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O Legado de Foucault Lucila Scavone Marcos César Alvarez Richard Miskolci Organizadores SFAPESP UNesp Punicao, poder e resisténcias: a experiéncia do Groupe d‘Information sur les Prisons e a anilise critica da prisdo Marcos César Alvarez Introducao: reflexdo e engajamento Quando da morte de Michel Foucault, em 1984, mesmo Jurgen Habermas, que por diversas vezes havia manifestado suas criticas ‘em relagao s principais posicdes intelectuais de seu colega francés, deixou de homenagear o filésofo de sua geragio que teria atin- sido mais profundamente, com seus estudos polémicos, 0 proprio coragao da atualidade (Habermas, 1986). Passados mais de vinte anos de sua morte, 0 pensamento de wcault permanece um poderoso aguilhao, capaz, por um lado, de problematizar questées ainda prementes no mundo contem: pordneo, mas que, por outro, com freqtiéncia desconcerta aque les que buscam uma instrumentalizacio fécil de suas pesquisas ‘ou buscam discutie suas principais contribuigées no interior de 1m campo especializado de conhecimento, ‘Seu pensamento parece refratario aos habitos intelectuais arrai- szados, as investidas recorrentes dos comentadores, & assimilagio académica tradicional. Se quando Foucault estava vivo, suas tenta- tivas de desviar-se das polémicas tradicionais poderiam parecer a 46 oLecano be Foucault algunsapenas uma forma de pedantismo intelectual, supostamente bem. a0 gosto dos in queele buscava sobretudo deixar em aberto — para suas investigagées mais claramente também para as pesquisas futuras ~ espagos de problematizacao, idessem tornar viveis novas formas de espagos de liberdade que reflexdo e novas possibilidades de agao. ‘Tanto parece ser assim que mesmo a analise desi sual nfo é uma tarefa simples. Dificil earact |ésofo ou historiador, jé que seus trabalhos, ao percorrerem cam- pos diversos, terminaram por influenciar pesquisas nas mais dife- rentes areas de conhecimento. organizacao tradicional de seus escritos, que divide cronologicamente sua trajet6ria de pensamento em trés momentos principais ~a Arqueologia do Saber, a Genealogia do Poder e a Genealogia da Btica -, podem ser justapostas outras caracterizagies possiveis, Salma Tannus Muchail (2002), por exem- plo, ao discutir outros critérios de organizagio dos escritos de Foucault, reapresenta fio condutor que percorre a trajetéria do sew pensamento da seguinte forma: Digamos que se trata da relacio entre sujeito e verdade, ou 10 com sua verdade; que estas relagdes sio toma- le dizer, entre 0 ste jogo, as relagies 830 vis 10 €, que olhares e dizeres ~ anal idéntico e do estranho — sio sedimentados ou mesmo do s das no jogo entre o estabelecido ¢ 0 mutiv , dependentemente daquilo que nés, historicamen- te, somos capazes de ver ¢ dizer. (Muchail, 2002, p.302; grifos Domesmo modo, ao problematizar a propria figura do autor como principio por exceléncia de onganizagio dos discursos historicamen- te produzidos ao defender, por vezes, aapropriagao instrumental PUNIGAO, PODER € RESISTENCIAS: A EXPERIENCIA DO. 47. \dgias dos autores que considerava importantes, Foucault pare- desejar que seus textos fossem tomados ndo como repertérios idos apenas a académicos e especi das relagdes de poder, de saber e de subjetivacdo hegeménicas na sociedade moderna, {anto, tém apontado para o modo pelo qual se articulavam suas ‘ervenges na cena politica e sociale seus trabalhos de pesquisa lo significativo para a melhor compreensio do contexto de suas ae intelectual de seu tempo (Adorno, 004). Damesma forma, a recente publicaglo dos arquivos do Groupe ‘Information sur les Prisons riado1em 1971 eautodissolvido leaembro de 1972 no qual Foucault teve destacada participa- ‘io, vai na mesma diregio (Artiéres et al., 2003). Nio se trata, noentanto, ao cotejar seus trabalhos de pesquisa, seus textos dispersos e aspectos das lutas politicas e soci ntio se desenrolavam na Franga, de buscar algum tipo de articu- iio perfeita entre teoria e pratica ou de encontrar a chave de in- acio de seus textos heterogéneos na unidade de uma trajetoria {uagio social, Pelo contrério, trata-sede acom panhar, em determinados momentos precisos, como Foucaultalter ou experiéncias de pensamentoc experiéncias de embora tipo de militincia por ele perseguida apontasse para sentidos no- 10s e inesperados, 48 0 Lecavo be Foucautt Geralmente, dois momentos slo considerados privilegiados para ‘acompreensio dessa complexa alternancia que Foucault buscou por vvezes desenvolver, sobretudo na década de 1970, entre sua reflexio histérico-filoséfica e seu engajamento em questdes da atualidade. Esses dois momentos sio a criagao do jé citado GIP, em 1971, eas “eportagens" que realizou, em 1978, aconvite do redator-chefe do Jornal italiano Il Corriere della Sera que tratavam da sublevagio popular no Ira Paraa presente discussao, sua atuagdo no GIP ganha maior des- taque, pois foi seguida da publicagio, em 1975, de Vigiar e punir, livro no qual Foucault desenvolve uma anélise aprofundada da his. ‘6ria da prisio moderna e do poder disciplinar que nela se manifesta dde modo exemplar. Na verdade, nesses dois momentos desenvol- vem-se mais claramente alguns aspectos daquela alternéncia ou revezamento,’ desejado por Foucault, entre reflexio e engajamento, {4 que sua participagao no GIP ocorreu, em principio, como uma espécie de prolongamento das reflexdes histéricas que havia rea zado sobre o aprisionamento psiquiatrico, sendo posteriormente a condigio de possibilidade da reflexao realizada em Vigiar e punir. A idéia a ser aqui desenvolvida éa de que na interface desses dois momentos de sua trajetéria —a participasio no GIP e a subse qiente publicagio de Vigiar e punir~, a conexio entre engajamento ereflexao intelectual ganha contornos mais expressivos que podem melhor revelar as coeréncias ¢ tenses presentes na forma de aco que Foucault definiu como prépria ao novo papel do intelectual na atualidade, ao “intelectual especifico” (Como seri apontado posteriormente, Deleuze ut ‘conversa realizada em 1972 com Foucault, na qual afi ia essa expressio em ‘io mais pensando essasrelagdes como um processo de totalizasio, mas sim como um conjunto de revezamentos (Foucault ¢ Deleuze, 1979), PUNIGAO, PODER E RESISTENCIAS: A EXPERIENCIA DO... 49 A génese do Groupe d'information sur les Prisons OGIP foi menos uma organizagio do que um tipo de mobiliza: (0, até entdo inédita, em torno das lutas que se travavam contra o endurecimento das poiticas de seguranca do governo francés no inicio da década de 1970. Como resposta a “agitago” de Maio de 68, bus cava-se restaurara autoridade do Estado por meio de diversas me- las repressivas, tais como a dissolucdo do grupo maoista da juerda Proletaria (Gauche Prolétarienne) ¢ 0 projeto de lei que buscava responsabilizar penalmente os organizadores de manifesta- s publica. sse clima de crescente excegio que muitos militantes de cesquerda passaram a ser presos, 0 que acabou chamando a aten- «ao de alguns intelectuais nao apenas para as precarias condigées de encarceramento dos prisioneiros politicos, mas também para situagao cotidiana em que se encontravam os presos comuns ¢ para a situago mais geral do sistema prisional francés, temas até entio de pouco interesse para a assim chamada opiniao pablica O recrudescimento das lutas politicas, agora também no interior das prisdes, levadas a cabo pelos militantes de esquerda detidos, quer por meio de greves de fome, quer pela mobilizagao intelectuais ¢ estudantes universitatios, acabou desembocando uma onda de motins que se estendeu pelos estabelecimen- penitencidrios franceses durante inverno de 1971-1972, Nesse nomento, Foucault conhecia a situagao de diversos estabelecimen: tos penais, pois era um dos animadores do GIP, que desenvolvia atividades nas varias prises na Franga. O GIP foracriado no inicio de 1971 por Foucault, Pierre Vidal- ete Jean Marie Domenach. Embora tal grupo se organizasse -aahistria do GIP, foram consultados Artigees (2003 ¢2004) ¢ Eribon 90), 50 0 LEGADO DE FOUCAULT no citado contexto de forte mobilizacao politica em torno dos n tantes de esquerda aprisionados, seus objetivos pretendiam escapar ica dos grupos de esquerda de ingpiragio marxista. Na verdade, a intervengao desses intelectuais as formas tradicionais de luta pol pretendia efetuar uma dupla ruptura, tanto com relacZo ao ponto de vista marxista, que via nos prisioneiros comuns apenas um lumpemproletariado desviante e reacionédrio, quanto com relaao sstender as lutas p A estratégia que consistiria cionais a esses prisioneiros comuns. O objetivo seria, rio, mostrar que a prisio em si mesma seria um lugar por exceléncia de exetcicio do poder e, logo, de luta politica. Assim, buscava-se sobretudo dar a conhecer a prisio ¢ por issoa luta pela informagio constituia um dos objetivos centrais do grupo, que pas- 301 ral pelos detentos. Se 0 GIP nao visou jamais a estimular as revoltas que se segui- reunir numerosos testemunhos sobrea prisio, escritos en ge- ram nas prisées francesas, a0 dar visibilidade a situaao de cencarceramento em algumas instituigdes, ‘essas revoltas eram esperadas, A intervencio de Fou texto de lutas, apesar do prestigio intelectual que ele desfrutava stamente a ouvir as reivindicagoes queemergiam dessas sublevagGes, a chamar aatengio para. situagao intoleravel das condigées de encarceramento entio vigentes. Para .dicava claramente que ult nesse con: tengdo. Nao se tratava para ele de um movimento revolucionsio ~ tal como era interpretado na época pela esquerda tradicional -, mas levagdo, pela qual os presos se constitufam como uma wa diante da administragdo das prisdes. Ou seja, para pretado.com base na nasiio de revolugo, mas devia ser pensado como PUNIGAO, PODER E RESISTENCIAS: A EXPERIENCIA DO... 51 uma nova subjetividade cole! a, que ao intelectual caberia identi- ficar, diagnosticar, jamais liderar. Deacordo comesse nove pontode ‘um problema local e margin: a prisdo deixava de ser reresse para a reflexdo , para ganhar destaque nas parecia se surpreender de pouco intelectual e para a mobilizagao pe lutas politicas da época. O préprio Fouc com o interesse criado em torno dos discursos dos detentos ecom a possibilidade de visualizagao dos mecanismos de poder que as in. -vestigagdes sobre a prisio poderiam via Fig reso de ver que se podiam interessar pelo proble- ma das prisdes tantas pessoas que nao estavam na pri ‘como tantas pessoas que nao estavam pred: discurso dos detentos 0 0, de ver inadas a escutar esse wviam. Como explicar sso? Nao seré que, ma penal é a forma em que o poder como poder se mostra de maneira mais manifesta? .. A prisio €0 nico lugar onde o poder pode se manifestar em estado puro em suas dimensdes mais excessivas e se justificar como poder moral ... © de modo geral, 0 que é fascinante nas (Foucault ¢ Deleu isdes 6 que nelas o poder nio se esconde. 979, p.72-3 A experiéncia do GIP pretendia, desse modo, criar condi- «Bes para que os presos pudessem falar por si nova posigao trazi queles que nao podiam falar. Em segundo lugar, nao se buscava a produgio imediata de uma teoria sobre a delingiéncia ow a prisio, ‘mas sobretudo criar espago para o contradiscurso dos prisioneiros ou daqueles que eram coi srados delingaentes. Novas vozes, portanto, implicavam uma reconfiguragioampla ma como 0 intelectual 0 se posicionava diante dos tho- 52 0 LeGAvO ve FoucAULT vimentosedas lutassociais de seu tempo. Na década de 1980, mui se discutiria no interior da teoria social sobrea emergéncia dos assim chamados novos movimentos sociais, mas a experiéneia do GI apontava para essas inéditas configuragées das lutas sociais. Dani P justa- Defert, por exemplo, interpreta de modo retrospectivo o -mentecomo uma espécie de movimento social de transigao entre, de um lado, as tentativas das organizagdes da esquerda tra no pos-1968, buscavam readequar as formas de ago col nos seus modelos de analises e nos seus objetivos politicos, das formas tradicionais de agao coletiva, movimentos que poderiam ser classi ficados nao somente de politicos, mas de socioéticos, uma vez que se tratava de subverter as relagdes de poder, as hierarquias e 0s va- lores (Defert, 2003, p.326). Enesse contexto politico e social que emergem novas formas de ago coletivae se coloca, em conseqiiéncia, a necessidade de redefi niglo do papel do lectual militante. Seo modelo de engajamento personificado pela figura de Sartre ainda era dominante, outra figura estava a caminho de nascer. Apesar da autodissolugo posterior do GIP, em tal exp prati lectual especifico —, uma atuagio empreendida no maisem nome sua nova concepsao de engajamento intelectual ~a do inte- de valores universais, mas com base n -a de praticas cotidi ‘nas de poder que deveriam ser denunciadas como intoleraveis. Em conversa na época como préprio Foucault, Deleuze demonstrava grande entusiasmo com as possibilidades abertas por esse novo em: preendimento, que colocava em outro patamar arelagdo entre teoria e priticae que Foucault exe: pria trajetoria: ficava perfeitamente com sua pré- PUNICAO, PODER € RESISTENCIAS: A EXPERIENCIA DO... 53, vvocé comerou analisando teoricamente um meio de reclusdo como ‘o asilo psiquiatrico, no sée na sociedade capitalista, De- pois vocé sentiu a necessidade de que pessoas reclusas, pessoas ue estio nas prisdes, comegassem a falar por si préprias, fazendo revezamento. Quando vocé organizou 0 GIP (Grupo de Informagdes dentro das Prisdes) foi baseado nisso; cra igbes para que os presos pudessem falar por si mesmos ... Nao havia " , nem projeto de reforma, nem pesquisa no sentido tradi Tavia uma coisa totalmente diferente: um sistema de revezamentosem ‘conjunto, em uma multiplicidade de compo- wucault e Deleuze, nentes ao mesmo tempo tericas e priticos. 1979, p.70) Se o GIP apontava para novas formas de ago coletiva ¢ se, mnal de agente totalizador, de porta-vor. autorizado dos opri- idos e admitir que as relagdes entre teoria e pratica deveriam ser mais parciais e fragmentarias, nem por isso novas tenses econ- flitos deixariam de estar presentes nessa nova cor sociais.' Emborao GIP tivesse obtido consid iguragdo das lutas vel sucesso, grupos de presos nao tardaram a reivindicar independéncia com relagdo a seus padrinhos intelectuais, e Foucault experimentou um sentimen- to de fracasso apés sua autodissolugao (Eribon, 1990), ia do GIP acabou tornando-se De qualquer modo, a experi emblemética do engajamento politico do filésofo ede suas reflexes tual diantedos ientos sociais que emergiram no pés-68, a despeito de acerca da necessiria reconfiguracao do papel do intl novos movi tsria do GIP ultrapassar em muito a figura do proprio Foucault rerecer ainda estudos mais aprofundados. Sobre ae s que Foucault desenvolveu no perfodo sabre a relagio a politica, ver Koerner (2 54 0 LEGADO be FoUCAULT Vigiar e punir e a visibilidade do poder disciplinar Apos a experincia do GIP, Foucault publica em 1975 0 livro, Vigiar e punir. Nele Foucault estuda as transformagies das prticas penais na Franca, da Epoca Classica ao século XIX. E, no interior dlessas transformagGes, um problema se destaca:o papel central que a prisio passa a desempenhar na penalidade moderna. Foucault

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