e movimentos sociais pela
principal, senão a única, fonte de financiamento de longo prazo responsabilização das instituições financeiras, a exemplo do
no Brasil. Para que conseguisse cumprir o papel de garantidor que agora acontece com o BNDES, não é algo inédito. Desde
de recursos suficientemente capazes de sustentar a expansão da a década de 1980, pelo menos, instituições como o Banco
economia brasileira, o Banco teve seu capital multiplicado por Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)
oito em apenas uma década. O BNDES, no entanto, não se limita são alvo de críticas pelo envolvimento na formulação de
a ter um papel de mero financiador de projetos. Por integrar o políticas e projetos polêmicos. Em resposta, o Banco Mundial
corpo de acionistas de várias empresas e conglomerados, este foi o primeiro a adotar uma política de salvaguardas, passando
Guilherme Resende

Banco tem um profundo conhecimento dos principais setores da assim a exigir de seus “clientes”, como são chamados os
economia brasileira, o que lhe atribui uma enorme capacidade países, que os impactos socioambientais dos projetos fossem
de planejamento econômico. considerados desde a fase de concepção.

31
Este pioneirismo do Banco Mundial lhe rendeu a posição de ambiental, dentre outras, foram cumpridas ou não pelos órgãos
modelo a ser seguido pelas demais instituições financeiras e o ambientais competentes. Além disso, como resposta às pressões
papel de porta-voz do conceito de desenvolvimento sustentável, realizadas pela sociedade civil, o BNDES adotou em 2008
que, de acordo com o Banco, seria capaz de equilibrar o um conjunto de cláusulas sociais que preveem a suspensão
crescimento econômico e a geração de trabalho e renda com a antecipada de financiamentos que produzam violações de
proteção ao meio ambiente. Entretanto, quase três décadas após direitos humanos, mas que só se aplica em condenações de
a aplicação das salvaguardas, diferentes segmentos críticos ao última instância. Em 2009, o Banco começou a divulgar seus
caráter da atuação do Banco Mundial continuam a questionar dados operacionais, ainda que muito insuficientes, através do seu
a suposta responsabilidade ambiental do Banco. De um lado, “portal da transparência”.
grupos que acreditam na importância das salvaguardas defendem Para subsidiar a elaboração de estratégias referentes à
o seu aprimoramento, de outro, grupos veem na sua criação mais questão socioambiental e ao BNDES, uma reflexão sobre as
um instrumento de retórica das instituições financeiras. perspectivas em torno das salvaguardas e as IFMs surge como
Considerando o exposto, a proposta deste texto é resgatar o um instrumento importante, ainda mais considerando o
debate sobre a adoção de salvaguardas socioambientais por histórico de atuação de diversas organizações e da própria Rede
instituições financeiras, mapeando as diferentes vertentes Brasil neste campo. Na busca de contribuir para essa reflexão,
existentes neste debate. O objetivo central será, portanto, o de este artigo apresentará as perspectivas de dois diferentes olhares
identificar elementos para subsidiar o debate sobre a recém- sobre as salvaguardas. Reconhece-se que as estratégias de
anunciada Política Sociambiental do BNDES, cujas fragilidade atuação diante das IFMs são muito mais complexas do que será
e limitação têm sido objeto de análises e questionamentos da apresentado aqui, e que não é possível dividi-las em apenas
própria Rede Brasil. É relevante ressaltar que a referida Política duas vertentes independentes pois envolvem, em distintos
Socioambiental do Banco se constitui como contrapartida do momentos da história, do contexto político e das condições
Empréstimo Programático de Política para o Desenvolvimento de ação, uma complexa rede de relações entre elas, e que
em Gestão Ambiental Sustentável Brasileira (SEM DPL, sigla em nem uma nem a outra são implementadas de forma isolada.
inglês) do Banco Mundial, autorizado em 2009, no valor de US$ Entretanto, o interesse é compreender os possíveis usos e
1,3 bilhão – em que a política ambiental do Banco Mundial serve riscos das salvaguardas através da escolha de perspectivas e
de referência para o BNDES. estratégias representativas, e não realizar estudos exaustivos
Cabe destacar que o BNDES, um banco público brasileiro, se sobre todas as perspectivas e estratégias. Para realizar este
realmente se preocupasse com parâmetros para a sua política exercício metodológico, o texto do professor Acselrad (2010)
ambiental facilmente os encontraria na legislação federal. No “Ambientalização das lutas sociais ‑ o caso do movimento
ordenamento jurídico brasileiro, existem dispositivos legais por justiça ambiental” foi grande fonte de inspiração. Nele, o
que obrigam as instituições bancárias a se preocuparem com autor analisa a apropriação da questão ambiental por parte de
aspectos ambientais em suas operações de crédito, como a lei organizações e movimentos sociais refletindo sobre o que é
que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente, em 1981, e chamado de ecologismo de resultados, pragmático e tecnicista,
a Lei de Crimes Ambientais, de 1998 (Repórter Brasil, 2011). Na por um lado, e ecologismo combativo, contestatório, por outro.
prática, no processo de aprovação de novos financiamentos, o As categorias utilizadas no caso deste artigo são a de crítica
Banco se limita a verificar se as diretrizes ambientais definidas reformista e crítica contestatória.
pela legislação, como consulta prévia e avaliação de impacto Primeiramente, este artigo apresenta o debate sobre

32
salvaguardas, seu histórico e alguns conceitos importantes. nos projetos, procurando evitá-los, quando possível, e mitigá-
Na segunda parte, há uma reflexão sobre a crítica reformista los, quando necessário. Com efeito, técnicas como a avaliação
e questões como transparência, mecanismos de prestação de prévia de impactos ambientais, consulta prévia às comunidades,
conta e participação. A terceira seção apresenta os argumentos planos de mitigação de impactos, além de políticas específicas
do que aqui se denomina crítica contestatória, aproveitando para projetos que envolvam reassentamento involuntário
o debate sobre salvaguardas para realizar uma análise mais de populações ou impactos sobre comunidades indígenas
estrutural sobre o processo de ambientalização das IFMs, seus começaram a ser aplicadas. Em alguns casos, a política de
mecanismos de participação e de investigação independente e a salvaguardas de um banco pode também ser aplicada para
relação com a crítica. A última parte traz algumas considerações impedir o envolvimento dele em determinados tipos de projeto.
finais e questões a serem aprofundadas. A política de salvaguardas do Banco Mundial, por exemplo,
A construção deste artigo é resultado de mais de dez anos veda a participação da instituição em projetos envolvendo a
de experiência do autor e da autora no monitoramento de conversão significativa de habitats naturais ou operações com
IFMs, incluindo o papel dos dois como secretária e secretário madeireiras comerciais.
executivos da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Durante a década de 1980, o Banco Mundial foi alvo de duras
Multilaterais, período durante o qual participaram de consultas críticas de organizações da sociedade civil por sua omissão e
e reuniões do Banco Mundial, BID e BNDES, atividades de negligência em relação aos danos sociais e ambientais causados
formação e mobilização de populações atingidas por estas pelos projetos financiados. Pressionado, este Banco acabou
instituições, além de processos de monitoramento, avaliação e adotando uma política de salvaguardas socioambientais (ver
denúncias de alguns dos casos aqui citados. O trabalho contou tabela 1), sendo posteriormente seguido por outras agências de
ainda com um esforço de pesquisa em fontes secundárias para desenvolvimento, como o (BID) e o Banco de Desenvolvimento
construir os elementos teóricos fundamentais ao debate sobre Asiático (BDA).
salvaguardas, participação e o papel da crítica. Por sua vez, a Corporação Financeira Internacional (IFC, do
original em inglês), agência ligada ao Grupo Banco Mundial que
1. O debate sobre salvaguardas: salvaguardando o quê? financia exclusivamente o setor privado, possui uma política de
salvaguardas específica. Também como resultado da pressão
A palavra salvaguarda significa, de acordo com o dicionário por parte de organizações da sociedade civil, em 2006 o IFC
Houaiss da Língua Portuguesa, proteção e garantia dadas por adotou uma série de Políticas e Padrões de Desempenho sobre
uma autoridade ou instituição; o que serve de defesa, de amparo; Sustentabilidade Socioambiental (ver tabela 2) para orientar seus
ou, ainda, privilégio ou vantagem de certa classe ou espécie. clientes na gestão de riscos sociais e ambientais em setores como
Quando o que está em discussão é a aplicação de salvaguardas os de petróleo, gás e mineração. A política do IFC se diferencia
por uma instituição financeira responsável pelo financiamento das demais salvaguardas do Banco Mundial por ser “baseada em
de projetos, estamos falando de um conjunto de políticas e resultados”. Assim, seus clientes deverão seguir uma série de
diretrizes que são aplicadas sobre estes projetos para garantir que princípios de sustentabilidade mais amplamente definidos, em
eles “não provoquem dano algum2”. vez de objetivos específicos. Ao proceder dessa maneira, o IFC dá
Subjacente ao conceito de salvaguardas está a noção de que a seus clientes maior flexibilidade para escolher que ferramentas
os tomadores de recursos da instituição financeira devem ser utilizar para alcançar estes resultados esperados.
capazes de se antecipar aos efeitos considerados indesejáveis No entanto, a adoção de salvaguardas bem como os demais

33
instrumentos de prestação de contas e democratização não financiados pelas instituições financeiras. Embora a maioria
livraram as (IFMs) das críticas. Com o tempo, percebeu-se das IFMs tenha implementado políticas de acesso à informação
que as normas e procedimentos concebidos em resposta (ou disclosure) ao longo dos últimos anos, estas ainda deixam
às pressões da sociedade civil, como condições essenciais muito a desejar. Uma das críticas feitas aos relatórios de
para o financiamento de projetos, terminaram não sendo acompanhamento de projetos divulgados pelo Banco Mundial,
adotadas – ou satisfatoriamente adotadas – pelos próprios por exemplo, é a de que estes apenas apresentam dados
bancos. A partir daqui, identificam-se pelo menos dois agregados, que impedem uma visualização mais precisa sobre
grupos críticos das IFMs com diferentes interpretações para os impactos que estão sendo efetivamente provocados pelos
os problemas de implementação das salvaguardas: o primeiro projetos. Além disso, a maioria destes relatórios é resultado
deles é o dos reformistas, que acreditam nas salvaguardas das chamadas “inspeções de escritório”, ou seja, não adota
como um instrumento de reforma dos bancos e atribuem a como fonte primária de informação o contato direto com as
falhas operacionais os problemas na implementação; o outro comunidades (FOX, 2001; HERBERTSON, 2010).
grupo, dos contestatários, argumenta que as salvaguardas O caso do IFC é ainda mais grave: o banco é conhecido pela
são instrumento de retórica, sendo, portanto, muito mais um sua prática de implementar e monitorar projetos de portas
discurso do que necessariamente uma prática. Para este grupo, fechadas e por deixar por conta das empresas beneficiárias de
o objetivo final das salvaguardas é a neutralização da crítica seus empréstimos a comprovação dos resultados definidos
ao modelo de desenvolvimento do qual os bancos são um pelos seus “Padrões de Performance”. Isso é particularmente
instrumento central. problemático nas operações de financiamento que o IFC
realiza através de intermediários financeiros, pois não há meios
2. A crítica reformista de se certificar se estas instituições aplicam as diretrizes de
sustentabilidade exigidas pelo IFC.
Os reformistas consideram as salvaguardas um eficiente
instrumento para a promoção de um desempenho 2.2 Prestação de contas: o caso do Painel de Inspeção
ambientalmente responsável pelos bancos, mas desde que do Banco Mundial e do Mecanismo de Investigação
aplicadas adequadamente. Neste sentido, a crítica reformista Independente do BID
mira na falta crônica de transparência, canais de participação
direta e de mecanismos eficientes de prestação de contas e Para os críticos reformistas, a existência de canais de prestação
responsabilização como principais desafios a serem superados de contas e accountability, complementares à política de
pelos bancos multilaterais. transparência, é também necessária para uma aplicação eficiente
das salvaguardas. Neste sentido, mecanismos de mediação de
2.1 Transparência conflitos como o Painel de Inspeção do Banco Mundial surgem
servindo como via para que os interessados nos projetos e
A falta de transparência, por exemplo, impede que se suas comunidades identifiquem e resolvam problemas que se
saiba como os projetos são avaliados, seja do ponto de vista manifestam quando deixaram de ser observadas salvaguardas
econômico-financeiro, seja do ponto de vista socioambiental. sociais e ambientais do Banco (BANCO MUNDIAL, 2009).
Logo, sem transparência não há como saber de que forma as A criação do Painel de Inspeção pelo Banco Mundial em
salvaguardas são efetivamente implementadas nos projetos 1993 foi vista como uma das principais vitórias da sociedade

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civil internacional relativas às políticas das
IFMs, após intensa mobilização e pressão de Os impactos da atuação das instituições
redes, ONGs e movimentos sociais de vários financeiras estão presentes em todo o
território: financiando a destruição
países. A exemplo do que aconteceu com
as salvaguardas, outras IFMs seguiram
a iniciativa do Banco Mundial, criando
mecanismos semelhantes ao Painel de
Inspeção. O BID, por exemplo, em 1994
criou o Mecanismo de Investigação
Independente (MII), que em 2010 passou
a se chamar Mecanismo Independente
de Consulta e de Investigação (Mici).
Em 1999, o IFC e a Agência de Garantia de
Investimentos Multilaterais (Agim), ambas do
Grupo Banco Mundial, também criaram o Escritório
do Ombudsman para a Verificação da Obediência às
Regras (Office of the Compliance Advisor Ombudsman –
CAO) (BM, 2009; BID, 2010).

Resende
Tomando como exemplo o Painel de Inspeção do Banco
Mundial, o processo de funcionamento é o seguinte: duas Guilherme

ou mais pessoas afetadas por um projeto financiado pelo de registrar uma


Banco, que considerem que o projeto violou as salvaguardas, reclamação podem
podem escrever ao painel pedindo uma investigação. Uma ser substanciais.
vez recebido e registrado o pedido, o painel determina a Os custos envolvem
elegibilidade desse pedido, ao qual a gerência do Banco tem recursos humanos
a oportunidade de dar uma resposta inicial, concentrada necessários para o
geralmente no fato de terem sido ou não observadas as processo, altamente técnico,
políticas pertinentes da instituição naquele projeto em de preparar uma reclamação,
particular. Caso conclua que o pedido é elegível, o painel registrá-la e fazer lobby por ela. A
recomenda uma investigação completa à diretoria percepção de riscos também depende de
executiva (BANCO MUNDIAL, 2009). que potenciais reclamantes estejam sujeitos a
Entretanto, a crítica reformista reconhece ameaças de retaliações. Finalmente, a motivação
que é mais fácil falar do painel do que usá- para usar um canal institucional como o Painel
lo efetivamente. Mesmo em casos em que as de Inspeção não pode ser suposta como sempre
pessoas atingidas estão informadas sobre o painel presente. Os procedimentos do painel e a linguagem
e as políticas do Banco e seus pleitos ajustam- política extremamente técnica do Banco requerem tanto
se às incumbências do painel, os custos e riscos uma proficiência em inglês quanto um alto nível de

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familiaridade e tolerância com a cultura legal ocidental, sem da Terra Indígena Apyterewa, no Pará, e fornecendo os produtos
mencionar uma aceitação implícita da legitimidade do Banco derivados dos animais nos mercados brasileiro e internacional
enquanto instituição. (REDE BRASIL, 2004; CARTA MAIOR, 2005; GREENPEACE, 2009).
A experiência revela ainda que raramente as IFMs cancelam Caso semelhante ao da hidrelétrica no Rio Bío-Bío aconteceu
um empréstimo por uma falha na obediência de suas próprias no Brasil com o então MII, do BID, no financiamento ao projeto
políticas de salvaguardas, o que reduz os incentivos ao da Hidrelétrica de Cana Brava em 2005. Desde o início do projeto,
encaminhamento de queixas aos mecanismos de mediação de vários conflitos foram gerados e denúncias foram apresentadas
conflitos. Em 1995, uma queixa feita ao Painel de Inspeção do pelos atingidos pela obra envolvendo a empresa – a Companhia
Banco Mundial pelo financiamento pelo IFC de uma barragem Energética Meridional (CEM), subsidiária da Tractebel Energia
hidrelétrica no Rio Bío-Bío, no Chile, abriu um lamentável da Bélgica –, o governo e os financiadores. Após a realização de
precedente: o Banco provocou e negociou o vencimento uma auditoria social, o BID reconheceu a sua responsabilidade
antecipado de um empréstimo e a empresa ficou desobrigada pelas falhas operacionais do projeto, destacando a violação da
a cumprir as salvaguardas. Como já foi dito, o IFC está fora do sua própria Política Operacional de Reassentamento Involuntário.
poder do Painel, e viria a criar o seu próprio mecanismo apenas O Banco também se comprometeu a “continuar a ter uma
quatro anos mais tarde. Mesmo assim, a direção do Banco obrigação moral em manter uma reputação positiva, garantindo
Mundial não quis estender o poder do Painel de Inspeção sobre que todos os atingidos pelo projeto fossem beneficiários da
o IFC e, assim, recusou permissão para uma inspeção. Porém a implementação do projeto”. Apesar disso, um representante do
reclamação fez James Wolfensohn, então presidente do Banco, BID observou que dificilmente o BID poderia exigir medidas da
estabelecer uma averiguação ad hoc e independente. Mas a Tractebel já que esta, em maio de 2005, exerceu o seu direito
companhia de energia chilena pagou, adiantadamente, a sua de pré-pagar o empréstimo do BID inteiramente, como
dívida, evitando assim o escrutínio do Banco Mundial. estipulado nos documentos de financiamento, livrando-se das
Vale lembrar que o IFC já foi alvo de diversas críticas obrigações assumidas junto ao Banco3, incluindo a aplicação
também no Brasil por financiar projetos de graves impactos das salvaguardas.
socioambientais. Alguns exemplos são a expansão de plantação
de soja do Grupo Amaggi no leste do Mato Grosso, a Aracruz 2.3 Participação
Celulose e a ampliação de uma das maiores empresas do setor de
carne bovina do país, a Bertim, na Amazônia. No caso da Aracruz, Diante da observação dos problemas existentes na aplicação
a empresa antecipou o pagamento da dívida que tinha com o das políticas de salvaguardas bem como da insuficiência dos
IFC, no valor de US$ 50 milhões, o que levou o Banco a afirmar mecanismos de solução de conflitos das IFMs para fazer os
que, assim, estava encerrada sua relação com a multinacional bancos respeitarem suas próprias diretrizes, as organizações
e a sua responsabilidade em torno das questões cobradas pela da sociedade civil insistem na importância dos canais de
sociedade civil, em especial pela Rede Alerta Contra o Deserto participação direta, como meio de promover o diálogo
Verde e a Rede Brasil. Em relação ao caso Bertim, o Banco foi sobre o aperfeiçoamento destes instrumentos de reforma
obrigado a cancelar o empréstimo depois de denúncias e de das instituições. Como resultado dessa pressão, as IFMs têm
uma ação movida pelo Ministério Público Federal do Pará de realizado inúmeros processos de consulta sobre suas políticas
que a empresa estaria comprando gado de fazendas envolvidas setoriais (revisão da política de integração do BID, da política
em desmatamento ilegal e de propriedades localizadas dentro energética e climática do Banco Mundial), além das suas próprias

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salvaguardas. No entanto, há um descontentamento por parte várias realidades que são socialmente construídas. Ela é capaz
da sociedade civil, pois as consultas têm sérios problemas de revelar o papel da linguagem na política; a inserção da
metodológicos (documentos de discussão são divulgados com linguagem na prática; ilustrar por que determinadas definições
pouca antecedência das consultas, geralmente em inglês e na tornam-se mais “populares”; e explicar os mecanismos que
internet, sem ampla divulgação, levantando dúvidas sobre o resultam em certas políticas e não em outras. Em relação ao
caráter da representação que atende aos convites) e não há meios discurso ambiental, não é o meio ambiente apenas que está em
de saber como efetivamente os bancos consideram as críticas debate e sim o projeto de sociedade que é promovido sobre a
que lhes são dirigidas. bandeira da proteção ambiental.
A crítica reformista argumenta ainda que alguns traços Os significados atribuídos às palavras em torno do conceito
da própria cultura institucional dos bancos ajudam a de salvaguardas como proteção, garantia, defesa e amparo são
entender a razão pela qual as IFMs não respeitam seus apropriados de formas distintas. O que é proteção, garantia,
próprios procedimentos. Em um banco, os funcionários defesa e amparo para o Banco Mundial é, sem dúvida, distinto do
são recompensados pela quantidade de desembolsos que que representa para uma comunidade tradicional que há anos
conseguem realizar, e não necessariamente pela qualidade. vive em um território ameaçado em todos os sentidos por um
Nesta mesma perspectiva, a aplicação de salvaguardas tem projeto financiado pelo Banco. Talvez esta comunidade veja a
impactos diretos nos custos operacionais de um projeto política de salvaguardas mais como uma forma de “privilegiar e
e também em relação à aceitação de casos pelo painel de garantir vantagem da classe” que propõe, elabora, implementa e
inspeção. A realização de missões de monitoramento, a financia aquele projeto em nome da proteção, defesa, garantia
produção de relatórios e a correta aplicação de avaliações de e amparo da comunidade e de seu território. O que são efeitos
impacto e consulta aumentam os custos operacionais dos indesejáveis? O que o Banco Mundial caracteriza como dano? O
projetos e, principalmente, levam tempo, uma variável-chave que significa de fato “evitar, quando possível, e mitigar, quando
nos financiamentos de longo prazo. Na queda de braço entre a necessário”? Quando é impossível e quando é desnecessário?
eficiência socioambiental e a eficiência econômica, a força da Estas são algumas questões das quais a crítica contestatória parte.
última revela-se, portanto, ainda preponderante. A crítica contestatória está fundamentada na percepção –
também construída como resultado de anos de monitoramento
3. A crítica contestatória: da eficiência socioambiental à das IFMs – de que estas instituições não podem ser reformadas
justiça ambiental e de que mudanças de discurso não têm significado mudanças
na prática. São vários os exemplos de violações de salvaguardas
Conceitos são apresentações gerais da realidade, portadores nas IFMs. Além dos casos acima mencionados, os seguintes
de significados. No entanto, podem ser apropriados de forma projetos foram alvos de denúncias por violações de salvaguardas
distinta e ter representações diferentes dependendo do ator, seu do Banco Mundial no Brasil: Projeto de Biodiversidade do
contexto histórico cultural, seus interesses e posicionamentos Paraná, Projeto de Gestão de Recursos Naturais de Rondônia,
ideológicos. Como define Hajer (2005), o discurso, produzido as hidrelétricas de Yacyretá e Itaparica e o Projeto de Reforma
e reproduzido através de distintas práticas, é um conjunto Agrária para Alívio da Pobreza. No caso do BID, o novo
de ideias, conceitos e categorias que dão significado aos Mecanismo de Investigação Independente, criado em 2010, já
fenômenos sociais e físicos. A análise de discurso rejeita recebeu seis denúncias, incluindo o projeto de desenvolvimento
a ideia de uma só realidade baseando-se na existência de urbano de São José dos Campos. Além disso, processos de

37
sendo de forma indireta, através do
financiamento de estudos técnicos
que subsidiaram a liberação do
licenciamento ambiental), o Banco
respondeu que como os governos
não adotaram os resultados da
Comissão o Banco também não
poderia. A crítica contestatória
não defende o uso de nenhuma
condicionalidade por parte do
Banco, pois isso significaria
reconhecer a legitimidade desta
instituição, mas uma resposta
como esta poderia ser considerada
dois pesos para uma medida; um
posicionamento bastante cômodo.
Portanto, neste debate sobre
Verena Glass

ambientalização das instituições


financeiras, adota-se como
ponto de partida de análise uma
A expansão da plantação de soja em Mato Grosso foi financiada pelo IFC: denunciado pelos impactos socioambientais
crítica sistêmica, para questionar,
avaliação das suas próprias políticas, tais como a Comissão em vez de celebrar, a adoção de políticas de salvaguardas
Mundial de Barragem4 e a investigação do Grupo de Avaliação socioambientais e a criação de mecanismos de mediação de
Independente sobre o setor extrativista do Banco Mundial , 5 conflitos e de canais de participação direta pelas IFMs. Dito isso,
geraram recomendações que nunca foram incorporadas pela é importante ressaltar que as salvaguardas, como também a
instituição. No caso da Comissão Mundial de Barragem, cujo pressão por transparência e participação, consideradas neste
resultado evidencia a inviabilidade social, ambiental e econômica caso como instrumento de luta e não como fim, foram utilizadas
da construção de barragens, pode-se argumentar que o Banco pelo campo contestatório em momentos de luta em que tais
Mundial reduziu seus empréstimos diretos para tais projetos. No instrumentos eram considerados estratégicos. É diferente utilizar
entanto, além de o Banco continuar considerando hidrelétricas as salvaguardas como um instrumento de luta dentro de um
como energia renovável, não utilizou os resultados do estudo objetivo central de mudança do modelo de desenvolvimento e
para eliminar outras formas de participação, inclusive política, superação das injustiças ambientais de utilizá-las como fim, sem
na implementação de um modelo de desenvolvimento baseado questionar os impactos negativos e os limites da sua elaboração,
na construção de grandes projetos de infraestrutura, mudando incorporação e implementação por parte de instituições como
assim a lógica da sua política energética. Quando questionado as IFMs. No campo da crítica contestatória, fica evidente quando
sobre o uso dos resultados da CMB em relação à sua um instrumento como as salvaguardas torna-se um obstáculo na
participação no Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira (mesmo luta por uma mudança sistêmica e é, por isso, abandonado.

38
O que fundamenta essa visão é a percepção segundo a sustentável (LEFF, 2009).
qual tais instrumentos servem de base para a apropriação Para Acselrad (2008), a partir dessa construção do processo
de um discurso ambiental que contribui para a antecipação de ambientalização, entendido como a existência de novos
e a neutralização da crítica ao padrão de desenvolvimento fenômenos ou novas percepções de fenômenos relacionados
dominante. Sendo assim, a incorporação da questão ambiental à interiorização da questão pública do meio ambiente pelas
por parte das IFMs precisa ser contextualizada e problematizada, pessoas e por grupos sociais, que leva a mudanças de linguagem,
tendo em mente também a fase “social” das IFMs, na qual a práticas sociais e processos de institucionalização, “velhos
incorporação de questões sociais se deu no contexto de um fenômenos são renomeados como ‘ambientais’”, a partir
discurso que buscava “humanizar” o capitalismo. dos quais surgem ações unificadas em torno da proteção
É possível afirmar que o tema ambiental começou a ser ao meio ambiente. Com o processo de ambientalização
percebido como uma questão pública internacional nos anos dos Estados6 e das IFMs, a estratégia passou a ser superar a
1960, quando os desafios da degradação ambiental e os limites visão de que a questão ambiental seria um obstáculo para
do crescimento econômico foram evidenciados. Este processo o desenvolvimento, encontrando formas de promover os
foi consolidado durante a Conferência das Nações Unidas sobre propósitos desenvolvimentistas, como a busca por maiores
Meio Ambiente Humano, em Estocolmo em 1972. No mesmo lucratividades dos capitais em nome da geração de emprego e
ano, o Clube de Roma, Organização Não Governamental (ONG) renda, garantindo assim uma legitimidade para a questão.
internacional composta principalmente de representantes do Este processo é também conhecido como modernização
setor privado e da academia, comissionou um estudo chamado ecológica, definida por Hajer (1996) como uma resposta
Os limites do crescimento. Os autores mergulharam na velha tese política-administrativa para a última manifestação do dilema
de Thomas Malthus sobre o perigo do crescimento populacional ecológico, com base na suposição de que a crise ecológica pode
e na teoria da escassez dos “recursos” (entre aspas porque o uso ser superada através da inovação tecnológica e processual, de
do termo recursos atribui uma ideia de mercado para algo não instrumentos de mercado da colaboração e da construção do
mercantil: a natureza) naturais. As propostas foram baseadas no consenso. As instituições políticas seriam capazes de internalizar
controle populacional e na economia de “recursos” em matéria e preocupações ecológicas e conciliar o crescimento econômico
energia para garantir a continuidade da acumulação do capital. O com a resolução dos problemas ambientais. Neste contexto,
debate sobre as razões pelas quais a natureza é apropriada e sobre o meio ambiente deixa de ser um obstáculo ao crescimento,
as relações sociais de exploração que fundam tal apropriação é passando a ser seu novo motor. É essa percepção do meio
escondido por trás da teoria da escassez (ACSELRAD, 2010). ambiente que a crítica contestatória argumenta ser a das IFMs.
Assim, em 1984 a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente A crítica em torno da modernização ecológica se dá em
e Desenvolvimento, criada pelas Nações Unidas, realizou um diversos níveis e está relacionada com o uso que é feito do
estudo sobre a degradação ambiental e as políticas ambientais discurso ambiental, como também a prática. Esta modernização
que resultou no relatório Nosso Futuro Comum. O objetivo do foi impulsionada por uma elite de políticos, especialistas e
estudo era propor meios de harmonizar o desenvolvimento cientistas que impõe suas definições do problema e suas
econômico e a conservação ambiental. Esta publicação soluções, buscando manter o interesse das elites industriais
aparece como um instrumento para a introdução de políticas através de instrumentos políticos como as IFMs. Neste caso o
de sustentabilidade ecológica ao processo de globalização discurso ambiental é utilizado como forma de legitimação e
econômica, tendo como conceito orientador o desenvolvimento instrumento para garantir a continuação e o aprofundamento

39
de políticas neoliberais: tudo deve ser permitido em nome por agências multilaterais, de apologia da parceria
do meio ambiente. Essa perspectiva adota como pressuposto público-privada, de deslegitimação da esfera nacional
que a degradação ambiental é uma externalidade, uma falha em favor da esfera local, de favorecimento das ações
do mercado e que, consequentemente, é preciso “internalizar fragmentárias em detrimento da coerência articulada da
os custos ambientais”, valorar bens não econômicos, onde ação política.
o mercado prevalece sobre o não mercantil. O processo de
valorização da natureza gera uma nova fonte de renda capitalista, A substituição da crítica contestatória pelo tecnicismo seria
seja através da redução de custos por causa dos programas um propósito comum a organismos multilaterais, governos e
de sustentabilidade ambiental corporativa e ganhos em empresas poluidoras. Em relatório para o Brasil, o Banco Mundial
competitividade, da elaboração, comercialização e dominação dizia “reconhecer seu papel de catalisador” na promoção da
sobre novas tecnologias e das isenções fiscais, seja através da participação da sociedade civil (GARRISON, 2000). Atuando de
criação do lucrativo mercado de “serviços e ativos ambientais”. forma antecipada, podemos dizer que através da elaboração
Desse modo, a modernização ecológica seria um caso de de políticas de salvaguardas, por exemplo, estas instituições
falsas soluções para problemas reais. Existe uma realidade mais estariam capturando os movimentos de contestação ao modelo
profunda por trás da retórica oficial da modernização ecológica: de desenvolvimento dominante no contexto do projeto de
a tecnocracia disfarçada que representa um obstáculo para as “modernização ecológica”.
soluções verdadeiras. Como o tema ecológico foi incorporado Em relação à ideia de neutralização da crítica, vale citar
pelos aparatos de poder, tornou-se um pretexto e um meio para o trabalho realizado por Boltanski e Chiapello, na obra O
controlar mais ainda a vida e o ambiente social (ACSELRAD, Novo Espírito do Capitalismo, em que a crítica é apresentada
2010; HAJER, 1996; LEFF, 2009). como grande motor que dinamiza o espírito do capitalismo,
fornecendo a sua justificação moral. Os autores mostram como
3.1 Salvaguardas –”modernização ecológica para a o capitalismo utiliza-se da crítica, de algo que lhe é alheio ou até
neutralização da crítica” hostil, para se justificar, mesmo quando o objetivo da crítica não
seja estabelecer um espírito capaz de possibilitar a acumulação
A diferenciação entre a crítica reformista e a contestatória pode do capitalismo, e sim de reformar ou superar o sistema. Essa
ser relacionada com o que Acselrad (2010) chama de “substituição apropriação é realizada através de três formas:
do ambientalismo contestatário por um ecologismo de
resultados, pragmático e tecnicista”, desenraizado, que ocorreu 1. A crítica serve para deslegitimar o “último”
ao longo dos anos 1990. Embora este movimento não tenha sido espírito do capitalismo e reduzir a sua eficácia enquanto
generalizado, houve uma tentativa de neutralização das lutas justificativa. Por exemplo, no final dos anos 1960 o
ambientais por parte, principalmente, das IFMs, mas também capitalismo estadunidense encontrou fortes tensões
por empresas poluidoras e governos, sobrevivendo aqueles com entre o ascetismo protestante que pregava o valor do
fortes vínculos com os movimentos sociais. O autor (ibid, p.13) trabalho e da poupança e um estilo de vida baseado no
sugere que: gozo imediato do consumo, estimulado pelo crédito
e pela produção em massa. A crítica ao ascetismo
parte do “ecologismo desenraizado” respondeu protestante acabou deslegitimando o espírito capitalista
favoravelmente ao discurso consensualista propugnado até então dominante, colaborando para um processo de

40
transformação para a fase materialista da sociedade mudando a forma imediata de obtenção de benefícios,
de consumo do capitalismo. Este processo teve deixando a crítica sem saber como explicar o “novo”.
como resultado uma desmobilização dos trabalhadores Um exemplo pode ser a economia verde, o atual
como consequência de uma mudança nas suas argumento central dos governos e das IFMs para
expectativas e aspirações. combater o que eles chamam de crise ecológica. Este
2. Ao criticar o processo capitalista, a crítica obriga movimento está, aparentemente, deixando alguns
seus porta-vozes a se justificarem em termos do bem grupos ambientalistas sem crítica enquanto, no fundo,
comum. Assim, o capitalismo se legitima incorporando aparece como uma nova “roupagem” para um velho
parte dos valores em nome dos quais foi criticado. Por modo de produção e consumo. Outro exemplo é o
exemplo, depois das muitas críticas ao Consenso de fato de que a agenda de instituições como o Banco
Washington, instituições como o Banco Mundial e o BID Mundial e o BID no Brasil deixou de ser dominada por
adotaram o discurso da “humanização” do capitalismo, financiamento direto aos projetos, passando a se dar
promovendo políticas setoriais, escolhendo uma parte através da assistência técnica. Ou seja, em vez de investir
dos “pobres” a ser beneficiada, para justificar a sua diretamente em projetos de hidrelétricas, fornecem
preocupação como social. Mais recentemente percebeu- assistência técnica ao governo para implementá-los, se
se um processo de ambientalização destas instituições. “esquivando” da crítica.
Ou seja, tanto o Banco Mundial quanto o BID elaboraram
salvaguardas ambientais e implementaram investigações Embora tendo como base a argumentação de que o
independentes de seus projetos. A hidrelétrica de Cana capitalismo sempre se renova com a ajuda da crítica, o objetivo
Brava está entre os muitos casos de projetos financiados de Boltanski e Chiapello (ibid) não é reduzir o papel da crítica ao
por estas instituições que resultam em conflito, mesmo conceder força para o inimigo, e sim mostrar a sua importância
com a existência de salvaguardas ambientais e sociais. e a necessidade dela de sempre recomeçar. O que os autores
Ainda neste caso, cada vez que o MAB elaborava uma defendem é o fato de a crítica não poder nunca “cantar vitória”.
crítica ao Banco, este respondia com determinada “ação”, Não se podem ignorar os defeitos dos novos dispositivos
seja ela uma auditoria social, seja a criação de um Fundo criados para “atendê-la”. Neste sentido, é possível argumentar
de Desenvolvimento Regional. Embora o discurso e que, em um primeiro momento, a criação de salvaguardas, de
algumas normas sejam modificadas, a estrutura, a lógica mecanismos de investigação independente, de processos de
e a prática destas instituições permanecem a mesma, e a participação e transparência foram importantes. No entanto,
crítica acaba sendo colocada a serviço do fortalecimento não se pode perder de vista como no capitalismo, neste caso
da legitimidade delas. em relação às IFMs, através da contínua implementação de
3. Outro possível impacto da crítica se refere à determinado modelo de desenvolvimento, independente dos
possibilidade de o capitalismo escapar da exigência mecanismos e das políticas criadas, a crítica inicial se desatualiza
de reforçar suas justificativas, tornando-se assim mais e, muitas vezes, acaba voltando contra si mesma. No entanto,
dificilmente decifrável, “embaralhando as cartas”, a crítica é capaz de desnaturalizar os fenômenos sociais,
plantando a confusão e desarmando a crítica. Neste mostrando inclusive que a mudança é possível, que as decisões
caso, o capitalismo responde à crítica não através da – de construir ou não uma hidrelétrica, a escolha em torno de um
incorporação de dispositivos mais justos, mas sim projeto de desenvolvimento, por exemplo – podem ser diferentes.

41
Assim sendo, resta à crítica contestatória seguir preservando governo; não é o de ocultar o conflito, mas dar-lhe visibilidade”
o espaço de crítica contra o modelo de desenvolvimento e (ACSELRAD, 2010, p. 106).
tratando de colocar a questão ambiental de tal forma que ela Relacionado a esta análise, encontra-se o debate sobre a
seja parte estruturante da construção de um projeto político importância da participação para a manutenção do capitalismo
contra-hegemônico. contemporâneo. No contexto de uma reflexão (e proposta) sobre
Vale ressaltar também a discussão de Bolstanski em outra obra o planejamento insurgente, Miraftab (2009) analisa a participação,
na qual o autor escreve sobre a necessidade da crítica. De acordo através da inclusão, como instrumento de dominação. Neste
com ele, há neste mundo uma nova classe dominante, cada sentido, o capitalismo neoliberal vem se utilizando das relações
vez mais heterogênea, que cria uma nova cultura internacional com a sociedade civil para garantir estabilidade nas relações
baseada na economia e na gestão. Esta elite é responsável por Estado-sociedade. Portanto, sugere a autora, o planejamento
operar o mundo como ele é e por relativizar as regras; regras insurgente torna-se instrumento importante para contestar o
que quando necessário são flexibilizadas e violadas. São regras terreno da inclusão e dominação.
a serem obedecidas apenas pelos outros, os dominados. Os No seu artigo sobre planejamento insurgente, Miraftab (2009)
dominantes – que pertencem ao mundo das instituições fala da necessidade de superar a dominação realizada através
financeiras, das grandes empresas e do Estado – dividem da inclusão do capitalismo neoliberal, a tentativa de estabilizar
em comum uma visão secularizada das regras. Como afirma as relações Estado-sociedade através da inclusão da sociedade
Boltanski (2009, p. 219), “pertencer a uma classe dominante civil no processo de governança. O neoliberalismo é entendido
é, antes de tudo, estar convencido que pode-se transgredir a aqui não como um projeto econômico, mas como um projeto
letra da regra, sem trair seu espírito. Mas esse gênero de crença ideológico, um conjunto de políticas, ideologias, valores e
não vem à mente senão dos que pensam poder encarnar a racionalidades. Por ser um projeto ideológico, o capitalismo
regra, pela boa razão que eles a fazem”. Por que, então, elaborar neoliberal depende de legitimação e da percepção por parte da
salvaguardas sociais e ambientais? Seria porque são elaboradas sociedade de que existe inclusão.
para serem violadas? Diferentemente do capitalismo expansionista mercantil
da era colonial, o capitalismo atual não depende mais
3.2 Canais de Participação Direta – “apropriação da crítica” prioritariamente da força militar ou da coerção para se
manter. Quando possível, o poder hegemônico é conquistado
Como parte do processo de neutralização da crítica estão através do consentimento da sociedade e da percepção de
também os mecanismos de participação. Isso porque grande inclusão. Similar ao pensamento de Boltanski, Miraftab explica
parte do ecologismo pragmático acabou atuando diretamente que argumentações econômicas não são suficientes para
nos espaços estatais, “prestando serviço” aos aparatos justificar as políticas atuais. É necessário criar discursos com
burocráticos do “setor ambiental dos governos”, fornecendo base em valores, como a liberdade e o progresso (ibid).
informação, informação técnica e mediando conflitos, A autora utiliza-se de leituras gramscianas para examinar por
colaborando para a ambientalização do setor privado e das que instituições como o Banco Mundial (e o BID) começaram
IFMs. A crítica contestatória respondeu: “A nossa luta original a incluir a participação nas suas agendas institucionais. A
era por um novo modelo de desenvolvimento e não por buscar compreensão da hegemonia como relações normalizadas
soluções paliativas”, pois “não somos consultores, queremos e da contra-hegemonia como práticas e forças capazes de
mudar a sociedade”e “nosso papel não é o de trabalhar para o desestabilizar tais relações ajuda a entender o poder da inclusão

42
neoliberal. São vários os exemplos de
como a participação de comunidades,
movimentos e organizações em
projetos de desenvolvimento
de instituições, como o Banco
Mundial e o BID, despolitizam a luta
e ampliam o controle do Estado
sobre a sociedade, permitindo a
permanência do status quo através
da estabilização das relações Estado-
sociedade; através da eliminação
do conflito. No entanto, argumenta
Miraftab, os movimentos também
são capazes de se apropriarem das
aberturas no sistema hegemônico
para garantir suas ações contra-
hegemônicas. Não são limitados

Verena Glass
ao que ela chama de invited spaces,
espaços de participação criados
pelas autoridades para os quais os
A produção de commodities para exportação é financiada pelas IFIs: investindo em um modelo infértil
movimentos são apenas convidados.
Também são capazes de inventar espaços de participação e de os programas do Banco Mundial, do Banco Interamericano
se reapropriarem de velhos espaços para exigir seus direitos e de Desenvolvimento (BID), mas também de universidades
fortalecer a sua luta contra-hegemônica. Ou seja, trata-se de como a de Harvard, Berkeley e Flórida (ACSELRAD e BEZERRA,
priorizar os espaços resultantes de mobilizações e ocupações, 2009). Como já mencionado, em 1993, o Banco Mundial criou
como ocorreu quando o Movimento dos Atingidos Por o Painel de Inspeção com o objetivo de investigar projetos
Barragens (MAB) ocupou a sede do BID em Brasília por causa financiados pelo Banco para determinar o cumprimento ou
de Cana Brava, em vez das consultas das IFMs que, para a crítica não das políticas e procedimentos operacionais, incluindo
contestatória, em nada têm resultado a não ser legitimar o salvaguardas sociais e ambientais e, em 1994, o BID criou um
ilegitimável. mecanismo independente para “aumentar a transparência,
responsabilidade institucional e efetividade” do Banco, que
3.3 Mecanismos de Resolução de Conflitos – “ação antecipada foi substituído pelo Mecanismo Independente de Consulta e
e desjudicialização” Investigação em 2010 (BANCO MUNDIAL, 2009; BID, 2010). Estes
mecanismos vêm servindo como instrumentos de mediação
Neste contexto não é difícil compreender por que projetos de de conflito entre o solicitante impactado pelo projeto, o governo
disseminação de tecnologias de resolução de conflitos tenham e a empresa envolvida. Em 2011, o representante do Banco
sido implementados no continente nos anos 1990. Foram vários Mundial, debatendo com representantes da sociedade civil sobre

43
os impactos da Copa do Mundo durante a consulta deste Banco A perspectiva dominante percebe o conflito como um
sobre sua nova Estratégia País, afirmou que o Banco estaria desequilíbrio a ser corrigido. Neste sentido, é possível
fornecendo seu know-how para o governo brasileiro em torno compreender por que a resolução, a prevenção e a mediação
da resolução de conflitos como consequência das remoções7. de conflitos ganharam vigência nos dias atuais. Vale lembrar a
Não é à toa que, em março deste ano, a Articulação Nacional fala de um ex-presidente do Chile que, em 2003, declarou que
dos Comitês Populares da Copa, conjunto de organizações, “um país sem coesão social é conflitivo. Um país conflitivo não
movimentos e militantes que vêm denunciando as violações é competitivo. Para competir no exterior, é preciso coesão social”
de direitos decorrentes da realização de megaeventos, elaborou (FOLHA DE S.PAULO, 2003, p. A27, apud. ACSELRAD e BEZERRA,
uma carta criticando um seminário realizando pelo Ministério 2009, p. 2). Logo, para garantir a competição é necessário banir o
da Cidades em parceria com o Banco Mundial. O convite dessas conflito e para tanto é preciso banir também a política, considerada
instituições explicita o objetivo: uma ameaça à construção de estratégias vencedoras. A política e a
O objetivo do workshop (Internacional sobre Deslocamentos) ação coletiva são substituídas pelo consensualismo.
é buscar soluções concretas para o Brasil no enfrentamento Banir o conflito significa banir a luta social, um meio através
dos desafios relacionados a deslocamentos involuntários, por do qual grupos sociais constituem-se como sujeitos políticos,
meio da reunião de especialistas e formuladores de políticas geram identidades, projetos e práticas coletivos e ação política
em âmbito nacional e internacional. Serão compartilhadas autônoma (VAINER, 2007). E como ocorre a mediação? De
experiências e melhores práticas em formulação e acordo com Acselrad e Bezerra (2007), os defensores dos
implementação de políticas, legislação e abordagens para mecanismos de resolução e mediação de conflito os justificam
reassentamentos e deslocamentos involuntários, buscando primeiro sem referência à compensação econômica, citando
relacioná-las com os desafios-chave para as autoridades a carência de instituições, a redução de custos, a necessidade
brasileiras (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2012, p. 1). de submeter os litígios à apreciação de experts e a necessidade
No entanto, o que significa resolver, prevenir ou mediar um de participação. Vale lembrar que o documento do BID (1999)
conflito? São várias as perspectivas em torno de conflitos sociais “Reassentamento Involuntário nos Projetos do BID: Princípios e
que vão desde a ideia do conflito como sinal de que algo está Diretrizes”, elaborado para “apresentar os princípios e estratégias
errado, resultado de um desequilíbrio que precisa ser eliminado a serem seguidas no caso de projetos de desenvolvimento
para garantir a coesão social, aos que defendem que a existência financiados pelo Banco que resultam em relocação involuntária”
de conflito reflete a dinamicidade do sistema, sendo este capaz (ibid, prefação), inclui, entre outras questões, a necessidade
de promover um aperfeiçoamento no sistema ou até a sua de um painel independente de peritos para projetos com
superação através de reformas ou revoluções (VAINER, 2007). O grande probabilidade de causar significativos impactos de
conceito de resolução de conflito, no entanto, tem como base a reassentamento. Considera-se que os peritos agem em torno
perspectiva de que os conflitos ocorrem por falta de instituições de um bem “maior”. Inclui também o princípio de “Assegurar
e que a paz e a harmonia deveriam provir de um processo de Participação da Comunidade”. A auditoria Social também
despolitização dos litígios, através de táticas de negociação menciona a necessidade de especialistas sociais e a importância
direta capazes de prover “ganhos mútuos”. Os conflitos devem da participação.
ser prevenidos e seu tratamento tecnificado através de regras e Essas justificativas desconsideram o debate sobre correlação
manuais (ACSELRAD e BEZERRA, 2009). Mas de onde surgiram de forças. Desconsideram que são as leis e o combate às relações
estas propostas e quais os seus objetivos? desiguais no exercício do direito que podem melhor defender

44
os interesses de grupos sociais em conflito contra empresas e considerada um instrumento de esvaziamento da possibilidade
contra o governo. Como afirma Vainer (2007), a mediação supõe de evidenciar o confronto entre diferentes modelos de
a existência de uma neutralidade, uma isenção de todos os desenvolvimento. Ou seja, o MAB não luta apenas por
interesses, posições e condições de classe. Se essa neutralidade compensação econômica, luta por uma transformação no
fosse possível, ela ainda teria de ser baseada em determinados modelo energético e de desenvolvimento. Essa questão
valores e parâmetros, não passíveis de mediação. Usando o não apareceu nos documentos do BID ou nos processos de
exemplo do BID, o documento mencionado também defende negociação. Ocorre também que propostas como fechar a
que “A maneira mais justa de se resolver disputas é através hidrelétrica, evitar a construção de outras com os mesmos
de procedimento de arbitragem independente envolvendo impactos, banir a Tractebel de pelo menos receber financiamento
instituições e indivíduos considerados neutros por ambos os novamente do BID ou do BNDES também são ignoradas a partir
lados”. Não são os valores do Banco que orientam os indivíduos da realização da compensação. Na lógica do “modelo harvardiano”
que participam dessas iniciativas? O problema também ocorre de negociação, conforme escrito por Fisher e Ury (1985), que
ao constatar-se que, quando tais mecanismos funcionam, o próprio título do livro, Como chegar ao sim: a negociação de
seus resultados, sendo contrários aos interesses dos criadores, acordos sem concessões, sugere, o objetivo da negociação é
são geralmente ignorados. Isso pode ser verificado com o caso superar as resistências, a disputa, o conflito e garantir a aprovação
de Cana Brava: quando os resultados do Mici e da primeira de empreendimentos (ACSELRAD e BEZERRA, 2009). O direito de
auditoria não foram divulgados, o Banco permitiu que a empresa dizer não ao projeto não é considerado.
adiantasse a sua dívida para, assim, não ter nenhuma obrigação O documento do Banco Mundial (2009) sobre o Painel de
com as normas do BID; e quando as irregularidades divulgadas Inspeção não deixa dúvidas sobre o real objetivo da mediação
não foram corrigidas. e negociação:
Existe ainda a justificativa com base na compensação Quando membros da Gerência do Banco ou da Diretoria
econômica. Duas virtudes são enfatizadas neste caso. Primeira, levantam a questão do “custo” do Painel de Inspeção em virtude
consideram a possibilidade de que todos os atores envolvidos de demoras em projetos, basta apenas recordar os dias de
no conflito possam vencer, tendo algum tipo de compensação Narmada, Polonoroeste, Transmigração e o empréstimo para o
(ACSELRAD e BEZERRA, 2009). Pode-se argumentar que no caso Setor da Energia, no Brasil, para saber que o Banco não poderia
de Cana Brava, com a criação do Fundo de Desenvolvimento reverter jamais à era anterior ao Painel. Alguns daqueles projetos
Regional, todos os atores ganharam alguma compensação. No foram postergados por anos (bem mais longamente do que
entanto, como pode ser percebido pela fala do Movimento, a uma investigação do Painel), devido a protestos locais, consultas
compensação não foi justa e muito menos igualitária. públicas insuficientes, violações de políticas e direitos humanos,
A segunda virtude refere-se ao fato do ganho proveniente da falha na elaboração do projeto, falta de supervisão ambiental e
possibilidade de evitar que os litígios cheguem à esfera judicial, social, entre outros problemas (p. 117) .
o que seria indesejável (ibid). No entanto, recorrer ao Ministério
Público é uma estratégia central dos movimentos envolvidos em Considerações finais
conflitos. No caso de Cana Brava, a esfera judicial foi claramente
evitada pela empresa, inclusive através do adiantamento do A questão ambiental não é uma questão nova. Há muitos
pagamento da sua dívida com o BID. anos ecologistas e intelectuais tentam chamar atenção para
Vale ressaltar que a compensação econômica pode ser os impactos do modelo de desenvolvimento sobre a natureza,

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levantando questionamentos sobre a relação sociedade por estas instituições à toa. Não é necessário apelar para
e natureza sendo construída em nome deste modelo. No teorias da conspiração para perceber que existe algo por trás
entanto, foi somente nos anos 1970 que ela se tornou uma do discurso ambiental. Existe algo por trás do debate sobre
questão pública, uma questão política, sendo incorporada salvaguardas ambientais porque, afinal, como salvaguardar
pelas instituições públicas e privadas, inclusive as financeiras. algo que tem significados diferentes, representações materiais
Como novos fenômenos são construídos? Como velhos e simbólicas diferenciadas e conflitantes? Como conciliar
fenômenos passam a ser concebidos de outra forma? O que diferentes valores, princípios e estratégias de desenvolvimento?
gerou e como se deu a construção dessa “união” de todos pela É possível fazer isso através de demandas por mais
“proteção ambiental”? É essa a questão central por trás deste transparência, participação, controle social e melhorias
debate sobre salvaguardas ambientais. técnicas, pela mediação e resolução de conflito, ou seja,
Se existe algo que o monitoramento de instituições por reformas pontuais? Ou estaremos, desse modo, apenas
financeiras (e políticas) tem nos ensinado é que nada é realizado legitimando mais uma forma de apropriação e neutralização
da crítica e das lutas sociais por justiça e dando ao capitalismo
outra justificativa moral? Isso não significa necessariamente
negar essas estratégias por completo em todos os momentos
de luta, mas sim problematizá-las e levantar os riscos de se
focar nelas como fim ou como prioridade.
O discurso das IFMs, muitas vezes, tenta camuflar a existência
de diferentes projetos de sociedade. Para essas instituições, o
conflito ocorre somente quando os diferentes interesses não
foram negociados. Salvaguardas sociais e ambientais, além
de processos de consulta, seriam suficientes para garantir
o interesse de uma comunidade atingida.
Seus interesses estariam salvaguardados
e as denúncias em torno da violação de
salvaguardas não estariam sendo realizadas
porque os projetos de sociedade são distintos
e sim porque algum interesse escapou da
negociação. Para resolver, basta realizar
uma consulta e um processo de negociação.
Para tanto, ignora-se, o debate em torno da
correlação de forças. A razão do mercado
continua predominando e a negociação é
controlada pelos dominantes. Ignora-se o
fato de que os valores, princípios e projetos de

Em protesto contra a hidrelétrica de Cana Brava, os atingidos por barragens ocuparam a sede do BID em 2005 -
sociedade não são negociáveis.
Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) Os interesses econômicos não são mais

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suficientes para justificar o capitalismo. As IFMs precisaram de atingidas, o Banco Mundial, o BID ou o ministério público? Como
mais criatividade para ganharem legitimidade. Transparência, poderiam os especialistas do Mici ou do Painel de Inspeção
processos de participação, consultas, mecanismos de serem neutros? O que precisa um profissional para trabalhar
investigação independente, painéis de investigação, portal da em uma instituição como esta se não estar de acordo com seus
transparência e necessidade de participação são alguns dos valores e princípios?
instrumentos utilizados. Muitas vezes, atores em potenciais Instituições Financeiras Multilaterais, como o Banco Mundial
conflitos se encontram sem muita escolha a não ser acreditar e o BID e cada vez mais o BNDES, estão, sem dúvida, entre os
neste discurso, inclusive porque algumas das questões surgem melhores exemplos de instituições que se apropriam da crítica
das suas próprias demandas, principalmente no que diz respeito promovendo mudanças discursivas ou criando normas a serem
ao tema da participação. No entanto o que na maioria das vezes violadas para garantir a legitimação. Depois de anos de críticas
acaba acontecendo é a despolitização dos conflitos, passando aos impactos sociais e ambientais de seus projetos, criou-se o
uma ideia da possibilidade da neutralidade e do consenso. discurso do capitalismo humano e, agora, o capitalismo verde.
Mas onde existem valores, princípios e projetos não existem Criaram-se salvaguardas sociais e ambientais e, em alguns
neutralidade nem consenso. O objetivo de tais políticas e casos, não financiam mais diretamente os projetos reconhecidos
instrumentos, no fundo, acaba sendo o de superar as resistências, por gerarem conflitos, fornecem ¨ajuda¨ técnica. Na maioria
a disputa, o conflito e garantir a aprovação de empreendimentos, dos casos, é possível verificar não somente a violação de
de determinados interesses. salvaguardas, o uso do Painel de Inspeção ou do Mici e outros
O debate sobre a adoção de salvaguardas por instituições instrumentos para banir o conflito, mas também como as
financeiras nos ajuda a perceber e refletir sobre tais aspectos. IFMs incorporaram determinadas demandas dos movimentos
A participação no processo de elaboração das salvaguardas e responsáveis pelas denúncias no plano do discurso mas que,
a sistematização das denúncias geradas com a violação delas, na prática, pouco serviram para o fortalecimento da luta para
sem dúvida, fortaleceram a ação coletiva das organizações além de demandas materiais pontuais nem revelaram uma
da sociedade civil envolvidas no processo e também das mudança estrutural na atuação da instituição. Tais demandas
populações atingidas pelos projetos. Cada denúncia exigiu não deixam de ser importantes, pois afinal os atingidos e as
uma reação da empresa, do Banco e do governo, talvez mais atingidasprecisam se alimentar e ter um teto sobre a cabeça,
do que os processos de negociação. No entanto, apesar de mas, como bem explica Boltanski, a luta não pode cantar vitória,
mostrar diversas irregularidades, os relatórios das IFMs nos precisa reconhecer como o dominante pode utilizar-se desta
casos mencionados aqui neste artigo não foram utilizados para vitória para debilitar a luta maior em torno de valores e princípios.
beneficiar os atingidos e as atingidas. Afinal, como exigir das O campo crítico não pode perder de vista que na tentativa de
instituições algo que para elas nem é considerado um problema? se banir o conflito está a tentativa de banir a ação autônoma de
Como negociar o interesse coletivo de populações atingidas e o sujeitos políticos que buscam justiça, contrapondo-se às relações
interesse de uma transnacional e de uma instituição financeira? desiguais no exercício do direito, das quais depende o atual
Daí surge, inclusive, o risco de se criar instrumentos e políticas padrão de acumulação altamente concentrador da renda, de
para estas instituições que podem servir para evitar o processo gênero e raça e predador da natureza e da sociedade.
judicial. Mesmo reconhecendo todas as limitações do sistema Assim sendo, é possível argumentar que promover e
judiciário na garantia e promoção de direitos, não se pode deixar radicalizar os conflitos significa reconhecer a sua contribuição.
de questionar quem poderia defender melhor as populações O que teria acontecido se o MAB não tivesse realizado um

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ficam as questões: quais são as verdadeiras possibilidades
de ação? Como atuar em um contexto onde por mais que a
restrição, a opressão e a repressão não sejam total, tampouco é
a liberdade? Qual seria o papel de uma rede de monitoramento,
denúncia e mobilização frente às instituições financeiras? A
transformação do capitalismo e seu sistema de justificação
transformaram também o papel dos movimentos de resistência.
Talvez o desafio esteja na análise das crises como elemento de
refundação da crítica, da radicalização do conflito e da ação.
Dito tudo isso, tem um ponto neste debate todo que é mais
que evidente e que talvez seja a maior contribuição do autor
Gabriel Strautman

e da autora deste artigo como resultado da experiência na


Rede Brasil. O papel das organizações e de redes como a Rede
Brasil precisa ser construído a partir da sua ação nos territórios.
“Sem resistência, somos apenas vítimas das situações”: conflito é constitutivo do sujeito A avaliação do uso de instrumentos como as salvaguardas
precisa ser realizada com base nas realidades, demandas e
acampamento na frente da barragem, diversas mobilizações necessidades de comunidades atingidas pelas IFMs, pelo
e ocupado a sede do BID? O que teria acontecido se os BNDES e por suas políticas e projetos. Como bem questionou
moradores de Pinheirinho não tivessem resistido bravamente nossa companheira de luta Jutta Kill, na IX Assembleia Geral
à reintegração de posse? Pode parecer que pouco mudou, mas da Rede Brasil, o papel de uma rede ou organização é abrir
a mensagem enviada por estas lutas aos capitalistas de plantão o espaço político ou ocupá-lo em nome de comunidades
é que a vida deles não será facilitada, outra barragem não será atingidas? Se for só abrir o espaço político, tudo bem, mas se
construída sem resistência, moradores legítimos não serão for ocupar, então, de onde veio este mandato? Nem o campo
retirados de suas terras sem resistência, sem luta; mostram que da crítica reformista nem da crítica contestatória podem ter
ainda existem sujeitos políticos coletivos lutando para romper este mandato. Assim sendo, a apropriação das reflexões aqui
com o sistema injusto e desigual e construir projetos de uma apresentadas para a elaboração de estratégias de luta diante das
sociedade distinta. Isso passa por rejeitar políticas e estratégias IFMs em geral só faz sentido se for construída com os sujeitos
de prevenção, resolução e mediação de conflitos. O conflito sociais em resistência e enfrentamento, só faz sentido se for
não pode ser resolvido, prevenido nem mediado, ele deve ser contextualizada e territorializada. É verdade que a maioria
reconhecido, fortalecido e radicalizado. das reflexões surgiu exatamente da experiência com estes
O conflito é também constitutivo do sujeito. Na vida da sujeitos, mas não para por aqui. Afinal, quem somos nós para
resistência e da opressão, ele serve também para colocar a definir o que é melhor para quem, de fato, sente e enfrenta, no
força da resistência à prova, mesmo quando a resistência não cotidiano, na pele, a dor e a luta de ser uma atingida ou um
consegue superar a opressão. Sem resistência, somos apenas atingido? Podemos contribuir com as nossas articulações,
vítimas das situações. Como dizia o poeta maranhense Antônio reflexões e compreensão sobre experiências passadas, suas
Gonçalves Dias “Viver é lutar”. Isso passa pela renovação da oportunidades, limites e riscos, mas jamais definir o que não é
crítica, por “tomar de volta aquilo que nos foi apropriado”. Mas nossa atribuição definir.

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Anexos
Tabela 1 – Política de Salvaguardas do Banco Mundial

Última
Política Principais características revisão
• as consequências ambientais potencias dos projetos deveriam ser identificadas no início do ciclo do projeto
• avaliações ambientais e planos de mitigação são requeridos para projetos com impactos ambientais ou reassentamento involuntário significativos
OP4.01 Avaliação ambiental 1999
• avaliações ambientais deveriam incluir a análise de desenhos ou localizações alternativos, ou considerar a “falta de opção”
• requer participação pública e o fornecimento substancial de informações
• proíbe financiar projetos “envolvendo a conversão significativa de habitats naturaisa menos que não haja alternativas factíveis”
OP4.04 Habitats Naturais • requer análises de custo/benefício ambientais 2001
• requer avaliação ambiental com medidas de mitigação
OP4.36 Florestamento • proíbe financiar operações de madeireiras comerciais ou a aquisição de equipamento para o uso em florestas úmidas tropicais primárias 2002

• apoia manejo ambientalmente correto de pragas, incluindo manejo integrado de pragas (mas não proíbe o uso de pesticidas altamente perigosos)
OP4.09 Manejo de pragas 1998
• o manejo de pragas é responsabilidade do tomador do empréstimo no contexto da avaliação ambiental de um projeto

• implementado em projetos que deslocam ou removem pessoas fisicamente em consequência da perda de bens produtivos, mudanças no uso da terra ou
OP4.12 Reassentamento da água
2001
involuntário • requer participação pública no planejamento do reassentamento como parte da avaliação ambiental do projeto
• intenciona restaurar ou melhorar a capacidade de gerar renda dos relocalizados

• o propósito é assegurar que os povos indígenas beneficiem-se de projetos de desenvolvimento financiado pelo Banco e evitar ou mitigar efeitos
potencialmente adversos sobre eles
• aplica-se a projetos que podem afetar negativamente a povos indígenas (exemplo: projetos de infraestrutura como estradas, represas, indústrias
OP4.10 Povos indígenas 2005
extrativas, etc.) ou quando os povos indígenas são definidos como beneficiários
• requer a participação dos povos indígenas na criação de planos de desenvolvimento de povos indígenas
• os problemas são frequentemente identificados em EIA-RIMAS

• o propósito é dar assistência na preservação do patrimônio cultural, como sítios com grande valor arqueológico, paleontológico, histórico, religioso e cultural
OP4.11 Patrimônio cultural • política geral é procurar dar assistência na sua preservação e evitar sua destruição 2006
• desencoraja o financiamento de projetos que vão causar danos ao patrimônio

• aplica-se a grandes represas (15 metros ou mais de altura)


OP4.37 Segurança de • requer acompanhamento por especialistas independentes em todas as etapas do ciclo dos projetos
2001
represas • requer preparação de planos detalhados para a construção e operação e inspeções periódicas pelo Banco
• requer avaliação ambiental

• cobre cursos de água que sejam fronteiras entre dois ou mais Estados, assim como qualquer baía, golfo, estreito ou canais fronteiriços a dois ou mais Estados
OP7.50 Projetos em cursos
• aplica-se a projetos de represas, de irrigação, controle de enchentes, navegação, águas e esgotos, e industriais 2001
de água internacionais
• requer notificação, acordos entre Estados, mapas detalhados, pesquisas sobre os recursos hídricos e estudos de viabilidade

• aplica-se a projetos onde existem disputas territoriais


OP7.60 Projetos em áreas • permite ao Banco continuar com um projeto se os governos concordarem que “sujeito à resolução da disputa, o projeto proposto para o país A poderá
2001
em disputa continuar, sem prejuízo para as pretensões do país B”
• requer imediata identificação de disputas territoriais e descrições em toda documentação pertinente do Banco

49
Tabela 2 – Padrões de Desempenho sobre Sustentabilidade Socioambiental do IFC

Política Principais objetivos Última revisão

• Busca identificar e avaliar os riscos ambientais e sociais e os impactos do projeto;


• Adota uma hierarquia de mitigação para antecipar e evitar ou, quando a prevenção não é possível, minimizar e, onde os impactos residuais
continuam, compensar os riscos e impactos para os trabalhadores, as comunidades afetadas e o meio ambiente;
PS1: Sistemas de gestão e • Busca promover a melhoria do desempenho ambiental e social dos clientes através do uso efetivo dos sistemas de gestão;
2006
avaliação socioambiental • Busca garantir que as reivindicações das comunidades afetadas e de outras partes interessadas sejam respondidas e gerenciadas
apropriadamente;
• Busca promover e proporcionar meios para o engajamento adequado das comunidades afetadas durante o ciclo de projeto e garantir que as
informações relevantes, do ponto de vista ambiental e social, sejam divulgadas e disseminadas.

• Busca promover o tratamento justo, não discriminatório e com igualdade de oportunidades para os trabalhadores;


• Busca estabelecer, manter e melhorar a relação trabalhador-gestor;
• Busca promover o cumprimento de leis nacional de emprego e direitos trabalhistas;
PS2: Condições de emprego
• Busca proteger os trabalhadores, incluindo as categorias de trabalhadores vulneráveis, como crianças, trabalhadores migrantes, 2006
e trabalho
trabalhadores terceirizados, abrangendo os trabalhadores da cadeia de fornecimento do cliente;
• Busca promover condições seguras e salubres de trabalho e a saúde dos trabalhadores;
• Busca evitar o uso de trabalho forçado.

• Busca evitar ou minimizar impactos negativos na saúde humana e ao meio ambiente por evitar ou minimizar a poluição proveniente
PS3: Prevenção e redução da de atividades do projeto;
2006
poluição • Busca promover o uso sustentável dos recursos, incluindo energia e água;
• Busca reduzir as emissões de GEE relacionadas ao projeto.
• Busca antecipar e evitar impactos adversos sobre a saúde e a segurança da comunidade afetada durante a vida do projeto, sejam
PS4: Saúde e segurança da de circunstâncias de rotina e não rotineiras;
2006
comunidade • Busca assegurar que a salvaguarda do pessoal e dos bens seja realizada de acordo com os respectivos princípios de direitos humanos e de
forma a evitar ou minimizar os riscos para as comunidades afetadas.

• Busca evitar e, quando a prevenção não é possível, minimizar o deslocamento ao explorar alternativas ao desenho do projeto;
• Busca evitar o despejo forçado;
• Busca antecipar e evitar ou, quando a prevenção não é possível, minimizar os impactos sociais e econômicos da aquisição de terras
PS5: Aquisição de terra e
ou restrições no uso da terra por (i) proporcionar uma compensação pela perda de bens ao custo de reposição e (ii) garantir que as atividades
reassentamento involuntário 2006
de reassentamento sejam implementadas com a divulgação adequada de informação, consulta e participação informada das pessoas afetadas;
• Busca melhorar ou restaurar as condições de vida e padrões de vida das pessoas deslocadas;
• Busca melhorar as condições de vida entre as pessoas fisicamente deslocadas através da provisão de moradia adequada e com segurança da
posse em locais de reassentamento.
PS6: Conservação da • Busca proteger e conservar a biodiversidade;
biodiversidade e gestão
• Busca manter os benefícios dos serviços do ecossistema;
sustentável de recursos 2006
naturais • Busca promover a gestão sustentável dos recursos naturais vivos através da adoção de práticas que integram as necessidades de
conservação e prioridades de desenvolvimento.

• Busca garantir que o processo de desenvolvimento favoreça o pleno respeito pelos direitos humanos, dignidade, aspirações, cultura e
seja baseado em recursos naturais e meios de subsistência dos povos indígenas;
• Busca antecipar e evitar os impactos negativos dos projetos sobre as comunidades dos povos indígenas ou, quando a prevenção não é
possível, minimizar e/ou compensar tais impactos;
PS7: Povos indígenas • Busca promover benefícios de desenvolvimento sustentável e oportunidades para os povos indígenas de maneira culturalmente apropriada;
2006
• Busca estabelecer e manter um relacionamento contínuo com base em consulta informada e participação com os povos indígenas afetados
por um projeto durante todo o ciclo do projeto;
• Busca garantir o consentimento livre, prévio e informado das comunidades indígenas afetadas, quando as circunstâncias descritas neste
Padrão de Desempenho estiverem presentes;
• Busca respeitar e preservar a cultura, o conhecimento e as práticas dos povos indígenas.

PS8: Patrimônio cultural • Busca proteger o patrimônio cultural dos impactos adversos das atividades do projeto e apoiar a sua preservação;
2006
• Busca promover a partilha equitativa dos benefícios provenientes do uso do patrimônio cultural.

50
Bibliografia
* Fabrina Furtado e Gabriel Strautman são economistas e foram secretários executivos  
da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais entre os períodos 2005-2008 ACSELRAD, H. A constitucionalização do meio ambiente e a ambientalização truncada do Estado
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ACSERLAD, H. Ambientalização das lutas sociais – o caso do movimento por justiça ambiental. Estudos
Avançados. vol. 24 n. 68, São Paulo, 2010.
1 Este recorde foi novamente superado em 2010, quando o BNDES desembolsou R$
168,4 bilhões; só a Petrobras recebeu um empréstimo de R$ 25 bilhões nesse ano.
ACSELRAD, H.; BEZERRA, Gustavo das Neves. Inserção econômica internacional e “resolução
Em 2011, o volume de desembolso do Banco caiu para R$ 139,7 bilhões, uma redução
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economia.
AGÊNCIA Brasil. Fundo será criado para ajudar regiões afetadas por barragens de Cana Brava e Serra
2 Tradução livre da expressão original do idioma inglês “do no harm”. da Mesa. Brasília, 10 de fevereiro de 2006.

CARTA MAIOR. Banco Mundial “se livra” de responsabilidade sobre Aracruz. 16 de março de 2006.
3 Após várias mobilizações no local do projeto e a instalação de um acampamento
Disponível em: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaImprimir.cfm?materia_id=10279.
contínuo em frente ao portão da barragem, um confronto entre a Polícia Militar de Acesso em: março de 2012.
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Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O mecanismo independente de consulta e
por Barragens (MAB) e no ferimento de várias pessoas, no dia 31 de maio de 2005, investigação. 2010. Disponível em: http://www.iadb.org/es/mici/acerca-del-mici-que-es-el-mici,1752.
300 agricultores atingidos pelas barragens de Cana Brava e Mesa da Serra ocuparam a html. Acesso em: 23 de janeiro de 2012.
sede do BID em Brasília. Os agricultores exigiram uma solução para o impasse em torno
_____. Reassentamento involuntário nos projetos do BID: princípios e diretrizes, 1999.
das 946 famílias expulsas no processo de construção da obra. A partir da ocupação, o
Banco iniciou um diálogo com as prefeituras dos municípios atingidos pela barragem _____. BID finaliza auditoria social do projeto hidrelétrico de Cana Brava no Brasil. 2004a. Disponível
para identificar áreas com potencial econômico e social na região, e com o governo em: http://www.iadb.org/pt/noticias/comunicados-de-imprensa/2004-05-25/bid-finaliza-auditoria-
social-do-projeto-hidreletrico-de-cana-brava-no-brasil,127.html. Acesso em: 23 de janeiro de 2010.
federal e a Tractebel-Suez para a criação de um fundo de desenvolvimento. O Fundo de
Desenvolvimento Regional Serra da Mesa/Cana Brava previa um amparo de R$ 5 milhões _____. Relatório final da Auditoria Social – Plano de Reassentamento da Usina Hidrelétrica de Cana
para a implantação de programas e projetos para garantir a sobrevivência econômica Brava, 2004.
das famílias de seis cidades que perderam suas casas após a construção das duas
_____. O mecanismo independente de consulta e investigação. 2010. Disponível em: http://www.iadb.
usinas hidrelétricas e que não foram enquadradas em auditorias como aptas a receber org/es/mici/acerca-del-mici-que-es-el-mici,1752.html. Acesso em: 23 de janeiro de 2012.
a indenização. Para Gilberto Cervinski, da coordenação do MAB, os R$ 4,5 milhões não
serão suficientes para resolver a situação das famílias: “Deveria haver um programa de BANCO MUNDIAL. Responsabilização do Banco Mundial. O Painel de Inspeção aos 15 anos. Banco
Mundial, 2009.
moradia, de instalação de luz. Este valor corresponde ao faturamento de quatro ou cinco
dias de uma empresa só” (AGÊNCIA BRASIL, 2006). A última informação recebida do BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
Movimento indicava que grande parte dos recursos estava sendo usada para atividades
BOLTANSKI, Luc. De la critique. Précis de sociologie de l’émancipation. Paris: Gallimard, 2009.
que desrespeitavam a história, tradição e costumes dos agricultores.
FISCHER, Roger. Como chegar ao sim: a negociação de acordos sem concessões. Rio de Janeiro: Imago,
4 Ver www.dams.org 1985.

GREENPEACE. A farra do boi na Amazônia. 2009. Disponível em: www.greenpeace.org.br/gado/


5 Ver http://www.worldbank.org/oed/extractive_industries/ farra_boi.kmz. Acesso em: janeiro de 2011.

HAJER, Maarten A. Ecological Modernization as Cultural Politics. In LASH, Scott; SZERSZYNSKI,


6 O que Acselrad (2008) caracteriza como processo truncado por ter sido ao longo do Bronislaw; WYNNE, Brian (Ed.). Risk, Environment & Modernity: Towards a New Ecology. Londres:
tempo interrompido, incompleto ou impedido de ser levado a cabo. Thousand Oak/Nova Delhi: Sage Publications, 1996.

7 A fala do representante do Banco Mundial foi captada como resultado da participação _____; VERSTEEG, Wytske. A Decade of Discourse Analysis of Environmental Achievements,
Challenges, Perspectives. Journal of Environmental Policy & Planning. Vol. 7, n. 3. Setembro de 2005.
na consulta do Banco Mundial em 2010. p. 175-184.

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51
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Disponível em: http://www.observaconflitos.ippur.ufrj.br/novo/ analises/TextoVainer.pdf. Acesso em : 13 de outubro de 2011.

52
53
O Banco Mundial influencia a formulação das políticas públicas de meio ambiente no Brasil: avanço da devastação

54
Banco Mundial: um
exemplo para o BNDES?
Lucia Ortiz*

U
m breve olhar sobre a atuação de duas influentes que busca o controle social para o redirecionamento do modelo
instituições financeiras no Brasil, hoje, mostra-se de desenvolvimento promovido pelo Banco e pelo Estado
bastante revelador do modelo de sociedade que elas brasileiro, em um contexto de flexibilização das leis ambientais.
defendem e definem. Por um lado, o Banco Mundial convoca Neste sentido, o texto traz uma avaliação das implicações
a sociedade civil para reavaliar, de modo protocolar, a sua políticas e operacionais do Empréstimo de Assistência Técnica
política de salvaguardas sociais e ambientais, ao mesmo e do Empréstimo de Ajuste Estrutural (TAL/SAL, sigla em inglês
tempo que formaliza um empréstimo de assistência técnica para Technical Assistance Loan/Structural Adjustment Loan),
para alterar o marco regulatório de energia e mineração financiados pelo Banco Mundial com o propósito de cooperar
no país. Por outro, o BNDES, ao passo que se consolida em na “melhoria” das políticas de gestão ambiental do Ministério
nível regional como instituição financeira pública mais do Meio Ambiente (MMA). Ambos precedem o Empréstimo
relevante que o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Programático de Política para o Desenvolvimento em Gestão
Desenvolvimento (BID) juntos, se projeta e às corporações Ambiental Sustentável Brasileira (SEM DPL, sigla em inglês),
brasileiras no cenário internacional e anuncia sua nova aprovado em março de 2009, no valor de US$ 1,3 bilhão para o
política socioambiental como uma resposta às condicionantes SEM DPL I e US$ 700 milhões para o SEM DPL II, sendo um dos
estabelecidas por um empréstimo do próprio Banco Mundial. maiores empréstimos do Banco Mundial já concedidos ao Brasil.
Neste contexto, cabe perguntar: quais as lições relevantes Desrespeitando a soberania brasileira, mais uma vez, o Banco
a serem aprendidas pelo BNDES com o Banco Mundial Mundial impôs como uma das condicionantes deste empréstimo
no sentido de salvaguardar a justiça social e ambiental da que o BNDES desenvolva a sua Política Socioambiental, além
aplicação do modelo de desenvolvimento que promovem do “aperfeiçoamento” do processo de licenciamento com o
estas instituições financeiras? propósito de reduzir os índices de judicialização das licenças
Este artigo recupera e avalia a influência recente do Banco ambientais dos megaprojetos de geração de energia no país.
Mundial, através de empréstimos, estudos e cooperação técnica, Este artigo também faz um alerta sobre o significado do
na formulação das políticas públicas na área de meio ambiente empréstimo SEM DPL outorgar ao BNDES um papel orientador
no Brasil, bem como a reprodução deste modelo e receituário e financiador de políticas de gestão ambiental aos órgãos
pelo BNDES. Seu intuito é explorar argumentos que compõem ambientais federal e estaduais, para além da formulação de suas
Daniel Beltrá/Greenpeace

a crítica à política socioambiental do BNDES, assim como próprias políticas operacionais.


questionar a proposição e incorporação de salvaguardas e Na área da política de clima, contemplada de forma central pelo
mecanismos de verificação como parte de uma estratégia política SEM DPL e capitalizada pelo BNDES, são analisados os impactos

55
da atuação do Banco Mundial sobre as políticas de mercados já recebiam a roupagem do “desenvolvimento sustentável”,
climáticos e eixos setoriais da Política Nacional sobre Mudança e as políticas de endividamento do Banco Mundial e do FMI,
do Clima (PNMC). O enfoque é dado ao Plano Agricultura associadas às receitas e condicionantes que impunham a
(que, na verdade, trata-se do Agronegócio) de Baixo Carbono liberalização do comércio e dos serviços e a desregulamentação
(Plano ABC) e às contradições do modelo da economia verde, do Estado. A sociedade civil internacional também se atentava,
impulsionado pelo BNDES que, agora, atua como gestor dos naquele momento, para a utilização de recursos públicos para
novos fundos ambientais e de clima, vis-à-vis o conjunto efetivar privatizações e fusões, abrindo o campo de atuação
dos impactos socioambientais promovidos pela carteira de das corporações multinacionais (no caso do Brasil, recursos
operações do Banco. provenientes do próprio BNDES).
Já nos primeiros anos 2000, a relevância política e econômica
IFMs: mais do que financiar projetos, implementar ideologias dos bancos multilaterais passou a ser ofuscada pelas instituições
financeiras públicas dos países emergentes, como o BNDES
Instituições financeiras, como o Banco Mundial e o BNDES, no Brasil, e outras privadas, assim como por espaços globais
têm um papel que vai além do empréstimo e da geração de de poder que se consolidam cada vez mais como decisivos
dívidas para implementar projetos de “desenvolvimento” ou da e orientadores da economia global. Dois exemplos destes
criação de novos produtos, fundos e mercados, que interessam a espaços são o G8 (grupo formado pelos, então, sete países mais
qualquer banco. industrializados e desenvolvidos economicamente do mundo -
As chamadas instituições de Bretton Woods, o Banco Mundial Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e
e o Fundo Monetário Internacional (FMI), foram criadas no Canadá - mais a Rússia) e o G20 (grupo que reúne as 19 maiores
pós-guerra com o compromisso de atenderem às demandas economias do mundo mais a União Europeia). Em um mundo
de reconstrução e desenvolvimento. Este último é um termo multipolar, estas instituições financeiras passam a subordinar-se
carregado de ideologias cunhadas para justificar a polarização aos novos blocos de poder internacionais e suas corporações,
econômica da ordem mundial daquela época e dar forma a menos do que representar Estados “sombra” tão diretamente
uma visão de futuro a ser perseguida, vinculada ao progresso e vinculados ao seu maior acionista, os Estados Unidos.
ao crescimento econômico, e que, atualmente, é cada vez mais A partir da crise financeira de 2008, o Banco Mundial e o
questionada como intangível, injusta e insustentável. FMI voltaram a se capitalizar e assumir o status de agentes
A partir dos anos 1980, impactos diretos relacionados a reguladores, retomando seus papéis políticos na economia,
megaprojetos financiados pelas Instituições Financeiras a serviço dos interesses dos grandes Estados-corporações,
Multilaterais (IFMs) nos chamados países em desenvolvimento, inclusive os emergentes como o Brasil. Neste ínterim, tanto
decididos e implementados à revelia das populações locais, como o Banco Mundial como o BID desenvolviam estratégias e
obras de irrigação e hidrelétricas, começaram a ser questionados discursos para legitimarem-se como fornecedores de soluções-
publicamente e atingiram repercussão internacional. empréstimos e gestores de novos recursos, negociados em
Na década seguinte, o movimento antiglobalização nível multilateral em resposta à consolidação da crise climática.
multissetorial juntamente com o Jubileu Sul, articulação que Aproveitando-se da preocupação crescente da sociedade com
tem como um de seus temas principais o cancelamento das este tema, estas instituições fomentaram novas lógicas de pensar
dívidas dos países do Sul Global, passaram a incidir e denunciar e criaram oportunidades para os fluxos de capital financeiro,
os projetos destas instituições financeiras, inclusive os que ainda que investindo massivamente no mesmo modelo fóssil

56
de desenvolvimento. Também os setores privados dos bancos direitos de participação e controle social sobre as instituições
multilaterais, como o Departamento de Setor Privado (PRI, sigla financeiras públicas, assim como sobre os seus projetos
em inglês), do BID, e a Corporação Financeira Internacional políticos de desenvolvimento.
(IFC, sigla em inglês), do Banco Mundial, e os bancos públicos
nacionais, como o BNDES, passaram por uma recapitalização a Rede Brasil: pioneirismo na denúncia sobre o projeto
partir da abertura de novos ambientes de investimento. político das IFMs
Os novos mercados ambientais, deflagrados junto com a crise
climática e ambiental, e a tentativa de consensualização de um Durante décadas, as Instituições Financeiras Multilaterais
marco político global com a promoção da economia verde, (IFMs) definiram estratégias para os países sem que a sociedade
como via de solução e reinvenção do capitalismo financeiro, civil nem os Parlamentos tomassem ciência de seus conteúdos.
contaram com a expertise técnica e política do Banco Mundial. No caso do Brasil, eram documentos restritos aos bancos e aos
A partir da elaboração de arcabouços lógico, político e legal, este ministérios da Fazenda e do Planejamento. A Rede Brasil, desde
Banco impulsionou, no Brasil, os mercados climáticos na política a sua fundação em 1995, analisa e disponibiliza o conteúdo dos
nacional de clima, o ajuste estrutural das políticas do MMA e a documentos de estratégia, as políticas e os projetos setoriais do
operação-piloto de fundos e programas de negócios ambientais Banco Mundial e de outras instituições financeiras.
no BNDES. Em 1997, a Rede Brasil, através da atuação junto ao Congresso
Um exemplo dessa estratégia foram as doações de cooperação Nacional, teve acesso e divulgou pela primeira vez, e em
técnica do BID para que diversos países da América Latina português, a Estratégia de Assistência ao País (CAS, sigla
implementassem políticas de cotas mandatórias de uso de em inglês para Country Assistance Strategy). Considerado
agrocombustíveis, seguidas de empréstimos do PRI e do IFC um documento secreto pelo Banco Mundial, ele explicitava
para grandes corporações para a produção de etanol e biodiesel. as intenções da “abertura econômica aos investimentos
Mais explícitos são os estudos do Banco Mundial sobre a internacionais”, que, de acordo com a agenda neoliberal,
Agricultura de Baixo Carbono (ABC) - adotados como base do significava privatizações e desregulamentação, contidas
plano setorial da Política Nacional sobre Mudança do Clima, que na forma de condicionalidades aos empréstimos ao país. A
envolve o BNDES no gerenciamento de parte dos empréstimos iniciativa sinalizou que, a partir daquele momento, as políticas
- e os diversos fundos-piloto de REDD e mercados de carbono e ações do Banco estariam na mira das organizações da
implementados pelo Banco Mundial, cuja lógica e modelo se sociedade civil. Esse fato gerou a abertura de um diálogo do
reproduzem nos chamados fundos verdes do BNDES, como Banco Mundial (e, posteriormente, do BID) com a sociedade
se verá adiante. civil sobre suas políticas. Desde então, outros documentos
Portanto, pelo papel definidor de políticas e do modelo de dos bancos que são de interesse da sociedade brasileira
desenvolvimento que as instituições financeiras públicas, passaram a ser analisados pela Rede Brasil, possibilitando a
como o BNDES, desempenham, a sociedade organizada exige organizações e movimentos sociais uma maior qualificação
que sejam salvaguardadas as condições de transparência e para fazer resistência, intervenção e denúncias sobre os
controle social para além das suas políticas de empréstimos impactos das políticas e dos projetos dessas instituições sobre o
e desembolsos para a implementação de projetos de desenvolvimento humano das populações.
infraestrutura, exportação ou mesmo conservação ambiental. Alguns documentos analisados pela Rede Brasil que
A demanda, antes de tudo ao Estado, é pela garantia dos escrutinam as estratégias políticas das IFMs para o país são:

57
Estratégia de Assistência ao País 2000-2003, A Experiência TAL/SAL: O pioneirismo do Banco Mundial no ajuste das
Brasileira com o Painel de Inspeção do Banco Mundial, políticas públicas para o meio ambiente
Impactos Negativos da Política de Reforma Agrária de Mercado
do Banco Mundial, Estratégia de Assistência ao País 2003- Desde 2004, o Banco Mundial introduziu os Empréstimos
2007, o empréstimo de ajuste do Banco Mundial para o de Política para o Desenvolvimento como uma forma de
Brasil, aprovado em 2004, o já mencionado Empréstimo de condicionalidade “mais suave e gentil”, de modo a substituir
Assistência Técnica/Empréstimo de Ajuste Estrutural (TAL/ os empréstimos de ajuste que tinham se tornado alvo da
SAL) e a Estratégia de Parceria com o Brasil 2008-2011 .1
desaprovação pública nos anos 19903.
Além do acompanhamento de projetos financiados Durante o primeiro mandato do governo Lula, o Empréstimo
pelos bancos públicos, a Rede Brasil apoia a resistência de Assistência Técnica/Empréstimo de Ajuste Estrutural (TAL/
nos territórios e, por vezes, incide diretamente sobre os SAL) apoiou uma tentativa de eficientização e de choque de
empréstimos através do uso dos mecanismos formais de gestão do MMA. No entanto, uma avaliação de seus resultados e
informação e monitoramento das IFMs, como os painéis de impactos nunca foi debatida publicamente.
inspeção. Sua trajetória política é, portanto, historicamente “Incluir a sustentabilidade ambiental na formulação,
contra-hegemônica e focada no questionamento e desenvolvimento e implementação das políticas do governo
enfrentamento das IFMs. Desse modo, a Rede Brasil não pode federal” foi, segundo o MMA, o objetivo formal da Reforma
ser capturada ou neutralizada pelas estratégias de diálogos, Programática da Sustentabilidade Ambiental (SAL Ambiental)4. O
participação e resolução de conflitos construídas ao longo programa de empréstimos junto ao Banco Mundial teve como
dos anos pelo Banco Mundial, e por outras instituições finalidade fortalecer o Sistema Nacional do Meio Ambiente
financeiras, em resposta às críticas sociais à sua atuação. (Sisnama) e incluir a dimensão ambiental nos setores de energia,
A Rede Brasil se propõe a colocar em xeque as políticas e saneamento, desenvolvimento agrário e turismo, entre outros.
mecanismos das IFMs e formular, com base no aprendizado Para dar apoio a este programa foi idealizado o Projeto
e nas demandas das populações atingidas, mecanismos que de Assistência Técnica para a Agenda da Sustentabilidade
garantam justiça na correlação de forças nos processos de Ambiental, mais conhecido como TAL Ambiental. Coordenado
negociação; de modo geral, estes mecanismos não foram pelo MMA, este projeto teve como objetivo apoiar a realização
internalizados por estas instituições. de estudos, diagnósticos, análises e capacitações necessárias
Ao mesmo tempo, a Rede não perde de vista o seu propósito à consolidação e ao avanço das políticas públicas de
de construção de conhecimento e de enfrentamento crítico à desenvolvimento sustentável.
atuação dos bancos nas distintas fases de implementação do No período da sua implementação, o MMA sofreu uma
modelo neoliberal e, consequentemente, aos seus impactos profunda reestruturação. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente
sobre os territórios e sobre as populações. É com esta mesma e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) foi separado em
perspectiva que vem, desde 2010, desenvolvendo uma análise duas entidades: uma voltada somente para o licenciamento
crítica sobre o processo de financeirização da natureza a partir ambiental, cujo indicador de eficiência passou a ser a velocidade
do desenvolvimento de novos marcos para as políticas de e o número de liberações de licenças ambientais; e a outra,
gestão ambiental sendo implementados no Brasil, em estreita chamada de Instituto Chico Mendes de Conservação da
correlação com empréstimos e cooperação entre o Banco Biodiversidade (ICMBio), foi direcionada para o gerenciamento
Mundial e o BNDES2. de áreas de proteção ambiental e florestas.

58
Como consequência, ao enfrentar cortes salariais e demissões, Desenvolvimento Sustentável (Fboms), através do seu Grupo de
os funcionários do Ibama entraram em greve em 2007 e a Trabalho (GT) Energia. Cerca de cinquenta organizações de todo
agência empregou consultores para responsabilizarem-se pelo o Brasil encararam o desafio pragmático de influenciar, a partir
licenciamento de grandes e polêmicas obras em tramitação, dos seus conhecimentos técnicos e políticos, os procedimentos
como a do Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira. do licenciamento ambiental.
Nesse cenário, a pressão do governo para que o Ibama liberasse O acordo aprofundou, no âmbito da sociedade civil, o debate
o licenciamento deste projeto foi impulsionada por um estudo propositivo sobre os procedimentos nacionais e internacionais
financiado por outro empréstimo de assistência técnica do de licenciamento e planejamento, com enfoque nas obras
Banco Mundial, dessa vez ao Ministério de Minas e Energia previstas para o setor energético9. Este processo resultou em uma
(MME), através do Empréstimo de Assistência Técnica para o série de estudos, documentos e recomendações, cujo conjunto
Setor Energético (Estal, sigla em inglês). Através da contratação considera as avaliações de escopo e alternativas de projetos a
de um consultor indiano foi emitido um diligente e providencial partir das realidades e potencialidades locais e, sobretudo, das
parecer técnico, referente à dinâmica dos sedimentos do Rio demandas regionais de desenvolvimento a partir da perspectiva
Madeira, que foi capaz de eliminar uma das barreiras centrais das populações, e não dos bancos ou das corporações.
apontadas pelos técnicos nacionais para o licenciamento. Pago, O resultado deste exercício se aproxima do instrumento,
portanto, pelo Banco Mundial, o consultor fez um parecer após posteriormente desenvolvido pela Rede Brasileira de Justiça
apenas dois dias de trabalho de campo que resolveu as últimas Ambiental, conhecido como Avaliação de Equidade Ambiental10.
pendências técnicas e permitiu a concessão de uma inédita No entanto, as recomendações feitas por este conjunto
“licença parcial” para o projeto .
5 6
da sociedade civil nunca foram incorporadas pelo MMA.
A Rede Brasil questionou a participação do Banco Mundial Paralelamente, este ministério contava também com o
neste episódio7 e participou também de algumas etapas de apoio da Associação das Indústrias de Base do Brasil (ABDIB)
monitoramento do empréstimo TAL/SAL, comparecendo a para aprimorar o licenciamento ambiental. Os resultados
reuniões no MMA8. A maior preocupação levada pela Rede desta parceria estabelecida com o setor industrial foram
nestas ocasiões era justamente o fato de que as políticas de visivelmente mais eficazes ao serem incorporados nas práticas e
salvaguarda, informação e transparência desenvolvidas pelo procedimentos para uma maior agilidade do licenciamento.
Banco Mundial não se aplicavam a estas modalidades de Ainda que calcado no discurso propagado de que todos os
empréstimos. O monitoramento, a rastreabilidade e a avaliação setores - governo, corporações e sociedade - devem unir-se
dos impactos e resultados dos empréstimos de ajuste ou pela proteção ambiental e no consensualismo promovido por
cooperação técnica, vis-à-vis seus objetivos e as políticas do instituições como o Banco Mundial, este episódio explicitou
próprio Banco Mundial, eram confundidos com a aplicação que a desigual correlação de forças e os inconciliáveis
do orçamento e dos programas de governo, por vezes sem interesses e visões de classes impossibilitam um processo real
seguimento adequado pelos ministérios e, em especial, pela de participação da sociedade organizada no desenvolvimento
própria sociedade civil junto ao MMA. de políticas públicas.
Por outro lado, o empréstimo TAL/SAL resultou no O acordo de cooperação técnica foi rompido pelo GT Energia
desenvolvimento de um acordo de cooperação técnica inédito, do Fboms no início de 2007 devido ao “não alcance” dos
firmado em junho de 2005 entre o MMA e o Fórum Brasileiro objetivos, seja no âmbito da implementação das propostas
de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e de procedimentos para o licenciamento, seja na realização

59
de atividades de capacitação popular e jurídica sobre o tema. Dilma Rousseff, em 8 de dezembro de 2011, da Lei Complementar
Politicamente, foi concomitante a mais uma derrota política do n° 140, que regulamenta o artigo 23 da Constituição Federal
MMA, diante de um governo desenvolvimentista que anunciava, e define as atribuições da União, estados e municípios na
goela abaixo da sociedade e do próprio ministério, o início da proteção do meio ambiente, incluindo as competências para
construção da UHE de Santo Antônio, no Rio Madeira, em 2008. emitir licenças ambientais e gerir o uso da fauna e da flora
A pressão do Banco Mundial em “aprimorar o licenciamento silvestre. As mudanças significativas na nova legislação acabam
ambiental” se dava também através de outros esforços para com o processo centralizado que existia até então, dividindo
flexibilizar a legislação ambiental e reduzir os índices de conflitos essas atribuições e competências entre estados e municípios,
e judicialização de grandes obras de infraestrutura. O estudo ficando a maioria dos processos de licenciamento ambiental sob
Licenciamento Ambiental de Empreendimentos Hidrelétricos no responsabilidade dos municípios.
Brasil: Uma Contribuição para o Debate, publicado em março 2 - “A adoção de mecanismos de resolução de conflitos
de 2008 pelo próprio Banco Mundial, por exemplo, teve um para o processo de licenciamento, especialmente para
considerável impacto e foi muito bem recebido pelo MME11. grandes projetos, de modo a minimizar a transferência
Segundo Guilherme Carvalho, então membro da Coordenação para o Judiciário de várias questões que deveriam ser
Nacional da Rede Brasil, neste estudo “os bancos multilaterais resolvidas dentro do escopo do processo administrativo de
demonstram preocupação quanto à capacidade do Ministério licenciamento ambiental”.
Público de criar embaraços aos empreendimentos considerados Estratégia já comentada no artigo anterior, de Fabrina Furtado e
fundamentais pelas IFMs aos seus portfólios e às estratégias Gabriel Strautman, em que se propõe a substituição do estado
dessas instituições para o país” .
12
de direito por consultas e encontros com desigual correlação de
Nesta publicação, o Banco Mundial questiona a legitimidade poder, conduzidos por especialistas de suposta neutralidade.
do Ministério Público (MP) de mover determinadas ações, por Dando seguimento à estratégia de destravar os constrangimentos
considerar que o MP não possui competência necessária para ambientais e acelerar a realização das grandes obras, em março de
suscitá-las, enfatizando particularmente os casos relacionados 2012, o governo brasileiro e o Banco Mundial assinaram mais um
ao processo de licenciamento de hidrelétricas. A questão do contrato de empréstimo para o MME, no valor de US$ 106 milhões.
prazo para a concessão de licenças constituía uma das maiores O financiamento para o Projeto de Assistência Técnica dos Setores
preocupações do Banco ao considerar, portanto, que a ação do MP de Energia e Mineral (Meta, sigla em inglês) tem como objetivo
não apenas deixaria de contribuir para a resolução de conflitos, “contribuir para ampliar e consolidar os avanços dos setores
como adicionaria mais variáveis a um processo considerado energético e mineral brasileiros, dando apoio à competitividade
demasiadamente demorado e um entrave ao desenvolvimento. e ao crescimento econômico e sustentável do país”. Os recursos
Além de diagnosticar a legislação ambiental e, ainda que não serão destinados ao desenvolvimento de projetos como o das
explicitamente, propor a regulação e o controle do MP sobre os hidrelétricas-plataforma - aplicado no Complexo Tapajós – para
processos de licenciamento, o documento trazia recomendações atender a requisitos e cuidados com o meio ambiente.
explícitas de propostas de leis e reformas políticas, tais como: Na ocasião da assinatura do contrato, o diretor do Banco
1 - “Formulação e adoção de Lei Complementar, Mundial para o Brasil, Makhtar Diop, afirmou que a matriz
esclarecendo as responsabilidades da União e dos estados energética do Brasil é a mais limpa do mundo e um exemplo
em relação ao licenciamento ambiental”. para o Banco13.
Proposta que, de fato, viria a resultar na sanção pela presidenta Como se vê, a atuação do Banco Mundial, ainda que possa ter

60
sido limitada por suas políticas de salvaguardas com relação a - o preenchimento de 600 vagas no Ibama, no MMA e no
empréstimos diretos a projetos de grande risco socioambiental, ICMBio e o apoio aos planos de Zoneamento Ecológico
como as hidrelétricas na Amazônia, seguiu contundente no e Econômico, descritos no Programa Amazônia
sentido de viabilizá-los através da flexibilização da legislação Sustentável (PAS);
nacional como um projeto político embutido nos empréstimos
de ajuste e cooperação técnica. - subsídio à elaboração do marco regulatório para o novo
Fundo Amazônia e a implementação do Plano Nacional
SEM DPL e BNDES, rezando a cartilha do Banco Mundial de Recursos Hídricos.
no choque de gestão ambiental
Os resultados incluem os seguintes objetivos (grifados
A relação do BNDES com o Banco Mundial tem se mostrado pela autora, por apresentarem as oportunidades financeiras
estruturante, indo além do desembolso ou dos esforços políticos decorrentes da política ambiental proposta e apoiada pelo
conjuntos na implementação de megaprojetos, como as obras do empréstimo do Banco Mundial):
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) ou da Iniciativa
para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana - aperfeiçoamento do processo de licenciamento
(IIRSA). Em novembro de 2008, o Banco Mundial anunciou o ambiental através da diminuição do número de licenças
Empréstimo Programático de Política para o Desenvolvimento disputadas na justiça pelo Ministério Público em 20% em
em Gestão Ambiental Sustentável (SEM DPL, sigla em inglês) para comparação com a média do período de 2002-2007;
o Brasil, com um valor de US$ 1,3 bilhão, em sua fase inicial, a
serem alocados e geridos pelo BNDES. - aumento das reduções de emissões de gás de efeito
A exemplo do que foram os polêmicos empréstimos para ajustes estufa planejadas, em 20 milhões de toneladas de
estruturais, na fase de liberalização das economias periféricas, para CO2 equivalente/ano, através do Mecanismo de
a privatização e eficientização dos serviços públicos, nos anos Desenvolvimento Limpo (MDL), do BNDES, e projetos do
1990, e dos investimentos do TAL/SAL, dos anos 2000, o SEM DPL Plano Nacional de Mudanças Climáticas;
teve por objetivo “melhorar a efetividade e a eficiência das políticas
e diretrizes do sistema de gestão ambiental”. - aumento da Gestão de Florestas Naturais Sustentáveis de
As ações políticas propostas incluem: áreas públicas e privadas de 27.000 km2 para 50.000 km2;
- a formulação e aprovação de uma nova Política
Institucional Socioambiental para o BNDES, que - apoiar uma área de 500.000 hectares através do Fundo
incorpore o Plano Nacional sobre Mudança do Clima, o Amazônia por promover atividades de uso sustentável
Protocolo Verde e a aplicação desta nova política para a da terra;
carteira completa de projetos do BNDES;
- redução de 110.000 toneladas de poluentes despejados
- a elaboração dos procedimentos de investimentos para nos rios, devido à aprovação dos projetos de saneamento
o BNDES gerir os riscos sociais e ambientais para os do BNDES.
sessenta subsetores da economia (incluindo energia, Nos documentos relativos ao empréstimo e suas
agricultura e transporte); condicionantes, a ausência de um processo de análise

61
de risco ambiental e social para a maioria dos projetos de inovação tecnológica e de incentivo ao aço verde (siderurgia
financiados diretamente era apresentada como justificativa que utiliza carvão de base florestal, um dos eixos do Plano Setorial
para a “ambientalização” do BNDES. Também se somava a da Política Nacional sobre Mudança do Clima); e, finalmente, a
essa justificativa o fato de este Banco não exercer um papel abertura de uma linha de crédito para qualificar órgãos estaduais
de autoridade em relação às considerações ambientais e de licenciamento.
sociais, como parte do processo de avaliação de seus projetos. Esta última diretriz, ao mesmo tempo que indica que o
Entretanto, desde o início da contratação do empréstimo BNDES reconhece a fragilidade dos processos estaduais de
até hoje, a sociedade civil organizada tem expressado licenciamento ambiental dos projetos que financia, coloca o
preocupações quanto ao processo, diretrizes e resultados Banco em um patamar duvidoso de expertise para recomendar
concretos da aplicação de uma nova política ambiental no processos de aprimoramento na gestão ambiental. Além
BNDES sob orientação do Banco Mundial. disso, esta proposta pode se tornar uma via de pressão e
Apesar de não serem novas as críticas em relação à fragilidade condicionantes para que os órgãos estaduais agilizem as
e à insuficiência do BNDES na área da gestão socioambiental, licenças de empreendimentos financiados pelo próprio Banco,
reconhece-se que efetivamente este Banco só se mobilizou deflagrando um conflito de interesses.
em função das condicionalidades colocadas no âmbito
do empréstimo SEM DPL pelo Banco Mundial14. Contudo, Os fundos verdes e o ABC do (agro)negócio climático
seu padrão de atuação se mantém aquém, com a exclusão
no processo em curso de qualquer diálogo ou consulta a O Banco Mundial foi pioneiro na disputa pelos promissores
organizações e instituições da sociedade. recursos financeiros para a Redução de Emissões por
Uma vez que a própria política ambiental do Banco Mundial Desmatamento e Degradação de Florestas (REDD). Ele lançou o
é questionada em dezenas de países, o modelo a orientar o seu Forest Carbon Partnership Facility (FCPF) em 2007, destinado
BNDES não apresenta grandes perspectivas e torna-se mais um a ajudar os países a “se prepararem” para o REDD e estabelecer
dos focos de ação dos grupos que atuam sobre as instituições alguns projetos-piloto de comercialização de carbono florestal.
financeiras multilaterais, como a Rede Brasil. Desde o seu início, o FCPF foi orientado para tornar-se
A política ambiental do BNDES se desenvolve em um contexto a “entidade coordenadora geral de todas as agências de
de avanço das reformas no sistema de licenciamento e na gestão implementação da preparação para o REDD (readiness)”, com
ambiental e de uma adequação mais profunda para que as o Programa de Investimento Florestal (FIP), também do Banco
políticas ambientais passem a dar sustentação e sejam orientadas Mundial, se esforçando para atingir o mesmo status no que diz
para os novos mercados ambientais. Estes, por sua vez, exigem respeito à implementação do REDD.
também uma espécie de ajuste estrutural que libere o meio Neste sentido, o financiamento foi empenhado por Noruega,
ambiente da proteção do Estado. Alemanha, Holanda, Japão, Austrália, Finlândia, Suíça, Espanha,
Esta política ambiental, portanto, inclui, além da revisão de suas Dinamarca, França, Reino Unido e Estados Unidos. Em junho
práticas operacionais, a estruturação da gestão de novos fundos de 2010, com um total de US$ 151,8 milhões de doações, apenas
ambientais, como o Fundo Amazônia e o Fundo Nacional sobre US$ 10 milhões haviam sido efetivamente gastos, caracterizando
Mudança do Clima; financiamentos para a recomposição de um importante período de capitalização do Banco, que ocorreu
biomas associados à negociação no mercado pelo BNDES dos de forma similar em outros fundos chamados “verdes”. O FIP
direitos aos créditos de carbono gerados; financiamentos na área prometeu, em 2008, recursos um pouco acima de US$ 560

62
milhões, mas nada havia sido
alocado até agosto de 201015.

Rodrigo Baleia / Greenpeace


Desde antes da crise financeira
deflagrada em 2008, o Banco
Mundial já tinha a intenção
de assumir a liderança no
financiamento do clima e promover
os mercados de carbono. Os Fundos
de Investimento Climático do Banco
Mundial (CIFs) foram estabelecidos
em 2008, quando catorze países
prometeram alocar US$ 6,5 bilhões
para dois fundos: o de Tecnologia
Limpa e o Estratégico para o Clima
(Clean Technology Fund e Strategic
Climate Fund.)
Atualmente, 45 países
em desenvolvimento estão
implementando projetos de
A proposta central da economia verde não é a defesa do meio ambiente: transformar a natureza em mercadoria
tecnologia, manejo de florestas
e expansão de energia renovável através dos recursos marketing, o Banco Mundial conta com doze fundos de carbono,
gerenciados pelo Banco Mundial. que já capitalizaram US$ 2,74 bilhões. Dezesseis governos
Os países desenvolvidos, por sua vez, optaram por ter o e 66 empresas privadas de vários setores já contribuíram
Banco Mundial como o gestor de suas contribuições já que, financeiramente para estes fundos e facilidades16.
assim, teriam maior controle sobre os recursos devido à O Banco introduziu papéis de créditos verdes especificamente
estrutura de governança do Banco orientada aos doadores: para financiar a mitigação e a adaptação climática, criando, ao
“um dólar, um voto”. E nas negociações da 16ª Conferência mesmo tempo, um novo produto financeiro e uma fonte de
das Partes para a Convenção-Quadro das Nações Unidas mercado para a capitalização de seus fundos sobre aquilo que
sobre a Mudança do Clima (COP 16), realizada em Cancum deveria ser a transferência de fundos públicos, não geradora de
em 2010, eles também conferiram ao Banco o papel de dívidas financeiras - como reconhecimento da responsabilidade
depositário do Fundo Verde do Clima. histórica dos países industrializados na geração da dívida
Mais recursos seguem sendo mobilizados via CIFs até que o climática. Atualmente, mais de US$ 2,3 bilhões em créditos
Fundo Verde do Clima torne-se operacional. O Banco Mundial verdes já foram emitidos através de 43 transações em dezesseis
tem a parceria de outras IFMs nos CIFs, como o BID, o Banco moedas diferentes.
Asiático de Desenvolvimento e o Banco Europeu para a O Banco também lançou um “programa multicatástrofe”, com
Reconstrução e o Desenvolvimento. bônus de seguro, acessível aos países em desenvolvimento e
Atualmente, segundo o seu próprio departamento de coberto pelos mercados de capitais. Orgulha-se de ser a maior

63
fonte mundial de financiamento para a redução de riscos de merecem um exame minucioso considerando os contínuos
desastres e reconstrução, tendo emprestado, desde 2007, US$ esforços da instituição em se tornar um agente nas negociações
9,2 bilhões para 215 projetos de recuperação pós-desastre; climáticas globais.
orgulha-se também do seu portfólio crescente nesta área. O
Banco Mundial contabilizou a monetização de 9,5 milhões de Fundo Amazônia (FA)
Certificados de Emissões Reduzidas para o Fundo de Adaptação
da Organização das Nações Unidas (ONU), atingindo a captação O governo brasileiro criou, em agosto de 2008, com recursos
de US$ 163 milhões, a partir destes mercados, em 2011. doados pelo governo da Noruega e em resposta às pressões pela
Sem dúvida, a crise climática contribuiu bastante, e deve seguir redução das contribuições do desmatamento da Amazônia ao
contribuindo, com a saúde financeira do Banco Mundial, um aquecimento global, o Fundo Amazônia (FA). Com o BNDES
exemplo seguido por outras instituições financeiras. como seu gestor, este fundo é um mecanismo de financiamento
O envolvimento do Banco nas negociações sobre a mudança de projetos que tem como objetivo prevenir e combater o
climática e a sua estratégia de “ganha-ganha” diante do caos desmatamento, além de promover a conservação e o uso
climático têm sido muito criticados pela sociedade civil. Com sustentável da floresta Amazônica.
o intuito de amenizar estas críticas, o Banco criou mecanismos Na época de sua criação, o governo empenhou-se em
de participação de observadores sobre seus fundos, incluindo construir uma alternativa institucional nacional às alternativas
representantes da sociedade e dos povos indígenas, e uma série multilaterais então apresentadas, como o Banco Mundial, mas
de salvaguardas. Dentre estas, estão a aplicação do princípio contou com um empréstimo deste para estabelecer as bases para
do consentimento livre, prévio e informado e medidas para o seu funcionamento. O FA, diferentemente dos outros fundos
salvaguardar os direitos dos povos indígenas e mecanismos de administrados pelo BNDES, criou um Comitê Orientador do Fundo
responsabilização (accountability) do Banco, incluindo a sua da Amazônia (Cofa), formado por representantes de governo, do
Política Operacional (OP) sobre as avaliações ambientais (OP setor empresarial e de organizações da sociedade civil.
4.01), povos indígenas (OP 4.1), recursos culturais físicos (OP 4.11) A criação do FA foi reconhecida como a primeira iniciativa
e o reassentamento involuntário (OP 4.12). de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação
Ou seja, os mesmos mecanismos criados para supostamente Florestal (REDD) no mundo, gerando, assim, uma grande
resguardar as populações nos países em desenvolvimento dos expectativa e despertando a atenção internacional das
impactos dos megaprojetos financiados pelo Banco, como agências de cooperação, governos, empresas e imprensa.
as hidrelétricas, as indústrias extrativas ou as de combustíveis Por esse motivo, passou a haver uma exigência, ao BNDES,
fósseis, seriam também aplicáveis quando se trata de tentar por transparência e informações que viabilizassem um
assegurar que fundos climáticos sejam, de fato, verdes. Além acompanhamento social efetivo e pelo desenvolvimento de um
disso, novos produtos e mercados financeiros asseguram padrão de atuação específico para este Fundo.
o staus quo das IFMs na manutenção das suas políticas de As organizações da sociedade civil no Comitê, o Instituto
desenvolvimento. Socioambiental (ISA) e a Federação de Órgãos para Assistência
Por esta razão, o apoio do SEM DPL para a elaboração de Social e Educacional (Fase), indicadas pelo Fboms, pautaram sua
regulamentações para o Fundo Amazônia e outros fundos atuação por garantir a transparência, assegurar o controle social
verdes no BNDES, bem como a legitimação do Plano Setorial da e a democratização do acesso aos recursos do Fundo, para que as
Agricultura de Baixo Carbono pelos estudos do Banco Mundial, organizações locais sejam, de fato, as beneficiárias dele.

64
Atualmente, permanece o desafio de dar maior transparência como potencial de incorporação dos mercados de carbono
ao fluxo de avaliação e contratação dos projetos, aos pré- florestal em desenvolvimento e lançados de forma pioneira pelo
requisitos de elegibilidade e sobre como os critérios definidos Banco Mundial.
pelo Cofa são aplicados nos procedimentos de análise dos
projetos. Também cabe ao BNDES desenvolver modelos de Fundo Nacional sobre Mudança do Clima (FNMC)
aplicação de projetos diferentes dos utilizados para a análise e
contratação dos seus financiamentos que, pela sua natureza, não O Fundo Clima, do BNDES, se destina a aplicar a parcela de
são apropriados para os objetivos do FA. recursos reembolsáveis do Fundo Nacional sobre Mudança
No início da operação deste fundo, os procedimentos, as do Clima, ou Fundo Clima, um dos instrumentos da Política
prioridades e a estrutura burocrática do BNDES acabavam por Nacional sobre Mudança do Clima vinculado ao Ministério do
inibir o acesso a ele por parte de pequenas organizações da Meio Ambiente, criado pela Lei 12.114 em 09 de dezembro de
sociedade civil e beneficiar aquelas de grande porte, como a The 2009 e regulamentado pelo Decreto 7.343, de 26 de outubro
Nature Conservancy (TNC), uma organização conservacionista de 2010.
de origem estadunidense que recebeu R$ 16 milhões do FA, entre É o primeiro fundo no mundo a utilizar recursos oriundos da
os cinco primeiros projetos contratados para o terceiro setor. participação especial dos lucros da cadeia produtiva do petróleo
O FA já contratou 23 projetos no valor total de R$ 477 para financiar ações de mitigação e adaptação às mudanças
milhões . Sobre os valores já contratados, R$ 876 milhões são
17
climáticas e seus efeitos.
do governo da Noruega, R$ 54 milhões da Alemanha e R$ 7,9 Coordenado pelo MMA, o Comitê Gestor do FNMC é composto
milhões da Petrobras .18
de representantes governamentais, comunidade científica,
O grande desafio, porém, é alinhar a política de financiamento empresários, trabalhadores e organizações não governamentais
do BNDES para a região com os objetivos orientadores do FA, e foi anunciado durante a COP 16 do Clima, em Cancum, em
para que este não se torne meramente uma via de mitigação dezembro de 2010. As organizações representantes da sociedade
de impactos negativos dos grandes projetos financiados pelo civil são o Vitae Civilis, membro da coordenação do GT Clima,
próprio Banco. A perspectiva conservacionista dos projetos até indicado pelo Fboms, e a TNC, ONG internacional indicada
aqui contratados sugere que o foco tende a ser o de mitigação, pela rede Observatório do Clima. Cabe ao comitê administrar,
articulado às oportunidades de mercados de carbono a serem acompanhar e avaliar a aplicação dos recursos em projetos,
exploradas. Enquanto uma proposta muito mais consistente estudos e empreendimentos de mitigação e adaptação da
e necessária seria o investimento na implementação de um mudança do clima e seus efeitos.
desenvolvimento regional sustentável que valorize a diversidade Para o governo, este Fundo tem um papel estratégico na
cultural e biológica da região, inserida em um contexto “promoção do modelo de desenvolvimento sustentável de
de geração de renda e que seja alternativa ao modelo de baixo carbono”19. Neste contexto, apoia atividades voltadas para
megaempreendimentos extrativos voltados ao mercado global. o combate à desertificação e para a adaptação à mudança do
A meta estabelecida através do empréstimo SEM DPL, de que clima, ações de educação e capacitação, projetos de REDD+,
a política ambiental do BNDES apoiasse “uma área de 500.000 o desenvolvimento de inclusão de tecnologias, a formulação
hectares através do Fundo Amazônia por promover atividades de políticas públicas, as cadeias produtivas sustentáveis e o
de uso sustentável da terra”, também aponta para uma pagamento por serviços ambientais, entre outras atividades que
contabilidade de carbono/território a ser inicialmente mapeada abrem caminho aos mercados verdes.

65
para prevenção e controle do
desmatamento: Amazônia e
Guilherme Resende

Cerrado. Os outros três são


específicos para os setores de energia
(amplamente focado na expansão da
hidroeletricidade e da agroenergia),
agricultura (Plano ABC) e siderurgia
(ambos focados na eficientização de
grandes plantações de alimentos ou
de árvores para carvão vegetal).
Cabe ressaltar que estes planos
setoriais têm sido criticados
pelos movimentos sociais e por
organizações da sociedade civil por
serem considerados simples versões
esverdeadas de planos setoriais
do PAC. A crítica também afirma
que continuam ausentes os planos
específicos de redução das emissões
reais que envolvem temas centrais
para a mitigação das mudanças
Os bancos se apropriaram da crise climática como uma oportunidade de capitalização: saúde financeira
climáticas, como a redução do uso de
O Fundo dispõe de um orçamento de R$ 229 milhões, sendo combustíveis fósseis; a agroecologia; a economia solidária e o
R$ 200 milhões (87%) reembolsáveis na forma de empréstimos desenvolvimento de mercados locais; as redes comunitárias de
e financiamentos voltados para a área produtiva, gerenciados construção de cisternas e o manejo comunitário dos recursos
pelo BNDES. Os outros R$ 29 milhões seriam administrados hídricos; e a mobilidade e a reorganização da ocupação das
pelo MMA em projetos de pesquisa, mobilização e avaliações áreas urbanas.
de impacto das mudanças do clima, podendo ser repassados Ao contrário do FA, o FNMC não tem foco no apoio a ações e
para os estados e municípios por meio de convênios e termos projetos do terceiro setor. Com os recursos a serem destinados
de cooperação. O FNMC pode ainda receber recursos de outras na forma de financiamentos públicos pelo BNDES, ele é
fontes, inclusive doações internacionais, que venham a ser direcionado aos setores públicos, pelo MMA, e às demandas do
estabelecidos no âmbito da Convenção do Clima. setor privado.
O foco deste Fundo está no apoio das ações estratégicas Desse modo, projetos do agronegócio, como o plantio
de combate às mudanças do clima identificadas nos planos direto e a expansão dos transgênicos, são apresentados em
setoriais articulados pelo Fórum Brasileiro de Mudanças nova roupagem como projetos inovadores de adaptação aos
Climáticas (FBMC) e previstos no Plano Nacional sobre efeitos das mudanças climáticas. Conhecidos no jargão da
Mudança do Clima (PNMC). Dois planos trazem as ações sociedade civil como “falsas soluções”, eles vêm na esteira da

66
sensibilização com a problemática do clima e da pavimentação crescer ainda mais. Isso, somando-se ainda às oportunidades
do caminho para a chamada economia verde. de redução de emissões com a ampliação do uso do etanol
Plano ABC – Agronegócio de Baixo Carbono e do biodiesel, assim como as vastas oportunidades para os
O Estudo de Baixo Carbono para o Brasil, lançado pelo negócios de “reflorestamento” (leia-se plantações de árvores),
Banco Mundial em maio de 201020, legitimou as bases dos tanto da reserva legal e das áreas de preservação permanente
planos setoriais de mitigação de carbono no âmbito da como de pastagens degradadas. Inclui ainda a “compensação”
Política Nacional sobre Mudança do Clima, em especial o de com o plantio de florestas comerciais ou florestas de produção,
Agricultura de Baixo Carbono (ABC), que trata do uso de solo especialmente para produção de carvão vegetal para o aço e
para agropecuária e florestas. No ano anterior, uma consultoria ferro através de monoculturas de espécies comerciais21.
internacional de empresas para o setor financeiro, a McKinsey No mesmo ano de 2010, iniciaram-se as discussões do
& Company, também lançou seu estudo Caminhos para uma governo federal para elaboração dos planos setoriais no âmbito
Economia de Baixa Emissão de Carbono no Brasil. da PNMC, contando com a participação de ONGs indicadas
Ambos tiveram seus gráficos e “curvas de custo de pelo Fórum Brasileiro sobre Mudanças Climáticas. O grupo de
oportunidade” amplamente utilizados por gestores e funcionários trabalho formado para a construção do Plano ABC teve como
do governo para justificar a formulação de políticas públicas que objetivo avaliar seus subprogramas, a acessibilidade das linhas
favorecem as opções de mercado para os negócios do clima, de financiamento ofertadas para a agricultura de baixo carbono
calculadas com base na mudança de um “cenário de referência” canalizadas pelo BNDES a outras instituições financeiras e
para outro, identificado como de “baixo carbono”. debater as possibilidades e desafios para a conciliação das metas
As principais ações propostas pelo estudo no cenário de brasileiras de redução de emissões e o aumento da produção
referência (projeção para 2030 das tendências históricas, de alimentos, fornecendo subsídios para a transformação dos
dinâmicas e tendências atuais) são pertinentes ao maior fator mercados em direção a uma agricultura de baixo carbono.
de emissões de gases de efeito estufa pelo Brasil: a mudança O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
do uso do solo (expansão da agricultura e pecuária) e do (Mapa) instituiu em junho de 2010 o programa Agricultura de
consequente desmatamento. O cenário alternativo, chamado Baixo Carbono (ABC), com ações inseridas no Plano Agrícola
de “baixo carbono” pelo Banco, não contesta a expansão do e Pecuário que incentivam iniciativas básicas com metas e
agronegócio, da pecuária e das monoculturas para a produção resultados previstos até 2020:
da agroenergia, fomentados amplamente pelo BNDES.
Pelo contrário, parte do princípio de que estes são “motores - Plantio direto na palha, com o objetivo de ampliar
fundamentais da economia brasileira” e trata de reforçar o os atuais 25 milhões de hectares para 33 milhões de
crescimento continuado destes setores, tentando acomodar hectares, com redução relativa de emissões estimadas
esta expansão no cenário de “baixo carbono”, juntamente em 16 a 20 milhões de toneladas de CO2 equivalentes;
com os compromissos ambiciosos do Brasil de redução de
desmatamento. Também naturaliza o desmatamento ilegal - Recuperação de pastos degradados, com previsão de
como parte do cenário de referência, reforçando a ideia da recuperação de 15 milhões de hectares e redução de 83 a
necessidade de pagamento para o cumprimento da legislação. 104 milhões de toneladas de CO2 equivalentes;
O estudo reforça que, com ajustes tecnológicos que
reduziriam as emissões, o agronegócio e a pecuária poderiam - Integração lavoura-pecuária-floresta, aumentando a

67
utilização do sistema em 4 milhões de hectares para responsáveis são as corporações destes mesmos setores.
evitar a liberação entre 18 e 22 milhões de toneladas de O que parece contraditório não é. Somente a contínua poluição
CO2 equivalentes; e degradação da natureza pode tornar os bens comuns escassos
e, assim, elevar seu preço nos mercados e nas bolsas de valores;
- Plantio de florestas comerciais, com foco em aumentar ou seja, no mundo das instituições financeiras que, hoje,
a área de 6 milhões de hectares para 9 milhões de controlam a política. Assim, o Banco Mundial, que não é nenhum
hectares; exemplo de sustentabilidade, influencia com sua agenda
neoliberal a financeirização da natureza e da política ambiental
- Fixação biológica de nitrogênio e tratamento de resíduos do Brasil, adotada também pelo BNDES.
animais.22,23 Independentemente de contabilizar qualquer redução de
impactos ou a efetiva aplicação de salvaguardas socioambientais
Nota-se que o estímulo à expansão do agronegócio é nos seus projetos, o BNDES já lançou uma série de fundos e
diretamente proporcional ao cálculo de créditos de redução produtos financeiros verdes: Fundo Amazônia, Fundo Clima,
de emissões, gerando, a partir da ficção de um cenário futuro, Iniciativa BNDES Mata Atlântica, BNDES Florestal (destinado
uma enxurrada de títulos negociáveis no mercado de emissões também ao “reflorestamento” com monocultura de espécies
e justificando as políticas públicas de incentivo ao modelo exóticas comerciais), BNDES Project Finance (engenharia
agroindustrial exportador, em detrimento de outros setores financeira suportada contratualmente pelo fluxo de caixa de
não contemplados nos planos de mitigação das mudanças do um projeto, servindo como garantia os ativos e recebíveis desse
clima, como o da agroecologia. Os recursos públicos, para o mesmo empreendimento), BNDES Compensação Florestal (de
Plano ABC, disponíveis via BNDES, alcançaram, para a safra apoio à regularização do passivo de reserva legal em propriedades
2011/2012, R$ 3,150 bilhões, contemplados no plano agrícola e rurais destinadas ao agronegócio e à preservação e valorização
pecuário, com limite de financiamento de R$ 1 milhão, taxas das florestas nativas e dos ecossistemas remanescentes), BNDES
de juros de 5,5% ao ano e prazo para pagamento de cinco a Proplástico - Socioambiental (apoio a investimentos envolvendo
quinze anos .24
a racionalização do uso de recursos naturais, MDL, sistemas de
gestão e recuperação de passivos ambientais e financiamento
Bolha dos fundos verdes: novo negócio para o BNDES e as de projetos e programas de investimentos sociais realizados por
corporações brasileiras empresas da cadeia produtiva do plástico), ECOO11 - iShares
Índice de Carbono Eficiente Brasil (constituído por ações de
Como já afirmado anteriormente, o empréstimo SEM DPL, empresas brasileiras que divulgam suas emissões de CO2), BNDES
anunciado em 2008 e aprovado em março de 2009, apresentou Empresas Sustentáveis na Amazônia, BNDES Fundo de Inovação
como uma condicionalidade do Banco Mundial a criação de uma em Meio Ambiente, FIP Brasil Sustentabilidade (foco em projetos
política socioambiental pelo BNDES. de MDL e com potencial para gerar Reduções Certificadas de
Apesar de este Banco não ter deixado de concentrar o dinheiro Emissões) e FIP Vale Florestar (em áreas degradadas na região de
público nas grandes corporações, como a Vale (mineração), a abrangência de Carajás).
Fibria (celulose) e a Cosan (agrocombustíveis, hoje pertencente A aprovação do Novo Código Florestal, com o lançamento
à Shell), ele, paralelamente, criou uma série de fundos verdes de um novo e gigante mercado de Certificados de Reserva
para lucrar com as crises do clima e da biodiversidade, cujas Ambiental (CRA), ou seja, de compensação (offseting) de

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biodiversidade, registrados em títulos que serão também ambientais, significa deslocar o foco do debate sobre o modelo
produtos financeiros, é um fato emblemático que explicita de desenvolvimento e do papel central que as instituições
como as leis podem criar mais oportunidades de mercado do financeiras vêm desempenhando na sua promoção.
que de proteção ambiental. Os projetos de lei em tramitação
no Congresso Nacional, como os PLs sobre REDD e sobre Salvaguardas do Banco Mundial e critérios setoriais do
Pagamentos por Serviços Ambientais (PSA), estão também BNDES: dois pesos e duas medidas
orientados para lançar novas bolhas verdes, cuja operação exige
ajustes profundos na lógica das políticas ambientais. Eles passam As salvaguardas socioambientais do Banco Mundial foram
pela revisão do papel do Estado na gestão ambiental e na garantia elaboradas como uma resposta às criticas sobre a atuação da
dos direitos dos cidadãos a um ambiente equilibrado para o instituição e a seu duplo padrão ao lidar com legislações, ou
de regulador de mercados verdes, e pela perda de direitos e de mesmo a falta de resguardos legais às populações e à natureza,
soberania das populações nos territórios, em um favorecimento em países em desenvolvimento diante da implementação de
de novos direitos das corporações, dos investidores, dos megaprojetos financiados pelas IFMs em seus territórios.
mercados e das instituições financeiras. As salvaguardas, como políticas de aquisição de terras,
É importante ressaltar que estas instituições influenciam reassentamento involuntário de povos indígenas ou de redução
políticas públicas que flexibilizam a proteção ambiental e da poluição, davam conta de nivelar ou padronizar os guias de
enfraquecem os direitos sociais conquistados, ao mesmo tempo operação do Banco em diferentes países com (ou sem) políticas
que sugerem sua gradual substituição por critérios, salvaguardas, distintas quanto à propriedade territorial, populações tradicionais
práticas operacionais e novas oportunidades, produtos ou limites e controle da poluição. Tais limites, padrões ou
financeiros e fundos verdes que resultam no aumento e na restrições, aliados a uma política de informação pública sobre
concentração do seu poder político e no menor controle social os projetos, as operações e sobre as instâncias e momentos
das políticas de desenvolvimento. decisórios no Banco, dariam à sociedade organizada meios para
Em outras palavras, as políticas ambientais, orientadas pela acionar os instrumentos de monitoramento (compliance) como
cooperação técnica de instituições como o Banco Mundial ou estratégia complementar dos movimentos de resistência às IFMs
geridas por instituições financeiras como o BNDES, tornam e seus projetos.
contraditória qualquer iniciativa de regulamentação através No caso do Brasil, até pouco tempo atrás, as política nacionais
de critérios e salvaguardas porque implicam um processo que de gestão ambiental e territorial, inclusive o Código Florestal, que
se aprofunda na perda de direitos e na contínua deterioração incide sobre a propriedade privada reconhecendo a função social
do papel do Estado como garantidor deles, em detrimento e ambiental da terra, eram vistas como completas e avançadas
dos interesses e novos direitos do mercado, sendo agora em comparação à maioria dos países em desenvolvimento. Isto
assegurados por lei. antes dos ataques ideológicos, técnicos e políticos do próprio
Tal como o Banco Mundial, o BNDES tem se utilizado de uma Banco Mundial ao Sisnama, ao sistema de licenciamento
estratégia de capitalização diante da crise ambiental como central ambiental e ao desmonte ruralista do Código Florestal, que se
à sua política socioambiental. Fortalecer essa lógica através da tornou um marco para o mercado financeiro de compensações
criação de critérios e salvaguardas, seja para o financiamento de biodiversidade e pagamentos por serviços ambientais.
de grandes obras e projetos, seja para aqueles produtos e fundos Mesmo assim, se o BNDES se propusesse a simplesmente
que deveriam ter como premissa a proteção e conservação observar e respeitar a legislação brasileira nos financiamentos

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que concede aos projetos no Brasil e no exterior, e fornecesse cunho social e ambiental e incorporar critérios socioambientais
acesso à informação para o seu monitoramento, salvaguardaria aos demais produtos, quando couber”. Além disso, estabelece três
as comunidades de situações tais como o cercamento e a critérios setoriais, analisados aqui com brevidade, que tampouco
proibição de acesso das populações às áreas próximas da mina são denominados salvaguardas.
de carvão da Vale em Moatize, por exemplo. Os “critérios socioambientais para o apoio ao setor de geração
Quanto ao financiamento no Brasil, o BNDES reafirma seu elétrica”, ao contrário de responderem a uma das demandas
compromisso com a legislação nacional25, em especial com a formais apresentadas ao Banco pela Plataforma BNDES para
“avaliação do atendimento a exigências ambientais legais, em a adoção de uma política pública de informação e de critérios
especial o zoneamento ecológico-econômico e o zoneamento sociais e ambientais em seus financiamentos para o setor
agroecológico, e a verificação da inexistência de práticas de atos hidroelétrico, definem somente limites máximos elegíveis
que importem em crime contra o meio ambiente”. Também, para termelétricas alimentadas por combustíveis fósseis (óleo e
como resposta a sucessivas denúncias, se compromete com carvão mineral).
a “pesquisa cadastral do beneficiário que inclui verificação de Como a Resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente
apontamentos referentes a trabalho análogo a escravo (consulta (Conama) 382, de 2006, não incluiu as termelétricas quando
aos dados do Ministério do Trabalho e Emprego) e a crimes estabeleceu limites de emissão de poluentes à atmosfera por
ambientais”, sem, contudo, explicitar se e quando os resultados fontes fixas, como fez para as indústrias de celulose, cimento
dessa pesquisa levam a recusar ou limitar os financiamentos às e siderurgia, delegou o estabelecimento de normas específicas
empresas (ou beneficiários) solicitantes, a não ser em diretrizes para fontes com relevância regional, como o carvão mineral,
setoriais específicas, como as desenvolvidas para o setor da aos estados. No Rio Grande do Sul, por exemplo, a articulação
pecuária e da cana-de-açúcar. das indústrias do setor carbonífero buscou, a partir de 2007 no
O BNDES estabelece ainda uma “avaliação do atendimento Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema), a definição
a exigências sociais legais e a verificação do atendimento de limites máximos acima dos permitidos nos licenciamentos
às políticas do BNDES relativas às medidas de qualificação e dados pela Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam)
recolocação de trabalhadores se, em função do empreendimento nas últimas décadas. O objetivo era a criação de um novo
apoiado, ocorrer redução do quadro de pessoal; à proteção de mercado de licenças de poluição para aqueles empreendimentos
pessoas portadoras de deficiência; e à inexistência de práticas que, ao contribuírem com a poluição instalando novas
de atos que importem em discriminação de raça ou gênero, termelétricas a carvão, pudessem ainda assim negociar “créditos
trabalho infantil ou trabalho escravo ou de outros atos que de poluição” por não usarem uma cota máxima e extremamente
caracterizem assédio moral ou sexual”. Tais políticas internas permissiva estabelecida sob sua influência por resolução
não são claramente divulgadas ou passíveis de monitoramente estadual. Já o BNDES, responsavelmente, estabelece limites mais
e verificação pela sociedade civil a ponto de considerarem-se restritivos em comparação a esta malfadada iniciativa, visando à
salvaguardas no sentido em que se aplicam ao Banco Mundial. utilização das melhores tecnologias disponíveis, ainda que com
Por fim, o BNDES estabelece ainda diretrizes para a política limites duas vezes superiores ao recomendado na época por
socioambiental, entre as quais: “atuar alinhado com as políticas técnicos da Fepam26.
públicas e legislações vigentes, em especial com o disposto na Todavia, cabe questionar o papel do BNDES na definição
Política Nacional de Meio Ambiente” e “desenvolver e aperfeiçoar de tais limites em substituição às políticas de saúde pública e
permanentemente produtos financeiros voltados a objetivos de meio ambiente que o Estado teria o dever de promover para

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assegurar o direito constitucional dos cidadãos a um ambiente questões tramitem em julgado.
equilibrado. Nesse sentido, cabe questionar também o seu O BNDES divulgou na sua política setorial para a cana, em
financiamento à expansão de empreendimentos que usam 2012, o acolhimento de parte destas recomendações, assim
fontes obsoletas e altamente poluentes de geração de eletricidade como das Resoluções do Conselho Monetário Nacional (CMN)
e com reconhecidos passivos ambientais no Brasil, como o nº 3.813 e 3.814, de 26 de novembro de 2009, que condicionam
carvão mineral, além de empresas com registro de passivos já o crédito rural e agroindustrial para a expansão da produção
reconhecidos pelo próprio BNDES e que exploram os leilões de e da industrialização da cana-de-açúcar ao Zoneamento
termelétricas fósseis, como a Bertin e a MPX .27
Agroecológico e vedam o financiamento da expansão do
Já as “diretrizes e critérios ambientais para o apoio ao açúcar plantio nos biomas Amazônia e Pantanal e na Bacia do Alto
e ao álcool” tiveram como clara motivação as denúncias Paraguai, entre outras áreas. O BNDES informa que a falsidade
dos movimentos reunidos no I Encontro Sul-Americano de das declarações e/ou informações requeridas por parte do
Populações Impactadas por Projetos Financiados pelo BNDES, beneficiário poderia acarretar o vencimento antecipado dos
realizado em novembro de 2009, no Rio de Janeiro, e as contratos, sem prejuízo da aplicação das sanções legais cabíveis,
proposições elaboradas pela ONG Repórter Brasil, em 2011 . 28
mas não especifica seus próprios mecanismos de avaliação de
Esta organização avalia que as políticas de salvaguarda do conformidade com tais critérios.
BNDES carecem de transparência e foco, ainda que tenham Por fim, as “diretrizes específicas para a concessão de apoio
avançado com a criação de critérios específicos para o ao setor de pecuária bovina” respondem a um processo
financiamento do setor da pecuária e a assinatura de um termo de campanhas e denúncias da sociedade civil organizada,
de cooperação com o Ministério Público do Trabalho (MPT), de que contou também com o apoio do Ministério Público e
modo a não financiar empresas que praticam trabalho escravo denúncias do Tribunal de Contas da União (TCU), envolvendo
ou infantil. o BNDES, grandes empresas como a Bertin e as ações de
Para o ramo sucroalcooleiro, a Repórter Brasil sugeriu desmatamento ilegal29.
mecanismos específicos para a análise de riscos socioambientais Tais exemplos, ao mesmo tempo que expõem as fragilidades
e o acesso e controle públicos dos critérios e das operações para do BNDES, sua preocupação diante das críticas da sociedade
este setor. Além disso, demandou procedimentos de cobrança civil organizada e a efetividade das denúncias e protestos sociais,
de cumprimento de suas salvaguardas, medidas cabíveis de explicita os limites e as contradições entre os interesses do Banco
ajustes e sanções e condições de monitoramento dos impactos e sua tentativa de adequação e legitimação destes através de sua
dos projetos financiados, dando publicidade às ações de política socioambiental.
auditoria e de sua metodologia, bem como às sanções aplicadas. Indica também que a setorização de diretrizes ou salvaguardas
Quanto aos casos com condenação por crimes ambientais e confere um duplo padrão ao Banco ao lidar com determinados
de trabalho escravo, sugere a adoção de medidas por parte do setores em detrimento de outros que não estejam sob a mira da
BNDES independente de sua inclusão nas listas do MTE e do sociedade organizada ou com pressão suficiente para influenciar
Ibama e a adoção de uma política de acolhimento de denúncias as ações do Banco.
e recomendações dos ministérios públicos, considerando, Desta forma, a Plenária dos Movimentos Sociais, realizada
prioritariamente, a tramitação de ações correntes na justiça em Brasília em maio de 201230, defendeu e desafiou o BNDES
que possam implicar o impedimento do desenvolvimento da a: ampliar a aplicação da determinação do TCU quanto às
atividade fim como barreira para o repasse de recursos, até que as salvaguardas contratuais para casos de superfaturamento para

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todos os projetos financiados pelo Banco, e não apenas para populações atingidas no campo, na cidade ou na floresta.
aqueles realizados no âmbito da Copa do Mundo de 2014; A Rede Brasil, ao longo dos seus 17 anos de atuação, se pautou
não financiar empresas com ações tramitando na justiça, e pela construção dos caminhos da transparência, do controle
a suspender suas atividades fins, não se limitando aos casos social e da incidência, tendo como aliados atores políticos
de empresas condenadas em última instância; financiar nacionais, como os movimentos sociais e o Parlamento, e redes
massivamente a agricultura familiar e campesina, a diversificação internacionais, de modo a escrutinar, denunciar e resistir às
da matriz energética e produtiva do país, a infraestrutura social formas de implementação do modelo neoliberal pelo Banco
de transporte e saneamento públicos, o micro e pequeno Mundial e suas consequências.
empreendimento e os empreendimentos da economia solidária. Já o BNDES não tem política de informação suficiente sobre
sua carteira de projetos. Não tem mecanismos de participação
Considerações finais e transparência na discussão e construção de sua política
socioambiental. Esta foi resultado de uma condicionante de
O Banco Mundial nunca teve salvaguardas para o seu projeto um empréstimo do Banco Mundial para eficientizar a gestão
neoliberal. Soube muito bem capturar a crítica da sociedade civil e ambiental no Brasil. Tal como o Banco Mundial se reinventou
neutralizá-la em processos de consulta, participação, construção e se recapitalizou com o discurso da crise climática e a
e tentativas frustradas de uso de mecanismos complexos de preocupação ambiental, e agora se fortaleceu assim como o
transparência e responsabilidade (accountability), bem como criar FMI com a crise financeira, o BNDES segue a mesma cartilha.
os caminhos para desviar-se da sua própria burocracia para a Cresce privilegiando grandes conglomerados de corporações
execução de projetos polêmicos e o aprofundamento do modelo nacionais e aprofundando o modelo agroexportador
de “desenvolvimento”, entre eles o repasse de recursos para outras extrativista, ao mesmo tempo que cria novos fundos e
instituições financeiras como o BNDES. produtos financeiros para lucrar com os mercados da escassez
Através da sua capacidade de formulador de opinião, de ambiental. Estes fundos captam recursos no exterior e com
pensamentos e de políticas liberais, forjou consensos e a os grande projetos desenvolvimentistas nacionais, como
aceitação social às suas teses, velhas ou novas. Atua nesse a exploração do pré-sal, e geram ativos e saúde financeira
sentido desde a disseminação da ideologia dos pós-guerra, para o Banco, assim como para estas próprias corporações
passando pelos processos de privatização e liberalização da que têm, por força das políticas públicas de nova geração
economia, pela maquiagem do desenvolvimento sustentável recomendadas, entre outros pelo Banco Mundial, obrigação
e, mais recentemente, pela forçada união de setores e classes de adquirir títulos no mercado para a compensação de seus
em nome da proteção ambiental e do enfrentamento da crise impactos sociais e ambientais não evitados pela burocrática
do clima. Também é parte do modus operandi do Banco a política de salvaguardas.
forçosa tentativa de conciliação contraditória entre crescimento Cria-se, assim, um complexo círculo vicioso, que não
econômico, degradação ambiental e aumento da lucratividade dispensa uma intrincada arquitetura financeira e de
com a escassez dos serviços ambientais dos bens comuns, comunicação para maquiar a realidade de verde e impor
promovida pela economia verde. O Banco atua também uma tênue, porém eficaz, aceitação social, apresentada como
com o claro propósito de invisibilizar a luta e a emergência e suposto consenso e capaz de abafar, neutralizar e invisibilizar
convergência de novas classes, para além dos trabalhadores conflitos latentes e a resistência à imposição do modelo
formalizados, como mulheres, indígenas, camponeses e neoliberal sobre os territórios e a vida das pessoas.

72
* Lucia Ortiz é Coordenadora do Programa Justiça Econômica – Resistência ao Neoliberalismo – 18 Dados do Fundo Amazônia em: http://www.fundoamazonia.gov.br/FundoAmazonia/fam/site_pt/
Amigos da Terra Internacional e Membro da Coordenação Nacional da Rede Brasil sobre Instituições Esquerdo/Doacoes/
Financeiras Multilaterais.
19 Ver sobre o Fundo Clima, em: http://www.ecodebate.com.br/2010/10/27/decreto-regulamenta-
fundo-nacional-sobre-mudanca-do-clima-fnmc-ou-fundo-clima/
1 GONÇALVES, Reinaldo. O Banco Mundial no Brasil: da guerra de movimento à guerra de posição -
Análise do documento ‘Estratégia de Parceria com o Brasil, 2008-2011’. Rede Brasil, janeiro de 2009, 20 WORLD BANK. Brazil low carbon country case study, maio de 2010 em: http://siteresources.
em: http;//www.rbrasil.org.br worldbank.org/BRAZILEXTN/Resources/Brazil_LowcarbonStudy.pdf

2 Ver edições III e IV da revista Contra Corrente, da Rede Brasil em: http://www.rbrasil.org.br 21 Ver entrevista com análise sobre o estudo ABC, do Banco Mundial, em: ohttp://www.ecodebate.
com.br/2010/07/02/estudo-de-baixo-carbono-brasil-uma-reciclagem-do-discurso-dos-velhos-
3 MC ELHINNY, Vincent. Empréstimos de política ambiental do Banco Mundial ao BNDES - atores-entrevista-com-lucia-ortiz-e-camila-moreno/
deslocando o dinheiro ou o meio ambiente? Movendo dinheiro ou consolidando uma política
ambiental? Bank Information Center, setembro de 2009, em: http://www.bicusa.org/es/Article.11453. 22 Dados do Programa ABC em: http://www.agricultura.gov.br/desenvolvimento-sustentavel/
aspx programa-abc

4 http://www.mma.gov.br/apoio-a-projetos/tal-ambiental-assistencia-para-agenda-sustentavel 23 Dados do Programa AB em: http://www.agricultura.gov.br/abc/

5 ALAM, Sultan. Projeto Rio Madeira – Estudos Hidráulicos e de Sedimentos: Relatório Preliminar. 24 Dados do BNDES em: http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/bndes/bndes_pt/Institucional/Apoio_
Ministério das Minas e Energia. Brasília, janeiro de 2007. Financeiro/Programas_e_Fundos/abc.html

6 CARVALHO, Guilherme. Os Bancos Multilaterais e o Complexo Rio Madeira: a tentativa de garantir 25 Da Política Socioambiental do BNDES em: http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/bndes/bndes_pt/
o controle dos recursos naturais da Amazônia para o grande capital. Adital, julho de 2009, em: http:// Institucional/Apoio_Financeiro/Politicas_Transversais/Politica_Socioambiental/analise_ambiental.
www.adital.com.br/site/noticia_imp.asp?cod=40702&lang=PT html

7 Ver correspondência entre Rede Brasil e Banco Mundial em: 26 ECOAGÊNCIA. Governo do RS muda representantes em colegiado para tentar aprovar limites de
http://www.riosvivos.org.br/Noticia/Resposta+do+Banco+Mundial+a+carta+da+sociedade/10653 poluentes das usinas a carvão fora de qualquer bom-senso em: http://nejrs.blogspot.com.br/2008/08/
governo-do-rs-muda-representantes-em.html e Ambiente Já, 2008: Governo Yeda manipula
8 Em Brasília, 22 de dezembro de 2005, 10 e 23 de fevereiro e 21 de junho de 2006, do Relatório da Consema para aumentar tolerância com poluição de termelétricas em: http://ambienteja.info/
Rede Brasil 2006. ver_cliente.asp?id=130859

9 Ver sobre o Termo de Cooperação entre MMA e Fboms em: http://www.fboms.org.br/files/energia/ 27 Com dificuldades para tocar seus projetos, Bertin negocia venda de ativos
Termo_coopFBOMS_MMA.pdf Grupo ofereceu usinas termoelétricas a alguns investidores, entre eles a MPX, de Eike Batista,
23 de fevereiro de 2011, em: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,com-dificuldades-para-
10 Ver sobre Avaliação de Equidade Ambiental em: http://www.justicaambiental.org.br/projetos/ tocar-seus-projetos-bertin-negocia-venda-de-ativos,683229,0.htm
clientes/noar/noar/UserFiles/17/File/Encarte_AEA_2ed.pdf
28 REPÓRTER BRASIL. O BNDES e sua política socioambiental: uma crítica sob a perspectiva da
11 BANCO MUNDIAL. Licenciamento Ambiental de Empreendimentos Hidrelétricos no Brasil: uma sociedade civil organizada, fevereiro de 2011, em: http://www.reporterbrasil.org.br/documentos/
contribuição para o debate. Banco Mundial, março de 2008, em: BNDES_Relatorio_CMA_ReporterBrasil_2011.pdf
http://siteresources.worldbank.org/INTLACBRAZILINPOR/Resources/Relatorio_PRINCIPAL.pdf
29 BNDES ajudou a patrocinar desmatamento da Amazônia, diz TCU: a auditoria aponta falha na
12 CARVALHO, Guilherme. Os Bancos Multilaterais e o Complexo Rio Madeira: a tentativa de garantir coordenação dos programas do governo, a cargo da Casa Civil, 23 de outubro de 2010, em: http://
o controle dos recursos naturais da Amazônia para o grande capital. Adital, julho de 2009, em: http:// www.estadao.com.br/noticias/vidae,bndes-ajudou-a-patrocinar-desmatamento-da-amazonia-diz-
www.adital.com.br/site/noticia_imp.asp?cod=40702&lang=PT tcu,628829,0.htm
13 Ver notícia sobre empréstimo do Banco Mundial para o Projeto de Assistência Técnica dos Setores
de Energia e Mineral (Meta) em: http://pmdb.jusbrasil.com.br/politica/8446719/lobao-contrato-que- 30 Carta aberta da Plenária dos Movimentos Sociais ao Banco Nacional de Desenvolvimento
beneficia-projetos-no-setores-de-energia-e-mineral Econômico e Social – BNDES, 2 de maio de 2012, em: http://cupuladospovos.org.br/wp-content/
uploads/2012/05/CartaAberta-1.pdf
14 TAUTZ, C.; Siston, F.; Lopes Pinto, J. B.; Badin, L. O BNDES no período Lula e a reorganização
do capitalismo brasileiro: um debate necessário. In: CORECON e Centro de Estudos para o
Desenvolvimento. Os anos Lula - contribuições para um balanço crítico 2003/2010. Ed. Garamond,
2010, em: http://www.plataformabndes.org.br/index.php?option=com_docman&task=cat_
view&gid=67&Itemid=29

15 AMIGOS DA TERRA INTERNACIONAL. REDD, as realidades em branco e preto, novembro de 2010,


em: http://www.foei.org/redd-realities-pt

16 Dados do Banco Mundial em: http://climatechange.worldbank.org/content/climate-finance-and-


world-bank-facts

17 Dados do Fundo Amazônia em: http://www.fundoamazonia.gov.br/FundoAmazonia/export/sites/


default/site_pt/Galerias/Arquivos/Informes_Portugues/2012_07_20_informe_15jul12_portugues.pdf

73
O BNDES financia a transnacionalização das empresas brasileiras: exportação de violações

74
A responsabilidade
do BNDES pelas violações
aos direitos humanos
Jadir Anunciação de Brito*

O
presente estudo examina os efeitos causados pelos Breve resumo histórico
contratos de financiamento de instituições financeiras
na violação de normas nacionais e internacionais O BNDES, a partir de 19763, passou a incoporar a variável
de proteção e promoção dos Direitos Humanos Econômicos, ecológica nos seus negócios através de mecanismos de
Sociais, Culturais e Ambientais (Dhescas) de grupos e populações mercado que favoreceram a apropriação do capital sobre a
vulneráveis. São também examinadas as possibilidades de natureza por instrumentos financeiros. Para uma compreensão
aplicação dos instrumentos jurídicos, por parte do Ministério desta financeirização da natureza é importante compreender
Publico ou da sociedade civil, para o fortalecimento da que naquele período crescia o debate internacional sobre o
implementação dos Dhescas na promoção da justiça ambiental1, desenvolvimento sustentável, sobretudo em decorrência dos
sob a perspectiva da responsabilidade solidária dos bancos, inúmeros impactos socioambientais das atividades econômicas
especialmente do Banco Nacional de Desenvolvimento e das decisões da I Conferência da Organização das Nações
Econômico e Social (BNDES), por se tratar de uma instituição Unidas (ONU) sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em
financeira pública. Estocolmo, na Suécia, em 1972. Estas medidas contratuais
Diante das desigualdades econômicas e das injustiças ambientais do BNDES passaram a ser implementadas mesmo
ambientais2 a que estão submetidas as comunidades pobres antes da Lei 6938/81, que estabeleceu o conceito de “poluidor-
Daniele Ribeiro, Justiça Ambiental (JA) - Amigos da Terra Moçambique

no Brasil, a Rede Brasil solicitou que este estudo examinasse as pagador”, bem como o modelo regulatório de responsabilidade
seguintes questões: bancária sobre o destino dos financiamentos, e criou os marcos
a) Como avançar no acesso das comunidades afetadas e gerais dos condicionantes para a regulação do uso da natureza
organizações sociais às vias legais de corresponsabilização na perspectiva formal do desenvolvimento sustentável.
dos agentes financeiros por violações de acordos e leis sociais Na década de 1980, a conjuntura internacional passou cada vez
e ambientais? mais a incorporar o debate ambiental, inclusive associando-o
b) As vias legais de corresponsabilização podem ser formas de aos interesses de mercado. Esta conjuntura foi pressionada
pressão política por mudanças nos rumos e nas práticas pelos movimentos sociais internacionais e também pelos
do BNDES? crescentes impactos na natureza e nas populações mais pobres,

75
que passaram a sofrer diretamente os danos das externalidades variável ecológica nos contratos de financiamento bancário foi
ambientais e sociais geradas pelo capitalismo industrial. um instrumento de revalorização do capital, da renda da terra
A demanda por uma regulação ambiental internacional e da expansão da indústria, especialmente da construção civil,
caracaterizadora da responsabilidade ambiental das instituições do agronegócio e do comércio, causando conflitos ambientais,
financeiras passou a ser pautada em vários países. A inclusão supressão de direitos historicamente conquistados e impactos
da variável ecológica nas atividades das instituições financeiras, que agravaram a pobreza e as desigualdades social e ambiental6.
em especial o BNDES, ganhou organicidade a partir do Nos anos 1990, o governo brasileiro instituiu, por meio da Lei
intercâmbio destas com o Banco Mundial, que promoveu a 6938/81, a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), ainda
inclusão institucional da agenda ecológica nos bancos a partir em vigor. Esta Política criou os conceitos de poluidor-pagador
da criação de requisitos formais de sustentabilidade como e de responsabilidade financeira ambiental e, formalmente,
condição para apoio aos projetos de financiamento. Houve, estabeleceu condicionantes ambientais para a contratação
inclusive, a criação de linhas específicas de financiamento de operações bancárias, para atividades industriais, para o
para a implementação de projetos industriais de conservação e licenciamento ambiental, o Sistema Nacional do Meio Ambiente
recuperação do meio ambiente sem nenhuma vinculação com (Sisnama) e a fiscalização administrativa dos órgãos ambientais.
compromissos no combate das desigualdades e da pobreza O licencimento ambiental, prescrito no modelo regulatório
causadas pelos danos ambientais. brasileiro dos anos 1980, já estabelecia condições “verdes” para
A Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e a apropriação capitalista da natureza, especialmente ao regular
o Desenvolvimento, a Rio 92, influenciada por uma grande rede os condicionantes ecológicos e sociais para o financiamento
de atores políticos dos movimentos sociais e das Organizações bancário a empreendimentos geradores de impactos ambientais
Não Governamentais (ONGs), aprovou princípios e mecanismos e violações de direitos. A instituição da responsabilidade
formais para a promoção do denominado desenvolvimento bancária solidária pelo destino dos financiamentos, de forma
sustentável. Embora com baixa implementação e poucos adversa, fortaleceu uma financeirização das políticas públicas
impactos sobre as externalidades ambientais, os princípios e ambientais, seja pelas condicionantes ambientais estabelecidas
mecanismos formais, entre outras funções, estabeleceram a como critérios para a liberação de financiamentos bancários,
regulação das instituições financeiras através da possibilidade da seja pelo favorecimento de uma ambientalização das instituições
sua responsabilidade solidária no destino dos financiamentos4. financeiras por meio da retórica ambiental para a expansão do
Entretanto, estes mecanismos tiveram um efeito adverso ao capital financeiro.
favorecer o surgimento de uma espécie de mercado da natureza Houve uma baixa eficácia da implementação da
institucionalizado, pelo qual os recursos ambientais passaram a responsabilidade bancária. Por outro lado, houve um aumento
ser mais um ativo da revalorização e da reprodução do capital. das normas contratuais bancárias relativas à responsabilidade
No Brasil, a Rio 92 favoreceu uma crescente retórica do das instituições financeiras. Dois exemplos são as disposições
desenvolvimento sustentável ou da sustentabilidade ambiental, aplicáveis aos contratos do BNDES e as normas e instruções
presente nas concepções das políticas públicas, nos modelos de acompanhamento previstas na resolução nº 665/877. Estas
regulatórios e nos projetos de desenvolvimento econômico disposições aumentaram o controle sobre a liberação dos
que se dirigiram para a criação de condições do surgimento recursos financeiros e dos condicionantes contratuais formais
do chamado “mercado verde”, da capitalização da natureza 5
para essa liberação sem, contudo, inovarem na aplicabilidade
ou ainda do indeterminado conceito de “economia verde”. A e na fiscalização dos impactos da aplicação deles. Estes

76
condicionantes significam que o próprio banco, por imposição fiscalização de controle, de manejo, uso dos serviços e recursos
legal, reconheceu os riscos ambientais e sociais dos seus ambientais, tampouco estabeleceu um desenho institucional
financiamentos e, consequentemente, a sua corresponsabilidade justo e democrático de apropriação social da natureza capaz de
ou responsabilidade solidária pelo destino deles. No entanto, orientar condições para a sustentabilidade fora dos parâmetros
embora tenha prescrito condicionantes contratuais, o BNDES de desenvolvimento orientado pela mercantilização da natureza
não estabeleceu mecanismos bancários de monitoramento, e da vida. Assim, o BNDES, mesmo antes da Rio 92 e sob a
fiscalização e controle dos impactos gerados na destinação dos orientação do Banco Muncial, já buscava condições de liberação
recursos liberados. Essa circunstância transcorreu apesar de o de financiamento de modo que permitisse condições formais de
Banco possuir mecanismos legais, contratuais, para a resilição inclusão da variável ambiental na liberação de financiamento:
ou rescisão contratual, bem como outros, a exemplo dos Termos “Em 1989, foi criada a primeira unidade ambiental do BNDES,
de Ajustamento de Conduta (TACs) e do ajuizamento de ações cuja atribuição foi coordenar o processo de internalização da
de responsabilização dos seus financiados pelo descumprimento variável ambiental nos procedimentos operacionais do Banco. As
dos condicionantes socioambientais contratuais e pelos operações passaram a receber classificação de acordo com o seu
impactos gerados. Não há informações de precedentes da impacto ambiental”.
utilização destas medidas jurídicas legais e contratuais para Sob a influência da Rio 92 e da retórica do desenvolvimento
fins de exigir dos financiados o cumprimento de cláusulas sustentável, o capital financeiro é estruturado juridicamente de
contratuais relativas aos eventuais danos socioambientais forma a possuir mais segurança para a sua reprodução. O BNDES
decorrentes da aplicação dos recursos. declarou que “assinou acordos internacionais que visavam à
Ainda na década de 1990, os marcos regulatórios ambientais recuperação de áreas ambientalmente degradadas, como o
brasileiros favoreceram o aprofundamento da financeirização contrato de financiamento do Programa Nacional de Controle da
das políticas públicas ambientais e da ambientalização dos Poluição Industrial, assinado com o Banco Mundial e o Eximbank
investimentos econômicos. Este processo é consolidado por do Japão (atual JBIC), no valor total de US$ 100 milhões”10.
meio de várias iniciativas institucionais, a exemplo do Protocolo O Banco Mundial criou um conjunto de estratégias adotadas
Verde e das resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente pelo BNDES através de mecanismos como o Empréstimo
(Conama), que estabeleceram condicionantes para a liberação de Programático de Política para o Desenvolvimento em Gestão
financiamentos por meio de resoluções, como as nº 001/86, nº Ambiental Sustentável (SEM DPL, sigla em inglês de Sustainable
006/86 e nº 237/97. Environmental Management Development Policy Loan), que
A legislação da responsabilidade ambiental brasileira, formada permitiram a consolidação da organização do capitalismo
nos anos 1980 e 1990, permitiu ao setor financeiro, a exemplo financeiro “verde” no Brasil através da financeirização das
do BNDES, desenvolver, mais recentemente, um conjunto de políticas públicas ambientais, da flexibilização da legislação
ativos financeiros para a denominada “economia verde”8, cujo ambiental e da minimização da promoção e da proteção
objetivo imediato era a reprodução do capital financeiro no dos Dhescas nos conflitos ambientais11. A introdução dos
Brasil, que favoreceu a consolidação de um mercado da natureza Empréstimos de Política para o Desenvolvimento (DPLs, sigla em
que expandiu os seus investimentos mesmo com violações dos inglês), como uma forma de condicionalidade flexibilizada12 para
Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais os negócios das instituições financeiras, criou condições “verdes”
(Dhescas) . A responsabilidade ambiental bancária brasileira
9
para a reprodução do capital, especialmente na América Latina.
pouco favocereu a implementação das políticas públicas de No Brasil, a criação da Diretoria de Meio Ambiente no BNDES

77
está relacionada à implementação do SEM DPL, cuja função CAPÍTULOVI
seria criar instrumentos para o desenvolvimento em Gestão DO MEIO AMBIENTE
Ambiental Sustentável no Brasil, com apoio financeiro Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente
do Banco Mundial. Entretanto, os SEM DPLs representam ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do
mais do que exigências formais de contratos para a povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se
liberação de recursos do capital financeiro internacional, ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
ou aportes de recursos financeiros internacionais. Os preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
SEM DPLs se constituíram em um modelo de política
ambiental e financeira com a introdução de instrumentos (...) § 2º - Aquele que explorar recursos minerais fica
da chamada ecoeficiência, a exemplo dos Mecanismos obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de
de Desenvolvimento Limpo (MDLs), das tecnologias para acordo com solução técnica exigida pelo órgão público
a redução do desmatamento na Amazônia e dos usos competente, na forma da lei.
dos recursos hídricos, entre outros, que expressamente
permitiram uma apropriação da natureza pelo capital13. § 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas
O comprometimento da política de salvaguardas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas
socioambientais do BNDES, a partir de 2008, não atendeu aos físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas,
princípios da informação e da participação ambiental, sendo independentemente da obrigação de reparar os danos
as resultantes desta política a revalorização do capital no causados.
mercado contemporâneo, e não propriamente a construção
de instrumentos capazes de combater as desigualdades e Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização
injustiças socioambientais14, assegurando a apropriação social do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim
da natureza pelas populações mais pobres15, para acesso, assegurar a todos existência digna, conforme os ditames
manejo e uso sustentável dos recursos e serviços ambientais16. da justiça social, observados os seguintes princípios:
Os MDLs não favoreceram a implementação dos Dhescas,
posto que estes mecanismos são instrumentos de políticas VII - redução das desigualdades regionais e sociais.
públicas de mercado cuja centralidade não é a sustentabilidade
socioambiental, mas sim a reprodução do capital financeiro Conforme dispõem os artigos 225 e 170, inciso VII da
por meio da “economia verde” . Além disso, eles causam mais
17
Constituição Federal, as condutas e atividades consideradas
injustiças ambientais às populações vulneráveis18. lesivas que possam causar danos sociais e ambientais sujeitam
os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e
Marco regulatório sobre a responsabilidade ambiental administrativas, independente da obrigação de reparação dos
dos agentes financeiros danos. Os danos causados pelo poluidor ao ambiente e às
populações, inclusive por instituições financeiras como o BNDES,
O marco regulatório da responsabilidade ambiental do são uma responsabilidade Civil Objetiva, Cumulativa e Solidária.
capital, inclusive o financeiro, por danos socioambientais, entre Estes danos acarretarão a responsabilidade civil objetiva, na
outros dispositivos, está contido no artigo 225, parágrafo 3º da qual não será permitido ao poluidor alegar as excludentes de
Constituição Federal de 198819: caso fortuito, força maior ou culpa de terceiros para se excluir

78
das obrigações de reparação dos impactos sociais e ambientais pode ser causada pelo poluidor direto e indireto. Na hipótese
gerados por suas atividades. Comprovada a autoria dos danos, de poluidor indireto – a exemplo das instituições financeiras
poderão ser aplicadas, de forma cumulativa, sanções civis – para responsáveis por financiamentos causadores de danos à natureza
reparação em dinheiro ou in natura; sanções penais – inclusive e às populações –, juridicamente, a responsabilidade civil será
para as empresas e bancos; e sanções administrativas, que solidária, ou seja, todos que na cadeia causal tenham contribuído
também podem ser aplicadas em conjunto com as anteriores para a atividade que causou o dano social e ambiental são
e poderão levar à interdição definitiva das atividades da pessoa considerados passíveis de serem corresponsáveis na reparação
jurídica. A responsabilidade ambiental pelos impactos sociais e dos danos. É importante mencionar que a responsabilidade
ambientais é considerada solidária, pois o poluidor indireto, a civil do poluidor, além de solidária, é objetiva, nos termos da
exemplo das instituições financeiras, pode ser responsabilizado Constituição e da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente,
conforme a Lei 6938/81. posto § 1º do artigo 14, que estabelece que a obrigação de reparar
A responsabilidade das instituições financeiras pelo destino os danos ambientais surge, independentemente da existência de
dos financiamentos ambientais é expressamente prevista culpa, ou seja, da imperícia, da imprudência e da negligência:
nesta mesma Lei , que disciplina a Política Nacional do Meio
20

Ambiente nos seus artigos 3, 4, 12 e 14. Em seu artigo 3, esta Lei “Art. 14 - Sem prejuízo das penalidades definidas
prescreve que os poluidores podem ser os responsáveis diretos pela legislação federal, estadual e municipal, o não
ou indiretos pelos impactos sociais e ambientais. No artigo 12, cumprimento das medidas necessárias à preservação
prescreve expressamente que as entidades de financiamento, ou correção dos inconvenientes e danos causados
bem como os órgãos de financiamento e incentivo pela degradação da qualidade ambiental sujeitará os
governamental, condicionarão a aprovação de projetos às transgressores:
normas estabelecidas pelo Conama. O mesmo artigo prescreve, § 1º Sem obstar a aplicação das penalidades previstas
ainda, que estas entidades condicionarão a aprovação de projetos neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente
habilitados a esses benefícios ao licenciamento, na forma desta da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos
lei, e ao cumprimento das normas, dos critérios e dos padrões causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados
expedidos pelo Conama. O artigo 14 afirma que “sem obstar a por sua atividade. O Ministério Público da União e
aplicação de penalidades previstas neste artigo, é o poluidor dos estados terá legitimidade para propor ação de
obrigado, independentemente de existência de culpa, a indenizar responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao
ou reparar os danos causados no meio ambiente”. meio ambiente”21.
Outro fundamento jurídico para a responsabilidade
bancária ambiental é o decreto regulamentador no 99.274/90, Como expõem os estudos e pesquisas jurídicas22, a interpretação
que regulamenta a Lei 6938/81 e define o “poluidor” como: das instituições financeiras de serem consideradas solidárias
pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, com o destino do financiamento do projeto que cause danos
responsável direta ou indiretamente por atividade causadora sociais e ambientais pressupõe a relação entre a responsabilidade
de degradação ambiental. Sob esta premissa surge uma civil objetiva e a teoria do risco integral. Para tanto, para que
vertente interpretativa da responsabilidade socioambiental se considere a hipótese da reparação do dano ambiental, as
das instituições financeiras. instituições financeiras devem ser consideradas responsáveis pelas
A responsabilidade ambiental por danos sociais e ambientais consequências do destino dos seus financiamentos.

79
A Lei 6938/81 estabelece ainda no seu texto a hipótese exclui a das pessoas físicas, autoras, coautoras ou partícipes
normativa da responsabilidade das instituições pelos recursos do mesmo fato. Ou seja, poderá haver responsabilidade penal
destinados ao financiamento de projetos que tenham risco ambiental das instituições financeiras, por danos ambientais e
de causarem impactos ambientais, à medida que estabelece sociais diretos ou indiretos, desde que provada a culpabilidade
que cabem obrigações pelo estabelecimento de exigências dos acusados. Assim, nos casos de financiamentos ambientais
contratuais para diminuir os riscos ambientais por meio causadores de poluição indireta, as instituições financeiras
de condicionantes. Trata-se da teoria do risco integral que, poderiam ser denunciadas por meio das figuras penais de
agregada com a variável da natureza, implica o conceito do risco partícipe ou da coautoria de crimes ambientais pelos impactos
socioambiental do investimento, conforme o artigo 12 desta socioambientais gerados.
mesma Lei: Este exame da legislação brasileira leva à conclusão
de que as instituições financeiras, ao liberarem
“Art. 12 - As entidades e órgãos de financiamento e financiamentos para projetos com potencial poluidor ou
incentivos governamentais condicionarão a aprovação de causador de efetivo dano social e ambiental, poderão ser
projetos habilitados a esses benefícios de licenciamento, responsabilizadas de forma objetiva, cumulativa e solidária
na forma desta Lei, e ao cumprimento das normas, dos na fase de pré-aprovação e concessão de financiamento,
critérios e dos padrões expedidos pelo Conama. na fase pós-concessão de financiamento e respectiva
Parágrafo único. As entidades e órgãos referidos no assinatura do contrato de financiamento ou na aplicação
caput deste artigo deverão fazer constar dos projetos das verbas financiadas.
a realização de obras e aquisição de equipamentos Outro argumento relevante para a responsabilização das
destinados ao controle de degradação ambiental e à instituições financeiras por impactos ambientais e a criação
melhoria de qualidade do meio ambiente”. de desigualdades sociais é a regulação do sistema financeiro
nacional, que expressamente prescreve a possibilidade da
Os condicionantes legais, assim como as licenças ambientais corresponsabilidade ou da responsabilidade civil solidária
estabelecidas pela Política Nacional do Meio Ambiente para a das instituições financeiras e seus diretores pelos danos
concessão de financiamentos por instituições financeiras para causados por suas atividades de financiamento ou por
atividades efetiva ou potencialmente poluidoras, caracterizam qualquer irregularidade na sua concessão de crédito que
a responsabilidade ambiental das instituições financeiras pelo contrarie a legislação. Além disso, compete ao Banco Central
destino do financiamento ambiental. fiscalizar os contratos bancários de concessão de crédito para
Esta responsabilidade não está circunscrita aos aspectos apurar atos irregulares das instituições e de seus diretores,
civis e administrativos, mas também abrange a imputabilidade havendo prescrições expressas para que, independente das
penal da pessoa jurídica e seus diretores nos termos da Lei sanções penais e administrativas, haja a possibilidade da
9.605/98, de Crimes Ambientais e sanções administrativas. Os responsabilidade civil objetiva e solidária por irregularidades
impactos ambientais gerados pelas instituições financeiras na liberação do financiamento bancário23. Ora, esta hipótese
poderão gerar a aplicação da responsabilidade ambiental consolida os argumentos da possibilidade da responsabilidade
conforme os artigos 2, 3 e 4 da Lei de Crimes Ambientais. É civil bancária, objetiva e solidária pelos financiamentos
importante destacar que o parágrafo único do artigo 3 desta ambientais causadores de impactos socioambientais e
Lei prescreve que a responsabilidade das pessoas jurídicas não desigualdades sociais.

80
Salvaguardas do BNDES: flexibilização casos dos litígios nas comunidades indígenas dos Tupiniquim
da legislação socioambiental e financeirização e dos Guarani26 e na quilombola de Linharinho27. As disputas
das políticas públicas ambientais nestes territórios transcorrem contra as políticas da apropriação
capitalista sobre os territórios e ambientes, que prejudicam a vida
Uma das linhas de financiamento do BNDES que causam das populações e a natureza presente nestas regiões. Conforme
danos socioambientais é aquela dirigida para os projetos de informações dos estudos de caso apresentados no final desta
implantação da silvicultura do eucalipto que, face à natureza dos publicação, os movimentos sociais resistem contra este modelo
modelos dos empreendimentos agrários, são caracterizados como dominante da monocultura do eucalipto e, de forma propositiva,
monoculturas. A monocultura do eucalipto requer cultivo em fazem uso da política e do direito para reivindicar o uso adequado
largas extensões territoriais, comprometendo o desenvolvimento do patrimônio natural da biodiversidade28.
de culturas agrícolas de pequenas escalas. Como aponta No Rio de Janeiro, a aprovação da Lei 5.067/2007, que autoriza
Vandana Shiva , as monoculturas são consideradas geradoras
24
a silvicultura do eucalipto, causou forte reação dos movimentos
de impactos territoriais e ambientais materiais e imateriais. Estes sociais, sobretudo dos integrantes da Rede Alerta Contra o
impactos ocasionam o empobrecimento territorial, a diminuição Deserto Verde. Esta legislação é o principal instrumento formal
da biodiversidade e desigualdades sociais e econômicas no para a implantação da monocultura do eucalipto neste estado.
desenvolvimento das populações devido à sua insustentabilidade Ela criou uma contrapartida reduzida de 30% para até 15% de área
como modo de produção . 25
vegetal nativa a ser reflorestada pelas empresas, sem nenhuma
Na dimensão simbólica, as monoculturas fomentam obrigação de compensações socioambientais para as populações
reducionismos ideológicos sobre a produção e causam a locais. Esta Lei permite a demarcação de áreas para a implantação
invisibilidade de sujeitos sociais e de seus saberes, reduzindo o da monocultura do eucalipto, sem que haja participação social
seu poder político. Os recursos financeiros aplicados no estado e, em alguns casos, sem a elaboração do Estudo de Impacto
do Espírito Santo nos empreendimentos relativos à monocultura Ambiental (EIA) nem licenciamento ambiental. Atualmente,
são geradores de severos conflitos socioambientais, como os esta Lei está sendo questionada por uma Ação Direta de

81
Inconstitucionalidade (ADIn) no Supremo Tribunal Federal (STF), Brasil, famílias Tupiniquim e Guarani, passaram a ocupar
de autoria da Confederação Nacional dos Trabalhadores na apenas 40 hectares de terras, cercadas por plantações de
Agricultura (Contag) .
29
eucalipto. A partir dos anos 1970, estas comunidades indígenas
A monocultura de eucalipto cresce no Brasil a partir do vultoso organizaram-se em movimentos de resistência. As comunidades
estímulo do capital financeiro público. Em 2005, a área ocupada autodeclaradas remanescentes de quilombos também se
por esta atividade era de cerca de 3,4 milhões de hectares do envolveram em vários conflitos com a Aracruz Celulose para
território nacional (65% das áreas de “florestas” plantadas). A que fossem respeitados os seus direitos33. Conforme o relatório
Aracruz Celulose, fundada em 1972, mas que já atuava no Espírito da Plataforma Dhesca, existem cerca de cem comunidades
Santo sob o nome de Aracruz Florestal, é a principal empresa quilombolas no Espírito Santo. Somente nos municípios de
a realizar apropriações privadas de territórios para a expansão Conceição da Barra e de São Mateus há 32 comunidades
da produção do eucalipto em larga escala. Em 2006, a área de quilombolas, agregando cerca de 1.200 famílias. Nesta área, a
apropriação privada para o plantio do eucalipto em larga escala, situação jurídica é de uma apropriação privada por sobreposições
somente no Espírito Santo, já era de 208 mil hectares. A Aracruz territoriais, com plantio de eucalipto, com uma taxa de ocupação
Celulose apresenta-se como uma significativa expressão do de 68% do total do seu território34. Nestes municípios, na área
capital financeiro fundiário no Brasil30 pois o seu controle do Sapê do Norte, encontram-se Linharinho, São Jorge, São
acionário é exercido pelos grupos Safra (28%), Lorentzen (28%), Domingos/Córrego de Santana (12.596 hectares), São Cristovão/
Votorantin (28% - participação contraída da Mondi, em 4 de Serraria (8.500 hectares) e Córrego Angelim (12.945 hectares).
outubro de 2001) e pelo BNDES (12,5%). Vale salientar que a A Aracruz apropria-se de áreas destinadas à agricultura, o
financeirização do capital fundiário indica ser caracterizada por que eleva os valores das terras, dificultando a implementação
negociações de suas ações preferenciais nas Bolsas de Valores de da reforma agrária pelo Instituto Nacional de Colonização e
São Paulo, Nova Iorque e Madri31. Reforma Agrária (Incra), conforme denuncia o Movimento dos
Trabalhadores Sem Terra (MST). Em 2003, havia cerca de 65
Conflitos territoriais e resistência social às políticas mil famílias esperando serem assentadas no Espírito Santo35.
ambientais e financeiras do BNDES Além dos múltiplos e conflituosos marcos de regulação de
uso do território, observa-se que os agentes do Estado por
Os negócios da monocultura do eucalipto, financiados pelo meio dos poderes Judiciário e Executivo, na interpretação e
BNDES, causaram conhecidos impactos sociais e ambientais no aplicação destas normas nos conflitos de apropriação territorial,
norte do Espírito Santo, como substituição da floresta de Mata tomam decisões amparados em regras de sustentabilidade
Atlântica por eucalipto; conflitos fundiários com comunidades constantes em procedimentos de licenciamentos ambientais.
e povos autodeclarados tradicionais, com apropriações Estas favorecem o avanço da liberação do financiamento das
privadas sobrepostas em áreas reivindicadas para preservação apropriações e dos usos privados em detrimento da apropriação
permanente, como matas ciliares e terras ocupadas por pequenos social da terra e dos ambientes no Espírito Santo.
agricultores; alto consumo de recursos hídricos na produção do O capital financeiro do BNDES possui um papel ativo na
eucalipto; devastação de nascentes e matas ciliares; e interrupção expansão da monocultura do eucalipto no Espírito Santo e
de rios por barragens e estradas32. na Bahia, seja pela liberação de financiamentos públicos,
Devido às apropriações indevidas da Aracruz Celulose, as seja por decisões judiciais e administrativas justificadas em
comunidades indígenas de Comboios, Caieiras Velhas e Pau legislações fundiárias e ambientais que permitem usos e

82
apropriações privadas de territórios e ambientes sobrepostas O enfrentamento aos impactos da crise ambiental45 e do
a áreas historicamente ocupadas por povos e comunidades financiamento do desenvolvimento sustentável46 envolve
autodeclaradas tradicionais (indígenas, quilombolas, pescadores também disputas no campo ideológico do desenvolvimento e
artesanais), pequenos agricultores e trabalhadores sem-terra. da sustentabilidade. Incluem-se aí o “credo da ecoeficiência” e
Percebe-se também que a atual flexibilização ou liberalização a expertocracria47 como componentes presentes nas retóricas
da legislação ambiental e as interpretações restritivas da função dos sujeitos sociais capitalistas. Como aponta Leff, o discurso
social e ambiental da terra são outros fatores justificadores das do desenvolvimento sustentável simplifica a complexidade
ações do Estado em favor da expansão do capital da monocultura dos processos naturais, destrói as identidades culturais, pois
do eucalipto no Espírito Santo. as submete ao universalismo da tecnologia ambiental para
No capitalismo, a terra não possui valor econômico readaptar a natureza como meio de produção e riqueza48. A razão
próprio para a acumulação produtiva. O seu valor monetário instrumental do capitalismo, diante da crise ambiental, propõe
decorre da força de trabalho sobre o território. No campo, o enfrentá-la por meio da criação das denominadas “tecnologias
capital financeiro se dirigiu para investimentos fundiários, limpas”, das biotecnologias das sementes transgênicas49, das
empreendendo relações entre capital e propriedade da terra, monoculturas e dos mecanismos de mercados de carbono
tomando a forma de capital financeiro fundiário36. Assim, a como os MDLs (Mecanismos de Desenvolvimento Limpo) - que
valoração da terra como renda capitalizada decorre não só da impulsionam o mercado dos recursos naturais, a exemplo dos
exploração da mais-valia dos trabalhadores, como também “mercados do ar”. Nas áreas urbanas o racionalismo instrumental
dos encargos e lucros agregados à produção agrícola37 e das formula “respostas” à degradação ambiental, através de ações
possibilidades de valoração ambiental de territórios pelo capital políticas amparadas nos conceitos abstratos de cidades
financeiro fundiário. sustentáveis e de sociedade de riscos50, sob a desconsideração
No contexto da crise ambiental do capitalismo contemporâneo, das injustiças socioambientais51. Todos estes conceitos e práticas
os recursos ambientais são cada vez mais incorporados à integram a objetividade da crise ambiental52. Assim, a degradação
renda da terra como ativos financeiros de sua valorização. E as é reduzida a um colapso objetivo, como consequência da
instituições financeiras, sob o véu da retórica da sustentabilidade entropia do meio ambiente na produção capitalista.
ambiental, cada vez mais liberam financiamentos que atribuem Desse modo, a variável ambiental é incorporada à renda da
valor econômico às terras, aumentando, assim, as desigualdades terra como um ativo financeiro para a sua valorização. Essa
sobre as populações que as habitam38. representação do capital, discursivamente, toma contornos
Desse modo, a terra e o ambiente de bem natural se preservacionistas nas apropriações do capital. Os processos de
constituem em mercadoria. A “mercantilização da natureza” globalização ou de mundialização53 firmam “consensos” verticais
não é um fenômeno novo39, foi um dos vetores da expansão sobre os modos de desenvolvimento, organização e participação
colonial, na qual o meio ambiente era matéria-prima para o de sujeitos sociais na apropriação e uso de territórios e
empreendimento do “progresso” do capital. A teoria da renda da ambientes. A expansão do capital sobre os territórios é legitimado
terra passa a ser reelaborada pela “renda da natureza” , conforme
40
nos modelos de Estados territoriais54, instituidor de demarcações
o modelo do neoliberalismo ambiental contido no conceito de territórios jurídicos sobrepostos aos territórios ocupados
de desenvolvimento sustentável . O imaginário da natureza
41 42
historicamente por povos e comunidades praticantes de relações
capitalizada como discurso de apropriação da biodiversidade
43
materiais e simbólicas55 com a natureza.
está presente, por exemplo, nos projetos de monocultura . 44
Contudo, na dimensão local, os “consensos” verticais globais

83
convivem com as multiterritorialidades56. Neste sentido, Milton a exemplo dos casos da implantação da monocultura do
Santos afirma: “Cada lugar é, ao mesmo tempo, objeto de uma eucalipto e de empreendimentos imobiliários em áreas
razão global e de uma razão local, convivendo dialeticamente” . 57
ambientais. O “fechamento” de territórios através da cerca
A ordem global e a local são geneticamente opostas, mas há da terra73 requer processos, instrumentos normativos, atores
aspectos de uma presentes na outra . Os conflitos territoriais e
58
institucionais e de autoridades do Estado: juízes, promotores,
ambientais podem ser caracterizados como litígios de políticas de desembargadores, executantes das decisões judiciais e
escalas59, pois a ordem global externa dos interesses econômicos legisladores para assegurar proteção à renda da terra ao capital.
transnacionais se impõe aos interesses locais. Assim, os As apropriações de territórios e ambientes são implementadas
globalismos e localismos constituem-se campos de disputas
60 61
através do imaginário da natureza capitalizada74 nas implantações
entre identidades múltiplas62, ora pelo domínio, ora pela de monoculturas75, no uso de sementes transgênicas, na
resistência às apropriações mercantis de territórios e ambientes. privatização da biodiversidade76 e nos projetos imobiliários em
No âmbito local é possível identificar práticas de resistência sítios ambientais. Vandana Shiva sustenta argumentos de que
contra-hegemônicas63 de descolonização epistemológica64. as monoculturas negam a importância da diversidade para a
No Brasil, a exemplo de outros países periféricos, observa-se a sustentabilidade e, com isso, não reconhecem as comunidades
criação de movimentos sociais constituídos por sujeitos sociais distintas participativas e descentralizadas dos modelos
com referenciais identidades territorializadas, como indígenas, hegemônicos de desenvolvimento77.
quilombolas, sem-terra, populações ribeirinhas, atingidos por As instituições financeiras, enquanto atores hegemônicos,
barragens, entre outros sujeitos, cujas identidades moldam os também formulam estratégias, a exemplo das tecnologias de
territórios, e os territórios moldam suas identidades65. Destas consensos78 nos conflitos da produção79. Contudo, identificam-
relações entre identidades culturais de defesa de territórios e se a afirmação de políticas territoriais participativas e a
ambientes são formadas representações sociais de resistência às corporificação de direitos: a apropriação socialmente justa do
apropriações do capital demarcadas pela cartografia dominante . 66
espaço herdado, dependente da ação coletiva, e a subjetivação
O território tem que ser entendido como o território usado, não de direitos, que sustenta a afirmação de sujeitos plenos80 de
o território em si. O território usado é o chão mais a identidade. A direitos coletivos de propriedade intelectual, reconhecimento
identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence . 67
cultural e desenvolvimento como direitos humanos na
O BNDES libera financiamentos, expandindo os categoria dos Dhescas81. Mas há inúmeros obstáculos para
seus negócios por meio da promoção de processos de o reconhecimento de identidades culturais territoriais, de
territorialização-desterritorialização-reterritorialização regularização territorial e de garantia de acesso ao patrimônio
(TDR)68 de povos e comunidades para a relocalização da sua da biodiversidade82.
produção69. Nas construções recentes de grandes usinas Os movimentos sociais reagem à mercantilização da natureza
hidrelétricas, como Jirau e Santo Antônio, os negócios por meio de práticas coletivas de resistência. O sentido do
das instituições financeiras causaram também o efeito termo resistência é interpretado como direitos coletivos de
da relocalização da produção . Os processos de TDRs
70
oposição aos modelos hegemônicos de apropriação mercantil
são facultados no Brasil pelo denominado “fechamento”71 e dominação cultural. A crítica ambiental83 está presente na
de territórios e ambientes para assegurar a rentabilidade ambientalização do MST, do Movimento de Atingidos por
financeira da terra. Esse “fechamento” é identificado no Barragens (MAB) e de povos e comunidades tradicionais, entre
cercamento72 material e imaterial de territórios e ambientes, outros, como meio de resistência.

84
Instrumentos processuais e administrativos de proteção estabeleceu mecanismos processuais para sanar as omissões dos
às comunidades afetadas poderes Legislativo e Executivo. Estes mecanismos foram sendo
lentamente apropriados pelos cidadãos e pelos movimentos
Retomando a primeira questão da Rede Brasil expressa no sociais, como as ações judiciais que transferiam as lutas
início deste texto sobre como as comunidades afetadas e as políticas e sociais disputadas no interior da sociedade e das suas
organizações sociais podem “avançar no acesso às vias legais instituições para os tribunais.
de corresponsabilização dos agentes financeiros por violações É importante destacar que este processo de transferência
de acordos e leis sociais e ambientais”, é importante perceber de poderes para o Judiciário, denominado de judicialização84,
que este avanço passa em primeiro plano pela política e não implicava não só a ampliação do número de ações judiciais
propriamente pelo direito. É neste sentido que pode se dar, a interferir nas relações sociais, como também nas decisões
efetivamente, o avanço no acesso das comunidades afetadas políticas, pela substituição do poder político da sociedade pelos
e de organizações sociais aos mecanismos processuais e procedimentos do poder Judiciário nas decisões dos conflitos.
administrativos para caracterização da responsabilidade Este processo põe em risco a própria democracia, pois cada vez
ambiental (civil, administrativa e penal) dos agentes financeiros mais as decisões políticas, típicas de serem solucionadas por
por violações de convenções internacionais de proteção aos poderes estatais constituídos por critérios eletivos, passaram a ser
Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais tomadas pelo poder Judiciário, caracterizando o ativismo judicial.
(Dhescas), da Constituição Federal e do ordenamento jurídico na Não são apenas os movimentos sociais que estão submetidos
proteção social e ambiental. à judicialização. As corporações e as elites representantes do
A sociedade civil organizada em movimentos sociais capital, ao longo dos anos 1990 e 2000, cada vez mais também
construiu uma agenda de reivindicações de direitos utilizaram os mecanismos judiciais para garantir os seus
individuais e de reformas sociais, econômicas, ambientais interesses políticos, sociais, econômicos e culturais.
e culturais que, formalmente, foram asseguradas como As demandas envolvendo a resistência social aos agentes
um projeto na Constituição de 1988. Porém para muitos financeiros na liberação de recursos ao financiamento de
juristas os direitos sociais e econômicos constitucionais que projetos potencialmente poluidores ou causadores de efetivo
estabeleciam um projeto de reformas na sociedade brasileira impacto ambiental envolvem disputas no poder Judiciário e
não teriam autoaplicabilidade por serem considerados normas conflitos políticos no seio da sociedade por meio de organizações
programáticas como meras intenções ou projetos sociais do terceiro setor85, ONGs 86 e movimentos sociais87.
contidos na Constituição. Para outros, os direitos sociais, dentre As reformas sociais e econômicas previstas na última
eles os ambientais, os culturais e os econômicos de natureza Constituição, devido ao processo de globalização econômica
redistributiva, dependeriam de regulações do poder Legislativo do neoliberalismo por meio de organismos financeiros
ou de intervenções do poder Executivo através de políticas internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI)
públicas e dotações orçamentárias. e o Banco Mundial, estabeleceram para o Brasil e outros países
Em face da interpretação da falta de autoaplicabilidade de “do terceiro mundo” uma agenda de reformas constitucionais
vários dispositivos sociais da Constituição Federal de 1988, a que suprimiu ou alterou direitos sociais e econômicos,
concretização de direitos sociais passa por disputas políticas na especialmente os Dhescas, para favorecer a reprodução e a
administração pública e no poder judiciário. Entretanto, diante ampliação do capital no Brasil.
da possibilidade da ausência de regulação, esta Constituição Estas reformas constitucionais neoliberais foram enfrentadas

85
sociais, papel central nas resoluções
de disputas de interesses. Esta
opção pelo Direito como meio
de transformação ocorreu em
detrimento do papel da política –
das mobilizações e organizações
sociais populares – nas lutas de
resistência e insurgência direta
em defesa da agenda das reformas
sociais e econômicas. Em face
desse papel central do Direito, os
movimentos sociais passaram a
mudar as suas agendas da reforma
no campo político para as lutas
“pela cultura de direitos” e “pela
efetividade judicial de direitos e
políticas”. Estas agendas produziram
Verena Glass

uma maior demanda de ações


judiciais individuais e coletivas
A estratégia para garantir as reformas sociais deve priorizar a luta política: de volta para as ruas no primeiro grau de jurisdição e
um aumento de ações diretas no
por estratégias distintas de resistência e de insurgência dos controle de constitucionalidade no STF. A opção de privilegiar
movimentos sociais. De um lado, algumas organizações sociais o Direito à política por parte de segmentos dos movimentos
optaram pela resistência e insurgência direta na cidade e no sociais produziu um efeito adverso aos seus fins, pois favoreceu
campo para a garantia das reformas sociais. Por outro, houve a judicialização e a hegemonia do papel político decisório do
a ação de movimentos sociais por novos eixos de luta: “a Judiciário, o denominado ativismo judicial, na resolução dos
transformação da exploração de classes e das discriminações litígios por reformas sociais, questões ético-morais, econômicas,
pelo direito”, “a construção de uma cultura de direitos” e “o políticas e culturais referidas ao Direito, especialmente o
reconhecimento de direitos e sua efetividade judicial para constitucional, cuja arena própria de decisão política seriam os
a transformação social”. Nestes eixos de atuação, a luta de poderes Legislativo e Executivo ou mesmo a própria manifestação
transformação social deixou cada vez mais a arena política direta da soberania popular. Como exemplo, é possível identificar
e foi dirigida para o palco institucional do poder Judiciário, a judicialização da resistência dos movimentos sociais nas lutas
especialmente os autos dos processos judiciais, com suas regras contra as privatizações ocorridas nos últimos governos federais na
procedimentais próprias que limitam o pleno exercício das chamada “guerras de liminares”.
disputas políticas em defesa das reivindicações populares. A judicialização é caracterizada pela exacerbação da atividade
Assim, o Direito – fundamentalmente, seus mecanismos judiciária, por meio da “naturalização social e política” do
processuais – passa a ter, nos segmentos de movimentos poder Judiciário como única ou última instância nas decisões

86
sobre quais valores e interesses são os direitos admitidos sem implementação devido às omissões dos poderes
pela Constituição. Uma das causas da judicialização foram as Legislativo e Executivo, e, por outro, o aumento do acesso
conquistas processuais dos movimentos sociais que aprovaram popular às jurisdições coletiva e individual e ao controle de
na Assembleia Constituinte de 1987/88 a ampliação do acesso constitucionalidade. Este ativismo judicial pode ser identificado
à justiça através do alargamento da jurisdição coletiva, por em casos recentemente julgados pelo STF, entre eles: a
mecanismos processuais de tutela de interesses difusos e demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, no qual o
coletivos: ação popular, ação civil pública,ação civil coletiva, STF criou o estatuto da demarcação com dezoito condições; a
dissídios coletivos, mandado de injunção, habeas data e outras; questão sobre a suplência parlamentar pertencer aos partidos ou
e, por outro lado, a ampliação da participação da sociedade às coligações; a Lei da Ficha Limpa; a Lei da Biossegurança, que
civil e instituições estatais e não estatais no controle de permitia pesquisa em células-tronco; e o direito de greve dos
constitucionalidade por via de ações diretas: ação direta de servidores públicos.
inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade, O ativismo judicial, além de intervir na vida social e política
reclamação Constitucional, arguição de descumprimento de por meio de processos e procedimentos formais, também se
preceito fundamental e outras. expressa pela “politização do poder Judiciário”. Esta politização
Dentre os efeitos do surgimento da judicialização e do transcorre também fora dos processos judiciais, no seio da
ativismo judicial, o mais intenso é a consolidação de uma sociedade. Nesse sentido, são exemplares as declarações de
hegemonia discursiva e processual do poder Judiciário em magistrados e chefes de tribunais, para veículos de imprensa,
decisões próprias do poder político acerca de valores ético- expressando opiniões sobre temas em processo de discussão na
morais, interesses socioeconômicos e culturais em disputas na sociedade e no próprio Judiciário.
sociedade brasileira. Outro efeito desta hegemonia são os riscos São exemplos das opções de judicialização das disputas
ao funcionamento da democracia, com o açambarcamento lento econômicas e sociais pelo capital: os casos de construção de
e gradual da manifestação da soberania popular e das instituições empreendimentos econômicos que demandam licenciamento
da democracia representativa brasileira na argumentação, ambiental e urbanístico; a expansão do agronegócio em área
interpretação e decisão acerca de quais os valores e interesses são de proteção ambiental; os litígios socioambientais em torno
admitidos como direitos constitucionais. das grandes obras de construção de hidrelétricas; as disputas
O ativismo judicial, devido a esta intensificação da hegemonia em torno da implementação das políticas públicas de reforma
política do Judiciário, coloca em risco o funcionamento da agrária; os empreendimentos dos megaeventos para a Copa
ordem democrática, especialmente a divisão e autonomia entre do Mundo e as Olimpíadas e a defesa de interesses sociais da
os poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), a vontade do moradia; a edificação de grandes indústrias na área de metalurgia
poder constituinte originário e as manifestações da mutação e mineração e os conflitos de interesses com populações
constitucional oriundas da sociedade civil nos temas de decisões tradicionais, como indígenas e quilombolas; e as disputas em
políticas fundamentais. torno das ações afirmativas. Ou seja, observa-se que o próprio
No ativismo judicial, a exemplo da judicialização, há a capital opta cada vez mais pela judicialização e pelo ativismo
transferência de poderes decisórios da sociedade para o judicial nas questões econômicas e sociais que poderiam ser
STF. As causas que contribuem para esta situação são as decididas no campo das instituições políticas.
mesmas da judicialização: por um lado, a existência de rol de Uma das influências do processo de judicialização das
direitos fundamentais – individuais e sociais – conquistados lutas políticas dos movimentos sociais decorreu, em parte, da

87
defesa da mudança da realidade pelo Direito. A esta percepção de participação popular nas decisões políticas, reformas,
de Constituição deu-se o nome de Constituição Dirigente, direitos, valores ético-morais, culturais, interesses sociais e
que, na Europa e mesmo no Brasil, atribuiu à Constituição a econômicos a serem interpretados como direitos construídos
tarefa de ser portadora de um projeto de transformação social. a partir da Constituição. A construção do diálogo democrático
Os movimentos críticos do Direito, especialmente o “Direito institucional e social só poderá transcorrer com a superação da
alternativo” e, dentro dele, a corrente do “Positivismo de hegemonia decisória e retórica do poder Judiciário na sociedade
combate”, apostaram na efetivação dos direitos fundamentais e contemporânea. Para tanto, o aspecto relevante é a discussão
no exercício da cidadania previstos no novo texto constitucional, de um novo papel a ser atribuído ao juiz – poder Judiciário, não
por meio do uso alternativo de mecanismos processuais. enquanto guardião último ou exclusivo da Constituição, mas
Distintamente do movimento crítico do Direito denominado como uma das instituições da sua proteção. A superação do
“Direito achado na rua” ou “Direito Insurgente”, que formulava a ativismo judicial do “Estado-Juiz” passa pelo aprofundamento do
luta pelo Direito nos conflitos sociais no campo das lutas políticas entendimento que as atribuições do poder Judiciário não estão
não institucionais, o “Positivismo de combate”, por exemplo, por acima do exercício da soberania popular, mas sim circunscritas
efeito adverso das suas estratégias, fortaleceu a ampliação das aos limites da democracia constitucional e das suas atribuições
lutas institucionais pelo Direito por meio do estímulo à ampliação no arranjo da divisão de poderes do regime democrático.
do acesso à justiça, o que gerou a judicialização das lutas sociais
e fortaleceu o papel mais ativo dos tribunais e do Supremo Conclusão
na resolução de litígios políticos e sociais. Estas condições de
estímulo de acesso à justiça para assegurar a eficácia do Direito As salvaguardas ambientais do BNDES expressam um
e as reivindicações sociais favoreceram a lenta transferência do modelo de política ambiental que aponta para a flexibilização
palco das mobilizações das lutas sociais das “ruas” e do campo da legislação ambiental e a apropriação do mercado sobre a
para o poder Judiciário, através dos mecanismos processuais. natureza, com o aumento das desigualdades ambientais sobre
A resposta da sociedade civil organizada à judicialização e as populações vulneráveis. A resistência das comunidades que
ao ativismo judicial passa pelo fortalecimento das instituições sofrem os impactos sociais e ambientais das instituições que
democráticas, a exemplo dos movimentos sociais, com a financiam este modelo deve passar além da outorga ao poder
redefinição das formas sociais e institucionais e o controle social Judiciário da possibilidade de resolução dos conflitos.
e popular das instituições públicas, em particular das financeiras Não se trata de abandonar os mecanismos procedimentais
como o BNDES. administrativos e processuais para a responsabilização dos
As possibilidades para a superação da judicialização e do agentes financeiros por violações dos Dhescas e Direitos
ativismo judicial do “Estado-Juiz” passa pela garantia efetiva Constitucionais. Estes são instrumentos importantes para
de um Estado de Direito Justo e Democrático, com volta à a resistência; porém não pode haver uma substituição
sociedade do poder de decidir em última palavra sobre a política da luta política pelo Direito, tampouco pelo Judiciário,
e o reconhecimento de direitos constitucionais. Em outras marcadamente integrado por segmentos das elites
palavras, as possibilidades de superação da judicialização e do dominantes. Apesar disso, é importante destacar que há
ativismo passam pelo fortalecimento da democracia participativa. vários mecanismos materiais e processuais de proteção
Este processo implica a ampliação dos mecanismos decisórios aos interesses sociais e ambientais das comunidades
da soberania popular, com efetiva utilização dos instrumentos atingidas por projetos financiados pelo BNDES, a exemplo

88
dos seguintes: Ação Civil Pública, Ação
Popular, Mandado de Segurança Coletivo,
Habeas Data, Ação Civil Coletiva, Controle
de Constitucionalidade, Termo de
Ajustamento de Conduta, Audiência Pública
no Licenciamento Ambiental e Tutela
Processual Penal.
Em relação à outra postulação gerada
“se as vias legais para a responsabilidade
ambiental do BNDES podem ser formas de
pressão política por mudanças nos rumos
e nas práticas do BNDES”, a resposta seria
“em termos”. Pois estas vias, como meio de
pressão, dependem das condições externas
ao processo judicial ou administrativo,
a exemplo dos interesses do capital em

Mitchell Anderson
relação aos empreendimentos que utilizam
recursos e serviços ambientais e como
estes estão articulados com a mídia. Não é
possível assegurar se os processos judiciais A responsabilização dos agentes financeiros deve ser feita como complemento da via política: resistência e enfrentamento
e administrativos podem ser instrumentos
de pressão por mudanças nas práticas do BNDES, até porque tais 1 “Por Justiça Ambiental entende-se o conjunto de princípios que asseguram que nenhum grupo
de pessoas, sejam grupos étnicos, raciais ou de classe, suporte uma parcela desproporcional das
alterações demandam ações dos poderes Legislativo e Executivo consequências ambientais negativas de operações econômicas, de políticas e programas federais,
estaduais e locais, bem como resultantes da ausência ou omissão de tais políticas.” HERCULANO,
na implementação das políticas públicas e articulação política Selene. Resenhando o debate sobre Justiça Ambiental: produção teórica, breve acervo de casos e
para a formação de novas agendas. criação da Rede Brasileira de Justiça Ambiental. http://www.professores.uff.br/seleneherculano/
publicacoes/resenhando-debate-justica-ambiental.htm
A via política das organizações sociais e comunidades 2 “Entende-se por Injustiça Ambiental o mecanismo pelo qual sociedades desiguais destinam a
maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento a grupos sociais de trabalhadores, populações
atingidas por projetos e empreendimentos do capital indica ser de baixa renda, grupos raciais discriminados, populações marginalizadas e mais vulneráveis.”
HERCULANO, Selene. Resenhando o debate sobre Justiça Ambiental: produção teórica, breve
mais eficaz do que a judicial. Contudo, a via judicial, inclusive acervo de casos e criação da Rede Brasileira de Justiça Ambiental. http://www.professores.uff.br/
a internacional, poderá ser eventualmente instrumento de seleneherculano/publicacoes/resenhando-debate-justica-ambiental.htm

reconhecimento dos Dhescas e de questionamento de políticas 3 http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/bndes/bndes_pt/Areas_de_Atuacao/Meio_Ambiente/historico.


html
públicas, a exemplo da demarcação da reserva Raposa Serra
4 “A importância que os aspectos ambientais começaram a ter nos anos 1970 e 1980 implicou
do Sol, pelo STF88, e da Comissão Interamericana89 de Direitos
também o surgimento de legislação ambiental nos Estados Unidos (EUA) e no Reino Unido, ligada
Humanos acerca da construção da hidrelétrica de Belo Monte, aos bancos. Em 1980, os EUA criaram a legislação Comprehensive Environmental Response,
Compensation, and Liability Act (Cercla, sigla em inglês, que mais tarde ficou conhecida como
no Rio Xingu. a Superfund Law), na qual os bancos poderiam ficar responsáveis pela limpeza dos danos
ambientais causados pelos seus devedores. Os bancos europeus não foram expostos a este tipo
Jadir Anunciação de Brito é Doutor em Direito do Estado pela Pontífice Universidade Católica (PUC- de responsabilidades até aos anos 1990 (BOUMA et al., 2001). Em 1995 o Reino Unido cria o
SP), Professor da Escola de Ciências Jurídicas e do Programa de Pós-Graduação em Direito, UK Environmental Act, onde os bancos poderiam ter uma responsabilidade de segundo nível
na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e Coordenador do Centro de Referência relativamente aos danos ambientais os seus devedores.” http://www.bancaeambiente.org/pdf/doc.
em Direitos Humanos (CRDH)-Unirio Inclusao.pdf

89
5 LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patrick de Araújo. Direito ambiental na sociedade de risco. 2. ed. ou do risco social e ambiental. Nas operações indiretas automáticas, realizadas por meio de
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. SOARES, Guido. Curso de direito internacional público. instituições financeiras credenciadas, cabe aos agentes financeiros verificar a regularidade social
São Paulo: Atlas, 2002. e ambiental do cliente e do empreendimento apoiado e o atendimento a normativos relacionados
aos aspectos sociais e ambientais, em consonância com as diretrizes da Política Socioambiental do
6 http://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/ BNDES.” http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/bndes/bndes_pt/Areas_de_Atuacao/Meio_Ambiente/
Politica_Socioambiental/analise_ambiental.html
7 http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/produtos/
download/disaplic.pdf 15 “A política ambiental do BNDES afirma que ‘os investimentos em melhoria no desenvolvimento
socioambiental são indutores do desenvolvimento econômico e social’. Os investimentos em
8 O BNDES possui também participação em três Fundos de Investimentos em Participações (FIPs) ecoeficiência, gestão ambiental, inovação tecnológica das empresas com benefícios ambientais,
voltados a projetos ambientais: FIP Brasil Sustentabilidade: Foco em projetos de Mecanismo de apesar de estarem associados a um aumento de custos no curto prazo, representam a passagem para
Desenvolvimento Limpo (MDL) e com potencial para gerar Reduções Certificadas de Emissões (RCE); uma nova etapa no médio e longo prazo”, enfatiza Marcio Macedo da Costa, Chefe do Departamento
Capital comprometido do Fundo: R$ 410 milhões; Participação do BNDES: 48,6%; Gestores do de Políticas e Estudos Ambientais da Área de Meio Ambiente do Banco Nacional de Desenvolvimento
fundo: Latour Capital e BRZ Investimentos; FIP Caixa Ambiental: Foco em saneamento, tratamento Econômico e Social (BNDES). http://www.febraban.org.br/financassustentaveis/Painel1-marcio.html
de resíduos sólidos, geração de energia limpa e biodiesel; Capital comprometido do Fundo: R$ 400
milhões; Participação do BNDES: 17%; Gestor do fundo: Banco Santander; FIP Vale Florestar: Atuação 16 Meio ambiente pela metade. A nota média parcial dos bancos no bloco de questões referentes
preferencialmente em áreas degradadas na região de abrangência de Carajás; Volume estimado do ao meio ambiente foi de 2,19, sendo a mais alta a do ABN Amro Real (3,50 ou “regular”), e a mais
Fundo: R$ 605 milhões; Participação do BNDES: 20%; Gestor do fundo: Global Equity. http://www. baixa a do Santander (1,00 ou “péssimo”). No bloco de questões voltadas ao meio ambiente, foram
bndes.gov.br/SiteBNDES/bndes/bndes_pt/Areas_de_Atuacao/Meio_Ambiente/ verificadas sobretudo as políticas de meio ambiente e consumo sustentável das instituições, bem
como a existência ou não de critérios socioambientais na concessão de crédito. Somente o ABN Amro
9 http://www.dhescbrasil.org.br Real apresentou critérios específicos para a concessão de crédito, além da criação de fundos éticos,
e ficou com a melhor colocação, ainda dentro do conceito “regular”. Itaú e Bradesco ficaram logo em
10 http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/bndes/bndes_pt/Areas_de_Atuacao/Meio_Ambiente/ seguida - também com conceito “regular” - por apresentar indicadores de sustentabilidade e ações
historico.html ambientais, embora restritas a algumas agências. Mas os dois bancos também declararam realizar
análises de risco ambiental na concessão de crédito. Os demais bancos tiveram avaliação abaixo de
11 “Empréstimo do Banco Mundial para o BNDES. Em novembro de 2008, o Banco Mundial anunciou “regular”, pois possuem apenas algum tipo de ação de ecoeficiência, isto é, dedicam-se a reduzir
um Empréstimo Programático para o Desenvolvimento em Gestão Ambiental Sustentável (SEM DPL, o consumo de água, energia, papel ou plástico em suas atividades rotineiras. Foram genéricos na
na sigla em inglês) de US$ 1,3 bilhão para o governo brasileiro, a serem alocados no BNDES. Os DPLs menção a critérios ambientais para conceder crédito. Já o Santander, que recebeu a pior colocação
fazem parte de uma nova modalidade de empréstimos voltados para as Políticas de Desenvolvimento nesse bloco de questões, relatou não possuir nenhum critério ou processo de gestão de risco
e substituem os tão criticados empréstimos para ajustes estruturais dos anos 1990. O SEM DPL tem socioambiental. Ainda que algumas instituições tenham ficado à frente de outras, a nota média geral
por objetivo “melhorar a efetividade e a eficiência das políticas e diretrizes do sistema brasileiro obtida pelos bancos foi bastante baixa, de 2,08. Apenas duas instituições ficaram acima da mediana
de gestão ambiental” e dentre as propostas apresentadas estão apontadas mudanças na legislação (2,5 em uma escala de 0 a 5), que é o limite entre “ruim” e “regular”: Bradesco, com 2,60, e ABN
ambiental, reformas no Ministério de Meio Ambiente (MMA) e a elaboração de uma nova política Amro Real, com 2,75. http://www.idec.org.br/arquivos/RSE_bancos_RelatorioFinal.pdf
ambiental e social do BNDES. A implementação, o monitoramento e a avaliação serão realizados
de forma conjunta pelo MMA e BNDES.” TAUTZ, Carlos; SISTON, Felipe; PINTO, João Roberto 17 “Alguns órgãos oferecem a possibilidade de financiamento integral ou parcial de atividades de
Lopes; BADIN, Luciana. O BNDES e a reorganização do capitalismo brasileiro: um debate necessário. projetos no âmbito do MDL. A Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), empresa pública ligada ao
Disponível em: www.plataformabndes.org.br Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), oferece um Programa de Apoio a Projetos do Mecanismo de
Desenvolvimento Limpo, o Pró-MDL, que financia o pré-investimento e o desenvolvimento científico
12 http://www.bicusa.org/es/Article.11453.aspx e tecnológico de atividades de projeto no âmbito do MDL por meio de linhas de financiamento
reembolsáveis e não reembolsáveis (http://www.finep.gov.br/pro- gramas/pro_mdl.asp). O Banco
13 “O que é mais impressionante em relação ao SEM DPL é a sua conexão com quase todas as Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) oferece uma linha de crédito para
principais iniciativas políticas ou legislativas relacionadas ao clima no Brasil. O empréstimo lista “estudos de viabilidade, custos de elaboração do projeto, Documentos de Concepção de Projeto (PDD)
como ações prioritárias ou gatilhos (a forma como o Banco define condições) a reestruturação e demais custos relativos ao processo de validação e registro” (http://www.bndes.gov.br/ambiente/
do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para acelerar meio_ambiente.asp), além do Programa BNDES Desenvolvimento Limpo, que é um programa para a
o licenciamento ambiental; a aprovação e implementação de um Plano Nacional de Mudanças seleção de Gestores de Fundos de Investimento, com foco direcionado para empresas/projetos com
Climáticas; uma Política Institucional Socioambiental para o BNDES, incluindo a formulação de potencial de gerar Reduções Certificadas de Emissão (RCEs) no âmbito do MDL. (Português: http://
procedimentos ambientais e sociais subsetoriais para os principais setores de investimento, como www.bndes.gov.br/programas/outros/desenvolvimento_limpo.asp; Inglês: http://www.bndes.gov.br/
energia, cana-de-açúcar – biocombustíveis – e pecuária, dentre outros; a regulação do Fundo english/clean_development.asp). Adicionalmente, a Caixa Econômica Federal conta com uma linha
Amazônia;[iv] apoio e implementação da Lei de Gestão das Florestas Públicas Brasileiras.” http:// de crédito para o financiamento integral de atividades de projetos no âmbito do MDL em áreas como
www.bicusa.org/es/Article.11453.aspx saneamento, bombeamento de água e pequenas hidrelétricas, por exemplo.” http://www.mct.gov.br/
index.php/content/view/61463.html
14 “Em conformidade com as suas políticas e diretrizes, o BNDES dispensa especial atenção aos
aspectos sociais e ambientais inerentes ao cliente e ao empreendimento. Para a concessão do apoio 18 Entendemos por injustiça ambiental o mecanismo pelo qual sociedades desiguais, do ponto de
financeiro, são observados: as legislações aplicáveis; as normas setoriais específicas; a política de vista econômico e social, destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento às
responsaibilidade social e ambiental do beneficiário; a regularidade ambiental; o risco ambiental populações de baixa renda, aos grupos raciais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos
do empreendimento; além de práticas socioambientais que elevem o patamar de competitividade bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis. Por justiça ambiental, ao contrário,
das organizações e dos setores econômicos e contribuam para a melhoria de indicadores sociais e designamos o conjunto de princípios e práticas que: a - asseguram que nenhum grupo social, seja
ambientais não só dos empreendimentos, mas também do país. Com base em toda essa análise, o ele étnico, racial ou de classe, suporte uma parcela desproporcional das consequências ambientais
Banco pode realizar estudos complementares e solicitar informações adicionais e, ainda: recomendar negativas de operações econômicas, de decisões de políticas e de programas federais, estaduais,
a reformulação do projeto; ofertar recursos para reforço das medidas mitigadoras; estimular a locais, assim como da ausência ou omissão de tais políticas; b - asseguram acesso justo e equitativo,
realização de investimentos sociais e ambientais voltados para o âmbito interno (funcionários direto e indireto, aos recursos ambientais do país; c - asseguram amplo acesso às informações
e cadeia de fornecedores) e externo (desenvolvimento local, sociedade e meio ambiente) dos relevantes sobre o uso dos recursos ambientais e a destinação de rejeitos e localização de fontes
beneficiários; e, em casos extremos, não conceder o apoio financeiro em face da não conformidade de riscos ambientais, bem como processos democráticos e participativos na definição de políticas,

90
planos, programas e projetos que lhes dizem respeito; d - favorecem a constituição de sujeitos
coletivos de direitos, movimentos sociais e organizações populares para serem protagonistas na 32 Eucalipto / Aracruz Celulose e Violações de Direitos Humanos – PAD 2007. Maria Elena Rodriguez
construção de modelos alternativos de desenvolvimento, que assegurem a democratização do acesso e Daniel Silvestre.
aos recursos ambientais e a sustentabilidade do seu uso. Declaração de princípios disponível em:
http://www.justicaambiental.org.br/_justicaambiental/pagina.php?id=229> 33 “Violações...” op.cit.

19 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6938.htm 34 “Violações de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais…”, op. cit.

20 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6938.htm 35 FASE: The Case of Aracruz Celulose in Brazil: Export Credit Agencies exporting unsustainability.
Vitória, 2003. p. 18.
21 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6938.htm
36 MEDEIROS, Leonilde Servolo de. Movimentos sociais, disputas políticas e reforma agrária de
22 ADAMI, Humberto. A Responsabilidade Ambiental dos Bancos. http://www.ibap.org/ mercado no Brasil. Rio de Janeiro: CPDA/UFRJ e UNRISD, 2002. p. 10.
direitoambiental/artigos/ha.htm
37 MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. São Paulo: Ciências humanas, 1979. p. 15.
23 Art.10 (...) VI - Exercer o controle do crédito sob todas as suas formas (Renumerado pela Lei nº
7.730, de 31/01/1989)
38 MOREIRA, Roberto. Terra, poder e território. São Paulo: Expressão Popular, 2007. p. 193.
Art. 42. O art. 2 da Lei nº 1808, de 7 de janeiro de 1953, terá a seguinte redação: “Art. 2. Os diretores
e gerentes das instituições financeiras respondem solidariamente pelas obrigações assumidas pelas
39 Cf. PÁDUA, José Augusto. Um sopro de destruição. Pensamento político e crítica ambiental no
mesmas durante sua gestão, até que elas se cumpram.
Brasil escravista (1786-1888). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
Parágrafo único. Havendo prejuízos, a responsabilidade solidária se circunscreverá ao respectivo
montante” (Vide Lei nº 6.024, de 1974).
40 “A ressignificação da teoria da renda da terra ‘como renda da natureza’ e a compreensão
Art. 43. O responsável pela instituição financeira que autorizar a concessão de empréstimo ou
das produções do conhecimento tecnológico, da imagem e da cultura impõem mudanças no
adiantamento vedado nesta lei, se o fato não constituir crime, ficará sujeito, sem prejuízo das
entendimento da terra e da questão agrária. MOREIRA, op.cit., 2005. p. 82.
sanções administrativas ou civis cabíveis, à multa igual ao dobro do valor do empréstimo ou
adiantamento concedido, cujo processamento obedecerá, no que couber, ao disposto no art. 44,
41 MOREIRA, Roberto José. Economia política da sustentabilidade: uma perspectiva neomarxista.
desta lei.
MOREIRA, Roberto José (Org.). In: Mundo rural e tempo presente. Rio de Janeiro: PRONEX, CPDA,
Art. 44. As infrações aos dispositivos desta lei sujeitam as instituições financeiras, seus diretores,
UFRRJ, Tempo Presente, 1999.
membros de conselhos administrativos, fiscais e semelhantes e gerentes às seguintes penalidades,
sem prejuízo de outras estabelecidas na legislação vigente: I - Advertência. II - Multa pecuniária
42 SHIVA, Vandana. Monoculturas da mente. São Paulo: Editora Gaia, 2003. p. 89
variável. III - Suspensão do exercício de cargos. IV - Inabilitação temporária ou permanente para
o exercício de cargos de direção na administração ou gerência em instituições financeiras. V -
43 Cf. O‘CONNOR, Martín. El mercadeo de la Naturaleza. Sobre los infortunios de la naturaleza
Cassação da autorização de funcionamento das instituições financeiras públicas, exceto as federais,
capitalista. In: Ecología Política. n. 7. Barcelona: Editorial Icaria, 1994.
ou privadas. VI - Detenção, nos termos do § 7º, deste artigo. VII - Reclusão, nos termos dos artigos 34
e 38, desta lei. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4595compilado.htm
44 SHIVA, Vandana. Biopirataria. A pilhagem da natureza e do conhecimento. Petrópolis: Vozes,
2001. p. 92.
24 “A ‘silvicultura científica’ foi a falsa universalização de uma tradição local de exploração dos
recursos florestais que nasceu dos interesses comerciais limitados que viam a floresta somente
45 “A crise ambiental se torna evidente nos anos 1960, refletindo-se na irracionalidade ecológica
em termos de madeira com valor comercial. (...) O reducionismo do paradigma da silvicultura
dos padrões dominantes de produção e consumo, e marcando os limites do crescimento econômico.
científica criado pelos interesses industriais e comerciais violentam tanto a integridade das
(...) a degradação ambiental se manifesta como sintoma de uma crise de modernidade regido pelo
florestas quanto a integridade das culturas florestais que precisam das florestas e de sua
predomínio do desenvolvimento da razão tecnológica sobre a organização da natureza.” LEFF,
diversidade para satisfazer suas necessidades de alimento, fibras e moradia.” SHIVA, Vandana.
Enrique. Saber ambiental, p. 17.
Monocultura da mente, op. cit., p.33.
46 “O discurso da sustentabilidade monta um simulacro que, ao negar os limites do crescimento,
25 “(...) O paradigma da Revolução Verde substituiu o ciclo dos nutrientes por fluxos lineares de
acelera a corrida desenfreada do processo econômico para a morte entrópica”. Idem, p. 23.
insumos de fertilizantes químicos comprados de fábricas e produtos comercializados de bens
agrícolas.” SHIVA, Vandana. Idem, p. 75 e 77.
47 “Tomar em cuenta las obligaçiones ecológicas se traduce así, en el contexto del industrialismo y
la lógica del mercado, en una extensión del poder tecno-burocrático”. GORZ, Andre. Ecologia Política.
26 Disponível em: http://www.midiaindependente.org. Acesso em: 14/2/2007.
Experttocracia autolimitación. Ecology As Politics. South End Press, 1979.
27 Disponível em: http://www.midiaindependente.org. Acesso em: 20/8/2007.
48 LEFF, Enrique. Saber ambiental. p. 26.
28 PARDO, Arturo Escobar. Movimentos sociais e biodiversidade no Pacífico colombiano. In: SANTOS,
49 SHIVA, Vandana. Biopirataria. A pilhagem da natureza e do conhecimento. Petrópolis: Vozes,
Boaventura (Org.). Semear outras soluções, os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais.
2001. p. 70.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 368.
50 Cf. SMITH, Denis. Business and the environment: towards a paradigm shift. In: Business and
29 http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoDetalhe.asp?incidente=2611341
Environment:implications of a new environmentalism. New York: St. Martins Press, 1993. BECK,
Ulrich. Risk Society: towards a new modernity. Sage Publications: Great Britain, 1992.
30 MEDEIROS, Leonilde Servolo. Movimentos sociais, disputas políticas e reforma agrária de mercado.
Rio de Janeiro: CPDA/UFRJ e UNRISD, 2002.
51 MOREIRA, Roberto. Ecologia e economia política: meio ambiente e condições de vida (mimeo). Rio
de Janeiro, outubro de 1989, p. 20.
31 Disponível em: http://www.aracruz.com.br/show_arz.do?act=stcNews&id=4&lastRoot=258&menu
=true&lang=1. Último acesso em: 19/11/2008.

91
52 ACSELRAD, Henri. As práticas espaciais e o campo dos conflitos ambientais. In: Conflitos 72 COSTA, Maria de Fátima Tardin. A cerca jurídica da terra na produção capitalista da cidade.
ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará. p. 13. Mestrado (Dissertação em Direito da Cidade). Rio de Janeiro: UERJ, 2005.

53 ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: Pós-neoliberalismo, 1996. p. 9. 73 BALDEZ, Miguel Lanzellotti. A terra no campo: a questão agrária. Direito achado na rua. v. 3.
Introdução Crítica ao Direito Agrário. São Paulo: Imprensa Oficial, 2002.

54 GONÇALVES, Carlos Walter Porto. A Invenção de novas geografias: a natureza e o homem em novos 74 O´CONNOR, Martín. El mercadeo de la Naturaleza. Sobre los infortunios de la naturaleza
paradigmas. Território, Territórios, Ensaios sobre o ordenamento territorial. Rio de Janeiro: DP&A, capitalista. In: Ecología Política. n. 7. Barcelona: Editorial Icaria, 1994.
2006. p. 377.
75 SHIVA, Vandana. Biopirataria. A pilhagem da natureza de do conhecimento. Petrópolis: Vozes,
55 ALIER, Joan Martínez. Ecologismo dos pobres. São Paulo: Contexto, 2007. p.77-79. 2001. p. 92.

56 HAESBAERT, Rogério. Identidades territoriais da multiterritorialidade à “reclusão” territorial (ou: 76 SHIVA, Vandana. Monoculturas da mente. São Paulo: Editora Gaia, 2003. p. 89.
do hibridismo cultural à essencialização das identidades). Disponível em: http://tercud.ulusofona.pt/
GeoForum/Ficheiros/23GeoForum.pdf. Acesso em: 10/2/2008. 77 “A diversidade é chave da sustentabilidade (...) a conservação da biodiversidade requer a
existência de comunidades com sistemas agrícolas e médicos distintos (...) a descentralização
57 SANTOS, Milton. A natureza do espaço. São Paulo: Edusp, 2004. p. 339. econômica e a diversificação são condições necessárias à biodiversidade.” SHIVA, Vandana.
Biopirataria, op.cit, p. 113.
58 Idem, ibidem, p. 339.
78 “Tecnologias de formação de consenso são então formuladas de modo a caracterizar todo
59 ACSERALD, Henri. Território, localismo e política de escalas. Cidades, ambiente e política. Rio de litígio como problema a ser eliminado. E todo conflito remanescente, por sua vez, será visto como
Janeiro: Garamond. p. 14. resultante de carência de capacitação para o consenso e não como expressão de diferenças reais
entre atores e projetos sociais, a serem trabalhadas no espaço público.” ACSERALD, op.cit, 2006, p.
60 Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. Uma concepção multicultural de Direitos Humanos. In: Lua 25.
Nova, n. 39, 1997, p. 108.
79 “(...) a utilização das estratégias socioambientais como um fator importante de legitimação
61 ROS, Carlos Javier. Roberto José Moreira. A construção de contra-hegemonias nas sociedades da dinâmica competitiva defendeu-se que o entendimento, a priori, do processo formador das
contemporâneas: uma perspectiva analítica. In: Globalismos, localismo e identidades sociais. COSTA, estratégias técnico-concorrenciais corporativas da Aracruz seria considerado imperativo à
Luiz Flávio de Carvalho; MOREIRA, Roberto José. Rio de Janeiro: Imprima Express, 2007. p. 19. compreensão posteriori da dimensão político institucional das suas estratégias socioambientais.”
ANDRADE, José Célio Silveira; DIAS, Camila Carneiro. Conflito Cooperação. Análise das estratégias
62 MOREIRA, Roberto José. Identidades sociais em territórios rurais fluminenses . Identidades sociais. socioambientais da Aracruz Celulose S.A. Ilhéus-Bahia: Editora da Uesc, 2003. p. 315.
In: MOREIRA, Roberto José (org.). Ruralidades no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
p. 19. 80 RIBEIRO, Ana Clara Torres, op.cit, p. 102.

63 Cf. ROS, Carlos Javier; MOREIRA, Roberto José. A Construção de contra-hegemonias nas 81 http://www.dhescbrasil.org.br/_plataforma. Acesso em: 7/7/2006.
sociedades contemporâneas: uma perspectiva analítica. In: Globalismos, localismo e identidades
sociais. COSTA, Luiz Flávio de Carvalho; MOREIRA, Roberto José. Rio de Janeiro: Imprima Express, 82 CASTILHO, Ela Wiecko. Disponível em: WWW3. esmpu.gov.br/linha_editorial/outras-publicações
2007. p. 19.
83 LEFF, Enrique. Racionalidade. p. 227.
64 GROSFOGUEL, Ramón. La Descolonizacion de La Economia Política y los Estúdios Post Coloniales.
Transmodernidad, pensamiento fronterizo y colonialidad global. In: Revista del Centro de Estúdios 84 “O termo judicialização refere-se à ampliação das interferências do poder Judiciário nos
Latinosamericanos (CELA), “Justo Arosemena”. Panamá: R. Panamá, 1994. assuntos e decisões sobre as quais valores ético-morais, interesses sociais, políticos e econômicos
são interpretados e admitidos como direitos pela Constituição. A judicialização é caracterizada por
65 HAESBAERT, Rogério, op. cit. processos institucionais (processos, conciliações e mediações) e não institucionais (manifestações
discursivas na mídia do Judiciário). Nesses processos, o poder Judiciário – especialmente o Supremo
66 GONÇALVES, Carlos Walter Porto. A Invenção de novas geografias: a natureza e o homem em novos Tribunal Federal – substituiu, por um lado, a sociedade civil organizada e os seus mecanismos de
paradigmas. Território, Territórios, Ensaios sobre o ordenamento territorial. Rio de Janeiro: DP&A, democracia direta (plebiscito, referendo e deliberações da iniciativa popular de leis) e, por outro,
2006. p. 377. as instituições políticas da democracia representativa (poder Legislativo ou poder Executivo) nos
debates e decisões (...)”. BRITO, Jadir Anunciação de. Judicialização. In: Dicionário da Educação no
67 SANTOS, Milton. O dinheiro e o território. In: Território, Territórios, Ensaios sobre ordenamento Campo. CALDART, PEREIRA, Isabel Brasil. ALENTEJANO, Paulo; FRIGOTTO, Gaudêncio. Rio de Janeiro/
territorial. SANTOS, Milton; BECKER, Bertha K. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. p. 383. São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Valêncio/ Expressão Popular, 2012.

68 Bernardo Mançano Fernandes. osal.clacso.org/espanol/html/documentos/Fernandez.doc 85 http://www.socioambiental.org/prg/pol.shtm

69 ACSERALD, Henri. Território, localismo e política de escalas. Op.cit, p. 13. 86 http://www.dhescbrasil.org.br

70 “A velocidade dos fluxos de mercadorias acelerou-se a níveis sem precedentes e propagou 87 http://www.mabnacional.org.br/?q=noticia/conquistas-da-campesina-com-jornada-lutas
o processo de desterriorialização e reterritorialização de capitais” ACSERALD, Henri. Território,
localismo e política de escalas. Op. cit, p. 13. 88 http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/pet3388CB.pdf

71 PRATT, Maru Louise. Olhos do Império: relatos de viagem e transculturação. São Paulo: Edusc, 1999. 89 http://global.org.br/programas/belo-monte-cidh-convoca-governo-a-responder-sobre-nao-
p.72. cumprimento-de-medidas-cautelares/

92
Amigos da Terra Internacional

O Estado brasileiro financia massivamente os megaprojetos das corporações: megaimpactos

93
Considerações
e Recomendações
João Roberto Lopes Pinto*

Para apresentar da forma mais objetiva possível as Considerações e Recomendações,


no intuito de contribuir para o debate quanto aos resultados deste estudo, passamos abaixo
a elencá-las pontualmente.

Considerações da pessoa humana (indivíduo e coletivo). Violam


Acordos Internacionais, Leis Nacionais, Políticas Fiscais
1. As violações de direitos associadas aos projetos financiados ou Políticas Setoriais específicas, forjam e aprofundam
pelo BNDES, nos casos aqui sistematizados, são variadas, desigualdades econômicas, sociais e regionais
extensas e sistemáticas. Embora sejam observadas diferenças historicamente produzidas nas áreas de implantação dos
entre os casos, considerando o meio rural e o urbano, bem referidos empreendimentos e seu entorno.
como a distinção de setores beneficiados, pode-se dizer que
os megaprojetos que foram objeto do presente estudo seguem Entre as formas de violação constatadas, que aprofundam o
um padrão de violação de direitos associado a um modelo de quadro de desigualdade econômica, social e regional nas áreas
desenvolvimento econômico. Tal padrão está relacionado à de implantação destes megaprojetos, destacam-se: condições
escala destes megaprojetos, normalmente nos setores intensivos de trabalho análogas à escravidão; remoções forçadas de
em natureza, ligados invariavelmente aos mesmos grupos comunidades urbanas pobres; expropriação de populações de
econômicos, que concentram grande poder de ingerência sobre áreas rurais dos seus meios de produção, territórios e modos de
as instituições públicas locais e nacionais, a exemplo do BNDES. viver; desmatamento, contaminação dos solos, da água e do ar,
Tal como afirma Marilda Teles: com comprometimento da biodiversidade, disponibilidade e
qualidade de recursos naturais; desestruturação das economias
os empreendimentos em questão são especialmente locais e fragilização da agricultura familiar, comprometendo
emblemáticos no que se refere às injustiças a segurança alimentar; falta de informações e de participação
socioambientais, pois geram uma enormidade de graves informada das populações locais sobre os projetos; migrações
impactos sociais, ambientais, fundiários, violações massivas de trabalhadores no período de construção das obras,
sistemáticas de direitos ambientais, trabalhistas e direitos gerando inchaços urbanos, aumento da violência, precarização

94
dos serviços públicos locais, alto custo de vida; especulação responsabilidade direta, subsidiária, do agente financeiro em
imobiliária, gerando a expulsão de populações para áreas relação ao risco gerado pela atividade econômica é um dado
de periferia das cidades; irregularidades nos processos de de realidade, inclusive no âmbito jurídico e administrativo. Ao
licenciamento ambiental; passivos trabalhistas e fiscais das não assumir esta responsabilidade em seus procedimentos de
empresas beneficiárias; enfraquecimento das instituições análise e acompanhamento, bem como nos seus contratos de
públicas e legislações locais em favor dos interesses das financiamento, de forma a evitar, corrigir ou compensar eventuais
empresas beneficiárias; e criminalização de movimentos sociais, danos, o agente financeiro se torna tão responsável quanto a
com perseguições e ameaças de morte. empresa pelas violações de direitos humanos.
Este mesmo padrão de violações é reproduzido fora do país. Conforme chama a atenção Jadir Brito, a responsabilidade
Atualmente, o BNDES é o principal fiador da internacionalização solidária do agente financeiro é algo já previsto em nossa
de grupos privados nacionais, particularmente em direção à legislação ambiental. A Lei 6938/81, que disciplina a Política
América Latina e à África Lusófona. No caso, apresentado em Nacional do Meio Ambiente (PNMA), é clara em determinar
detalhes ao final desta publicação, da exploração de carvão que o risco integral de uma atividade econômica, no sentido da
mineral a céu aberto pela Vale em Moatize, em Moçambique, geração do dano ambiental, é de responsabilidade da empresa –
repete-se o padrão de violações com restrição de circulação princípio do “poluidor pagador” –, mas que também é assumido,
e movimentação das comunidades atingidas pelo projeto, solidariamente, pelo agente que financia a atividade. Não por
violações dos direitos à informação, reassentamento de 1.500 acaso a lei determina que cabe ao agente financeiro não apenas
famílias em condições desumanas, crescimento populacional observar se há ou não licenciamento ambiental, mas também
desordenado do distrito de Moatize e da província de Tete e o fiscalizar o cumprimento do que ele determina.
domínio da empresa Vale sobre as instituições públicas locais e, Segundo o inciso IV do Art. 3 da Lei 6938/81, entende-se
mesmo, as nacionais. por “poluidor, a pessoa física ou jurídica, de direito público ou
Importante também chamar a atenção para o fato de que este privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade
padrão de violação resulta do que bem identifica Jadir Brito em causadora de degradação ambiental”. Já o Art. 12 afirma
seu texto como “fechamento” de territórios e ambientes para que “as entidades e órgãos de financiamento e incentivos
assegurar a rentabilidade financeira da terra. “Esse ‘fechamento’ governamentais condicionarão a aprovação de projetos
é identificado no cercamento material e imaterial de territórios e habilitados a esses benefícios ao licenciamento, na forma desta
ambientes, a exemplo dos casos da implantação da monocultura Lei, e ao cumprimento das normas, dos critérios e dos padrões
do eucalipto e de empreendimentos imobiliários em áreas expedidos pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama)”.
ambientais urbanas. O ‘fechamento’ de territórios através da De acordo com o parágrafo único deste mesmo artigo, “as
cerca da terra requer processos, instrumentos normativos, atores entidades e órgãos referidos no caput deste artigo deverão
institucionais e de autoridades do Estado: juízes, promotores, fazer constar dos projetos a realização de obras e aquisição de
desembargadores, executantes das decisões judiciais e equipamentos destinados ao controle de degradação ambiental
legisladores para assegurar proteção à renda da terra ao capital.” e à melhoria da qualidade do meio ambiente”. No § 1º do Art. 14
Dito de outro modo, as violações seguem um padrão de lê-se “é o poluidor obrigado, independentemente da existência
subordinação da vida em um dado território aos interesses de de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio
acumulação privada. ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade”.
2. A responsabilidade solidária e, em alguns casos, a Além disso, a responsabilidade das instituições financeiras não

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está circunscrita aos aspectos civis e administrativos, mas abrange efeito prático, que busca responder às condicionantes legais
também a responsabilização penal da pessoa jurídica e de seus para a concessão de financiamento à atividade potencialmente
diretores, nos termos da Lei 9605/98, de Crimes Ambientais. De poluidora. Ao responder à formalidade de prever condicionantes
acordo com o Art. 2 da Lei 9605/98, “quem, de qualquer forma, em seus financiamentos, o BNDES está assumindo a sua
concorre para a prática dos crimes previstos nesta Lei, incide nas corresponsabilidade, pois elas somente se justificam por ser o
penas a estes cominadas, na medida da sua culpabilidade, bem agente financeiro reconhecido pela Lei como solidariamente
como o diretor, o administrador, o membro de conselho e de responsável pelos riscos gerados pela atividade.
órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário de Vale aqui retomar o argumento de Jadir Brito:
pessoa jurídica, que, sabendo da conduta criminosa de outrem,
deixar de impedir a sua prática, quando podia agir para evitá-la”. Estes condicionantes significam que o próprio banco,

Daniel Beltrá/ Greenpeace


Já o Art. 3 acrescenta “as pessoas jurídicas serão responsabilizadas por imposição legal, reconheceu os riscos ambientais e
administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, sociais dos seus financiamentos e, consequentemente,
nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu a sua corresponsabilidade ou responsabilidade solidária
representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no pelo destino deles. No entanto, embora tenha prescrito
interesse ou benefício da sua entidade”. condicionantes contratuais, o BNDES não estabeleceu
mecanismos bancários de monitoramento, fiscalização
3. No final de 2010 foi formalmente aprovada a Política e controle dos impactos gerados na destinação dos
Socioambiental do Sistema do BNDES, sem que o Banco tivesse recursos liberados. Essa circunstância transcorreu apesar
feito uma ampla consulta com os setores organizados da de o Banco possuir mecanismos legais, contratuais, para
sociedade. Chama a atenção que essa Política Socioambiental a resilição ou rescisão contratual, bem como outros, a
foi realizada como uma das contrapartidas do Banco Mundial, exemplo dos Termos de Ajustamento de Conduta (TACs)
através do Empréstimo Programático de Política para o e do ajuizamento de ações de responsabilização dos seus
Desenvolvimento em Gestão Ambiental Sustentável (SEM financiados pelo descumprimento dos condicionantes
DPL), de US$ 1,3 bilhão em sua primeira fase, para o governo socioambientais contratuais e pelos impactos gerados.
federal, a ser gerido pelo BNDES. Os conhecidos “Empréstimos Não há informações de precedentes da utilização
de Política para o Desenvolvimento” do Banco Internacional destas medidas jurídicas legais e contratuais para fins
para Reconstrução e Desenvolvimento (Bird), historicamente de exigir dos financiados o cumprimento de cláusulas
associados às malfadadas políticas de ajuste fiscal, apresentam- contratuais relativas aos eventuais danos socioambientais
se agora em sua versão soft de condicionantes socioambientais, decorrentes da aplicação dos recursos.
voltados a promover a financeirização e, por conseguinte, a
flexibilização das políticas sociais e ambientais. Mesmo no caso dos três únicos setores para os quais o
O BNDES afirma em sua nova política socioambiental que Banco define “obrigações adicionais” ao que consta da lei
procede a avaliação do beneficiário sobre a sua regularidade com ambiental brasileira, a fragilidade dos mecanismos de controle
a legislação ambiental, inclusive avaliando e acompanhando e acompanhamento as torna pouco efetivas. Este é o caso das
os principais impactos esperados e o cumprimento de ações salvaguardas estabelecidas para os setores de etanol, que não
preventivas e mitigadoras previstas no licenciamento ambiental. poderiam ser beneficiados em áreas dos biomas da Amazônia
Contudo, verifica-se que se trata de uma política formal e sem e do Pantanal; de termelétrica, que estabelece restrições na

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O desrespeito à legislação é característica comum dos empreendimentos no Brasil: sintomático

emissão de partículas na atmosfera; e de frigoríficos, que


determina o cadastramento dos fornecedores e a exigência
da rastreabilidade progressiva do gado. Vale dizer que a
aplicação de tais salvaguardas está baseada, invariavelmente, na possui licenciamento, negligenciando todas as outras exigências
autodeclaração do tomador dos empréstimos, não contando o da Lei, inclusive a que determina aos agentes financeiros que
Banco com instrumentos de monitoramento e fiscalização do “deverão fazer constar dos projetos a realização de obras e a
seu cumprimento. aquisição de equipamentos destinados ao controle de degradação
Há limitações evidentes na referida política socioambiental, ambiental e à melhoria da qualidade do meio ambiente”.
marcada por orientações indicativas e ausência de Além do fato de que o licenciamento não é um salvo
mecanismos transparentes e efetivos de avaliação, controle e conduto, pois a execução do projeto precisa ser acompanhada
acompanhamento de impactos esperados dos projetos, bem e fiscalizada, a recorrência de graves irregularidades nos
como do cumprimento de eventuais condicionantes previstas processos de licenciamento de grandes projetos financiados
nos licenciamentos. Ao mesmo tempo, o BNDES não prevê pelo Banco exigiria uma postura ainda mais criteriosa do BNDES.
sanções contratuais no caso de eventuais danos e passivos Infelizmente, o que se verifica é o contrário disso. Isso fica
socioambientais gerados pelo projeto. evidente pelo fato de ele seguir liberando os financiamentos
A exigência do Banco se limita, na prática, a verificar se o projeto mesmo quando os projetos são objeto de ações judiciais por

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irregularidades nos licenciamentos e violações de direitos, como desenvolvimento, encontrando formas de promover
fartamente documentado nos casos sistematizados neste estudo. os propósitos desenvolvimentistas, como a busca por
O Banco trabalha menos na perspectiva de condicionalidades maior lucratividade dos capitais em nome da geração de
e mais na de incentivos às chamadas “boas práticas emprego e renda, e garantindo, assim, uma legitimidade
socioambientais”, estabelecendo linhas de financiamento, para a questão.
com spread zero para projetos de responsabilidade social e Em complemento, segue a afirmação de Lúcia Ortiz:
ambiental pelas empresas. Com isso, em vez de estabelecer
limites e eventuais sanções, o BNDES acaba premiando as Os novos mercados ambientais, deflagrados junto
empresas com novos e baratos recursos. Cria também, valendo- com a crise climática e ambiental, e a tentativa de
se da conscientização sobre as crises ambiental e climática e consensualização de um marco político global com a
da escassez ambiental provocada inclusive pela degradação promoção da economia verde, como via de solução
decorrente dos megaprojetos que financia, uma série de novos e reinvenção do capitalismo financeiro, contaram
produtos financeiros de compensação ambiental, através dos com a expertise técnica e política do Banco Mundial
quais se capitaliza com novos recursos, públicos ou privados, e na elaboração de arcabouços lógico, político e legal
os pinta de verde. Tais contradições tornam-se ainda maiores que impulsionaram, no Brasil, os mercados climáticos
quando se sabe que os recursos do seu Fundo Social, não na política nacional de clima, o ajuste estrutural das
reembolsável e composto de um percentual do lucro líquido do políticas do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e a
Banco, têm sido destinados para fundações empresariais. operação piloto de fundos e programas de negócios
Ao não estabelecer salvaguardas sociais e ambientais efetivas ambientais no BNDES.
para seus desembolsos e financeirizar relações que deveriam se
pautar pela observância de direitos, o BNDES ajuda a fragilizar Tal estratégia fica patente ao se considerar as outras
ainda mais a legislação ambiental brasileira. Essa estratégia se contrapartidas associadas ao referido empréstimo do Banco
articula com outras iniciativas nos campos do Executivo e do Mundial, como a reestruturação do Ibama para acelerar
Legislativo, como, por exemplo, a desqualificação do processo de o licenciamento ambiental e a implementação da Lei de
licenciamento de responsabilidade do Instituto Brasileiro do Meio Gestão das Florestas Públicas Brasileiras, que regulamenta
Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e a aprovação mecanismos de arrendamento e privatização das florestas.
do novo Código Florestal. Esta contrapartida conecta-se a outra que diz respeito à
regulamentação do Fundo Amazônia, gerido pelo BNDES,
4. O formalismo da resposta do BNDES ao que determina composto de recursos não reembolsáveis fruto de doações e
a legislação ambiental brasileira se inscreve no contexto destinado a “contribuir para o combate ao desmatamento da
do que autores deste estudo chamam de ambientalização floresta, além de iniciativas que promovam a conservação e o
das instituições financeiras ou financeirização das políticas uso sustentável da região”. Esta, que talvez seja, da perspectiva
socioambientais. Como afirmam Gabriel e Fabrina: do Banco, a sua principal política ambiental proativa, está
voltada a preparar um mercado de serviços ambientais a
(...) com o processo de ambientalização dos Estados serem transformados em certificados e créditos negociados
e das IFMs, a estratégia passou a ser superar a visão nas bolsas de valores.
de que a questão ambiental seria um obstáculo para o Um exemplo concreto está a ser implementado pelo

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governo do Acre, que recebeu do Fundo Amazônia o valor de Carbono na BM&F Bovespa, formado por ações de empresas
R$ 60 milhões para “fomentar práticas sustentáveis de redução que compõem o Índice de Carbono Eficiente (ICO2). Destaque
do desmatamento, com pagamento por serviços ambientais, também para o Programa BNDES Desenvolvimento Limpo,
valorizando o ativo ambiental e florestal para consolidar uma que é um programa para a seleção de Gestores de Fundos de
economia limpa, justa e competitiva (...)”. É justamente neste Investimento com foco direcionado para empresas/projetos
estado que as bases da “economia verde” encontram-se mais com potencial de gerar Reduções Certificadas de Emissão
avançadas no mundo. (RCEs) no âmbito dos Mecanismos de Desenvolvimento
Em 2010, foi instituída no Acre uma lei estadual, antes Limpo (MDL).
mesmo da aprovação de uma legislação em âmbito nacional, Vale dizer que tais iniciativas também se inscrevem no
que regulamenta o pagamento e a certificação de serviços contexto de outro plano setorial da PNMC, em especial o
ambientais para efeito de comercialização de títulos em Plano ABC (Agricultura de Baixo Carbono), diretamente
bolsa de valores. Os recursos repassados pelo BNDES, via referida ao “Estudo de Baixo Carbono para o Brasil”, lançado
Fundo Amazônia, para o governo do Acre visam exatamente pelo Banco Mundial, em 2010.
constituir o mercado de serviços ambientais. Ou seja, o
governo entra estruturando e regulamentando o mercado Segundo Lúcia Ortiz:
para permitir a posterior entrada do setor privado. Vale
dizer que o governo do Acre estabeleceu um acordo com (...) o cenário alternativo, chamado de “baixo carbono”
o governo do estado da Califórnia, nos Estados Unidos, pelo Bird, não contesta a expansão do agronegócio,
envolvendo também a província de Chiapas, no México, da pecuária e das monoculturas para agroenergia,
para o fornecimento de créditos por pagamento de serviços fomentados amplamente pelo BNDES (...) Nota-se que
ambientais para a compensação de emissões de CO2 pela o estímulo à expansão do agronegócio é diretamente
indústria da Califórnia. proporcional ao cálculo de créditos de redução de
Além do Fundo Amazônia, o Banco vem constituindo e emissões, gerando, a partir da ficção de um cenário
operando outros fundos voltados a promover o mercado de futuro, uma enxurrada de títulos negociáveis no mercado
carbono e serviços ambientais. O Fundo Clima do BNDES de emissões e justificando as políticas públicas de
se destina a aplicar a parcela de recursos reembolsáveis do intensificação do incentivo e do crédito ao modelo
Fundo Nacional sobre Mudança do Clima, ou Fundo Clima, agroindustrial exportador, em detrimento de outros
um dos instrumentos da Política Nacional sobre Mudança do setores não contemplados nos planos de mitigação das
Clima, criado em 2009 e vinculado ao MMA. O foco do fundo mudanças do clima, como agroecologia, por exemplo.
está no apoio, ao setor privado e ao próprio MMA, por vezes
substituindo sem adicionalidade seus recursos orçamentários Assiste-se, como alertam os autores, a um processo de
para ações estratégicas de combate às mudanças do clima financeirização das políticas ambientais e, por conseguinte,
identificadas nos planos setoriais do Plano Nacional sobre da própria natureza, esvaziando dramaticamente o sentido
Mudança do Clima (PNMC), previstos por Lei, assim como público do direito e dos bens comuns. Uma financeirização não
o Mercado Brasileiro de Redução de Emissões (MBRE) e a apenas na transformação dos contratos de financiamento em
Política Nacional sobre Mudança do Clima. mecanismos “extralegais” de viabilização de projetos social e
Em janeiro de 2011, o Banco lançou o Fundo do Índice ambientalmente impactantes, mas também de abertura de um

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novo mercado, da chamada “economia verde”, que, mantendo daí podendo surgir responsabilidade solidária para o referido
a mesma lógica compensatória, vai servir para justificar a Banco, pelo ilícitos ambientais praticados em parceria”.
continuidade da degradação socioambiental. Degradação
operada e controlada pelos setores intensivos em natureza, que, 6. Se olharmos para além dos projetos, focando os grandes
por sua vez, terão neste mercado novas fontes de acumulação. grupos econômicos beneficiários do crédito do Banco, veremos
Nos dizeres da referida pesquisadora: que o BNDES e o seu braço de participações, o BNDESPar,
que acumulava em 2010 aplicações de R$ 100 bilhões, atuam
O que parece contraditório não é. Somente a contínua como viabilizadores das próprias estratégias de concentração
poluição e degradação da natureza pode tornar os e conglomeração destas empresas. Isso se dá para além
bens comuns escassos e, assim, elevar seu preço nos dos financiamentos, seja por meio de capitalizações, de
mercados e nas bolsas de valores; ou seja, no mundo das patrocínio a processos de fusões e aquisições, seja pelo apoio à
instituições financeiras que, hoje, controlam a política. internacionalização de capitais.
Assim, o Banco Mundial, que não é nenhum exemplo de Alguns estudos que têm se dedicado a olhar a rede de
sustentabilidade, influencia com sua agenda neoliberal proprietários últimos na estrutura societária destes grandes
a financeirização da natureza e da política ambiental do grupos econômicos demonstram que o BNDES, juntamente
Brasil, adotada também pelo BNDES. com os fundos de pensão das estatais (Previ, Petros, Funcef),
representam os principais elos que sustentam esta rede
5. O principal argumento que se levanta contrariamente à tese oligopolista, onde figuram Odebrecht, Camargo Corrêa, Andrade
da corresponsabilização do agente financeiro é o de que não Gutierrez, Queiroz Galvão, Gerdau, Ultra, Vicunha, Itaú, Bradesco,
seria possível estabelecer o elo causal entre o financiamento Votorantim, EBX, JBS e Perdigão, com participações cruzadas nos
e o dano causado. Se este pode ser um argumento passível de referidos setores.
contendas judiciais, no caso do BNDES e dos projetos estudados São também conhecidos os casos de envolvimento direto do
ele de forma alguma se aplica. O Banco financia de 60% a 80% Banco no financiamento e formatação das fusões e aquisições,
do valor dos projetos, ou seja, sem o financiamento do BNDES como nos casos de Votorantim e Aracruz (Fibria), Perdigão e Sadia
não haveria projeto. Além de viabilizador dos projetos, o Banco (Brasil Foods), Itaú e Unibanco, Brasil Telecom e Oi, JBS e Bertin
é, em muitos dos casos, acionista das empresas que compõem e na tentativa de aliança entre o Pão de Açúcar e o grupo francês
os consórcios ou grupos responsáveis pela implementação dos Carrefour. O nível de concentração da economia patrocinado pelo
projetos. Nestes casos, a responsabilidade do Banco pelo dano Banco tem efeitos diretos sobre a vida dos brasileiros.
não é indireta ou solidária, mas direta e subsidiária.
No caso da Veracel, sistematizado neste estudo, em que o 7. O Banco não possui, como já afirmado, uma política de
Ministério Público Estadual (MPE) da Bahia acabou por suspender divulgação de informações relativas ao Sistema BNDES. Em
o processo de licenciamento ambiental para ampliação do 2009, o Banco adotou o chamado “BNDES Transparente”, que
plantio de pinus e eucalipto por conta de graves irregularidades, dá publicidade somente a projetos privados contratados a partir
o Banco possui 30% do capital da Fibria, detentora de 50% da de 2008 e não inclui os projetos fora do país. A não publicidade
referida empresa. Por conta disso o MPE apresentou uma da totalidade da carteira de projetos é algo que fere o princípio
notificação judicial ao Banco alertando, em conformidade com a constitucional da publicidade no uso do recurso público,
legislação ambiental, o financiamento a “ações ilícitas da Veracel, bem como desrespeita a recém-aprovada Lei de Acesso à

100
Informação (Lei 12.527/2011). Ainda sobre as questões de raça e gênero, chama a atenção
Considerando o exposto acima, corre-se o risco de assistirmos a recorrente determinação da Lei de Diretrizes Orçamentárias
ao BNDES se precavendo e adotando medidas protelatórias na (LDO) que, desde 2007, explicita a necessidade do Banco de
prestação de informação à sociedade brasileira. E já há sinais avançar na observância destas questões. Vale citar, no Art. 86 da
disso. Com a oportunidade da entrada em vigor da Lei de Acesso LDO 2012:
à Informação e da já consolidada pauta da Plataforma BNDES
de defesa de adoção de uma política pública de informação (...) as agências financeiras oficiais de fomento,
pelo BNDES, o Instituto Mais Democracia tomou a iniciativa respeitadas suas especificidades, observarão as
de encaminhar ao Serviço de Informação ao Cidadão da seguintes prioridades: (…) IV - para o Banco Nacional
Controladoria Geral da União (CGU) um pedido de informações de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES:
sobre o Banco. O pedido reproduz a histórica pauta por (...) b) financiamento de programas do Plano Plurianual
transparência do Banco, expressa no documento de fundação da 2012-2015, especialmente as atividades produtivas que
Plataforma (2007) e reforçada em diversos outros documentos propiciem a redução das desigualdades de gênero e
nestes últimos cinco anos. étnico-raciais; (…) g) redução das desigualdades regionais,
A resposta do Banco à solicitação do Mais Democracia foi sociais, étnico-raciais e de gênero, por meio do apoio
evasiva e protocolar, onde se lê “esclarecemos que o BNDES à implantação e expansão das atividades produtivas;
está envidando seus melhores esforços no sentido de atender (...) h) financiamento para o apoio à expansão e ao
às proposições colocadas”. Na resposta, o Banco não se desenvolvimento das empresas de economia solidária,
compromete com prazos e informações a serem divulgadas. Vale dos arranjos produtivos locais e das cooperativas, bem
lembrar que, conforme faculta a Lei de Acesso, caso a resposta ao como dos empreendimentos afro-brasileiros e indígenas.
pedido de informação não seja satisfatória cabe recurso.
Em que pese tais exigências da Lei, o Banco, simplesmente,
8. Sobre as cláusulas sociais existentes no Banco, desde 2008, não tem gerado ações nesta direção.
verifica-se o comprometimento em realizar o vencimento
antecipado do crédito caso a empresa beneficiária seja 9. O que explicaria esta não efetividade do BNDES em termos
condenada, em última instância, por questões relativas à sociais e ambientais? Como é possível imaginar que uma
discriminação de raça ou gênero e às condições de trabalho política socioambiental seja anunciada sem apresentar
análogas à escravidão. Ou seja, a condenação deverá ter instrumentos e procedimentos que a tornem efetiva? Como
transitado em julgado, sem possibilidade de recurso. justificar o desrespeito pelo Banco à própria legislação
Considerando as diferentes formas de violação de direitos ambiental brasileira, quando ele segue, por exemplo,
trabalhistas nos projetos aqui estudados, bem como as comprometido com o financiamento de obras na Amazônia,
centenas de ações judiciais impetradas pelo Ministério como a do Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira (Rondônia) e
Público, a hesitação do Banco em responder a situações a da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu (Pará),
de violação não apenas contribui para persistências e que, entre várias irregularidades, clara e sabidamente
agravamento delas, como acaba por comprometê-lo com desrespeitam as condicionantes contidas em seus respectivos
situações de insegurança jurídica, potencialmente prejudiciais licenciamentos ambientais?
ao próprio retorno dos investimentos. Alguns atribuem a falta de efetividade da política

101
socioambiental do Banco à falta de interesse e de uma cultura sim de uma coincidência de propósitos entre o BNDES e as
institucional, refletidas em falhas operacionais e despreparo grandes corporações destes setores intensivos em natureza e
técnico, e que caberia, portanto, às organizações da Plataforma de infraestrutura, em favor da flexibilização da legislação e dos
BNDES a discussão e posterior proposta ao Banco de direitos sociais e ambientais.
salvaguardas sociais e ambientais em seus procedimentos de Neste contexto, cabe indagar a validade, bem como os
análise e nos contratos de financiamento. Segundo esta visão riscos, de uma estratégia voltada a estabelecer recomendações
haveria uma brecha para “mostrar ao Banco o que fazer”, dada e salvaguardas para o Banco. Concentrarmos nossa atuação
pelo momento de maior visibilidade dos seus financiamentos e no debate sobre salvaguardas é aceitar que haverá impactos
da formalização de uma política socioambiental. negativos, que serão – em alguma medida – evitados ou
As evidências aqui elencadas de violações associadas a projetos mitigados. É aceitar que não cabe discutir a pertinência do
financiados pelo Banco parecem demonstrar que não há brechas. projeto a ser financiado. Corre-se, pois, um duplo risco. De
Não se trata apenas de uma falta de interesse do Banco, mas um lado, de dispersar esforços, capturando nossa capacidade
técnica e política necessárias a uma atuação mais efetiva
sobre o Banco. De outro, de corroborar, no limite, compactuar,
com a natureza rebaixada da atuação do Banco em termos
socioambientais, como alertam, em artigo anterior, Fabrina
Furtado e Gabriel Strautman sobre a “agenda reformista”,
voltada a aperfeiçoar as salvaguardas e os procedimentos
de participação e resolução de conflitos das Instituições
Financeiras Multilaterias (IFMs).

A floresta Amazônica é destruída para dar lugar


à construção de Belo Monte: que desenvolvimento é esse?

102
Segundo os referidos autores: chegaram a suspender a compra de carne da JBS. Não se pode
esquecer, neste caso, que o Banco é também controlador de 31%
(...) identificam-se pelo menos dois grupos críticos do capital da JBS. Embora as salvaguardas estabelecidas para o
das IFMs com diferentes interpretações para os setor da pecuária apresentem, como já dito, limitações, deve-
problemas de implementação das salvaguardas: o se ter claro que foram fatores alheios ao Banco que acabaram
primeiro deles é o dos reformistas, que acreditam nas por constrangê-lo a adotá-las, pois, do contrário, a própria
salvaguardas como um instrumento de reforma dos rentabilidade do negócio estaria ameaçada.
bancos e atribuem a falhas operacionais os problemas Já o TCU, juntamente com o MPF e a CGU, conseguiu
na implementação; o outro grupo, dos contestatários, avançar no estabelecimento de salvaguardas nos contratos de
argumenta que as salvaguardas são instrumento de financiamento do BNDES para os megaeventos. Conforme
retórica, sendo, portanto, muito mais um discurso do que relato de documentos públicos deste Tribunal, o Banco
necessariamente uma prática. Para este grupo, o objetivo declarou não possuir competência instalada para analisar
final das salvaguardas é a neutralização da crítica ao os orçamentos dos projetos, avaliando apenas as garantias
modelo de desenvolvimento do qual os bancos são um oferecidas pelo beneficiário. Desta forma, o TCU instou o
instrumento central. Banco a não liberar recursos acima de 20% do valor do projeto,
sem que antes o Tribunal fornecesse a informação sobre a
Tais limites não invalidam a necessidade de se trabalhar com adequação do orçamento do projeto. Caso o TCU constate
alternativas em termos de critérios e salvaguardas sociais e sobrepreço, conforme ocorreu nos casos das obras nos estádios
ambientais, inclusive como forma de organização da luta das do Maracanã, no Rio de Janeiro, e da Arena Amazônica, em
populações atingidas. Mas deve-se ter claro que a questão não é a Manaus, o Banco somente liberará o recurso após a revisão
falta de alternativas, mas sim o não reconhecimento pelo BNDES do orçamento. Caso o orçamento permaneça superestimado,
de que as violações geradas pelo atual padrão de acumulação o Banco deverá descontar no valor do empréstimo o valor do
configuram, de fato, um problema. sobrepreço. Além desta salvaguarda inédita, o TCU também
Prova disso é que o Banco somente aceitou tratar de instou o Banco a suspender o financiamento para a segunda
salvaguardas, como nos exemplos das exigências do Tribunal etapa da Transcarioca, obra de mobilidade urbana no Rio de
de Contas da União (TCU) para os projetos relacionados Janeiro, em decorrência de irregularidades no processo de
aos megaeventos esportivos e dos procedimentos para o licenciamento ambiental da obra.
financiamento dos frigoríficos, quando a ausência delas tornou- Mas não se deve perder de vista o contexto de financeirização
se um problema público. Por pressão ou de outras instâncias do da política ambiental em que se propõe discutir salvaguardas
próprio governo federal, ou de agentes do mercado externo, ou sociais e ambientais. Como esclarece Lúcia Ortiz:
de compradores da carne brasileira. As políticas ambientais, orientadas pela cooperação
O caso dos frigoríficos ficou mais conhecido por conta da técnica de instituições como o Banco Mundial ou geridas
repercussão na imprensa. Com as denúncias do Greenpeace por instituições financeiras como o BNDES, tornam
junto ao Ministério Público Federal do Pará de que os frigoríficos, contraditória qualquer iniciativa de regulamentação
Daniel Beltrá/ Greenpeace

a exemplo da JBS, financiados pelo Banco, estavam comprando através de critérios e salvaguardas. Elas implicam um
gado de pecuaristas que desmatam a Amazônia, houve forte processo que se aprofunda na perda de direitos e
pressão das empresas, como a Wal-Mart e o Carrefour, que na contínua deterioração do papel do Estado como

103
garantidor deles, em favor dos interesses e novos direitos enfrentado é preciso muita pressão pública e, neste sentido,
do mercado sendo agora assegurados por lei. Tal como a escolha do caso faz diferença. Além das evidências e da
o Banco Mundial, o BNDES tem se utilizado de uma extensão de violações de direitos, a identificação do caso a ser
estratégia de capitalização diante da crise ambiental considerado deve levar em conta: mobilização e organização
como central à sua política socioambiental. Fortalecer social na resistência ao projeto; irregularidades no processo de
essa lógica através da criação de critérios e salvaguardas, licenciamento; presença financeira do Banco no projeto; grupo
seja para o financiamento de grandes obras e projetos, econômico envolvido e sua conexão com o Banco; sensibilidade
seja para aqueles produtos e fundos que deveriam ter do ponto de vista internacional, seja por desrespeito a tratados
como premissa a proteção e conservação ambientais, internacionais, seja pela presença de capitais estrangeiros.
significa deslocar o foco do debate sobre o modelo de Entre os casos sistematizados neste estudo, destacam-se por
desenvolvimento e do papel central que as instituições estes critérios a Usina Hidrelétrica de Belo Monte e o Complexo
financeiras vêm desempenhando na sua promoção. Siderúrgico do Atlântico (TKCSA).
No caso de Belo Monte, trata-se do maior financiamento a
Recomendações um único projeto a ser desembolsado pelo Banco – estimado
em R$ 24 bilhões –, com claras irregularidades no processo
1. Embora a responsabilidade solidária do agente financeiro de licenciamento, envolvendo empresas estrangeiras no
pelos danos sociais e ambientais do projeto financiado seja fornecimento de equipamentos, com forte mobilização local
algo previsto na legislação ambiental brasileira, até hoje o e nacional contrária à obra, com graves e extensos impactos
BNDES não chegou a ser interpelado judicialmente sobre sua sobre o território, particularmente sobre os povos indígenas.
responsabilidade por violações de direitos por qualquer projeto Em 2011, o Ministério Público Federal do Pará pediu a anulação
por ele financiado. Recomendamos que as organizações da da licença de instalação da hidrelétrica em uma ação ajuizada
Rede Brasil, em articulação com a Plataforma BNDES, acionem o contra o consórcio Norte Energia e o Ibama, já que, além
Ministério Público Federal instando-o a impetrar uma ação civil de as condicionantes estarem sendo descumpridas e serem
pública que interpele o Banco nesta direção. insuficientes, elas são mal fiscalizadas pelo órgão ambiental. Um
Certamente, uma ação civil pública que se baseie na tese dos exemplos de condicionantes não atendidas refere-se à não
da responsabilidade solidária por violações de direitos pode realização das oitivas indígenas, em desrespeito à Convenção
ter diferentes objetos: solicitação do vencimento antecipado 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que
do financiamento; suspensão da liberação de parcelas do motivou a solicitação pela Organização dos Estados Americanos
financiamento até que os danos sejam reparados; desconto no (OEA) ao governo brasileiro de suspensão tanto do processo
valor do financiamento correspondente ao valor da reparação de licenciamento como da construção da usina hidrelétrica.
dos passivos sociais e ambientais gerados; revisão nos termos Chama a atenção também que o consórcio Norte Energia tem
do contrato de financiamento; e, mesmo, a combinação a participação da Vale, cuja atuação vem sendo questionada
deles. Contudo, para além do objeto da ação, cabe chamar a pela Campanha dos Atingidos pela Vale, que poderia se somar à
atenção para a escolha do caso a ser trabalhado, para efeito da iniciativa da Rede Brasil.
interpelação judicial ao Banco. No dia 23 de agosto de 2012, a Norte Energia foi obrigada a
Conforme afirmado anteriormente, para que o Banco paralisar as obras em Altamira e em Vitória do Xingu, depois de
reconheça as violações de direitos como problema a ser receber o acórdão da 5ª Turma do Tribunal Regional Federal

104
da 1ª Região (TRF-1), que atendeu
pedido do MPF do Pará e anulou o
decreto legislativo 788/2005 e todas as
licenças concedidas pelo Ibama para
o empreendimento. O voto do relator
Antonio Souza Prudente, acolhido
por unanimidade pela 5ª Turma,
afirmou: “Não podemos admitir um ato
congressual no estado democrático de
direito que seja um ato de ditadura, um
ato autoritário, um ato que imponha
às comunidades indígenas um regime

Amigos da Terra Internacional


de força”. No entanto, apenas quatro
dias depois, na noite do dia 27, ao
analisar o pedido feito pela Advocacia
Geral da União (AGU), que entrou com
reclamação contra a decisão do TRF-1,
o presidente do STF, Carlos Ayres Britto, O coquetel de poluentes emitidos pela TKCSA ainda não foi totalmente decifrado: "chuva de prata" que assusta a comunidade vizinha

concedeu uma liminar que permitiu a


retomada das obras de Belo Monte. A decisão de Britto vale até constatado e denunciado pelo Ministério Público do Rio de
que o STF analise e julgue o mérito da questão, em plenário. Mas Janeiro em abril de 20121. De acordo com dados da própria
não há previsão para que isso aconteça. empresa, a TKCSA também elevará em 76% as emissões
Já no caso da TKCSA, em que o Banco está comprometido de CO2, o que significa mais de 12 vezes o total da emissão
com R$ 2,4 bilhões, equivalente a 30% do projeto, “são de todo o município. Reforçando as críticas feitas pelos
alarmantes”, como informa neste estudo Marilda Teles, “os moradores da região, a Fiocruz constatou um aumento de
níveis de poluição atmosférica com particulados provenientes 1.000%2 na concentração de ferro no ar da região (Relatório
de ferro e de emissões de CO2: a Companhia Siderúrgica de Insustentabilidade da Vale 2012). Isso revela que a ‘CSA,
do Atlântico (TKCSA), uma joint venture da Vale com a sozinha, produzirá 9,7 milhões de toneladas de dióxido de
ThyssenKrupp, ‘vem causando inúmeros impactos negativos carbono (CO2)’, de acordo com informações do Departamento
na saúde, no meio ambiente e na renda de cerca de 8 mil de Geografia da Universidade Federal Fluminense (UFF), em
famílias de pescadores artesanais e centenas de famílias 2010, ultrapassando em três ou quatro vezes o estipulado pela
residentes em Santa Cruz, no Rio de Janeiro’ (Campanha Organização Mundial de Saúde (OMS), segundo requerimento
Pare a TKCSA!, 2012). Segundo o Instituto de Geociências da do MPRJ”.
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), esta companhia Além disso, as atividades da pesca e a renda dos pescadores
causou um aumento de 600% na concentração média de estão gravemente prejudicadas pela TKCSA, o que resultou em
ferro no ar na área de sua influência em relação ao período seis processos judiciais (dos nove movidos contra a empresa) que
anterior ao início da pré-operação. Este crime ambiental foi preveem indenizações para 5.763 pescadores da Baía de Sepetiba

105
(Virgínia Toledo, Rede Brasil Atual, 18 de abril de 2012). Os 2. Considerando as limitações já anunciadas pelos próprios
licenciamentos concedidos pelo Instituto Estadual do Ambiente órgãos públicos em responder às exigências por transparência
(Inea) estão repletos de irregularidades, conforme denúncias do estabelecidas pela Lei de Acesso e, particularmente, a resistência
Ministério Público Estadual (MPE). Até o momento a empresa das empresas estatais, torna-se oportuna a publicidade desta
não obteve a licença de operação, por não conformidade com as agenda de informações, tal como tem pleiteado a Plataforma
condicionantes estabelecidas nas licenças prévias e de instalação. BNDES. Elas são condição para conhecermos e incidirmos
Vale acrescentar que, no caso da TKCSA, a ThyssenKrupp já sobre o BNDES, de forma que, além de estatal, ele seja
manifestou o interesse de vender sua parte no empreendimento. efetivamente público.
Como principal credor da empresa, o BNDES precisa dar a sua Desta forma, recomendamos que as organizações que
anuência à venda. Caso haja alguma restrição por parte do compõem a Rede Brasil, em articulação com a Plataforma BNDES
Banco, ele poderá sair do negócio, realizando o vencimento e organizações aliadas, tracem uma estratégia conjunta para
antecipado do financiamento ou mesmo alterando os assegurar, pelos meios cabíveis, o amplo acesso e a publicação
termos do contrato, no sentido de elevar as garantias. A pelo Banco das seguintes informações:
venda da participação da ThyssenKrupp apresenta-se como
uma oportunidade para que os movimentos de resistência, 2.1 - Sobre a carteira de projetos privados contratados pelo
envolvendo comunidades de pescadores, população local e Banco, por meio de operações diretas e indiretas
a Fiocruz, exijam, por via legal, que o Banco revise o contrato a) a totalidade da carteira de projetos privados, ou seja,
de financiamento no sentido de estabelecer garantias da todos os projetos que dizem respeito a empréstimos que
reparação e eliminação dos passivos sociais e ambientais do ainda não foram pagos pelos beneficiários, além dos
empreendimento pelo(s) futuro(s) comprador(es). desembolsos futuros já aprovados;
Importante deixar claro que a recomendação em favor b) para cada projeto, o Banco deverá informar – além das
de uma ação civil pública não tem a intenção de reduzir e informações já constantes no “BNDES Transparente”: nome
limitar a luta política à arena judicial, como bem alerta Jadir e Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) do cliente,
Brito, quando trata das tendências recentes à “judicialização objetivo, data da contratação, unidade federativa e valor do
da política” e ao “ativismo jurídico”. Na verdade, trata-se projeto – as seguintes informações: valor total do projeto;
exatamente do contrário. A via jurídica, aqui, busca servir de localização do projeto, considerando como referência o(s)
instrumento de pressão pública a fim de constranger o Banco a município(s); condições do financiamento (juros, carência,
reconhecer e assumir sua responsabilidade social e ambiental, prazos e garantias); classificação de risco ambiental; impactos
tal como determina a Lei. ambientais e sociais esperados (em conformidade com os
Trata-se da defesa intransigente da lei, garantindo que o direito Anexos 6 e 7 do “Roteiro de Informações para a Consulta
privado não se sobreponha ao direito público, como vem ocorrendo Prévia”); indicar a existência ou não de licenciamento
no caso do BNDES. Este “o que fazer” aponta para o reconhecimento ambiental; em que etapa do processo de licenciamento
e a valorização do conflito social – da luta das populações atingidas ambiental o empreendimento em questão se encontra
direta e indiretamente pelos megaprojetos de grandes grupos (Licença Prévia, de Instalação ou Operação), nomes e
econômicos e do Banco – como gerador de sujeitos coletivos contatos dos responsáveis no Banco pelo financiamento e de
capazes de fazer a defesa de seus direitos, não se submetendo à ação representantes das empresas tomadoras dos empréstimos;
discricionária daqueles que se julgam acima da lei. c) quando existir, informar relação de contrapartidas por

106
parte do tomador dos empréstimos; para as operações diretas e indiretas no país;
d) quando existir, informar financiamentos paralelos ao b) as iniciativas de captação e financiamento realizadas no
financiamento principal e que visem atender a dimensão âmbito do BNDES Limited, em Londres, contemplando as
social do projeto (escolas, postos de saúde, etc.), observando informações acima elencadas sobre as operações no país;
as mesmas informações solicitadas acima quanto ao c) os termos de todos os acordos firmados pelo Banco no
financiamento principal. âmbito do memorando de cooperação técnica assinado em
15 de abril de 2010 pelo BNDES e suas contrapartes na China,
2.2 - Sobre a governança do BNDES Rússia, Índia e África do Sul.
a) “Relatórios de Análise”, que orientam a decisão da diretoria
do Banco sobre a aprovação de projetos; 3. Recomendamos que a Rede Brasil, em articulação com a
b) agenda, pauta e decisões das reuniões de diretoria e do Plataforma BNDES, por meio de gestão no Congresso brasileiro,
Conselho de Administração, com antecedência e amplitude questione a legitimidade e mesmo legalidade do Empréstimo
suficientes para garantir o exercício do controle público; Programático de Política para o Desenvolvimento em Gestão
c) mecanismos de avaliação, acompanhamento técnico e Ambiental Sustentável Brasileira (SEM DPL, sigla em inglês) do
financeiro e fiscalização dos projetos contratados pelo Banco, Banco Mundial, no valor de US$ 1,3 bilhão, em sua primeira
em observância à legislação brasileira, em especial, à legislação fase – em que a política ambiental do Bird, braço do Grupo
ambiental; Banco Mundial, serve de referência para o BNDES. O grau de
d) participação de funcionários e ex-funcionários do BNDES, ingerência do Bird nos assuntos internos, por mais que haja
em atividade e aposentados, ao longo de toda a história do uma coincidência de propósitos com a orientação do atual
Banco, em conselhos de administração de empresas e de governo, atenta contra o Estado de direito, pois fere os institutos
associações de empresa em qualquer área ou com qualquer constitucionais garantidores de direitos sociais e ambientais.
objetivo, informando o nome da pessoa e de qual conselho fez O questionamento ao referido empréstimo deve ser
ou faz parte. acompanhado da exigência de que o BNDES realize audiências
públicas para discutir e detalhar sua política socioambiental.
2.3 - Sobre os fundos não reembolsáveis do Banco, Fundo Tais audiências deverão prever a participação de representações
Social e Funtec (Fundo Tecnológico) de órgãos públicos de licenciamento, de organizações civis, de
a) nome dos beneficiários, os objetivos do projeto apoiado e movimentos sociais e populações impactadas por megaprojetos.
o valor liberado. Caberia também à Rede Brasil retomar, neste contexto, a proposta
de “Avaliação de Equidade Ambiental”, construída no âmbito da
2.4 - Sobre o BNDESPar Rede Brasileira de Justiça Ambiental, como forma de se contrapor
a) a composição da carteira de ações do BNDESPar ao processo de planejamento de projetos de desenvolvimento e à
por empresa, indicando o valor aplicado e a participação flexibilização da legislação e gestão ambiental no país.
percentual no capital total e votante das empresas. Em sintonia com esta estratégia, seria importante que a
Rede Brasil pudesse seguir com os processos de formação/
2.5 - Sobre a atuação internacional do BNDES capacitação nos territórios, a exemplo da oficina que realizou
a) a totalidade dos projetos privados contratados fora do país, no Acre, em outubro de 2011, sobre o avanço dos mecanismos
contemplando o conjunto das informações acima elencadas de estruturação do mercado de clima no contexto da chamada

107
megaprojetos com graves impactos
ambientais, o Banco deveria cobrar
e fiscalizar as empresas beneficiárias
quanto à observância do que determina
as condicionalidades indicadas nos
licenciamentos e, no caso de passivos,
prever sanções contratuais de vencimento
antecipado ou abatimento do crédito, a fim
de preservar o interesse público. Ou seja,
trata-se da atuação do Banco de concorrer
para o reconhecimento e fortalecimento
do papel institucional do Ibama, bem
como dos órgãos de fiscalização estaduais.
Nos projetos financiados fora do país,
o BNDES deverá seguir, como padrão
mínimo, o que determina a legislação

Rio + Tóxico 2012


ambiental brasileira.
Nos seus financiamentos, o Banco não
deveria solicitar somente a autodeclaração

As irregularidades e ilegalidades marcam o histórico da TKCSA: não agiria assim na Alemanha


do beneficiário de que não descumpre
a legislação trabalhista referente à saúde
“economia verde”. A complexidade dos processos e mecanismos do trabalhador. Deve solicitar informações junto aos órgãos
de financeirização da questão ambiental exige um grande competentes do Ministério da Saúde, Previdência e do Trabalho
esforço de conhecimento, comunicação e disseminação pública. e Emprego para poder melhor orientar sua avaliação dos
projetos no setor. Ao financiar o setor do agronegócio, o Banco
4. Recomendamos, também, estender a atuação do TCU, de deve buscar informações também junto à Agência Nacional
caráter preventivo e hoje limitada aos financiamentos da Copa do de Vigilância Sanitária (Anvisa), para saber como e o quanto a
Mundo, para todos os grandes projetos financiados pelo BNDES. produção de alimentos, particularmente os transgênicos, estão
Como ficou demonstrado neste caso, o Banco não possui comprometidos pela introdução de elementos tóxicos na sua
capacidade de análise dos orçamentos, por isso se viu impelido a produção – ainda mais, considerando que o Brasil é o país que
aceitar a orientação do órgão público competente. Cabe, pois, ao mais consome agrotóxico no mundo.
Banco respeitar as orientações de outros órgãos do Estado, que Esta atuação concernente com as políticas de outros órgãos do
atuam em defesa de direitos constitucionais, no direcionamento Estado, no sentido do cumprimento do que determina a lei e o
de seus financiamentos. direito, evitaria que o Banco atuasse contrário ao direito, como
Antes de financiar e patrocinar processos de fusão e aquisição, nos casos aqui assinalados demonstram.
o Banco deve ouvir o Cade sobre os efeitos esperados destes Em linha com esta proposta, recomenda-se, também, a criação
processos sobre a concorrência e os preços. Ao financiar de uma comissão independente do Banco, porém mantida com

108
recursos do BNDES, que analise a pertinência de a instituição o que estabelece a LDO federal, desde 2007. Além disso,
aceitar o pedido de financiamento a projetos que encerrem riscos recomenda-se que a Rede Brasil atue junto ao próprio BNDES
potenciais extremos aos territórios em que serão implantados. no sentido de que as “cláusulas sociais” adotadas pelo Banco
Em caso de aceitação do financiamento, sugere-se, também, que sejam acionadas em caso de abertura de processos judiciais, não
a comissão continue a trabalhar durante o desenvolvimento da precisando que o processo alcance a última instância.
obra, observando o respeito a todas as condicionantes assumidas Expostas as Considerações e Recomendações, resta-nos o
pelos titulares do projeto. Esta comissão, com poder vinculante, debate e a ação que sirva ao bom combate em defesa do Estado
deveria ser composta de representantes das populações direta e de direito, que parece não valer quando estão em jogo relações
indiretamente atingidas pelas obras, superintendentes do Banco entre órgãos públicos e interesses de grandes grupos privados.
e de membros dos órgãos de controle do Estado. Exemplos
de casos extremos são, mais uma vez, o da usina Belo Monte * Responsável pela organização desta publicação, João Roberto Lopes Pinto é Coordenador do
Instituto Mais Democracia e desde a IX Assembleia Geral da Rede Brasil, realizada em agosto de
e o da siderúrgica TKCSA, que desde a fase de licenciamento 2012, é membro da Coordenação Nacional da Rede Brasil.

ambiental demonstravam seu potencial de risco para o


1 “Relatório dos atingidos pela Vale cita ‘insustentabilidade’ e critica ‘incoerente posição’ da
conjunto das populações e do ambiente físico das regiões em mineradora”. Virginia Toledo/Rede Brasil Atual. Publicado em 18/4/2012. Disponível em: http://
www.redebrasilatual.com.br/temas/ambiente/2012/04/relatorio-dos-atingidos-pela-vale-denuncia-
que foram implantadas. insustentabilidade-e-critica-a-antagonica-posicao-da-mineradora.
É também tarefa da universidade e das organizações civis
2 Relatório da Fiocruz caso TKCSA 2011: “Avaliação dos impactos socioambientais e de saúde em Santa
colocar em debate os rumos do desenvolvimento brasileiro e Cruz decorrentes da instalação e operação da empresa TKCSA”. 2011.

seus principais beneficiários. No caso das instituições públicas de


ensino superior, há uma ampla agenda de pesquisa e extensão
cuja ociosidade contrasta com sua urgência. Esta agenda
precisa estar comprometida com a vida social, em conexão
com movimentos sociais, não apenas aqueles com certo grau
de institucionalização, mas também com as novas dinâmicas
organizativas e de mobilização vinculadas a conflitos nos
territórios e no mundo do trabalho.
Cabe o desafio da academia de ir além dos indicadores de
eficiência e proficiência da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do Conselho Nacional de
Pesquisa (CNPq), conectando-se com as demandas e questões
mais emergentes e urgentes da sociedade brasileira neste
início de século. Quanto à questão dos recursos, vale lembrar
que o Fundo Social do BNDES, não reembolsável, pode e deve
contribuir com a produção acadêmica de avaliações, indicadores
e recomendações sobre os rumos do desenvolvimento brasileiro.

Verena Glass
Sobre a observância das questões relativas a raça e gênero,
recomenda-se a atuação da Rede Brasil junto ao Congresso
brasileiro no sentido de instar e constranger o Banco a responder As ensecadeiras simbolizam o início da transformação do Rio Xingu: morte da vida

109
Efe
110
Contexto Internacional

A história se repete
como farsa
Diana Aguiar*

A
s crises econômico-financeira, social e ecológica se privatização, comodificação e financeirização dos bens comuns
inserem no contexto mais amplo de financeirização como falsas soluções de mercado à crise, desvelando a face
da economia, processo intensificado desde os anos social e ecológica desta crise sistêmica.
1980 com a crescente desregulamentação do setor financeiro, Neste contexto de múltiplas crises econômico-financeira,
em particular o desmantelamento dos controles de atividades social e ecológica, que papel têm assumido as Instituições
financeiras entre as economias nacionais e a abertura das contas Financeiras Internacionais (IFIs) na arquitetura de “soluções”
de capitais . Neste processo de financeirização, a rentabilidade das
1
à crise sistêmica? Como se reconfiguraram desde 2008?
transações com dinheiro, riscos e produtos associados tornou-se Fizeram mudanças significativas em seu modus operandi, sua
significativamente superior à rentabilidade da produção de riqueza governança e em seu receituário neoliberal como resposta às
tangível na forma de bens e serviços . Isso implica um alargamento
2
crises? Como as crises têm afetado sua relação com os diversos
dos mercados financeiros em relação aos mercados de bens e países, especialmente com os chamados “emergentes”? O que
serviços e um aumento exponencial de atividades especulativas
3
essas mudanças implicam para a política externa do Brasil, que
arriscadas, como as que levaram a um ciclo de crises financeiras ”se entende como país emergente”?
desde à da tequila em 1994 até o colapso financeiro de 2008.
Desde 2008, a crise econômico-financeira já avançou em Geopolítica internacional pós-2008
diversos sentidos. De, inicialmente, uma crise financeira no
coração do capitalismo, esta se transmitiu a outras regiões e Quase quatro anos depois do colapso financeiro, uma aparente
esferas através: da contração do crédito, dos investimentos reconfiguração geopolítica parece estar em curso. Nunca ouvimos
e da demanda por bens e serviços, gerando desaceleração falar tanto de China e as reuniões do G20 (grupo que reúne
do crescimento e recessão, com fortes impactos sociais; do as 19 maiores economias do mundo mais a União Europeia)
aumento exponencial do endividamento público, gerando crises parecem ter realmente suplantado as do G8 (grupo formado
de dívida soberana; da ditadura dos agentes financeiros sobre pelos, então, sete países mais industrializados e desenvolvidos
os regimes políticos supostamente democráticos, traduzindo-se economicamente do mundo – Estados Unidos, Japão, Alemanha,
em uma crise institucional e política de incapacidade e, acima de Reino Unido, França, Itália e Canadá – mais a Rússia) em
tudo, desinteresse de restabelecer um pacto social que coloque importância na governança econômica global. Mas o que isso
os mercados financeiros a serviço das necessidades de produção representa em termos de mudanças reais na estrutura de poder?
e consumo sustentáveis dos povos; da intensificação da Do ponto de vista da reconfiguração da correlação de forças

111
entre os países e considerando o fato de o G20, na Cúpula de dívida estadunidense como o principal caso de “grande demais
Pittsburgh em setembro de 2009, ter se autointitulado o “principal para falir” e como isso impõe uma situação de continuado
fórum para a cooperação econômica internacional”, representa financiamento desta dívida através do sistema de reservas. Desta
um reconhecimento das economias avançadas da necessidade forma, não se questiona o poder do dólar, mantendo intocado o
de que qualquer “reforma” da arquitetura financeira internacional sistema monetário internacional de câmbio flexível pós-Bretton
deve incluir as economias emergentes na mesa de negociação, Woods, que, na prática, força os países superavitários a manterem
em particular a China. reservas em dólares para proteger suas moedas de possíveis
De fato, a China e, em menor escala, os demais BRICS 4
ataques especulativos. Essas reservas são, no entanto, recursos
aumentaram seu poder de barganha no sistema, embora ainda que poderiam ser investidos nos próprios países e que têm um
haja muito mais expectativa do que concretude neste aumento custo financeiro alto, como explicado em seguida7.
de poder. A crise da zona do euro e o financiamento dos A crise do euro pode ter passado da pauta do G8 para a
pacotes de resgate via injeção de recursos, também dos países pauta do G20 em um claro reconhecimento da necessidade
emergentes, no Fundo Monetário Internacional (FMI) reforçam potencial dos recursos dos emergentes para os programas de
a aparência de que os países BRICS representam os poderes em resgate das dívidas públicas europeias. Porém, temas centrais
ascensão na governança global. No entanto, apesar da inegável ficam de fora, como: a dívida pública dos Estados Unidos; a
força da China como motor da economia mundial, os demais forma como a disputa partidária neste país coloca as reservas
BRICS não têm o mesmo papel, tampouco o grupo parece ter dos países superavitários sob risco de desvalorização (fazendo
coerência de posições. Além disso, o fato de estes países deterem que o congresso estadunidense detenha significativa parte
tantas reservas denominadas em títulos da dívida estadunidense da governança de fato da economia mundial); a manutenção
sinaliza mais um cenário de codependência com o centro do de instrumentos financeiros de alta capacidade especulativa,
sistema econômico do que uma possível ascensão de um novo como o high frequency trading8, com pouca ou nenhuma
hegemon5 ou de um bloco histórico alternativo. supervisão; e o contínuo poder das agências de avaliação
Neste sentido, os Estados Unidos (EUA) e a sua dívida de risco9, apesar da sua contribuição para o surgimento e
pública e privada são o principal exemplo de “grande demais a gravidade da crise de 2008, ao ter classificado de forma
para falir”. Esta expressão surgiu, a princípio, em referência às sistemática títulos podres como sendo investment grade.
instituições financeiras que têm um peso sistêmico tão forte Assim, a governança econômica e financeira que trouxe o
que, na iminência de quebra, os governos “deveriam” organizar mundo à crise atual está longe de ser questionada10.
programas de salvamento de urgência para evitar que esta Em relação à articulação regional dentro e fora do grupo
possível falência tivesse impactos devastadores sobre o sistema dos 20, o governo brasileiro tem afirmado que o governo
financeiro, tal qual o caso do banco Lehman Brothers em 2008. argentino tem sido parceiro nas negociações do G20. O tema
Atualmente, como resposta a essa prática, os países do G20 da especulação das commodities agrícolas, por exemplo, de
discutem os planos de falência das instituições financeiras grande interesse para os dois países agroexportadores, tem sido
globais que consideram “sistemicamente importantes” para 6
uma das pautas de trabalho comum. Por outro lado, o governo
evitar a necessidade de futuros programas de salvamento brasileiro também afirma que o Brasil e a Argentina têm feito
(realidade ainda distante, dado o anúncio recente do pacote esforços dialogando com outros países da região sobre os
bilionário de resgate aos bancos espanhóis). posicionamentos no grupo. Neste sentido, foram realizadas
No entanto, na pauta do G20, nada se menciona sobre a algumas rodadas de consultas sobre o tema, mas não de

112
forma sistemática. Além disto, é notável a lentidão com que os sólidas. O fato de, apesar disto, perceberem que estavam sujeitos
processos de integração sul-americana têm sido conduzidos pela a ataques especulativos, tanto quanto outros países, lhes levou a
política externa brasileira desde a crise de 2008 e a redinamização questionar as políticas até então adotadas e o próprio Fundo.
do G20, sendo o Banco do Sul um dos casos mais evidentes . 11

Além da reconfiguração da relação de forças entre os Outro ponto importante: estes países asiáticos que
diferentes países, a mudança fundamental está, provavelmente, estavam sofrendo a crise financeira, na verdade, estavam
representada na repactuação da aliança entre o capital financeiro dentro também de um processo de reconfiguração
e o poder político institucional em diversos níveis. produtiva na Ásia que os conectava com a China e
O poder de influência do capital financeiro sobre a esfera da com o Japão, países que tinham, no caso da China,
política institucional, chamado por Noam Chomsky de “senado um nível de reservas crescentes – que não era tanto
virtual”, é instrumental neste processo. quanto o atual, mas considerável –, e, no caso do Japão,
Ao contrário do que determina o senso comum, a ideologia que tinha uma moeda conversível que dá razoável
neoliberal não implica mera redução do papel do Estado tranquilidade nesta área financeira. Esta fragilidade
como regulador do mercado. De fato, o Estado e suas diversas financeira acabava afetando esta configuração de uma
representações institucionais – como as IFIs em escala global integração produtiva, ou de cadeias produtivas, que já
– têm sido fundamentais na criação e manutenção de marcos acontecia no âmbito asiático. Neste momento, você
regulatórios permissivos e promotores da financeirização, tem os primeiros tipos de medidas, como a iniciativa de
assim como da privatização e da comodificação de novos ativos Chiang Mai, que acontecem dentro deste cenário. Aí,
financeiros . A crise sistêmica iniciada em 2008, em vez de frear
12
você já tem uma semente desta mudança estratégica da
este processo, tem consolidado tais mecanismos. área de produção mundial do Atlântico para o Pacífico.
Neste contexto, a pergunta fundamental a se fazer, no caso de Isso ajuda a entender esta resistência aos ditames do
um país como o Brasil, não é somente sobre o papel das IFIs na Fundo, que refletem o consenso que existia entre a City
política econômica nacional. O foco passa a ser também sobre a de Londres e Wall Street, os atores que ditam as regras do
estratégia geopolítica da política externa do “Brasil que se entende FMI fundamentalmente. [...] Os países asiáticos passam
como país emergente” de aprofundamento da influência do país a ter uma estratégia de uso coletivo de reservas, o que
na correlação de forças destas instituições. implica que as reservas da China e do Japão sirvam para
a proteção das menores, processo que culmina com a
As IFIs, o colapso financeiro de 2008 e a reconfiguração iniciativa Chiang Mai14.
estratégica do Brasil
Além disso, muitos países africanos e latino-americanos,
A crise atual se insere em um contexto de sucessão de crises que sofreram com os programas de ajuste estrutural atrelados
financeiras desde os anos 1990, quando surgem as crises aos empréstimos do Fundo no passado, descreviam como
causadas pelos vários ataques especulativos , especialmente
13
“humilhante” a atuação dos agentes do FMI. Estes economistas,
as crises no sudeste asiático no fim da década, possibilitados treinados dentro da ideologia neoliberal, impunham a política
pela forte desregulamentação dos fluxos financeiros. Até então, econômica a ser adotada pelo país contraindo empréstimos sem
estes países asiáticos tinham sido elogiados pelo FMI por terem, considerar a especificidade da realidade econômica, política e
de maneira geral, situações fiscais e de transações correntes social de cada país em questão e sem espaço para a discussão de

113
políticas alternativas. O pacote de políticas econômicas exigidas sujeito a suas políticas de supervisão e controle17.
como condicionante para os empréstimos incluía a liberalização De qualquer forma, como o FMI depende de um alto volume
comercial e financeira, a privatização de serviços públicos de empréstimos para obter o retorno necessário para a sua
essenciais, políticas de controle inflacionário com altas taxas de solvência, a situação começou a se complicar. Assim, pouco
juros, entre outras. Este pacote de políticas, que ficou conhecido antes dos encontros de primavera entre o Fundo e o Banco
corriqueiramente como o “Consenso de Washington”, acabou Mundial, em abril de 2007, a situação era especialmente crítica. O
tendo consequências sociais e econômicas nefastas em países FMI enfrentava uma crise de legitimidade e, como consequência,
como a Argentina, menina dos olhos deste receituário durante até de solvência, com a iminência de declarar sua primeira perda
a década de 1990, e representava o instrumental da ideologia em décadas: US$ 100 milhões somente no ano de 200718.
neoliberal dominante nas IFIs. No caso dos países africanos, a situação era – e continua sendo
Para fugir da imposição deste pacote nas políticas econômicas – bem mais crítica. Ao contrário das economias emergentes e
nacionais, os países asiáticos iniciaram uma estratégia de dos países que podiam contar com arranjos regionais, como
acumular reservas como um seguro para diminuir sua Chiang Mai na Ásia, os países de renda baixa – muitos dos
vulnerabilidade e evitar os impactos de futuras crises financeiras quais africanos – não têm acesso aos mercados privados de
globais que pudessem significar a necessidade de novos capitais. As IFIs acabam sendo a mais acessível ou a única fonte
empréstimos do FMI. O Fundo estava desacreditado em seu de financiamento externo e a aprovação da política econômica
mandato de credor de última instância. destes países pelo Fundo é condição necessária para que
Essa reconfiguração culmina com o fato de que dois de seus recebam a Ajuda Oficial ao Desenvolvimento e até mesmo para
maiores devedores, Brasil e Argentina, resolvem quitar suas receberem os investimentos privados19. Por esta razão, em abril
dívidas com o Fundo em dezembro de 2005, antes do prazo. de 2008, antes do colapso financeiro, quando o montante de
Nestor Kirchner, então presidente argentino, declarou que isso empréstimos do FMI era muito pequeno, eram os países de renda
representava uma emancipação das condicionantes sufocantes baixa, especialmente os africanos, os poucos que continuavam
impostas pelo Fundo durante décadas. Sérvia, Indonésia, Uruguai a receber empréstimos do Fundo, que se configurava como um
e Filipinas seguiram o exemplo e anunciaram que também credor de países pobres com economias frágeis.
quitariam suas dívidas .
15
Desta forma, antes do início do colapso financeiro em
No entanto, o argumento de que o pagamento antecipado 2008, o FMI enfrentava a pior crise da sua história. Em abril
da dívida gera aumento da autonomia do país é controverso16. de 2008, o FMI tinha empréstimos concedidos a serem pagos
Naquele momento, a Rede Brasil se posicionou afirmando no montante de 9,843 bilhões de SDRs20 (o equivalente a
que a dívida era ilegítima – e, portanto, não deveria ser paga; US$ 15,256 bilhões)21, muito pouco quando comparado aos
que, ao contrário de uma decisão de rejeição dos governos ao 70,469 milhões de SDRs (o equivalente a US$ 109,226 bilhões)
Fundo, o pagamento antecipado era, na verdade, uma resposta concedidos em dezembro de 200222.
destes países a um processo alavancado pelo próprio Fundo A situação mudou no outono de 2008 em Wall Street. Depois
de incentivo à quitação de dívidas de grande volume; que o do colapso financeiro, este valor subiu exponencialmente
Brasil trocou uma dívida de juros menores por outra, contraída para 24,625 bilhões de SDRs (US$ 38,168 bilhões) já em abril de
posteriormente, com juros muito maiores no mercado; e que 2009 e para 98,136 bilhões de SDRs (US$ 152,110 bilhões) em
quitar a dívida não representava o fim da intervenção do FMI no maio de 201223. Neste processo, por meio do G20, o FMI foi
país já que, ao permanecer integrando ao Fundo, o Brasil seguiria consistentemente recapitalizado, apesar de ter consistentemente

114
promovido as políticas neoliberais de financeirização, 200226, quando Turquia (16,245 bilhões de SDRs), Brasil (15,319
liberalização e desregulamentação como panaceia para a bilhões de SDRs), Argentina (10,547 bilhões de SDRs) e Indonésia
estabilidade econômica e o desenvolvimento. (6,518 bilhões de SDRs), países hoje considerados “economias
Assim, quatro anos depois da quebra do banco estadunidense emergentes”, somavam os maiores empréstimos em vigência do
Lehman Brothers, marco do colapso financeiro, a extensão com Fundo, pode-se perceber uma mudança considerável no perfil
a qual o paradigma do capitalismo financeirizado neoliberal vem dos devedores27.
sendo reinventado é assustadora e representativa da captura da No caso do Banco Mundial e do Banco Interamericano de
política pelos interesses do capital financeiro. A reinvenção das Desenvolvimento (BID), o processo de reconfiguração também
IFIs dentro dos marcos da hegemonia neoliberal é parte deste tem antecedentes que precedem o colapso financeiro pelas
processo, como se verá mais adiante. mesmas dificuldades que enfrentava o FMI de continuar fazendo
empréstimos com o mesmo tipo de condicionantes de antes.
Mudam as aparências, permanece o conteúdo
O Banco Mundial, já antes da crise, começou a mudar
A reconfiguração geopolítica não representou uma mudança a estratégia, passando a priorizar as negociações das
no paradigma dominante – e sim um aprofundamento prioridades políticas com cada país, uma espécie de
dos marcos regulatórios que permitem e promovem este orientação geral do país, e, dentro desta orientação geral,
paradigma – e, por outro lado, mudou a “classe” da relação quais os projetos que interessavam àquele país, em
de algumas economias avançadas (especialmente dos países vez de discutir programa por programa. Essa mudança
europeus mediterrâneos em crise da dívida soberana) e dos acontece quando eles percebem a dificuldade de fazer os
chamados países emergentes com as IFIs. Os primeiros foram empréstimos condicionados. Eles fazem, portanto, uma
obrigados a adotar políticas de austeridades. Em alguns casos discussão mais política; claro que, na discussão política,
(Grécia, Irlanda, Portugal, Chipre), elas estavam atreladas aos tentando também fazer um enquadramento28.
programas de salvamento da troika (como ficou conhecida a
tríade formada por Comissão Europeia, FMI e Banco Central O volume dos desembolsos do Banco Mundial em relação
Europeu) no mesmo modelo conhecido das condicionantes do ao total de investimentos no país sempre foi pequeno. E no
FMI e, frequentemente, com o apoio da tecnocracia nacional, período pré-crise estava reduzindo-se significativamente (de
determinada a defender os interesses do capital financeiro US$ 2,163 bilhões, em 2006, para US$ 742 milhões, em 2008).
transnacional. Já os chamados países emergentes passaram a Isso poderia justificar parcialmente o alinhamento do Banco
negociar a injeção de recursos no FMI e no Banco Mundial em em seu documento Estratégia de Parceria com o Brasil, 2008-
troca de reformas na governança. 2011 com os enfoques do próprio governo brasileiro para o
Em maio de 2012, os maiores empréstimos em vigência com desenvolvimento do país e com a demanda do governo Lula de
o Fundo eram para Grécia (18,940 bilhões de SDRs), Portugal
24
que o programa do Banco para o país mudasse para um perfil
(15,946 bilhões de SDRs), Irlanda (13,836 bilhões de SDRs), de assistência técnica ao governo federal e direcionamento do
Romênia (10,569 bilhões de SDRs) e Ucrânia (8,500 bilhões de volume de financiamento para estados, e, em menor escala,
SDRs) . Nenhum país sul-americano e quase nenhum do sul ou
25
para municípios (a estimativa, na época, era que 70% do volume
sudeste asiático (à exceção de Sri Lanka) tinham empréstimos dos recursos do Banco se dirigiria aos governos subnacionais).
em vigência com o FMI. Se compararmos com dezembro de Cabe observar que, em todos os casos, a União é garantidora e

115
qualquer empréstimo a um governo subnacional deve passar direcionamento para a esfera subnacional causou uma pressão
pelo aval do Executivo e do Senado Federal. Em decorrência mais direta em governadores e prefeitos no sentido de realizar
desta mudança, o Banco temia, em sua avaliação da mudança de reformas liberalizantes. Em relação ao financiamento privado,
estratégia, a redução da relação com o governo federal. O risco através da Corporação Financeira Internacional (IFC, sigla em
de redução do poder de pressão da organização estava realmente inglês), o braço de financiamento privado do Grupo Banco
dado pela importância relativa reduzida dos recursos do Banco Mundial, a principal mudança de diretriz para o período 2008-
para os programas de investimento da União29. 2011 se dá no sentido de direcionar os investimentos de empresas
Neste sentido, por exemplo, o Banco Nacional de de grande porte para empresas de médio e pequeno porte32.
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)30 possui mais de No caso do BID, onde a disputa entre os Estados Unidos e os
dez vezes mais recursos para financiar projetos do que o Banco países que estavam buscando alternativas na América do Sul
Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (Bird), braço aparece de forma mais clara, isso se expressa na eleição em 2005
do Grupo Banco Mundial, e o BID juntos. Somando a isso os do atual presidente do BID, o colombiano Luis Alberto Moreno,
créditos do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal, além com o apoio dos Estados Unidos e contra a candidatura de João
dos recursos disponíveis para investimento da União, dos estados Sayad promovida pelo Brasil.
e dos municípios, o montante destas IFIs é ínfimo em relação ao
total disponível no país. No entanto, através da assessoria técnica Isso já se dá neste contexto da disputa de fundo –
ao governo federal, o Bird e o BID encontraram o principal canal por exemplo da própria ALCA [Área de Livre Comércio
para incentivar a desregulamentação e interferir nas políticas de das Américas] – da reconfiguração da América Latina,
desenvolvimento do país . 31
especialmente da América do Sul. Mas também, no caso
Do ponto de vista da crítica aos programas do Bird, o do BID, há uma alteração deste processo de escolha
dos projetos, que fica expressa no documento de país,
dando mais ênfase a essa negociação política do que na
discussão do projeto caso a caso33.

No entanto, como dito anteriormente, não é consenso que essa


mudança implique maior autonomia do país em relação ao BID e
ao Bird já que, em seus documentos de estratégia para o país e em
sua forte presença na assessoria técnica em diversos programas do
governo (dos investimentos da Copa à política energética), estas
IFIs ditam diretrizes de como implementar políticas no país34.
Assim, apesar do baixo volume de investimentos no país, estas
José Cruz/Agência Brasil

IFIs têm forte influência, pois “são geradoras de conhecimentos


que, apropriadas pelas classes dirigentes do país, passam a
orientar a agenda de debates nacional”; “são formadoras da
tecnoburocracia que comanda postos-chave da administração
pública, particularmente a área econômica”; e “têm grande
O protesto contra as instituições financeiras estava na agenda da sociedade civil brasileira
na década de 1990: hora de retomar influência na determinação de políticas e projetos considerados

116
relevantes ao país, a partir dos serviços de assessoria Mundial. Lógico, nós só entramos lá como pedintes. Nós temos
disponibilizadas por eles”35. que colocar a nossa fatia para podermos exigir. Nós temos que
No caso do FMI, a estratégia do Brasil também se modificou entender que, embora tenha problemas, o Brasil tem condições de
ao longo da década e não só pós-2008, com basicamente dois ajudar os países mais pobres”. Desta forma, o governo afirmava a
momentos de marco neste processo. O primeiro momento, nova estratégia em relação ao Fundo, além de buscar se qualificar
em 2005, já mencionado, foi quando o país antecipou o como “jogador global no sistema” (global player). O Brasil passa
pagamento do empréstimo com o Fundo, passando a não estar a seguir, de forma mais clara, as regras que as economias
submetido da mesma forma às inspeções deste, já que, embora hegemônicas determinam para a governança do sistema,
o Fundo continue a fazer relatórios anuais representativos e deixando de ser uma voz crítica em potencial. Mais importante
determinantes na avaliação dos investidores sobre a situação ainda para o antigo G7 é a inclusão da China neste jogo, país que
econômica do país, ao não ser mais devedor, o país adquire certa já detinha importância financeira sistêmica substantiva.
margem de questionamento da avaliação do Fundo. No entanto, esta reconfiguração estratégica do Brasil em
relação às IFIs, e em especial ao FMI, não está calcada em uma
Ali você tem uma primeira mudança importante homogeneidade interna. As correlações de forças na economia
que permite que o Brasil, especialmente a partir de política nacional neste período, desde 2008, representam ao
2006, discuta, por exemplo, a questão do cálculo do menos três perspectivas diferentes sobre a estratégia do país em
superávit primário e de se os investimentos públicos em relação às IFIs, o que também permite às IFIs jogar com essas
infraestrutura deveriam entrar ou não neste cálculo. Isso diferenças na política interna37.
abre uma certa margem, que é um aumento do grau de Por um lado, existe uma posição de establishment, do setor
liberdade do Brasil em relação a estas instituições, na mais ligado ao mercado financeiro no Brasil, representado,
medida em que ele não era mais sujeito a um programa por exemplo, por grande parte do Banco Central (BC) e pela
de ajuste. Neste período, permanentemente, o nível de Federação Brasileira de Bancos (Febraban). Estes atores são
reservas vai evoluindo e, à medida que isso acontece, o extremamente simpáticos às IFIs e acreditam, de maneira
país pode ir “falando mais grosso” .
36
geral, que o Brasil deve procurar ser um país liberalizado, mas
com instituições reguladoras e supervisoras que garantam o
O segundo momento de reconfiguração da estratégia do Brasil funcionamento do sistema financeiro com menos riscos38.
com o Fundo foi, justamente, no pós-2008. Por um lado, o país Outro campo da política interna tem uma perspectiva
passa a se articular com os demais BRICS no questionamento intermediária, representada amplamente pelo Ministério da
da governança do Fundo e sobre a necessidade de reformar Fazenda e pelo BNDES. Estes atores defendem que o Brasil
o sistema de cotas. Por outro lado, ao escolher fazer a disputa deve se mover com autonomia, não se subordinando às IFIs e
interna, o país abre mão de questionar estas IFIs de forma mais garantindo um grau maior de liberdade para a ação, mas também
estrutural. Isso se expressa fortemente na pergunta do então sem buscar conflitos ou transformá-las profundamente. Este
presidente Lula a jornalistas em uma coletiva de imprensa sobre campo reconhece como boa a existência destas IFIs para o Brasil,
a Cúpula do G20, em Londres, em abril de 2009: “Você não acha já que o sistema financeiro do país está se internacionalizando
muito chique o Brasil emprestar dinheiro para o FMI?”. e seria, portanto, positivo para os investidores brasileiros no
Nesta mesma ocasião Lula afirmou: “Depois a gente se queixa cenário internacional que as regras de garantia de investimento
de que os países ricos querem mandar no FMI e no Banco existam também para estes39.

117
Por fim, um campo mais crítico, representado por Paulo passou a fazer parte do grupo central. Antes era o G7,
Nogueira Batista (diretor executivo do Brasil no FMI) e Nelson do qual fazem parte apenas países desenvolvidos, que
Barbosa (secretário executivo do Ministério da Fazenda), vai servia como o principal foro de cooperação para assuntos
no sentido da reforma destas instituições. Embora apenas econômicos internacionais. Para o Fundo essa mudança
recentemente, a partir do G20 presidencial, as IFIs tenham também foi positiva. Com a crise, o G20 assumiu um
entrado na pauta do Itamaraty, algumas das lideranças deste papel de coordenação e, na prática, o FMI se tornou uma
ministério também têm posições críticas em relação a estas espécie de braço direito, de secretariado do G2040.
instituições. Vale salientar que estas lideranças se ressentem
de que este é um dos ambientes do setor externo em que não Assim, de forma geral, uma linha comum entre as diversas
representam o governo brasileiro – o Ministério da Fazenda e o perspectivas internas em relação às IFIs, e em especial ao Fundo,
BC representam o país no FMI e o Ministério do Planejamento no é justamente a defesa de que o Brasil siga uma estratégia de
Banco Mundial e no BID. A visão crítica do Itamaraty em relação engajamento com estas IFIs, embora o nível de autonomia e
às IFIs era, possivelmente, mais forte quando Celso Amorim e a agenda deste engajamento variem desde uma defesa dos
Samuel Pinheiro Guimarães estavam no Ministério das Relações interesses do mercado financeiro nacional a uma visão nacional-
Exteriores do que na gestão do Ministro Antonio Patriota. desenvolvimentista calcada em uma política externa de “Brasil
Em entrevista concedida ao Instituto de Pesquisa Econômica que se entende como país emergente”.
Aplicada (Ipea) em 2011, Paulo Nogueira deixa clara uma leitura
positiva da ascensão do G20, de modo a estabelecer papel Os programas de resgate econômico pós-2008
renovado para o Brasil e para o FMI, além de defender que tem
havido mudanças graduais na imagem do Fundo: A reconfiguração geopolítica pós-2008 determinou, portanto,
não só uma mudança na relação com as IFIs, como também se
O FMI foi criado por europeus e americanos e, até refletiu na autonomia relativa de cada país na determinação de
hoje, é dominado por eles. Isso só começa a mudar nos seus programas de aquecimento da economia. Assim, as políticas
últimos anos, por vários motivos: por causa da crise, de recuperação econômicas pós-2008 não foram homogêneas.
que abalou muito as potências tradicionais, por causa da Os países que dependeram de empréstimos externos – das IFIs
atuação conjunta dos BRICS e por causa do crescimento ou de outros países – para a execução de seus programas de
dos países de economia emergente, entre outros fatores. recuperação econômica, como o caso emblemático da Grécia,
É um processo que está em andamento e que está sofreram a imposição de políticas de austeridade fiscal como
levando a uma mudança da governança global. Uma condicionante para os empréstimos.
parte importante disso foi a ascensão do G20 à condição O resultado disto tem sido o aprofundamento da recessão e a
de principal foro econômico internacional. Outro aspecto deterioração das condições de vida, um processo que a América
é a reforma do Fundo, que está em andamento, com Latina conheceu bem através dos programas de ajuste estrutural
uma primeira etapa negociada em 2008 e outra agora do FMI e do Banco Mundial na década de 1990. Diversos
em 2010. O ritmo das mudanças se acelerou com a crise. estudos41 mostram que os programas atuais do Fundo pouco
À medida que os países perceberem que as mudanças mudaram em termos do seu receituário neoliberal42, exigindo,
estão ocorrendo, a confiança no Fundo aumentará. [A em larga medida, como condicionantes para os empréstimos: a
ascensão do G20] foi positiva para o Brasil, porque ele não intervenção no câmbio e no fluxo de capitais, política fiscal

118
restritiva reduzindo gastos públicos e privatizações. alternativa ao FMI e a seus condicionantes de empréstimos.
A existência de um fundo ao qual os Estados-membros possam No entanto, estas iniciativas (no caso do Fundo do Sul ainda
recorrer em caso de déficits de conta corrente é necessária, mas uma proposta do governo do Equador), embora representem
insuficiente para a transformação da arquitetura monetária atual, um avanço no sentido de afastamento das políticas do Fundo,
que está baseada na dominação de uma única moeda, o dólar. perpetuam dois problemas fundamentais da atual arquitetura
Esta situação gera distorções permanentes. monetária baseada no sistema de reservas: estes fundos regionais
Por um lado, os déficits estruturais de alguns países geram continuam sendo denominados em dólar e estas reservas
desequilíbrio estrutural no sistema, enquanto outros acumulam continuam sendo aplicadas no exterior em detrimento de serem
superávits recorrentes. Os países que emitem moedas de utilizadas em políticas públicas necessárias para estes países.
reserva no sistema, como Estados Unidos, Reino Unido, União Assim, ao contrário dos países que foram obrigados a adotar
Europeia e Japão, podem adotar políticas de alívio quantitativo políticas pró-cíclicas (cortes de gastos, juros altos para conter
(quantitative easing ou emissão de moeda) para estimular suas inflação, etc.) pelo FMI, os países que, por acúmulo de reservas
economias como estratégia de aumentar a competitividade da ou por emitir moeda sistemicamente importante, tiveram relativa
sua economia, o que acarreta excesso de liquidez no sistema e autonomia no desenho de seus programas de recuperação
desvalorização cambiária artificial de suas moedas. econômica adotaram, de forma diversificada: políticas de alívio
Os países superavitários e que não emitem moedas de reserva quantitativo para estimular sua economia e provocar uma
(por exemplo, China, Brasil e Índia) encontram-se na situação desvalorização cambiária (tornando assim suas exportações mais
de acúmulo excessivo de reservas para absorver a entrada de competitivas), controles de capitais (como o Brasil na tributação
capitais causada em parte pelas políticas de alívio quantitativo das unilateral das transações financeiras através do IOF44), políticas
economias deficitárias. Na prática, estes países que acumulam fiscais contracíclicas (incentivando o consumo através de isenções
reservas estão fazendo uma transferência de recursos a taxas de impostos direcionadas a setores específicos e aumentando o
de juros próximas a zero (a taxa de juros dos títulos da dívida gasto público para aquecer a economia), entre outras.
estadunidense), para os países que emitem moedas de reserva, Estes países tiveram uma recuperação inicial com essas
especialmente os Estados Unidos . 43
medidas já em 2010, embora a ameaça do colapso financeiro
Por outro lado, os países em déficit que não emitem moedas grego e de outros países mediterrâneos europeus, além da
de reserva se veem obrigados a recorrer ao FMI para obter fundos desaceleração da economia chinesa, continue causando
para cobrir seus déficits. E, como detalhado mais adiante, estes apreensão. No caso do Brasil, a recuperação naquele momento se
empréstimos estão atrelados a condicionantes inerentes a um deveu à adoção de uma série de medidas, como: o aumento do
paradigma neoliberal que só aprofunda a recessão e as condições valor real do salário mínimo ao longo da década e, consequente,
iniciais dos desequilíbrios. Portanto, apesar da necessidade de o aumento da demanda agregada interna, os pacotes de isenção
um fundo multilateral para empréstimos de última instância, tributária em setores específicos para estimular o consumo e
o modelo vigente está tão falido que somente uma mudança o aumento do crédito pelos bancos públicos. O aumento do
estrutural poderia justificar a continuidade de uma arquitetura IOF também colocou o Brasil como um dos países que mais
monetária que conte com este tipo de fundo multilateral. ativamente gerenciam o fluxo de capitais (apesar de especialistas
A iniciativa Chiang Mai, na Ásia, e a proposta do Fundo do apontarem que a mera tributação não é suficiente para conter
Sul, na América do Sul, são tentativas de organizar fundos o fluxo, sendo necessárias políticas de quarentena, ou seja,
multilaterais regionalmente, avançando na integração financeira depósito compulsório de uma porcentagem do capital que entra

119
por um período predeterminado45). amplamente excluída no modelo de desenvolvimento vigente.
No entanto, o atraso em mudar a política de juros altos tem tido
um custo muito grande para o endividamento público. O IOF O Estado a serviço das elites financeiras transnacionais
não tem sido suficiente para conter a entrada de capitais e o país
continuou absorvendo o excesso através da compra por emissão Há anos, um banco fornece à administração dos
de títulos da dívida pública, ainda com uma das maiores taxas de Estados Unidos seus mais influentes funcionários,
juros reais do mundo, mesmo com a política do governo de se encarregados principalmente da liberalização dos
aproveitar da crise global para reduzir os juros, implementada a mercados financeiros. Ele aconselha os governos
partir de agosto de 2011. endividados (como a Grécia, a quem ajuda a maquiar
Assim, a euforia vigente com a quantidade de reservas que as contas), mas também seus credores. Seus dirigentes
o país detém, qualificando-se assim como “país emergente” precipitaram a crise dos subprimes ao inundar seus
no sistema, não dá conta do fator de endividamento público investidores com títulos “podres”; depois, garantiram
interno crescente inerente ao sistema de reservas nacional e dos lucros fecundos ao apostar em sua baixa. Esse banco
impactos disto no serviço da dívida sobre o orçamento anual da tem um nome – Goldman Sachs – e um endereço – 200
União. A política de diminuição dos juros é um passo positivo West Street, em Nova York46.
no sentido de desafiar os lucros estratosféricos do oligopólio
bancário brasileiro, mas ainda absolutamente insuficiente diante Mesmo quando havia relativa autonomia em relação aos
do tamanho do problema: a necessidade de auditoria da dívida, ditames de financiadores externos – no caso especialmente
de desconcentração do mercado financeiro nacional, de revisão das economias ditas avançadas, nas quais os mercados
do sistema de reservas (recursos que poderiam estar sendo financeiros nacionais estavam altamente comprometidos
usados para políticas sociais necessárias ao país), entre outros. pelos ativos tóxicos que vieram à tona com o estouro de bolhas
Além destes problemas, a obsolescência da infraestrutura especulativas em 2008 –, as perdas privadas dos mercados
nacional, o parco investimento em ciência e tecnologia, o financeiros foram socializadas, ou seja, assumidas amplamente
risco de reprimarização da pauta exportadora e os riscos pelos cofres públicos através da compra de ativos financeiros
de desindustrialização da economia, os investimentos na tóxicos (sem real valor de mercado) e de políticas de injeção
indústria extrativista depredadora e intensiva em energia e os de liquidez na economia. O pacote de resgate estadunidense
megaprojetos com seus nefastos impactos sociais e ambientais, (Troubled Asset Relief Program – Tarp, mais conhecido como
etc. são elementos centrais de um modelo de desenvolvimento bail-out program), aprovado em outubro de 2008, implicou
falido, mas no qual se segue insistindo. US$ 415 bilhões emprestados ou utilizados na compra de ativos
Assim, enquanto a estratégia geopolítica da política externa do financeiros de alguns bancos, da seguradora AIG e da indústria
“Brasil que se entende como país emergente” estiver baseada nestes automobilística47. Alguns dos escândalos associados envolveram
pilares, o país somente se qualifica para continuar financiando a descoberta posterior de que estes bancos estavam dando bônus
o endividamento das economias avançadas, a manutenção do milionários para seus executivos no fim do mesmo ano em que
paradigma neoliberal nas IFIs e a continuidade da sua posição os recursos públicos tinham sido repassados48.
de exportador de produtos primários na divisão internacional A Espanha anunciou, em junho de 2012, um programa de
do trabalho, através da espoliação de suas riquezas naturais em recapitalização dos bancos do país de até 100 bilhões de euros49.
detrimento das condições de vida da população, que segue Os recursos virão do Mecanismo Europeu de Estabilidade

120
Amigos da Terra Internacional

a desregulamentação financeira continua amplamente


praticada, os programas de austeridade fiscal marcam a tônica
dos programas de recuperação econômica de uma Europa
em recessão e com graves crises de dívidas soberanas e as IFIs
passaram de moribundas a fortalecidas e recapitalizadas.
Imediatamente após o colapso do Lehman Brothers,
as lideranças políticas mundiais criticaram duramente a
irresponsabilidade do setor financeiro e prometeram tomar
medidas duras para responsabilizá-lo e evitar uma repetição
deste comportamento. Mas esta determinação não durou muito
e tudo voltou como era antes com alguns ajustes.

A reconfiguração das IFIs pós-2008

A rapidez com que os ideólogos do sistema que trouxe o


mundo à atual crise se reinventaram é assustadora. Por um lado,
Financeira, que não exigirá condicionantes macroeconômicas da corporações financeiras privadas, como as agências de avaliação
Espanha50. Considerando-se o tamanho da economia espanhola de risco que antes do colapso financeiro recomendavam o
em comparação com a estadunidense, o programa espanhol investimento nos ativos que mais tarde se mostraram “tóxicos”,
é ainda mais crítico. Estas transferências de recursos públicos não perderam sua credibilidade. Ao contrário, seguem avaliando
para os bancos e outras corporações financeiras privadas estão o risco não só de ativos financeiros privados como dos títulos
premiando diretamente os agentes financeiros que criaram as de dívida pública dos países – uma boa parte dos quais foram
bolhas especulativas. emitidos para financiar a recuperação econômica e salvar os
De fato, algumas falências à parte, as elites financeiras mercados financeiros. Para estas agências de avaliação de
transnacionais conseguiram fazer que os trabalhadores risco, ironicamente “detentoras do bom julgamento” sobre
pagassem a conta da crise causada pelos comportamentos de o comportamento financeiro de risco, os Estados que foram
alto risco que lhes geraram lucros estratosféricos – estes sempre chamados a recapitalizar os bancos e as IFIs tornaram-se os vilões
protegidos pela santidade da propriedade privada. Através da dos excessos financeiros, representados nas dívidas soberanas em
opacidade de modelos matemáticos complexos, estas elites crise (especialmente nos países periféricos da zona do euro).
financeiras conseguiram em larga medida disfarçar os fatos mais As demais corporações financeiras continuam em seu
simples. Como o de que, cotidianamente, estas elites atuam em comportamento especulativo, apostando no cassino financeiro,
um verdadeiro cassino financeiro, apostando a rentabilidade da quase nada rerregulado desde 2008. Apesar de iniciativas
riqueza produzida pelo trabalho de bilhões de trabalhadores e unilaterais, como a lei Dodd-Frank, nos Estados Unidos
trabalhadoras ao redor do mundo. (que encontrou grande resistência e dificuldade para a sua
Seria de se esperar que esta trama macabra fosse alvo implementação), nenhuma iniciativa multilateral coordenada de
de críticas generalizadas no sentido de revisão das atuais peso no sentido de uma maior regulação foi implementada pelas
práticas. No entanto, quatro anos depois do início do colapso, IFIs. Pelo contrário, as IFIs têm sido instrumentais na manutenção

121
e aprofundamento de marcos regulatórios que permitem ou existem dados consolidados para depois deste período, mas com
promovem a continuidade da desregulamentação financeira. a aprovação na última reunião do G20 em Los Cabos, México,
A reconfiguração das IFIs não se restringiu à recapitalização em junho de 2012, de recursos adicionais esse montante será
do FMI. Como dito anteriormente, em um contexto de crise seguramente ainda maior.
de acumulação, as IFIs se fortaleceram como instrumento Esta recapitalização do FMI, no entanto, não representou
de garantia da infraestrutura econômico-financeira para a mudanças significativas nas condicionantes dos empréstimos,
privatização, a comodificação e a financeirização necessárias às apesar das críticas. Historicamente, o Fundo aplica dois tipos
elites financeiras transnacionais. de condicionantes para seus empréstimos: condicionantes
Assim, desde o colapso financeiro de 2008, algumas mudanças quantitativas e estruturais. As condicionantes quantitativas são
fundamentais na configuração das IFIs incluíram: um conjunto de metas macroeconômicas que determinam,
por exemplo, os níveis de déficit fiscal aceitáveis. Não alcançar
1. A recapitalização do FMI e de outras IFIs com aumento estas metas pode significar que novas parcelas do empréstimo
da capacidade de crédito, dentro dos mesmos moldes de sejam canceladas. As condicionantes estruturais são reformas
condicionantes de empréstimos: institucionais e legislativas, por exemplo, a liberalização
Como afirmado anteriormente, desde o colapso financeiro financeira e comercial e privatizações56.
de 2008, o FMI, que estava naquele momento quase sem Segundo um estudo da Third World Network (TWN)57, ao menos
empréstimos concedidos, saiu fortalecido com o aumento de um tipo de condicionante estrutural foi aparentemente eliminado
crédito disponível e empréstimos bilionários para os países nos empréstimos desde o colapso financeiro de 2008: o critério de
europeus periféricos. performance estrutural. Só que o estudo aponta que esta aparente
Sucessivas Cúpulas do G20, desde o início da crise, aprovaram eliminação se traduz em aumento dos precondicionantes, aqueles
a duplicação dos SDRs e diversos países concederam crédito anteriores à concessão dos empréstimos. Além disto, o Fundo
ao Fundo através de arranjos bilaterais que não implicam aumentou os níveis de déficit fiscal permitidos, mas como medida
aumento das cotas, sendo o mais importante deles os NABs (New temporária, e, na prática, a falta de recursos deteve estes países de
Arrangements to Borrow). As linhas de crédito através de NABs aumentarem o gasto público. Analisando diversos empréstimos
e GABs (General Arrangements to Borrow) aumentaram de US$
51
concedidos desde 2008, o estudo conclui que o objetivo continua
55 bilhões, em abril de 2008, para US$ 573 bilhões, em abril de sendo assegurar o pagamento das dívidas soberanas por meio da
2012 . Através deste novo mecanismo (NAB) se dá a maior parte
52
“estabilidade macroeconômica” através de “políticas monetárias
da recapitalização do Fundo, com a Cúpula do G20 de Londres e fiscais restritivas”, que é justamente o contrário das medidas
anunciando, já em abril de 2009, aumentar o montante deste adotadas pelos países que tiveram recursos próprios para
mecanismo em US$ 500 bilhões, o que triplicou o crédito total financiar seus programas de resgate da economia. No caso do
disponível (de GABs e outras fontes) naquele momento53. Os Banco Mundial, o primeiro incremento no volume de capital da
NABs tornam-se também uma forma de garantir o aporte dos instituição em 20 anos aconteceu depois do colapso financeiro, na
países emergentes. reunião de primavera entre este Banco e o FMI, em abril de 2010. O
A quantidade total de recursos do Fundo contando SDRs, aumento de capital no Bird foi de US$ 86,2 bilhões e na IFC foi de
moeda dos Estados-membros, reservas em ouro e fundos de US$ 200 milhões. Este incremento de capital foi acompanhado
NABs, entre outros ativos, aumentou de US$ 364 bilhões, em de mudanças na governança da instituição, como se detalhará
abril de 2008,55 para US$ 845,4 bilhões, em abril de 2012. Não mais adiante58.

122
O BID também teve incremento de capital acordado em sua cotas e no poder de voto.
última reunião de Conselho, em julho de 2010, em um total de A China vai praticamente duplicar o seu poder de voto,
US$ 70 bilhões de dólares, o maior da história da instituição. passando a 6.071, o segundo maior, somente atrás dos Estados
Este incremento entrou em efeito em fevereiro de 2012 e deve Unidos, que terá 16.479 depois da reforma. Os EUA continuam
ser completamente implementado até 201559. Considerando- com o poder de veto de fato, dado que as alterações estatutárias
se o papel destas instituições no país, que, como afirmado requerem 85% dos votos. Com a reforma de 2010 implementada,
anteriormente, hoje se dá mais pela via da assessoria técnica e o Brasil terá o seu poder de voto aumentado de 1.714 para 2.218, já
influência política do que via condicionantes de empréstimos, os BRICS, em conjunto, terão o seu poder de voto aumentado de
estes incrementos históricos de capital são representativos de 11.013 para 14.139 (a China representa quase metade desse valor)61.
seu reforço pós-2008, mas também do fortalecimento de sua Considerando-se a manutenção das condicionantes
capacidade de influência no modelo de desenvolvimento em neoliberais nos programas do Fundo, o Brasil está utilizando
curso no Brasil. recursos públicos62 para injetar fundos em um FMI que não
revê em nada seu modus operandi ou receituário. A pretensa
2. A falsa ampliação da governança e o fortalecimento de aliança entre o Brasil e os demais BRICS – que se sustenta sobre
institucionalidades: interesses comuns altamente questionáveis – poderia dar maior
A demanda pela reforma da governança do FMI é antiga e poder de barganha aos emergentes, mas há dúvidas com relação
precede o colapso financeiro de 2008. Mas, com a crise, os países ao interesse real do governo da China em reforçar esta aliança.
emergentes ganharam um novo instrumento de barganha no Há também um acordo vigente de revisar a fórmula de
sentido da consecução desta reforma: a promessa de injetar determinação das cotas até janeiro de 2013 e implementar uma
novos recursos no Fundo. nova reforma das cotas até janeiro de 2014 para “melhor refletir
Ainda antes do colapso financeiro, em março de 2008, uma os pesos relativos dos membros do FMI na economia mundial,
reforma parcial das cotas foi aprovada, mas só entrou em vigor que mudaram substancialmente em razão do forte crescimento
em março de 2011, três anos depois. A mudança nas cotas do PIB nos mercados emergentes dinâmicos”63 (tradução da
ou no poder de voto foi muito pequena e os Estados Unidos autora). Há um reconhecimento crescente da importância das
mantiveram seu poder de veto de fato, com um poder de voto economias emergentes e da necessidade de que a governança
de 16.727 após a reforma de 2008�, uma vez que alterações do Fundo reflita as reconfigurações geopolíticas pós-2008.
estatutárias exigem 85% dos votos. No entanto, é muito pouco provável que estas mudanças
Uma nova reforma foi aprovada em novembro de 2010, mas incluam outra nova moeda que não o Renminbi chinês na
ainda não entrou em vigor. Na última Cúpula do G20, no México, cesta de composição dos SDRs ou como moeda de reserva
a nova injeção de recursos no FMI anunciada – em valor superior internacional. Sem este aumento de status para o Real, por
a US$ 450 bilhões na forma de empréstimos bilaterais que não exemplo, e em uma arquitetura monetária baseada em um
implicam diretamente aumento de SDRs ou cotas – teve como sistema de reservas falido, o poder de barganha do Brasil
condição de barganha a implementação da reforma das cotas permanece bastante reduzido. E, para piorar, o Brasil tem adotado
aprovada em 2010, a ser realizada na reunião anual do FMI e do uma estratégia de política externa de quem está “feliz por fazer
Banco Mundial no segundo semestre de 2012. Esta reforma será parte do clube”, mesmo que isto implique apoiar uma arquitetura
mais significativa, pois duplica o montante dos SDRs para US$ financeira assimétrica e baseada em pilares neoliberais. Desta
732 bilhões, mas implica uma reconfiguração ainda pequena nas forma, os países da região e do Sul Global correm o risco de

123
perder uma voz de potencial liderança crítica no sistema controle interno dos bancos e da disciplina imposta pelo poder
multilateral mais amplo. crescente dos investidores e das agências de avaliação de
O Banco Mundial levou a cabo uma reforma das cotas em 2010. risco66. Basileia III mantém uma falha fundamental dos acordos
Mas seus resultados são reduzidos. Países de renda alta detêm anteriores: regula os bancos de depósito e não o sistema
60% do poder de voto, países de renda média – incluindo Índia, bancário paralelo (shadow banking system)67, onde circulam
China e Brasil – detêm um terço e países de renda baixa detêm os derivativos e as operações do mercado de balcão (over the
apenas 6% dos votos64. Além disso, apesar das crescentes críticas, counter), justamente os instrumentos financeiros que causaram
a prática feudal de apontar um presidente estadunidense no o colapso financeiro de 2008. Para piorar, as normas de Basileia
Banco e um presidente europeu ao FMI tem se mantido. III só serão aplicadas a partir de 2018, período durante o qual
Além do FMI e do Banco Mundial, outros organismos novas crises podem ocorrer.
financeiros internacionais menos conhecidos tiveram suas B) O Fórum de Estabilidade Financeira (Financial Stability
governanças ampliadas: Forum – FSF) foi criado em 1999, devido à crise asiática, para
A) O Comitê de Basileia para Supervisão Bancária (Basel discutir mecanismos de estabilidade financeira. Tinha sua
Committee on Banking Supervision – BCBS) foi criado em governança formada por um fórum tripartite que contava com
1974 para a coordenação da supervisão do setor bancário, o Ministério das Finanças, o Banco Central e uma agência
originalmente formado por 13 países-membros: Estados Unidos, reguladora nacional dos países do G7 e um representante de
Reino Unido, Itália, Canadá, França, Luxemburgo, Holanda, Suíça, outros cinco centros financeiros importantes: Cingapura, Suíça,
Alemanha, Bélgica, Japão, Suécia e Espanha65 (basicamente Holanda, Austrália e Hong Kong, além da representação de IFIs
o G7 e algumas economias importantes). Nenhum país em (dois do Banco Mundial, dois do FMI, um da Organização para a
desenvolvimento era membro do Comitê. Logo após o colapso Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE – e um do
financeiro, em sua reunião de março de 2009, o Comitê passou Banco de Compensações Internacionais – BIS, sigla em inglês
a incluir como membros: Austrália, Brasil, China, Índia, Coreia para Bank of International Settlements). Na Cúpula do G20 em
do Sul, México e Rússia. Em junho de 2009, o Comitê se ampliou Londres, em abril de 2009, decidiu-se transformar este Fórum
mais uma vez para incluir os países do G20 que ainda não eram (FSF) no Conselho de Estabilidade Financeira (Financial Stability
membros: Argentina, Indonésia, Arábia Saudita, África do Sul e Board – FSB), entidade estabelecida de Direito Internacional com
Turquia. Além destes, Hong Kong e Cingapura também foram status separado do BIS e que passou a incluir todos os países do
incluídos. Com esta última ampliação, a governança do Comitê G20 e a Comissão Europeia.
chegou à sua conformação atual de 27 países-membros. Em pronunciamento na Casa Branca sobre a Cúpula do G20
Desde o colapso financeiro de 2008, o Comitê de Basileia em Pittsburgh, em setembro de 2009, o Secretário do Tesouro
avançou no sentido dos Acordos de Basileia III – em teoria estadunidense Timothy Geithner afirmou:
voluntários, pois não possuem poder oficial de regulamentação.
Estes acordos propõem um aprofundamento nos mecanismos A coisa importante que fizemos em Londres, e vocês
de autorregulação aos sistemas bancários nacionais, no verão progresso adicional substantivo aqui hoje, foi
sentido de padrões de segurança que protejam de possíveis adicionar, de fato, um quarto pilar à arquitetura de
instabilidades sistêmicas. Os Acordos de Basileia I (1988) e II cooperação que nós estabelecemos na II Guerra Mundial.
(2004) já tinham inaugurado uma era neoliberal de “regulação” Depois da II Guerra Mundial, nós nos reunimos e
que implica uma autorregulação dos mercados – através do estabelecemos o FMI, o Banco Mundial e o GATT [Acordo

124
Geral de Tarifas e Comércio] que se tornou a OMC dos BRICS será complementar e, de certa forma, concorrente
[Organização Mundial do Comércio]. Mas o Conselho de do Banco Mundial. O impacto desta iniciativa é de fundamental
Estabilidade Financeira é, de fato, um quarto pilar desta importância para os movimentos sociais brasileiros.
arquitetura (tradução da autora).
68
D) Além do fortalecimento das IFIs, ao menos uma nova
instituição financeira foi criada desde o colapso financeiro
Apesar do mandato do G20 para a execução de estudos sobre de 2008: o Clube Internacional de Financiamento do
a regulação financeira, o FSB não tem capacidade legal de Desenvolvimento (International Development Finance Club –
implementação de suas recomendações. Na prática, os países IDFC), uma rede de dezenove bancos nacionais e regionais de
do G20 fortaleceram a governança de instituições que somente desenvolvimento, que inclui o BNDES. O propósito declarado
reforçam os marcos regulatórios que permitem e promovem a da instituição é “fortalecer a voz dos bancos nacionais e
desregulamentação financeira e a financeirização. Estas IFIs, que sub-regionais em um ambiente dominado por instituições
junto com o FMI saíram fortalecidas como pilares da arquitetura multilaterais de financiamento” (tradução da autora)69, claramente
financeira internacional, são representativas do nível de captura uma estratégia de contraponto ao Banco Mundial. Com reuniões
corporativa das políticas públicas. anuais desde 2010 e propósitos pouco transparentes, o IDFC
Em termos de governança, estas instituições incorporaram os constitui um desafio para os movimentos sociais e tem sido
países do G20 que não faziam parte de seus corpos diretivos, sem instrumental nas estratégias de financeirização dos bens comuns
melhorar em nada a sua prestação de contas ao público. Assim, promovidas pelas elites financeiras transnacionais no B20
como é o caso do próprio G20, a inclusão dos países emergentes, (Business 20)70. Paralela à Cúpula do G20 em Los Cabos, o B20 se
longe de significar uma mudança de paradigma, tem servido reuniu e anunciou uma Aliança para o Crescimento Verde (Green
como elemento fragmentador das perspectivas do Sul Global – Growth Alliance). Segundo o relatório prévio do B20:
entre os que foram falsamente incluídos e os que ficaram de fora
–, facilitando, acima de tudo, a manutenção do status quo no Durante a Cúpula de Los Cabos, o B20 anunciará um
conteúdo político e na forma de trabalho. novo clube de instituições financeiras internacionais,
C) A insatisfação dos emergentes com a falta de reformas bancos de desenvolvimento (International Development
consistentes na governança do Banco Mundial foi, Finance Club - IDFC), empresas, bancos e investidores
possivelmente, o maior motivador do anúncio feito na última privados destinados a fazer progressos práticos sobre
reunião dos BRICS, em março de 2012, de que os países do essa agenda nos próximos 36 meses, com foco
grupo estavam analisando a criação de um Banco Multilateral inicial em financiamento. Convidamos ministros
de Desenvolvimento. Já havia dentro do agrupamento uma de Desenvolvimento e de Finanças e instituições
iniciativa de reunião dos bancos de desenvolvimento dos financeiras internacionais a se envolver com esta nova
respectivos países, mas este Banco, se fundado, representará parceria para dinamizar estruturas de financiamento
um passo estratégico dos BRICS. A Índia e a África do Sul são público-privado para o crescimento verde e a energia
entusiastas da iniciativa, enquanto a China e a Rússia têm tido sustentável das Nações Unidas para todas as prioridades
maior resistência à ideia. Diversas questões ainda estão em de investimento, e apresentar um relatório para futuras
aberto, como em que países atuaria, a fonte dos recursos e a Cúpulas do G20. Com os marcos políticos corretos, este
governança do Banco. O principal alvo dos financiamentos serão novo clube ajudará as empresas a fazer os investimentos
projetos em países em desenvolvimento e, com isso, o Banco necessários, assumir riscos relevantes e abraçar as novas

125
oportunidades que a transformação econômica verde fluxo intenso de investimentos provoca crescente especulação
promete (tradução da autora). com os preços das commodities, o que tem efeitos nocivos sobre
a soberania alimentar dos povos.
Ficam claros, neste relatório, a aliança entre os países do G20 e Não satisfeitos, os investidores, que têm força para influenciar
os interesses corporativos das elites financeiras transnacionais. a pauta dos governos do G20, necessitam de novas fronteiras de
Na declaração dos líderes do G20, estes “dão as boas-vindas à acumulação. Isto ficou bastante evidente quando estes países
Aliança de Ação para o Crescimento Verde do B20”71 (tradução da promoveram o paradigma do “crescimento verde” na Cúpula
autora) De acordo com o relatório, o IDFC tem papel importante do G20 no México ou da “economia verde” na Cúpula Rio+20.
nas parcerias público-privadas de estruturas de financiamento Os nomes podem ser ligeiramente diferentes, mas o conteúdo
em “investimentos verdes”, ou seja, o financiamento com político é semelhante: encontrar maneiras de privatizar os bens
recursos públicos de infraestrutura econômico-financeira comuns da natureza e transformá-los em novas mercadorias.
para a criação de novos mercados de investimento baseado na O paradigma da “economia verde” remonta às análises
privatização, comodificação e financeirização dos bens comuns. da iniciativa TEEB (sigla em inglês para A Economia dos
Ecossistemas e da Biodiversidade), liderada por Pavan
3. A garantia da infraestrutura econômico-financeira para a Sukhdev, um economista do mercado financeiro indiano.
privatização, comodificação e financeirização de mais recursos Com um histórico de anos de trabalho no mercado financeiro,
públicos e dos bens comuns: especialmente no Deutsche Bank, Sukhdev foi também quem
A Cúpula do G20 no México ocorreu pouco antes da Cúpula escreveu o documento de fundo sobre a “economia verde” do
Rio+20, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Programa das Nações Unidas sobre Meio Ambiente (Pnuma). A
Sustentável. Embora, à primeira vista, as duas cúpulas pudessem relação dessas iniciativas com os interesses das elites financeiras
parecer tratar de questões diversas, uma análise cuidadosa transnacionais não poderia estar mais clara.
revela o que estava em debate nas duas reuniões: o modelo de De acordo com as premissas da TEEB e da “economia verde”,
desenvolvimento que os governos, capturados por interesses é necessário dar valor monetário aos serviços ecossistêmicos
corporativos, estão promovendo como uma falsa solução para as que a natureza oferece gratuitamente e que não são atualmente
crises econômico-financeira, social e ecológica. comercializados ou não eram comercializados até muito
Para entender o contexto, é necessário reafirmar o recentemente. Por exemplo, coloca-se um preço sobre o trabalho
anteriormente dito: nas últimas três décadas, um crescente da floresta para captar o excesso de carbono na atmosfera para
processo de financeirização da economia global se aprofundou. indústrias poluentes poderem continuar a emiti-lo, só precisando
Como parte deste processo de financeirização, o tamanho dos pagar aos “protetores” das florestas – como as comunidades
mercados financeiros tem aumentado exponencialmente em indígenas – pelo “serviço” ecossistêmico de capturar a poluição
relação à economia de bens e serviços, a chamada economia real. emitida. Estas indústrias continuam a poluir comprando este
Este desnível faz que os investidores financeiros busquem direito no mercado. Isto criou um mercado de carbono para a
novos espaços de acumulação, necessitando especialmente que especulação financeira por parte dos investidores. Vários outros
se criem novas commodities para investir. Parte disto explica, mercados similares de “pagamentos por serviços ambientais”
por exemplo, a especulação nos preços dos alimentos e de serão criados no âmbito dessas iniciativas.
petróleo: com o colapso do mercado imobiliário nos EUA, muitos O Banco Mundial, o BID, entre outros72, já estão liderando a
investidores voltaram sua atenção para produtos primários. Este gestão dos recursos dos fundos de adaptação e mitigação das

126
mudanças climáticas. Em 2010, foram US$
10 bilhões em todo o mundo e a expectativa
do Bird é a de que este valor chegue a US$
275 bilhões anuais até 203073. Desse modo, a
mudança climática e a criação do mercado de
carbono, como uma falsa solução, geraram um
novo tipo de programa de financiamento para
estas IFIs74. Este é um exemplo emblemático de
como elas aproveitam as crises do capitalismo e
as transformam em oportunidades de negócio.
Além de bolhas financeiras, este processo
de financeirização da natureza causa muitos

demotix.com
outros impactos, que as pessoas já estão
enfrentando nos territórios. Este tipo de
mercado implica a privatização de riquezas
naturais que antes eram usadas coletivamente. O Banco Mundial promove a privatização dos bens comuns: pagar pelos “serviços” prestados pela natureza

As florestas, o ar que respiramos e a água


dos rios são alguns exemplos, mas toda a
biodiversidade do planeta corre o risco de ser submetida à lógica commodities, novas fronteiras de acumulação dos mercados
de acumulação privada no âmbito desta estratégia da aliança financeiros via especulação desregulada.
entre os governos e os mercados financeiros. Por exemplo, a Estratégia de Parceira de País 2012-2015 do
Este processo de privatização significa que o acesso a Banco Mundial para o Brasil tem entre seus objetivos: “melhorar
determinados recursos se tornará mais caro, atingindo as a gestão sustentável de recursos naturais”, o que inclui os
famílias mais pobres, principalmente as mulheres, que, em razão programas de Pagamento por Serviços Ambientais75. Este
de desempenhar majoritariamente o trabalho de reprodução propósito explicita a prioridade em avançar no processo de
social não remunerado, contam, mais ativamente, com o privatização, comodificação e financeirização dos bens comuns,
aporte do uso dos bens comuns em seu cotidiano. Além disto, tendo a natureza como um dos principais espaços de extensão
a privatização também gera mais disputas por territórios, o das fronteiras de acumulação do capital transnacional.
que aumenta a propensão dos conflitos sociais no campo. O Banco Mundial tem colaborado com a iniciativa TEEB do
Na verdade, não se sabe, de fato, todos os impactos que este Pnuma, por exemplo, através de seu programa Waves (sigla
processo de financeirização e privatização dos bens comuns para Wealth Accounting and Valuation of Ecosystem Services76),
pode ter sobre a vida dos povos. que promove a atribuição de valores monetários aos recursos
Neste sentido, as IFIs não têm sido instrumentais somente naturais para fins de contabilidade nas contas públicas nacionais,
na manutenção do status quo da governança econômica favorecendo a criação de commodities a partir destes recursos,
global, da desregulamentação financeira e das políticas e os mecanismos de mercado como a solução para a crise
econômicas neoliberais. Agora, através de alguns de ambiental. Estas novas commodities, baseadas na chamada
seus programas, as IFIs têm apoiado a criação de novas “indústria de serviços ambientais”, constituem uma nova

127
fronteira de especulação para os mercados financeiros, uma Comentários finais
verdadeira privatização financeira dos bens comuns. Este é
somente um exemplo de como as IFIs representam os interesses Esta análise sobre a reconfiguração das IFIs, especialmente após
das elites financeiras na agenda da chamada “economia verde”. o colapso financeiro de 2008, não objetiva ser exaustiva a respeito
Além disso, como já afirmado, as IFIs têm sido fundamentais das diversas formas através das quais as IFIs têm se reconfigurado
na criação e manutenção de marcos regulatórios permissivos dentro da continuidade do paradigma capitalista neoliberal. O que
e promotores da financeirização, assim como da privatização se busca mostrar aqui é que este processo de reconfiguração – em
e da comodificação dos bens comuns . E isso se dá também
77
um contexto de gradual mudança geopolítica com a ascensão
via assessoria técnica, que promove diretrizes de política e dos chamados países emergentes e o estabelecimento do G20
desregulamentação, favorecendo uma infraestrutura econômico- como principal fórum da governança econômica global – está
financeira de acordo com o interesse dos investidores. para além da reconfiguração da relação de forças interestatal. Está
especialmente calcada em um aprofundamento da aliança entre o
O BID tem grande influência na determinação das capital financeiro e o poder político institucional. As IFIs têm sido
diretrizes da IIRSA [Iniciativa para a Integração da fundamentais na criação e manutenção de marcos regulatórios
Infraestrutura Regional Sul-Americana], através da permissivos e promotores da financeirização, assim como da
ocupação de postos-chave na estrutura de gestão e privatização e da comodificação dos bens comuns.
de assistência técnica, áreas importantes na definição Neste contexto, a questão de como a estratégia da política
do arcabouço institucional da IIRSA, dos projetos externa do Brasil “que se entende como país emergente” para
considerados prioritários, bem como das diretrizes para o as IFIs tem mudado surge como central. O papel que o país
financiamento deles, incluindo os estudos de viabilidade. tem jogado na disputa por mais poder na governança destas
Em relação ao modelo energético brasileiro, as IFIs têm instituições pode ter implicado maior autonomia relativa, mas
investido pesadamente para a construção de um marco também tem prevenido o Brasil de ter uma voz mais crítica em
regulatório que preserve os interesses da iniciativa relação a elas. Esta estratégia avançada tem um custo político, não
privada que atua no setor: segurança jurídica, retorno dos só para o país, mas para o Sul Global, os países que permanecem
investimentos e liberdade para remessa de lucros. Isto excluídos do G20 e das IFIs e que dependeriam de países como
sem falar na alteração da legislação ambiental, bem como o Brasil para liderar o campo mais crítico. Além disso, o escasso
do processo de licenciamento . 78
debate público sobre a atuação do Brasil no G20 é representativo
do déficit democrático da política externa brasileira.
Assim, através de suas recomendações técnicas, o Banco A mobilização dos movimentos sociais e das organizações
Mundial tem criticado o processo de licenciamento ambiental brasileiras é central no questionamento desta estratégia que tem
no Brasil e o Ministério Público como entraves aos projetos de favorecido a reinvenção das IFIs dentro de um aprofundamento
infraestrutura do país , em uma demonstração clara de que a
79
do paradigma neoliberal e de um modelo de globalização
criação de um “ambiente favorável” aos investidores é prioritária, dominado pelas elites financeiras transnacionais.
em detrimento dos impactos sociais e ambientais causados
pelos próprios projetos de infraestrutura e pelo processo de * Diana Aguiar é mestre em Relações Internacionais pela Pontífice Universidade Católica (PUC-Rio),
privatização, comodificação e financeirização dos bens comuns facilitadora do Grupo de Trabalho sobre Arquitetura Econômica Internacional (GT-AEI) da Rede
Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip) e Facilitadora de Projeto da Campanha Global contra o
associado a estes projetos. Poder Corporativo (Global Corporate Power Campaign Network)

128
Agradecimento: A autora agradece aos comentários recebidos de Adhemar Mineiro (Departamento da dívida pública de um país, vendendo e comprando rapidamente em grandes volumes e espalhando
Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos - Dieese - e Rede Brasileira pela Integração boatos no mercado sobre o valor dessas moedas e títulos. George Soros ficou famoso por fazer
dos Povos - Rebrip), Gabriel Strautman (Justiça Global), Magnólia Said (Esplar/Rede Brasil), fortuna arquitetando ataques assim contra moedas de distintos países, em um exemplo de como
Fabrina Furtado (Doutoranda do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - Ippur, as elites financeiras transnacionais lucram com as instabilidades e desregulamentação do sistema
da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ) e Giorgio Romano (Universidade do ABC - financeiro.
UFABC) durante o período de elaboração deste artigo. A análise contida é, no entanto, de inteira
responsabilidade da autora. 14 Entrevista de Adhemar Mineiro (Dieese/Rebrip) à autora em julho de 2012.

1 A Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento (Unctad) defende que as 15 AMBROSE, Soren. IMF Confidence Crisis. Foreign Policy in Focus. Abril de 2007. www.fpif.org/
economias que tiveram melhor desempenho nas últimas três décadas são justamente aquelas que articles/imf_confidence_crisis
rejeitaram esse modelo de globalização financeirizada (finance-driven globalization) e adotaram
políticas heterodoxas adequadas ao contexto nacional/local. Unctad Policy Brief. The Paradox of 16 Entrevista de Fabrina Furtado (Doutoranda Ippur/UFRJ) à autora em julho de 2012.
Finance-Driven Globalization. Janeiro de 2012.
17 La vida antes que la deuda! Argentina/Brasil. Dezembro de 2005.
2 Antonio Tricarico. The “financial enclosure” of the commons. Outubro de 2011. www.jubileosuramericas.org/item-info.shtml?x=90394

3 De fato, a partir do início dos anos 1980, quando o processo de financeirização se intensifica, o 18 AMBROSE, Soren. IMF Confidence Crisis. Foreign Policy in Focus.Abril de 2007. wwww.fpif.org/
volume do fluxo de capitais ultrapassa o comércio internacional. Unctad Policy Brief. The Paradox of articles/imf_confidence_crisis
Finance-Driven Globalization. Janeiro de 2012.
19 MOLINA-GALLART, Nuria; MUCHHALA, Bhumika. Strings Attached: How the IMF’s Economic
4 O bloco BRICS é formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Conditions Foil Development-Oriented Policies for Loan-Borrowing Countries. Third World Network,
2010.
5 AGUIAR, Diana. Cúpula dos Povos frente ao G20 2011. “Os Povos Primeiro, Não os Mercados
Financeiros!”. In: G20: Novo Cenário para a política externa do Brasil. Perspectivas dos Movimentos 20 Special Drawing Rights ou Direitos Especiais de Saque, a unidade de conta do FMI.
Sociais. Rebrip, 2012.
21 A taxa de conversão atual é de 1,55 US$ para cada SDR.
6 G-SIFIs – Global Sistemically Important Financial Institutions.
22 www.imf.org/external/np/fin/tad/extcred1.aspx
7 Idem.
23 Idem.
8 GOWER, Richard. Financial Crisis 2: Rise of the Machines. Robin Hood Tax Campaign. Setembro
de 2011. High frequency trading ou “transações de alta frequência” são, hoje, a realidade da maior 24 Empréstimos a serem pagos. O valor dos empréstimos aprovados é ainda maior, já que parte dos
parte das transações nos mercados financeiros. São as transações em alta velocidade, feitas por fundos ainda não foi repassada.
computadores extremamente rápidos, que chegam a negociar ativos financeiros centenas ou milhares
de vezes por segundo, com base em modelos matemáticos preestabelecidos. Este tipo de transação 25 www.imf.org/external/np/fin/tad/extarr11.aspx?memberKey1=ZZZZ&date1key=2012-05-31
tem levado as corporações dos mercados financeiros a uma verdadeira “corrida tecnológica” para
estar milésimos de segundo à frente de seus concorrentes. Neste tipo de transação, o que se sobressai 26 www.imf.org/external/np/fin/tad/extarr11.aspx?memberKey1=ZZZZ&date1key=2002-12-31
é a capacidade de investimento em inovação tecnológica e expertise matemática para maximizar
os lucros em um ambiente de alta competitividade que favorece a concentração do mercado em 27 Um mapa dos principais devedores do Fundo hoje ilustra essa mudança: www.imf.org/external/np/
grandes corporações com capacidade técnica, em detrimento da estabilidade financeira ou do uso exr/map/lending/index.htm
dos recursos dos mercados financeiros a serviço das necessidades produtivas. robinhoodtax.org.uk/
sites/default/files/Rise%20of%20the%20Machines_1.pdf) 28 Entrevista de Adhemar Mineiro (Dieese/Rebrip) à autora em julho de 2012.

9 WARDE, Ibrahim. O reinado das agências de classificação de risco. Dossiê Le Monde Diplomatique 29 GONÇALVES, Reinaldo. O Banco Mundial no Brasil: da Guerra de Movimento à Guerra de Posição.
Brasil 10. Ano 2, julho/agosto 2012. A avaliação das três mais poderosas agências de classificação Análise do documento “Estratégia de Parceria com o Brasil, 2008-2011”. Rede Brasil sobre Instituições
de risco (Moody’s, Standard&Poors e Fitch Ratings) das dívidas soberanas dos países e das grandes Financeiras Multilaterais. Janeiro de 2009.
corporações financeiras é acompanhada de perto pelos mercados financeiros e determina, em grande
medida, o “ânimo” dos mercados. Exemplo disso, quando em agosto de 2011 e em janeiro de 2012, 30 A importância do BNDES no atual modelo de desenvolvimento do país é central, ainda que não o
a Standard&Poors rebaixou a nota dos Estados Unidos e de nove países da zona do euro, os porta- foco desta análise, centrada nas IFIs.
vozes das políticas econômicas desses países não tardaram em fazer declarações em defesa de sua
segurança financeira. 31 CARVALHO, Guilherme. Os Bancos Multilaterais e o Complexo Rio Madeira: A tentativa de garantir
o controle dos recursos naturais da Amazônia para o grande capital. Rede Brasil sobre Instituições
10 AGUIAR, Diana. Cúpula dos Povos frente ao G20 2011. “Os Povos Primeiro, Não os Mercados Financeiras Multilaterais, 2009.
Financeiros!”. In: G20: Novo Cenário para a política externa do Brasil. Perspectivas dos Movimentos
Sociais. Rebrip, 2012. 32 GONÇALVES, Reinaldo. O Banco Mundial no Brasil: da Guerra de Movimento à Guerra de Posição.
Análise do documento “Estratégia de Parceria com o Brasil, 2008-2011”. Rede Brasil sobre Instituições
11 AGUIAR, Diana. Seminário Regional “A América Latina no G20”. In: G20: Novo Cenário para a Financeiras Multilaterais. Janeiro de 2009.
política externa do Brasil. Perspectivas dos Movimentos Sociais. Rebrip, 2012.
33 Entrevista de Adhemar Mineiro (Dieese/Rebrip) à autora em julho de 2012.
12 A financeirização não é o mesmo que a privatização e a comodificação, embora dependa destas.
34 Entrevista de Fabrina Furtado (Doutoranda Ippur/UFRJ) à autora em julho de 2012.
13 Ataques especulativos contra a moeda ou a dívida de um país referem-se à aposta, como em um
grande cassino, de grandes investidores em torno da cotação de uma moeda específica ou de títulos 35 CARVALHO, Guilherme. Os Bancos Multilaterais e o Complexo Rio Madeira: A tentativa de garantir

129
o controle dos recursos naturais da Amazônia para o grande capital. Rede Brasil sobre Instituições 57 Idem.
Financeiras Multilaterais, 2009.
58 blogs.worldbank.org/voices/world-bank-gets-capital-increase-and-reforms-voting-power
36 Entrevista de Adhemar Mineiro (Dieese/Rebrip) à autora em julho de 2012.
59 www.iadb.org/en/capital-increase/ninth-capital-increase-idb-9,1874.html
37 Idem.
60 www.imf.org/external/np/sec/pr/2011/pdfs/quota_tbl.pdf
38 Idem.
61 Idem.
39 Idem.
62 Dos US$ 75 bilhões prometidos pelos BRICS na última reunião do G20, no México, US$ 10 bilhões
40 www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=1374:entrevistas- virão do Brasil.
materias&Itemid=41
63 Declaração dos Líderes do G20. Cúpula do G20 no México, 18 e19 de junho de 2012. g20.org/
41 MOLINA-GALLART, Nuria; MUCHHALA, Bhumika. Strings Attached: How the IMF’s Economic images/stories/docs/g20/conclu/G20_Leaders_Declaration_2012_1.pdf
Conditions Foil Development-Oriented Policies for Loan-Borrowing Countries. Third World Network,
2010.Bretton Woods Project. IMF policy recommendations: not enough change after the crisis. 64 www.brettonwoodsproject.org/art-566281
Bretton Woods Update, n. 80, março/abril de 2012. www.brettonwoodsproject.org/art-566696

42 Essa ideia será mais bem desenvolvida adiante. 65 A Espanha só foi convidada em 2001.

43 AMBROSE, Soren; MUCHHALA, Bhumika. Fruits of the Crisis: Leveraging the Economic Crisis to 66 PLIHON, Dominique. Pobres normas internacionais. Dossiê Le Monde Diplomatique 08, novembro/
Secure Development Resources and Reserve Reform. Third World Network, 2010. dezembro de 2011.

44 Imposto sobre Operações Financeiras. 67 Dossiê Le Monde Diplomatique 08, novembro/dezembro de 2011. “Sistema bancário paralelo
constituído não por bancos de depósito [usados pelo grande público para conta corrente e poupança], mas
45 Conversa da autora com Fernando Cardim, maio de 2012. por fundos de investimentos, bancos de negócios, seguradores que escapam das regulações do sistema
bancário tradicional (do qual, às vezes, são subsidiários...). Fontes de instabilidade financeira em escala
46 BRÉVILLE, Benoit; LAMBERT, Renaud. Um nome e um endereço. Dossiê Le Monde Diplomatique mundial, esses atores drenam uma massa considerável de capital e fazem extenso uso de derivativos.”
Brasil 10. Ano 2, julho/agosto de 2012. Os Acordos de Basileia somente regulamentam o sistema bancário tradicional. No entanto, é no sistema
bancário sombra que acontecem as transações financeiras com derivativos e mercado de balcão.
47 O montante aprovado inicialmente foi de US$ 700 bilhões, que acabaram não sendo utilizados em
sua totalidade. topics.nytimes.com/top/reference/timestopics/subjects/c/credit_crisis/bailout_plan/ 68 www.whitehouse.gov/the-press-office/press-briefing-treasury-secretary-geithner-g20-meetings
index.html
69 www.idfc.org/Our-Objectives/our-objectives.aspx
48 WARDE, Ibrahim. Prêmios e castigos dos negociadores do mercado financeiro. Dossiê Le Monde
Diplomatique Brasil 08, novembro/dezembro de 2011. 70 Business 20 ou B20 é a reunião paralela ao G20 de corporações transnacionais dos 20 países do grupo.

49 www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/06/120609_espanha_emprestimo_entenda_rw.shtml 71 Declaração dos Líderes do G20. Cúpula do G20 no México, 18 e19 de junho de 2012. g20.org/
images/stories/docs/g20/conclu/G20_Leaders_Declaration_2012_1.pdf
50 www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/07/120701_euro_entenda_pai.shtml
72 FURTADO, Fabrina. Salvando o planeta ou o capitalismo? Contra Corrente, I Edição. Rede Brasil
51 New Arrangements to Borrow (NAB) e General Arrangements to Borrow (GAB) são arranjos sobre Instituições Financeiras Multilaterais, janeiro de 2009.
bilaterais de crédito entre o FMI e alguns de seus membros, que não afetam as cotas ou o poder de
voto. GAB foi originalmente estabelecido em 1962 e foi utilizado amplamente até o final dos anos 73 STRAUTMAN, Gabriel. Os Bancos já entraram na “farra” do clima. Contra Corrente, III Edição. Rede
1990. Atualmente, só podem ser acionados se a ativação dos NABs for recusada. Os NABs foram Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, outubro de 2011.
criados em 1997 e só podem ser usados quando os recursos das cotas não forem suficientes. www.
brettonwoodsproject.org/art-569552 74 JUBILEU SUL. Banco Mundial Fora do Clima!... e de nossos países. Contra Corrente, III Edição. Rede
Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, outubro de 2011.
52 www.imf.org/external/np/tre/liquid/2008/0408.htm
www.imf.org/external/np/tre/liquid/2012/0412.htm#note 75 FURTADO, Fabrina. Banco Mundial: regularizar para controlar. Contra Corrente, IV Edição. Rede
Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, junho de 2012.
53 www.imf.org/external/np/exr/facts/gabnab.htm
76 www.wavespartnership.org/waves/
54 Entrevista de Adhemar Mineiro (Dieese/Rebrip) à autora em julho de 2012.
77 ORTIZ, Lúcia; OVERBEEK, Winnie. Valorando o que não tem valor. Contra Corrente, IV Edição. Rede
55 www.imf.org/external/np/tre/liquid/2008/0408.htm Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, junho de 2012.
www.imf.org/external/np/tre/liquid/2012/0412.htm#note
78 CARVALHO, Guilherme. Os Bancos Multilaterais e o Complexo Rio Madeira: A tentativa de garantir
56 MOLINA-GALLART, Nuria; MUCHHALA, Bhumika. Strings Attached: How the IMF’s Economic o controle dos recursos naturais da Amazônia para o grande capital. Rede Brasil sobre Instituições
Conditions Foil Development-Oriented Policies for Loan-Borrowing Countries. Third World Network, Financeiras Multilaterais, 2009.
2010.
79 Idem.

130
Contexto BNDES e violações de direitos:
Territorial
fichários de estudos de casos

A
proposta deste Contexto Territorial é apresentar seis casos emblemáticos de megaprojetos de “desenvolvimento” que
têm como característica comum a violação de direitos e o financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES). Estes estudos de caso explicitam a perversidade de um modelo fundamentado na
parceria entre as corporações e o Estado, em que elas recebem deste, inclusive, o financiamento massivo para os projetos que
resultam em graves e irreversíveis impactos socioambientais, culturais e econômicos.

Realizados nos estados do Rio de Janeiro, Pará, Rondônia e Bahia e nas doze cidades-sede da Copa do Mundo, os
empreendimentos aqui apresentados nos trazem elementos da realidade das cinco regiões do país. Neste sentido, ajudam
a formar um dos seus possíveis retratos neste início de século: o de um Brasil em que os direitos de grande parte de
suas populações e da natureza são totalmente desrespeitados em nome da garantia do lucro de algumas corporações
transnacionais. Este é o caso dos indígenas, camponeses, quilombolas, populações tradicionais, das periferias dos grandes
centros e das que estão financeiramente mais vulneráveis. Infelizmente, devido ao atual estágio de concentração e
oligopolização da economia brasileira, este padrão está sendo exportado para países da América Latina e da África.

É importante ressaltar que estes estudos de caso são o resultado da compilação e sistematização, feitos pela pesquisadora
Marilda Teles Maracci, de relatórios, denúncias, publicações e diversas ações efetivadas por outras organizações, redes e
movimentos da sociedade civil, com o propósito de fortalecer a resistência ao atual modelo
de desenvolvimento.

Neste sentido, gostaríamos de agradecer a colaboração das seguintes organizações e redes: Políticas Alternativas para o Cone
Sul (Pacs); Justiça Global; Amigos da Terra Brasil; Centro de Estudos e Pesquisas para o Desenvolvimento do Extremo Sul da
Bahia (Cepedes); Centro de Pesquisa e Assessoria Esplar; Plataforma Dhesca; Fórum de Articulação da Amazônia Oriental
(Faor); Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (Ancop); Rede Alerta Contra o Deserto Verde; Plataforma BNDES;
Movimento Xingu Vivo Para Sempre (MXVPS), Repórter Brasil e a organização moçambicana Justiça Ambiental (JA!). Por
se tratar de uma compilação de outros estudos e publicações, e considerando a agilidade dos acontecimentos e processos
de alguns dos casos apresentados aqui, além do próprio tempo transcorrido para finalizar esta publicação, é possível que
algumas informações e dados apresentados aqui não sejam as mais atualizadas. Independente disso, a contundência dos
casos demonstra quão insustentável e ilegítimo se apresenta o atual padrão de acumulação no país.

131
CASO TKCSA – ThyssenKrupp
Companhia Siderúrgica do Atlântico1

1- Descrição do empreendimento
Conglomerado industrial-siderúrgico-portuário da TKCSA
(ThyssenKrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico)
formado pela Vale (CVRD), que detém 27% das ações votantes,
e a empresa alemã ThyssenKrupp Steel (TKS) com 73%. Trata-
se de uma joint venture. É considerado o maior investimento
estrangeiro privado feito no Brasil nos últimos dez anos e o
maior projeto do setor siderúrgico no país.

Área de intervenção: Bairro de Santa Cruz, na zona oeste da


cidade do Rio de Janeiro, nas margens da Baía de Sepetiba.

O Conglomerado é composto de:


1 – Usina siderúrgica integrada com capacidade de produção prevista de 10 milhões de toneladas de placas de aço/ano;
2 – Usina termoelétrica para a geração de 490 MW de energia elétrica;
3 – Um porto com dois terminais, composto de uma ponte de acesso de cerca de 4 km e um píer de 700 m para recebimento de
4 milhões de toneladas de carvão mineral importado e para o escoamento da produção para o mercado externo.

Produção: 5,5 milhões de toneladas de placas de aço/ano.

Capacidade produtiva total: 10 milhões de toneladas de placas de aço/ ano.

Área total: 9 km2.

Início das operações: 18 de junho de 2010 – com a entrada em operação da planta da TKCSA.

Pessoas impactadas diretamente: 8.070 famílias de pescadores e mais de 20 conjuntos habitacionais vizinhos
à planta industrial.

Investimento total: o valor saltou de 4,5 bilhões de euros para 5 bilhões de euros devido às despesas operacionais para o início
de operação do projeto.

132
CASO TKCSA – ThyssenKrupp
Companhia Siderúrgica do Atlântico

Além das obras da TKCSA, encontram-se em processo de licenciamento os seguintes projetos na região:
1) portuários: o Porto Sudeste, da LLX Logística, com capacidade de escoamento de 50 milhões de toneladas de minério do
quadrilátero ferrífero; a ampliação do Porto de Itaguaí; a construção de um grande porto e estaleiro para a construção de
submarinos da Marinha do Brasil; e a construção de um megaporto compartilhado entre Petrobras, Gerdau e a Companhia
Siderúrgica Nacional (CSN), segundo memorando de entendimento assinado em agosto de 2008.
2) siderúrgicos: expansão da capacidade produtiva da Gerdau Cosigua e a construção de uma nova usina de aço – Gerdau Aços
Especiais Rio.
A ThyssenKrupp Steel é uma das maiores companhias siderúrgicas do mundo, com um faturamento anual de 39 bilhões
de euros. As empresas Thyssen e Krupp se uniram em 1998 para ganhar força no mercado. Ambas eram gigantes do setor
siderúrgico alemão, com mais de um século de tradição: a Thyssen foi fundada em 1811 e a Krupp, em 1867. Em todo o mundo,
a ThyssenKrupp emprega 184 mil trabalhadores. No Brasil, emprega cerca de 9 mil trabalhadores, distribuídos em 22 subsidiárias
espalhadas pelo país, que são a base de operações do grupo empresarial na América do Sul.
A Vale, atualmente detentora de 26,85% do projeto, é considerada uma das maiores mineradoras do mundo. Trata-se de uma
empresa global, com sede no Brasil, com mais de 100 mil empregados. A empresa produz e comercializa minério de ferro,
pelotas, níquel, concentrado de cobre, carvão, bauxita, alumina, alumínio, potássio, caulim, manganês e ferro-liga. Realiza
também atividades em mineração, com investimentos em pesquisa mineral e novas tecnologias. Entre seus maiores diferenciais,
resultando na redução de seus custos operacionais, está a atuação e a expertise acumuladas como operadora logística que
favorece o escoamento de sua produção. Uma de suas principais estratégias é fazer que a produção ganhe o mercado global,
encurtando distâncias e criando corredores de exportação em regiões estratégicas.

2- Valor do empréstimo
O empreendimento conta com um amplo apoio dos governos municipal, estadual e federal por meio de isenções fiscais e do
financiamento direto de R$ 2,4 bilhões (aproximadamente US$ 1,2 bilhão) do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
Social (BNDES)2, o que representa 30% do valor total do projeto e se dá mediante dois contratos, um assinado em 2007 (destinado
à aquisição de máquinas e equipamentos nacionais, obras civis, instalações e montagens associadas) e outro assinado em 2010.
O Banco também financiará parte das atividades de responsabilidade social da empresa, num montante estimado em
R$ 10,5 milhões.
Em relação aos incentivos fiscais, haverá a isenção do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) por doze anos.
De acordo com a Secretaria Estadual da Fazenda, o governo do estado concedeu R$ 695 milhões à TKCSA, de 2007 a 2010. A
isenção de pagamento do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS) foi concedida pela Lei n° 4.372, de 13 de junho de
2006. O terreno em que a empresa está localizada também foi concedido pelo governo federal.

133
CASO TKCSA – ThyssenKrupp
Companhia Siderúrgica do Atlântico

3- Impactos socioambientais
A região da zona oeste do Rio de Janeiro é formada pelas Regiões Administrativas de Bangu, Barra da Tijuca, Campo Grande,
Guaratiba, Jacarepaguá, Realengo e Santa Cruz. Trata-se de uma região que apresenta grandes contrastes, abrigando áreas de
intensa urbanização e ocupação, como Realengo e Santa Cruz, e regiões que ainda apresentam muitas áreas naturais. Acentua-se
sobre estas áreas a pressão sobre os recursos naturais, refletindo-se em altos níveis de poluição de rios e áreas verdes, além da
destruição de ecossistemas da Mata Atlântica, como manguezais e outros biomas marítimos. A zona oeste do Rio de Janeiro é a
área com maior concentração de população negra e de baixa renda do estado. Este quadro configura situações diretas de racismo
ambiental ou injustiça ambiental, e as parcelas mais empobrecidas e excluídas ficam expostas a maiores riscos ambientais
e sobre a sua saúde. A Baía de Sepetiba abrange, além de parte da zona oeste do Rio de Janeiro, os municípios de Itaguaí e
Mangaratiba, com área de aproximadamente 450 km2.
Do ponto de vista ambiental, em seu entorno existem importantes ecossistemas ainda preservados de florestas, restingas, como
a da Marambaia, e manguezais. Podem ser encontradas áreas remanescentes da Mata Atlântica, principalmente na Serra do Mar,
considerada atualmente uma das 25 áreas mais importantes para a conservação da biodiversidade em todo o mundo. A região
litorânea da Baía de Sepetiba foi declarada Área de Proteção Ambiental (APA)3.
A economia e a vida social dos demais municípios, com exceção do bairro de Santa Cruz, encontram-se pautadas,
principalmente, pelas atividades da pesca – artesanal, industrial e maricultura – e do turismo. A região apresenta um universo
composto de quilombolas, índios, pescadores artesanais e caiçaras. Trata-se, portanto, de área caracterizada por profundas
riquezas ambiental, social e cultural, mas também empobrecida e credora de uma dívida social e ambiental crescente.

Crimes ambientais
Desrespeito à legislação ambiental – Desde o início das atividades de implantação e planejamento da obra, o Estudo e Relatório
de Impacto Ambiental (Eia-Rima) do empreendimento viola a Lei Federal no 7661/88. Descumpre também o Decreto de
Regulamentação no 5.300/2004 (Gerenciamento Costeiro), que determina que o licenciamento de empreendimentos na zona
costeira seja realizado exclusivamente pelo órgão ambiental federal, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais renováveis (Ibama), e não pelo Instituto Estadual do Ambiente (Inea), como foi realizado no caso do empreendimento
em questão.

Ilegalidades e falta de transparência no processo de licenciamento ambiental, com manipulação da participação popular durante
as audiências públicas. Em 2006, por exemplo, durante as audiências públicas, a TKCSA mobilizou pessoas que nem mesmo moravam
na região para participar das audiências públicas, chegando a pagar um valor que variou de R$ 30 a R$ 50 pela participação.

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CASO TKCSA – ThyssenKrupp
Companhia Siderúrgica do Atlântico

Cooptação de autoridades públicas (poder Executivo: prefeituras e governo estadual e federal) e cooptação de lideranças
comunitárias por meio de “contratos de prestação de serviço” em troca de assinaturas de documentos de apoio à empresa.

Violação dos direitos humanos – A TKCSA viola o direito de ir e vir de pescadores e outros indivíduos que se oponham ao
empreendimento na região (violação do artigo XII da Declaração dos Direitos Universal dos Direitos Humanos, de dezembro de
1948, da Assembleia Geral das Nações Unidas): “Os pescadores não podem trabalhar porque a empresa instala equipamentos
nos rios e no mar. A ponte de 4 km, que compõe o terminal portuário privado, impede os pescadores de navegar dentro da Baía.
Eles precisam contornar toda a ponte (cerca de 8 milhas). A movimentação de enormes navios pelo Canal de São Francisco e
pelo mar, além de reduzir a quantidade e a variedade de peixes pela movimentação e poluição, cria zonas de exclusão da pesca,
impedindo os pescadores de trabalhar”4.

Violação dos direitos dos imigrantes – Com o objetivo de reduzir os custos com a mão de obra, a empresa vem contratando
sistematicamente imigrantes (nordestinos e chineses). Os chineses são parte de um acordo assinado com o grupo chinês
Citic (Cooperação Internacional do Brasil Consultoria de Projetos Ltda.) para a compra de máquinas e fornecimento dos
trabalhadores. Cerca de 600 chineses já trabalharam no canteiro de obras da empresa, enfrentando péssimas condições de
vida e de trabalho, bem como constantes ameaças da milícia que atua na zona oeste. Em uma visita do Ministério Público do
Trabalho (MPT) ao canteiro de obras, foram encontrados 120 chineses sem documentos e sem contratos de trabalho.

Destruição ambiental na Baía de Sepetiba e desmatamento de extensa área de manguezais: essas áreas são consideradas pela
legislação brasileira Áreas de Preservação Permanente (APPs) e são protegidas pelo Código Florestal em vigor na época das
violações e pelas Constituições federal e estadual. A empresa vem desmatando o manguezal e provocando o extermínio da
fauna terrestre e marinha na região.

Morte de peixes – A Baía de Sepetiba é uma importante área de reprodução para as diversas espécies de peixes. Inspetores
do Ibama, em visita ao canteiro de obras, encontraram, junto ao material dragado, muitos peixes e moluscos no período de
reprodução e de defeso, mortos pelas atividades de dragagem empreendidas pela TKCSA.

Contaminação das águas por metais pesados – A TKCSA retirou cerca de 21.810.000 m3 de lama contaminada do fundo da Baía
e do Canal de São Francisco com o objetivo de aumentar a sua profundidade e permitir o acesso aos navios, o que provocou o
revolvimento do lixo químico de metais pesados (chumbo, cádmio e zinco) deixados pela antiga companhia Ingá Mercantil, que
já estavam sedimentados no assoalho oceânico.5

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CASO TKCSA – ThyssenKrupp
Companhia Siderúrgica do Atlântico

Lançamento de lama contaminada no interior da Baía de Sepetiba – A TKCSA depositou parte do material contaminado
no canteiro de obras da empresa para o aterro do terreno de implantação da usina, sendo altos os riscos de contaminação
do solo e dos lençóis freáticos. Para tratar o restante do material contaminado retirado pela empresa do fundo do mar
– aproximadamente 200.000 m3 de lama – a empresa utiliza a tecnologia Confined Disposal Facility (CDF), que prevê a
construção de enormes cavas ou fossas no fundo da Baía, onde este material será “enterrado”. No entanto, o local onde as
covas estão localizadas corresponde a uma área de costumeiras manobras de navios e embarcações, o que eleva o risco de
rompimento dessas covas6.

Área de Proteção Ambiental – O canteiro de obras foi implantado num manguezal considerado Área de Proteção Ambiental (APA).

Desmatamento – O Ministério Público, após investigação, confirmou a destruição pela empresa de pelo menos sete hectares de
manguezal sem autorização, o dobro do que foi licenciado.

Saúde – O funcionamento da usina representa um sério risco para a saúde de toda a população da região da Baía de Sepetiba e
do estado do Rio de Janeiro. A atividade de produção de aço eleva a poluição atmosférica, a partir da emissão de poluentes que
fazem muito mal à saúde, especialmente das crianças. Em relatório divulgado em setembro de 2011, a Organização Mundial de
Saúde (OMS) aponta que o nível de poluição atmosférica na região metropolitana do Rio de Janeiro é duas vezes maior que o da
região metropolitana de São Paulo e supera os níveis de Nova Iorque, Londres e Paris. Os níveis de poluição atmosférica no Rio
são três vezes maiores do que os níveis recomendados pela OMS7.

Evidências de poluição – Ainda em 2008, a montadora sul-coreana Hyundai recusou espaço em Santa Cruz, pois foi
considerado muito próximo do local de construção da CSA. Os sul-coreanos alegaram que os resíduos liberados pela
siderúrgica poderiam comprometer a qualidade da pintura de seus automóveis8.

Inundações constantes do Canal de São Francisco – Desde as obras de instalação da TKCSA, os moradores do conjunto São
Fernando convivem sistematicamente com situações de alagamento. Atualmente, esses moradores convivem com cinco bombas
instaladas pela TKCSA para tirar a água das casas. No entanto, elas não são suficientes para resolver o problema, e as situações de
alagamento permanecem. A Associação Rural Nipo-Brasileira de Santa Cruz denunciou que, desde a chegada da TKCSA, a colônia
japonesa, instalada no território desde 1938, tem enfrentado graves problemas relacionados à perda de produção e de transtornos
nas residências em consequência de transbordamentos do Canal de São Fernando. O desvio do Canal de São Francisco para o Rio
Guandu, pela TKCSA, tem causado refluxo das águas para o canal nas cheias e nas marés altas, ocasionando transbordamento.

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CASO TKCSA – ThyssenKrupp
Companhia Siderúrgica do Atlântico

Populações locais impactadas indiretamente – Além da poluição, o projeto TKCSA tem impedido a realização de atividades
turísticas e pesqueiras, com grandes impactos sobre a vida e a cultura das populações locais. Cerca de 8 mil famílias de
pescadores (mais de 40 mil pessoas) tiveram seu modo de vida afetado. Os pescadores não podem trabalhar porque a empresa
instala equipamentos nos rios e no mar9. A ponte de 4 km, que compõe o terminal portuário privado, impede os pescadores de
navegar dentro da Baía. Para pescar, eles precisam contornar toda a ponte (cerca de 8 milhas). A movimentação de enormes
navios pelo Canal de São Francisco e pelo mar, além de reduzir a quantidade e a variedade de peixes pela movimentação
e poluição, cria zonas de exclusão da pesca, impedindo os pescadores de trabalhar. O funcionamento do polo siderúrgico
afeta a população das cidades do Rio de Janeiro, Itaguaí, Mangaratiba e Seropédica. Em 2005, 75 famílias do Movimento dos
Trabalhadores Sem Terra (MST) foram pressionadas a sair do terreno no qual a TKCSA se instalou, utilizando-se de ameaças
feitas pela milícia e pressão da polícia militar.

Deterioração do tecido social local e perda da identidade social – A pesca na Baía de Sepetiba, que antes era uma profissão
valorizada, passada por herança entre os membros de uma mesma família, sendo um forte componente da identidade social,
atualmente vem sendo abandonada pelas famílias como meio de vida. De acordo com a Federação das Associações de
Pescadores Artesanais (Fapesca), este quadro significa, em média, uma redução de 70% na renda familiar. Segundo reportagem
publicada em 31 de maio de 2008 no jornal O Dia (versão eletrônica), em todo o estado do Rio de Janeiro, os pescadores
estariam ameaçados pela poluição e correndo o risco de se tornarem refugiados ambientais.

Violação de direito dos trabalhadores/Acidentes de trabalho – A empresa conduz os trabalhos de construção da usina
siderúrgica sem respeitar as mínimas condições de segurança impostas pela Lei do Trabalho. Operários são subcontratados
em condições degradantes de trabalho; alguns deles dormiam em alojamentos sem cama nem acesso à água limpa e recebiam
apenas uma refeição por dia10.

Milícias armadas – Há fortes indícios na região de que a empresa vem atuando em conjunto com a milícia (grupos de extermínio,
extorsão financeira e controle social formados por policiais, ex-policiais, ex-bombeiros e matadores de aluguel), o que, por si, se
consolida em ameaças diárias aos pescadores e à população local, críticos ao empreendimento. Denúncias referentes a ameaças,
intimidações e acidentes de trabalho foram feitas ao Ministério Público Federal pela Fapesca-RJ. Destacam-se as ameaças de
morte sofridas por lideranças de pescadores, como os ataques à casa do presidente da Associação de Pescadores Canto dos Rios
(Apescari), Luís Carlos, em janeiro de 2009. Ele se encontra, atualmente, sob proteção do Programa Nacional de Proteção aos
Defensores dos Direitos Humanos, da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República.

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CASO TKCSA – ThyssenKrupp
Companhia Siderúrgica do Atlântico

4- Condicionantes ou salvaguardas do BNDES


Não há nenhuma informação que conste que o BNDES cumpriu suas obrigações neste sentido.

5- Condicionantes dos órgãos ambientais


Nenhuma das condições estipuladas pelo Estado foi cumprida pela TKCSA11.

Seguem abaixo informações sobre fatos importantes relacionados aos impactos socioambientais decorrentes da instalação e
operação da TKCSA12:

13/7/2006 – Fundação Estadual de Engenharia e Meio Ambiente (Feema) concede a primeira Licença Prévia (LP) para o
empreendimento.

5/9/2006 – Comissão Estadual de Controle Ambiental (Ceca) delibera pela concessão da Licença de Instalação (LI) da CSA,
após apenas cinquenta dias da concessão da LP.

7/9/2006 – TKCSA apresenta o Projeto Básico Ambiental (PBA) do empreendimento. Posteriormente, técnicos do Ibama
criticam, através de relatório, a celeridade incomum no processo de licenciamento.

Outubro/2006 – Início das dragagens impactantes da TKCSA, “marco zero” do estabelecimento dos conflitos e das ameaças às
lideranças que se opõem ao projeto.

Dezembro/2007 – Operação de fiscalização do Ibama por determinação do Procurador do Ministério Público Federal, Dr.
Maurício Manso, que resulta no embargo das obras da TKCSA (Relatório de Fiscalização no 236/2007, de 27 de janeiro de 2007,
e Auto de Infração no 512869 de 20 de dezembro de 2007, do Ibama). Processo do Embargo: 02022.000010/2008-88, emitido
em 3 de janeiro de 2008, resultado da vistoria realizada no dia 20 de dezembro de 200713. Nesta ocasião, a empresa foi multada
em R$ 100 mil por ter suprimido áreas de manguezais não previstas no Eia-Rima ou no PBA e intervenção em margem de rios,
sem nenhuma autorização legal. Justificativa para o embargo/interdição:”Fica embargada qualquer atividade de intervenção
no manguezal, bem como construção, obras ou serviços que implique degradação da biota nativa da área do empreendimento,
devendo o empreendedor promover a recuperação da área suprimida de 2 ha (dois hectares), extrapolada em dobro na
autorização IEF/RJ nº 17/2006. Obs.: de acordo com o relatório de vistoria DITEC/SUPES”.

Abril/2008 – Após receber denúncias de ocorrências de acidentes dentro do canteiro de obras da TKCSA, o Ministério
Público do Trabalho interdita as obras. Foram constatadas irregularidades relativas ao ambiente de trabalho, como falta de

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CASO TKCSA – ThyssenKrupp
Companhia Siderúrgica do Atlântico

equipamentos apropriados e destinados à segurança do trabalhador. No entanto, mesmo com seu canteiro de obras embargado,
a empresa continua a obra, o que foi constatado pelo MPT em outra visita à TKCSA, dias após a interdição. Nesta ocasião, em
junho de 2008, a empresa assina junto ao MPT um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC).

23/8/2010 – Inea14 multa a TKCSA em R$ 1,8 milhão pela poluição atmosférica com material particulado, proveniente da
deposição de ferro-gusa em cavas abertas. Este valor é, posteriormente, reduzido para R$ 1,3 milhão.

17/12/2010 – Governo estadual autoriza a entrada em operação do Alto Forno 2 da TKCSA, mediante apenas um laudo emitido
pela empresa estadunidense de consultoria em engenharia Ch2M Hill, e sem nenhum posicionamento do Inea.

5/1/2011 – Inea multa a TKCSA em R$ 2,8 milhões pela poluição atmosférica e em R$ 14 milhões por uma compensação
socioambiental indenizatória.

1o/3/2011 – Ato da Secretaria de Estado do Ambiente (SEA), publicado no Diário Oficial, institui um Grupo de Trabalho para
avaliar os danos à saúde causados em virtude da emissão de fuligem na atmosfera pela empresa TKCSA, composto das
entidades: SEA, Secretaria de Estado da Saúde (SES), Secretaria Municipal de Saúde (SMS), Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz),
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

20/5/2011 – Inea autoriza a ampliação da TKCSA, mediante apresentação de projeto de exaustor que terá sua implantação
finalizada em um ano.

24/5/2011 – Primeira Audiência Pública (AP) realizada na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), convocada
por uma Comissão Especial desta instituição instaurada para apurar possíveis irregularidades e imprevidências do governo do
estado e do Inea no processo de concessão de licenciamento ambiental para a implantação da TKCSA, com participação de
pesquisadores da Fiocruz. Várias denúncias graves foram feitas nesta AP.

14/6/2011 – Oitiva de Audiência Pública convocada pela Comissão Especial da Alerj, com os temas saúde e atividade pesqueira,
com a convocatória e relato de pesquisadores da Fiocruz.

21/6/2011 – Oitiva de audiência pública convocada pela Comissão Especial da Alerj, com a convocatória da presidente do
Instituto Estadual do Ambiente (Inea), Marilene Ramos.

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CASO TKCSA – ThyssenKrupp
Companhia Siderúrgica do Atlântico

30/3/2012 – Um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) é assinado entre a Secretaria de Estado do Ambiente (SEA), a Comissão
Estadual de Controle Ambiental (Ceca) e o Instituto Estadual do Ambiente (Inea), de um lado, e a ThyssenKrupp Companhia
Siderúrgica do Atlântico (TKCSA), de outro. O instrumento tem o objetivo de estabelecer ações e condições para a adequação das
instalações da TKCSA e a concessão, por parte dos órgãos ambientais do estado do Rio de Janeiro, da Licença de Operação (LO)
definitiva para a siderúrgica. O Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs) apresenta, em agosto de 2012, uma análise
crítica do TAC na 107a Reunião Ordinária do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), solicitando que o Conselho tome
as providências cabíveis, clamando pela responsabilização dos órgãos competentes e pela execução de medidas e condições
cabíveis para que a TKCSA no Rio de Janeiro respeite a legislação ambiental brasileira. Na análise do Pacs são apontadas evidências
que questionam a efetiva aplicação, credibilidade e eficácia do referido TAC, entre elas: “descumprimento e pouco caso com a
transparência e publicização do TAC”; “o TAC é um instrumento que impede que a Licença de Operação da TKCSA seja negada,
como estabelece a legislação ambiental brasileira”; “o Inea e a SEA não têm demonstrado eficiência em fiscalizar a TKCSA”; “o
TAC não define nem estabelece como será feito o controle, monitoramento e fiscalização das suas condicionalidades, tendo em
vista que em ocasiões anteriores a SEA e o Inea se mostraram insuficientes nessa empreitada”; “o TAC oficializa a transferência
das ações de fiscalização e monitoramento dos impactos da TKCSA para a própria empresa”; “o TAC ignora os impactos sociais e
ambientais graves ocasionados pela TKCSA, não obstante o relatório elaborado pela Fiocruz, as ações penais por crimes ambientais
do MPRJ e as muitas ações abertas pela Defensoria Pública de Santa Cruz, e não define nenhuma medida para compensar os
danos sofridos até o momento pelos moradores e pescadores impactados pelo empreendimento”15.

6- Duplo padrão
A Fiocruz, a Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) e a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV) produziram
o estudo Avaliação dos Impactos Socioambientais e de Saúde em Santa Cruz Decorrentes da Instalação e Operação da
Empresa TKCSA, publicado em 2011. Anteriormente, em um relatório feito em 2010, eles afirmam: “Em 2009, foi realizado
por dois pesquisadores da ENSP/Fiocruz, ligados à RBJA [Rede Brasileira de Justiça Ambiental], um parecer sobre o Rima da
TKCSA utilizado para o licenciamento. O parecer analisa, sob a perspectiva da saúde pública e da saúde ambiental, diversas
lacunas existentes”. Entre os destaques do parecer apontados pelo relatório, identifica-se “a fragmentação da avaliação do
empreendimento, ignorando a possibilidade de exposição cumulativa e simultânea da população aos diferentes poluentes”.
O parecer aponta ainda “inúmeros detalhes de grande relevância para a saúde pública que foram ignorados ou abordados
superficialmente pelo Rima”, como a utilização do benzeno (entre tantos), “um hidrocarboneto cíclico aromático que se
apresenta como um líquido incolor, volátil e altamente inflamável”. Sendo assim, “o parecer conclui apontando para um possível
duplo padrão, já que um empreendimento deste tipo não teria seu licenciamento concedido na União Europeia em condições
similares”. Eis os argumentos:

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CASO TKCSA – ThyssenKrupp
Companhia Siderúrgica do Atlântico

(1) “A falta de uma descrição quantitativa sobre a situação da qualidade ambiental na região do empreendimento após
o início das operações da siderúrgica, bem como os efeitos da redução da qualidade ambiental sobre a saúde das
pessoas. A legislação na Europa exige que empresas que desejem instalar unidades produtivas em qualquer país da
União Europeia (incluindo, obviamente, a Alemanha, onde a ThyssenKrupp possui sede) devem incluir no pedido
de licenciamento ambiental uma descrição – do tipo e volume das emissões previsíveis da instalação para os
diferentes meios físicos e de quais os efeitos significativos dessas emissões no ambiente16. Como a apresentação do
Rima é uma etapa do licenciamento, de acordo com as regras europeias, seria de se esperar que estes dados fossem
incluídos no relatório para permitir o debate com a população atingida”.

(2) “O segundo diz respeito à concentração de poluentes na região do empreendimento. Conforme apresentado na
Tabela 1 do parecer, ao menos com relação às Partículas Inaláveis, a qualidade do ar em Santa Cruz e no Distrito
Industrial apresenta uma qualidade inferior àquela recomendada pelos padrões europeus. Em outras palavras, a
qualidade do ar na região onde foi instalada a usina siderúrgica já é considerada ruim o suficiente pelos padrões
europeus para causar impactos negativos sobre a saúde das pessoas e ao meio ambiente. Caso Santa Cruz
fosse localizada na Alemanha, ou em outro país da Europa, a região provavelmente seria alvo de programas de
despoluição e melhoria da qualidade do ar e dificilmente seria permitida a implantação de uma usina siderúrgica. A
partir dessa constatação, torna-se questionável, do ponto de vista ético, a decisão de uma empresa europeia instalar
esse tipo de empreendimento em um local que apresente tal saturação de poluentes”.

7- Atuação do Ministério Público


Encontram-se em andamento quatro volumosos Inquéritos Civis e um Criminal no âmbito do Ministério Público Federal e
Estadual do Rio de Janeiro, sendo o do MPF de quase 4 mil folhas. Alguns exemplos de violações que constam nestes inquéritos:

Violação de direito dos trabalhadores/Acidentes de trabalho – As obras da empresa foram interditadas pelo MPT por conta de
acidentes de trabalho. O MPT também iniciou duas ações civis públicas contra a companhia.

Instauração de Inquérito Criminal no MPT contra a empresa levou a incursões diárias de fiscais na localidade da Baía de
Sepetiba. Na primeira visita, a Procuradoria do Trabalho interditou as obras da TKCSA por irregularidades como ausência
de condições de segurança no trabalho e de Equipamentos de Proteção Individual (EPI). Dias depois, o MPT retornou ao
canteiro de obras para outra blitz e constatou que as irregularidades continuavam. Na ocasião, promoveu a interdição das
obras da TKCSA por violação de cláusulas trabalhistas e de segurança no trabalho. Ficou determinado, posteriormente, que

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CASO TKCSA – ThyssenKrupp
Companhia Siderúrgica do Atlântico

a TKCSA comparecesse ao MPT para assinar o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), sob pena de multa.

Ministério Púbico Federal move, em 7 de abril de 2006, ação civil pública contra a Companhia Docas do Rio de Janeiro e
a Feema, com pedido de liminar, e acumulada com uma ação de improbidade administrativa e pleiteia, entre outros, para
que o material retirado das obras de dragagem do canal de acesso ao Porto de Sepetiba seja depositado, após tratamento
necessário, em local situado a pelo menos seis milhas da costa e a condenação dos réus a pagamento de indenização.

Ligação da empresa com grupos milicianos na região – Uma das denúncias mais graves contra a TKCSA foi feita durante a
Audiência Pública realizada na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro pela Comissão de Direitos Humanos, em março de
2009. Essa ligação foi denunciada pelos pescadores e pelo advogado deles ao Ministério Público e a outras autoridades locais,
em março de 2008, por meio de cartas e comunicados. Em comunicação oficial, o advogado Victor Mattar Mucare solicitou
ao Ministério Público Federal/RJ, no âmbito do Procedimento no 1.30.012.000035/2006-19, a apuração de denúncias de
ameaças contra a integridade dos pescadores. Solicitou que esta instituição tomasse providências imediatas para proteger e
garantir a segurança dos cidadãos e pescadores da Baía de Sepetiba.
Ministério Público Federal, em março de 2008, apontou irregularidades cometidas pela TKCSA na construção da ponte de
4 km na Baía de Sepetiba, que não teve autorização da Secretaria do Patrimônio da União, exigência legal por se tratar de
terreno da Marinha e do mar territorial.
Em junho de 2008, o Ministério Público Federal advertiu o Estado e o Ibama sobre irregularidades no licenciamento
ambiental das obras de implantação da usina e que recomendou ao Estado a suspensão da licença concedida pela Feema.
Neste mesmo mês, o Ministério Público Federal, através de inquérito civil, questionou o processo de licenciamento da
TKCSA, por exemplo, pelo fato de o empreendimento não ter sido licenciado pela instância federal, o Ibama, e apresentar
uma celeridade pouco vista no andamento de processos desta natureza, ainda mais se tratando da maior usina siderúrgica
do mundo.
O Procurador do Ministério Público Federal, Dr. Maurício Manso, determinou fiscalização pelo Ibama, o que resultou no
embargo das obras da TKCSA. Processo 02022.000010/2008-88, emitido em 3 de janeiro de 2008.
Em agosto, o Ministério Público do Trabalho denunciou a TKCSA por problemas trabalhistas referentes a 120 trabalhadores
chineses mobilizados para a construção da usina sem contrato de trabalho17.
Em vistoria realizada nas obras da TKCSA pelos Técnicos Periciais do Grupo de Apoio Técnico Especializado (Gate) do
Ministério Público Estadual (MPE), nos dias 13 e 14 de agosto de 2007, foram constados danos ambientais relevantes e várias
não conformidades ambientais, todas documentadas através de registro fotográfico. Também houve a constatação de que a
empresa vinha conduzindo as obras sem o menor respeito ao que teria sido definido no EIA-Rima. Segundo o relatório do
Gate do MPE, além das inúmeras irregularidades, o EIA-Rima conteria até mesmo assinaturas falsificadas. Principais pontos

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CASO TKCSA – ThyssenKrupp
Companhia Siderúrgica do Atlântico

destacados pelo relatório do Gate: traçado da ponte; contaminação dos solos e da água na Baía de Sepetiba; lançamento dos
efluentes da usina termelétrica; validades das licenças prévias; programa de manejo da avifauna; programa de monitoramento
das comunidades aquáticas; programa de monitoramento e preservação dos manguezais; programa de compensação pela
exclusão da atividade de pesca; modificações no Canal de São Fernando; falsificação de assinaturas.
Ação penal do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (Gate/CAOp), em dezembro de 2010, denuncia a TKCSA, o
diretor de projetos Friedrich-Wilhelm Schaefer e o gerente ambiental Álvaro Barta Boechat por crimes ambientais (pena de até
19 anos). A denúncia foi complementada por diversos relatórios técnicos do Inea, além de um estudo realizado pelo Instituto
de Geociências da UFRJ, atestando aumento de 600% na concentração média de ferro na área de influencia da TKCSA.
Em junho de 2011, a TKCSA é denunciada pelo Ministério Público Estadual por crimes ambientais pela segunda vez. De acordo
com o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do MPRJ, os réus não adotaram medidas de
precaução ao acionar o Alto Forno 2, em dezembro, tampouco comunicaram os órgãos ambientais competentes sobre os
impactos ambientais que seriam gerados.
Neste mesmo mês, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro denunciou por crimes ambientais a Usiminas e cinco
de seus prepostos, Bruno Menezes de Melo, Ricardo Salgado e Silva, Marta Russo Blazek, Monica Silveira e Consta Chang, por
apresentarem relatório de auditoria ambiental parcialmente falso e enganoso, inclusive por omissão, ao Instituto Estadual do
Ambiente (Inea), para instruir o processo de licenciamento da TKCSA.

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CASO TKCSA – ThyssenKrupp
Companhia Siderúrgica do Atlântico

1 As principais fontes de informação desta seção são: 1 - Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA) - Impactos e irregularidades na zona oeste do Rio de Janeiro. Novembro de 2009. 2ª edição
revisada e atualizada. Instituto de Políticas Alternativas do Cone Sul (Pacs) e Fundação Rosa Luxemburgo; 2 - Avaliação dos Impactos Socioambientais e de Saúde em Santa Cruz Decorrentes
da Instalação e Operação da Empresa TKCSA. Fiocruz, ENSP e Escola Joaquim Venâncio (por membros do GT ENSP e do GT EPSJV). 22 de setembro de 2011. Rio de Janeiro; 3 - website da própria
ThyssenKrupp CSA: http://www.ThyssenKrupp-steel-europe.com/csa/pt/. Agradecemos aos comentários de Karina Kato, pesquisadora do Pacs.
2 Esta informação foi obtida pelo Instituto Mais Democracia, no dia 12 de setembro de 2012, através da lei de acesso à informação.
3 Projeto de autoria do vereador Oswaldo Luís, Lei no 1208/88 de 23 de março de 1988.
4 Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA) - Impactos e irregularidades na zona oeste do Rio de Janeiro. Novembro de 2009. 2ª edição revisada e atualizada. Instituto de Políticas Alternativas do
Cone Sul (Pacs) e Fundação Rosa Luxemburgo.
5 Devido a um acidente na década de 1990 envolvendo a antiga companhia Ingá Mercantil, que produzia lingotes de zinco, a Baía de Sepetiba apresenta um grande passivo ambiental. A empresa
faliu em 1998, deixando a céu aberto na Ilha da Madeira cerca de 3 milhões de toneladas de lixo químico – chumbo, cádmio e zinco. Houve vazamento desses produtos ao longo dos últimos anos
em sucessivos desastres ambientais. Segundo uma estimativa da Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (Feema), a Baía de Sepetiba recebeu em suas águas, durante anos, cerca de
100 toneladas de metais pesados a cada ano, oriundos do dique da Ingá. Apesar da ausência de medidas de reparação ao meio ambiente por parte do governo do estado e dos dirigentes da falida
companhia, nos últimos anos, esses resíduos passaram por um processo de sedimentação no fundo da Baía, reduzindo a contaminação do local com o passar do tempo.
6 Existem outras tecnologias mais seguras para tratar o material contaminado que nem sequer foram consideradas pela empresa, como o encapsulamento ou a disposição final do material em aterros
industriais licenciados.
7 G1, “Relatório da OMS diz que Grande Rio tem ar mais poluído que Grande SP”, 26 de setembro de 2011.
8 O Globo, “Estado ofereceu terreno em Campo Grande à Hyundai e à Toyota áreas em Resende e no Açu”, 6 de maio de 2008.
9 O Globo, “Dragagens e circulação de navios tiram o ganha-pão dos pescadores – resultaram na interrupção da geração de renda dos pescadores”, 10 de agosto de 2008.
10 O Dia, “Trabalhadores sem salário e com uma refeição por dia”, 13 de agosto de 2009.
11 Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA) - Impactos e irregularidades na zona oeste do Rio de Janeiro. Novembro de 2009. 2ª edição revisada e atualizada. Pág. 57. Instituto de Políticas
Alternativas do Cone Sul (Pacs) e Fundação Rosa Luxemburgo.
12 A partir do documento Linha do Tempo Sobre o Caso TKCSA - 2005 a 2011. In: plataformabndes.org.br/Biblioteca/Publicações/Análises do Desenvolvimento).
13 O Dia, “Obra parada na CSA - O Ibama embarga obra uma vez que a TKCSA havia suprimido o dobro da área de mangue licenciada para a construção de uma ponte”, 21 de dezembro de 2007.
14 Feema é extinta e dá lugar ao Inea no RJ. O governo do estado do Rio de Janeiro criou através da Lei nº 5.101, de 4 de outubro de 2007, o Instituto Estadual do Ambiente (Inea) com a missão
de proteger, conservar e recuperar o meio ambiente para promover o desenvolvimento sustentável. O novo instituto, instalado em 12 de janeiro de 2009, unifica e amplia a ação dos três órgãos
ambientais vinculados à Secretaria de Estado do Ambiente (SEA): a Fundação Estadual de Engenharia e Meio Ambiente (Feema), a Superintendência Estadual de Rios e Lagoas (Serla) e o Instituto
Estadual de Florestas (IEF). Disponível em: http://www.pmanalysis.com.br/noticias/83-feema-e-extinta-e-da-lugar-ao-inea-no-rj. Acesso em: 21 de setembro de 2011.
15 “Solicitação para que o Conama tome as providências cabíveis, clamando pela responsabilização dos órgãos competentes e pela execução de medidas e condições cabíveis, para que a TKCSA no
Rio de Janeiro respeite a legislação ambiental brasileira.” Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs). Rio de Janeiro, 23 de agosto de 2012.
16 “Ver: Parlamento Europeu. Directiva 2008/1/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho de 15 de janeiro de 2008, relativa à prevenção e ao controle integrados da poluição 2008” [Nota no original].
17 O Globo, “Procuradoria entra com ação civil pública contra CSA”, 13 de agosto de 2008.

144
UHE Belo Monte 1

1- Descrição do empreendimento
Empreendimento do Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC), a UHE Belo Monte, construída no Rio
Xingu, Pará, é considerada a terceira maior hidrelétrica do
mundo. Sua potência instalada será de 11.233,1 MW/ano,
apesar de sua produção média ser de apenas 4.571 MW/ano.
O custo estimado da obra é de R$ 26 bilhões, e o reservatório

Mitchell Anderson/Jungle Dispatch


alagará pelo menos 516 km².
Belo Monte impactará direta e indiretamente onze municípios:
Altamira, Anapu, Brasil Novo, Gurupá, Medicilândia, Pacajá,
Placas, Porto de Moz, Senador José Porfírio, Uruará e Vitória do
Xingu. Estes municípios perfazem uma área total de mais de 25
milhões de hectares, correspondendo a cerca de 20% do estado
do Pará. Cerca de 70% desta área é constituída de unidades de
gestão especial (unidades de conservação, terras indígenas,
terras quilombolas e áreas militares). Mais de 300 mil pessoas vivem na região, que tem como elementos integradores a
rodovia Transamazônica e o Rio Xingu. Altamira é o maior centro urbano local, com mais de 70 mil habitantes.
O leilão de Belo Monte ocorreu em abril de 2010, com vitória do Consórcio Norte Energia S.A. (Nesa). Atualmente, o
empreendimento é composto do Grupo Eletrobras (Eletrobras: 15%, Chesf: 15% e Eletronorte: 19,98%), de Entidades de
Previdência Complementar (Petros: 10%, Funcef: 5%), do Fundo de Investimento em Participações (Caixa FIP Cevix: 5%), da
Sociedade de Propósito Específico Belo Monte Participações S.A. (Neoenergia S.A.): 10,%, Amazônia (Cemig e Light): 9,77%),
de Autoprodutoras (Vale: 9%, Sinobras: 1%) e da J. Malucelli Energia (0,25%).
Responsável pelas obras de Belo Monte, o Consórcio Construtor Belo Monte (CCBM) é formado por 10 empresas: Andrade
Gutierrez, Camargo Corrêa, Odebrecht, Queiroz Galvão, OAS, Contern, Galvão, Serveng, J. Malucelli e Cetenco.

2- Valor do empréstimo
Em abril de 2010, a diretoria do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) anunciou que assumiria
o financiamento de 80% das obras de Belo Monte – R$ 24,5 bilhões –, com condições especiais de pagamento (carência de
até seis meses após a data prevista para o início comercial de cada conjunto de turbinas, amortização de até 25 anos, com
periodicidade mensal, através do Sistema de Amortização Constante (SAC) ou PRICE, com prazo estendido de até trinta anos).
Quanto ao custo financeiro, serão aplicadas a Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP), com Remuneração Básica do BNDES de
0,5%/ano, a Taxa de Risco de Crédito de 0,46%/ano até 2,54%/ano, dependendo da classificação de risco do projeto, a Taxa de
Intermediação Financeira de 0,5%/ano e a remuneração da Instituição Financeira Credenciada negociada entre as partes.

145
UHE Belo Monte

Em meados de 2011, o Banco concedeu um primeiro empréstimo-ponte de R$ 1,1 bilhão à Norte Energia, sem análise de risco
econômico e ambiental. Um segundo empréstimo-ponte de R$ 1,8 bilhão foi concedido em fevereiro de 2012. Os repassadores
dos recursos foram a Caixa Econômica Federal (que repassou R$ 1,5 bilhão) e o banco líbio ABC (que repassou R$ 300 milhões).
Ainda em janeiro de 2012, portanto pouco antes da concessão do segundo empréstimo-ponte, o Ministério Público Federal
(MPF) solicitou ao Banco Central (BC) que analisasse o primeiro aporte do BNDES em Belo Monte para verificar a regularidade
do empréstimo em face da envergadura da operação, que pode ser a maior da história do BNDES.
O Banco Central negou o pedido do MPF alegando que uma fiscalização do financiamento de Belo Monte não estaria
“enquadrado entre as prioridades incluídas na sua programação”. Em fevereiro, o MPF pediu reconsideração alegando que a
operação envolve “empreendimento questionado em diversas ações judiciais, em área de atividade em que as alterações de
custo são frequentes e, portanto, possuem potencialidade considerável de afetar a própria análise de risco”. Mesmo assim,
nenhuma medida concreta neste sentido foi encaminhada.
Somado o repasse de R$ 3,7 bilhões via Plano de Sustentação do Investimento aos dois empréstimos-ponte, o BNDES
já aportou R$ 6,6 bilhões em Belo Monte sem a realização de nenhum estudo de risco e viabilidade econômicos do
financiamento. É importante frisar que o segundo empréstimo-ponte foi concedido apesar de pesar sobre a Norte Energia uma
autuação com multa de R$ 7 milhões do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) por
descumprimento de condicionantes socioambientais, o que fere as salvaguardas do próprio banco. De acordo com o BNDES,
entre os critérios que deve aplicar em operações de financiamento estão a análise das “regularidades fiscal, previdenciária e
ambiental do beneficiário e do empreendimento” e “o cumprimento de eventuais medidas mitigadoras, obrigações em termos
de ajuste de conduta e condicionantes presentes no contrato e nas licenças ambientais, quando for o caso” .

3- Impactos socioambientais
Contabilizando agricultores e moradores das áreas rurais e urbanas, o Ministério Publico Federal no Pará estima que 40 mil
pessoas terão suas casas e terras desapropriadas e/ou impactadas por Belo Monte. De acordo com o último levantamento da
Universidade Federal do Pará (UFPA), realizado a pedido do MPF no início de 2012, o número de pessoas a serem desalojadas
apenas na zona urbana de Altamira, município-sede de Belo Monte, ultrapassa 25 mil. Este dado contradiz a estimativa inicial
da Norte Energia que previu a expulsão de 16,4 mil pessoas de suas moradias.
Concomitantemente aos despejos das populações da região de impacto de Belo Monte, a chegada a Altamira de milhares
de pessoas (a estimativa do MPF é que 100 mil migrantes podem chegar no período de construção da usina), atraídas pela
perspectiva de emprego, instalou um estado de caos no município-sede da hidrelétrica. Além de hospitais e escolas terem
entrado em colapso, a violência na cidade ter dobrado e os casos de estupros se multiplicado, Altamira bateu recorde de
desmatamento nos últimos dois anos. Bastante grave é que, em meio a tantos impactos irreversíveis, as populações indígenas
seguem ignoradas no seu direito constitucional, previsto também na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho
(OIT), de serem consultadas sobre a usina pelo Congresso Nacional.

146
UHE Belo Monte

Para mitigar minimamente os impactos previstos de Belo Monte, foram anexadas às licenças ambientais da usina várias
condicionantes (a Licença Prévia previu 40 condicionantes ambientais e 26 condicionantes indígenas, e a Licença de Instalação,
22 condicionantes ambientais) que não foram cumpridas pelo Consórcio Norte Energia.
De acordo com o MPF, as condicionantes estabelecidas para a liberação da Licença Prévia acabaram sendo incorporadas em
uma licença parcial de instalação e, posteriormente, na Licença de Instalação. Um levantamento oficial do Ibama, divulgado em
janeiro de 2012 e que avaliou as 22 condicionantes da Licença de Instalação (concedida em junho de 2011), aponta que apenas
uma havia sido atendida até este prazo.
Aos problemas estruturais (falta de escolas, hospitais e saneamento, caos na saúde, violência, etc.), somam-se os problemas
causados diretamente pelo empreendimento. Entre os setores mais atingidos pelo estágio inicial da obra, destacam-se:

Moradores de Altamira
Em função da atração de centenas de trabalhadores e migrantes para a região de Altamira (ao menos 10 mil em 2011), desde 2010
a cidade tem vivido um boom imobiliário que aumentou o preço do aluguel de todos os tipos de imóveis, inclusive das moradias
mais simples nas áreas alagadas da cidade. De acordo com denúncias colhidas pelo Movimento Xingu Vivo Para Sempre (MXVPS),
principal organização de oposição à usina na região, aluguéis que custavam R$ 50/mês passaram a mais de R$ 200, desalojando
parte da população mais pobre do município. Em junho de 2011, centenas de famílias despejadas fizeram vários movimentos
de ocupação de terrenos em Altamira, mas foram violentamente reprimidas pela polícia. Nenhuma família urbana havia sido
reassentada até meados de 2012, e as populações virtualmente atingidas pelo alagamento da cidade no final do processo de
construção do lago de Belo Monte ainda não receberam nenhuma informação concreta sobre projetos de desalojo e realocação.

Agricultores e ribeirinhos da Volta Grande do Xingu


Das 1.540 propriedades rurais na área de impacto de Belo Monte, 600 foram desapropriadas pela Norte Energia até meados de 2012.
Desde 2010, quando se iniciou o processo de despejo destas famílias através de coerção, negociação ou ordens judiciais, muitas
não receberam indenizações (principalmente as que não detêm a titulação da terra ou moram em áreas arrendadas) ou receberam
indenizações mínimas. De acordo com reportagem da Folha de S.Paulo de agosto de 2012, “a Defensoria Pública do Pará ajuizou
treze ações pedindo o reassentamento de pessoas excluídas da indenização. Outras dezenas de casos estão em análise. Já houve três
decisões liminares a favor dos moradores e cinco contrárias. Além disso, a Norte Energia entrou com 28 ações de desapropriação.
Destas, 26 tiveram liminar pela expulsão das famílias. A indenização é depositada na Justiça, sem previsão de pagamento”.

Pescadores da Volta Grande do Xingu


Em setembro de 2011, a Colônia de Pescadores Z-57, de Altamira, ajuizou uma Ação Ordinária (processo nº 34557-
02.2011.4.01.3900) contra o Ibama e a Norte Energia “alegando que as obras da usina, em especial a construção de ensecadeiras,
impediriam a pesca e a trafegabilidade no Rio Xingu, que os igarapés ficariam secos e a água, imprópria para o consumo e para

147
UHE Belo Monte

a vida dos peixes, o que prejudicaria a ictiofauna e os pescadores, sem que nenhum tipo de abordagem aos seus filiados tivesse
sido realizado quanto ao monitoramento, questionamento e pesquisa dos impactos negativos”. Na ação, a Colônia pediu a
“indenização dos seus quase 1.200 filiados, levando-se em consideração o tempo de cinco anos para a repovoação das espécies
de peixe e de sete anos de perdas de atividades de pesca, pleiteando, em sede de liminar, que fosse proibida a continuidade das
obras no leito do Rio Xingu até que ocorresse a justa e prévia indenização, ou a condenação dos réus ao pagamento de perdas e
danos no valor de mais de R$ 218 milhões de reais”. O pedido de liminar foi indeferido pela Justiça.

Em pouco tempo, porém, os impactos previstos se confirmaram. De acordo com depoimentos de pescadores da Vila de Santo
Antônio, comunidade já desalojada pela Norte Energia, a pesca teve uma queda de mais de 80% nos seis primeiros meses
de 2012. Por não serem proprietários de títulos patrimoniais, como agricultores e ribeirinhos, os pescadores ainda não têm
assegurado nenhum tipo de compensação. Advogados da Norte Energia têm tentado negociar isoladamente alguns acordos de
indenização, rejeitados inicialmente pelos pescadores tanto de Altamira quanto de Vitória do Xingu.

Populações indígenas
A Bacia do Xingu é habitada por 24 etnias que ocupam trinta Terras Indígenas (TIs) (doze no Mato Grosso e dezoito no Pará).
Todas estas populações serão direta ou indiretamente afetadas à medida que o Rio Xingu e sua fauna e flora, além do seu entorno,
serão alterados pela usina. Na região de influência direta da usina, três Terras Indígenas estão sendo diretamente impactadas: a
TI Paquiçamba, dos índios Juruna; a área dos Arara da Volta Grande, que se situa no trecho de 100 km do rio que terá sua vazão
drasticamente reduzida; e a TI Trincheira Bacajá, localizada às margens do Rio Bacajá, afluente do Xingu, que deve sofrer impactos
diretos, mas os estudos referentes a esta área, habitada majoritariamente por indígenas da etnia Xikrin, ainda estão inconclusos.

A principal violação dos direitos indígenas pela usina de Belo Monte foi a autorização do início das obras sem que se tivesse
cumprido o processo de consultas (oitivas indígenas) previstas na Constituição Federal e na Convenção 169 da OIT. O fato levou
o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) a cancelar, em agosto de 2012, o decreto do Congresso Nacional que autorizou
as obras da usina e as licenças de Belo Monte, decisão posteriormente invalidada por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).

Além deste desacato constitucional – que levou a questionamentos do Brasil pela Comissão Interamericana de Direitos
Humanos em abril de 2011 –, as condicionantes indígenas também seguem descumpridas. Em dezembro de 2011, o MPF
oficiou a Norte Energia sobre o fato. Entre as medidas não cumpridas, constavam a reestruturação do atendimento à saúde
indígena, a demarcação e regularização de áreas, a retirada de não indígenas das terras indígenas, a implementação de
corredores ecológicos, a melhorias nos serviços de educação, entre outras.

Em junho de 2012, a falta de cumprimento das condicionantes levou à ocupação da principal barragem provisória (ensecadeira)

148
UHE Belo Monte

de Belo Monte, no canteiro de obras Pimental. Os indígenas permaneceram no local por mais de duas semanas, mas os acordos
firmados com a Norte Energia seguiram descumpridos nos meses seguintes.

Em agosto, nova ação dos indígenas levou à retenção de três engenheiros da Norte Energia na TI Paquiçamba, uma vez que não
houve esclarecimento satisfatório sobre os mecanismos que deverão permitir a transposição da ensecadeira de Pimental com o
fechamento total da barragem, pleiteado pela Norte Energia. O Consórcio e a Fundação Nacional do Índio (Funai) foram instados
a fornecer estas explicações, o que não foi cumprido no período conseguinte, apesar da promessa das duas instituições.

Trabalhadores do consórcio construtor Belo Monte


Três grandes greves, motivadas por violações de direitos trabalhistas, paralisaram as obras de Belo Monte no processo inicial de
construção da usina. Em novembro de 2011, os trabalhadores cruzaram os braços para exigir o pagamento de horas extras aos
sábados, o cumprimento do acordo sobre as folgas de noventa dias, o aumento do vale-alimentação e a instalação de telefones
no canteiro. Os operários também pediam o aumento do contingente de fiscalização de seguranças do trabalho, que garantiria
a coibição de desvio de função. Cerca de 400 operários foram demitidos antes de o Consórcio fechar os acordos e aceitar o
atendimento parcial das reivindicações.

Já no final de março de 2012, cerca de 5 mil trabalhadores entraram em greve geral após a morte de um trabalhador no canteiro
de obras do Sítio Pimental. As reivindicações foram aumento salarial, redução dos intervalos entre as baixadas (visita dos
trabalhadores a suas famílias) de seis pra três meses, não rebaixamento do pagamento e solução de problemas com a comida e
a água. A paralisação foi suspensa nove dias depois e houve a demissão de 170 funcionários. Em 23 de abril, porém, nova greve
parou as obras.

Criminalização dos ativistas sociais


O Movimento Xingu Vivo Para Sempre (MXVPS) tem sido constante alvo de ações de criminalização e tentativas de coerção por
parte do consórcio Norte Energia. Durante a cobertura da greve de novembro de 2011, o jornalista do movimento chegou a ser
ameaçado de morte por dois homens que supostamente estavam a serviço da empresa.

Nesta primeira greve, este jornalista e uma coordenadora do MXVPS, além de outros dois integrantes do movimento, foram alvo
de uma ação de interdito proibitório da Norte Energia, que os acusou de molestar seu patrimônio, interditar a BR-230 “numa
espécie de parede humana, invadindo os ônibus da empresa e provocando distúrbios, tais como bater nos vidros e laterais dos
ônibus [e] obrigar que os motoristas abandonassem os veículos, gritando palavras intimidatórias”. Além de fazer tais acusações
fantasiosas, o consórcio construtor exigiu que os réus fossem proibidos de circular em vias públicas e de impedir o andamento
das obras. A liminar foi parcialmente deferida pela Justiça.

149
UHE Belo Monte

No início de junho de 2012, um novo interdito contra os mesmos ativistas e contra o MXVPS proibiu-os de fazer qualquer ação
nas propriedades desapropriadas pela Nesa na Vila de Santo Antônio, de onde despejou cerca de 200 famílias, destruindo casas e
interditando o cemitério.

No final daquele mesmo mês, o consórcio pediu a prisão preventiva de onze pessoas ligadas ao movimento por danos
causados a sua estrutura durante o encontro Xingu+23, preparatório para a Cúpula Rio+20, a Conferência das Nações Unidas
sobre Desenvolvimento Sustentável. Até o final de agosto, o processo não havia sido encaminhado à Justiça pelo Ministério
Público Federal.

Danos ambientais
A construção de Belo Monte diminuirá drasticamente a vazão de 100 km do Rio Xingu, tornando virtualmente impossível a
sua navegação, a pesca e demais usos do rio após o fechamento da barragem da usina. O barramento provisório do rio desde
o início de 2012 já tornou suas águas impróprias para consumo nas aldeias indígenas Paquiçamba e Arara da Volta Grande,
causou a diminuição drástica da população de peixes na Volta Grande e, em junho de 2012, causou a morte de milhares de
filhotes de tartaruga no Tabuleiro do Embaubal, conjunto de praias sazonais do Rio Xingu, entre os municípios de Vitória
do Xingu e Senador José Porfírio. O Tabuleiro é considerado a maior área de reprodução da espécie tartaruga amazônica
(Podocnemis expansa).

Já em relação ao desmatamento, Altamira liderou o ranking do desmatamento na Amazônia em maio e outubro de 2011 e em
julho de 2012 (mês em que foram destruídos 48,96 km² de floresta no município). Segundo a Organização Não Governamental
Imazon, a expectativa da construção de Belo Monte é o fator que melhor explica estes números.

4- Condicionantes ou salvaguardas do BNDES

Não há nenhuma informação que conste que o BNDES cumpriu suas obrigações neste sentido.

5- Condicionantes dos órgãos ambientais (estadual ou federal)

A Licença Prévia (LP) de Belo Monte foi concedida pelo Ibama, em fevereiro de 2010, com quarenta condicionantes
ambientais e 26 indígenas. Entre as condicionantes ambientais, constavam início da construção e reforma de equipamentos
de educação/saúde em Altamira e Vitória do Xingu; início das obras de saneamento básico nesses municípios; implantação
do saneamento básico em Belo Monte antes da construção dos alojamentos; entre outras. Já entre as condicionantes
indígenas, destacam-se demarcação física das Terras Indígenas (TIs) Arara da Volta Grande e Cachoeira Seca; levantamento

150
UHE Belo Monte

fundiário e desintrusão da TI Apyterewa; redefinição de limites da TI Paquiçamba, com acesso ao reservatório; ilhas no
Rio Xingu entre as TIs Paquiçamba e Arara da Volta Grande para usufruto exclusivo dessas comunidades; todas as TIs
regularizadas (demarcadas e homologadas); entre outras.

Nenhuma destas condicionantes foi cumprida no prazo estipulado e muitas não saíram do papel dois anos após o primeiro
licenciamento. Quando o Ibama concedeu ao empreendimento a Licença de Instalação (LI) em junho de 2011, o fez atropelando
seus próprios critérios e restabeleceu novo quadro de condicionantes a ser cumprido no período pós LI. Para os indígenas, as
novas medidas previam:
- Criação de um comitê indígena para controle e monitoramento da vazão que inclua mecanismos de acompanhamento,
preferencialmente nas terras indígenas, além de treinamento e capacitação, com ampla participação das comunidades – prazo
de 45 dias após a LI;
- Formação de um Comitê Gestor Indígena para as ações referentes aos programas de compensação da AHE Belo Monte –
prazo de 30 dias após a LI;
- Definição clara de mecanismos de transposição das embarcações pelo barramento – prazo de 20 dias após a LI;
- Implementação do Plano de Proteção das TIs – prazo de 40 dias após a LI;
- Apresentar estudo complementar do Rio Bacajá – prazo de 310 dias após a LI;
- Apresentar plano operativo com cronograma de execução das atividades do PBA, após manifestação da Funai – prazo de 35
dias após a LI;
- Apresentar trimestralmente modelagem sobre o adensamento da população na região - prazo de 90 dias após a LI.

Novamente, nenhuma destas condicionantes foi cumprida no prazo.

O mesmo se deu com as novas 23 condicionantes ambientais da LI, que previam, entre outras: finalização das obras de
saneamento, um programa de Monitoramento dos Aspectos Socioeconômicos nas áreas de saúde e educação; implantação dos
equipamentos de saúde e educação; recuperação das Áreas de Preservação Permanente (APPs) do Rio Xingu e de seus afluentes.
Nenhuma delas foi cumprida até junho de 2012, mais de um ano após a concessão da Licença de Instalação.

151
UHE Belo Monte

6- Atuação do Ministério Público

Desde 2011, o Ministério Público Federal no Pará impetrou quinze ações contra Belo Monte, conforme tabela abaixo:

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UHE Belo Monte

153
UHE Belo Monte

1 Agradecemos à jornalista Verena Glass pelas importantes contribuições e comentários.

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Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira
UHE Santo Antônio e UHE Jirau 1

1- Descrição do empreendimento

O projeto do Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira é


composto de duas usinas de grande porte: Santo Antônio, a
5 km da capital de Rondônia, Porto Velho, e Jirau, a 135 km
de Porto Velho. Juntas, as duas hidrelétricas devem inundar
cerca de 530 km2 (Santo Antônio alagará 271 km2 e Jirau, 258
km2) e têm previsão de custo de R$ 28,6 bilhões.

Alexis Bastos/Rioterra
UHE Santo Antônio
Santo Antônio, a maior das duas usinas do Madeira, terá uma
potência instalada de 3.150 MW e energia média de 2.218
MW. Com custo estimado de R$ 15,1 bilhões, a tarifa média da
energia produzida pela usina será de R$ 78,87 por MW/hora.

Vencedor do leilão de concessão do projeto hidrelétrico Santo Antônio, realizado em dezembro de 2007, o Consórcio Santo
Antônio Energia S.A. é formado pelas empresas Furnas Centrais Elétricas (39%); Fundo de Investimento (FIP) formado por
Banif, Santander e FI-FGTS (20%); Odebrecht Investimentos em Infraestrutura (18,4%), Odebrecht Engenharia e Construção
(1%); Andrade Gutierrez (11,6%); e Cemig (10%). O Consórcio Construtor Santo Antônio (CCSA), contratado pela Santo Antônio
Energia S.A. para realizar as obras, é composto do Consórcio Santo Antônio Civil (CSAC), do Grupo Industrial do Complexo Rio
Madeira (Gicom) e da Construtora Norberto Odebrecht (CNO).

UHE Jirau
A hidrelétrica de Jirau terá uma potência instalada de 3.300 MW e energia média de 1.975 MW. A um custo estimado de R$ 13,5
bilhões, a usina está sendo construída pela empresa Energia Sustentável do Brasil S.A., vencedora da licitação realizada em
maio de 2008. O Consórcio Energia Sustentável do Brasil é formado pelas empresas GDF Suez (50,1%); Eletrosul (20%); Chesf
(20%); e Camargo Corrêa Investimento em Infraestrutura (9,9%).

2- Valor do empréstimo

As duas usinas do Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira foram incluídas no Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) do
governo federal e receberam financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) de R$ 13,3

155
Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira
UHE Santo Antônio e UHE Jirau

bilhões. As Sociedades de Propósito Específico (SPEs) criadas para a construção das UHES de Santo Antônio e Jirau podem
ter do BNDES até 85% dos itens financiáveis, com o limite de 75% do investimento total. Metade desse financiamento pode ser
concedido diretamente pelo BNDES e os outros 50% repassados pela rede de agentes financeiros credenciada, entre eles Banco
do Brasil, Caixa Econômica Federal, Banco do Nordeste, Bradesco e Itaú-Unibanco. Os tetos dos desembolsos para cada um
dos empreendimentos já foram predefinidos, mas ainda podem ser dilatados.

Em dezembro de 2008 foi aprovado pelo BNDES um empréstimo no valor de R$ 6,1 bilhões para a Santo Antônio Energia (Saesa).
Em fevereiro de 2009, o BNDES aprovou R$ 7,2 bilhões para o consórcio Energia Sustentável do Brasil (ESBR), responsável
pela construção da UHE de Jirau, maior valor financiado pelo Banco para um único projeto até então (R$ 3,6 bilhões foram
desembolsados em 29 de junho do mesmo ano, e os outros R$ 3,6 bilhões são financiamentos indiretos, repassados ao grupo dos
seguintes bancos: Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Bradesco BBI, Unibanco e Banco do Nordeste)2.

O valor total de financiamento de cada um dos projetos foi estimado em R$ 9 bilhões, faltando pouco, em ambos os casos, para que
se chegasse ao limite máximo estabelecido (75% sobre o total) pelo BNDES. Além dos empréstimos diretos do BNDES chegando a
60% e 70% dos investimentos totais das duas UHES, o Conselho Deliberativo da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia
(Sudam) aprovou, em 2008, um empréstimo de R$ 503 milhões com recursos do Fundo Constitucional de Financiamento do Norte
(FNO) para a construção da hidrelétrica de Santo Antônio. O Fundo de Investimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço
(FI-FGTS) garantiu uma participação na Saesa, sucedendo a participação do Banco Santander no Fundo de Investimento em
Participações (FIP) Amazônia Energia, e também adquiriu R$ 1,5 bilhão em debêntures emitidas pelo Consórcio3.

Quanto às condições de pagamento, o complexo Madeira prevê que a receita futura (direitos de receber em fluxos de energia) seja
transformada em recebíveis, antecipadamente. Assim, a amortização dos juros e do principal poderá começar antes mesmo da
operação, desde que todos os riscos estejam, desde o começo, identificados, compartilhados, geridos e mitigados. Cristaliza-se
um compromisso de todos os atores envolvidos (nesse caso, especialmente o BNDES e o governo federal) em “administrar” os
riscos previamente, o que de antemão significa uma postura defensiva diante dos custos sociais e ambientais das obras.

A consequência já verificável é o enrijecimento dos custos e riscos dentro dos parâmetros de rentabilidade já acordados. Além
disso, nos leilões de Santo Antônio e Jirau, foi a margem potencial de lucro no mercado livre, hoje oferecendo o MW/h a R$
130, em média, que definiu o valor oferecido ao mercado cativo (R$ 78,87 e R$ 71,40, respectivamente). Desse modo, entram
na composição da taxa de retorno a antecipação da operação das usinas e a consequente flexibilização da regulamentação
setorial, trabalhista, ambiental e social, bem como a fiscalização correspondente, para que se obtenha o máximo
aproveitamento no mais curto espaço de tempo.

156
Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira
UHE Santo Antônio e UHE Jirau

Os dois consórcios pretendiam, por isso, antecipar a operação em até onze meses e contavam com a anuência da Agência
Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e do Ministério das Minas e Energia (MME). A velocidade de execução das obras tornou-se
uma variável crucial para a viabilidade econômica dos empreendimentos, na contramão das precauções e garantias sociais
e ambientais. Acelerados cronogramas de execução das obras são a contraparte da letargia na aplicação dos programas de
compensação e de mitigação, desproporção que evidencia negligência ante a população que vive ao longo do Rio Madeira e
seu meio ambiente4.

3- Impactos socioambientais

Violações trabalhistas
Segundo a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego no Estado de Rondônia (SRTE/RO), as obras das hidrelétricas
de Santo Antônio e Jirau acumulam mais de mil autuações por violação à legislação trabalhista, incluindo várias mortes nos
canteiros das duas obras.
Entre as principais violações trabalhistas ocorridas desde o início das obras, constam uso ilegal de medidas coercitivas pela
segurança patrimonial; utilização de um “cartão fidelidade” para o pagamento de vantagens fora da folha de pagamento “para
empregados que não faltam, não tiram férias, não adoecem e não visitam a família”; jornadas de mais de dez horas diárias;
desrespeito ao intervalo intrajornada de onze horas e repouso semanal remunerado; e tratamento diferenciado e inferior para
trabalhadores contratados fora do estado de Rondônia, por intermediadores de mão de obra. Em 2009 foram libertados 38
trabalhadores de uma empreiteira contratada para a prestação de serviços na obra da hidrelétrica de Jirau, encontrados em
condição análoga a de escravo5.

Greves e revolta dos trabalhadores


O conjunto de violações de direitos levou à eclosão de uma greve nas obras das duas usinas em setembro de 2009, com uma
revolta na obra da usina de Santo Antônio. Os problemas trabalhistas também motivaram uma intensa revolta em Jirau, em março
de 2011, que resultou na queima de 54 ônibus e de 70% do acampamento de trabalhadores na obra. A paralisação dos trabalhos
nas duas usinas perdurou até abril, com registros do uso excessivo de força pela Polícia Militar de Rondônia. A Justiça do Trabalho
concedeu medida liminar que determinou o embargo da obra e o envio desses trabalhadores para seus locais de origem, sob pena
de multa de R$ 5 mil por trabalhador em caso de descumprimento. A situação de conflitos também levou o Ministério do Trabalho
a interferir para diminuir o número de trabalhadores nos canteiros e restaurar o cronograma original das obras.

No início de 2012, a tensão voltou a aumentar nas hidrelétricas do Rio Madeira e em fevereiro um operário de Jirau morreu

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baleado em confronto com a polícia. Em março, um ano depois da primeira revolta, operários de Jirau entraram novamente em
greve, exigindo aumento no valor do auxílio-assiduidade e antecipação da data-base da categoria, atualmente em 1º de maio6.
Apesar de ter sido declarada ilegal pelo Tribunal Regional Federal da 14ª Região, a greve continuou e atingiu os canteiros de
Santo Antônio, onde também foi declarada ilegal. A paralisação só terminou no início de abril, quando as empresas concederam
7% de aumento antes da data-base, em maio, e um acréscimo de R$ 50 no valor da cesta básica para quem ganha até R$ 1.500.

Em decorrência das denúncias de violência contra trabalhadores do Complexo Madeira, em maio de 2011 a Relatoria Nacional
para o Direito Humano ao Meio Ambiente, da Plataforma de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais
(Dhesca), elaborou um documento que aponta inúmeras violações aos direitos humanos nas obras de Jirau e Santo Antônio.
O relatório é resultado de uma missão emergencial realizada em abril, motivada pelo levante dos operários de Jirau em março.
Segundo o documento, “em Porto Velho o índice de migração foi 22% maior que o previsto, os casos de estupro aumentaram
em 208% e quase 200 crianças permanecem fora da escola. (...) Centenas de crianças estão fora da sala de aula, a qualidade de
vida das comunidades piorou, houve aumento expressivo nos índices de violência, incluindo ocorrências de estupro. Apenas
na usina de Jirau eram 21 mil trabalhadores compartilhando alojamentos, denunciando surtos de viroses, jornada excessiva
de trabalho e outras más condições que a magnitude e a pressa em acabar a obra ocasionaram. As comunidades realocadas
reclamam da piora na qualidade de vida: estão em casas de alvenaria de má qualidade, longe de suas terras, onde plantavam e
colhiam, e do rio, onde pescavam. Elas afirmam que a renda hoje é muito inferior ao que recebiam antes”.7

Impactos sobre as populações indígenas


As populações indígenas afetadas pelas hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio podem ser divididas em três categorias; as
terras e os grupos indígenas diretamente impactados e identificados: Karitiana, Karipuna, Urueu-Wau-Wau e Katawixi; os
indiretamente afetados: Parintintin, Tenharim, Pirahã, Jiahui, Tora, Apurinã, Mura, Oro Ari, Oro Bom, Cassupá e Salamãi; os
grupos de índios isolados, cuja presença foi confirmada pela Fundação Nacional do Índio (Funai) no final de 2011. No processo
de licenciamento das usinas do Madeira, não houve consulta aos indígenas, como prevê a Constituição Federal e a Convenção
169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), de Rondônia, destaca dezoito situações, na Bacia do Rio Madeira, onde o extermínio
indígena é iminente. Em relação às crianças indígenas, a prostituição, o abuso sexual, o cárcere privado e a corrupção são
alguns dos impactos sociais detectados pelo Juizado da Infância nas proximidades das áreas onde são construídas as usinas
hidrelétricas do Madeira. Apesar de os Estudos de Impacto Ambiental (EIAs) das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio
mencionarem a presença de grupos indígenas isolados nas áreas de impacto, as licenças autorizando a construção das usinas,
avalizadas pela Funai, não fazem menção a esta presença.

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Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira
UHE Santo Antônio e UHE Jirau

Processo de reassentamento e indenização de comunidades removidas


Cerca de 270 famílias ribeirinhas foram removidas das margens do Rio Madeira para dar lugar ao reservatório de água da
hidrelétrica de Santo Antônio. No reassentamento de populações removidas verificou-se reclamação generalizada de piora das
condições de vida por redução da receita, assim como de má qualidade na construção das casas e vias públicas, subindenização
de terras e benfeitorias, alteração do modo de vida dos reassentados (com redução significativa da renda familiar), concessão de
lotes muito pequenos (de 3 a 9 hectares) e em área de baixa fertilidade, entre outras.

Alguns casos são considerados exemplares da piora da qualidade de vida das populações afetadas No caso da comunidade
de pescadores de Engenho Velho, as famílias tiveram o seu local de pesca interditado para a realização das obras pela Santo
Antônio Energia, além de terem sido deslocados para uma área que já tinha outros pescadores. Já os moradores de Jaci Paraná,
distrito de Porto Velho atingido pela hidrelétrica de Santo Antônio, estão sofrendo com alagamentos. Segundo os atingidos,
toda a área onde ocorreu o alagamento é pantanosa e foi modificada pela construção da usina. “Nós tínhamos uma mata que
protegia nós; eles fecharam essa área e agora quando o rio enche não dá conta de segurar e nós ficamos alagados. (...) eu moro
aqui há dez anos, tem uma senhora que mora há cinquenta e nunca aconteceu isso”, contou uma moradora8.

Impactos ambientais
Os impactos do Complexo Madeira sobre a ictiofauna do rio – personificada no “bagre” ameaçado de extinção – geraram a
primeira grande polêmica envolvendo Jirau e Santo Antônio ao serem considerados pelo presidente Lula apenas um empecilho
ao projeto energético nacional. Já em dezembro de 2008, no entanto, a construção da barragem de Santo Antônio causou
a morte de onze toneladas de peixes, e nos últimos quatro anos, segundo os pescadores, a pesca, que produzia cerca de 29
mil toneladas/ano antes das obras das hidrelétricas, está inviabilizada. Além disso, os pescadores enfrentam dificuldades para
produzir nos assentamentos e ainda dependem da ajuda financeira da concessionária para sobreviver.
Com o enchimento do lago de Santo Antônio no final de 2011, a mortandade de animais se estendeu também aos mamíferos.
Em abril de 2012, o jornal Rondônia ao Vivo publicou uma série de denúncias sobre o extermínio em massa de tatus, pacas,
cotias e outros animais silvestres. De acordo com o jornal o contrato com a empresa YKS, que fazia o resgate, foi cancelado
sem ter sido finalizado o trabalho. Por fim, de acordo com levantamentos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), as
hidrelétricas do Madeira têm sido um dos principais vetores do desmatamento na Amazônia nos últimos anos.

Violação da legislação
Uma primeira violação de acordo internacional se detecta com a falta das oitivas indígenas, impactadas pelo Complexo Madeira.
Além da própria Constituição Federal, a Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário, garante às populações tradicionais e
indígenas o direito de oitivas sobre projetos que afetem seu território. Tal consulta não ocorreu.

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Também o licenciamento ambiental das usinas do Rio Madeira ocorreu em franca violação das normas que regem os
procedimentos, contrariando, inclusive, um parecer técnico do próprio Ibama (Parecer Técnico nº 014/2007 – Cohid/CGENE/
Dilic/Ibama). Neste sentido, a autorização da mudança do eixo da hidrelétrica de Jirau em 9 km e a elevação da cota da hidrelétrica
de Santo Antônio foram feitas sem a realização de novos estudos de impacto ambiental e audiências públicas para apresentação
dessas alterações, assim como foi concedida licença parcial de instalação, que não está prevista na legislação brasileira.

No geral, como detectado anteriormente pela Comissão Especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, em
missão de 2006, sobre violações em obras de hidrelétricas, aplicam-se a Santo Antônio e Jirau as mesmas conclusões referentes
ao desrespeito ao:
1. Direito à informação e à participação;
2. Direito à liberdade de reunião, associação e expressão;
3. Direito ao trabalho e a um padrão digno de vida;
4. Direito à moradia adequada;
5. Direito à educação;
6. Direito a um ambiente saudável e à saúde;
7. Direito à melhoria contínua das condições de vida;
8. Direito à plena reparação das perdas;
9. Direito à justa negociação, tratamento isonômico, conforme critérios transparentes e coletivamente acordados;
10. Direito de ir e vir;
11. Direito às práticas e aos modos de vida tradicionais, assim como ao acesso e preservação de bens culturais, materiais e
imateriais;
12. Direito dos povos indígenas, quilombolas e tradicionais;
13. Direito de grupos vulneráveis à proteção especial;
14. Direito de acesso à justiça e à razoável duração do processo judicial;
15. Direito à reparação por perdas passadas;
16. Direito de proteção à família e a laços de solidariedade social ou comunitária.

4- Condicionantes ou salvaguardas do BNDES

Apesar da ocorrência de trabalhado escravo nas usinas, do não cumprimento de condicionantes, da existência de ações
civis públicas contra o licenciamento ambiental de Jirau, da multa de R$ 475 mil por desmatamento ilegal aplicado ao
empreendimento no início de 2009 e das denúncias de caos social – aumento da violência, do uso de drogas, prostituição

160
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infantil, piora dos serviços de saúde, etc. –, não consta que o BNDES tenha tomado alguma medida no sentido de implementar
suas alegadas salvaguardas socioambientais.

5- Condicionantes dos órgãos ambientais

No total, o licenciamento das duas usinas no Rio Madeira estipulou 144 condicionantes, mas não há monitoramento
de seu cumprimento

Condicionantes de Santo Antônio

A Licença de Instalação (LI) da hidrelétrica de Santo Antônio previu 48 condicionantes socioambientais para a obra, como: a
implantação de um Sistema de Gestão Ambiental (SGA); solução definitiva para o projeto do sistema interceptor de troncos e
flutuantes; revisão da área de inundação do reservatório considerando os efeitos de remanso derivados; realizar diagnóstico
do desequilíbrio sedimentológico e as cíclicas alterações da concentração de sedimentos com a abertura das comportas;
realizar a recuperação de Áreas de Preservação Permanente (APPs); averbar as Reservas Legais relocadas e as das propriedades
adquiridas para reassentamento da população afetada pelo empreendimento; identificar áreas com potencial para retenção de
peixes, durante o enchimento e operação da usina; elaborar, em substituição do Subprograma de Monitoramento da Atividade
P esqueira, o Programa de Compensação Social da Atividade Pesqueira; prestar contas sobre os processos de remanejamento de
populações atingidas, entre outras.

Condicionantes de Jirau

Na Licença Prévia (LP) da usina de Jirau foram fixadas 33 condicionantes que deveriam ser cumpridas para a emissão da Licença
de Instalação (LI). Não atendidas estas medidas, em 3 de junho de 2009, com a publicação da LI nº 621/2009 pelo Ibama e,
posteriormente, do Ofício nº 577/2009 – Dilic/Ibama, datado de 4 de junho de 2009, foram apresentadas novas condicionantes
ambientais e exigências complementares à LI para diversos programas ambientais relacionados ao aproveitamento em questão,
como garantir a reprodução de peixes, avaliar o comportamento hidráulico geral do rio, demolir e retirar todas as estruturas das
ensecadeiras e demais obstáculos ao fluxo físico /biótico do rio, além de programas de recuperação de áreas degradadas, de
remanejamento da população atingida e do programa de compensação social.

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6- Atuação do Ministério Público

Cada uma das obras do complexo hidrelétrico no Rio Madeira já recebeu mil autuações da Superintendência Regional do
Trabalho por violação à legislação trabalhista. O Ministério Público do Trabalho conduz diversos Inquéritos Civis Públicos
em que estão sendo investigadas as condições de trabalho nessas obras. A construção das hidrelétricas do Rio Madeira
motivou o ajuizamento de sete Ações Civis Públicas pelo Ministério Público Federal, além da abertura de pelo menos sete
Inquéritos Civis Públicos no âmbito do Ministério Público Federal para averiguação de violação de direitos. Diferente de outros
empreendimentos semelhantes, em que também foram movidas ações judiciais impugnando ilegalidades no processo de
licenciamento e na construção, a Justiça Federal de 1º grau indeferiu a maior parte dos pleitos apresentados.

Ações ajuizadas pelo Ministério Público Federal contra as usinas do Rio Madeira9:

1 - Ação Cautelar Ambiental 2006.41.00.004390-1 – 5ª Vara Federal de Rondônia (7/11/2006) – Objeto: Garantia do direito à
informação da sociedade rondoniense e sua possibilidade de participação na discussão do projeto – a reavaliação dos estudos
de impacto ambiental sendo a questão principal. Decisão 1º Grau (17/12/2009): “Nestas condições, à vista da fundamentação
expendida, julgo improcedente o pedido inicial. Deixo de fixar verba de patrocínio, ausente má-fé do autor. Arquivem-se os
autos, a tempo e modo. Publique-se. Registre-se. Intime-se”. Interposição: não houve.

2 - Ação Civil Pública 2006.41.00.004844-1 (dependente 2006.41.00.004390-1) – 5ª Vara Federal de Rondônia (5/12/2006) –
Objeto: Garantia do direito à informação da sociedade rondoniense e sua possibilidade de participação na discussão do projeto.
Decisão 1º Grau (17/12/2009): “Nestas condições, à vista da fundamentação expendida, julgo improcedente o pedido inicial.
Deixo de fixar verba de patrocínio, ausente má-fé do autor. Arquivem-se os autos, a tempo e modo. Publique-se. Registre-se.
Intime-se”. Interposição: não houve.

3 - Ação Civil Pública 2006.41.00.000730-9 – 1ª Vara Federal de Rondônia (17/2/2006) – Objeto: Defender a Estrada de Ferro
Madeira-Mamoré, tombada pela Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e pela Assembleia Constituinte do Estado
de Rondônia, das obras de prospecção em Santo Antônio e Jirau, no Alto Rio Madeira, para a instalação das hidrelétricas. Decisão
1º Grau (3/7/2009): “(...), II - Determino, de conseguinte, a extinção do processo, sem julgamento meritório, nos termos do
Código de Processo Civil, artigo 267, inciso VIII. III - Deixo de fixar condenação em honorários advocatícios e custas processuais
(Lei 7.347/85, art. 18). IV - Observadas as formalidades legais, arquivem-se, com baixa na distribuição. V - Publique-se. Registre-
se e intimem-se”. Interposição: em 29/1/2009 – pendente.

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4 - Ação Civil Pública 2007.41.00.001160-0 (dependente 2006.41.00.004844-1) – 5ª Vara Federal de Rondônia (14/3/2007) – Objeto:
Anulação do processo de licenciamento ambiental do Complexo do Rio Madeira – Usinas de Jirau e Santo Antônio – devido à
ausência de estudo de impacto ambiental da Linha de Transmissão, dos impactos do empreendimento sobre os usos e costumes
das populações indígenas e de participação da sociedade rondoniense no debate. Decisão 1º Grau (17/12/2009): “Nestas condições,
à vista da fundamentação expendida, julgo improcedente o pedido inicial. Deixo de fixar verba de patrocínio, ausente má-fé do
autor. Arquivem-se os autos, a tempo e modo. Publique-se. Registre-se. Intime-se”. Interposição: em 4/2/2010) – pendente.

5 - Ação Civil Pública 2008.41.00.005474-0 (dependente 2006.41.00.004390-1) – 5ª Vara Federal de Rondônia (25/8/2008) –
Objeto: Contesta a alteração do local de implementação da Usina de Jirau, após os Estudos de Viabilidade Ambiental e Estudo
de Impacto Ambiental já feitos terem anuído com a realização da obra em local diverso, realizada pelo consórcio vencedor da
licitação sob o argumento de menores custos, o que decorreria da menor quantidade de escavação e importaria em menor dano
ambiental. Decisão 1º Grau: pendente.

6 - Ação Civil Pública 2008.41.00.007770-3– 5ª Vara Federal de Rondônia (início: 11/12/2008) – Objeto: Contesta a expedição
de Licença de Instalação da Usina Hidrelétrica de Jirau após a proposição da Ação Civil Pública 2008.41.00.005474-0 e antes
de uma decisão do Poder Judiciário, solicitando a ilegalidade desta licença e pedindo a imposição de multa aos responsáveis
por ela. Decisão 1º Grau (16/9/2009): “Os atos administrativos só se revestem de improbidade se ostentarem indícios de
desonestidade ou má-fé. Daí a ausência de elementos indicativos da prática de ato ímprobo, conducente ao indeferimento
da inicial”; “III - Nestas condições, à vista da fundamentação expendida, rejeito a inicial e determino a extinção do processo,
nos exatos termos da Lei 8.429/92, art. 17, § 8º(7). Deixo de fixar verba de patrocínio, ausente má-fé dos autores. Arquivem-
se os autos, a tempo e modo. Publique-se. Registre-se. Intimem-se”. Interposição: em 21/10/2009. Recurso (15/10/2010):
Apelação Provida – “a petição da ação de improbidade encontra-se revestida de suporte fático e jurídico suficiente para sua
admissibilidade. Com efeito, a petição inicial descreve fatos que estão a configurar, em tese, atos de improbidade administrativa
descritos na Lei nº 8.429/92, sendo prematura a rejeição da inicial da peça de ingresso”; “Diante disso, dou provimento à
apelação, para o fim de, tornando insubsistente a v. sentença apelada, determinar o retorno dos autos ao MM. Juízo Federal a
quo, a fim de que o processo tenha o seu regular prosseguimento”.

7 - Ação Civil Pública 16372- 29.2010.4.01.4100 – 5ª Vara Federal de Rondônia (22/10/2010) – Objeto: Sanar as irregularidades no
processo de compensação aos moradores da área de Mutum Paraná removidos em virtude da instalação da Usina de Jirau, no
que diz respeito tanto à falta de transparência no pagamento de indenizações quanto à falta de infraestrutura básica no local de
remanejamento dos moradores. Decisão 1º Grau: pendente.

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Inquéritos Civis em curso no Ministério Público Federal sobre as usinas do Rio Madeira10

Data Número Resumo


Apurar a responsabilidade civil pela morte de onze toneladas
19/1/2009 1.31.000.000054/2009-90 de peixes de várias espécies, por ocasião da construção das
ensecadeiras da usina hidrelétrica de Santo Antônio.
Apurar a regularidade do processo de licenciamento ambiental das
11/2/2009 1.31.000.000115/2009-19
obras da usina hidrelétrica de Jirau.
Acompanhar a implementação das medidas mitigadoras e
compensatórias sociais, ambientais e econômicas pelas usinas
11/5/2010 1.31.000.000565/2010-45
hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, no Rio Madeira, estado de
Rondônia.

Apurar a construção de obras de ensecadeiras na usina hidrelétrica


de Jirau, utilizadora de recursos ambientais e potencialmente
21/5/2009 1.31.000.000611/2009-72
poluidora, deixando de atender à condicionante 2.2 da Licença de
Instalação nº 563/2008.

Apurar a regularidade do processo de renúncia da licença ambiental


concedida à Cooperativa- Coogarima, à Cooperativa Minaccop e a
Geomário Leitão de Sena pelo Departamento Nacional de Produção
1o/6/2009 1.31.000.000750/2009-04
Mineral, em favor de possível concessão à empresa Madeira Energia
S.A. para a construção da usina hidrelétrica de Santo Antônio e da
eventual doação de equipamentos.

Acompanhar o cumprimento do Oficio 067/09-Gepan/Depan/


Iphan, encaminhado ao Diretor de Licenciamento Ambiental do
Ibama, que estabelece medidas mitigatórias e compensatórias à
28/7/2009 1.31.000.001115/2009-36
concessão da Licença de Instalação da usina hidrelétrica de Jirau, de
forma a proteger e preservar o patrimônio arqueológico da Estrada
de Ferro Madeira-Mamoré.

Acompanhar o processo de licenciamento ambiental do


empreendimento denominado Linha de Transmissão de 600 KV,
16/9/2010 1.31.000.001218/2010-30
coletora Porto Velho-Araraquara nº 2, que vai interligar as usinas
Santo Antônio e Jirau ao Sistema Interligado Nacional (SIN).

164
Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira
UHE Santo Antônio e UHE Jirau

As principais fontes de informação desta seção são:

1 PLATAFORMA DHESCA BRASIL/Relatoria Nacional para o Direito Humano ao Meio Ambiente. Violações de Direitos Humanos nas Hidrelétricas do Rio Madeira. Relatório Preliminar de Missão de
Monitoramento. Porto Velho (RO), abril de 2011. Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/publicacoes/direitos-humanos/violacoes-dh-rio-madeira; Asociación
Interamericana para la Defensa del Ambiente (Ainda). Estudo de Caso Rio Madeira. Disponível em: http://dev.aida-americas.org/sites/default/files/Estudo_de_caso_Madeira.pdf. SWITKES, Glenn. A
Pedra Fundamental da IIRSA. In: SWITKES, Glenn; BONILHA, Patrícia. Águas Turvas: Alertas sobre as Consequências de Barrar o Maior Afluente do Amazonas. São Paulo: International Rivers, 2008. p.
16. FURNAS, ODEBRECHT, LEME. Relatório de Impacto Ambiental das Usinas Hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, 2005. p. 36-38. Disponível em: http://www.amazonia.org.br/arquivos/195010.zip.
Nota Técnica 071/2007, 4a Câmara da Procuradoria da República – Meio Ambiente e Patrimônio Cultural. GOULDING, Michael et al. Las Fuentes del Amazonas: Ríos, Vida y Conservación de la Cuenca
de Madre de Dios. Asociación para la Conservación de la Cuenca Amazónica, 2003. p. 13.

2 PLATAFORMA DHESCA. Relatório de Missão: Jirau Hoje, Belo Monte Amanhã. Maio de 2011. Disponível em: http://www.dhescbrasil.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=450%3A
jirau-hoje-belo-monte-amanha-relatorio-aponta-violacoes-em-jirau-e-preve-repeticao-em-belo-monte-&catid=69%3Aantiga-rok-stories&Itemid=156.

3 Idem.

4 Idem.

5 Trabalho escravo é encontrado em obra ligada à usina do Madeira. Publicado em 26 de outubro de 2009. Disponível em: http://www.reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=1664.

6 Um ano depois de quebra-quebra, operários da hidrelétrica de Jirau, em Rondônia, entram em greve. Publicado em 14 de março de 2012. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-
noticias/2012/03/14/operarios-da-hidreletrica-de-jirau-em-rondonia-voltam-a-cruzar-os-bracos-apos-um-ano.htm..

7 PLATAFORMA DHESCA. Relatório de Missão: Jirau Hoje, Belo Monte Amanhã. Maio de 2011. Disponível em: http://www.dhescbrasil.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=450%3A
jirau-hoje-belo-monte-amanha-relatorio-aponta-violacoes-em-jirau-e-preve-repeticao-em-belo-monte-&catid=69%3Aantiga-rok-stories&Itemid=156.

8 Atingidos por hidrelétrica Santo Antônio sofrem com alagamentos. http://www.plataformabndes.org.br/site/index.php/noticias/31-destaque/281-atingidos-por-hidreletrica-financiada-pelo-bndes-


sofrem-com-alagamentos

9 PLATAFORMA DHESCA. Relatório de Missão: Jirau Hoje, Belo Monte Amanhã. Maio de 2011. Disponível em: http://www.dhescbrasil.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=450%3A
jirau-hoje-belo-monte-amanha-relatorio-aponta-violacoes-em-jirau-e-preve-repeticao-em-belo-monte-&catid=69%3Aantiga-rok-stories&Itemid=156.

10 PLATAFORMA DHESCA. Relatório de Missão: Jirau Hoje, Belo Monte Amanhã. Maio de 2011. Disponível em: http://www.dhescbrasil.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=450%3
Ajirau-hoje-belo-monte-amanha-relatorio-aponta-violacoes-em-jirau-e-preve-repeticao-em-belo-monte-&catid=69%3Aantiga-rok-stories&Itemid=156.

Agradecemos à jornalista Verena Glass pelas importantes contribuições e comentários.

165
CASO VERACEL
1- Descrição do empreendimento

O Projeto Veracel II pretende aumentar a produção da atual


fábrica da empresa transnacional Veracel Celulose, uma das
líderes mundiais no setor de celulose e papel, em mais 1,5 milhão
de toneladas anuais. Para isso, ela solicitou licença para plantar
mais 107 mil hectares de terra, totalizando uma área de cerca de
200 mil hectares de eucalipto em 17 municípios na região do sul
da Bahia1.

Verena Glass
O complexo fabril da Veracel está sediado em Eunápolis desde
2005 e suas operações abrangem os municípios Canavieiras,
Belmonte, Guaratinga, Itabela, Itagimirim, Itapebi, Mascote, Porto
Seguro e Santa Cruz Cabrália, além de Eunápolis, todos com
plantações de eucalipto2. No seu Relatório Anual de Sustentabilidade 2011, a empresa declara uma produção de 1,054 milhão de
toneladas em 2011, com meta de 1,1 milhão de toneladas para 2012. Declara também que o total de terras em sua propriedade é
de 211.424 hectares, que o plantio de eucalipto ocupa 90.453 hectares e que o seu Programa Produtor Florestal abrange um total
de área plantada (2003 a 2011) de 20.442 hectares, totalizando 104 produtores rurais3. Apenas em Eunápolis, por exemplo, a área
que a Veracel ocupa totaliza 40% das terras agricultáveis e 20,14%4 da área do município5.

A empresa conta com o Terminal Marítimo de Belmonte (TMB), que viabiliza o escoamento da produção para o Portocel
(Terminal Especializado Barra do Riacho S.A., no Espírito Santo), de onde a celulose segue para o mercado internacional,
especialmente Europa, Estados Unidos e Ásia6.
Originalmente com o nome de Veracruz Florestal, então subsidiária da Odebrecht, esta empresa começou a comprar terras
no extremo sul da Bahia em 1991 e a plantar eucalipto em 1992. Cinco anos depois, a Odebrecht e a empresa sueca Stora se
associaram. No ano seguinte, a razão social da empresa mudou para Veracel Celulose S.A. A fusão entre a Stora e a finlandesa
Enso se concretizou em 1999. A Aracruz ingressou no empreendimento no ano seguinte, enquanto a Odebrecht diminuía
a sua participação. Em 2000, as empresas proprietárias da joint venture Veracel Celulose S.A. eram a sueco-finlandesa Stora
Enso, com 50% das ações, e a Aracruz Celulose S.A. (atualmente Fibria)7, com os outros 50%.
A Fibria foi criada em 2009 como resultado da compra da VCP – Votorantim Papel e Celulose S.A., das ações do Grupo
Lorentzen e do Banco Safra, que compunham a Aracruz Celulose. Com isso, o Grupo Votorantim e o Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) se tornaram os proprietários da empresa, com mais de 1 milhão de hectares de
terra no Brasil.

166
CASO VERACEL
Com uma área de 875 mil hectares plantados com eucalipto, a Fibria tem operações no Espírito Santo, em Minas Gerais, Rio
Grande do Sul, São Paulo, Mato Grosso do Sul e Bahia. Ela opera quatro fábricas com capacidade de 5,25 milhões de toneladas
de celulose por ano8. A estrutura societária da Fibria é composta da Votorantim Industrial S.A.9, com 29,34% das ações, da
BNDESPar, com 30,42%10, e free float (ações em circulação no mercado). Ela participa com 51% da Portocel, além dos 50% da
Veracel Celulose S.A.11.

2- Valor do empréstimo

O BNDES concedeu um empréstimo à Veracel Celulose no valor de R$ 1,45 bilhão, aprovado em dezembro de 200312 (ano do
início das obras de construção da fábrica, que entrou em operação em 2005)13. Este foi o maior investimento do BNDES para
uma empresa privada no governo Lula14. Segundo informações disponibilizadas no site da então empresa Aracruz Celulose,
a viabilização do projeto da fábrica da Veracel Celulose foi possível através dos subsídios dos seguintes bancos estatais de
investimentos: R$ 1,4 bilhão do BNDES, US$ 80 milhões do Banco Europeu de Investimento (EIB) e US$ 70 milhões do Banco
Nórdico de Investimento (NIB)15.
O BNDES possui uma carteira para o financiamento a investimentos sociais de empresas, os propalados “programas sociais”,
desde 2006. Segundo um parecer do Fórum Socioambiental do Extremo Sul da Bahia “a Linha de Investimentos Sociais de
Empresas veio substituir o antigo Programa de Apoio ao Investimento Social (PAIS). Esta nova linha de financiamento está
destinada à implantação, expansão e consolidação de projetos sociais realizados pelas empresas ou em parceria com instituições
públicas ou organizações sem fins lucrativos. Esta linha se divide em duas modalidades: apoio a investimentos no âmbito das
comunidades localizadas na área de influência geográfica da empresa e apoio a investimentos dentro da própria empresa. Para
as ações destinadas às comunidades não são cobradas taxas de remuneração, apenas a Taxa de Juros a Longo Prazo (TJLP).
O nível de participação do Banco vai até 100% do projeto”16. A Veracel foi beneficiada com um investimento social de R$ 19,7
milhões financiados pelo BNDES, diz o parecer. “Estes dados permitem refletir que o processo de legitimação da empresa junto
às comunidades passa necessariamente pelo financiamento do Estado. Neste quadro, os programas de responsabilidades
socioambientais das empresas não representariam uma ausência do Estado, mas sua forte presença monetária, administrada,
entretanto, sob os critérios e auspícios da empresa”17.

3- Impactos socioambientais

O processo de implantação da Veracel Celulose S.A., a partir de 1991 (então Veracruz Florestal), os plantios de eucalipto e a
construção da fábrica de celulose promovem, desde o início, uma série significativa de crimes socioambientais, irregularidades
e ilegalidades, amplamente denunciados por comunidades locais e vizinhas (população urbana, camponeses e indígenas),
por trabalhadores e por organizações da sociedade civil18. Estas denúncias foram confirmadas pelo Instituto Brasileiro de

167
CASO VERACEL
Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) de Porto Seguro, constatadas e acionadas as responsabilidades pelo
Ministério do Meio Ambiente (MMA), pela Justiça Federal e, mais recentemente, pelo Ministério Público do Estado da Bahia
(MPE), bem como pelo Ministério Público Federal (MPF). Em 2006, o MPF julgou uma ação civil pública e anulou todas as
resoluções do Conselho Estadual do Meio Ambiente (Cepram) referentes às licenças, além de ter condenado a Veracel à
obrigação de recuperar todas as áreas plantadas com eucalipto. Apesar das denúncias e constatações oficiais, a implantação do
empreendimento Veracel II foi facilitada e beneficiada por diversas concessões de licenças ambientais ilegais (com violações
de leis ambientais de âmbito municipal, estadual e federal) por parte de órgãos ambientais locais, como o Cepram e o Centro de
Recursos Ambientais da Bahia (CRA)19.

Fábula da geração de empregos20


Na fase de implantação, a empresa divulgou a promessa de geração de mais de 12 mil empregos diretos e indiretos, porém,
após o término das obras de instalação, a redução de empregos foi drástica. Trata-se de um setor altamente mecanizado que
emprega poucos trabalhadores (em 2006, apenas 741). Considerando o investimento de US$ 1,5 bilhão aplicado na fábrica, o
custo por emprego direto gerado é de US$ 2,02 milhões. Considerando a quantidade de terras, a relação é de um emprego direto
para cada 103 hectares. O elevado nível de terceirização dos empregos torna-se um agravante por conta da intensa precarização
do trabalho e da ausência de respeito aos direitos trabalhistas, afetando trabalhadores diretos e, sobretudo, indiretos. Em um
levantamento feito pelo Centro de Estudos e Pesquisas para o Desenvolvimento do Extremo Sul da Bahia (Cepedes), em 2007,
junto ao Tribunal Regional do Trabalho, 5ª Região, constatou-se que a Veracel Celulose está envolvida em 863 processos na
Justiça do Trabalho, parte deles sob a investigação do Ministério Público do Trabalho, além da alta taxa de LER/Dort21.

Monocultura de eucalipto em grande escala, manejo e consequências socioambientais 22

Plantações em grande escala de espécies de árvores de rápido crescimento, como é o caso do eucalipto manejado no Brasil,
aumentam a pressão sobre a vegetação nativa e as terras agricultáveis de grande valor e causam desastres ambientais e sociais,
desestruturando economias locais.

Desmatamento, plantio e violação de direitos socioambientais


A Veracel cometeu os seguintes crimes/irregularidades:

a) desmatamento da Mata Atlântica23 para o plantio de eucalipto nos anos 1990 (com ausência de conectividade entre as
ilhas de vegetação nativa imersas no mar de eucaliptos). A empresa continua desmatando as áreas de regeneração;
b) plantio de eucalipto dentro de perímetros urbanos (distritos e cidades) e dentro de cemitérios, com evidências de
suborno de vereadores24 diante das tentativas de elaboração de leis limitantes por vereadores preocupados com a
expansão desorganizada do eucalipto, a exemplo dos municípios de Canavieiras, Itagimirim, Santa Cruz de Cabrália,

168
CASO VERACEL
Porto Seguro e Eunápolis, de modo que o MPE25 chegou a instaurar inquérito26;
c) plantios dentro de áreas das comunidades rurais, nas Áreas de Preservação Permanente (APPs), em encostas, margens
de córregos, lagoas e rios, nas zonas de amortecimento de Unidades de Conservação (UCs), segundo o Ibama/2006,
contrariando Recomendação nº 1 do Ministério Público Federal/Ilhéus/2005).

Invasão de áreas tradicionalmente ocupadas


a) Povo Indígena Pataxó – A Frente de Resistência Pataxó denuncia que, dos 120 mil hectares do Território Pataxó, a
Veracel invadiu cerca de 30 mil hectares; somente dentro da Terra Indígena, identificada pela Fundação Nacional do
Índio (Funai) com 52.748 mil hectares 27, há 1.645 hectares com eucalipto da Veracel.

Grave comprometimento da segurança alimentar


a) destruição da agricultura tradicional familiar (pequenas e diversificadas produções de alimentos) e das lavouras de
subsistências (situação diagnosticada já em 1998 pela Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia
- SEP) e isolamento das poucas famílias restantes que permanecem ilhadas pelo plantio e sob grande pressão para
venderem suas terras;
b) migração de milhares de famílias da pequena produção rural para as periferias das cidades (famílias sem habilidades e
qualificações para sobrevivência no espaço urbano), em função da crescente concentração de terras verificada
da década de 1960 a 1980, portanto intensificada nos anos 1990 com a compra de vastas extensões de terras pelas
grandes empresas do ramo da celulose28 e a invasão das terras devolutas com expulsão de posseiros29 – só o
município de Eunápolis perdeu cerca de 7 mil famílias camponesas de 1996 a 2000 e a sua população urbana cresceu
33% entre 1991 e 200730;
c) invasão de áreas do Estado – terras devolutas – que deveriam ser destinadas à Reforma Agrária, bem como a
supervalorização das terras dificultando a viabilização da Reforma Agrária.

Inchaço e falta de perspectivas nas áreas urbanas atingidas


a) no período da instalação da empresa na região (1991-1996), com a atração de mão de obra na construção da empresa
(aproximadamente 4 mil trabalhadores), houve uma intensificação dos fluxos de migração a ponto de o crescimento
demográfico da área urbana chegar a ser o mais alto do estado da Bahia31;
b) aumento vertiginoso da prostituição e grande número dos chamados “filhos da Veracel” na época da construção
da fábrica32;
c) eliminação de oportunidades de emprego ou de ganhos para pequenos produtores independentes e pauperizados,
atingidos pelas grandes perdas da população rural, em fenômeno conhecido como “expulsão do homem do campo”;
d) crescimento desordenado das cidades na região atingida.

169
CASO VERACEL

Contaminação química do solo, das águas e dos trabalhadores (especialmente os terceirizados)


a) uso de agrotóxicos nas plantações – o Roundup (da Monsanto), cujo princípio ativo é o Glifosato – e a Isca Mirex, cujo
principio ativo é a sulfuramida33;
b) a utilização de cloro na produção de celulose, utilização em 100% da tecnologia ECF (livre do cloro elementar e
utilização do dióxido de cloro), que diminui mas não elimina totalmente a formação de dioxina (organoclorado
altamente tóxico carcinogênico e teratogênico que leva de anos a séculos para se degradar), apesar de no EIA-Rima da
construção da fábrica de celulose constar que a tecnologia a ser utilizada pela empresa seria a TCF (Totalmente Livre
de Cloro), a empresa optou pela tecnologia ECF anos depois sem estudos complementares e nenhuma providência do
órgão licenciador, o CRA, que manteve a licença34.

Segundo informações do Cepedes, na região do extremo sul da Bahia, são cerca de 700 mil hectares de eucaliptos plantados, e,
segundo informações da Veracel, são usados 9 litros de Roundup por hectare. Sobre a Isca Mirex, a empresa apenas informa que
seu uso se dá em “quantidades seguras”35.
O Glifosato e o Mirex são substâncias consideradas perigosas para a saúde pública e o meio ambiente em função de
propriedades como a elevada persistência no meio ambiente, a capacidade de serem transportadas por longas distâncias através
do ar e da água, além de serem substâncias altamente tóxicas e bioacumulativas. Na Convenção de Estocolmo passaram a ter
sua produção e uso proibidos em nível global. Esta é mais uma das situações graves provocadas pela monocultura de eucalipto36.

Impactos sobre os recursos hídricos (quantidade e qualidade)37


a) descumprimento de condicionantes, tal como a Resolução 707/93 do CRA em função do alto consumo de água pelas
plantações e fábricas;
b) redução de água disponível em comunidades vizinhas – verifica-se secagem rápida de rios, córregos e lagos após o
plantio de eucalipto;
c) elevado consumo de água na fabricação de celulose – água retirada do Rio Jequitinhonha, sendo 94 mil m3/dia – 100
mil habitantes consomem 6 mil m3/dia;
d) lançamento de efluentes industriais nos rios Mucuri e Jequitinhonha (sob o controle da própria empresa); o Rio Santa
Cruz foi afetado pelo uso ilegal por parte da Veracel de substância tóxica (multada pelo Ibama em 2007);
e) a limpeza da lagoa de tratamento de efluentes só funciona se a fábrica estiver em funcionamento. Atualmente, várias
centenas de milhares de metros cúbicos de sedimentos tóxicos encontram-se no fundo da lagoa.
Em suma, hoje o extremo sul da Bahia é marcado pelo aprofundamento das desigualdades sociais e regionais provocado
pela monocultura de eucalipto e pela produção de celulose que fornecem pouco trabalho e não produzem alimentos, forjando a
cada ano um amplo rastro de violações de direitos humanos e socioambientais.

170
CASO VERACEL

4- Condicionantes ou salvaguardas do BNDES

Não há o conhecimento de condicionantes ou salvaguardas ambientais do BNDES. Porém, cabe citar que a empresa Veracel
tem utilizado estratégias para legitimar suas atuações através de investimentos em saúde, educação, saneamento, segurança
pública. Segundo consta em site da empresa, por meio do Instituto Veracel (criado em 2002, instaura e implementa a atuação
da empresa na área de ação social), foram investidos milhões em ações consideradas sociais (“projetos sociais”) na área de
influência de seu empreendimento. O Cepedes, em 2008, denunciou “fatos absurdos” sobre a orientação de coordenadores do
Instituto Veracel e seus “projetos sociais”, como o projeto de educação envolvendo mais de 1.300 crianças, cujo funcionamento
se deu quando foi conveniente para a empresa (nas visitas do BNDES e de visitantes estrangeiros e certificações), bem como
o uso destas ações como marketing, além da cooptação de lideranças comunitárias e da promoção de conflitos no seio das
comunidades38. A Veracel também tem financiado as polícias (Federal, Civil e Militar) da região, através da construção de quartéis
e compra de viaturas como parte de “um programa de apoio ao desenvolvimento das atividades destas corporações”. Parte dos
recursos destas ações, embora sejam apresentados como projetos apenas da empresa, conta com financiamento do BNDES,
enfraquecendo o papel do Estado e lhe conferindo uma imagem de “responsabilidade social”.

5- Condicionantes dos órgãos ambientais

Uma das alegações do Ministério Público Estadual (MPE) para se opor à duplicação da Veracel (Veracel II) é que as
condicionantes da Veracel I ainda não foram cumpridas em diversos aspectos. Por isso, o MPE tem ajuizado contra a Veracel
um grande número de ações ambientais e outras. Foi feito um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) em 2010, mas, segundo
o MPE, ele não foi cumprido e esse foi um dos motivos e forte argumento para o MPE elaborar uma consistente Notificação
Judicial39 sobre a ampliação, na qual estão citadas as principais ações judiciais que existem.

Com relação às condicionantes ambientais, a Veracel acumula descumprimentos, a exemplo:


a) Resolução 707/1993 do CRA – Condicionante – “Plano de Manejo de preservação e manutenção da reserva florestal” – o
descumprimento refere-se ao plantio de eucalipto “em áreas onde a vegetação nativa seja de Mata Atlântica, Cerrado e
restinga ou áreas de tensão ecológica”;
b) Resolução 1.239 do CRA – 19/7/1996 – comunidades rurais – Condicionante – “apoiar programas de incentivo à
permanência e às atividades econômicas já existentes, sem lhes causar danos ou contribuir para a exclusão das áreas”;
c) Limite máximo de ocupação de terras com eucalipto – Condicionante – máximo “15% das terras dos municípios
litorâneos e 20% das terras dos demais municípios das áreas de influência direta” – a empresa não as cumpre ao
promover concentração de terras, êxodo do campo e monocultura excedendo os limites.

171
CASO VERACEL

Para o projeto Veracel II, o EIA-Rima, assim como o da proposta inicial, apresentou graves e repetidas inconsistências.
O Parecer Crítico referente ao Relatório de Impacto Ambiental do Projeto Veracel II, realizado pelo Cepedes e pela Fundação
Padre José Koopmans, em julho de 2011, observa que “o Rima não preenche minimamente os itens básicos prescritos na
resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) n° 001 de 23/1/1986, artigo 9, que enumera o que deve conter
em um Rima”. Entre outras constatações de irregularidades, o Parecer destaca ainda:

a) “A empresa que elaborou o EIA-Rima é a Cepemar, grupo formado por cinco empresas que trabalham com serviços
ambientais, indústria do petróleo e gás, operação de portos e aeroportos e educação. A Suzano Bahia Sul, empresa
produtora de celulose também localizada no extremo sul da Bahia, possui 55% das ações da Cepemar40. Esta empresa
havia realizado o EIA-Rima do Plano de Expansão Portocel II (modernização e ampliação do porto) [no Espírito Santo]
e da construção da terceira fábrica da Aracruz Celulose (atual Fibria)” (p. 5).

b) “No contexto do licenciamento da nova fábrica da Veracel, a empresa contratou a consultoria chamada Ruschel &
Associados. Esta empresa oferece, entre outros serviços, o ‘suporte em audiências públicas’” (p. 5).

c) “O Rima carece de informações e análises sobre o que é umas das suas funções básicas – identificar os impactos
ambientais. Não são mencionados quais agrotóxicos e formicidas e em quais quantidades a empresa vai utilizar para o
cultivo dos eucaliptos (sabe-se que a Veracel faz uso corrente do Roundup)” (p. 7).

Segundo o Parecer, muitas falhas graves foram encontradas, como a falta de ART’s para a prestação de serviços relacionados
ao EIA-Rima conforme determina a resolução Cepram nº 3.961/2009. “Dez técnicos que integraram a equipe, inclusive o
coordenador geral, estão com registros irregulares no Conselho Regional Engenharia Arquitetura (Crea). Através de consultas
no sítio do Crea (regionais SP, MG, ES e BA) e por informações do Crea-BA vimos que seis técnicos estão irregulares em seu
Crea de origem e quatro deles não possuem o visto para trabalhar na Bahia, conforme requer a resolução do Conselho Federal
nº 191/70, no Artigo I: o profissional que pretende exercer atividade em qualquer região que não a de registro de origem deve
requerer o visto na carteira profissional (Crea) ou na carteira de registro provisório”41.

O Parecer aponta ainda que “conforme o diagnóstico sobre a silvicultura no extremo sul, elaborado pelo Instituto do Meio
Ambiente (IMA), a Veracel Celulose S.A. apresenta graves problemas em seu programa Fomento Florestal”. Segundo o Parecer,
foram identificadas irregularidades em 85 propriedades em dez municípios:
• Em relação às licenças municipais, a maioria dos plantios está sem licença ou com ela vencida.

• Em relação à Reserva Legal

172
CASO VERACEL

– 60% não possuem RL averbada;

– 32% – RL estão preservadas;

– 15% não possuem área para RL, pois todo o empreendimento possui eucalipto ou pastagens.

• Em relação à Área de Preservação Permanente (APP)

– 70% estão ocupadas com pastagens, eucalipto ou estão completamente antropizadas;

– 30% – totalmente preservadas ou com pequenas áreas em regeneração;

– 1% não possui APP.

Com relação ao Programa Produtor Florestal (Fomento Florestal), o Cepedes informa que “diversos problemas foram
levantados nas plantações de eucalipto dos fomentos na região. Muitas licenças foram canceladas devido à origem irregular,
como em Eunápolis, que teve licenças suspensas e plantios sequestrados pela justiça. No município de Itabela, todas as
licenças estão canceladas através do decreto 1064/2011, publicado em 14 de julho de 2011”.

“Neste contexto, a Veracel pretende ainda que 30% da madeira venha de áreas de fomento. O Rima silencia diante de
todas essas graves irregularidades. E ainda ignora totalmente os casos judiciais, movidos pelo Ministério Público Estadual,
envolvendo irregularidades de fomento na região e na empresa”42.

Multas aplicadas
Há várias multas aplicadas, ações judiciais e procedimentos administrativos, inclusive em andamento, contra as empresas Veracel e
sua proprietária Aracruz/Fibria43 (por ilegalidades, irregularidades e crimes ambientais). Alguns exemplos relatados até 200844:

a) Ibama – Auto de Infração 368874, 13/3/2007 – Multa de R$ 400 mil – uso ilegal (Lei nº 9.605/1998 e Decreto 3179/99)
de substância tóxica (herbicida stout-NA – princípio ativo glifosato – fabricado pela Monsanto do Brasil) em 31,6
hectares de “área de preservação permanente, cabeceiras de nascentes, margens de córregos, matando toda a
vegetação” (Relatório de Fiscalização do Ibama, 26/3/2007). Após parecer do Ibama, o Ministério Público Estadual
(MPE) denunciou a empresa Veracel Celulose S.A. à Justiça Federal por crime ambiental;
b) Ibama – Auto de Infração 212132, 22/12/2007 – Multa de R$ 360.900 – plantio em área de regeneração de Mata
Atlântica (1.203 hectares) em desacordo com licença e autorizações recebidas. O TAC entre Veracel e CRA para
revegetação de parte da área devastada não foi cumprido;

173
CASO VERACEL

c) Ibama – Multa de R$ 606 mil, em 2006 – plantio em 4,4% de área de amortecimento do Parque Nacional do
Descobrimento e do Parque Nacional Pau Brasil – descumprimento da Lei nº 9.985/2002 (Sistema Nacional de
Unidades de Conservação – Snuc) e da Lei nº 013/90 (Conama) – os plantios tiveram licença do CRA45;
d) MPF – Multa de R$ 20 milhões por crimes ambientais. (ver item 7)

6- Duplo padrão

Essa questão se aplica à transnacional Stora Enso como proprietária da empresa Veracel Celulose, que aplica seus recursos em
diversos países, inclusive o Brasil. Podemos afirmar que a Stora Enso se comporta de modo totalmente diferente nos seus países
de origem (Finlândia e Suécia) se comparada com o Brasil. Lembrando alguns aspectos e fatos que já repercutiram na Suécia:
(1) Financiamento direto de campanhas políticas (presidente, governador de estado, deputados federal e estadual, senador,
prefeitos e vereadores). Segundo o Tribunal Superior Eleitoral, em 2006, a Stora Enso financiou R$ 1.006.604,0046. Na Suécia
não é permitido o financiamento privado de campanhas políticas;
(2) As maiores doações diretas das papeleiras para campanhas eleitorais foram feitas pela Aracruz Celulose/Fibria (R$ 4,7
milhões em 2010)47, empresa sócia da multinacional sueco-finlandesa Stora Enso, ambas proprietárias da Veracel Celulose;
o governador da Bahia, Jaques Wagner, recebeu R$ 250 mil na eleição de 201048;
(3) Sobre as atividades destas empresas no Brasil, é importante destacar que seu processo industrial poluidor utiliza produtos
químicos perigosos. A escolha do Brasil é interessante para estas empresas porque a fiscalização ambiental é mais frágil, e
há certamente menos condicionamentos ambientais do que nos países nórdicos em relação a isso;
(4) a Veracel tem financiado as corporações policiais (Federal, Civil e Militar) no extremo sul da Bahia, também uma
prática que os nórdicos consideram, no mínimo, estranha. Podemos citar também que, em 2007, a Stora Enso
demitiu 2.109 trabalhadores na Europa, enquanto anunciava a construção de nova fábrica de celulose na Bahia (Veracel
II) e no Uruguai, sem intervenção do governo sueco, pois “Os negócios externos são o fundamento do bem-estar da
Suécia” (palavras do governo da Suécia)49.
(5) Processo de certificação selo FSC (sigla em inglês para Conselho de Manejo Florestal) – A Veracel nunca poderia ter sido
certificada pelos inúmeros problemas já listados neste documento. Há anos que Organizações Não Governamentais (ONG)
como a Timberwatch Coalition (África do Sul), o FSC-Watch e fóruns de movimentos sociais como a Rede Alerta Contra
o Deserto Verde (Brasil) e o Movimento Mundial pelas Florestas Tropicas (WRM, sigla em inglês) pressionam o FSC, sem
sucesso, para parar de certificar monoculturas em larga escala. O Cepedes, junto com quarenta outras ONGs, sindicatos,
movimentos ambientalistas e comunidades indígenas, enviou uma carta para informar o FSC sobre os impactos negativos
da Veracel. Contudo, a Veracel recebeu o certificado/selo50.

Diante das ilegalidades e irregularidades, o Cepedes afirma que o selo FSC serve apenas para enganar os consumidores no

174
CASO VERACEL

Norte Global. “Esta certificação comprova que todo processo produtivo de uma empresa, desde a produção de sementes de
eucalipto até a fabricação de celulose, é realizado de forma ambientalmente correta, socialmente justa e economicamente
viável. E pelo que podemos verificar ela é apenas economicamente viável... e economicamente viável para os seus acionistas
estrangeiros! Restam apenas miséria, fome e desemprego para o povo brasileiro!”51

7- Atuação do Ministério Público

MPF (Ministério Público Federal) – Subseção Judiciária de Eunápolis


a) Processo 2006.33.10.005010-8 (Diário Oficial da União - DOU 17/06/2008) – Decorrência de uma Ação Civil Pública
proposta pelo Ministério Público Federal (MPF), em 199352, contra: Veracel (Veracruz Florestal na origem do processo),
Ibama, IMA e CRA. Sentença: multa de R$ 20 milhões por crimes ambientais (desmatamentos da floresta nativa de 96
mil hectares nos municípios de Eunápolis, Belmonte e Santa Cruz Cabrália nos anos 1990); sentença: reflorestamento
da área desmatada com vegetação nativa do bioma da Mata Atlântica. A sentença judicial desqualifica o CRA como
órgão competente para licenciar as atividades da Veracel e anula as licenças ambientais concedidas entre 1993 e 1996
(Estado da Bahia e pelo Conselho Estadual de Meio Ambiente – Cepram); sentença: obriga elaboração do EIA-Rima.

Ministério Público Estadual


a) Procedimento Administrativo Portaria nº 15/26/052008 – Promotoria de Justiça da Comarca de Eunápolis/BA – para
que a empresa revegetasse a área total devastada, 1.203 hectares;
b) Recomendação nº 001/2008 – parte do Inquérito Civil nº 03/2008 – omissão do Estado da Bahia em proceder
com o Zoneamento Ecológico Econômico (ZEE) [artigo 46 do Código Florestal], omissão do CRA em proceder com a
fiscalização efetiva da degradação ambiental provocada pela Veracel (plantio indiscriminado de eucaliptos)
prejudicando a sustentabilidade econômica do município de Eunápolis/BA, que o CRA reconsidere os limites de
20% para plantio de eucalipto no município (condicionante), pois a Veracel ocupa (2008) 15,1% da área do município
com eucaliptos e 40% das terras agricultáveis;
C) Ação Civil Pública nº 1081418-5/2006 contra Veracel e o Conselho Municipal de Meio Ambiente de Eunápolis
(Comdau) – pedido de nulidade de votação de licenças ambientais para quatro projetos de Fomento Florestal: não é
competência do município, mas do estado, conceder este tipo de licenciamento; a Veracel influenciou votação das
licenças; faltou EIA-Rima – havia várias áreas com proposta acima de 100 hectares (Resolução 001 do Conama); o
presidente do Comdau “passou a ser Secretário [Municipal] do Meio Ambiente por exigência da empresa, da qual o
gestor do Município esperava receber adiantamento de impostos, o que não foi conseguido em razão da intervenção
deste signatário já nas proximidades da eleição de 2004, que enviou ofício à empresa advertindo-a que tal conduta era crime”;
D) Ação Civil Pública nº 1081431-8/2006 – improbidade administrativa contra o prefeito de Eunápolis e dois conselheiros

175
CASO VERACEL
do Comdau, Veracel e outros, por favorecimento de interesses da empresa;
E) Portaria 14/16-04-2008 – 2ª Promotoria Pública/BA – inquérito/subornos: “caracteriza ato de improbidade previsto
no artigo 11 da Lei 8.429/92, pois tal conduta caracteriza o delito de corrupção passiva e ativa por parte dos vereadores”,
por ocasião da votação de leis municipais limitantes do plantio/eucalipto;
F) Ação Civil Pública nº 2497100-2 2009 – Decisão (29/9/2009) do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, acatando
pedido de liminar proposta pelo MPE na citada Ação Civil Pública contra a empresa Veracel Celulose e autoridades
ambientais da Bahia. O juiz decidiu: proibição do plantio de eucalipto da Veracel em Eunápolis, até a “adequação das
áreas que lhe foram legalmente licenciadas”; que o IMA e o Cepram da Bahia não poderiam mais conceder licenças
para o plantio em Eunápolis até que fosse concluída uma Avaliação Ambiental Estratégica e implementado
um Zoneamento
Ecológico e Econômico do município; o limite máximo no município de Eunápolis de 20% de plantio de eucalipto,
conforme o condicionante 1.239 de 1996, sendo plantio próprio da empresa e também o plantio terceirizado através
do chamado “fomento florestal”; determinou que apenas as terras agricultáveis fossem consideradas e não toda a área
do município; que sejam excluídas as áreas urbanas, as de reserva legal e de preservação permanentes; que os órgãos
competentes façam uma avaliação ambiental estratégica conforme as necessidades do município em termos da
expansão das atividades “agropecuárias”, com ênfase nas atividades de agricultura de subsistência, preocupação com a
segurança alimentar do município; que sejam divulgados o nome e a qualificação das empresas que assumirão
a tarefa de realizar essa avaliação ambiental estratégica. O juiz baseia essa determinação numa constatação do próprio
IMA, que existem 37 mil hectares de “plantio clandestino”, sem falar dos plantios do fomento, “que estão regulares
ou ilegais, os quais conduzem ao enriquecimento ilícito da aludido empresa, por meio de aquisição de matéria
prima de origem ilícita (...), com enormes prejuízos para o meio ambiente”; o juiz determinou ainda que é preciso um
acompanhamento “a cada corte” (licença permite um máximo de 96 mil hectares); que o Cepram cobre recursos
financeiros da Veracel como compensação ambiental pelo plantio de eucalipto “autorizado aleatoriamente”, para ser
usado para criação de unidades de conservação, e para que reveja o licenciamento ambiental do fomento; por fim,
determinou que o Banco do Brasil e o BNDES não liberem novos recursos para o plantio de eucalipto no município de
Eunápolis que tenha como beneficiário a Veracel, considerando que tais plantios são considerados ilícitos. Por fim,
requer que seja aplicado aos requeridos os ônus da sucumbência. Dá-se à causa o valor de R$ 1.000.000.000,00
(um bilhão de reais)53;
G) Processo nº 0002057-50.2011.805.0079 – Notificação Judicial (art. 867 e SS. do CPC), 18/7/2011; Ordem nº 2189/20-
07-2011 – dirigida ao Juiz de Direito da Vara da Fazenda Pública da Comarca de Eunápolis/BA, contra a Veracel
Celulose S.A.; o Estado da Bahia; o Cepram – Conselho Estadual do Meio Ambiente, órgão consultivo, deliberativo e
recursivo do Sistema de Administração dos Recursos Ambientais, vinculado à Secretaria de Meio Ambiente (Sema); o
Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema); a Cepemar Serviços de Consultoria de Meio Ambiente Ltda.,

176
CASO VERACEL

pessoa jurídica de direito privado, com sede em Vitória (ES); e a Cosmos Engenharia e Planejamento Ltda., pessoa
jurídica de direito privado, com sede em Lauro de Freitas/BA. Refere-se: a uma série de pendências legais mediante
diversos processos de crimes ambientais, promovendo a miséria a centenas de famílias que gravitam sem seu entorno;
ao enganoso e irregular EIA-Rima, além da obtenção de licenças ambientais contínuas e de procedência ilegal no
processo assombroso de expansão das atividades da empresa sem os EIAs-Rimas; às transgressões normativas que não
se limitam a irregularidades ambientais, mas também outras, de natureza imobiliária igualmente preocupantes,
e “a Veracel, como empreendedora, não poderia cogitar de ampliação nas suas atividades de silvicultura, enquanto
não resolvesse o seu extenso passivo ambiental”. A Notificação, tratando de prevenir responsabilidades e garantir
direitos difusos, se reporta, aos bilhões de dólares injetados pela Veracel em seu empreendimento, “valendo-se
dos recursos públicos que lhe são repassados pelo BNDES, sem nenhum controle e em detrimento ao meio ambiente
e ao desenvolvimento sustentável”. A Notificação corresponsabiliza o BNDES por financiar “ações ilícitas da Veracel
– daí podendo surgir responsabilidade solidária para o referido banco, pelos ilícitos ambientais praticados em parceria
(...); e determina que seja dado aos notificados (...) conhecimento dos termos desta notificação judicial, para que adote
providências em relação aos novos financiamentos ou novos repasses de créditos para plantio de eucalipto, ou para a
ampliação da fábrica de celulose da Veracel, no município de Eunápolis/BA” - Eunápolis, Bahia, 18 de julho de 2011.

MPF e MPE (conjuntamente)


a) Processo nº 1697-69.2011 – 9/8/2011 – Ação Civil Pública – contra a Veracel Celulose S.A., o Instituto Brasileiro do
Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), estado da Bahia, o Conselho Estadual do Meio Ambiente
(Cepram) e o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema). Determina: suspensão do processo de
licenciamento ambiental em curso no Inema e Cepram para a ampliação das atividades de plantação de eucalipto
da Veracel Celulose S.A., no estado da Bahia (nº do processo no Inema: 2007-008437/TEC/LL-0084), “bem como
que se oficie ao Ibama, para o cumprimento de suas atribuições, e ao BNDES, para se acautelar em proceder com
financiamentos de empreendimentos ilícitos” (Eunápolis/BA, 9/8/2011).
b) Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público Federal e pelo Ministério Público do Estado da Bahia, que suspendeu
(9/8/2011) o processo de licenciamento ambiental em curso no Inema e Cepram para a ampliação das atividades de
plantação de eucalipto da Veracel Celulose S.A., no estado da Bahia, oficiando-se ao Ibama para o cumprimento de suas
obrigações e ao BNDES que se acautele em proceder com financiamentos de empreendimentos ilícitos. Posteriormente,
a liminar foi derrubada e a licença prévia concedida (portaria 2,253/2012 (http://ceas.com.br/?p=860)).

Impunidade
Não há conhecimento de casos em que a empresa tenha cumprido as condenações judiciais (descritas) e, quanto às multas, a
empresa não costuma pagá-las54.

177
CASO VERACEL

1 Estudo de Impacto Ambiental-Relatório de Impacto Ambiental (EIA-Rima) Veracel II.

2 VERACEL. Relatório Anual de Sustentabilidade 2011.

3 VERACEL. Relatório Anual de Sustentabilidade 2011.

4 Instituto de Meio Ambiente (IMA) – apresentação em março de 2009, (fonte: Cepedes, 2012).

5 CEPEDES; SOUZA, Ivonete G.; OVERBEEK, Winfridus. Violações socioambientais promovidas pela Veracel Celulose, propriedade da Stora Enso e Aracruz Celulose: uma história de ilegalidades, descaso

e ganância. São Paulo: Expressão Popular, 2008.

6 Disponível em: www.veracel.com.br. Acesso em 2011.

7 GOMES, Helder; OVERBEEK, Winfridus. Aracruz Credo - 40 anos de violações e resistência no ES. Rede Alerta Contra o Deserto Verde e Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais,

Vitória, 1a Edição, 2011.

8 Disponível em: http://www.fibria.com.br/web/pt/institucional/quem.htm. Acesso em: novembro de 2011.

9 “(...) o Grupo Votorantim é atualmente o quarto maior grupo privado do Brasil, concentra operações em setores de base da economia que demandam capital intensivo e alta escala de produção,

como cimento, mineração e metalurgia (alumínio, zinco e níquel), siderurgia, celulose e papel, suco concentrado de laranja e autogeração de energia. No mercado financeiro, atua por intermédio da

Votorantim Finanças e, em Novos Negócios, investe em empresas e projetos de biotecnologia, pesquisas minerais e especialidades químicas. (...) em 2001, criou a holding Votorantim Participações

(VPar).” Disponível em: http://www.votorantim.com.br. Acesso em: novembro de 2011.

10 “Posição acionária em 31 de julho de 2011. O BNDESPar tem uma participação de 21% vinculada a um acordo de acionistas com a VID (Votorantim) durante os primeiros três anos, e 10,9% nos

dois anos seguintes.” http://fibria.infoinvest.com.br/ptb/4540/ApresentaoCorporativaAgo2011.pdf. Apresentação Corporativa, agosto, 2011.

11 FIBRIA. Apresentação Corporativa, agosto, 2011. Disponível em: http://fibria.infoinvest.com.br/ptb/4540/ApresentaoCorporativaAgo2011.pdf. Acesso em: novembro de 2011.

12 “Com financiamentos totais do BNDES de R$ 1,45 bilhão, o projeto Veracel contempla, também, o plantio de 84 mil hectares de florestas e programas sociais nas áreas de educação, saúde e

infraestrutura”, Relatório Anual BNDES 2004. Disponível em: http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/bndes/bndes_es/Galerias/RelAnualEspanol/ra2004/cap/estrutura.swf?-39000. Acesso em: 7 de

setembro de 2012.

178
CASO VERACEL

13 “Em 2004, os desembolsos do BNDES para projetos de empresas do setor de papel e celulose alcançaram R$ 1,05 bilhão, com aumento de 144% em relação ao ano anterior”, Relatório Anual

BNDES 2004. Disponível em: http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/bndes/bndes_es/Galerias/RelAnualEspanol/ra2004/cap/estrutura.swf?-39000. Acesso em: 7 de setembro de 2012. “Diretamente,

o BNDES desembolsou R$ 13,8 bilhões [de 2001 a 2010], sobretudo para os grandes projetos de celulose e para a operação de renda variável da fusão da VCP com a Aracruz, que originou a Fibria,

maior produtora de celulose branqueada de eucalipto do mundo. (...) A média de desembolso no período foi alta: R$ 1,3 bilhão por ano. A maior liberação (R$ 3,6 bilhões) foi em 2009, um ano

atípico, tanto por causa da crise financeira internacional quanto pela operação de renda variável que deu origem à Fibria, impulsionando os desembolsos em R$ 2,4 bilhões.” VIDAL, A. C.; HORA, A. A

atuação do BNDES nos setores de florestas plantadas, painéis de madeira, celulose e papéis: o período 2001-2010. p. 133 e 147. Disponível em:

http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/conhecimento/bnset/set3404.pdf. Acesso em: 7 de setembro de 2012.

14 O então presidente Lula recebeu financiamento da Veracel Celulose para sua campanha (CEPEDES; SOUZA, OVERBEEK, 2008).

15 http://www.aracruz.com.br/show_inv.do?act=news&id=1000348&lang=1 e Relatório Anual Aracruz Celulose e da Veracel Celulose, 2004 (apud CEPEDES; SOUZA, OVERBEEK, 2008, p. 34).

16 CEPEDES; SOUZA, OVERBEEK, 2008.

17 CEPEDES; SOUZA, OVERBEEK, 2008.

18 Centro de Defesa dos Direitos Humanos (CDDH), Centro de Estudos e Pesquisas para o Desenvolvimento do Extremo Sul da Bahia (Cepedes), Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Grupo

Ambientalista da Bahia (Gamba), Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Rede Alerta Contra o Deserto Verde (RACDV), Greenpeace, entre outras.

19 O CRA foi transformado em Instituto do Meio Ambiente (IMA), pela Lei nº 11.050, de 6 de junho de 2008. Recentemente, o IMA foi extinto na junção com o Ingá (Instituto de Gestão das Águas e

Clima) pela Lei Estadual 12.212 de 4/5/2011, que criou o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), uma autarquia vinculada à Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema).

20 CEPEDES; SOUZA, OVERBEEK, 2008 e Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Celulose e Papel (Sindicelpa).

21 LER – Lesões por Esforços Repetitivos – e Dort – Doenças Osteoarticulares Relacionadas ao Trabalho.

22 CEPEDES; SOUZA, OVERBEEK, 2008. World Rainforest Movement (WRM); Grupo Ambientalista da Bahia (Gamba); Instituto de Estudos do Sul da Bahia (Iesb).

23 O centro de pesquisas Cepedes em Eunápolis tem imagens da Veracel – anos 1990 – na época ainda chamada de Veracruz, desmatando a Mata Atlântica com trator e correntões.

179
CASO VERACEL

24 “O Ministério Público tem provas de crimes ambientais, lavagem de dinheiro, sonegação fiscal e corrupção. Temos um depoimento de um vereador que foi comprado pela Veracel para convencer

seus colegas a aprovar leis favoráveis”, Promotor de Justiça João Alves da Silva Neto. Entrevista a Leopold Broers e An-Katrien Lecluyse An-Katrien. Revista Mondiaal Nieuws (MO*) em 2010;

Ministério Público do Estado da Bahia – Portaria 14/2008, 16/4/2008 – 2ª Promotoria Pública da Bahia; Jornal Brasil de Fato – Veracel compra servidores na Bahia para plantio irregular de eucalipto,

edição 285, 14 a 20 de agosto de 2008. www.nossacara.com, atualização em 31 de março de 2008.

25 Ministério Público do Estado da Bahia. 2ª Promotoria Pública da Bahia. Portaria 14/2008, de 16 de abril de 2008.

26 www.nossacara.com, 31 de março de 2008, apud CEPEDES, SOUZA, OVERBEEK , 2008.

27 Publicação pela Funai no Diário Oficial da União nº 41, de 29 de fevereiro de 2008, p. 109-113

28 Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEP), 2008.

29 Organizações sociais da região afirmam que a Veracel plantou eucalipto em cerca de 30 mil hectares de terras devolutas.

30 SEP, 1998; CEPEDES, 2005; CEPEDES, 2008.

31 SEP, 1998.

32 Os Filhos esquecidos da Veracel, Correio Brasiliense, 28 de agosto de 2008. Conselho Tutelar do Município de Itapebi/Ba; CEPEDES, 2008.

33 “Por hectare plantamos 833 árvores. Em sete anos elas atingem uma altura de trinta metros e estão prontas para a colheita. Durante o primeiro ano pulverizamos por hectare nove litros de

glifosato”, David Fernandes, funcionário da Veracel. Entrevista a Leopold Broers e An-Katrien Lecluyse An-Katrien. Revista Mondiaal Nieuws (MO*), 2010.

34 O Greenpeace, na época da Conferência Rio 92, fechou o porto de exportação da Aracruz Celulose (atual Fibria), denunciando contaminação indiscriminada no mar pelo efluente da fábrica de

celulose, inclusive com organoclorados como a dioxina.

35 VERACEL. Relatório Anual de Sustentabilidade 2011.

36 CEPEDES, 2011.

37 Revista Science. Trading Water for Carbon with Biological Sequestration. Robert B. Jakson ET AL. Dezembro de 2004, vol. 310, p.1944-1947; Livro do Cepedes, 2008.

38 CEPEDES, 2008, p. 83-87.

39 Notificação Judicial/MPE (art.867 e SS. Do CPC), Eunápolis/BA, 18 de julho de 2011. Disponível em: http://www.4shared.com/document/GM0vBKC8/Notificao_Ampliao_-__VERACEL.html.

180
CASO VERACEL

40 “A Suzano surpreende o mercado com uma nova aquisição. O grupo informou nesta terça-feira (7), a aquisição de 55% das empresas da área ambiental do Grupo Cepemar, através da criação

de uma nova holding, que inclui a Cepemar Meio Ambiente, a Marine Survey, a Unimar, a Terramar, a Cepemar Enviromental Services (EUA) e a participação na empresa Brasil Supply. Com essa

iniciativa, o grupo marca, definitivamente, sua entrada no setor relacionado ao Meio Ambiente”. Disponível em: http://pop.celuloseonline.com.br/noticias/Nova+holding+da+Suzano+prev+investimen

tos+de+R+50+milhes. Acesso em: 4 de setembro de 2011.

41 CEPEDES; SOUZA, OVERBEEK, 2008.

42 CEPEDES; SOUZA, OVERBEEK, 2008.

43 “Cabe observar que a atuação da Fibria não é diferente da Veracel, com diversos casos de abusos dos Direitos Humanos, como invasão de terras indígenas e quilombolas no estado do Espírito

Santo, desvio do cursos de água, envenenamento de águas, desrespeito às comunidades Indígenas e quilombolas, entre muitos outros”. Cf. GOMES, Helder; OVERBEEK, Winfridus. Aracruz Credo - 40

anos de violações e resistência no ES. Rede Alerta Contra o Deserto Verde e Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, Vitória, 1a Edição, 2011.

44 CEPEDES, 2008.

45 Ibama multa Aracruz em R$ 606 mil, Jornal da Tarde, 4 de abril de 2006.

46 Tribunal Superior Eleitoral, www.tse.gov.br.

47 Tribunal Superior Eleitoral, www.tse.gov.br.

48 Tribunal Superior Eleitoral, www.tse.gov.br.

49 DVD Porque nós não comemos eucalipto?, Escola Nórdica, UbV, MST, 2007.

50 DVD Porque nós não comemos eucalipto?, Escola Nórdica, UbV, MST, 2007.

51 CEPEDES. Carta Aberta às mulheres e homens de boa vontade. 20 de junho de 2007.

52 Ministério Público Federal da Bahia. Nota à Imprensa: Veracel é condenada a pagar R$ 20 milhões por desmatamento. Assessoria de Comunicação, 10 de julho de 2008.

53 Fonte: Informativo Cepedes, 5 de outubro de 2009.

54 CEPEDES, 2008.

181
Megaeventos Esportivos
1- Descrição do empreendimento

Megaprojetos de infraestrutura, mobilidade urbana, reformas e/ou


construções de estádios de futebol e projetos de urbanização a serem
realizados com a alegação de que são necessários para que o Brasil
receba a Copa do Mundo de futebol, a ser sediada por 12 cidades
brasileiras (Manaus, Cuiabá, Fortaleza, Natal, Recife, Salvador, Rio de
Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, São Paulo, Curitiba e Porto Alegre),
em 2014, e as Olimpíadas, na cidade do Rio de Janeiro, em 2016.

Grande parte dessas megaobras será construída, com financiamento


público, pelas sete maiores empreiteiras do país: Odebrecht, Camargo
Corrêa, Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão, OAS, Delta e Galvão
Engenharia. Juntas, elas somaram, em 2010, uma receita bruta de R$ 28,5
bilhões1.

O estudo de viabilidade dos projetos ficou a cargo do Consórcio


Copa 2014. O Consórcio “consiste em uma entidade consultiva formada
por empresas privadas e voltada a auxiliar o poder público federal a tomar decisões relacionadas ao evento. Neste âmbito
consta apenas o chamado Consórcio Copa 2014. Segundo relatório do Tribunal de Contas da União (TCU), de 2010, sobre
os preparativos para a Copa do Mundo, a Empresa Brasileira de Engenharia de Infraestrutura Ltda. (Ebei), a Galo Publicidade,
Produção e Marketing Ltda., a Value Partners Brasil Ltda., a Value Partners Management Consulting Ltda. e a Enerconsult
S.A. foram conjuntamente contratadas pelo Ministério dos Esportes para realizarem os primeiros estudos de viabilidade
demonstrando as necessidades de cada uma das cidades-sede brasileiras para o fornecimento da infraestrutura demandada
pela Federação Internacional de Futebol (Fifa)”2.

2- Valor do empréstimo

Cerca de 50% dos recursos destinados aos empreendimentos provêm do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
e Social (BNDES) e da Caixa Econômica Federal (CEF), com utilização de recursos provenientes do Fundo de Amparo ao
Trabalhador (FAT)3.

182
Megaeventos Esportivos

Segundo o BNDES, estas são as ações empreendidas em relação à Copa 2014, no exercício de 2010:
“Lançamento dos Programas BNDES ProCopa Turismo e BNDES ProCopa Arenas. O primeiro tem dotação
orçamentária de R$ 1 bilhão e é destinado à construção, reforma e ampliação da rede hoteleira no Brasil, tendo
em vista a demanda projetada pela realização da Copa do Mundo de 2014. (...) Os prazos de financiamento
poderão chegar a até 12 anos, em caso de modernização, e até 18 anos para construção de novas unidades. Para
grandes empresas, a participação máxima do Banco será de 80%. Para micro, pequenas e médias empresas
(MPMEs), o percentual pode atingir 100%. O segundo programa possui dotação orçamentária de R$ 4,8 bilhões
para apoio a projetos de construção e reforma das arenas que receberão os jogos da Copa e de urbanização do
seu entorno. (...) Os prazos de financiamento são de até 180 meses, já incluído o período de carência de até 36
meses. A participação máxima do BNDES é de até 75% do custo total, limitada a R$ 400 milhões por projeto,
incluindo os investimentos no entorno” (BNDES, Relatório de Gestão/Exercício 2010, p. 15)4.

Acrescente-se ainda, segundo o Relatório do Tribunal de Contas, o empréstimo do BNDES de R$ 1,3 bilhão para a obra da
Transcarioca ou Corredor T5, única obra de mobilidade urbana em que o Banco estaria envolvido, que fará a ligação do bairro
Barra da Tijuca ao Aeroporto Internacional Tom Jobim, no Rio de Janeiro. Além destas obras, já se tem a previsão, conforme
estudo do Instituto Mais Democracia, de comprometimento do BNDES no financiamento aos investimentos que serão
necessários no caso das privatizações dos aeroportos de Guarulhos e Viracopos, em São Paulo, e Juscelino Kubitschek, em
Brasília – a estimativa é de algo em torno de RS 10 bilhões.

3- Impactos socioambientais

Modelo de planejamento importado, sem raízes e fora do contexto


As demandas de intervenções urbanas têm sido dadas emergencialmente para atender aos critérios exigidos pelos
patrocinadores e não pela população e pelos planejadores locais, no contexto das reais necessidades das cidades
e de seus moradores e para além da realização desses dois eventos esportivos. Além disso, os megaeventos têm se
apresentado como a oportunidade ideal para a realização de um processo de “higienização”, já em curso, nas cidades-sede
da Copa e no Rio de Janeiro5.

Violação do direito à moradia


A combinação da insegurança da posse da propriedade com o fato de serem comunidades de baixa renda localizadas em frentes
de expansão imobiliária tem feito dessas comunidades focos preferenciais para a passagem de obras como a do Veículo Leve
sobre Trilhos (VLT) ou mesmo de projetos de urbanização que retiram a população desses lugares6.
A realização dos megaeventos esportivos “agrega um novo elemento: grandes projetos urbanos com extraordinários impactos

183
Megaeventos Esportivos

econômicos, fundiários, urbanísticos, ambientais e sociais. Dentre estes últimos sobressai a remoção forçada, em massa, de
150.000 a 170.000 pessoas (os governos se recusam a dar informações precisas). Dentre os inúmeros casos relatados pelos
Comitês Populares da Copa destas cidades, emerge um padrão claro e de abrangência nacional. As ações governamentais
são, em sua maioria, comandadas pelo poder público municipal com o apoio das instâncias estaduais e, em alguns casos,
federais, tendo como objetivo específico a retirada de moradias utilizadas de maneira mansa e pacífica, ininterruptamente, sem
oposição do proprietário e por prazo superior a cinco anos (premissas para a usucapião urbana). Com o objetivo mais geral de
limpar o terreno para grandes projetos imobiliários com fins comerciais”7.
Remoções e despejos
Não há uma estimativa nacional oficial de quanto será gasto, de quantas famílias ou de quantas comunidades devem ser
removidas pelas obras ligadas à Copa do Mundo, às Olimpíadas e às Paraolimpíadas de 2016. De acordo com dados do dossiê
“Megaeventos e Violações de Direitos Humanos no Brasil”, realizado pela Articulação Nacional dos Comitês Populares da
Copa (Ancop), até o início de dezembro de 2011, havia 21 casos de vilas e favelas que foram desocupadas nas cidades de Belo
Horizonte, Curitiba, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. Segundo os relatos presentes no estudo, os
despejos aconteceram sem respeitar legislação sobre o tema8.

Segundo o dossiê, estes são “alguns dos casos mais alarmantes, já que trata da atividade fim, quando o poder público já não
mais negocia, apenas mostra sua força diante do cidadão mais desprovido. São aplicadas estratégias de guerra e perseguição,
como a marcação de casas a tinta sem esclarecimentos, a invasão de domicílios sem mandados judiciais, a apropriação
indevida e a destruição de bens móveis, a terceirização da violência verbal contra os moradores, as ameaças à integridade física
e aos direitos fundamentais das famílias, o corte dos serviços públicos ou a demolição e o abandono dos escombros de uma
em cada três casas subsequentes, para que toda e qualquer família tenha como vizinho o cenário de terror”9.

Entre outros casos, o dossiê cita ainda o caso emblemático do Parque Linear Várzeas do Tietê, em São Paulo, onde mais de 4
mil famílias já foram removidas do local sem serem consultadas sobre a implantação do parque e sem saber para onde iriam.
Outras 6 mil famílias aguardam sem saber seu destino10.

Reassentamentos problemáticos
Segundo os moradores, em geral, estão sendo oferecidas alternativas de moradia em locais muito distantes do original, onde
não existem postos de saúde nem rede de transporte público. Também há relatos sobre conjuntos habitacionais que estão
sendo construídos em aterros sanitários ou em locais onde funcionaram lixões, como é o caso de um conjunto que ficará muito
próximo do antigo lixão do Jangurussu, em Fortaleza11.

184
Megaeventos Esportivos

Falta de informação e de canais de diálogo com o poder público


“A falta de informações, de conhecimento dos projetos e de canais de diálogo com o poder público é também uma constante
em todas as comunidades. Sem nenhuma conversa prévia, de repente, um morador acorda de manhã cedo e vê pessoas
medindo e marcando sua casa, sem saber o que se passa.”12
De acordo com o dossiê da Ancop, as estratégias utilizadas uniformemente em todo o território nacional se iniciam quase
sempre pela produção sistemática da desinformação, que se alimenta de notícias truncadas ou falsas, a que se somam
propaganda enganosa e boatos. “Em seguida, começam a aparecer as ameaças. Caso se manifeste alguma resistência, mesmo
que desorganizada, advém o recrudescimento da pressão política e psicológica. Ato final: a retirada dos serviços públicos e a
remoção violenta. Em todas as fases há uma variada combinação de violações aos direitos humanos: direito à moradia e direito
à informação nestas situações caminham juntos, como juntas caminham as violações que se concretizam.”13

Mudanças recentes no plano diretor municipal


Propostas pelo poder Executivo, estas mudanças dificultaram bastante a situação das comunidades mais vulneráveis. “Com
elas, foram retirados das áreas de ZEIS (Zona Especial de Interesse Social) os imóveis vazios próximos às áreas onde estão
comunidades que foram definidas como ZEIS para que pudessem ser urbanizadas e consolidadas. Ou seja, nestas áreas,
agora, será ainda mais difícil transformar imóveis vazios em habitação de interesse social. E nas proximidades de muitas das
comunidades que hoje estão sendo removidas existem muitos terrenos e imóveis vazios que poderiam ser reutilizados e servir de
alternativa de moradia a essas pessoas.”14

Violações cometidas em relação aos acordos internacionais


1 - Organização das Nações Unidas sobre o Direito à Cidade e à Moradia Digna – Comentário Geral nº 4, sobre o
Direito à moradia adequada, trazido pelo Art. 11 do Pacto Internacional pelos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais:
Segurança Jurídica da Posse; Disponibilidade de Serviços e Infraestrutura; Custo da Moradia Acessível; Habitabilidade;
Acessibilidade; Localização; Adequação Cultural.

Em maio de 2012, Estados integrantes do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU)
recomendaram ao Brasil que não permitisse que as obras de preparação do país para a Copa de 2014 e os Jogos Olímpicos
de 2016 gerassem violações do direito à moradia ao provocarem remoções forçadas. “A discussão se deu no âmbito da
participação do país na Revisão Periódica Universal (UPR), um mecanismo criado pela Assembleia Geral da ONU em conjunto
com o Conselho para avaliar, a cada quatro anos, a situação dos direitos humanos em cada país. O tema do direito à moradia
no contexto dos megaeventos foi um dos principais objetos das recomendações que a ONU enviará ao Brasil. (...) Em março
de 2010, este órgão aprovou uma resolução sobre megaeventos esportivos e direito à moradia, na qual ‘clama os Estados, no
contexto dos megaeventos, a promover o direito à moradia adequada e a criar um legado habitacional sustentável’.”15

185
Megaeventos Esportivos

2 - Na Relatoria da ONU para o Direito à Moradia Adequada, existem, desde 2007, os “Princípios básicos e orientações
para remoções e despejos causados por projetos de desenvolvimento”16.

3 - Além disso, em 1997, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, que monitora a implementação
do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc), do qual o Brasil é signatário, publicou o
Comentário Geral nº 7, que trata de despejos e remoções forçadas17.

Trabalho e precarização
Em relação ao comércio ambulante e/ou trabalhadores informais, as prefeituras têm atuado de modo autoritário, higienista e
excludente.
Segundo a primeira edição do dossiê da Ancop, “o impacto para os trabalhadores informais já vem sendo sentido nas cidades-
sede para a Copa do Mundo, e não se restringe à impossibilidade de atuar em vias de acesso e no entorno dos estádios. Com
uma perspectiva criminalizadora da pobreza e sob um discurso de incentivo ao turismo e de ordenação e limpeza de áreas
valorizadas das cidades, muitas prefeituras estão implementando medidas de repressão ao trabalho informal. Mesmo antes de a
Copa iniciar e de ser aprovada a Lei Geral da Copa, já são constatadas restrições ao direito ao trabalho no entorno dos estádios e
nas cercanias de eventos relacionados”. O dossiê destaca os casos de Belo Horizonte, São Paulo, Brasília e Salvador18.

De modo geral, conforme o dossiê, “espaços tradicionais de comércio informal, como ruas movimentadas, praças, parques,
praias, camelódromos, feiras e mercados livres, estão sendo restringidos através de regulamentações excessivas e exigências
descabidas ou abusivas. Com isso, vendedores ambulantes, artesãos, artistas de rua, feirantes, profissionais do sexo e outros
trabalhadores estão tendo suas atividades prejudicadas ou mesmo inviabilizadas, em claro desrespeito do direito ao trabalho.
(...) Também aqui, verificam-se violações ao direito à informação e à participação, pois os trabalhadores informais não são
consultados sobre os planos oficiais de remanejamento e zoneamento urbano do comércio”19.
“Sejam operários empregados e subempregados nas grandes obras, como estádios e rodovias, sejam trabalhadores informais
reprimidos no exercício de sua atividade econômica, observa-se um padrão de crescente precarização, conduzido por
empresas e consórcios contratantes – sob a omissão dos órgãos fiscalizadores – e pelo próprio Estado.”20
No plano supranacional, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ratificado pelo Brasil em 1992,
prevê em seu art. 6, 1, que “Os Estados Partes do Presente Pacto reconhecem o direito ao trabalho, que compreende o direito
de toda pessoa de ter a possibilidade de ganhar a vida mediante um trabalho livremente escolhido ou aceito, e tomarão
medidas apropriadas para salvaguarda esse direito”. E ainda estabelece, no dispositivo seguinte, “o direito de toda pessoa de
gozar de condições de trabalho justas e favoráveis”, destacando a necessidade de remuneração adequada, segurança, iguais
oportunidades, descanso, lazer, férias, etc. Nesse sentido, o país aderiu ainda a grande parte das convenções da Organização

186
Megaeventos Esportivos
Internacional do Trabalho (OIT). Tanto o direito ‘ao’ quanto o direito ‘do’ trabalho encontram também proteção no ordenamento
jurídico brasileiro. A Constituição Federal de 1988 resguarda o primeiro enquanto direito fundamental social destacado no
caput do art. 6, ao passo que o art. 7 discrimina em espécie o rol de garantias e princípios relativos ao direito do trabalho e sua
proteção integral, regulados também em legislações próprias como a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). “A despeito de
todo esse sistema, porém, os casos de graves violações de direitos em nome da Copa do Mundo e das Olimpíadas se acumulam
e avançam para a perseguição a líderes sindicais e desrespeito às liberdades de organização, greve e manifestação”, afirma o
mencionado dossiê21.

Greves e paralisações
Um dos capítulos do dossiê22 é dedicado a questões trabalhistas nas obras da Copa. Ao todo, até o final de 2011, ocorreram dez
paralisações de trabalhadores nas obras de seis dos doze estádios que serão usados no Mundial (em Belo Horizonte, Brasília,
Cuiabá, Fortaleza, Recife e no Rio de Janeiro):
Arena Pantanal – Estádio Governador José Fragelli, “Verdão”, Cuiabá (MT)
Empresas responsáveis: Santa Bárbara e Mendes Júnior
Paralisação: 18 de março de 2011; duração: 30 minutos

Arena Fonte Nova, Salvador (BA)


Empresas responsáveis: Odebrecht e OAS
Ameaças de paralisação: abril, agosto e setembro de 2011

Estádio Plácido Aderaldo Castelo – Castelão, Fortaleza (CE)


Empresas responsáveis: Galvão Engenharia S.A. e Andrade Mendonça Construtora Ltda.
Paralisação: 13 de junho de 2011; duração: um dia

Estádio Governador Magalhães Pinto – Mineirão, Belo Horizonte (MG)


Empresas responsáveis: Construcap, Egesa e Hap
Paralisação: 15 a 20 de junho de 2011; duração: cinco dias

Arena Pernambuco, São Lourenço da Mata, região metropolitana de Recife (PE)


Empresa responsável: Odebrecht
1a paralisação: 30 de junho de 2011; duração: três horas
2a paralisação: 19 de outubro de 2011; duração: um dia
3a paralisação: 1o a 6 de novembro de 2011; duração: seis dias

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Megaeventos Esportivos

Estádio Mário Filho – Maracanã, Rio de Janeiro (RJ)


Empresas responsáveis: Odebrecht, Delta e Andrade Gutierrez
1a paralisação: 17 a 22 de agosto de 2011; duração: cinco dias
2a paralisação: 1o a 19 de setembro de 2011; duração: dezenove dias

Estádio Nacional de Brasília – Mané Garrincha, Brasília (DF)


Empresas responsáveis: Via Engenharia e Andrade Gutierrez
Paralisação: 26 de outubro a 4 de novembro de 2011; duração: dez dias

Exceções e ilegalidades
“Conhecida como ‘Ato Olímpico’, a Lei n. 12.035, de 1o de outubro de 2009 é a primeira de uma longa lista de medidas legais e
dispositivos normativos que instauram as bases de um ordenamento e institucionalidade que não podem ser compreendidos
senão como uma infração ao estado de direito vigente. Nesta lei, entre outras coisas, são asseguradas condições excepcionais e
privilégios para a obtenção de vistos, exercício profissional de pessoal credenciado pelo COI [Comitê Olímpico Internacional] e
empresas que o patrocinam, cessão de patrimônio público imobiliário, proteção de marcas e símbolos relacionados aos Jogos
Rio 2016, concessão de exclusividade para o uso (e venda) de espaços publicitários e prestação de serviços vários sem nenhum
custo para o Comitê Organizador. Ademais, num capitalismo do qual o risco teria sido totalmente banido, a lei autoriza
genericamente ‘destinação de recursos para cobrir eventuais déficits operacionais do Comitê Organizador dos Jogos Rio
2016’. Segue-se, a partir daí, a nível federal, estadual e municipal, uma interminável lista de leis, medidas provisórias, decretos,
resoluções, portarias e atos administrativos de vários tipos que instauram o que vem sendo chamado de ‘cidade de exceção’.
Todas as isenções fiscais e tributárias são oferecidas às entidades organizadoras, mas também a uma infinidade de ‘cidadãos
mais iguais’, que não precisam pagar impostos sobre serviços, tributos territoriais urbanos, taxas alfandegárias. Planos diretores
e outros diplomas, muitos deles resultado de longos e ricos debates na sociedade, caducam em ritmo vertiginoso diante do
apetite de empreiteiras, especuladores imobiliários, capitais do setor hoteleiro e turístico e, evidentemente, os patrocinadores
dos megaeventos.”23

Recursos públicos para interesses privados


“Empresários, políticos, bancos nacionais e internacionais estão faturando alto com a Copa e, o pior de tudo, com o nosso
dinheiro, em nome de todo o povo brasileiro sem que possamos decidir como será aplicado e quanto de recurso será destinado
para estas megaobras. Aqueles que já lucram todos os dias (banqueiros, empreiteiros, e ‘donos’ do futebol) continuam sendo
beneficiados com a política adotada para a Copa, benefícios que saem da prefeitura, do governo estadual e/ou federal. Sob
o pretexto da realização da Copa, uma série de favorecimentos ocorre por parte do Estado brasileiro (prefeituras, governos
estadual e federal), como as licitações obscuras e a privatização. O dinheiro público, que deveria ser usado para os serviços de

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Megaeventos Esportivos

saúde, educação, moradia, transporte, entre outros, passa a ser remanejado para dar conta da falsa ‘urgência’ das obras da Copa.
Temos escutado dos ‘donos do futebol’ que as empresas e bancos vão ajudar no desenvolvimento. Isso não é verdade, eles
investem onde podem lucrar! Cartão vermelho para eles (empresas, bancos e aos ‘donos do futebol’).”24

Criminalização e repressão
A segunda edição do dossiê Megaeventos e Violações de Direitos Humanos no Brasil, lançada em junho de 2012 pela Ancop,
denuncia tentativas de repressão aos movimentos grevistas: em Brasília e Pernambuco, funcionários ligados às paralisações foram
demitidos arbitrariamente. Nas obras da Arena Pernambuco há relatos de ação truculenta da polícia para impedir as manifestações.

Autoritarismo, sonegação de informações e vedação à participação popular


“Em sua maioria, as decisões sobre destinação orçamentária, prioridades eleitas e projetos previstos para a Copa do Mundo
de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 não foram, em nenhum momento, submetidas ao escrutínio e ao debate públicos,
sendo não raro implementadas através de medidas administrativas que passam ao largo tanto dos espaços consolidados de
participação da sociedade civil, tais como os Conselhos da Cidade e de Política Urbana, quanto da apreciação dos próprios
sujeitos afetados, primeiros interessados em manifestar-se. (...) Nos poucos casos em que se verificou a realização de audiências
públicas e estudos de impacto, argumentos tecnocráticos e a falta de vontade política dos gestores tornaram inócuas as
tentativas populares de problematização dos projetos, desprezando denúncias de irregularidades e alternativas indicadas.”25
Segundo o dossiê, “quanto aos conflitos judicializados, a tendência predominante é de desconsideração dos princípios
constitucionais da ampla defesa e do contraditório (art. 5, inciso LV), com processos de tramitação sumária e decisões liminares
que minam as possibilidades de intervenção das partes hipossuficientes, deixando-as à mercê da arbitrariedade dos gestores
públicos. (...) os agentes não apenas escondem dados, como intencionalmente disseminam falsas informações”26.

Violação do direito ao acesso a serviços públicos


O dossiê denuncia que “entre as várias estratégias utilizadas pelo poder público para pressionar comunidades inteiras
ou ainda pior, esfaceladas, divididas, está o corte ou a interposição de dificuldades de acesso aos serviços essenciais
à moradia adequada (...). A suspensão de coleta de lixo é prática adotada nacionalmente, enquanto em alguns casos a
municipalidade e o estado suspendem também (ou não instalam a infraestrutura necessária) o fornecimento de energia,
água tratada, esgotamento e comunicações. A permanência por tempo indeterminado de escombros resultantes da
demolição de unidades habitacionais em áreas de remoção, causando terror, risco de doenças e desabamentos, foi praticada
sistematicamente na cidade do Rio de Janeiro”27.

189
Megaeventos Esportivos
Mobilidade urbana
“Se é verdade que uma parcela importante dos recursos púbicos a serem investidos para a Copa e as Olimpíadas estão voltados
para a mobilidade urbana, é lamentável constatar que, quase sempre, os projetos privilegiam a circulação e acesso das áreas
nobres, em processo de valorização, em vez de atenderem à demanda insatisfeita acumulada ao longo das últimas décadas de
crescimento urbano, e que penaliza as condições de transporte e circulação dos bairros populares e comunidades periféricas
mais pobres.”28

4- Condicionantes ou salvaguardas do BNDES

As exigências do Banco para o Pro-Copa Arenas são, entre outras: estudo de viabilidade econômico-financeira da Arena,
contemplando, sobretudo, sua sustentabilidade financeira em longo prazo; aprovação dos projetos também por entidade
certificadora de qualidade ambiental, reconhecida internacionalmente ou acreditada pelo Sistema Nacional de Metrologia,
Normalização e Qualidade Industrial (Sinmetro).

A linha de crédito BNDES Pro-Copa Turismo disponibiliza recursos para: construção, reforma, ampliação e modernização de
hotéis. O Banco diz que oferecerá condições mais favoráveis aos projetos que levem em conta a preocupação com a eficiência
energética e a sustentabilidade ambiental. Por exemplo, a ampliação do prazo de financiamento para quem obtiver certificação
nos dois itens29.

Importa acrescentar que o Banco disponibiliza, diferentemente do que faz no caso dos empréstimos a empresas privadas,
os contratos de financiamento com entes públicos. A exemplo do contrato de financiamento com a prefeitura do Rio de
Janeiro para a realização da obra da Transcarioca. No referido contrato, o BNDES insta a prefeitura a não apenas observar o
cumprimento do que determina a legislação ambiental quanto à observância dos licenciamentos, mas a “adotar, durante o
período de vigência deste contrato, medidas e ações destinadas a corrigir danos ao meio ambiente”.

5- Condicionantes dos órgãos ambientais

Estudos de Impacto Ambiental e Licenciamento


“Por ocasião da crise energética de 2001, a Resolução Conama [Conselho Nacional do Meio Ambiente] nº 279/01 possibilitou
a realização do Relatório Ambiental Simplificado (RAS), com tempo de tramitação reduzido, para obras do setor elétrico de
pequeno porte. Para as obras da Copa e das Olimpíadas, foi aberta mais uma exceção. Conforme apresentado no capítulo
Acesso à informação, participação e representação popular, criou-se o Grupo de Trabalho Meio Ambiente para propor e
articular ações de sustentabilidade ambiental para a Copa 2014. Na prática, o grupo tem buscado formas de facilitação em

190
Megaeventos Esportivos

processos de licenciamento ambiental para os megaeventos. Apesar desta ‘flexibilização’, as prefeituras não abrem mão de
burlar a legislação ambiental, utilizando-se do Relatório Ambiental Simplificado (RAS) para obras complexas e desconhecendo
de maneira grosseira os impactos sociais e ambientais.” Como se verifica no caso da Transcarioca, no Rio de Janeiro, em que
o TCU instou o Banco a não liberar a segunda parcela do financiamento, referente à Etapa 2 da obra, por falta de relatório de
impacto ambiental, além de questionar o uso do RAS para uma obra com extenso impacto socioambiental30.

A revisão do Código Florestal aprovou uma emenda que permite o desmatamento de Áreas de Preservação Permanente (APPs)
para os megaeventos: “estádios e demais instalações necessárias à realização de competições esportivas municipais, estaduais,
nacionais ou internacionais”. A justificativa da inserção é “garantir com urgência as construções necessárias para viabilizar a
Copa do Mundo 2014 e as Olimpíadas 2016, pois o Brasil tem pressa”31.
Ainda referindo-se ao novo Código Florestal, o dossiê relata que “mantém-se uma lista extensa de exceções, que permitem a
supressão de vegetação e realização de obras em APPs, para citar algumas:
Casos de utilidade pública: b) as obras de infraestrutura destinadas às concessões e aos serviços públicos de transporte,
sistema viário, inclusive aquele necessário aos parcelamentos de solo urbano aprovados pelos municípios, saneamento,
gestão de resíduos, salineiras, energia, telecomunicações, radiodifusão, estaduais, nacionais ou internacionais, bem como
mineração, exceto, neste último caso, a extração de areia, argila, saibro e cascalho.
Casos de interesse social: c) a implantação de infraestrutura pública destinada a esportes, lazer e atividades educacionais e
culturais ao ar livre em áreas urbanas e rurais consolidadas, observadas as condições estabelecidas nesta Lei32”.

Com relação às APPs, o dossiê destaca as “arbitrariedades cometidas e as justificativas para acionar a legislação ambiental contra
populações vulneráveis (inclusive no sentido de retirar seu direito à moradia) e favorecer empreendimentos de interesse do
mercado, como: a redução de APPs e alteração de leis urbanísticas sem estudos de impacto e a simplificação de procedimentos
de licenciamento ambiental para projetos de ‘interesse público’”33.

6- Atuação do Ministério Público

O MPF, juntamente com o Tribunal de Contas da União e a Controladoria Geral da União, constituiu o Grupo de Trabalho
da Copa para acompanhar a aplicação dos recursos públicos nas obras referentes a este evento. Vale dizer que, por conta de
irregularidades nas obras dos estádios Amazonas (AM) e Maracanã (RJ), em que se identificou sobrepreço em seus orçamentos,
o TCU instou o BNDES a introduzir cláusulas em seus contratos, que estabelecem que as liberações acima de 20% do valor do
financiamento estarão condicionadas à aprovação pelo TCU dos orçamentos dos projetos. No caso de persistir o sobrepreço,
caberá ao Banco descontar o valor acrescido indevidamente no valor do empréstimo.

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Megaeventos Esportivos

1 Dossiê “Megaeventos e Violações de Direitos Humanos no Brasil”, realizado pela 19 Idem à nota de rodapé 1.
Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (Ancop), com duas edições, a
primeira em dezembro de 2011 e a segunda em junho de 2012. Disponíveis em: http:// 20 Idem à nota de rodapé 1.
www.ippur.ufrj.br/index.php?option=com_content&view=article&id=451:laborator
io-etternippur-publica-dossie-megaeventos-e-violacoes-de-direitos-humanos-no-brasil- 21 Idem à nota de rodapé 1.
&catid=67:outros&Itemid=7 e http://www.portalpopulardacopa.org.br/index.php?option=com_
k2&view=item&id=198:dossi%C3%AA-nacional-de-viola%C3%A7%C3%B5es-de-direitos- 22 Idem à nota de rodapé 1.
humanos, respectivamente.
23 “Lei Geral da Copa: um ‘chute no traseiro’ do povo”, Articulação Nacional dos Comitês
2 Idem. Populares da Copa (Ancop), 8 de março de 2012: http://www.portalpopulardacopa.org.br/
index.php?option=com_k2&view=item&id=230:lei-geral-da-copa-um-%E2%80%9Cchute-
3 Idem. no-traseiro%E2%80%9D. “Dilma sanciona Lei Geral da Copa, veta ‘ingresso popular’ e dá
brecha para meia-entrada”, Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (Ancop),
4 Disponível em: http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/sites/default/bndes_pt/Galerias/ 10 de junho de 2012: http://www.portalpopulardacopa.org.br/index.php?option=com_
Arquivos/empresa/download/Relat_Gestao_BNDES_BPAR_FINAME_2010.pdf. k2&view=item&id=253:dilma-sanciona-lei-geral-da-copa-veta-ingresso-popular-e-
d%C3%A1-brecha-para-meia-entrada. “Brasil será avaliado na ONU por violações decorrentes
5 Idem à nota de rodapé 1. de megaeventos esportivos”, Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (Ancop),
26 de maio de 2012: http://www.portalpopulardacopa.org.br/index.php?option=com_
6 “Fortaleza: no olho do furacão da Copa”, blog de Raquel Rolnik, urbanista, professora k2&view=item&id=251:brasil-ser%C3%A1-avaliado-na-onu-por-viola%C3%A7%C3%B5es-
da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e relatora decorrentes-de-megaeventos-esportivos>. “Lei Geral da Copa: O Jogo dos 7 Erros”, Articulação
especial da Organização das Nações Unidas para o direito à moradia adequada, em 18 Nacional dos Comitês Populares da Copa (Ancop), 10 de maio de2012: http://www.
de junho de 2012. portalpopulardacopa.org.br/index.php?option=com_k2&view=item&id=247:lei-geral-da-
copa-o-jogo-dos-7-erros. Idem à nota de rodapé 1.
7 Idem à nota de rodapé 1.
24 Baseado em texto introdutório sobre financiamento de cartilha do Comitê Popular da
8 Idem à nota de rodapé 1. Copa São Paulo: http://www.portalpopulardacopa.org.br/index.php?option=com_content&vie
w=article&id=372&Itemid=273). “Auditoria indica superfaturamento de R$ 10,7 milhões nos
9 Idem à nota de rodapé 1. custos do estádio de Brasília”, Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (Ancop),
10 de fevereiro de 2012: http://www.portalpopulardacopa.org.br/index.php?option=com_
10 Idem à nota de rodapé 1. k2&view=item&id=220:auditoria-indica-superfaturamento-estadio-brasilia. “Areia movediça:
a Copa sob as dunas”, Comitê Popular da Copa de Natal, em 13 de junho de 2012: http://
11 “Fortaleza: no olho do furacão da Copa”, blog de Raquel Rolnik, urbanista, professora da www.portalpopulardacopa.org.br/index.php?option=com_k2&view=item&id=256:areia-
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e relatora especial da movedi%C3%A7a-a-copa-sob-as-dunas-1.
Organização das Nações Unidas para o direito à moradia adequada, em 18 de junho de 2012.
25 Idem à nota de rodapé 1, p. 52
12 “Fortaleza: no olho do furacão da Copa”, blog de Raquel Rolnik, urbanista, professora da
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e relatora especial da 26 Idem à nota de rodapé 1, p. 54.
Organização das Nações Unidas para o direito à moradia adequada, em 18 de junho de 2012.
27 Idem à nota de rodapé 1, p. 65-66.
13 Idem à nota de rodapé 1.
28 Idem à nota de rodapé 1, p. 73.
14 “Fortaleza: no olho do furacão da Copa”, blog de Raquel Rolnik, urbanista, professora da
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e relatora especial da 29 “BNDES cria programas para arenas da Copa e hotéis”, publicado em 13 de janeiro de
Organização das Nações Unidas para o direito à moradia adequada, em 18 de junho de 2012. 2010. Disponível em: http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/bndes/bndes_pt/Institucional/
Sala_de_Imprensa/Noticias/2010/todas/20100113_programas.html.
15 “ONU questiona o Brasil sobre violações do direito à moradia em obras da Copa e das
Olimpíadas”, blog de Raquel Rolnik, urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e 30 Idem à nota de rodapé 1, p. 57.
Urbanismo da Universidade de São Paulo e relatora especial da Organização das Nações Unidas
para o direito à moradia adequada, em 29 de maio de 2012. 31 http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/codigo-florestal-permite-desmatamento-para-obras-
da-copa. Idem à nota de rodapé 1, p. 58.
16 Disponível em: http://direitoamoradia.org/?p=7535&lang=pt).
32 Projeto de Lei para o Novo Código Florestal, 6 de dezembro de 2011. Idem à nota de rodapé
17 Disponível em: http://direitoamoradia.org/?p=13642&lang=pt. 1, p. 58.

18 Idem à nota de rodapé 1. 33 Idem à nota de rodapé 1, p. 58.

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Vale Moçambique

1- Descrição do empreendimento1

O projeto da Vale Moçambique consiste na pesquisa, prospecção


e exploração mineira na bacia carbonífera de Moatize, cuja licença
foi concedida à empresa, em julho de 2007, para operação em uma
área de 23.780 hectares. O jazigo mineral concedido é avaliado
como uma das maiores reservas do mundo, com 838 milhões de
toneladas métricas, correspondentes a 35 anos de exploração. Está
situado em uma das maiores reservas carboníferas do mundo, no
distrito de Moatize, província de Tete, centro de Moçambique, a
aproximadamente 1.700 km ao norte de Maputo, capital do país. A
Vale Moçambique Ltda. é um consórcio composto da Vale, que detém
85% do projeto, sendo os outros 15% de opção de compra que pode
ser exercida por empresários moçambicanos, que ainda não foram
tornados públicos, e pelo governo de Moçambique. O investimento
inicial é de US$ 1,3 bilhão, e a Vale vai aumentá-lo para US$ 4 bilhões2.

A produção anual é de 26 milhões de toneladas de carvão bruto na fase de plena exploração que vão gerar cerca de 11 milhões
de toneladas de carvão metalúrgico e carvão energético, dos quais 8,5 milhões de toneladas (Mtpa) de carvão metalúrgico (hard
coking coal) e 2,5 Mtpa de carvão térmico. O carvão remanescente do processo de tratamento do carvão bruto tem um teor de
cinzas demasiado elevado para poder ser comercializado. A Vale pretende utilizá-lo numa central térmica de 2.600 MW a ser
instalada em Moatize, cujo investimento é estimado em US$ 2 bilhões3.

As operações de extração do carvão mineral tomaram força no primeiro semestre de 2011. O primeiro comboio de 42 vagões e
três locomotivas, com cerca de 2.700 toneladas de carvão mineral extraído pela Vale Moçambique, chegou no dia 8 de agosto
deste ano ao porto da Beira, a 600 km da mina de Moatize, onde permaneceu a céu aberto no terminal marítimo até que se
atingiram 50 mil toneladas. De acordo com a previsão de Rosário Mualeia, diretor da companhia dos Caminhos de Ferro de
Moçambique (CFM)4, a primeira exportação de carvão mineral de Tete deveria ocorrer no dia 28 de agosto, tendo como destino
os mercados brasileiro, indiano, japonês e sul-africano.
Segundo o Ministério Moçambicano dos Recursos Minerais (Mirem), em 2003, entendendo que o panorama político do país
era estável e atraente para o Investimento Direto Estrangeiro (IDE)5, o governo moçambicano lançou o concurso internacional
de adjudicação das minas de carvão de Moatize, bem como da linha férrea de Sena. É de notar que estes dois projetos estão
interligados6. Vários consórcios de diferentes países participaram do concurso. O resultado foi anunciado em 2004, sendo a

193
Vale Moçambique

Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), atual Vale, a vencedora, através de critérios não transparentes e razões desconhecidas7.
Em 2004 foi assinado entre o governo e a CVRD (Vale) um Memorando de Entendimento sobre o Projeto de Carvão de Moatize
com um bônus de US$ 122 milhões, valor que nunca foi inscrito no orçamento daquele Estado.

Em junho de 2007, foi assinado um contrato entre o governo de Moçambique e a Vale Moçambique Ltda. que atribuiu a
concessão mineira de Moatize até 2030 ao grupo empresarial de origem brasileira. Sabe-se que, por este contrato, foram
concedidos benefícios fiscais ao abrigo do Código de Benefícios Fiscais (Decreto 16/2002), em vigor antes da nova legislação
fiscal mineira aprovada em julho de 2007, considerados prejudiciais para a economia e para o desenvolvimento do país
por muitos setores da sociedade moçambicana. Neste mesmo ano foi concedida a licença e tiveram início os primeiros
investimentos nas áreas de infraestrutura, equipamento e reassentamento das populações afetadas. No ano seguinte, foi
iniciada a instalação do parque industrial da Vale. E em 2009 teve início o processo de reassentamento da população atingida.
Ainda que tenha surgido uma concorrência alternativa da Riversdale à liderança da Vale, a ideia de uma concorrência parece
imprópria, na medida em que o dinheiro e o poder da Vale fizeram dela um empresa-Estado no país. Seja como for, Moatize,
Tete e Moçambique continuam como um dos espaços centrais do poder e da economia mundiais nos marcos de uma acelerada
política externa de alguns países como Brasil, China e Estados Unidos, em meio à globalização e às delirantes insuficiências
energéticas do mundo.

Constam dos planos de expansão da Vale: a ampliação da mina de carvão de Moatize (Moatize II) e da mina de fosfato de Evate
e o escoamento do Copperbelt da Zâmbia; e a construção da linha-férrea Motize-Malawi-Nacala-Porto, visando maximizar a
eficiência operacional e a redução de custos.

2- Valor do empréstimo

Não há informações sobre o valor do empréstimo bancário contraído pela Vale para a realização do projeto de carvão em
Moatize. Embora não se tenham informações sobre a presença do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES) no financiamento direto ao referido empreendimento – já que o Banco não torna públicos os investimentos que
faz fora do país –, importa chamar atenção para o fato de que o BNDES é detentor de 10% do grupo Valepar, responsável pelo
controle de 52% das ações com direito a voto da Vale – como já afirmado neste estudo. O Banco é também possuidor de ações
de ouro (golden shares) da Vale, que conferem ao BNDES poder de veto sobre decisões da empresa. Importante acrescentar
que em 2008 o Banco aprovou um financiamento de R$ 7 bilhões para a Vale, destinado a apoiar o plano de expansão de
investimentos da empresa. Àquela altura, este se constituiu no maior financiamento já dado pelo Banco a uma só empresa.

194
Vale Moçambique

Isenções fiscais e falta de transparência


Apesar da assinatura de um contrato secreto e confidencial, sabe-se que a Vale tem isenções de taxas sobre o rendimento,
sobre o Imposto do Valor Acrescentado (IVA), bem como sobre taxas alfandegárias.

“A lei moçambicana prevê compensações financeiras para as comunidades afetadas, mas não há notícia sobre o cumprimento
desta lei tanto para o caso da Vale como para outras empresas. A Vale beneficiou-se de isenção sobre os equipamento da
classe ‘K’ da pauta aduaneira previsto no artigo 13 da Lei n° 4/2009 de 12 de Janeiro8. Isenções de impostos sobre rendimentos
de pessoas coletivas (IRPC), de imposto sobre transmissões onerosas de imóveis e direitos de propriedade (Sisa), de imposto
do selo previstos no n° 1 do artigo 29 da mesma Lei. Os incentivos a que se refere o n° 1 da referida lei são concedidos por um
período de vigência de até dez anos a partir da data da celebração do contrato entre a empresa e o governo moçambicano,
segundo o previsto no artigo 2 do n° 29”9.

3- Impactos socioambientais

Dada a sua capacidade de propaganda, a instalação da Vale foi vista como promissora e despertou muitas expectativas no
povo moçambicano, esperançados por oportunidades de emprego e de desenvolvimento do país. No entanto, este projeto
tem suscitado críticas e discussões envolvendo governo, ambientalistas, acadêmicos e organizações da sociedade civil, devido
ao total e recorrente desrespeito aos mais elementares direitos humanos e liberdades básicas consagradas na Constituição da
República de Moçambique e demais legislação em vigor no país10.

Ausência de informação
O processo de reativação e o concurso internacional de exploração da Mina de Moatize, planificação e implantação da Vale em
Moatize, foram precedidos e acompanhados de informação insuficiente, inconsistente, incompleta e omissa, configurando-
se em uma campanha publicitária que visava simplesmente conquistar adesão, em vez de promover a conscientização das
comunidades afetadas preocupadas com a dimensão das mudanças sociais e ambientais.

Consultas públicas irregulares


Os processos de consulta pública para a implantação do projeto da Vale registraram várias irregularidades. Não houve
participação efetiva das comunidades afetadas e da sociedade civil na definição de prioridades e áreas de reassentamento e na
aplicação de investimentos propostos pela Vale. Não foram fornecidas informações prévias detalhadas, qualificadas, inteligíveis
e efetivamente acessíveis a todas as comunidades afetadas. As informações produzidas e disponibilizadas não consideraram
as especificidades socioeconômicas e culturais dos diferentes grupos sociais afetados. Quando as informações chegavam às
comunidades e aos interessados, etapas importantes do processo de planejamento e de decisão já haviam sido concluídas,

195
Vale Moçambique

dificultando e até impedindo que as comunidades e outros setores da sociedade pudessem agir e participar de uma forma
organizada e informada, e, desta forma, exercer o seu direito de participação e consentimento informado.

Cumplicidade da mídia
Segundo Jeremias Vunjanhe, jornalista e coordenador de imprensa da organização moçambicana Justiça Ambiental (JA!),
embora seja significativo o surgimento de mídias independentes nas últimas décadas, o posicionamento de cumplicidade da
grande mídia moçambicana a torna um verdadeiro instrumento de propaganda da Vale.

Reassentamento extremamente problemático


Cerca de 1.500 famílias foram reassentadas em condições muito precárias e, de certa forma, desumanas. São muitos os
problemas decorrentes do processo de realocação da população, como:

yy Apropriação das terras das comunidades locais e sua respectiva desestruturação;

yy Não cumprimento das promessas feitas. A Vale não cumpre os prazos nem os acordos de reassentamento;

yy A restrição da livre circulação e movimentação dos cidadãos das comunidades de Moatize, através da fixação de vedação
em volta da vila de Moatize, violando o artigo 55 da Constituição da República, relativo à liberdade de residência e de
circulação11;

yy Violação dos direitos à informação, à habitação adequada, ao trabalho e ao digno padrão de vida, às práticas e modos de
vida tradicionais, comunitários, bem como o acesso a patrimônios culturais materiais e imateriais e sua preservação;

yy A população reassentada pela Vale enfrenta uma grave situação de fome porque, desde 2009, as famílias foram impedidas
de produzir nas áreas agrícolas em que moravam antes do reassentamento. Na nova área, a terra é imprópria para a prática
da agricultura e a Vale não cumpriu com a promessa de distribuição regular de comida;

yy Especulação imobiliária; elevação do custo de vida; aumento das desigualdades sociais; elevação do índice de
criminalidade e prostituição; perda dos meios de subsistência das famílias; conflitos culturais entre os trabalhadores de
diversas nacionalidades e estes com as comunidades locais;

yy A destruição de valores e hábitos tradicionais, essenciais para a sustentação da solidariedade e unidade das famílias nas
comunidades;

yy Privação das mulheres de seus meios de ocupação tradicionais, tornando-se cada vez mais dependentes dos homens.

196
Vale Moçambique

Desrespeito dos mais elementares direitos humanos e liberdades básicas


Apesar de consagrados na Constituição da República de Moçambique e demais legislações em vigor, estes direitos são
continuamente desrespeitados pela Vale. Há grandes dificuldades de acesso à informação e falta de transparência na gestão do
projeto de Moatize, numa continuada atitude de arrogância, falta de diálogo e da inobservância dos direitos dos trabalhadores
por parte dos responsáveis pelo projeto com a conivência de setores importantes do governo de Moçambique.

A maioria dos trabalhadores, com pouca instrução e experiência profissional, encontra-se numa situação extremamente
precária e com salários muito baixos. Há uma onda de descontentamento entre os trabalhadores que se espalha por quase todas
as empresas contratadas pela Vale para a prestação de serviços em diversos setores. A empresa mantém um vínculo contratual
precário e de curta duração com muitos trabalhadores, impondo a eles uma situação de constante insegurança. Várias são as
denúncias feitas por trabalhadores e populares sobre a violação da lei do trabalho moçambicana, a exemplo das demissões em
massa sem justa causa e sem justa indenização. Os trabalhadores queixam-se de serem forçados a refeições que lhes provocam
alergias e dores no estômago e denunciam os descontos injustos a que são submetidos para o pagamento das refeições.

O Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Indústria de Construção Civil, Madeiras e Minas de Moçambique (Sinticim), que lida
com a possibilidade de greve e das reivindicações dos trabalhadores da Vale, é financiado e controlado pela Vale e nada faz para
defender os direitos dos trabalhadores. 

O provimento de recursos à intervenção de forças especiais da Polícia da República de Moçambique (PRM) é frequente por
parte da Vale, com o objetivo de persuadir e reprimir os trabalhadores que se manifestarem.

Explosão populacional
A cidade de Tete, a Vila de Moatize e as zonas mais próximas ao complexo mineiro de Moatize passam por rápidas e indesejáveis
transformações relativas ao crescimento da população proveniente de quase todos os cantos do país, motivado pela expectativa
de empregabilidade e por outras oportunidades de geração de renda. Em 2007, segundo dados oficiais do recenseamento da
população, Moatize tinha 39.073 habitantes e em 2011 a estimativa era de um população de mais de 270 mil pessoas. Em 2007,
segundo dados oficiais do recenseamento da população, Tete tinha 183.2339 habitantes e a estimativa era de mais de 2 milhões
em 2011. Em decorrência, o caos se instalou na região e houve aumento expressivo do número de acidentes e mortes no trânsito.

4- Condicionantes ou salvaguardas do BNDES

Como afirmado anteriormente, o Banco não dá publicidade a informações relativas a projetos financiados fora do país.

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Vale Moçambique

5- Condicionantes dos órgãos ambientais

O projeto de carvão de Moatize cuja concessão foi atribuída à Vale foi classificado como de Categoria A. De acordo com a
legislação moçambicana, o licenciamento ambiental é da competência do Ministério para a Coordenação da Ação Ambiental
(Micoa) e baseia-se no Processo de Avaliação de Impacto Ambiental e antecede qualquer outra licença legalmente exigida para a
atividade. Para atividades classificadas como de Categoria A, este processo de avaliação compreende, em uma primeira fase, um
Estudo de Pré-Viabilidade e Definição de Âmbito (EPDA), em que são definidos os termos de referências do Estudo de Impacto
Ambiental (EIA), que constitui a segunda fase do processo de licenciamento.
O projeto da Vale, formalmente, seguiu todos os procedimentos exigidos pela lei em Moçambique, já que a Vale se
comprometeu a ter um Plano de Gestão Ambiental, exigido pela lei moçambicana. Apesar da previsão de auditorias ambientais
regulares no empreendimento pelo Micoa, ainda não há registro da realização de nenhuma ação dessa natureza por parte desta
entidade governamental ou da sua representante local, a Direção Provincial para a Coordenação da Ação Ambiental, em Tete.

6- Duplo padrão

“Há graves violações de leis, regulamentos, documentos da Organização das Nações Unidas (ONU), tratados de direitos
humanos e convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT) perpetrados pela Vale, dada a inoperância das
autoridades governamentais moçambicanas em fiscalizar a correta aplicação da legislação e fazê-la respeitar. No que tange à
contratação de mão de obra há reclamações das comunidades locais, que denunciam a contratação de brasileiros, sul-africanos,
zimbabuanos, zambianos e malaviados em prejuízo dos moçambicanos, por estes não dominarem a língua inglesa e pela
falta de experiência. (...) Dentre documentos que são ignorados pela Vale constam: Convenção n° 111 sobre a Discriminação
(emprego e profissão), de 1958; Convenção n° 155 sobre Segurança e Saúde dos Trabalhadores; Convenção n° 148 sobre o
Meio Ambiente de Trabalho (contaminação do ar, ruído e vibrações), de 1977; Convenção n° 174 da OIT; Convenção sobre a
Prevenção de Acidentes Industriais Maiores; Convenção n° 81 sobre Fiscalização Do Trabalho.”12

Embora estas violações possam, eventualmente, se verificar na atuação da Vale no Brasil, fica evidente que, a se considerar
o frágil ambiente institucional em Moçambique e a dependência da economia do país diante dos recursos extrativistas, os
abusos cometidos pela empresa são ainda mais graves. Com relação à presença da Vale Moçambique na gestão dos interesses
nacionais moçambicanos, verifica-se que a Vale se converteu em proprietária absoluta das unidades hoteleiras e dos
restaurantes, das vias de acesso, do aeroporto local, enfim do destino da província. As instituições do governo de Tete parece
que perderam o controle da situação13.

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Vale Moçambique

Por sua importância econômica no investimento nacional, pelo seu expressivo peso na política externa do Brasil e pela sua
capacidade de penetração nos corredores políticos de Maputo (até sua saída do Conselho de Administração da Vale, Roger
Agneli era um dos principais assessores do presidente de Moçambique, Armando Guebuza), a Vale está interferindo no
funcionamento normal das instituições oficiais, impondo-se, com maior relevância do que a maioria dos órgãos públicos
nacionais, como ator nos processos de decisões políticas, econômicas e sociais14.
De acordo com o jornal O País, de 23 de fevereiro de 201015, “as relações da Vale junto às autoridades moçambicanas são fortes,
sendo que Roger Agnelli, o presidente-executivo da empresa, é assessor do Chefe de Estado, Armando Guebuza, para questões
de âmbito internacional”16.

Neste contexto, a ausência de políticas e práticas do Estado que protejam os interesses da população fica explicada pelo conflito
de interesse e pelas “costas quentes” de que goza o capital estrangeiro, fatores que tornam os governantes de baixo nível
incapazes de agir por medo de ferir interesses “dos chefes de Maputo”17.

No caso particular de Tete, a Vale financia a elaboração do Plano Diretor, que, obviamente, obedecerá às vontades da empresa,
escondidas por trás das ações de responsabilidade social18.

7- Atuação do Ministério Público

Pelo que se tem conhecimento, até o momento, não há registro de processo referente a uma disputa judicial.

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Vale Moçambique

1- A maioria das informações deste estudo de caso da Vale Moçambique foi obtida em: 1 - entrevista com Jeremias Vunjanhe, jornalista e coordenador de imprensa da organização moçambicana
Justiça Ambiental (JA!) - Amigos da Terra Moçambique, dada à autora por meio de e-mail em agosto de 2011; 2 - na entrevista especial Moçambique: “O menino bonito” da Vale, com Jeremias
Vunjanhe, por Patricia Fachin, Instituto Humanitas Unisinos (IHU), São Leopoldo-RS, em 6 de outubro de 2011 . Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/500479-mocambique-o-
menino-bonito-da-vale-entrevista-especial-com-jeremias-vunjanhe. (Referência indicada no texto: como IHU, 6 de outubro de 2011).

2- Entrevista com Jeremias Vunjanhe, 2011, e IHU, 6 de outubro de 2011.

3- Entrevista com Jeremias Vunjanhe, 2011, e IHU, 6 de outubro de 2011.

4- Jornal Notícias, 9 de agosto.

5- Entrevista com Jeremias Vunjanhe, 2011: “O início da exploração do carvão de Moatize data do ano 1949, quando Moçambique era colônia de Portugal. Em 1983, a Resistência Nacional
Moçambicana (Renamo), movimento armado formado em 1976, desencadeou um conflito terminado em 1992, o que fez com que a exploração do carvão diminuísse vertiginosamente com o
encerramento de algumas minas. Com a instauração da paz no final de 1992, foram relançadas as condições necessárias para a reativação da extração do carvão de Moatize”.
6- Dados da Mirem obtidos em 11 de outubro de 2007, através de entrevista com Jeremias Vunjanhe, 2011.

7- Entrevista com Jeremias Vunjanhe, 2011, e IHU, 6 de outubro de 2011.

8- Lei nº 4/2009, de 12 de janeiro, que aprova o Código dos Benefícios Fiscais em Moçambique.

9- Dossiê “Impactos e Violações da Vale no Mundo”, da Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale, 2010. Disponível em: http://atingidospelavale.wordpress.com/2010/04/27/dossie-dos-
impactos-e-violacoes-da-vale-no-mundo/.

10- Entrevista com Jeremias Vunjanhe, 2011, e IHU, 6 de outubro de 2011.

11- Segundo o n° 2 do Artigo 55 da Constituição da República de Moçambique, “Todos os cidadãos são livres de circular no interior e para o exterior de território nacional, excepto os judicialmente
privados desse direito” (Jeremias Vunjanhe, 2011).

12- Dossiê “Impactos e Violações da Vale no Mundo”, da Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale, 2010. Disponível em: http://atingidospelavale.wordpress.com/2010/04/27/dossie-dos-
impactos-e-violacoes-da-vale-no-mundo/.

13- Entrevista com Jeremias Vunjanhe, 2011, e IHU, 6 de outubro de 2011.

14- Entrevista com Jeremias Vunjanhe, 2011, e IHU, 6 de outubro de 2011.

15- “Vale investe US$ 595 milhões este ano no projecto de Moatize”, jornal O País online, 23 de fevereiro de 2010. Disponível em: http://opais.co.mz/index.php/sociedade/45-sociedade/4809-vale-
investe-595-milhoes-usd-este-ano-no-projecto-de-moatize.html.

16- SELEMANE, Tomás. Questões à volta da Mineração em Moçambique: relatório de monitoria das actividades mineiras em Moma, Moatize, Manica e Sussundenga. Edição: Centro de Integridade
Pública (CIP). Maputo, setembro de 2010.

17- Idem.

18- Dossiê “Impactos e Violações da Vale no Mundo”, da Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale, 2010. Disponível em: http://atingidospelavale.wordpress.com/2010/04/27/dossie-dos-
impactos-e-violacoes-da-vale-no-mundo/.

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