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ANTROPOLOGIA

CULTURAL

Professor Me. Gilson Aguiar

GRADUAÇÃO

Unicesumar
Reitor
Wilson de Matos Silva
Vice-Reitor
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor de Administração
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor de EAD
Willian Victor Kendrick de Matos Silva
Presidente da Mantenedora
Cláudio Ferdinandi

NEAD - Núcleo de Educação a Distância


Direção Operacional de Ensino
Kátia Coelho
Direção de Planejamento de Ensino
Fabrício Lazilha
Direção de Operações
Chrystiano Mincoff
Direção de Mercado
Hilton Pereira
Direção de Polos Próprios
James Prestes
Direção de Desenvolvimento
Dayane Almeida
Direção de Relacionamento
Alessandra Baron
Gerência de Produção de Conteúdo
Juliano de Souza
Supervisão do Núcleo de Produção de
Materiais
Nádila de Almeida Toledo
Coordenador de Conteúdo
Priscilla Campiolo Manesco Paixão
Design Educacional
Camila Zaguini Silva
Jaime de Marchi Junior
Larissa Finco
Maria Fernanda Canova Vasconcelos
Nádila de Almeida Toledo
Rossana Costa Giani
C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ. Núcleo de Educação a
Distância; AGUIAR, Gilson.
Iconografia
Amanda Peçanha dos Santos
Antropologia Cultural. Gilson Aguiar. Ana Carolina Martins Prado
(Reimpressão revista e atualizada) Projeto Gráfico
Maringá-Pr.: UniCesumar, 2016. Jaime de Marchi Junior
307 p.
“Graduação - EaD”. José Jhonny Coelho
Arte Capa
1. Antropologia. 2. Cultural . 3. História EaD. I. Título. André Morais de Freitas
Editoração
CDD - 22 ed. 907 Daniel Fuverki Hey
CIP - NBR 12899 - AACR/2 Robson Yuiti Saito
Fernando Henrique Mendes
Revisão Textual
Ana Paula da Silva
Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário
João Vivaldo de Souza - CRB-8 - 6828 Jaquelina Kutsunugi
Keren Pardini
Nayara Valenciano
Viver e trabalhar em uma sociedade global é um
grande desafio para todos os cidadãos. A busca
por tecnologia, informação, conhecimento de
qualidade, novas habilidades para liderança e so-
lução de problemas com eficiência tornou-se uma
questão de sobrevivência no mundo do trabalho.
Cada um de nós tem uma grande responsabilida-
de: as escolhas que fizermos por nós e pelos nos-
sos farão grande diferença no futuro.
Com essa visão, o Centro Universitário Cesumar –
assume o compromisso de democratizar o conhe-
cimento por meio de alta tecnologia e contribuir
para o futuro dos brasileiros.
No cumprimento de sua missão – “promover a
educação de qualidade nas diferentes áreas do
conhecimento, formando profissionais cidadãos
que contribuam para o desenvolvimento de uma
sociedade justa e solidária” –, o Centro Universi-
tário Cesumar busca a integração do ensino-pes-
quisa-extensão com as demandas institucionais
e sociais; a realização de uma prática acadêmica
que contribua para o desenvolvimento da consci-
ência social e política e, por fim, a democratização
do conhecimento acadêmico com a articulação e
a integração com a sociedade.
Diante disso, o Centro Universitário Cesumar al-
meja ser reconhecido como uma instituição uni-
versitária de referência regional e nacional pela
qualidade e compromisso do corpo docente;
aquisição de competências institucionais para
o desenvolvimento de linhas de pesquisa; con-
solidação da extensão universitária; qualidade
da oferta dos ensinos presencial e a distância;
bem-estar e satisfação da comunidade interna;
qualidade da gestão acadêmica e administrati-
va; compromisso social de inclusão; processos de
cooperação e parceria com o mundo do trabalho,
como também pelo compromisso e relaciona-
mento permanente com os egressos, incentivan-
do a educação continuada.
Seja bem-vindo(a), caro(a) acadêmico(a)! Você está
iniciando um processo de transformação, pois quan-
do investimos em nossa formação, seja ela pessoal
ou profissional, nos transformamos e, consequente-
Diretoria de
mente, transformamos também a sociedade na qual
Planejamento de Ensino
estamos inseridos. De que forma o fazemos? Criando
oportunidades e/ou estabelecendo mudanças capa-
zes de alcançar um nível de desenvolvimento compa-
tível com os desafios que surgem no mundo contem-
porâneo.
O Centro Universitário Cesumar mediante o Núcleo de
Diretoria Operacional
Educação a Distância, o(a) acompanhará durante todo
de Ensino
este processo, pois conforme Freire (1996): “Os homens
se educam juntos, na transformação do mundo”.
Os materiais produzidos oferecem linguagem dialó-
gica e encontram-se integrados à proposta pedagó-
gica, contribuindo no processo educacional, comple-
mentando sua formação profissional, desenvolvendo
competências e habilidades, e aplicando conceitos
teóricos em situação de realidade, de maneira a inse-
ri-lo no mercado de trabalho. Ou seja, estes materiais
têm como principal objetivo “provocar uma aproxi-
mação entre você e o conteúdo”, desta forma possi-
bilita o desenvolvimento da autonomia em busca dos
conhecimentos necessários para a sua formação pes-
soal e profissional.
Portanto, nossa distância nesse processo de cres-
cimento e construção do conhecimento deve ser
apenas geográfica. Utilize os diversos recursos peda-
gógicos que o Centro Universitário Cesumar lhe possi-
bilita. Ou seja, acesse regularmente o AVA – Ambiente
Virtual de Aprendizagem, interaja nos fóruns e en-
quetes, assista às aulas ao vivo e participe das discus-
sões. Além disso, lembre-se que existe uma equipe de
professores e tutores que se encontra disponível para
sanar suas dúvidas e auxiliá-lo(a) em seu processo de
aprendizagem, possibilitando-lhe trilhar com tranqui-
lidade e segurança sua trajetória acadêmica.
AUTOR

Professor Me. Gilson Aguiar


Possui graduação em História pela Universidade Estadual de Maringá (1991)
e mestrado em História e Sociedade pela Universidade Estadual Paulista Júlio
de Mesquita Filho (1999).
APRESENTAÇÃO

ANTROPOLOGIA CULTURAL

SEJA BEM-VINDO(A)!
Este trabalho é, antes de qualquer coisa, a possibilidade de dividir com você um olhar
sobre a espécie humana que se quer um todo, mas é um mosaico. Em toda a minha
vida acadêmica nunca me entreguei a um trabalho como este, tanto em intensidade
como em tempo. A elaboração deste livro está para além de sentar e escrever, uma vez
que também exigiu momentos em que precisei analisar, refletir e repensar. Depois disto
voltar e refazer. Uma tarefa que necessitou paciência em momentos de angústia e an-
siedade.
Sou um historiador com mestrado em História e Sociedade, porém apaixonado pela
trajetória que a Antropologia construiu como ciência. Minhas misturas nos campos do
conhecimento me fizeram abandonar as fronteiras tradicionais das ciências sociais e
perceber o quanto elas caminham rápido para um novo “universalismo”, uma ruptura
com os objetos definidos de forma precisa. Agora, em relação à Antropologia e à Histó-
ria, principalmente, o campo específico de conhecimento está invadido um pelo outro.
Claude Lévi-Strauss afirmou em entrevista a Jacque Le Goff, em 1968: “a Antropologia é
a história do homem”. A História, por sua vez, passou a se apoderar da etnografia e etno-
logia, áreas sagradas e consagradas da Antropologia. Na reformulação sofrida na Europa
com o advento da “Escola de Annales”, a partir de 1929, com Marc Bloch e Lucien Febvre,
a historiografia mergulha na procura de uma nova identidade e encontra na Antropo-
logia, na linguagem, por exemplo, um revigoramento de sua análise. Michel Foucault
(1985) foi o elo entre o campo do conhecimento historiográfico centrado no homem e o
campo do conhecimento historiográfico centrado no ambiente. A simbologia, a lingua-
gem, em sua forma mais complexa, e a semiótica, em sua melhor definição, ampliaram
o leque de uma Antropologia que se encontrava em crise.
Não podemos esquecer que a segunda metade do século XX gerou uma angústia para
os antropólogos, eles estavam diante de uma ciência em decomposição. O estudo das
civilizações não ocidentais deixava de ser o objeto dos antropólogos na proporção em
que iam desaparecendo. A colonização europeia se intensificou e condenou os “selva-
gens”, “bárbaros” ou “primitivos” ao desaparecimento gradativo ou à incorporação dos
valores ocidentais. Antes a Antropologia buscava entender o “Outro”, depois passou
gradativamente a utilizar os métodos que usava para observar o estranho para olhar e
analisar a sua própria sociedade. O ocidental seria o objeto de estudo do Antropólogo,
em grande parte, também um ocidental.
Neste trabalho, você notará como vários campos de conhecimento perpassam a análise
antropológica – a psicologia, a história, a geografia, a linguística e a sociologia. Esta ati-
vidade foi gratificante por permitir perceber o quanto não há fronteiras para o cientista
social, se elas existem, servem para definir formalmente a ciência. Foi isto que gerou a
Antropologia como a conhecemos hoje. Se a antropologia não tivesse vivido a crise em
relação ao seu objeto de estudo, ela não teria se recriado e encontrado a sua existência
impregnada em meio às demais ciências sociais. Lévi-Strauss (1983) e Parsons (1978)
merecem destaque nesse contexto. O francês e o norte-americano recuperaram teses
APRESENTAÇÃO

do estruturalismo e da fenomenologia para alargar o campo de análise da antropo-


logia, que não teria sobrevivido sem eles.
Por isso, não poupamos esse cruzamento dos focos das ciências sociais. Aqui deno-
minamos formalmente o que nos parece natural, o rompimento entre as fronteiras
entre os objetos de estudo das ciências humanas. Por isso, só por convenção, mas
sem querer definir desta forma, a “interdisciplinaridade” é o termo que usamos para
dar um título ao que este trabalho busca expressar. Antropologia se tornou refúgio
e fio condutor do que se desvia e retorna, faz e refaz o objeto e, por fim, consolida o
que colocamos anteriormente, “o homem por inteiro”.
Em vários momentos do livro você notará o quanto desdobraremos temas, refor-
mularemos a compreensão e detalharemos os pontos apresentados. Sei que em di-
versos lugares tudo também poderia ter sido analisado e explicado com mais deta-
lhes, contudo não conseguiria dar conta de tudo, seria desumano. Espero, inclusive,
que você fique com vontade de buscar mais análises, de entender melhor os temas
abordados e mesmo de discordar das abordagens apresentadas. Isso é o que faz as
ciências sociais ser o que são, no caso, complexas.
Faz-se necessário lembrar que olhar para a espécie humana e se dispor a compreen-
dê-la não são tarefas fáceis. Para muitos, desperta-se uma busca por uma explica-
ção final, conclusiva sobre o ser humano, isso é impossível. Aconselho você, caro(a)
aluno(a), a ir além do que está neste trabalho, a não procurar respostas prontas. Em
determinados momentos traço, com certa ironia, determinados aspectos da traje-
tória da humanidade. Não o faço para polemizar, mas apenas para puxar a reflexão
de uma forma mais picante, esquentar o tema. Ser um escritor incendiário ajuda a
aquecer a frieza com que se trata certos temas da vida humana.
Tentei deixar gravado o máximo de informação e trançá-la a temas diversos sobre os
quais se devem ter olhares múltiplos para se chegar a determinadas conclusões, as
quais nunca são finais. Sempre haverá alguém cuja função é instigar a busca de uma
nova forma de compreender determinados temas, nesse sentido, foi esse o papel
que busquei desempenhar neste trabalho.
Um detalhe importante são as notas de rodapé. Elas são muitas e merecem ser li-
das. Não é uma prática comum se ater a elas muitas vezes consideradas detalhes.
Contudo, elas são desdobramentos de uma discussão central. Neste trabalho, e aqui
um vício do autor, elas representam um aprofundamento de temas, correlações e
relações que irão construir, ao longo da obra, reflexões que dão riqueza ao aos te-
mas abordados.
Considero que, na produção de um material com esta envergadura, há um compro-
metimento em seguir adiante, ir além. Não se pode passar por um campo fértil sem
semeá-lo ao máximo. As notas de rodapé têm esse interesse. Em um determinado
momento, elas deveriam se tornar um capítulo à parte, mas são tantos os temas que
abordam e de forma descomprometida com as fronteiras do tema, que abuso delas.
Ao mesmo tempo em que justifico a abundância, reafirmo a importância. É possí-
APRESENTAÇÃO

vel ler o texto desconsiderando-as, mas muitas informações nelas contidas podem
passar despercebidas.
Quanto à linha de raciocínio deste texto, ela é simples. Parti da construção da con-
dição social humana e da formação das civilizações ao longo da história, destaque
para os encontros entre os grupos humanos. Foi nesse caminho que a constituição
da civilização ocidental foi o elemento de maior interesse. Somos ocidentais. Nós,
brasileiros, somos um fruto da expansão europeia, não podemos negar nossa ori-
gem, temos que entendê-la.
Dentro desta ótica se faz necessário perceber a importância da formação das ins-
tituições nas quais estamos inseridos. Quando afirmamos nossa ocidentalização,
estamos estudando nossa própria identidade, nossa construção enquanto seres
humanos.
Construída em uma expansão além do continente europeu, os ocidentais se encon-
traram com inúmeras outras civilizações. A história deste encontro é marcada pela
violência. Os relatos dos povos considerados “estranhos” foram realizados por uma
grande quantidade de viajantes.
A imposição da civilização europeia sobre o mundo conquistado foi o elemento vital
para os primeiros relatos sobre os “selvagens”. Os diários dos viajantes contam muito
da consideração que se tinha sobre quem era, de forma genérica, um não europeu.
Em um segundo momento, é vital falar do nascimento da Antropologia como ciên-
cia, desde o que chama Laplantine de, “a pré-história da Antropologia”, onde os rela-
tos dos homens ocidentais são carregados de definições teológicas, considerando
o “selvagem” como um ser exótico entre a pureza, ingenuidade, sem pecados e ne-
cessitando da conversão cristã; ou como um ser demoníaco, perdido, jogado em um
barbarismo onde a escravidão e o extermínio seriam seu destino. Os relatos trazidos
pelos viajantes são publicados na Europa e despertam análises sobre o “Outro”.
Uma longa jornada eurocêntrica marcou os relatos sobre os povos que se relacio-
naram com as nações européias. O nascimento da Antropologia é como um instru-
mento ocidental de descrição e classificação sobre os chamados de “selvagens”.
Em uma fase posterior, com o amadurecimento da Antropologia como ciência, se
racionaliza o homem não europeu. Enquadravam-se os povos e estabelecia-se uma
escala de desenvolvimento, na qual a Europa “civilizada” estaria no topo dessa evo-
lução e, por isso, teria uma condição quase que natural de se impor. Conhecer os po-
vos não europeus está, nessa fase, ligada à necessidade de propagar a racionalidade
e enquadrar os primitivos na linha do tempo da evolução. Hegel é radical ao analisar
os povos não europeus a partir dos relatos trazidos pelos viajantes: eles estão fora
da história humana, à margem das civilizações.
Malinowski e Boas ganham destaque na fase de consolidação da Antropologia
como ciência. São eles que inauguram a pesquisa participativa. Aquela que deter-
mina a vivência com o povo estranho, conhecer aqueles que não fazem parte da ci-
APRESENTAÇÃO

vilização ocidental. Nessa fase, surgem o funcionalismo e o estruturalismo, campos


de conhecimento que tendem a compreender os nãoeuropeus em sua vida natural.
A Antropologia se torna um laboratório a “céuaberto”. Malinowski considerava que
o antropólogo é hospede e aluno da civilização que observa. Deve saber ouvir, ver,
cheirar e escutar. Ele é o que deve absorver todas as informações possíveis e consti-
tuir um mosaico do que vê.
Os dois autores clássicos da Antropologia consolidaram a ciência, mas são acusados
de contribuir para a exploração dos povos que estudaram. As informações obtidas
permitiram gerar governos de coparticipação com nativose usá-los para atender
aos interesses dos colonizadores. Vamos analisar, neste trabalho, o quanto o conhe-
cimento científico serviu, de uma forma geral, para desenvolver mecanismos de do-
minação.
Por fim, vamos analisar a Antropologia na atualidade. Seus novos objetos de análise
na sociedade urbana. A cidade é hoje o mais importante espaço de concentração
humana. A maioria da população do Planeta reside em cidades. As grandes, com
mais de 300 mil habitantes, vão ser a moradia de 40% da população global até o
meio deste século. Por isso, nos ativemos, por certo tempo,à compreensão dos fe-
nômenos urbanos, o “mundo das novas tribos”.
São nas duas últimas unidades deste trabalho que repousam o maior desafio, a for-
mação social brasileira e a questão afro-indígena. A construção da nação é fruto
da formação do caldo, como afirma em sua obra, “O povo brasileiro”, Darcy Ribeiro
(1995). A mistura, o caldo, gerou a pátria e ao mesmo tempo a unidade e conflito
na formação do Brasil. Gilberto Freyre (2005), Sérgio Buarque de Holanda (1995) e
Darcy Ribeiro (1995) são as referências para a construção de uma análise sobre a for-
mação social do Brasil. Clássicos são para serem lidos e relidos, mais que as interpre-
tações sem a mesma envergadura. Eles vão às raízes ibéricas para falar da formação
brasileira, passam pelo encontro étnico e pela construção dos elementos culturais
que formam a identidade brasileira.
Por fim, o maior desafio foi falar da cultura afro-indígena. Há uma ausência de ma-
teriais de pesquisa confiáveis, assim, pus-me a ler uma coleção publicada pela ONU
sobre a história da África. Sofri, mas percebi que, apesar de ter lido várias obras so-
bre o tema, foi a produção deste material que amadureceu ainda mais minha paixão
pela “ponte sobre o Atlântico”. Nunca esquecendo que o Brasil é o país mais afro fora
da África.
Bom, espero que você goste deste livro na mesma proporção em que gostei de pro-
duzi-lo. Se for algo que acrescente a sua vida, eu terei realizado meu objetivo. Rom-
per preconceitos e pré-conceitos é conhecer, aqui está uma oportunidade que não
perdi. Espero que ela te ajude, também, a superar um pouco do olhar viciado que
temos sobre os “Outros”, eles nada mais são do que nós de outra forma.
Gilson Aguiar
11
SUMÁRIO

UNIDADE I

O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA

17 Introdução

18 Construção da Identidade Humana

22 Os Encontros entre as Civilizações

24 O Nascimento do Ocidente

54 Os Primeiros Passos da Antropologia

68 Considerações Finais

UNIDADE II

ANTROPOLOGIA CULTURAL

75 Introdução

76 A Racionalidade como Forma de Compreensão das Civilizações não


Europeias

82 O Papel de Dominação que a Antropologia Exerceu em seu Nascimento


como Ciência

93 A Questão da Emancipação do Evolucionismo e a Formação de uma


Antropologia fundada na Pesquisa Participativa
SUMÁRIO

UNIDADE III

A CRISE DO HOMEM OCIDENTAL

125 Introdução

127 A Crise de Identidade da Antropologia como Ciência

137 O Estudo do Homem Contemporâneo e seus Dilemas

151 Os Novos Rituais de Consumo e a Simbologia Como Diferença

182 Considerações Finais

UNIDADE IV

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO


AUTORITÁRIO

187 Introdução

188 As Condições Sociais, Econômicas e Culturais para a Formação da


Colonização Portuguesa

209 A Instalação da Colonização e o Papel do Engenho

224 Brasil, Uma Nação do Futuro Desde o Passado

245 Clássicas Saídas e os Pensadores Clássicos

258 Considerações Finais


13
SUMÁRIO

UNIDADE V

O ENCONTRO COM O INDÍGENA E A PONTE COM A ÁFRICA

267 Introdução

268 Moradores da Terra Brasilis

279 Encontros Étnicos e a Formação do Brasil

294 Considerações Finais

299 CONCLUSÃO
301 REFERÊNCIAS
Professor Me. Gilson Aguiar

O NASCIMENTO DA

I
UNIDADE
ANTROPOLOGIA

Objetivos de Aprendizagem
■■ Conhecer a formação da Antropologia como ciência e sua relação
com a formação da civilização ocidental.
■■ Compreender a Antropologia como o resultado da expansão do
Ocidente sobre as demais civilizações no mundo.
■■ Entender o dilema da construção da identidade humana, como ela
está associada à visão que o Ocidente estabeleceu sobre inúmeros
povos.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Construção da identidade humana
■■ Os encontros entre as civilizações
■■ O nascimento do Ocidente
■■ Expansão Ocidental
■■ Os primeiros passos da Antropologia
17

INTRODUÇÃO

Somos ocidentais. Essa afirmação precisa ser entendida para podemos compre-
ender o ambiente em que a Antropologia nasce. Sua formação como ciência viria
mais tarde, mas a condição em que ela foi gerada está relacionada diretamente
à formação da civilização ocidental. Foi nesse berço de incentivo à conquista, à
expansão das fronteiras, que a Antropologia nasceu. Se hoje ela não tem mais
esse aspecto funcional de conquista, sua origem está impregnada de preconceito
sobre as demais civilizações.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Quando falamos em observar as condições do homem como um ser total,


único, o qual a Antropologia pretende como objeto na atualidade, estamos
falando do resultado de uma jornada iniciada na Grécia Antiga, com filósofos
e sua busca de um sentido para a existência. O homem europeu enquadrou o
“estranho”, o “outro”, e lhe deu um valor que foi inspirado nele mesmo, no pró-
prio homem cristão europeu, diante de um mundo para conquistar.
Nesta unidade, queremos abordar esse olhar construído ao longo da história
ocidental, seus interesses econômicos, suas relações sociais e seus símbolos cultu-
rais. Tais elementos foram geradores de uma civilização conquistadora que ousou
ser planetária e realizou essa ambição. O mundo sentiu o peso do Ocidente, e a
Antropologia foi a ciência que ajudou a conhecer os povos que dominou, dan-
do-lhes um sentido para enquadrá-los no plano mundial.
Para que a conquista planetária fosse bem-sucedida, foi preciso compreender
a simbologia gestada ao longo de mil anos. Como o cristianismo, por exemplo,
que foi fundamental para orientar o interesse da ambição comercial. Se o lucro
era um desejo, restava saber onde ele se encaixava na compreensão de um uni-
verso concebido por um “Deus único” onipresente e onipotente. Diante disso,
qual o papel que os Estados Nacionais desempenharam para que isso ocorresse?
Essas são questões que também compõem parte desta unidade.
O primeiro relato sobre os povos que se relacionaram com a civilização
ocidental gera a produção de “impressões” sobre os não europeus, o que será
determinante para a conduta do ocidente diante do que se chamou de “selvagem”.
O europeu se considerou o “salvador de almas” e também o “exterminador dos
pecadores”. Nesse sentido, apropriar-se das riquezas que o mundo oferecia e se

Introdução
18 UNIDADE I

tornou mais compreensivo dentro da lógica de que ele estava cumprindo uma
predestinação divina.
Por isso, se a Antropologia, em sua fase de reconhecimento como ciência,
lançava seu olhar sobre outros povos, hoje ela lança o olhar sobre o próprio ser
humano ocidental. Assim, a descoberta é nutritiva, mas, em certos momentos,
pode ser amarga, ao descobrirmos que muitos dos que denominamos “selva-
gens” são dóceis em comparação com nossos atos de selvageria.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE HUMANA

UM “SER” EM BANDO: BREVE CONCEITO DE CIVILIZAÇÃO

As civilizações se formaram de elementos que geraram unidade, integração, entre


seus membros. Esses elementos foram os mais variados. Para alguns, a atividade
econômica desempenhou um papel central nas relações estabelecidas entre os
mais diferentes agentes sociais, dando a tais relações uma forma. Porém, não
podemos considerá-la como elemento único, isso seria um facilitador que não
gostaríamos de utilizar aqui, portanto, outros elementos devem ser considerados.

O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
19

Há, na construção das civilizações, essa integração que se estabeleceu em


diversas partes do mundo e gerou a construção de instituições sociais comple-
xas, caracterizando uma diferenciação de papéis sociais necessários para atender
ao organismo que se construía ao sabor das necessidades nascidas de sua fer-
mentação. As relações entre os homens, em determinados momentos históricos,
devem ser compreendidas levando em consideração condições específicas em
que a ordem se constituiu. Há efeitos de uma natureza associados às condições
em que as relações sociais se estabelecem herdando do passado os significados
das necessidades presentes. Temos que entender que o significado de uma pos-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

teridade também está presente na construção dos sentidos sociais.


Logo, o que quero estabelecer aqui, caro(a) leitor(a), é que a construção de
uma civilização, como a chinesa, por exemplo, tem suas peculiaridades. Há,
nessa perspectiva, pouco significado na tentativa de buscar uma semelhança na
constituição das civilização mesopotâmica e egípcia, as quais, de certa forma, no
tempo cronológico, foram contemporâneas. As condições em que cada civilização
se estabeleceu atenderam a necessidades próprias. Assim, outras civilizações que
não delimitaram o mesmo formato das civilizações citadas se encaixam na mesma
consideração, devem ser entendidas em suas condições específicas de formação.
A especificidade de uma civilização é constituída quando ela se coloca diante
da natureza e traça suas condições de sobrevivência, desenvolvendo mecanismos
de apropriação desse meio. Da mesma forma, podemos dizer que características
que limitam o ser humano também são formadoras de certos aspectos que indivi-
dualizam determinada cultura. O traço que gera o que, ao longo do tempo, molda
uma civilização, como uma digital, singulariza a sua forma de organização em rela-
ção a qualquer outra que existiu, existe ou existirá na história da espécie humana.
Por mais que a Antropologia Clássica buscasse a constituição de uma linha
evolutiva e classificatória para as civilizações que habitaram ou habitam a Terra,
ela nunca conseguiu se estabelecer em documentações empíricas, em provas docu-
mentais materiais ou imateriais. Não há evolução, mas, sim, construção de uma
civilização. Há a formação de uma singularidade que se estabelece ao longo do
tempo de encontros. Mesmo entre as civilizações expansionistas, que vieram a
submeter uma quantidade significativa de outras civilizações ao seu poder, essa
padronização ou determinação comum não foi eficiente.

Construção da Identidade Humana


20 UNIDADE I

Se utilizarmos o exemplo do antigo Império Romano e a imensa quanti-


dade de povos que dominou, então, perceberemos que a relação estabelecida
com o poder central da república ou do império centrado na Península Itálica
foi diferenciada. As instituições romanas, como as leis, a língua latina, a ativi-
dade econômica, formalizaram a integração. Mas por si só não foram capazes
de amputar a originalidade. Claro que os efeitos do domínio romano ficaram no
que se constituiu como herança do império. A língua latina e o cristianismo são
exemplos, mas a singularidade permaneceu para construir uma identidade única.
Não podemos considerar como idênticas, em intenção e identificação, as

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
civilizações que cumpriram ao longo da história humana papéis distintos, uma
vez que o julgamento de valor comparando-as gera deformações. Não é possível
classificar como “melhor” ou “pior” civilizado. Não há a organização “perfeita”.
Se fôssemos buscar essa resposta, teríamos que partir de uma escala de valor
preestabelecida, o que denunciaria um preconceito gerador de um pré-conceito.
Anteporíamos nós mesmos a qualquer outro. Por muito tempo, a Antropologia
foi o resultado dessa perspectiva1.
O processo civilizador se alterou, ao longo da jornada humana, com o con-
tato estabelecido entre os diversos povos. Esse contato se intensificou com o
desenvolvimento das práticas mercantis, como já falamos. Além do intercâm-
bio de produtos, há o movimento de pessoas, mudança de seus hábitos, assim
como transformação da linguagem, da interpretação e da ação sobre o mundo.
As migrações tiveram efeitos devastadores para muitas civilizações. Em deter-
minados momentos da história humana, o estrangeiro se impregna e refaz as
identificações chamadas de “nativas”. Ao longo do tempo, há exemplos de como
o movimento de pessoas foi determinante para a humanidade, da migração
hebraica ao tráfico negreiro, do holocausto judeu à xenofobia na atual Europa.
Não se pode desprezar os encontros humanos, muito menos os seus resul-
tados. Na atualidade, na formação de um mundo integrado pelo capitalismo, as
movimentações se intensificam e seus resultados se aceleram, e muitos deles

1 Não só a Antropologia, a produção do conhecimento ocidental ligado às ciências sociais serviu de


instrumento de imposição e dominação na trajetória que construiu a contemporaneidade. Essa prática
ainda não cessou. Ela continua sendo para muitos o motor que justifica a análise sobre as civilizações que
habitam o mundo. A busca pela ordem perfeita que justifica todos os atos de dominação, extermínio e
imposição de interesses econômicos e culturais.

O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
21

ainda estão por vir, o que gera uma dificuldade de conceituá-los e de entender
seus efeitos. Mas eles se fazem sentir, existem e dificultam nosso entendimento
sobre os limites de nossa civilização. Muitos dos que chamamos de “bárbaros”
hoje, na prática, são um de nós.
Hoje, no mundo contemporâneo, discute-se sobre os efeitos de uma “glo-
balização” de uma economia mundial e sobre a mídia de massas. Para os que
ainda sustentam os efeitos da mundialização, termo cunhado por Octávio Ianni
(1999), há uma integridade que rompe fronteiras, aproxima, manipula a regiona-
lidade e gera possibilidades múltiplas. Dessa forma, temos que concordar com o
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

que ele apresenta com um “globalismo”. Estamos integrados, mas isto não signi-
fica massificados. Há um outro ou “outros” e suas singularidades. Não podemos
esquecer isso.
Não romperemos com essa condição de identidade singular de uma coleti-
vidade, já que essa condição faz parte da própria relação que estabelecemos com
nossas heranças, com o lugar onde vivemos, com o que denominamos “nosso”
mundo. A forma como constituímos nossos vínculos e estabelecemos a fronteira
entre o “nós” e os “outros” são construções incessantes da dinâmica social, que,
por sua vez, é fruto das relações que estabelecemos. O homem que produz, crê,
se expressa pela linguagem e ritualiza simbolicamente sua existência ocasiona a
singular humanização do humano.
Em determinado momento, a Antropologia chegou a buscar esse homem
na sua totalidade. Ela percorreu inúmeros caminhos para atingi-lo. Porém, ela,
mais do que qualquer outra ciência, tem a condição de responder, a esse ser de
forma integral e em sua particularidade civilizadora. Hoje, as cores das cidades
se misturam e a diversidade amplia o leque de possibilidades que os movimentos
humanos desenham. Haverá mais integração, sim. Porém, há uma diversidade
singular acontecendo em cada canto, isso é inegável. Mais do que nunca, a antro-
pologia tem um campo vasto para crescer e vasculhar o mundo mexido por esse
homem total.

Construção da Identidade Humana


22 UNIDADE I

OS ENCONTROS ENTRE AS CIVILIZAÇÕES

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Somos uma espécie marcada pelo movimento. O ser humano é um migrante cons-
tante e assim foi construída a existência sobre o Planeta. O andante eterno que
por fatores múltiplos se desloca em todas as direções. As ocupações territoriais
desenhadas ao longo da história humana podem ser analisadas em muitos aspec-
tos. Falar das necessidades econômicas, entender os rituais, a cultura que tem em
si o estímulo a buscar “além do horizonte”. A migração é uma constante social.
Na antiguidade, o aparecimento das primeiras civilizações no Oriente Médio,
na Ásia ou na África demonstrou que foi por meio dos deslocamentos constantes
que as civilizações se organizaram com uma estrutura social e econômica. Esse
fato daria início à longa história da espécie humana cuja complexidade demonstra
os registros mantidos até hoje. O sedentarismo foi fundado na produção agrí-
cola, em que a lavoura de subsistência foi, depois, substituída pela produção do
excedente, e marcou o desenvolvimento dos instrumentos, da possibilidade da
organização familiar patriarcal, da formalização do Estado, como agente de orga-
nização e estabelecimento do poder sobre um determinado território.
A identificação social gerou as primeiras religiões, nelas o convívio social
passaria a obedecer a uma ética complexa que se colocava mais eficiente que os
rituais mágicos que predominavam em grande parte dos grupos sedentários.
Os monarcas que se constituíram como representantes de estado nas primei-
ras civilizações, eram vistos como representantes de divindades religiosas. Eles
eram ao mesmo tempo o elemento unificador da norma coletiva e a legitima-
ção da posse do território.

O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
23

Claro que, ao se falar do exercício de dominação sobre uma porção de terra,


é importante se lembrar da longa jornada de combates que permitiram o esta-
belecimento do poder sobre o território. A organização militar necessitou da
formação de uma rede de produção para o abastecimento das tropas em tempos de
guerra e também para mantê-las em treinamento constante em períodos de paz.
O tempo de permanência em um determinado território não foi o fim dos
processos migratórios que formaram as primeiras civilizações. Elas continua-
ram sua jornada, mantiveram sua busca e se desdobraram em expedições que
percorreram regiões vizinhas e promoveram, em alguns casos, a expansão terri-
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torial. Nasceram os “impérios”: Chinês, Babilônico, Egípcio, Persa, Macedônico


e, mais tarde, o poderoso Império Romano.
Mas, se os impérios nasceram na Ásia, também se propagaram pela África,
como é o caso do Império do Sudão (Núbia), parte do antigo império egípcio.
Na América, os Impérios Inca, Maia e Asteca se desenvolveram e promoveram
conquistas entre os séculos VIII e XVI. A história da humanidade pode ser mar-
cada pela formação dos impérios, mas, mais do que isso, ela é o resultado do
movimento, do povoamento, do domínio.
A formação das civilizações que constituíram o Estado e que se estabelece-
ram em determinados territórios fundou-se na exploração de uma determinada
atividade econômica. A agricultura foi o elemento mais importante, assim como
a criação de animais. Porém, os desdobramentos da prática comercial em mui-
tos dos povos da antiguidade deram oportunidade para que ocorresse o contato
entre as civilizações. Entre as civilizações mercantis da antiguidade, se destaca-
ram fenícios, gregos e romanos.

Entre os fenícios, se desenvolveu o alfabeto fonético que viria a se tornar


elemento fundamental para a gramática que chegou ao ocidente. Mesmo
as civilizações que os sucederam utilizaram este alfabeto para agilizar a re-
lação entre as nações nas quais se promoveu o comércio. Esta capacidade
de desenvolver a língua comum ou elementos simbólicos que permitam
conhecer o outro, se torna fundamental entre os homens.

Os Encontros entre as Civilizações


24 UNIDADE I

O NASCIMENTO DO OCIDENTE

Fica cada vez mais claro que não conseguimos nos livrar de nossa carga ociden-
tal nem quando estamos analisando ou descrevendo o processo de formação das
diversas civilizações. Continuamos a determinar que a Europa ocidental tem o
papel de formar a civilização e de conferir sentido ao estudo de outros povos e
sociedades que ocupam o Planeta.
Poderíamos abordar, quando discutimos o desenvolvimento das práticas
mercantis ou do processo de ocupação dos territórios, o que aconteceu na Ásia,

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quando da expansão da economia mercantil chinesa ocorreram contatos que esta
civilização fez com outros povos que habitavam o Oceano Pacífico e a Oceania.
As navegações do Império Celestial chegaram ao Oceano Índico e mantiveram
relações comerciais com a costa oriental da África e com o território da Índia.
Não podemos deixar de mencionar as viagens chinesas à costa da América pelo
Oceano Pacífico. Os mapas que os europeus utilizaram em suas navegações eram
chineses2. O curioso da produção cartográfica chinesa é que o Império Celestial
estava no centro do mundo desenhado em seus mapas (REGO, 2012)3.
O que nos parece intrigante é que diante de um desenvolvimento cartográfico
singular para seu tempo, os chineses não promoveram uma conquista planetá-
ria como a civilização Ocidental Cristã Europeia implantou. Mesmo tendo as
condições materiais, técnicas e humanas para essa aventura de dominar outros
povos, a China preferiu o cerco de suas muralhas. Elas nos dão uma dimensão
do que o discurso de superioridade possibilita em duas ações aparentemente
antagônicas: na primeira, a busca de conquistar e submeter; a segunda, o caso

2 A navegação europeia pelo Oceano Atlântico dependeu dos mapas chineses. A Itália foi o centro comercial
que permitiu que estes documentos chegassem à Europa, às nações ibéricas, os quais eram isntrumentos
para o sucesso das expedições pelos monarcas católicos de Portugal e Espanha. A astúcia dos navegadores
era, em grande parte, justificada pela documentação cartográfica produzida pelo império asiático.
3 Neste trabalho de dissertação de mestrado está o relato e os desdobramentos de uma análise documental
da presença da Companhia de Jesus em território Chinês, no século XVII. A relação entre o pensamento
cristão e a influência do confucionismo. Mais tarde, no século XIX, a influência ocidental será hostilizada
na China. Muitas das comunidades católicas foram eliminadas e as que sobreviveram sofrem discriminação.
Um dos principais personagens que produziram os documentos, que são fontes da análise de Luís Rego, é o
jesuíta Nicolas Trigault (1577-1628). Ele viveu, a partir de 1612, entre os chineses e desvendou documentos
que mostram que a China concebia sua civilização no centro do Universo e suas províncias como as regiões
civilizadas do mundo.

O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
25

chinês, o de se isolar para não se contaminar com o “estranho”, o “impuro”, o


“inferior”. Os nossos muros que cercam condomínios e casas nos dão a dimen-
são deste significado.
O importar-se com o outro, querer entendê-lo, dominá-lo, conhecê-lo é um
exercício que os ocidentais cristãos promoveram como nenhuma outra civiliza-
ção da história. A ciência é considerada “universal” pela batuta ocidental, esta
é geradora de inúmeros campos de saber, entre eles a Antropologia, a qual, por
sinal, foi a que melhor expressou o olhar do europeu sobre o mundo.
A curiosidade sobre o “estranho”, chamado ao longo da história de bárbaro,
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selvagem ou primitivo, demonstra a necessidade de conhecer, em muitos casos,


para dominar. O saber que se constituiu sobre as inúmeras civilizações do Planeta
foi vital para o sucesso da empresa conquistadora em que se transformou a Europa.
Para atingir tal sucesso, algumas etapas tiveram que ser superadas, vamos então
falar sobre elas e também deste ocidentalismo que constitui o “campo fértil” da
Antropologia. Esse é o nosso próximo passo, a nossa próxima “aventura”4 .

SOMOS OCIDENTAIS

Não é fácil admitir nossa enraizada origem de concei-


tos e preconceitos que define nossa própria existência.
Vou chamá-la aqui, só para dar uma dimensão inicial
do que estamos falando, de a “água de Mileto”. O pen-
sador grego considerava que o elemento que existe em
todas as coisas do universo deveria ser a sua essência.
Como a água estava presente na maioria dos elementos
do Mundo, ela poderia ser essa essência.
Mas o que chamo aqui de “essência ocidental” é a

4 Gosto deste termo “aventura” ao desenvolver a análise e apresentação


do conteúdo sobre a Antropologia. Diversos fatores me levam a crer que,
ao constituir uma abordagem sobre um tema tão complexo e difuso, temos que ter a dimensão do que ele
representa e do que não se propõe a ser. Toda e qualquer análise tem suas oposições, suas convergências e
divergências. Por isso, ela cai, em muitos casos, na construção que o pesquisador dá a ela no momento em
que produz sua abordagem. Os efeitos que ela promoverá, as questões que pode despertar e as oposições
que venha a disseminar fazem parte desta “aventura”.

O Nascimento do Ocidente
26 UNIDADE I

impregnada conceituação do mundo a partir de um arquétipo que nos constrói


nos elementos mínimos e o qual não podemos abandonar. Ele é nós mesmos,
ainda que queiramos negá-lo. Talvez, só possamos fazer a negação porque temos
a certeza de que existe, está em nós. Platão, o filósofo grego, considerava que o
arquétipo do bem é que faz todas as coisas boas que existe no mundo. O bem é
para nós o que conceituamos como tal, assim como o mal.
Dessa forma, a civilização ocidental, através de seus pensadores, se posiciona
no universo e nele coloca um sentido, dando-lhe uma forma original que seria a
base para o que seria construído ao longo da história da conquista planetária por

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cinco séculos. A ocidentalização do mundo não é mais do que a realização do
que o ocidente estabeleceu, o seu próprio universo. François Laplantine (2000,
p.52), em sua obra “Aprender Antropologia”, argumenta ao falar do olhar dos
ocidentais sobre os outros povos que encontrou em suas conquistas:
Tais são as diferentes construções em presença (nas quais a repulsão se
transforma rapidamente em fascínio) dessa alteridade fantasmática que
não tem muita relação com a realidade. O outro – o índio, o taitiano,
mas recentemente o basco ou o bretão – é simplesmente utilizado como
suporte de um imaginário cujo lugar de referência nunca é a América,
Taiti, o País Basco ou a Bretanha. São objetos-pretextos que podem ser
mobilizados tanto com vistas à exploração religiosa ou à emoção esté-
tica. Mas, em todos os casos o outro não é considerado para si mesmo.
Mal se olha para ele. Olha-se a si mesmo nele.

EXPANSÃO OCIDENTAL

Para se compreender a dimensão da ocidentalização para a Antropologia, se faz


necessário compreender a própria formação ocidental e lançar um olhar antro-
pológico e etnográfico sobre o “próprio berço” do observador. É preciso, ainda,
entender, pelas nossas ferramentas de pesquisa e análise, como constituímos
uma civilização capaz de submeter os povos do mundo sob a regência de uma
economia de mercado fundada no sentido do lucro, da acumulação racional da
riqueza, instrumentalizada pelo desenvolvimento da ciência e pela concepção de
superioridade civilizadora ou, infelizmente, pela superioridade racial.

O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
27

Se formos estudar a formação ocidental, então temos que resgatar os elemen-


tos que fizeram da Europa Cristã o local, em tempo e espaço, ideal para a formação
dessa civilização. A decadência de um Império Romano e a emergência de um rura-
lismo bárbaro impregnado de um misticismo simbólico pode nos ajudar muito. Em
nenhum momento de toda a sua trajetória como religião de raiz hebraica o cris-
tianismo viu a incorporação de símbolos e rituais como na cristianização romana
e, na sequência, na conversão dos germânicos, os chamados “bárbaros”.
Ao mesmo tempo em que a cultura cristã se coloca como aquela que inclui,
essa confere ao ocidente a legitimidade de sua representação. A santificação de
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todo o lugar está diretamente relacionada à sua cristianização, havendo, assim,


a necessidade de converter para salvar, de ir onde o infiel está. As peregrinações,
as cruzadas, as conversões missionárias que percorreram a história e ainda hoje
se processam têm esse fundamento. Nesse ato de levar a fé se legitima o direito à
conquista, ao estabelecimento das instituições “civilizadoras” e “catequizadoras”.
O olhar sobre o “outro” ganha um contorno pré-disposto a relacioná-lo à obra
divina. Um universo que tem como fronteira o infinito e como autor o Deus oci-
dental. Assim, tudo o que existe no mundo estabelecido tem sob a perspectiva da
civilização o direito à “apropriação” no sentido de fazer de todos os lugares uma
parte da “digna” obra civilizadora do ocidente. É com esta apropriação que a civi-
lização ocidental se lançou para a conquista planetária. O domínio de diversos
territórios e a produção dos discursos de supremacia civilizadora ocidental cristã.

O BERÇO

Para que brote a planta, se faz necessário o cultivo da terra. É preciso que o solo
tenha todas as condições necessárias para a fertilização. Em solo fraco, se faz neces-
sária uma semente capaz de sobreviver com pouco estímulo. Em determinados
campos férteis, mesmo tendo uma origem medíocre, a semente brota e a planta
cresce. Uma civilização também obedece aos estímulos do ambiente, os quais podem
vir das heranças incrustradas ao longo do tempo que geram permanências que se
moldam e absorvem o novo, também podem vir dos encontros, dos valores estran-
geiros que dão um significado ao que as heranças não são capazes de responder.

O Nascimento do Ocidente
28 UNIDADE I

Para analisar a construção da civilização ocidental, é preciso entender o seu


berço, o continente europeu. Poderíamos defini-lo como uma arena onde diversas
civilizações brotaram e se entrelaçaram ao longo de séculos. Nessa interposição
de movimentos e redefinições de territórios, línguas, comandos e religiosida-
des, o Império Romano foi o mais estável no que se refere à manutenção de seu
poder. A hegemonia latina estava para além do domínio das terras, sua cultura
estava presente na construção de um conceito de ser humano, do homem euro-
peu. Roma soube conciliar sua herança à cultura dos conquistados ao mesmo
tempo em que desta absorvia o melhor. A história do Império é a de uma multi-

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culturalidade. Diversas culturas povoaram as cidades romanas. Se a regionalidade
permaneceu nos campos de trigo, nas regiões de mineração e nas províncias mais
distantes, em cidades como Roma, Alexandria, Antioquia e Bizâncio ocorreram
uma intensificação da cultura cosmopolita5.
Não quero deixar de mencionar a construção da intelectualidade romana e o eixo
condutor da lógica que a constrói. Da cidade latina, Roma, ao poderoso império
que se propagou do Atlântico ao
deserto arábico, a absorvência
de múltiplas civilizações tem
um eixo condutor que orienta
o sentido e dá personalidade
ao Estado. Propaga-se nos
discursos dos imperadores
romanos a civilidade, ela é
helênica, é grega. Importante
pensar que os gregos foram
para os macedônicos assim
como para os romanos uma
referência de civilidade.

5 Um dos objetos de estudo sedutores da antropologia é a cidade. Tanto ao longo da história de inúmeras
civilizações como no decorrer das suas transformações. Na antiguidade, como no caso das cidades romanas
tratadas aqui, ou na atualidade, com as imensas metrópoles que determinam a vida da humanidade além de
suas fronteiras, as cidades representam um ambiente que refaz o ser humano. Ela é o ponto de encontro, o
campo de convergência e onde a divergência ganha um impulso extraordinário. A vida tem na cidade o seu
principal palco.

O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
29

A racionalidade dos gregos ampara-se na lógica das instituições. O comporta-


mento do homem romano tem na ética e na estética grega um parâmetro, o qual
foi polido pela praticidade que Roma deu às suas instituições e ações, expresso nos
templos, nas obras públicas, na necessidade da funcionalidade. Mesmo no coli-
seu, no espetáculo, a relação entre o homem, o Estado e a civilidade está presente
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Muitas vezes, no espetáculo do futebol em nosso tempo, nas transmissões


de competições mundiais em que se utiliza de todos os aparatos para causar
ao espectador o sentido grandioso que o evento dá aos seus patrocinado-
res, há uma identificação com o que Roma promoveu nos jogos do gladio
ou no extermínio planejado de seus inimigos como um espetáculo para o
“povo” romano. A civilidade se mostra e simboliza sua superioridade.

Roma deu humanidade à perfectibilidade buscada pelos gregos. Na filosofia de


Séneca, “o Jovem”, é possível entender essa característica. O filósofo romano se
dizia abnegado de desejos no discurso, mas ambicioso na prática. O pensador
foi uma contradição dentro de suas próprias ideias. O governo romano valoriza
a ética, “a estética do bom comportamento”, segundo Russel, falando do pensa-
mento epicurista, considera a valorização dos prazeres materiais como condição
para a felicidade (RUSSEL, 2001, p.150-1). Porém, não será na prática que vamos
identificá-la e sim na sua intenção6.
O que se propagou como o sentido do poder não é o que o sustenta. A luta
pelo poder e conquista demonstra a eficiência que não passa pelo cumprimento
da ética. O olhar sobre o legado que a antiguidade nos deixou deve ter este crité-
rio para sua consideração. Temos que considerar o poder instituído pela condição
que o formou, ele não tem uma origem idealizada, o que o pensamento grego

6 Costumeiramente se coloca a intenção como uma busca necessária. Se ela for fundada em uma ética
humanitária, teremos, no futuro, um ser mais humano. Como uma reflexão, ou mesmo com a intenção de
gerar um debate, lanço a questão: você já imaginou se o cavalo que busca comer a cenoura colocada à sua
frente soubesse que ela jamais será seu alimento, o que ele faria? Acredito que esta busca da ética tem uma
relação próxima com a cenoura e nós com o cavalo.

O Nascimento do Ocidente
30 UNIDADE I

e romano produziu deu-se dentro de um ambiente que lhe serve de negação e


afirmação. Na análise antropológica, esse cuidado deve estar presente, assim
como na história e na sociologia. Em quantas civilizações a construção do poder
veio acompanhada de uma lógica que o inspira, mas nem sempre cumprida. O
que se propaga como verdade pode ser contrário à possibilidade que a divulga.
Quem chega ao poder não denunciará como propaganda a sua forma cruel de
conquistá-lo.

Da cidade romana ao campo feudal e da cultura agrária ao cristianismo

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A decadência da civilização romana foi marcada pela fragmentação do poderoso
império. Sua grandeza foi também o mal que o diluiu. A diversidade romana
se alimentava de conquistas, embates constantes com os inimigos em fronteiras
que se moviam cada vez mais “além”. Pela própria natureza da sociedade escra-
vista romana, alimentada por trabalhadores obtidos, principalmente, nas guerras
expansionistas, a reprodução da ordem social estava ameaçada, com data de
validade consolidada. Nada surgiu para dar outro destino ao Império Romano.
Não consideramos que somente o escravismo teria colocado o fim na civili-
zação romana. A queda romana foi consequência da própria relação estabelecida
com as civilizações que dominava. O que os romanos pretendiam manter pela
eternidade não poderia resistir às condições que a forma de dominação gerou.
A grandiosidade das instituições romanas não estav imune às relações que as
mantinham. A escravidão foi o maior exemplo e fator da queda romana. Nada
disso perpetuou a ordem, tudo se refez em outra constituição social cujo funcio-
namento era adverso ao que atendia ao poder implantado pelo império secular,
que, a partir do século III, já sentia os efeitos das rachaduras em suas estruturas.
A ampliação de um território integrado só é possível na proporção em que se
flexibilize a relação estabelecida em cada parcela do território e se torne rígida a
eficiência da vida econômica, política e jurídica, as quais respaldam o sentido da
obediência. A autoridade do imperador passou a representar interesses distintos
nas diversas províncias romanas. Não por acaso, as legiões romanas, o exército
do império, instituição fundamental para a garantia da obediência, se trans-
formaram, em muitos casos, em milícias, que disputavam o poder com grupos

O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
31

rebeldes locais7. Os generais romanos que se espelhavam no poder do império


e através dele se colocavam no comando de uma comunidade provincial passa-
ram a almejar o poder do Imperador formando seu próprio reino.
Os elementos invasores traziam consigo seus rituais, que semeavam uma nova
compreensão das condições em que o Império estava estabelecido e suas culturas
se propagavam. O cristianismo foi um tipo de contestação à Roma, foi o princi-
pal discurso de ruptura com a ordem do Império que o perseguiu. Contudo, sua
permanência após a queda romana não se dará da mesma forma que surgiu, ou
seja, como opositor dos césares. As instituições e valores romanos seriam funda-
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mentais para dar ao cristianismo a longevidade. O próprio discurso e os rituais


religiosos cristãos incorporaram a simbologia romana, retrabalharam os ritu-
ais bárbaros e formaram uma cristandade sincrética, mas também original. O
livro de Hilário Franco Júnior (2001), “Idade Média: o nascimento do ocidente”,
é uma leitura obrigatória para entender esta sociedade agrária que vai gerir em
seu seio os elementos que formaram a ocidentalização.
Nesse território latinizado, surgem os dialetos, se constrói no localismo um
cerco de muralhas que os castelos simbolizaram, mergulha-se na espiritualidade,
na introspecção, na redenção do homem pela negação da matéria. Em tudo o que
Séneca buscou como ideal o homem medieval mergulhou. Isso não ocorre, con-
tudo, pela escolha, mas pela falta dela. A perda da integração comercial ruralizou
e isolou, em muitos casos, a vida social. Estimulou o localismo com uma ruptura
e não por meio de uma mudança gradativa. As guerras, pestes, fome passaram a
ser a máquina da eliminação. Em 300 anos, entre os séculos V a VIII, a Europa vê
decrescer sua população de 24 milhões no século III para 16 milhões no século VII
(FRANCO JR., 2001, p. 19). A morte se avizinhou, talvez por isso a religiosidade
tenha se transformado em um elemento vital para dar sentido a uma vida curta.

7 Aqui não queremos fazer nenhuma relação de semelhança de fatores ou relações que comparem
qualitativamente ou quantitativamente os dois momentos, mas nas guerras urbanas que assistimos nas
metrópoles mundiais, na Cidade do México, Bogotá, Rio de Janeiro ou São Paulo, por exemplo, demonstram
a perda de eficiência do aparato de segurança pública. A desobediência se alastra e novos rituais surgem de
reconhecimento do chamado “poder paralelo”. Não por acaso, os milicianos, líderes de ordens criminosas
organizadas, ganham prestígio, seguidores e produções culturais que exaltam o feito do contraventor. Nas
periferias urbanas se produzem música e dança que têm como tema os conflitos armados, o comportamento
dos rebeldes, e decantam os feitos realizados contra a força pública. No sentido inverso e apontando para a
mesma direção de decadência da ordem, está o aparato de segurança pública que reproduz dentro do seu
corpo a mesma lógica dos chamados “subversivos”, “marginais” e “bárbaros” que combatem.

O Nascimento do Ocidente
32 UNIDADE I

A forma como organizamos nossa sociedade para a sobrevivência, para a


produção diária de nossa existência, está diretamente relacionada ao sentido
que damos a ela e à forma como construímos os elementos que dão suporte
às relações sociais estáveis, à família, ao trabalho, à propriedade, à cultura etc.
Necessitamos reforçar o comportamento esperado para que seja cumprida a
expectativa de cada elemento e a coletividade como um todo. O que se coloca,
muitas vezes, ao estudar um determinado tempo histórico ou uma comunidade,
é entender as mudanças. Estas são um reflexo de transformações que vão se pro-
cessando, fermentando, com o tempo.

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O ambiente romano promoveu o encontro de inúmeras civilizações, mais que
isso, estimulou determinadas práticas reforçadas pelo próprio Estado romano, houve
também aqueles que agiam em sua contrariedade – os opositores também se manifes-
tavam e buscavam na lógica do dominador uma oposição necessária. O embate entre
o cristianismo e o Império Romano foi marcado pela descaracterização do impera-
dor como o senhor de todas as coisas, uma negação, da autoridade máxima romana.
Ao mesmo tempo em que se transformou na negação o cristianismo sobreviveu e
se propagou dentro das estruturas geradas pelo Império Romano. A sobrevivên-
cia do cristianismo só foi possível se alimentando e perpetuando o legado romano.
Ao mesmo tempo em que a sociedade agrária que se constituía isolada e
buscava a sobrevivência com as condições que a localidade lhe dava, o cristia-
nismo lhe foi herança do dominador decadente e combatido. Foi também o
refúgio para o entendimento da vida que se constituía nas relações agrárias. A
servidão e o senhorio nascem simbolizados pela redenção religiosa. Se a magia
já fazia parte das religiões germana, bretã, céltica e goda, incorporaram do cris-
tianismo sua universalidade. Não por acaso, ainda hoje, na Igreja Católica, há
uma grande quantidade de santos. Personagens intermediários entre a divindade
maior (Deus) e elementos menores. Os deuses dos chamados “bárbaros”, polite-
ístas, diga-se de passagem, seguiam essa ordem.
Temos que considerar que essa foi a condição sob a qual o cristianismo sobreviveu
na Europa, se transformou pelo sincretismo e surgiu com aspectos de originalidade.
A fé se cria naquilo que sustenta as práticas que dão sentido à vida. Ainda hoje,
em muitos locais onde o cristianismo se estabeleceu no mundo, esse sincretismo

O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
33

se expressa. O cristianismo foi trazido pelo europeu “civilizador”, e essa foi a justi-
ficativa dos conquistadores durante a aventura planetária da expansão marítima,
tal pretexto tornou-se ainda ingrediente para a construção de aspectos únicos, par-
ticulares, do cristianismo, os quais permitiram que se criasse um canal vital para
que se estabelecesse uma relação de dominação. Hoje, em relação à diversidade de
aspectos que o cristianismo apresenta em algumas partes do mundo, o Brasil é um
bom exemplo, pois demonstra o quanto a cultura dominante se impregna da cultura
nativa. Essa é uma característica que o cristianismo já carrega dentro de si desde
sua origem romana, o que fez toda a diferença para garantir a dominação ocidental.
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No Brasil, a Umbanda é uma expressão de um sincretismo original. Uma ex-


pressão do que estamos argumentando como a condição de sobrevivência
de rituais emaranhados com outro. A sobrevivência de uma África dentro de
um cristianismo europeu com nova forma. Mas muito além disso é a condi-
ção de gerar a possibilidade de uma nova religião para garantir o convívio
entre os opostos. O senhor de escravos tolera o afro que incorpora a estética
cristã dos santos – São Jorge, Nosso Senhor do Bonfim e Santa Bárbara, mas
esconde por de trás Ogum, Oxalá e Iansã.

A Europa gestou um cristianismo exclusivamente seu. Ele nasceu das correntes


humanas e de suas lutas para preservar a religiosidade agrária e a sobrevivência
de uma frágil unidade que deu corpo ao que o “homem ocidental” viria a se tor-
nar depois. O feudo, unidade de produção dos senhores, se constituiu da defesa
do invasor generalizado. Não há uma guerra de reinos desenhada de forma lógica
pela historiografia que existiu na Europa. Há, porém, entre os séculos V a VIII,
uma desagregação do império e uma sequência de conflitos em forma de orlas
armadas nos quais se confunde o guerreiro e o camponês, a sobrevivência e o pra-
zer pelo combate. As invasões bárbaras nada mais são que as pilhagens, a busca de

O Nascimento do Ocidente
34 UNIDADE I

superar a fome, de obter a terra, de estabelecer o domínio e de se preparar para a


estabilidade que se busca ou virá. Uma mistura entre a busca da paz por quem tem
o amor à guerra8.
O desenho dos feudos europeus demonstra que a fertilidade do solo e a pos-
sibilidade de um clima estável, ou pelo menos previsível ao longo do ano, durante
as estações, determinou a concentração populacional, assim como a das guer-
ras. Na geografia desenhada na Europa medieval, a população se concentrou nas
regiões mais produtivas. A luta pela terra reflete a da sobrevivência, sua represen-
tação cultural, uma construção do sentido da vida. No cotidiano agrário, foram

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alimentados mais que os seres humanos, também a simbologia da linguagem, o
exercício da autoridade, a representação social fundamental para a identificação
com o trabalho. A vida imaterial do homem europeu medieval foi mais intensa
do que se descreve costumeiramente.

A AUTORIDADE DA IGREJA E O PREÇO DAS VIDAS

O processo de centralização religiosa é outro aspecto


importante no entendimento da formação da oci-
dentalização. O cristianismo, e suas múltiplas faces,
ter sobrevivido em uma Europa medieval foi uma
consequência da própria forma como a economia e
a sociedade se constituram com a queda romana. O
Império Romano viveu com a diversidade religiosa
que não esteve associada diretamente ao reconhe-
cimento da autoridade do imperador. Ao contrário
do que se estabeleceu no medievalismo, quando o
Império Franco se constituiu, iniciou uma associa-
ção da autoridade do imperador ao cristianismo. A

8 Se fossemos comparar com a atualidade, onde há territórios de


guerras intermináveis, não teríamos qualquer semelhança com a intenção. Os “bárbaros” de hoje fizeram
da guerra uma profissão desconectada da paz. Não há a busca da estabilidade na instabilidade. Ao contrário,
a defesa de uma guerra permanente. Só assim se alimenta o instinto e se aniquila a razão.

O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
35

herança romana se torna, para o Império Franco, um mecanismo de imposição


do poder sobre as terras do centro e ocidente europeu.
Ao longo da história medieval se multiplicaram os conflitos religiosos, tendo
o cristianismo no centro de sua simbologia. Este centralismo é, ao mesmo tempo,
a eficiência que se estabelece com a rede de propagação do poder e da associa-
ção desta autoridade ao exercício do governo e da repressão aos elementos que
se opõem a ele9.
Vale lembrar que a Europa viveu a retomada do crescimento populacional
a partir do século XI. A estabilidade populacional gera um ambiente de ativi-
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dades econômicas estáveis, propício para a retomada da economia mercantil, o


sistema de trocas e uma produtividade melhor – quantitativa e qualitativamente.
O campo absorve o valor religioso e gera significados distintos aos elementos
simbólicos da sociedade.
A ruralização consolida as relações feudais, fundadas na produção agrí-
cola local. A classe senhorial, se reconhecida patrimonialmente, estabelece uma
hereditariedade estável fundada e reconhecida no prestígio social. O discurso
religioso associado ao poder territorial senhorial confunde a obediência com a
obrigação de fé. A simbologia que associa o servo ao senhor irá delimitar dife-
rentes perfis de resistência na Europa. Enquanto em uma França, no coração da
Europa, o Estado monárquico necessitará do reconhecimento senhorial para esta-
belecer seu poder, na Inglaterra, serão os senhores que se unirão para formar o
Estado, irão manter o prestígio, mas se adequarão às mudanças que o comércio
irá determinar. Na Alemanha, que nascerá somente no século XIX, o senhorio
se consolidará e manterá sua autoridade, mesmo com as mudanças promovidas
com as relações mercantis10.

9 Importante lembrar e frisar que não há aqui uma intenção de construir uma relação direta entre o poder
e a imposição da força como algo arquitetado estrategicamente pelas lideranças medievais. Há uma
preocupação em gerar tanto na história, na sociologia e na antropologia, nas ciências sociais, de uma forma
geral, esta relação determinista. A construção de uma religiosidade cristã que se impôs sobre as demais foi
fruto das forças que se estabeleceram naquele momento na Europa.
10 A classe senhorial alemã, o junker, manteve-se como autoridade local durante todo o Período Moderno e
parte do Contemporâneo. Enquanto na França, Inglaterra, Espanha e Portugal os senhores feudais ruíram,
na Alemanha se mantiveram como elementos predominantes. Mesmo quando a Reforma Luterana atingiu
as relações entre a Igreja Católica e a nobreza germânica, a servidão manteve-se fiel aos seus senhores.
Foram eles que definiram o destino da religiosidade nos territórios alemães.

O Nascimento do Ocidente
36 UNIDADE I

A FORMAÇÃO OCIDENTAL IBÉRICA

Se tentamos traçar um caminho que desenvolveu entre nós uma linha de cons-
trução da brasilidade, é nas raízes ibéricas, portuguesa em especial, que repousa
a origem brasileira. Raymundo Faoro (2001) estabeleceu esta relação com efici-
ência, assim como Gilberto Freyre (2005). A construção da identidade brasileira
tem uma relação com a formação portuguesa. Para isso, é preciso entender a for-
mação dos Estados nacionais ibéricos, Portugal e Espanha. A centralização do
poder em torno dos monarcas foi marcada pela aliança entre a aristocracia feudal

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e a Igreja Católica. Mesmo o desenvolvimento marítimo, como veremos, teve uma
forte influência do ideário cristão. Há uma diferença, nesses momentos ,entre a
formação portuguesa e a espanhola, que deve ser delimitada. Enquanto Portugal
nasce da monárquica centralizadora que lhe dá forma e garante sua integridade, a
formação espanhola estabelece as concessões regionais entre Astúrias e Castela.
O nascimento da nação portuguesa é o misto entre as guerras de reconquista
que dominaram a Península Ibérica entre os séculos XI e XV, e a necessidade
de resistir à busca de anexação castelhana. O fato de Portugal ser voltado para o
mar garantia sua existência como território nacional. A expansão portuguesa se
consolidou com as guerras, que possibilitaram a formação das colônias lusas, as
quais eram uma extensão do território pátrio. O sentimento de unidade lusitano
foi construído ao longo da trajetória da centralização do poder, da construção de
uma burocracia de nobres ligados ao Estado. Esse grupo de herdeiros do poder irá
se reproduzir no território colonial e na formação brasileira ao longo da história11.
O medievalismo é considerado um importante elemento para entender a for-
mação do ocidente, porém, sua trajetória vai além, chegará em territórios que
a Europa ocidental colonizou e influenciará na formação de novas identidades
locais. Ocorreu, durante a expansão ocidental, o que Edgar Morin (2002, p.23)

11 Na formação do Estado brasileiro, a herança portuguesa se fez presente na construção do poder. A


formação de um governo central na colônia, ligado diretamente à política nepotista colonial, onde o
parentesco e proximidade com quem detinha o poder eram o elementos mais importantes para o acesso
ao poder, deixou seus traços na formação política no Brasil, como a relação de interferência do poder
central nas questões locais. Vamos observar ao longo da antropologia política, na formação dos rituais do
poder, o quanto os elementos familiares terão importância para constituir uma associação hereditária entre
a aristocracia política e a hereditariedade familiar. O sobrenome faz diferença na escolha de quem detém
o poder.

O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
37

denominou de “Era Planetária”, a aventura da conquista que levará ao movi-


mento de pessoas, de produtos, de termos e sentidos. A expansão comercial foi
para o Ocidente um dos eventos fundamentais para o exercício da alteridade, o
qual será resolvido com a imposição dos modelos culturais ocidentais de forma
intensa. Desta forma, dominar é colocar sobre o outro uma vigilância cultural,
construir pela cultura a dominação. Governar o outro é determinar sobre ele o
“olhar do ocidente”.
Voltando a falar na formação ibérica, temos uma luta constante entre os ele-
mentos de centralização e a resistência da regionalidade. No território em que se
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formou a Espanha, essa condição foi sempre uma tensão que persiste até a atu-
alidade. Os conflitos de separatismo e regionalismo em torno da nacionalidade
espanhola, castelhana, basca, ou catalã se constituíram na própria identidade
espanhola, irresolvível.
Em Portugal, essa separação regional se submeteu intensamente. Foi dessa
fragmentação que nasceu o Estado nacional português. Porém, a centralização
passou por elementos de construção que nos permitem dar um significado à rura-
lização e, posteriormente, à urbanização litorânea portuguesa. Uma Portugal do
mar e outra da terra. Como se duas Portugal se encontrassem, uma que se fez e
manteve-se da atividade mercantil que remonta ao Império Romano (Coimbra,
Porto e a própria Lisboa), e outra originária das relações de conquista agrária,
como Portucale12, Alcobaça e Santarém.
Vale destacar que a região de Alcobaça, território banhado pelo Rio Alcoa
e Baça, região litorânea central portuguesa, foi conquistada pelos mouros, pela
ação do rei Dom Henrique, no século XII. Nessa ação de conquista, o príncipe
portucalense contou com o apoio papal para sua conquista, por meio da aliança
e colonização das terras pela doação da Ordem de Citeaux, também chamada de
Ordem de Cister. Os cistercienses foram uma ordem vital para a unidade cristã e
para o reconhecimento da autoridade papal na Europa ocidental. Atuaram desde
a Alemanha até Portugal e tinham sua sede na França.

12 Na formação portuguesa ao foco inicial da conquista, o Condado Portucalense, localizado ao norte da


atual Portugal. A região remonta o Império Romano e posteriormente o Reino Suevo, quando se chamava
Portu Cale, ou “Porto Caia”. Esta região caiu sob a dominação Moura no século VIII e recebeu a influência
da cultura sarracena.

O Nascimento do Ocidente
38 UNIDADE I

Na ocupação e desenvolvimento agrícola de Alcobaça, integraram a região


ao reino português ao se aliarem à autoridade do Rei Henrique de Borgonha.
O monarca concedeu as terras entre os rios Alcoa e Baça aos cistercienses, ele
obteve uma frente de contato com a população que deu sentido ao trabalho, à
língua e à religião ligados à autoridade do rei. Portugal nasceu da cruzada da fé
e da espada promovida pela Igreja Católica e, principalmente, da consolidação
do poder do Rei, mais do que em nenhuma outra nação da Europa, a formação
do território nacional obedeceu a essa diretriz simbólica13.
A relação da instituição religiosa com a formação da nação portuguesa é

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tão importante que mesmo a formatação da língua portuguesa está relacionada
à Ordem de Citeaux e Cluny. Já falada na região portucalense, mas exercitada
como o galego, o lusitano será organizado pelas ordens religiosas através de
uma estrutura gramatical francesa. O uso da língua portuguesa escrita e estru-
turada, oficializado pelo Rei a partir do Século XIII, fará dela um dos principais
instrumentos de identificação da unidade nacional. Não por acaso, seu desdobra-
mento foi fundamental para a garantia da unidade territorial com suas colônias.
No Brasil, a história da língua portuguesa tem suas peculiaridades que se ins-
crevem na resistência, miscigenação e
regionalização dos encontros e “desen-
contros” que formaram a composição
social brasileira.
Em Portugal, a construção da
nação voltada para a navegação e orga-
nização da empresa mercantil obedece
a dois momentos distintos. Em pri-
meiro lugar, a ameaça da anexação
castelhana durante o século XIV, que
se convencionou chamar de Revolução

13 O uso das ordens religiosas pelo Estado e sua fusão entre a obra da fé e a obra pública irão permanecer
ao longo da história portuguesa e do Brasil. Hoje ainda se percebe essa relação entre a herança de uma
religiosidade, que determina o sentido moral da ação, e a relação entre os temas do poder público. O que as
ordens religiosas representaram irá repercutir ao longo da história portuguesa pelos séculos seguintes. Na
educação essa condição se fortaleceu nos colégios e universidades que geraram o que consideramos ainda
hoje “a boa educação”.

O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
39

de Avis (1383-1385). A ascensão de uma nova dinastia ligada aos empreendi-


mentos náuticos só foi possível graças ao arranjo de forças que se deslocaram
a favor da centralização, rompendo com a nobreza tradicional portuguesa, fiel
aos interesses castelhanos.

Quando se fala da Revolução de Avis, estamos diante de um dos momentos


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mais importantes na manutenção da nacionalidade portuguesa, a resistên-


cia à Castela (Espanha). A busca por unir a Península Ibérica em torno de
uma única monarquia se processa em toda a organização dos reinos católi-
cos ibéricos. As navegações terão, junto com o apoio da Igreja Católica por-
tuguesa, um papel vital na manutenção da independência. Quando o trono
português fica vago, em 1383, ocorre uma disputa pela coroa. De um lado a
busca dos castelhanos por anexar o reino portucalense, do outro, a luta pela
independência. A vitória da emancipação acabou sendo simbolizada pela
coroação do Mestre de Avis, Dom João. Com ele se inicia uma relação entre a
empresa mercantil e o Estado absolutista, selada pelos interesses da Igreja e
a participação popular. Ao final, esse ingrediente de forças será fundamental
na expansão lusitana pelo Atlântico.

Foi sob o comando da família Avis que as sequências de conquistas marítimas


foram realizadas. Inicialmente eram voltadas para o norte da África, a cidade
de Ceuta, na sequência, se estendeu pelo litoral do continente afro, e as con-
quistas foram transformando-se em uma rede de pontos comerciais do reino
lusitano. As chamadas especiarias que motivaram a relação de Portugal com o
comércio ultramarino foram levadas a cabo por empresários ligados ao Estado,
mas também estrangeiros. Italianos e flamengos se empolgaram com as práti-
cas mercantis lusas e perceberam nelas uma fonte de enriquecimento além das
empresas italianas.

O Nascimento do Ocidente
40 UNIDADE I

A DOENÇA E O MAR

Outra associação que se faz necessário entender na Europa é a relação entre a


Peste Negra e o desenvolvimento das atividades náuticas. Por mais que se colo-
que de forma automática, ela existiu. A peste foi necessária para “empurrar” as
rotas mercantis para o litoral europeu. Ela garantiu, de certa forma, o crescimento
das rotas comerciais dos empresários que faziam as rotas comerciais de abaste-
cimento nas principais cidades europeias. A propagação da doença no interior
da Europa feriu um dos mais importantes eixos comerciais no centro do conti-

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nente, a rota de Champagne14.
Mas o que foi a Peste Negra? Foi uma doença transmitida por pulgas alo-
jadas em ratos deslocados do oriente para o ocidente. Muitos atribuem sua
origem à Mongólia, outros à Índia. Ela se propagou na Europa no século XIV e
atingiu várias regiões da Europa onde a movimentação populacional era mais
intensa. Transmitida pela bactéria Yersinia Pestis, tinha como hospedeiro pul-
gas do chamado “rato preto”; ela chegou à Europa por meio das rotas comerciais
com o oriente. A doença atingiu, ao longo de mais de 150 anos, diversas par-
tes do continente.
A doença poderia atacar pelas vias respiratórias ou sanguíneas. No primeiro
caso, promovia a morte em poucos dias, dois ou três. Já pela via sanguínea, gerava
o aparecimento de bulbos na virilha ou axilas, levando à morte em pouco mais
de uma semana. A desinformação sobre os fatores que promoviam a expansão
da peste levou a práticas confusas divulgadas pelas autoridades. Em alguns casos,
geraram um ambiente ainda mais propício para que a epidemia se alastrasse.
Antônio Martins relata o enfrentamento da fatalidade por meio da crença
sem fundamento científico.

14 Nessa rota, originária do auge do feudalismo, as trocas comerciais eram consequência do excedente
produzido na Europa pelos campos. Os trabalhadores e senhores desenvolveram a atividade de troca
fundada no escampo e, aos poucos, nasceu a moeda e o processo de integração de regiões distantes com a
implantação de um sistema de câmbio permitindo a troca de valores de regiões produtoras e consumidoras
de produtos. A Rota de Champagne integrou o norte da Europa, onde existiam as ligas hanseáticas
com o Sul, em especial a Itália, as cidades de Gênova e Veneza. Outro ponto importante dessa rede de
desenvolvimento foi a Holanda (Amsterdã).

O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
41

Em 1664, o aparecimento de um cometa nos céus levou a muitas predi-


ções pessimistas. Segundo Defoe, os astrólogos de Londres anunciaram
que a peste logo iria atingir a cidade. O pavor tomou muitas pessoas. Os
mais impressionáveis começaram a ter sonhos em que viam um grande
número de mortos. Pessoas alucinadas corriam pelas ruas, gritando e
profetizando desgraças. Londres se encheu de magos, adivinhos, astró-
logos, curandeiros e diversos tipos de charlatães, que davam conselhos,
previam os acontecimentos futuros, indicavam antídotos infalíveis
contra qualquer tipo de doença, vendiam talismãs mágicos para prote-
ger da peste e, de muitas formas, lucravam com o temor do povo.

Como se vê, havia muitas hipóteses sobre o modo de transmissão da


enfermidade, mas não se sabia nada com certeza. Os bubões dos do-
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entes exalavam um cheiro fétido, e muitos pensavam que era através


desses odores que a doença passava de uma pessoa para outra.

No início de junho, a doença aumenta assustadoramente em Londres.


Apenas em Saint Giles, morrem 100 pessoas em uma única semana.
Nos bairros próximos, a mortalidade também é elevada, mas muitas
pessoas escondem a causa real (MARTINS, 1997, p. 8-9).

Em Portugal, a doença se relaciona com a crise monástica em que a sucessão da


casa real é um dos seus desdobramentos. Historiadores como Álvaro B. Cunhal
(1980) associam as revoltas populares contra a monarquia com problemas oca-
sionados pela expansão da peste bubônica. O interessante das contradições
sociais que a doença acabou gerando é a relação entre a crença e os fatos. A epi-
demia se multiplicou e fez brotar na população suas crenças do fim do mundo,
da destruição apocalíptica descrita na Bíblia. Assim, se constituiu uma lógica
para entender a fatalidade. Os males acabam sendo associados a determinados
grupos sociais, aos inimigos públicos, ou servindo de motivo para extermínios.
Judeus, prostitutas, estrangeiros e sujeitos de ações promíscuas foram conside-
rados como os responsáveis pela propagação da Peste Negra.

O Nascimento do Ocidente
42 UNIDADE I

Não foi diferente entre nós quando a Aids surgiu e se propagou. Uma doen-
ça associada, ainda hoje, ao castigo divino. Mas, ao relatarmos a Peste Negra
na transição da medievalidade para a modernidade, temos uma sociedade
desinformada, a qual ignora seu próprio destino por não conhecer o que
o cerca. Na nossa sociedade mergulhada na informação, a desinformação
reina em momentos de crise. Onde será que repousam as ações que misti-
ficam os responsáveis por problemas que a ciência é capaz de indicar seus
agentes?

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As rotas comerciais que cortavam o interior do continente reduziram suas ativi-
dades diante da propagação da doença que, segundo dados incertos levantados
por governos e pelo clero católico, dizimou um terço da população europeia.
Cerca de 75 milhões de habitantes foram mortos pela contaminação. Em Lisboa,
no auge da doença em Portugal, em 1569, morriam 600 pessoas por dia. Em um
ano foram 60 mil mortes. Devemos levar em consideração que a nação lusitana
estava longe das regiões mais afetadas pela doença.
A Peste Negra foi um mal que instigou a percepção da Europa sobre si mesma,
a sobrevivência à grande epidemia estabilizou as relações sociais. Cidades des-
truídas retomaram a rotina, os campos passaram a ser cultivados e as práticas
mercantis se reestabeleceram. O fim da Peste Negra abriu possibilidades para
outros meios de organização e desenvolvimento na Europa ocidental. O comér-
cio nascente continuou seu desenvolvimento pela navegação costeira, as cidades
portuárias passaram a concentrar uma população cada vez maior e a gerar a
relação necessária com o campo para a garantia da sobrevivência do decadente
regime feudal.
O Estado Nacional terá um papel vital para a superação dos problemas
trazidos pela emergência mercantil e pelas fatalidades da Peste. Os governos
monárquicos unificaram territórios; leis, exércitos, língua e práticas econômicas,
foram vitais na convergência de interesses. Nobres feudais, mercadores, campo-
neses e clérigos irão buscar na monarquia nacional absolutista um alicerce, um
sustentáculo para a sobrevivência e expansão de suas atividades. As cidades

O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
43

ganham um papel vital nesse sentido. Elas passam a ser o centro determinante
do poder político, a sede do governo. E governar requer o exercício da autori-
dade de forma eficiente, sensível, notada e reconhecida por todos. Essa prática
de exercício do poder passa a ser um elemento vital na organização do ocidente.

EMERGE A NAÇÃO

O processo de ocidentalização tem uma relação direta com a construção do


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Estado-Nação. A construção das nações e a autoridade dos Estados que as repre-


sentaram são os desdobramentos do que o ocidente constituiu ao longo da história.
O poder instituído ao rei, ao representante da república, ao chefe de Estado e
de governo emergido das mais diversas formas de organização política, social e
econômica permitiu os desdobramentos da história humana. A conquista pla-
netária iniciada pelos Estados ibéricos não foi outra coisa do que a conquista do
Estado português e espanhol.
Para Maria Lúcia de Arruda Aranha (1993, p.18-19), a construção dos esta-
dos ibéricos teve condições distintas e foram precoce:
A centralização do poder se fez de maneira irregular, dependendo das
circunstâncias em cada região.

Portugal já se constitui em Estado moderno no final do século XIV, sob


dom João I, da dinastia de Avis. A precoce centralização do poder real
facilita a expansão marítima decorrente da aliança feita com a burgue-
sia mercantil. O Estado estimula pesquisas, funda escolas de navega-
ção, incentiva o aperfeiçoamento náutico, promove viagens.

Na Espanha a unificação se dá no final do século XV, após a expulsão


dos mouros do território espanhol. Os reis católicos, Fernando de Ara-
gão e Isabel de Castela, estimulam a expansão marítima, e é durante
esse governo que o navegador genovês Cristóvão Colombo, a serviço
da Espanha, descobre a América. Quando Carlos V abdica em 1555,
deixa a seu filho Filipe II um império colonial tão vasto que, segundo
se diz na época, nele “o Sol nunca se põe”.

Na França, a organização do Estado nacional se viu rodeada por conflitos entre


a nobreza influente das diversas províncias do reino. Capetos, Valois, Bourbon,
Médici e Guise travaram combates intensos pela monarquia. Foi durante as

O Nascimento do Ocidente
44 UNIDADE I

guerras religiosas que a monarquia se estabilizou nas mãos dos Bourbon, que
eram protestantes de origem, mas se converteram ao catolicismo para manter o
reinado (“Paris bem merece uma missa”).
Foi no exercício da centralização do poder que se constitui o Estado moderno,
com aponta Max Weber (1982, p.102):
Em toda parte, o desenvolvimento do Estado moderno é iniciado atra-
vés da ação do príncipe. Ele abre o caminho para a expropriação dos
portadores autônomos e “privados” do poder executivo que estão ao
seu lado, aqueles que possuem meios de administração próprios, meios
de guerra e organização financeira, assim como os bens politicamente

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usáveis de todos os tipos. A totalidade do processo é um paralelo com-
pleto ao desenvolvimento da empresa capitalista através da expropria-
ção gradativa dos produtores independentes. Por fim, o Estado moder-
no controla os meios totais de organização política, que na realidade se
agrupam sob um chefe único.

O crescimento e a, consolidação da economia capitalista necessitam do desen-


volvimento do Estado Nacional. Sua organização foi vital para estabilizar as
práticas econômicas nacionais e, posteriormente, executar e legitimar as con-
quistas mundiais. A diplomacia, mais tarde, vai definir a geografia internacional e
fará reconhecer parte considerável do mundo como uma extensão dos territórios
anexados pelas nações europeias. A integração de uma rede mundial de produ-
ção que hoje, mais do que em qualquer tempo, é a demonstração da capacidade
de interferência planetária das relações de mercado, da tão falada “globalização”,
foi consequência da dominação planetária levada a cabo pelo ocidente europeu.
Para promover a conquista e buscar realizar o interesse da supremacia planetá-
ria, as nações ocidentais estavam determinadas, por forças que convergiam para a
conquista, a realizar o que para a civilização ocidental está em sua identificação: a
conversão civilizadora e a conquista associadas ao interesse de acumulação de riqueza.
Ao mesmo tempo em que a sociedade europeia gestou o seu culto cristão e
seu ruralismo fundado na autoridade senhorial, esses elementos originaram a
simbologia necessária para a construção de uma prática mercantil direcionada
ao avanço sobre outros povos, as conquistas necessárias às práticas mercantis.
O homem feudal, que foi marcado como localista, fechado em uma vida
rural e regional e acomodado dentro do estamento feudal (nobreza e plebe), se
transformou em um ser humano em marcha pela conquista do mundo. Contudo,

O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
45

isso não é fruto do acaso, mas, sim, das transformações que ocorreram no seio
da sociedade europeia. Uma série de mudanças permitiram o deslocamento dos
europeus para diversas partes do Planeta. A cultura cristã preservada na Europa
após a queda do Império Romano, fundadora do teocentrismo feudal, estará
presente no incentivo às conquistas marítimas. Sem dúvida que há uma busca
pelo lucro, pela riqueza, pela conquista de novos pontos de comércio e a acumu-
lação de capital, mas esses não são os únicos fatores que justificam a expansão
comercial e marítima da Europa. Ou seja, não podemos cair em um determi-
nismo econômico e esquecer que o sentido da economia foi gerado dentro de
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um ambiente cristão.
Anteriormente, falamos, por exemplo, da
Ordem de Cister e sua característica de con-
versão no território europeu. Podemos lembrar
das Cruzadas travadas contra os muçulmanos
no oriente e no ocidente, na Península Ibérica.
Se a atividade mercantil foi, aos poucos, das
feiras medievais se reorganizando em diversas
cidades portuárias na medida em que as tro-
cas se intensificaram, se esta mesma atividade
mercantil já tinha sido uma prática constante
na Europa romana, agora ganha um novo sen-
tido no mundo cristão15.
A formação dos Estados nacionais levará
a convergências das forças econômicas, políticas e culturais pelo Estado. Ele se
tornará o principal agente de organização dos empreendimentos econômicos capi-
talistas que emergem dentro dos territórios europeus e necessitam se expandir
para outras partes do mundo. A necessidade de organização da empresa mercantil

15 Alguns dos primeiros tratados internacionais foram assinados entre Portugal e Espanha no início das
“Grandes Navegações”. A expansão marítima ibérica ganhou proporções mundiais e ousadas. Típicas da
simbologia ocidental. O Tratado de Tordesilhas, por exemplo, 1494, teve o reconhecimento do papado. A
Igreja Católica se mostrava como intermediadora entre os reis ibéricos. A instituição legitima o poder luso-
espanhol sobre as terras do “além-mar”. Não será por acaso que os reis da França e Inglaterra irão questionar
o acordo ibérico. Porém, não se pode negar a ousadia de portugueses e espanhóis que colocaram o mundo
sobre uma mesa e o dividiram sem avisar seus habitantes. Eles sentiram posteriormente o efeito da linha
“imaginária” que se transformou em um corte sobre a pele de muitos povos espalhados no mundo.

O Nascimento do Ocidente
46 UNIDADE I

pelo Estado foi uma das principais características da economia capitalista em


sua fase mercantil. O monopólio comercial estabelecido por empresas ligadas ao
Estado e a necessidade de organização, proteção, legislação e negociação inter-
nacional das conquistas ultramarinas tiveram, no Estado, o principal agente.
As monarquias nacionais europeias que eram rivais nas disputas marítimas
promoveram empreendimentos de grande porte, aqui nos referimos, inicial-
mente, a nações ibéricas, e, posteriormente, a outras nações. Pode-se observar
que nesse período a empresa colonial foi arcada pela interferência constante do
governo metropolitano. O estabelecimento de uma infraestrutura que permitisse

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às empresas coloniais estabelecerem o contato com a população nativa, instalar
empresas produtoras, organizar a alfândega e promover o surgimento de núcleos
comerciais, teve participação direta do Estado moderno.
Desenham-se e redesenham-se as fronteiras mundiais pelas mãos dos Estados
nacionais europeus. A autoridade dos monarcas se estabelece como agentes
mundiais na busca de atender aos interesses das forças que representam e que
lhe garantem o poder. As áreas coloniais são demarcadas em uma cartografia
internacional legítima. Faz-se necessário que as porções territoriais colonizadas
pelas nações europeias tenham o reconhecimento e respeito pelas demais. Os
tratos entre as nações começam a se suceder e deixam de ser de interesse de um
pequeno grupo de civilizações, passam para a esfera da escala mundial. O globo
terrestre “ganha forma e tem senhores”16.

OCIDENTALIZAÇÃO URBANA

A busca de conquistar os territórios além-mar é uma associação entre a forma-


ção econômica e a necessidade de conversão do mundo cristão. A relação que
se estabelece entre estes dois elementos é vital para a movimentação dos euro-
peus. Os governos das nações ocidentais se dispõem a promover suas empresas

16 As cidades geraram, ao longo da história da Europa, um ambiente de transformação que serviu de palco
para a mudança do curso da história europeia. Toda a mudança ganhou na cidade o centro de consolidação
do poder instituído. Que ele tenha se definido no campo de batalha, na derrubada das muralhas, mas é no
centro urbano que se definiram e se geraram os acordos de paz e as declarações de guerra.

O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
47

de navegação associando a conquista à necessidade de levar a fé, propagar a “civi-


lização”. Designar o estranho como “selvagem” permite dar a ele a condição de
ser inferior e, ao mesmo tempo, de obra de Deus perdida ou ingênua. O “gen-
til”, com muitos dos povos encontrados pelos ocidentais, será designado como
aquele que necessita da conversão para encontrar a Deus.
O ocidente exercitou ao longo de sua formação a guerra religiosa. As Cruzadas
são a expressão dessa necessidade de defesa da fé ameaçada ou da conversão
necessária. Ir além da fronteira é o que a espiritualidade do ocidental determina.
Uma ordem divina para o ocidente se expressa na luta pela fé, seja na conver-
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são do monge cisterciense ou no padre jesuíta. Frederick Turner (1990, p.84),


expressa de forma magistral esse ideário:
Portanto, não parece ter sido o acaso nem a genialidade inata que im-
pulsionaram a civilização ocidental para a conquista do globo. Houve
uma necessidade, e isso dá uma tonalidade diferente a essa conquista
espetacular. Embora essa necessidade não anule seus aspectos herói-
cos, já que o desespero e os desejos bloqueados podem propiciar cer-
tos tipos de comportamento heróico, não estamos mais autorizados a
atribuir as explorações marítimas européias ao “vigor do Renascimen-
to”, ou ao “sentimento otimista de expansão”, ou à “natural e saudável
competição entre os estados nacionais”. Podemos, sim, reter a expli-
cação tradicional da dedicação missionária, mas o que sabemos dessa
dedicação e de sua história nos obriga a avaliá-la de forma diferente
da dos tradicionalistas. E quem pretenderia julgar os resultados finais
de zelo, construídos em muitas frentes, por muitas mãos, através dos
séculos? (...)
Nessa linha de raciocínio, as necessidades interiores dessa civilização
alimentavam a sua capacidade de se lançar além de seus próprios limi-
tes. Daí vieram, portanto, as Cruzadas e a segunda excursão de Mar-
co Polo, ambas manifestações daquelas necessidades e que ampliaram
crucialmente os conhecimentos geográficos, que no seu devido tem-
po possibilitaram sondagem de regiões mais distantes e planos muitos
mais vastos.

Quando pensamos em quais fatores determinaram a conquista ocidental sobre o


mundo e por que a civilização europeia foi a que executou esta conquista, temos
que considerar inúmeros fatores. Não foi uma receita pronta capaz de ser repro-
duzida por outras civilizações. Foi uma série de fatores conjugados. Um encontro
de elementos que formaram um “campo fértil” onde os fatos são construídos

O Nascimento do Ocidente
48 UNIDADE I

por inúmeros agentes sociais, com os mais diferentes interesses, mas dentro de
terminadas possibilidades existentes, naquele momento, somente na Europa. A
decadência do feudalismo, a formação de uma prática mercantil estável, a reor-
ganização do poder militar, político e social, as calamidades como a Peste Negra
são alguns destes ingredientes que deram à Europa o seu protagonismo na his-
tória da humanidade.
O comércio de especiarias movimentou a Europa mesmo em pleno período
medieval. Durante a consolidação do feudalismo na Europa, as feiras medievais
continuaram existindo. As cidades italianas, por exemplo, por mais que tivessem

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sua população reduzida nesse período, ainda continuaram sendo um impor-
tante centro de trocas. No Mar Mediterrâneo, o comércio não cessou. Entre as
populações muçulmanas que habitaram a orla do mar, antes chamado de “lago
romano”, manteve-se a atividade mercantil como uma das práticas importantes
para interligar a agricultura, as manufaturas e o extrativismo.
Nápoles, Milão, Gênova, Florença e mesmo Roma não perderam o brilho
enquanto cidades latinas. Algumas emergi-
ram, graças às atividades mercantis, como
centro intelectual na Europa. Não se pode
esquecer que a sede da Igreja Católica con-
tinuou na Península Itálica, que também
foi sede de universidades europeias que
ditaram as regras do pensamento euro-
peu. Famílias como os Médici, Bórgia e
Sabóia são algumas das mais ilustres dos
ducados italianos. Os poderes constituí-
dos por essas dinastias estavam ligados ao
poder mercantil de suas cidades mais do
que aos campos feudais.
As atividades mercantis formaram no interior do continente europeu um
grande número de comunas, cidades livres ou francas. A autonomia urbana con-
tracenou com o poder senhorial, tendo sido motivo de enfrentamento em algumas
regiões da Europa, como na Alemanha e na França. Luxemburgo foi o maior
exemplo da Cidade-Estado. A Itália foi recheada delas, fator que determinou a

O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
49

unificação tardia em uma das regiões mais prósperas do continente. Esse con-
texto gerou um dos mais belos textos da renascença, “O Príncipe”, de Nicolau
Maquiavel.
Mesmo em países como Espanha e Portugal, as cidades se transformaram
em centros de irradiação do poder. Coimbra (em Portugal), por exemplo, foi o
mais importante centro político, enquanto a Cidade do Porto foi a capital eco-
nômica do reino. Madri disputou com Barcelona, na Espanha, e, de certa forma,
até hoje disputa a hegemonia sobre as Astúrias. Paris reinou como sede fran-
cesa, mas teve que conviver com Bordéus, Lyon ou Cannes. Na Alemanha, ou
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no Sacro Império Romano Germânico, são inegáveis os papéis que desempe-


nharam Frankfurt, Viena (Áustria) e Berlin17.
A atividade mercantil promoveu ainda mais o papel das cidades no coti-
diano da Europa. Algumas nascidas em torno de fortificações foram desenhadas
para serem meios de proteção dos invasores. A segurança senhorial já foi para a
cidade um elemento vital para a formação de diversas cidades europeias, porém,
ao longo da história medieval, elas se emanciparam e promoveram a rivalidade
com a classe senhorial. As muralhas que cercavam a urbes se transformaram em
“cascas de cebola” e passaram a contar as fases pelas quais a cidade passou em
seu desenvolvimento18. A cidade é um registro de seu tempo, impregnada das
construções e das populações que a habitaram e habitam. Ela deixa em todos os
cantos um registro do que lhe aconteceu. Essa capacidade de conviver com as
cicatrizes do tempo é fundamental para que a memória seja mantida e a cidade
demonstre o quanto é uma obra humana19.

17 As cidades geraram ao longo da história da Europa, um ambiente de transformação que serviu de palco
para a mudança do curso da história europeia. Toda a mudança ganhou na cidade o centro de consolidação
do poder instituído. Que ele tenha se definido no campo de batalha, na derrubada das muralhas, mas é no
centro urbano que se definiram e se geraram os acordos de paz e as declarações de guerra.
18 Uma questão que se tornará fundamental na análise da sociedade contemporânea é o papel que as cidades
representam na organização humana. Passando a ser o espaço de maior concentração populacional no
mundo, hoje mais da metade da população mundial vive em cidades, o espaço urbano é o objeto de estudo
específico de vários campos de conhecimento. Nunca se discutiu tanto as cidades como agora. Hoje há uma
antropologia urbana. A convivência social ganhou peculiaridades na formação de grupos com identidades
próprias. Gangues, tribos, música, ocupação do espaço com uma arquitetura peculiar. Há muito que se
discutir nas cidades.
19 Estamos falando aqui de cidades “clássicas” medievais, europeias, por mais que esta mesma condição
tenha ocorrido em cidades que surgiram na América. No Brasil, algumas das principais cidades guardam
dentro de seu espaço os registros de seu tempo. Porém, há aquelas que, ou por serem muito jovens ou terem
uma dinâmica distinta em relação à mudança, sempre levando em consideração a tecnologia capaz de
alterar com rapidez os espaços, mudam constantemente e apagam seus registros.

O Nascimento do Ocidente
50 UNIDADE I

O aumento da economia de mercado fez crescer a importância das cidades


como núcleo irradiador. Já comentamos anteriormente sobre a importância de
núcleos urbanos na formação do Estado moderno e na propagação do ocidente.
Eles deram o perfil a muitos dos Estados nacionais que se formaram na Europa.
Um dos autores que melhor trabalha essa relação é Demétrio Magnoli (1996),
que retrata a relação entre a organização urbana e a convergência de forças que
geram as nações. Há muito da capital na organização do Estado Nacional.

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O INÍCIO DA OCIDENTALIZAÇÃO

Foi buscando conquistar uma cidade que o reino português deu o primeiro
passo para a Era Planetária. O início da integração do mundo pela Europa oci-
dental se deu com o deslocamento das tropas portuguesas para Ceuta, no norte
da África. A conquista do Estreito de Gibraltar seria para o reino luso a consoli-
dação de um comércio marítimo proporcionada pelo controle de uma das mais
importantes áreas comerciais entre o Mar Mediterrâneo e o Oceano Atlântico.
O Rei Dom João I, que havia iniciado a casa de Avis, tinha a intenção de
fortalecer o prestígio de Portugal respondendo aos interesses das forças que o
colocaram no trono. Ao mesmo tempo em que era uma expressão da vontade
popular, do prestígio do clero católico português e de uma nobreza militar emer-
gente, assim como, de uma burguesia mercantil desejosa de conquistas, ele se
aproveita do relacionamento estabilizado com o Reino de Castela e se lança à
conquista. Sua conquista se dá em 1415, tendo à frente das tropas portuguesas
o Infante Dom Henrique, seu filho.
A conquista portuguesa se mostrou um fracasso. A cidade africana, que repre-
sentava um dos principais pontos de troca da desembocadura do Mediterrâneo
no Atlântico, entrou em decadência após o rompimento do comércio muçul-
mano e mouro com a cidade. Um boicote à conquista cristã. Mas os portugueses
pararam? Se tivessem parado, não estaríamos aqui, escrevendo este texto e sendo
e vivendo o resultado da bem-sucedida empresa colonial portuguesa. O espí-
rito cruzadista aliado ao desejo da conquista mercantil ocidental falou mais alto.
Os desdobramentos da conquista de Portugal se fizeram sentir no litoral

O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
51

atlântico africano e posteriormente na Ásia Menor (Índia), Ásia Maior (China)


e América. Em busca, inicialmente, de especiarias, os portugueses realizaram o
chamado périplo africano. Ao contornar a África, chegou às Índias. Mas cogitar
uma rota alternativa ao oriente só entrou definitivamente nos planos portugueses
a partir de 1453. A tomada de Constantinopla pelos turcos gerou um incentivo
a uma rota alternativa. Esse fato seria o início da decadência italiana como cen-
tro hegemônico do comércio europeu.
Para as demais nações europeias, foi o início da aventura planetária que per-
mitiu o deslocamento do ocidente a diversas partes do globo e a “imposição” do
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modelo cultural europeu, de seus interesses mercantis, permitindo também o


deslocamento intenso de produtos e pessoas, a construção e reconstrução dos
espaços geográficos, a dominação da natureza, sua transformação, o nascimento
de novas linguagens e o extermínio de outras. Contudo, o ocidente poderia não ser
a civilização mais desenvolvida do século XV, como afirma Morin (2002, p. 21):
No final do século XV europeu, a China dos Ming e a Índia mongol são
as mais importantes civilizações do Globo. O islã que continua sua ex-
pansão na Ásia e na África, e a mais ampla religião da Terra. O império
otomano, que se expandiu da Ásia para a Europa oriental, após tomar
Bizâncio e ameaçar Viena, tornou-se a maior potência da Europa. O
império inca e o império azteca reinam nas Américas, e tanto Tenchti-
tlân como Cuzco ultrapassam em população, monumentos e esplendo-
res Madri, Lisboa, Paris, Londres, capitais das jovens e pequenas nações
do Oeste europeu.

No entanto, a partir de 1492, são essas jovens e pequenas nações que


irão se lançar à conquista do Globo e, através da aventura, da guerra, da
morte, suscitar a era planetária.

Dessa forma, os ingredientes que fizeram da civilização ocidental a “conquista-


dora” planetária são, para nós, elementos importantes que merecem certo tempo
de análise. São fatores que já mencionamos anteriormente e que permitiram a
formação dessa civilização: disposição para navegar, combater, conquistar, con-
verter e transformar. Laplantine (2000) afirma que o ocidente está “à procura de
si mesmo no outro”, ou seja, ao se expandir e dominar, o que o ocidente quer é
legitimar sua angústia de cumprir seu designo na terra e definir seus interesses
de dominação e exploração (TURNER, 1990).

O Nascimento do Ocidente
52 UNIDADE I

As grandes navegações serão um feito decantado por intelectuais europeus.


Os debates sobre as chamadas “índias”, “novo mundo” ou terra dos “selvagens”
serão intensos e contraditórios. Entre os intelectuais europeus, viajantes e cléri-
gos que relatam estes “estranhos”, houve uma produção literária cujo conteúdo
era de condenação e admiração. Porém, independente da sentença (condenar
ou absolver), a preservação foi impossível diante de uma civilização ocidental
que tem uma tendência predadora. Tudo o que a civilização ocidental toca se
transforma em riqueza e petrifica, perde vida ou ganha a roupagem em forma de
mercadoria. Camões afirma, em “Os Lusíadas”, mais do que isso, assegura con-

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fiante que Deus determinou a busca lusitana pelo mar:
E vós, ó bem nascida esperança / Da lusitana Antígua liberdade / E não
menos certíssima esperança / De aumento da pequena cristandade / Vós,
ó novo temor da Maura lança / Dada no mundo por Deus, que todo o
mande / Para do mundo a Deus dar parte grande (CAMÕES, 2000, p. 2.)

Se o ocidente exalta sua navegação colocando-a como um feito extra-humano, ele


também demonstra o ideário, o sentido de sua expansão. A chegada ao mundo
do outro, ao mundo do “estranho”, é para a Europa uma aventura relatada pelos
olhos de seu discurso de supremacia. O deslocamento do homem ocidental para
as diversas partes do planeta será documentado com relatos inúmeros sobre
as viagens e contatos com terras e pessoas. Uma coletânea de documentos vai
expressar o sentido da ocidentalização como condição para operar a conquista
a qual o ocidente se propõe como um corolário. Ela é o resultado do que se ges-
tou ao longo do tempo e naquele momento estava pronta para seguir seu curso,
o domínio planetário.
Apresenta-se, então, para o homem europeu, o conquistador, o viajante, que
estabelece uma relação com o “outro”, o “estranho”. A chegada em terras desco-
nhecidas traz consigo a dúvida: “que é aquele que desconheço?”. Como posso
colocá-lo dentro da construção simbólica do mundo que compreendo como
único? Não podemos esquecer que a Europa constituiu em séculos uma com-
preensão universalista sobre o mundo, sustentada em um “Deus único” que a
tudo gerou, mesmo o desconhecido. Enquadrar o estranho nesse “universo” gera,
mesmo assim, uma dúvida que se colocará ao longo da trajetória ocidental de

O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
53

dominação planetária: “seria o estranho um bom ou mal selvagem?”. François


Laplantine (2000, p.15) faz uma apreciação importante sobre o homem ociden-
tal e seu encontro com o outro:
A figura de uma natureza má na qual vegeta um selvagem embrutecido
é eminentemente suscetível de se transformar em seu oposto: a da boa
natureza dispensando suas benfeitorias à um selvagem feliz. Os termos
da atribuição permanecem, como veremos, rigorosamente idênticos,
da mesma forma que o par constituído pelo sujeito do discurso (o ci-
vilizado) e seu objeto (o natural). Mas efetua-se dessa vez a inversão
daquele que era apreendido como um vazio que se torna um cheio (ou
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plenitude), daquilo que era apreendido como um menos que se torna


um mais. O caráter privativo dessas sociedades sem escrita, sem tecno-
logia, sem economia, sem religião organizada, sem clero, sem sacerdo-
tes, sem política, sem leis, sem Estado – acrescentar-se-á no século XX
sem Complexo de Édipo – não constitui uma vantagem. O selvagem
não é que pensamos(LAPLANTINE, 2000, p. 75).

Essa construção idealizada do “selvagem”, ou “bárbaro”, se constituiu como


um meio para colocar a condição do outro como uma consequência do nosso
julgamento. Ele, independente ser
bom ou ruim, cumpre o designo que
determinamos. Apenas será o que a
já predestinada avaliação ocidental
coloca sobre ele. Aqui, como na antro-
pologia em seu berço, como veremos a
seguir, importa pouco a sentença, mas
sim, quem julga. Os critérios do julga-
mento sempre se darão a partir de um
olhar que pode dar ao julgado a con-
dição de “viver” ou “morrer”, porém,
independente da possibilidade, ele já
estará condenado.

O Nascimento do Ocidente
54 UNIDADE I

OS PRIMEIROS PASSOS DA ANTROPOLOGIA

Interessante perceber o quanto se tenta fazer da Antropologia uma ciência univer-


sal. Colocar nas mãos de um ser humano sem origem a sua formação. Considero
impossível esse ato. A Antropologia é a ciência da ocidentalização.
Ela pode não cumprir mais a tarefa de servir como instrumento para o colo-
nizador, de impregnar o seu olhar de conceitos e pré-conceitos sobre o chamado
“estranho”, “bárbaro” ou “selvagem”. Porém, ela nasceu dessa condição. Para
entender sua formação, é preciso compreender o contexto em que foi formada,

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tendo consciência de que houve uma precondição que orientou sua constitui-
ção metodológica, definição de seu objeto e, por fim, lhe garantiu o território
acadêmico, no qual ainda briga para se firmar20.
Hoje, o olhar que se lança sobre a diversidade mudou por completo os pri-
meiros caminhos que a antropologia traçou. Diante da construção de uma
pluralidade originária dos inúmeros encontros que o processo de ocidentaliza-
ção possibilitou, cidades cosmopolitas se multiplicam. As migrações nunca foram
tão intensas como agora, o processo migratório tomou o lugar das invasões bár-
baras do império romano e devem traçar um novo perfil para a humanidade
neste século.
Hans Magnus Enzensberger (1995, p.104-105) traça um panorama das
migrações contemporâneas em comparação com as movimentações do passado:
As migrações contemporâneas diferem dos movimentos anteriores de
populações em mais de um aspecto. Em primeiro lugar, a mobilidade
aumentou muitíssimo nos últimos dois séculos. Foi o comércio oce-
ânico europeu o primeiro a criar a capacidade que tornou possível o
movimento de milhões de pessoas por grandes distâncias. O mercado
mundial desenvolvido requer a mobilização global e a impõe pela força
sempre que necessário, como ocorreu no caso da abertura do Japão e
da China no século XIX. O capital derruba as barreiras nacionais. Pode
fazer um uso tático dos impulsos patrióticos e racistas, mas estrategica-

20 Há um debate que ainda cerca a antropologia na busca de se constituir como ciência com um objeto
definido, que possa chamar de “seu”. Eu, particularmente, não considero que ele exista. Vejo a antropologia
como um campo de conhecimento que se confunde com a história, a geografia, a sociologia, a psicologia, a
economia, a arqueologia e, até mesmo, a filosofia. Como Lévi-Strauss e Laplantine afirmam, “ela é a ciência
do homem inteiro” e assim deve ser. Se há um campo de conhecimento que não deve ter medo de fronteiras
é a antropologia. Nasceu do olhar sobre o estranho, o outro, foi assim e é assim que devemos olhar a todos
e a nós mesmos.

O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
55

mente não os leva em consideração, porque o interesse comercial não


pode ter preocupações particulares. O livre movimento da força de tra-
balho, sem levar em conta a sua raça ou sua nacionalidade. Com a glo-
balização do mercado mundial (que só se completou há muito pouco
tempo), os novos movimentos migratórios também vão adquirir uma
nova qualidade. Os movimentos moleculares de massas devem tomar
o lugar das guerras coloniais promovidas pelo Estado, das expedições
de conquista e das expulsões. Enquanto o dinheiro eletrônico obede-
ce apenas à sua própria lógica e vai derrotando com facilidade todas
as resistências, os seres humanos agem como se estivessem sujeitos a
alguma compulsão incompreensível. Seus embarques são como movi-
mentos de fuga, que seria cínico chamar de voluntários.
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A economia mundial, como o ensaísta alemão relata, tem sua própria lógica.
Porém, arrasta consigo um ser humano que tem uma lógica que vai além do
capital. Mesmo que os efeitos da economia mundial rejam a vida da popula-
ção, deve-se ter cuidado ao deslocar sobre os interesses econômicos o único
elemento capaz de explicar os fenômenos da atualidade. Que estamos diante de
um processo migratório nunca visto na história humana, isso é um fato. Porém,
a movimentação gera um novo efeito sobre a simbologia que a sociedade atual
sustenta. Os efeitos que a economia promove são diversos, porém sua lógica nem
sempre pode ser prevista pelo determinismo econômico.
As grandes navegações despertaram no europeu a curiosidade sobre aqueles
que habitavam o “novo mundo”, as “índias”. Que era o estranho? Essa pergunta
gerou uma curiosidade que o homem ocidental se dispôs a responder por meio
dos seus valores, enquadrando o “estranho” em seu mundo. Relatos difundidos
pelos viajantes falavam de um ser com hábitos que lembravam o animalesco, o
ser humano movido pelo instinto, tendo até mesmo seu pertencimento à espé-
cie humana questionado21.
Nunca se chegou a um consenso sobre como se deve considerar o nativo.
Contudo, nunca houve dúvidas sobre a possibilidade de dominá-los, mesmo
quando se considerava o “selvagem” dócil e passível de uma conversão aos valo-
res ocidentais. Os relatos associavam a paisagem da América tropical à paisagem

21
No século XVIII e no século XIX, foi difundida a ideia de que muitos dos povos encontrados pelos ocidentais
seriam as comprovações do “elo perdido” entre os homens e os primatas. O aborígene australiano foi o que
assumiu com ênfase este papel nos relatos europeus. O caçado ocidental do século XIX, participante de um
safari na África ou Austrália, tinha entre tantos feitos o extermínio de nativos.

Os Primeiros Passos da Antropologia


56 UNIDADE I

bíblica. O livro do Gênese foi o que mais teve citações associadas ao ambiente
americano. Os nativos estariam vivendo a infância da humanidade. Seriam crian-
ças, lhes faltava a maturidade e a “maldade”.
Buscava-se entender o elo entre os povos nativos e os europeus, nesse sen-
tido, os selvagens eram concebidos como a condição primeira do ser humano
ocidental, daí o termo primitivo, pois eles eram aqueles que estariam no estágio
inicial pelo qual todas as civilizações passaram. E aquela que era a mais elevada
das civilizações, a europeia, se legitimava como um modelo universal a ser repro-
duzido. Na obra de Augusto Comte (1989), ao ser justificada a criação da física

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social, é possível constatar o orgulho do ocidente em relação à sua civilização e
à cadeia de fatores que determinou que a civilização ocidental exercesse seu o
poder sobre as demais civilizações:
Entendo por Física Social a ciência que tem por objetivo próprio o estudo
dos fenômenos sociais. Considerados com o mesmo espírito que os fenô-
menos astronômicos, físicos, químicos e fisiológicos, isto é, submetidos
a leis naturais invariáveis, cuja descoberta é o objetivo especial de suas
pesquisas. Propõe-se, assim, a explicar diretamente com a maior precisão
possível, o grande fenômeno do desenvolvimento da espécie humana,
considerado em todas as suas partes essenciais; isto é, a descobrir o en-
cadeamento necessário de transformações sucessivas pelo qual o gênero
humano, partindo de um estado apenas superior ao das sociedades dos
grandes macacos, foi conduzido gradualmente ao ponto em que se en-
contra hoje na Europa civilizada (COMTE, 1989, p.53).

No oposto, estava a condenação do nativo como um pecador. Um ser pervertido


por não ter nenhum dos elementos que definem uma civilização. Não ter o Estado,
a língua escrita, a roupa e a organização familiar cristã. As crenças sempre foram
uma demonstração clara da distância estabelecida entre o ocidental e a civilização
nativa. Em muitos dos relatos do século XIX, se faz uma associação entre a natu-
reza e o “estado embrutecido” dos nativos, como se o ambiente de extremo calor,
de umidade e uma alimentação exótica determinassem estado de inferioridade.
Em outros relatos, se idolatra o ambiente e se condena o homem, o ser
humano vive em um paraíso e destoa, com sua “ignorância”, das possibilida-
des que o ambiente poderia gerar. A riqueza e o lugar devem ser promovidos

O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
57

apesar das condições bárbaras dos seres humanos que o habitam22. Essa é uma
postura comum entre muitos dos viajantes europeus que relatam aos governos
da Europa o que encontram no “Novo Mundo”. Era um discurso que favorecia
o deslocamento da civilização.
A reprodução da “civilidade” ocidental em outras terras foi uma constante
na propagação do domínio ocidental. A empresa colonizadora que se organizou
sobre a América e parte da África demonstra o quanto as instituições do ocidente
se tornaram um ponto de referência para o estabelecimento dos empreendimen-
tos econômicos, sociais e políticos no “novo mundo”.
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À medida que a ocupação ocidental se apresentava mais intensa nos territó-


rios conquistados, o conhecimento sobre os nativos se tornava ainda mais vital.
Conhecer o outro gera possibilidades de exploração, contém a resistência e aprimora
os mecanismos de convivência sempre favoráveis ao conquistador. Essa capacidade
de utilizar a ciência como forma de dominação é típica da civilização ocidental.
Nesse campo de encontro com o “estranho”, vamos chamar aqui de linha
de frente da expansão ocidental, estão aqueles que estabeleceram o encontro:
o viajante, o missionário, os membros das forças militares, o botânico, o enge-
nheiro em serviço no “novo mundo”, estes são os que fizeram os primeiros relatos
sobre a paisagem, o comportamento, a alimentação, os rituais religiosos e tantas
outras características do “desconhecido”. Esse olhar, como já foi falado anterior-
mente, muitas vezes, expressava um encantamento com o ambiente, segundo
Malinowski23.Faziam do exotismo do mundo descoberto um ambiente bucó-
lico descrito com toda a parcialidade em suas obras. Não por acaso, os primeiros
relatos são carregados de um sentimentalismo envaidecido, como se fossem o
agente do encontro, o juiz, de toda uma civilização que ele julga representar24.

22
Ilusão considerar que essa forma de consideração tenha fim. Muitos analistas da contemporaneidade, claro
que hoje mais por ignorância do que por conhecimento, consideram que as populações e a natureza, o
lugar onde vivem, devem ser desassociados. Na própria análise que se faz das condições em que o Brasil
se desenvolveu, não é incomum encontrar relatos que definem o território brasileiro como um lugar de
riquezas, e o povo como um de seus maiores problemas. Até mesmo no hino nacional há margem para esse
tipo de interpretação.
23
Bronislaw Malinowski (1884 a 1942) é polonês, enraizado na Inglaterra, um dos mais brilhantes antropólogos
e considerado o iniciador das pesquisas de campo com um método definido para o conhecimento de uma
civilização não europeia. Com uma permanência considerável de tempo junto a povos australianos (Malu,
e posteriormente, os Trobriand), ele difundiu um método de análise que será, por muito tempo, um dos
principais fundamentos da antropologia.
24
Quando falamos da vaidade do homem ocidental, nos referimos ao discurso que o coloca na condição de

Os Primeiros Passos da Antropologia


58 UNIDADE I

Entre os primeiros que relatam os nativos em comparação com o ocidental,


há os que se colocam como infelizes por não viverem de forma simples, por terem
perdido o contato com a natureza e por estarem condenados a regras da civilização.
Aqui nasce o termo que tomamos emprestado de Laplantine, “o mal civilizado”. Não
por acaso, uma das maiores expressões dessa consideração é Rousseau25. O intelec-
tual franco-suíço jamais viajou para terras distantes da Europa, mas, como muitos,
analisou em “seu gabinete” o mundo através do olhar dos viajantes. Ele roman-
tiza o nativo e faz dele a referência
primária ao ocidental. Mas aqui

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é importante não esquecer que o
julgamento e a sentença estão nas
mãos do ocidente e não naquele
que serve de referência ilusó-
ria. Eu julgo a mim mesmo pelo
outro e não me coloco diante dele
para ser julgado. Inclusive, o pró-
prio Rousseau nunca suportou o
julgamento alheio, como consi-
dera Bruckner (1997).
Navegadores como Colombo ou Américo Vespúcio relataram os nativos den-
tro do limite de sua compreensão sobre o que lhes parecia estranho. Ao entrar
em contato com os indígenas da América Central, ele tenta utilizar o mandarim,
lhe estende a mão para um cumprimento, utiliza os gestos ocidentais.
Os missionários religiosos, no entanto, eram diferentes e pareciam estar muito
mais preparados para lidar com o estranho. As primeiras impressões dos mis-
sionários jesuítas que se dispuseram a converter os indígenas para a “fé cristã”
demonstram o preparo para enquadrar os nativos em um arquétipo concebido

determinante de valor sobre o nativo. Ele, pelos seus relatos, pela posição que se encontra, terá o poder de
considerar o nativo bom ou mau. Esta sua forma de consideração pode servir de medida para a ação a ser
tomada.
25
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), suíço de origem, mas viveu parte considerável de sua vida na França,
onde influenciou sobremaneira as ações sociais e políticas de seu tempo, foi um defensor de um ser humano
com uma origem “boa”. Há uma bondade natural em nossa existência que foi corrompida com o tempo.
Para ele, a natureza do homem deve ser buscada como fonte fundamental da felicidade. Em sua obra
“Emílio”, um manual da boa conduta diante de uma sociedade corrupta, ele tenta demonstrar a destruição
da natureza humana pela ganância e perversão.

O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
59

pelo ideário cristão. Não foram somente os jesuítas que promoveram a educação
dos nativos, inúmeras ordens religiosas percorreram e percorrem os territórios
nativos. Ainda está em processo o doutrinamento ocidental26. Porém, nenhuma
outra ordem religiosa, como a inaciana, soube promover com disciplina e inten-
sidade a conversão dos nativos.
Os relatos de viagem se multiplicaram como fonte documental para o conhe-
cimento das primeiras civilizações. Entender sua organização social, suas práticas
econômicas, seus rituais religiosos, a família e toda a estética simbólica foram
temas das abordagens feitas pelos europeus que tiveram contato com os povos
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

nativos. Todas essas avaliações vêm acompanhadas de um critério, uma “régua


de valor”, uma medida, os quais estão centrados nos conceitos que o homem
ocidental tem de si mesmo. Será na avaliação que faz de si o ponto de partida
para julgar o “estranho”.

26
Esse doutrinamento ainda persiste de diversas formas. Educar o nativo se dá pela via religiosa do missionário,
que tenta despertar a bondade cristã, mas também pelos modelos divulgados publicitariamente em todos
os cantos do mundo. Um “ser feliz” se massificou e se distribui em série por todo o Planeta. O preço que
determinadas comunidades pagam pelo contato com as ordens missionárias está expresso no infanticídio,
nos conflitos internos, na propagação do alcoolismo e na violência cotidiana. .

Os Primeiros Passos da Antropologia


60 UNIDADE I

A QUESTÃO DA ALMA E DA BONDADE

Nos relatos que descrevem como foi o contato entre europeus e povos que habita-
vam as terras descobertas ou dominadas, se destaca o conceito que se estabelece
sobre o valor que o nativo tem. Seria ele um selvagem distante da espécie humana?
O quão distante ele estaria? Teria alma? Seus gestos, seus comportamentos são
bem intencionados27?
Por mais que pareça simples ou imediata a busca por dar sentido ao estra-
nho, ela se torna complexa por fazer parte de uma cadeia de valores que irá

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
justificar, entre outros fatores, economicamente o “porquê” da escravidão. No
processo de colonização português na América, mas não só nele, existia a cha-
mada “guerra justa”. Por ela, os portugueses legitimavam o ataque, conquista de
territórios e escravidão de nativos. Um dos critérios para se estabelecer a guerra
era a resistência dos nativos aos valores cristãos. Não se escraviza o “irmão gen-
til”, mas sim o “mal selvagem”.
Os debates acerca da existência ou não de alma e do grau de primitividade dos
nativos geraram uma discussão acalorada no continente europeu. Representantes
das mais diferentes instituições da Europa se dedicaram ao tema. Lideranças reli-
giosas, políticas, militares e juristas tentam estabelecer um valor aos povos “não
europeus”. Essa conceitualização abarca desde os relatos dos religiosos e sua des-
crição carregada de uma simbologia cristã até os relatos dos militares e juristas
que se apegam à vida moral.
A relação que se construiu foi, ao mesmo tempo, de admiração pelo novo e
também de negação dessa diferença. Em cada passo dado pelos pesquisadores
que contribuíram para construir uma antropologia, há uma relação direta com
essa contradição. Assim, nasceu essa ciência ocidental que lança seu olhar sobre
povos estranhos e busca criar uma condição para estudá-los, e para tal, buscou
um método que, por mais que buscasse orientação em campos de conhecimento

27
Uma questão interessante é a definição da intenção. Como podemos avaliar a intenção de quem não
conhecemos dentro de uma cultura com uma cadeia de valores diferente da nossa? Não temos a menor
condição de estabelecer o sentido de uma agente social sem ter clara a forma como as relações estão
interligadas a outras. Como uma ação promovida tem a possibilidade de gerar outra em curto, médio e
longo prazo. Se estamos diante da necessidade de nos alimentarmos, buscamos o alimento. Desta forma, a
maneira de buscar a comida define nossas intenções. O desejo de nos alimentarmos, neste caso, não é capaz
de denunciar quem somos apenas.

O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
61

como as ciências naturais, acabava por determinar uma perspectiva ocidental


sobre os povos observados.
Laplantine (2000) apresenta um debate enriquecedor sobre o tema: uma
longa discussão sobre a origem do homem selvagem e também sobre a possibi-
lidade de evangelizá-lo ou não. Os missionários cristãos foram expressão dessa
polêmica. Nessa perspectiva, primeiro era preciso saber se o nativo se asseme-
lhava ao ocidental na condição humana, como uma obra de Deus. Confirmada
essa condição, seria necessário então entendê-lo como alguém passível de con-
versão e trazer o “bom selvagem” para o seio da cristandade. Esse empenho levou
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

à constituição de uma política educacional catequizadora definida na Europa e


que teve no Papa e nos reis cristãos agentes fundamentais.
Inúmeras discussões foram travadas pelos líderes europeus na tentativa de
elucidar o impasse do encontro com os nativos que se deu na América. Cartas
e documentos oficiais servem hoje de fonte documental para a reconstrução
desse debate que busca esclarecer a forma como se definiram os posicionamen-
tos de intelectuais e instituições oficiais a respeito do conceito acerca dos povos
do “novo mundo”28. Um dos clássicos dessa abordagem, a qual Laplantine chama
de “pré-história da antropologia”, é a obra de Bartolomé de Las Casas, “O Paraíso
Perdido”. Na abordagem, Las Casas (1985, p.130) busca defender os nativos, ou
o “bom selvagem”, da exploração dos espanhóis:
Para servir unicamente a seus interesses temporais, os espanhóis deni-
grem os índios, cobrindo-os da mais infame de todas as infâmias que
se possam lançar sobre o homem, e pela mais odiosa e mais malvada
das infâmias quiseram colocá-los fora da espécie humana: taxaram-nos
de estar todos corrompidos do pecado abominável contra a natureza.
Incriminação essa que é de grande maldade e grande falsidade. Pois
em todas as grandes ilhas Espanholas, São João, Cuba e Jamaica e em
sessenta ilhas Lucaias, onde havia um número infinito de gente, jamais

28
Alguns documentos demonstram a consideração que se estabelecia sobre os indígenas e a forma como
deveria se organizar as relações de trabalho nos territórios coloniais. No Brasil, na literatura, na história,
mas também nas análises antropológicas, estão os Sermões do Padre Vieira como uma referência. Antônio
Vieira (1608 a 1697) nasceu em Lisboa, mas o pai se transferiu para o Brasil, como funcionário da coroa.
Educado na colônia, em Salvador, Vieira gozou de prestígio e se dedicou ao contato com os nativos e à obra
de catequização. Ele passou por diversas etapas dentro do estafe da administração colonial e portuguesa.
Visto como um subversivo por defender os cristãos novos (judeus convertidos ao cristianismo), acabou
gerando suspeitas sobre suas atitudes de defesa da população nativa, a quem queria livrar da escravidão.
Já “Os Sermões do Padre Vieira” relatam temas dos mais diversos, desde as questões de exploração do
território até as relações estabelecidas entre senhores e escravos.

Os Primeiros Passos da Antropologia


62 UNIDADE I

houve memória nem menção de tal fato, como podemos testemunhar,


havendo feito inquérito e colhido informações a esse respeito, desde o
princípio. Assim também em todo o Peru jamais se falou de tal cousa.
No reino de Iucatã nunca se encontrou um único índio que pudesse ser
incriminado desse pecado, e o mesmo sucede geralmente em todas as
Índias. Apenas em algumas dizem haver alguns, mas por isso não se
deve difamar todo esse mundo novo.

Mas a posição de Las Casas encontra resistência diante do Estado, em seu embate
com Sepulvera29, membro da Ordem Dominicana, este foi um dos maiores oposi-
tores da conversão dos indígenas. Sua posição lhe rendeu resistência, mas também

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notoriedade. Ele aconselha o rei espanhol a luta contra os nativos e seu exter-
mínio, os considerando seres animalescos, desumanos. Para ele, é inútil tentar
converter os nativos. Eles jamais seriam capazes de adotar à fé cristã:
Aqueles que superam os outros em prudência e razão, mesmo que não
sejam superiores em força física, aqueles são, por natureza, os senhores;
ao contrário, porém, os preguiçosos, os espíritos lentos, mesmo que
tenham as forças físicas para cumprir toas as tarefas necessárias, são
por natureza servos, e vemos isso sancionado pela própria lei divina.
Tais são as nações bárbaras e desumanas, estranhas à vida civil e aos
costumes pacíficos. E será sempre justo e conforme o direito natural
que essas pessoas estejam submetidas ao império de príncipes e de
nações mais cultas e humanas, de modo que, graças à virtude destas
e à prudência dessas leis, eles abandonem a barbárie e se conformem
a uma vida mais humana e ao culto da virtude. E se eles recusarem
esse império, pode-se impô-lo pelo meio das armas e essa guerra será
justa, bem como o declara o direito natural que os homens honrados,
inteligentes, virtuosos humanos dominarem aqueles que não têm essas
virtudes (SEPULVERA apud LAPLANTINE, 2000,p.39).

Esse impasse entre a fala de Sepulvera e Las Casas esconde uma relação de supe-
rioridade na condição de julgador, como já falamos, da civilização ocidental.
Essa forma de se colocar como determinante na construção do conceito sobre
os demais povos faz com que os dois dominicanos, aparentemente tão distantes

29
Juan Ginés de Sepúlveda (1489-1565) foi um dominicano, assim como Las Casas. Filósofo, Sepulveda foi
um dos mais importantes teóricos da Igreja Católica. Controverso, buscou justificar o “direito natural” dos
ocidentais à exploração dos nativos. Considerava que a animalidade dos povos encontrados pelos reinos
europeus estava distante da capacidade da civilidade cristã. Um crítico da reforma protestante, ele defendeu
ações mais duras do Clero diante dos conflitos religiosos que tomaram a Europa de seu tempo. Questionava
Erasmo de Roterdã e sua postura humanista, considerava fundamental a imposição da fé católica e as
doutrinas conservadoras da Igreja.

O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
63

em suas posturas, tenham o semelhante olhar de superioridade. O elemento vital


para definir a bondade ou maldade do nativo é a cultura cristã e sua influência
sobre os diversos campos do conhecimento.
Aqui vale lembrar da influência que o cristianismo teve sobre o pensamento
ocidental. Nele há uma relação direta entre o conhecimento sobre o mundo e o
conceito cristão sobre as condições do homem no universo. Por mais que toda
a racionalidade tenha sido usada para desenvolver mecanismos de dominação
sobre as civilizações conquistadas, a construção inicial de um conceito sobre os
nativos repousa no discurso teológico. Em plena renascença, se manteve nas
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

relações sociais europeias uma forte influência do sentido religioso da vida. Os


que chegaram à América, ao novo mundo, ou às “Índias ocidentais”, como mui-
tos afirmavam, traziam consigo um olhar profundamente religioso.

O RENASCIMENTO, A RACIONALIDADE NO OLHAR SOBRE O


“ESTRANHO”

A chamada “revolução científica”, associada ao Renascimento Cultural (séculos


XIV a XVIII), deu início a uma revisão sobre o homem e seu posicionamento
enquanto ser no universo. No entanto, ela não alterou, ao longo da história da
expansão ocidental, o sentido de superioridade em relação aos povos encontrados.
Mantinha-se discurso da supremacia quando se deparava com uma diversidade
de civilizações e hábitos, considerados distantes do que os homens ocidentais
tinham como expressão de civilização.
Por determinados fatores se constituiu uma forma diferente de determinar
a condição humana. Porém, sempre levou-se em consideração que a Europa era
uma vanguarda diante de um mundo e de povos “atrasados” ou “primitivos”.
Esses seriam os novos conceitos que se instalaram na Europa com o advento de
uma racionalidade que avançava em diversos campos do saber humano.
A matemática e a física, assim como a biologia e a química aproximavam-
-se cada vez mais das condições de produção capitalista. Foi dessa relação, além
de outras, que se promoveu o aperfeiçoamento dos meios de produção do quais
a Revolução Industrial foi expressão.

Os Primeiros Passos da Antropologia


64 UNIDADE I

Estamos diante do tempo de Francis Bacon, René Descartes e Isaac Newton,


criadores dos métodos científicos que geraram a formulação de uma ciência
natural fundada em leis universais e que se proliferaram no meio acadêmico. As
universidades europeias passam a ser o ambiente de reformulação das teorias
sobre o aprimoramento dos meios que interferem na natureza e lhe dão sentido.
Se considerarmos as ideias de Francis Bacon30 e seu método indutivo, os
fatos passam a exercer uma importância vital na formulação teórica. É preciso
partir deles para a construção de uma teoria. O conhecimento é, então, a expe-
rimentação, o empirismo. A compreensão metodológica de Bacon abriu espaço

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
para o desenvolvimento das ciências naturais. Da mesma forma, não podemos
esquecer que esse método abre caminho para a utilização da ciência na busca da
realização humana, assim como para o próprio entendimento do ser humano.
As ciências naturais passam a ser uma instituição reconhecida cujo trabalho
compilado de diversos autores acumularam um saber difundido entre um círculo
de profissionais acadêmicos. As universidades europeias estão mais próximas
do poder e representam uma fonte importante para a orientação dos trabalhos
desenvolvidos pelos governos e outras instituições, inclusive empresariais. A rela-
ção entre ciência e produção garante a agilidade nas mudanças significativas na
política, economia e ordem social. Max Weber, em sua obra a “Ética Protestante
e o Espírito Capitalista”, ressalta o diferencial que fez, na ocupação e colonização
da América do Norte pelos puritanos ingleses, a orientação científica, a leitura, a
racionalidade, por mais que essas estivessem vinculadas a um sentido religioso.
(...) Das linhas de pensamento de Lutero, que de sua parte jamais re-
jeitou por completo a indiferença paulina pelo mundo, não era possí-
vel extrair princípios éticos para com eles dar forma ao mundo; por
isso era preciso assumir o mundo como ele é, e não se devia aplicar
o rótulo de obrigação religiosa senão a isso. – Na visão puritana, por
sua vez, outro é a matiz do caráter providencial do jogo recíproco de
interesses econômicos privados. Segundo o esquema de interpretação
pragmático dos puritanos, é pelos seus frutos que se conhece qual é o
fim providencial da articulação da sociedade em profissões. Ora, acerca
desses frutos, Baxter deixa fluir argumentos que em mais de um ponto

30
Análises como a de Francis Bacon serviram de referência para o desenvolvimento de teses importantes após
a Revolução Industrial. Entre os pensadores liberais, como Montesquieu e mesmo o positivismo de Augusto
Comte. A racionalidade ganha uma dimensão singular, a de trazer para o ambiente social o que foi bem-
sucedido na análise dos fenômenos naturais.

O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
65

lembram diretamente a célere apoteose que Adam Smith faz da divisão


do trabalho. A especialização das profissões, por ocultar ao trabalha-
dor uma competência, leva ao incremento quantitativo e qualitativo
do rendimento do trabalho e serve, portanto, ao bem comum, que é
idêntico ao bem do maior número possível. Por mais que a motiva-
ção seguramente utilitária, por mais cabal que seja seu parentesco com
muitos pontos de vista já correntes na literatura profana da época, des-
ponta aquele timbre caracteristicamente puritano logo que Baxter, no
ápice de sua discussão, troca o seguinte motivo temático: “Fora de uma
profissão fixa, os trabalhos que um homem faz não passam de trabalho
ocasional e precário, e ele gasta mais tempo vadiando que trabalhan-
do”(...)(WEBER, 2004, P.146-147).
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A colocação de Weber acerca do trabalho desenvolvido na produção capita-


lista é uma associação de elementos tradicionalmente desassociados da história
humana, discurso religioso e racionalidade econômica. Uma contraposição, na
época, ao catolicismo ou luteranismo que se opunham às coisas dos homens,
ao trabalho como um valor de Deus31.
A racionalidade se impôs, mas nunca de forma pura. O desenvolvimento
científico assistido pela Europa a partir da renascença e, posteriormente, com as
contínuas mudanças no conceito da natureza e do próprio homem teve seu efeito.
Essa postura foi necessária para a ação que se promoveu dentro e fora da Europa.
Se no continente o desenvolvimento de uma economia aprimorou os meios de
produção e se conjugou com a busca de uma ordem social orientada pela ciên-
cia, fora dele buscou enquadrar os povos não europeus dentro da racionalidade.
O discurso religioso da existência ou não de alma nos nativos americanos
ou africanos dá lugar ao grau de desenvolvimento da espécie. Coloca-se o nativo
na condição de um ser humano. O debate entre a unidade da espécie humana
também é discutido: seríamos todos da mesma espécie? Se somos, há um grau
de diferença na escala de desenvolvimento? Seria essa diferença, o da capacidade
de uso da razão científica, uma questão genética, biológica, do meio em que se
vive? É nesse ambiente que a antropologia cresce.

31
Entender a relação do homem, sua vida material, e a construção de um entendimento religioso é um dilema
que tomou a Europa por muitos anos. As mudanças econômicas e, por consequência, sociais e culturais,
atingem diretamente a ordem que cada indivíduo estabeleceu em relação à vida. O movimento que se
organiza dentro da sociedade e a maneira como ela absorve mudanças estão relacionados diretamente à
compreensão que faz do sentido que as novas relações estabelecem com os valores que lhe são herdados:
“Seria o trabalho algo digno?” “O desejo pelo lucro e a materialidade se traduzem em um pecado e devem ser
condenados?” O desenvolvimento de uma economia mercantil e industrial, posteriormente, se confrontou
com uma crença religiosa determinista do cristianismo.
Os Primeiros Passos da Antropologia
José de Sousa Martins é um dos mais importantes cientistas sociais brasileiros. Um de
seus principais objetos de pesquisa foi o confronto entre as frentes de ocupação que
ele chama de capitalista com as frentes agrárias ou primitivas. Em uma de suas obras, “A
chegada do Estranho”, ele considera a resistência dos nativos como uma constante. Se-
gundo o autor, ela ainda está em andamento, considerando que elas ainda se mantêm
em diversas partes do território brasileiro.
Neste trecho de sua obra, Martins fala de forma irônica, com uma reflexão instigante,
sobre a resistência das populações nativas em relação à presença do ocidental. Leia:
(...) Às vezes é preciso rir. É preciso rir do inimigo e do que dele ficou
dentro de nós. Por isso, é preciso rir também de nossas próprias debili-
dades, dos nossos enganos. Das nossas vitórias quase nunca definitivas.
É preciso rir o riso crítico que denuncia a comicidade dos protagonistas,
conquistadores, na vã tentativa de vestir, e de impor, a apertada roupa
cultural de quem manda ou pensa mandar. Não chorem por nós, porque
a América Latina não é um funeral. A América latina é uma festa, mesmo
quando estamos sepultando os nossos mortos. Porque no silêncio dos
funerais das vítimas dos que nos oprimem há também o cântico interior
de nossas esperanças, anúncio e prefiguração da nossa festa coletiva e
permanente.

Destaco alguns pontos para uma reflexão sobre este tema, para que se
compreenda o sentido dos nossos problemas. Antes de tudo, o que veio
a ser a América latina é um território antropofágico. Já era antes da Con-
quista. As cartas jesuíticas do século XVI nos falam abundantemente de
uma intensa pedagogia orientada contra a poligamia e o canibalismo.
Durante quase cem anos, a sociedade brasileira nascente foi submetida
a uma ação pedagógica cotidiana no sentido de transformar os valores
do canibalismo ritual em valores negativos da sociabilidade do novo
mundo. A negatividade do canibalismo foi implantada nas próprias raí-
zes das sociedades latino-americanas, sepultada repressivamente com a
poligamia nos terrenos profundos do proibido e do ocultado. Recoberta
pela lápide frágil dos adornos barrocos do catolicismo e da fé. Lá no fun-
do, permanece a visagem desse modo ancestral de ser. Na necessidade
da dissimulação, a América Latina se destrói a si mesma, obrigada a pa-
recer mais do que a ser.

No início do século XVII, o primeiro historiador brasileiro, nascido na Co-


lônia, um franciscano que se chamava Frei Vicente do Salvador, escreveu
uma história do Brasil, cem anos após o início da ocupação portuguesa
do atual território brasileiro. Num certo momento conta a luta dos por-
tugueses contra os índios Potiguara e com orgulho narra que os portu-
gueses enfiavam os prisioneiros indígenas nos canhões para dispará-los
67

contra os índios que ainda resistiam. Era um orgulho cristão, a fé contra


a falta de fé. Frei Vicente de Salvador morreu há mais de trezentos anos,
mas os índios Potiguara lutam ainda na Baía da Traição, na Paraíba. É,
provavelmente, a mais longa história de conflito entre um povo indíge-
na da América e os conquistadores. Frei Vicente do Salvador está morto,
mas os índios estão ainda vivos, anunciando, como povo, que não que-
rem morrer.

Frei Vicente do Salvador esqueceu-se de uma característica muito im-


portante da vida indígena daquele tempo: o canibalismo como prática
ritual do perene renascimento do homem no seu semelhante. Ao lon-
go dos séculos, os conquistadores, antes mesmo de tocar a nova terra,
já acreditam que os índios fossem canibais; que comiam gente porque
eram primitivos. Era um mito. Mesmo hoje há quem na Europa ou nos
Estados Unidos acredite que há ainda índios canibais. Infelizmente, não
há... Há cerca de dois anos um cacique do Xingu, apossando-se desse
mito branco do canibalismo indígena, ameaçou, numa entrevista na te-
levisão, de comer os brancos invasores das terras de sua tribo; mas expli-
cava que não desejava fazê-lo porque, entre os diversos tipos de carne
de animais, a pior era a dos brancos (MARTINS, 1993, pp.16-7).

Além da questão da resistência, nessa citação, há outro elemento para a reflexão que
construímos durante esta unidade, a discussão sobre a visão distorcida que o ocidente
constituiu das civilizações não europeias. Pensamos que a forma preconceituosa de
olhar tenha ficado no passado, mas não, ela ainda existe.
68 UNIDADE I

Em qualquer civilização, o nosso olhar sobre os “estranhos” ou “estrangeiros”


é marcado pela nossa visão etnocêntrica. Nós estamos sempre avaliando a
razão do outro fundamentados em nossos valores. Hoje, convivemos com
informações sobre os atos de outras civilizações. Por exemplo, as guerras
constantes entre palestinos e israelenses. Não estaríamos julgando, conde-
nando ou absolvendo com regras, normas e conceitos da civilização ociden-
tal? O que nos dá o direito de julgar?

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apresentamos, nesta primeira unidade, a construção do ocidente enquanto civili-


zação, assim como o seu um olhar sobre os demais povos, os quais foram taxados
de “bárbaros”, “selvagens” ou “primitivos”. O “Outro” parece ser sempre uma ame-
aça, um inimigo, o inverso. Para nós, ocidentais, ao longo da trajetória de nossa
civilização, buscamos transformá-lo em um igual, sem querer entendê-lo. Dessa
forma, a Antropologia nasce enquanto ciência da busca de entender o não europeu.
Relatos de viajantes, missionários e daqueles que tiveram o primeiro con-
tato com o “estranho” e que procuraram lhe dar sentido inauguram um campo
de conhecimento que irá se firmar ao longo da história. Em pouco tempo, o oci-
dente constituiu uma gama de textos e análises sobre os povos com quem teve
contato e sobre os quais exerceu seu domínio.
Consideramos que a ciência seja um importante instrumento de dominação.
Ela serviu eficientemente para garantir a supremacia da Europa ocidental sobre
as demais civilizações. Essa imposição produz e se reproduz ao longo do tempo
e na atualidade. Nesse sentido, a conquista sobre o mundo ainda não cessou, está
em andamento, e o conhecimento científico tem papel de destaque na construção
dos meios de dominação. A Antropologia nasce também dentro dessa função.
Os primeiros relatos dos viajantes europeus e, posteriormente, dos missio-
nários e navegadores serviram de base para a construção de um discurso sobre
os “selvagens”. Esse olhar primeiro, essa definição fundada em misticismo e em
uma teologia sem dados de pesquisas objetivos, será determinante para condenar

O NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA
69

os nativos e legitimar a intervenção em intensidades diferentes sobre as comu-


nidades nativas.
Quando a Antropologia se constituiu como um campo de conhecimento
fundado na observação, na relação com um método científico elaborado e capaz
de selecionar elementos para uma observação racional é que a mudança na rela-
ção com os povos não europeus mudou, mas mesmo assim não deixou de ser
um instrumento de dominação e discriminação.
O ocidente tem em sua raiz cultural, no seu Ethos, a tendência à expansão
conquistadora e à intolerância. O mesmo elemento que possibilitou a conquista
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

de um grande número de territórios e, ao longo da história, formou uma civili-


zação planetária também é aquele que promove o extermínio e quer transformar
o estranho em igual. A Antropologia é uma ciência que nasceu das mãos do oci-
dente, lhe serviu de instrumento e promoveu um papel vital na forma como nossa
civilização se lança sobre o mundo. É importante não esquecermos disso, somos
o resultado do ocidente, a extensão e continuação de uma dominação planetá-
ria que ainda está em andamento.

Considerações Finais
1. O processo de formação do ocidente teve “ingredientes” importantes na cons-
trução da dominação promovida sobre o Planeta. Há uma relação direta entre
a concepção cultural e a ação promovida. Nossa cultura predadora, cristã, ra-
cional e capitalista é um encontro na determinação do que foi traçado sobre o
mundo nos últimos 600 anos. Procure estabelecer, lendo a unidade e analisando
as obras cinematográficas sugeridas, uma relação entre a cultura e a economia,
como elas, em conjunto, promoveram a expansão ocidental. Se puder, faça re-
lações com a história da Europa abordando como podemos compreender
a origem de determinados elementos ainda dominantes em nossos dias.
2. Discutimos, nesta unidade, sobre o olhar preconceituoso que o Ocidente es-
tabeleceu sobre o mundo. Quantos povos foram julgados e condenados pelos
ocidentais ao longo da conquista planetária. Uma conquista feita de guerras
constantes. No texto de José de Sousa Martins, em nossa reflexão, há um relato
da resistência ao homem branco, mas também da visão preconceituosa sobre
os nativos, o canibalismo está no centro dessa discussão. Tente estabelecer, na
atualidade, outras formas de preconceito que são expressas em relação a
outros povos ou grupos sociais. Esse é um exercício vital para o conhecimento
ir além da leitura e do conteúdo, sendo fundamental para construir um senso
crítico.
3. A respeito das migrações e os seus efeitos para a construção e a destruição de
muitas civilizações, é correto afirmar que:
a. ( ) O desenvolvimento das práticas mercantis intensificou o contato entre as
pessoas e destruiu muitas fronteiras entre as civilizações, no entanto, muitas
foram reconstruídas com bases nas novas relações estabelecidas.
b. ( ) A Globalização nos integrou e nos levou a uma massificação, destruindo o
“outro” e tornando-nos apenas “nós”.
c. ( ) Conforme o contato entre os diversos povos ao redor do globo foi se esta-
belecendo o “processo civilizador” e as diferenças entre as diversas civilizações
mundiais ficaram mais evidentes.
d. ( ) As migrações têm efeitos devastadores para muitas civilizações, não permi-
tindo que novas identidades sejam reconstruídas.
MATERIAL COMPLEMENTAR

Indicar uma leitura complementar é sempre um desafio, podemos acertar e promover


uma compreensão mais profunda do que estamos discutindo ou cair em anacronismo.
Porém, considero que duas obras a seguir podem melhorar consideravelmente a com-
preensão do texto e ajudá-lo(a) a se aprofundar nos temas mais relevantes da atualidade.

Aprender Antropologia
François Laplantine
Editora: Brasiliense
Sinopse: A primeira indicação é de um trabalho básico do
antropólogo francês François Laplantine, “Aprender Antropologia”.
Esse trabalho apresenta um panorama geral do aparecimento,
formação e desenvolvimento da Antropologia, de sua raiz,
nos primórdios da expansão ocidental, até nossos dias. A obra
desempenha também a função de organizar os campos de
conhecimento que a Antropologia trata. Um bom material para
quem está iniciando no campo de conhecimento ou apenas tem curiosidade acerca do que a
Antropologia trata.

Terra-Pátria
Edgar Morin e Anne Brigitte Kern
Editora: Sulina
Sinopse: A nossa segunda indicação é o trabalho de Edgar Morin
e Anne Brigitte, “Terra-Pátria”. Esse trabalho tenta dar uma resposta
sobre relação do homem com o Planeta e integrar uma gama de
campos de conhecimento para a compreensão do que é a jornada
humana no mundo.
Em sua primeira parte, os autores fazem uma construção histórica
da atualidade. Esse ponto é importante para a compreensão do processo de ocidentalização e de
suas consequências para o mundo. A visão de Morin sobre as conquistas ocidentais é instrutiva e
complementa em muito o que abordamos nesta unidade.

Material Complementar
MATERIAL COMPLEMENTAR

Os deuses devem estar loucos


Jamie Uys, 1980

Sinopse: Esse filme é divertido, você irá rir e aprender muito


com ele, depois de ter lido nossa unidade, é claro. O que é a
ocidentalização? Essa é a questão que você deve ter em mente
antes de colocar os olhos na história de Xixo, um nativo do deserto
do Kalahari, na África do Sul. Ele é surpreendido por um objeto
que cai do céu, uma garrafa vazia de Coca-Cola. A partir desse
momento, a vida do nativo muda.

A Missão
Roland Joffé, 1986

Sinopse: Esse é um filme clássico. Muitos professores de história


usam essa película para falar da colonização europeia em território
americano. Nesse contexto, o filme também fala sobre a forma como
os jesuítas aliciavam os nativos para a formação de comunidades
cristãs. Interessante perceber a discussão sobre o selvagem (bom ou
mal) que é travada na obra. “A Missão” colabora para exercitarmos
a reflexão sobre o Ethos ocidental conquistador e o quanto o
cristianismo serviu para esse propósito.
Professor Me. Gilson Aguiar

II
UNIDADE
ANTROPOLOGIA CULTURAL

Objetivos de Aprendizagem
■■ Entender a transição entre a construção do pensamento ocidental
racional e a organização do método de abordagem da Antropologia.
■■ Estabelecer a importância de a Antropologia ter amadurecido
enquanto ciência com um método próprio de abordagem.
■■ Conhecer os métodos desenvolvidos pela sociologia, em especial o
estruturalismo e o funcionalismo.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ A racionalidade como forma de compreensão das civilizações não
europeias
■■ O papel de dominação que a Antropologia exerceu em seu
nascimento como ciência
■■ A questão da emancipação do evolucionismo e a formação de uma
Antropologia fundada na pesquisa participativa
■■ O amadurecimento e o dilema antropológico
75

INTRODUÇÃO

O ocidente cresceu e amadureceu pela razão. A racionalidade fez de nós uma


civilização eficiente, porém, predadora. Os grandes pensadores que influencia-
ram o pensamento antropológico e as ciências sociais, de uma forma geral, não
tinham uma visão desprendida de preconceito. Eles buscaram enquadrar os
povos estranhos ao seu olhar eurocêntrico.
Mesmo o mais receptivo pensamento liberal que colocava o estranho dentro
de uma condição de igualdade com o homem ocidental, já que todos são iguais
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

perante a natureza, considerava que o avanço da civilização ocidental estabele-


cia uma superioridade diante da primitividade das demais nações do mundo.
Aos poucos, essa superioridade foi rompida com o conhecimento adquirido
gradativamente sobre as demais civilizações. Antes, o viajante, o missionário,
aqueles que tinham contato com as demais civilizações não eram antropólogos,
não tinham o compromisso de estudá-los racionalmente, apenas faziam seus
relatos utilizando as impressões imediatas, sem qualquer método ou critério.
Assim, podiam valorizar aquilo que suas emoções ou conceitos morais consi-
deravam mais atrativos ou repugnantes.
Foi com a construção de um método que a Antropologia nasceu como ciên-
cia e ganhou corpo para se instituir na busca de uma produção de conhecimento
contínuo. O entendimento do que as demais civilizações representam, sua forma
de organização, sua dinâmica retiram do ocidente o poder e a condição de mais
civilizado ou superior diante dos demais povos.
Não foi uma jornada fácil chegar a essa condição. Os conflitos de interesses
entre o poder estabelecido pela Europa no mundo e as orientações contrárias dos
investigadores, ao trazerem dados que não justificam a supremacia do homem
branco, fizeram da Antropologia um campo desafiador. Mais que isso, serviu de
crítica à própria conduta europeia.
Amadurecida e com uma forma diversificada de abordagem (estruturalista,
evolucionista ou funcionalista), a Antropologia sobreviveu ao seu maior dilema,
a destruição das civilizações que eram seu objeto de estudo. A expansão da eco-
nomia capitalista e o consequente domínio ocidental sobre o mundo dizimou e
continua dizimando povos em todo o mundo.

Introdução
76 UNIDADE II

Agora, diante do desaparecimento gradativo de inúmeros povos, os antro-


pólogos se veem lançando seu olhar sobre o próprio ocidente. Descobrindo uma
sociedade tão complexa de ser entendida assim como as demais civilizações que
já serviram de estudo para a Antropologia. Podemos considerar que o desafio
que ela atravessa,ao olhar as sociedades urbanas industriais, é tão grande como
foi lançar o olhar sobre o homem desconhecido.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A RACIONALIDADE COMO FORMA DE COMPREENSÃO
DAS CIVILIZAÇÕES NÃO EUROPEIAS

O século XVIII foi marcado pela mudança de conceito que o homem constrói
em relação a sua própria existência. A ideia de uma ordem racional que coloca
os homens em uma condição de igualdade natural ganhou contornos diver-
sos. Em teóricos como Hegel, a valorização da racionalidade, do poder sobre
a natureza e a capacidade de organização de uma sociedade são dadas como
formas determinantes para seleção e classificação das civilizações que exis-
tem no mundo. Por mais que exista um número imenso de civilizações, elas
pertencem à espécie humana, mas estão vivendo estágios diferentes de desen-
volvimento, de acordo com Hegel.
Para a Antropologia, esse será um momento fundamental para compre-
ender onde repousa a relação que deve se estabelecer entre aqueles que vivem
na Europa, tida como civilizada, e os demais povos que habitam o Planeta e
se encontram em condições distintas de desenvolvimento. Para alguns teóri-
cos, essa diferença está na relação que se estabelece com a natureza. O meio e
a construção de heranças culturais podem ser o suporte teórico para o enten-
dimento das diferenças entre as civilizações humanas.Nesse contexto, o barão
de Montesquieu1 é uma das mais célebres expressões dessa tendência.

Filho de família nobre francesa, Chales-Louis de Secoudat (1689-1755) teve formação em direito
1

romano, física, biologia e geologia. O que lhe profere em suas obras uma relação entre o ambiente e a
condição humana. A organização social, para ele, tem um vínculo com o ambiente natural. Montesquieu

ANTROPOLOGIA CULTURAL
77

Por outro lado, há de se considerar Hegel2, o teórico alemão, fundador de uma


dialética histórica que influenciou parte considerável dos pensadores alemães,
entre eles Marx. Ele considera que se faz necessário compreender o desenvol-
vimento das civilizações por meio do potencial que se constrói da relação do
homem com a natureza, de sua concepção de si mesmo e de sua maturidade
racional, gerando a superioridade de determinadas civilizações sobre outras.
Para Hegel, por exemplo, determinados grupos humanos que se encontram em
estágios primários, povos africanos e americanos, estão apartados do progresso
civilizador, estão fora de qualquer capacidade de contribuição para a evolução
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

humana (apud LAPLANTINE, 2000, p.51).


Rousseau será um contraponto interes-
sante neste recorte que fizemos de Montesquieu
e Hegel. Seu posicionamento tem peculiari-
dades interessantes em relação ao conceito
de homem e sua capacidade de interferência
nos problemas da vida humana. Para ele, o
princípio da vida, o ser natural, é a condição
comum para toda a humanidade. O processo
civilizador é fruto de uma infelicidade que
tirou o homem de sua condição natural, de
sua bondade nata. O que ocorre, ao longo da
história da civilização humana, é a limitação
dessa natureza e o desenvolvimento de senti-
mentos como ambição, ganância, vingança,
cobiça e vaidade, por exemplo.

é apontado como um dos fundadores da Sociologia, devido a suas análises comparativas. Cartas Persas
e o Espírito das Leis são suas obras mais conhecidas. Na primeira, ele utiliza a história de dois persas
trocando correspondências com conhecidos para fazer crítica ao Estado absolutista e ao Clero Católico,
seus principais alvos de crítica na vida política. No Espírito das Leis, relata a relação entre a construção das
normas e a vida em sociedade.
2 George Wilhelme Friedrich Hegel (1770-1831) é considerado o ponto mais alto do movimento idealista
alemão. Aprimorando a dialética que serviu como base para o desenvolvimento das ideias de Marx, Hegel
considera que há uma evolução da civilização quando as contradições sociais geram o aprimoramento da
razão. Para ele, temos que compreender a herança histórica que, em momentos aparentemente de crise,
possibilita a superação dos problemas dentro de um ambiente aparentemente contraditório. Para ele, são
os embates entre forças opostas que geram a melhoria da civilização. Por isso, ainda para ele, temos que
valorizar os processos de construção dialéticos que geraram a racionalidade.

A Racionalidade como Forma de Compreensão das Civilizações não Europeias


78 UNIDADE II

Para esses teóricos e outros, como D’Alambert, Diderot e Voltaire, o olhar


sobre os povos não europeus serviu como medida para a construção de suas
teses. Uns consideravam os homens primitivos exemplares dos primeiros seres
humanos, outros pensadores iluministas consideravam os primitivos como
seres fora da espécie humana, “parentes” próximos biologicamente, mas distan-
tes mentalmente.
Eles não vão buscar o conhecimento empírico nas civilizações que avaliam.
Rousseau, Montesquieu, Hegel não viajarão para as terras americanas ou incur-
sionar em caravanas pela África. Não será feita a viagem da qual Charles Darwin

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
participou, no século XIX, para conhecer em diversos pontos do mundo um ele-
mento comum que pudesse justificar um princípio de todas as espécies vivas que
habitam o Planeta. Por mais que a busca do pai da antropologia inglesa seja tam-
bém uma procura que se deu antes dele e posteriormente a ele.
O que nos parece interessante frisar é o valor que a ciência ganha como
condição para a análise da vida social, do ser humano, de seus rituais, de sua
organização política. Nesse sentido, o conhecimento científico busca entender o
homem e compreendê-lo dentro do seu habitat, seja nas cidades europeias, que
se multiplicaram com a Revolução Industrial, seja nas regiões mais afastadas da
Europa, onde vive o que se denominou, nos séculos XVIII e XIX, de “primitivo”.
Um dos grandes dilemas da formação de uma ciência do homem era afas-
tá-lo da condição ambiental em que vive, mas, ao mesmo tempo, tratá-lo na
condição de ser vivo, um elemento dessa mesma natureza, sujeito a leis univer-
sais. Na Idade Média, o paradigma a ser combatido foi o panteísmo, ou seja, a
presença de Deus em todas as coisas, ou mesmo a concepção de que o universo
era Deus. Analogamente, o antropocentrismo tendeu a colocar o homem como
uma extensão dessa mesma natureza e sujeito a ela.
Em teorias como a de Montesquieu, posteriormente como as de Comte, fica
evidenciada a busca por gerar essa relação teleológica (relação causa efeito) entre
o meio, a natureza e o homem. Essa relação ainda está por ser trabalhada com
cautela pela Antropologia, Sociologia e Psicologia.
Os campos de conhecimento se aprofundam e iniciam a consolidação de áreas
específicas de saber sobre o homem. Surgem dessa especificação a Sociologia, a
Antropologia e a Psicologia. Enquanto a Sociologia irá se dedicar ao estudo da

ANTROPOLOGIA CULTURAL
79

sociedade industrial e de sua complexidade, a Antropologia irá entender os homens


não europeus. Muitos dos fundadores da Sociologia são referências metodológicas
para a Antropologia, por exemplo, Durkheim e Weber. Os dois teóricos partem de
uma concepção distinta de homem e contribuíram para construção de uma tese
sobre a ordem social que ainda norteia a análise dos pensadores contemporâneos.
Não é por acaso que muitas das análises constituídas no século XVIII e XIX
se posicionam de forma segregacionista. Era necessário gerar uma linha divi-
sória entre o civilizado e o não civilizado,o “normal” e o “anormal”. Em muitos
autores, a busca por uma linha de normalidade fez com que se desenhasse uma
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

relação entre a composição étnica e o ambiente, e também a raça como um dife-


rencial de desenvolvimento, de superioridade do homem europeu. O chamado
naturalismo, ou seja, a busca de uma condição adequada, aceitável, deu origem
ao desenvolvimento do direito natural em muitos dos pensadores do século
XVIII. François Laplantine assim trata do tema:
Esse naturalismo, que consiste numa emancipação definitiva em rela-
ção ao pensamento teológico, impõe-se em especial na Inglaterra, com
Adam Smith e, antes dele, David Hume, que escreve em 1739 seu Trata-
do sobre a Natureza Humana, cujo título completo é: “Tratado sobre a
natureza Humana: tentativa de introdução de um método experimen-
tal de raciocínio para o estudo de assuntos de moral”. Os filósofos ingle-
ses colocam as premissas de todas as pesquisas que procurarão fundar,
no século XVIII, uma “moral natural”, um “direito natural”, ou ainda
uma “religião natural” (LAPLANTINE, 2000, p.57).

É nessa concepção que uma Antropologia nasce. Ela busca analisar o homem,
fazer dele um objeto de estudo do próprio homem. Contudo, com critérios cla-
ros, bem definidos, sendo um desdobramento do que já foi produzido em outros
campos de conhecimento. A antropologia intenciona ainda fazer com que todos
os campos de conhecimento sejam meios para conhecer o homem, extraindo
informações para elaborar uma leitura do próprio homem, sendo esse seu prin-
cipal objeto ou ponto de partida.
Como falamos anteriormente não foi fácil tirar o homem da sua condição
de extensão de uma natureza e fazer dele um objeto de interesse. Não que não
fosse necessário, com as condições que o processo de industrialização promo-
veu na Europa, com o conhecimento de novas civilizações. Porém, considerar o

A Racionalidade como Forma de Compreensão das Civilizações não Europeias


80 UNIDADE II

homem como um objeto de estudo é refazer a consideração do pesquisador diante


da natureza do objeto pesquisado; que lhe é o mesmo, mas não considerado da
mesma forma. A antropologia eleva a máxima potência o estudo da existência
humana. Os estruturalistas e, antes deles, seus precursores metodológicos, os
positivistas, herdaram o evolucionismo, mas tentaram negá-lo. Buscava-se por
um método que pudesse definir a extração do homem da natureza para que fosse
possível estudá-lo da mesma forma como se estudam os fenômenos naturais.
Rousseau, em sua obra “Discurso Sobre a Origem e Fundamentos da
Desigualdade”, busca, na construção da sociedade de proprietários, o funda-

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mento da desigualdade humana. Não por acaso, ele é o filósofo do romantismo,
uma vez que compreende que a construção de uma civilização como a nossa
foi feita sacrificando a naturalidade da existência. Na contraposição, está David
Hume3, que, em seu “Tratado Sobre a Natureza Humana”, demonstra o quanto
o idealismo francês falha ao não fundar sua análise na observação concreta
dos fenômenos. Leis naturais devem ser constituídas a partir de um comporta-
mento determinado e constante, observado e comprovado a existência da espécie
humana nas mais variadas condições ambientais e sociais. Aqui, o empirismo, o
método indutivo, influencia a obra de Hume, apesar de Isaac Newton ser con-
siderado o seu inspirador.
O empirismo acaba por influenciar a busca por entender outras civilizações
e conhecer sua construção a partir da sua produção material. A arqueologia terá
aqui também seu embrião, cuja tentativa era de estabelecer o conhecimento sobre
outra civilização mediante de seus objetos produzidos. Das expedições que as
nações europeias fizeram pelo mundo, muitas delas trouxeram em seus despojos
as relíquias dos vencidos. Nas viagens das tropas francesas à África, na incursão
das tropas napoleônicas sobre o Egito, foram obtidas muitas riquezas de civili-
zações milenares, as quais estão hoje expostas no Museu do Louvre. Esse tipo
de ação não será feito somente pelos franceses,diversas nações se especializa-
ram na seleção e catalogação desse tipo de objeto. Observa-se, nesse sentido, a
busca de documentar a descrição da história de outros povos.

David Hume (1711-1776) foi um dos mais influentes filósofos do século XVIII, em especial na Inglaterra.
3

Junto com John Locke e George Berkley, ele forma a tríada do pensamento inglês. Seu empirismo radical
influenciou vários pensadores europeus, inclusive Kant.

ANTROPOLOGIA CULTURAL
81

Ainda não é nesse estágio que o pesquisador será considerado um viajante.


A análise feita pelos pensadores europeus é baseada em relatos de viajantes.
Essa condição gera críticas constantes, tanto da parte dos viajantes a respeito da
interpretação dos pensadores acerca de seus relatos, ou dos pensadores sobre
a precariedade intelectual dos viajantes. Um dos exemplos do confronto entre
intelectuais e viajantes é o que se deu entre Bougainville e Rousseau. Enquanto
o primeiro, o Almirante francês, foi designado a viajar pelo Estado com botâni-
cos e naturalistas pelo mundo, no século XVIII, para recolher informações que
serviram de fundamento de análise para a intelectualidade francesa, Rousseau
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menosprezou os relatos dos navegadores em seus diários, ou daqueles que reco-


lheram informações durante as viagens (LAPLANTINE, 2000, p.59).
Henry Morgan4, escritor, antropólogo e naturalista norte-americano, se
dedicou ao estudo da instituição familiar junto aos iroqueses, grupo indígena
norte-americano. Essa investigação foi um dos primeiros momentos em que o
investigador busca conhecer seu objeto de estudo in loco. Porém, ainda levou
consigo o olhar eurocêntrico.
O autor norte-americano é uma oposição ao pensamento que se desenvolveu
na Europa, especialmente com Hegel, que condenava as civilizações não ociden-
tais e suas instituições a serem apartadas da história das civilizações humanas.
No processo de desenvolvimento da espécie humana, para Hegel, esses grupos
humanos não tinham nada a oferecer.
Morgan era jurista, como muitos dos pesquisadores do século XIX que se
interessaram pela Antropologia e deram a ela as primeiras formas metodológi-
cas. Talvez aqui seja necessário reconhecer como naturalizar as relações sociais
e buscar um sentido único para o convívio do homem em coletividade tenham
impulsionado os cientistas jurídicos a se incursionarem no estudo do homem
em sua totalidade.

Lewis Henry Morgan (1818-1881), antropólogo norte-americano, graduado em direito, foi político ativo
4

nos Estados Unidos, chegando ao Congresso como deputado e depois senador. Sua principal preocupação é
o estudo das instituições sociais e das relações de parentesco e família como instituição, a qual estudou junto
aos nativos iroqueses. Sua compreensão ainda buscava gerar uma relação universal entre a constituição de
parentesco dentro das instituições sociais, em especial, a família. Sua formação protestante o influenciou
significativamente, contudo, sua forma de compreensão da diversidade de organizações familiares entre
povos nativos demonstrou o início de uma pesquisa de campo desprendida de um naturalismo europeu.

A Racionalidade como Forma de Compreensão das Civilizações não Europeias


82 UNIDADE II

Essa forma de abordagem sobre a Europa e sobre as demais sociedades que


se organizavam ao longo do Planeta era vista sob a ótica do eurocentrismo. Essa
condição foi o resultado da concentração de poder econômico e da imposição
cultural que o continente estabeleceu sobre o mundo, tanto nos séculos após as
descobertas marítimas (séculos XV a XVII) quanto durante a colonização (sécu-
los XVIII a XX) dos diversos continentes. A ocidentalização se aprofundou após
a Revolução Industrial (séculos XVIII e XIX), período em que a Europa passou
por uma grande transformação em sua organização social e de produção mate-
rial. Em outras palavras, houve muitas mudanças tanto na formação de núcleos de

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produção fundados na maquinofatura como na emergência de governos liberais.

O PAPEL DE DOMINAÇÃO QUE A


ANTROPOLOGIA EXERCEU EM SEU
NASCIMENTO COMO CIÊNCIA

As mudanças acontecidas na Europa se propagaram


para outras partes do mundo. Nos Estados Unidos, a
independência da colônia inicia o desmembramento
do império colonial europeu, inglês, francês, espanhol
e português principalmente. Os desdobramentos das
mudanças ocorridas na Europa levaram a uma maior
integração econômica entre as diversas partes do mundo.
Os territórios asiático, americano, africano e da Oceania
não eram mais desconhecidos. A cada dia, constituía-se
uma rede mundial de produção mais intensa que neces-
sitava cada vez mais conhecer a regionalidade para se
apoderar de sua riqueza. O conhecimento nunca foi
tão importante diante dessa necessidade de integração.

ANTROPOLOGIA CULTURAL
83

Na Europa, durante a Revolução Industrial (1750 a 1870)5, as mudanças acelera


mum movimento humano que já estava em andamento desde o século XVII. As mas-
sas humanas se deslocaram no interior da Europa, mas também fora dela. A migração
de homens europeus para outros continentes é impulsionada pelas crises de trabalho
promovidas pela industrialização europeia, sendo também resultado das necessida-
des econômicas surgidas em novas fronteiras agrícolas, extrativas e industriais.
Fora da Europa, as migrações serão impulsionadas por fatores diversos, mas,
inicialmente, pela necessidade de arregimentação dos interesses europeus. Buscou-se
redesenhar o mundo que o colonialismo promoveu recortando continentes. Nesse
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

sentido, a Conferência de Berlin (1884 e 1885) foi a mais profunda. Mesmo antes
da exploração racionalizada do interior do continente negro, a escravidão como
empresa mercantil marcou a migração forçada de trabalhadores, principalmente
para a América. Inclusive, vale lembrar que os territórios brasileiros e os norte-a-
mericanos receberam o maior número deles. O Brasil foi destino de 39% dos seres
humanos capturados, enquanto os Estados Unidos da América receberam 9% dos
seres humanos transformados em mercadoria pelo tráfico negreiro.
Outras migrações foram resultado do aproveitamento de desterrados, inimi-
gos do Estado absolutista ou mesmo prisioneiros dos estados liberais. Inglaterra
e França marcaram sua colonização com áreas de desterro de prisioneiros nas
América Central, África e Oceania. A colonização da Austrália, iniciada pelos
ingleses no século XVIII, também tem como característica o deslocamento de
prisioneiros condenados que trocaram a sentença pela vida distante na colônia.
O mesmo fizeram os franceses nas Antilhas. Portugal, bem antes disso, promoveu
o deslocamento dos desterrados para a costa brasileira. Na região sul do Brasil,
é possível encontrar inúmeros municípios cuja história remonta o desterro6.

5
Aqui, quando tratamos da Revolução Industrial, não gostaríamos de reduzir sua ocorrência ao território
inglês e a tradicional maquinofatura têxtil marcada pela produção fundada na máquina a vapor e no
carvão como energia. Estamos traçando sua ocorrência além das fronteiras britânicas, sua chegada em
vários países europeus. Além disso, o processo de mudança sofrido em toda a cadeia produtiva promovida
pela maquinofatura e a multiplicação da divisão do trabalho. A organização do campo que passou a ser
uma extensão dos interesses rurais vai determinar ainda mais a mudança dentro do território europeu,
mas também fora dele. Em muitos lugares, nas Américas, na África, na Ásia e Oceania, os territórios
serão explorados com mais intensidade na busca por atender à máquina de transformação ocidental,
seus poderosos parques industriais. Porém, também serão alguns desses territórios, na segunda metade
do século XX, espaços onde irão se desenvolver parte do integrado processo de produção mundial. Uma
globalização estará surgindo e mudando profundamente o curso da história humana.
6 Florianópolis, capital catarinense, tem sua origem no desterro de portugueses dos açores. Seu nome
original é Nossa Senhora do Desterro. No final do século passado, houve intenção de retornar o nome

O Papel de Dominação que a Antropologia Exerceu em seu Nascimento como Ciência


84 UNIDADE II

Convocada por Portugal, interessada em criar uma ligação entre suas prin-
cipais colônias na África, a Conferência de Berlin foi organizada pela Alema-
nha. O motivo do interesse alemão era garantir espaço territorial em um
continente já retalhado pelas nações europeias e pelos turcos. Envolto por
uma série de conflitos, o continente africano assistiu as nações europeias
contribuir em demasia para aprofundar e garantir seu domínio. Por influên-
cia de Otto von Bismarck a conferência acabou por ceder a Namíbia, sudoes-
te africano, aos germânicos. Na Conferência de Berlin as nações redesenha-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ram o mapa da Europa e consolidaram a exploração do continente com a
intensificação de meios de exploração, tropas, ferrovias, entrepostos. Novos
interesses surgiram, agricultura e mineração. No processo minerador, a ex-
ploração da África do Sul pelos holandeses (Böers) e posteriormente pelos
ingleses gerou um território dominado por brancos, e com exploração dos
nativos africanos e de trabalhadores indianos.

Algumas outras migrações ainda foram aparentemente voluntárias, necessá-


rias para o desenvolvimento de economias dependentes do centro europeu. O
processo de abolição do trabalho escravo, associado à expansão agrícola, levou
à necessidade de trabalhadores europeus na América. Italianos, alemães, por-
tugueses, espanhóis, eslavos, irlandeses, ucranianos etc. foram para territórios
que estavam em expansão. Na “marcha para o oeste”, lema que dominou o ima-
ginário da formação nacional norte-americana, o imigrante se fez presente. Era
a realização do processo civilizador nas terras do “velho oeste”. No Brasil, tam-
bém ocorreu a marcha imigrante, ela se situou inicialmente no sul do país e
depois se desdobrou para o sudeste, quando da expansão da lavoura cafeeira. A
formação dos núcleos urbanos no interior paulista representa a herança dessa
expansão. No sul brasileiro, a marca do imigrante é mais profunda, gerou quis-
tos étnicos. Italianos, alemães, eslavos e japoneses constituíram comunidades

da cidade a sua nomenclatura histórica, mas prevaleceu a homenagem ao presidente Floriano Peixoto,em
memória à Revolução Federalista. A capital catarinense foi sede da revolta contra o governo federal. Com
a vitória do presidente Marechal Floriano, o nome da cidade foi um troféu. Imposição autoritária que se
tornou identidade, como muitas na história brasileira.

ANTROPOLOGIA CULTURAL
85

fechadas. Marcadas pela preservação da língua pátria, do hábito alimentar, das


danças, da religiosidade e de tantos outros cultos. As atividades econômicas tam-
bém geraram suas identidades7.

CONHECIMENTO E DOMINAÇÃO

A penetração cada vez mais intensa da colonização ocidental vem orientada


por um conhecimento profundo sobre povos e territórios. Nessa perspectiva,
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foram estudados o território, sua natureza; foram catalogadas plantas, animais


e minerais; pesquisou-se o relevo e mapearam-se os rios, seus cursos e assim foi
possível associá-los ao estudo da fertilidade do solo. O conhecimento sobre os
povos é uma extensão desse estudo sobre a natureza do lugar. Saber dos hábitos
alimentares, estudar a língua, conhecer o artesanato, os materiais que manipu-
lam, as ervas que serviram e servem de princípios químicos para a produção de
remédios para a indústria farmacêutica europeia são exemplos dos resultados
desse conhecimento. Um saber trazido dos territórios dominados a serviço do
homem ocidental. Na América, a Floresta Amazônica continua sendo, assim
como outras partes do mundo, uma fonte inesgotável de descobertas de elemen-
tos da natureza que podem ser manipulados na produção de medicamentos. Na
África, quantos não servem de laboratório para os experimentos da indústria
farmacêutica ocidental.
O que se convencionou chamar de neocolonialismo foi o processo mais
intenso da dominação que se estabeleceu sobre o mundo entre 1870 a 1914.
Foi nessa fase que se constituiu uma euforia em relação à supremacia do oci-
dente enquanto civilização, atingida por um apogeu da glorificação das nações
europeias e da formação de um ideário nacional nos Estados Unidos e Japão. A

7 Em quantas dessas comunidades a existência desses quistos não representou também conflito. Na história
do Brasil, principalmente na memória regional, estão presentes as marcas de sangue deixadas pela luta
contra o “perigo estrangeiro”. Na formação da identidade do país, o imigrante contribui, mas antes era visto
como uma ameaça. Os alemães foram, durante duas guerras mundiais, vistos como um perigo da expansão
germanistas. Escolas alemãs foram fechadas em núcleos urbanos como Blumenau e Joinville. Japoneses
ficaram sobre suspeitas ou foram colocados em campos de observação, para não dizer concentração,
durante a Segunda Guerra Mundial (1938-1945). No caso nipônico, hoje, quando se celebra a importância
dos traços culturais japoneses no nosso dia a dia, ao se visitar uma feira Nipo-Brasileira e perceber os
quantos de nós são eles, se esquece enão se denuncia a “paz construída com sangue”.

O Papel de Dominação que a Antropologia Exerceu em seu Nascimento como Ciência


86 UNIDADE II

supremacia do homem europeu parecia inconteste na segunda metade do século


XIX. A emergência de grandes cidades e o avanço das ciências foram demons-
trações da supremacia ocidental.
A estabilização das relações capitalistas nas potências europeias, as quais irão
dar um rumo diferente às relações dentro dos territórios nacionais, gerou uma
satisfação e empolgação com o progresso do humano, bem diferente do que espe-
ravam, por exemplo, os movimentos socialistas dos quais Marx e Engels foram
os grandes teóricos. Não ocorreu a tão esperada revolução proletária, mas uma
integração dos operários aos sentimentos pátrios que foram estimulados durante

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
a formação da Alemanha (1871), Itália (1870) e na busca de uma emancipação
na Polônia (1864) e nos países eslavos (1856 a 1914). Esse mesmo nacionalismo
que construiu a rivalidade entre as nações europeias foi à pedra de toque8 que
gerou a destruição da imagem de superioridade colocada há pouco.
Como já argumentamos, a ciência passa a ser produzida sistematicamente. O
conhecimento acadêmico se torna uma referência para construir na Europa um
conceito sobre a sociedade, seja ela da própria Europa ou de povos não europeus9.
As mudanças na economia capitalista são um propulsor que, movido também
pela formação do ideário ocidental, vai se desdobrando em inúmeras possibilida-
des. No campo do conhecimento, é perceptível que as descobertas significativas
para a humanidade se concentrem entre os séculos XVIII e a primeira metade
do século XX. Foi nesse longo trajeto que as ciências sociais encontraram seu
berço e seu desenvolvimento, o qual ocorre até hoje.
A longa jornada da Antropologia como ciência encontrou seu curso no século
XIX. Nesse período, desenvolveu-se o método e se consolidou a relação entre
a compreensão do homem não só com o elemento chamado de primitivo, ou

8
Quando falamos da expressão “pedra de toque” e a relacionamos com o advento do nacionalismo na
Europa, percebemos que ele foi o responsável pela formação de um culto à pátria, ao território, à língua e
à corrida pela dominação mundial entre as grandes potências europeias. Não se pode separar a formação
da Alemanha, por exemplo, a forma como ela ocorreu, da tensão gerada na Europa em relação à França
e Inglaterra. Quem soube fazer muito bem essa leitura foi Max Weber, ao prever o desastre da aliança da
Alemanha com a Áustria-Hungria e sua rivalidade beligerante com ingleses e franceses. O teórico alemão
também foi capaz de relacionar a guerra e seus desdobramentos com a entrada dos Estados Unidos no
conflito.
9
Vale a pena lembrar que a multiplicação de publicações literárias na Europa contou para a valorização
social da ciência. O conhecimento produzido pelos pensadores europeus, cientistas, passou a ser publicado
e chegou à parte da população com o surgimento dos livros de bolso, das publicações de massa, dos
periódicos que atingiram cada vez mais pessoas.

ANTROPOLOGIA CULTURAL
87

bárbaro, as civilizações não europeias, mas se habilita a antropologia a entender


as próprias instituições ocidentais. Essa condição de compreensão do homem
por inteiro, o que já trabalhamos na unidade anterior, atinge como objeto de
estudo o próprio civilizado, o “ocidental”.

A CRISE EXPRESSA NA ARTE, E A ARTE DA GUERRA

Um dos fatos marcantes para que houvesse uma mudança no curso da antropolo-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

gia foi a ocorrência das duas guerras mundiais10. A noção de ser uma civilização
superior e a de ser dotada de uma capacidade de racionalidade que conduzia
instituições europeias, as quais pudessem ser capazes de dar um norte comum
à humanidade, ruíram. Tudo o que foi gerado como a evolução do homem, que
de uma sociedade primitiva construiu todo o ocidente, não foi capaz de impe-
dir um genocídio inconteste praticado no interior da Europa11.
Foi após as duas grandes guerras que determinados temas passaram a fazer
parte de forma mais constante das ciências sociais. A Antropologia não escapou
dessa discussão. Compreendia-se então que os grupos humanos não obedeciam
a uma lei constante no desenvolvimento das civilizações, assim não haveria uma
linha histórica que poderia classificar os povos e colocar no topo da cadeia evo-
lucionista o homem do ocidente. O olhar da barbárie que era direcionado para
determinados grupos humanos agora se encontrava voltado para o espelho onde
a Europa refletia.
Um dos primeiros autores a questionar o discurso de supremacia racial oci-
dental foi Franz Boas, antropólogo teuto-americano. Em suas obras de análise
sobre a cultura esquimó, um dos primeiros trabalhos de sua carreira, mesmo

10
Tanto a Primeira (1914 a 1918) quanto a Segunda Guerra Mundial (1939 a 1945) foram marcos para a
mudança de conceito que o homem ocidental cultuou sobre si mesmo. A violência praticada nos campos
de batalha e o envolvimento de uma grande parte do mundo em um conflito, que teve a Europa como seu
centro, fez mudar o conceito de civilizado.
11
A questão judaica é uma ferida que não cicatriza na história da Europa. Na Alemanha, ela é relembrada
como um memorial invertido. Uma busca de jamais esquecer os efeitos que a violência praticada pelo
regime nazista gerou em uma imperfeição na superioridade que os ocidentais cultuaram por séculos e, no
século XIX, chegou a ser considerado com naturalidade um destino natural de supremacia do ocidente.

O Papel de Dominação que a Antropologia Exerceu em seu Nascimento como Ciência


88 UNIDADE II

considerando que tenha um viés eurocêntrico, ele já demonstrava uma forte influ-
ência por ideias de igualdade racial. Contudo, sem deixar de levar em consideração
as distinções e as condições em que uma sociedade gesta suas particularidades.
Tal característica de Boas influenciou a escola de antropologia cultural norte-a-
mericana e, por consequência, teve um papel crucial nos trabalhos de Gilberto
Freyre, um dos mais ilustres fundadores da antropologia no Brasil.
Essa ruptura que descrevemos aqui é profunda. Ela é uma negação ao que
determinou por mais de um século o objeto de estudo da antropologia. O enten-
dimento do homem universal agora se tornava um eixo vital para a lógica que

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
os antropólogos desenvolveram ao longo do século XX. Os trabalhos de Boas,
Malinowski, Claude Lévi-Strauss (1983) são demonstração dessa mudança.
Enquanto Malinowski se mostra como um pesquisador de campo à procura de
definir um método, Boas busca a compreensão da funcionalidade social, assim
como entender as peculiaridades das civilizações como uma orientação para
suas investigações.
Na forma em que se consolida o método, estabelece-se uma antropologia aca-
dêmica. O que Boas gerou nos Estados Unidos da América, na Universidade de
Columbia, será o ponto de partida para o modelo acadêmico que a Antropologia
irá seguir em diversas nações onde a ciência ganhou notoriedade. Passa-se, então,
a constituir uma visão não mais fundada no modelo ocidental, mas a partir de
pesquisas de campo junto aos grupos humanos que se deseja conhecer.
A busca de conviver com outras civilizações, que levou muitos dos pesqui-
sadores europeus a saírem de seu continente, está relacionada com a desilusão
com a vida europeia. A sociedade industrial que encantou muitos dos intelec-
tuais do século XIX, como o ambiente da superioridade de convivência entre os
homens, ganha oposição. Essa trajetória de exaltação e descontentamento não
foi só nas ciências humanas, na antropologia, em especial, foi também nas artes,
como no caso do surrealismo e impressionismo.
André Breton, surrealista do século XX, foi autor do “Manifesto Surrealista”,
no qual se expressava o rompimento com toda a racionalidade, a ruptura com a
métrica esperada. A ideia principal era o elogio à forma de criação da subjetivi-
dade descomprometida com a racionalidade a qual determinou o mundo europeu
industrializado, o qual se autointitulou desenvolvido e civilizado.

ANTROPOLOGIA CULTURAL
89

Rompia-se, dessa forma, com os valores morais, considerados prisões para o


corpo e mente. A relação aberta, a homossexualidade assumida, o uso de dro-
gas e mesmo a busca de incorporar os rituais religiosos de outros povos passam
a ser uma alternativa de oposição ao ocidente.
Considero que é, para muitos dos intelectuais e artis-
tas europeus, uma forma de fugir do ambiente ocidental,
frustrados com o que o ocidente fez durante os confli-
tos mundiais. Negar a sua origem. Tudo isso contribuiu
para a redefinição do que veio a ser a Antropologia12. O
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que é irônico, uma vez que a Antropologia era a expres-


são da afirmação ocidental em sua origem, e a negação
desse mesmo ocidente contribuiu para sua consolidação.
Na atualidade,em sua maturidade, ela se envolve com a
história e convive intensamente com os mais diversos
campos das ciências humanas.
Assim, o ambiente histórico nos faz compreender
as condições em que a Antropologia se fez como campo
de conhecimento. Ela é fruto de seu tempo. O resul-
tado de um contexto histórico que propiciou conhecer
o outro e dar a ele sentido. Ao incursionar em uma
cultura oposta, nos primeiros tempos em que a ciência
engatinhava, os europeus produziram um conhecimento vasto que serviu como
condição fundamental para a dominação do ocidente. As pesquisas elaboradas
sobre as civilizações que tinham pouco ou nenhum contato com a civilização
ocidental acabaram por servir para a criação de estratégias de aculturação ou
eliminação dos nativos13.

12
Há, na atualidade, uma discussão para aproximar a Antropologia da História, que se denomina
“Antropologia Histórica”. Essa tendência antecede a chamada “História das Mentalidades”. Mais importante
que o conhecimento, os relatos, sobre os grandes feitos históricos, os grandes personagens, é a história do
cotidiano, dos alimentos, da vida privada, da moda, da estética, exatamente do cruzamento entre o campo
da história e o da antropologia.
13
Apenas como lembrança, os jesuítas desenvolveram uma técnica eficaz de aproximação dos nativos, o
conhecimento sobre a língua. Por meio dela, ao longo da história da colonização do Brasil, ocorreu a
aproximação que facilitou o extermínio e submissão dos indígenas.

O Papel de Dominação que a Antropologia Exerceu em seu Nascimento como Ciência


90 UNIDADE II

COLONIZAÇÃO

Na história que se promoveu com os continentes explorados pelas nações euro-


peias, não podemos desconsiderar o efeito da construção nacional fora da Europa.
Longos processos de dominação em que povos viveram sob o julgo das nações
ocidentais deixaram marcas profundas. África e Ásia são os continentes onde
essa dominação demarcou os territórios de forma autoritária. Não que esse auto-
ritarismo não estivesse presente na colonização da América, mas não teve um
desenvolvimento técnico tão intenso.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Muitos campos de conhecimento nasceram e cresceram fora da Europa.
Botânica, arqueologia, geografia, zoologia, geologia, cartografia e a própria antro-
pologia são alguns desses campos que ampliaram o poder do ocidente sobre várias
civilizações e territórios. Na proporção em que os deslocamentos das expedi-
ções europeias chegavam aos mais diversos campos do mundo, as relações entre
a economia, as guerras e o conhecimento científico se aprofundaram.
Mais uma vez, é importante lembrar que entre o conhecimento como ins-
trumento e a intenção de quem o utiliza há uma diferença fundamental. Em
determinados contextos, o saber garante as condições de existência coletiva,
em determinados momentos, segrega e permite a implantação de um estado de
violência próximo à barbárie. O uso do conhecimento depende de quem o usa.
Mesmo em plena maturidade, o instinto pode falar mais alto e expressar o lado
insano de uma civilização.
A própria arte da guerra é um campo em que a ciência foi vital para o seu
aprimoramento. A chamada “arte de matar” não encontrou em nenhuma outra
civilização o extermínio do próprio ser humano como na civilização ocidental. A
história do ocidente, em diversos momentos, é a história das guerras14. Não por
acaso, atualmente, ritualizamos na violência o poder de destruição. A guerra é a

14 A capacidade de extermínio que a Europa constituiu ao longo de sua história se expressou no século XX.
Mesmo com as guerras coloniais que marcaram o domínio sobre diversas civilizações, foi no século passado
que a capacidade de destruição humana chegou ao extremo. As bombas atômicas lançadas sobre o Japão
(Hiroxima e Nagazaki) demonstraram não só o poderio bélico de uma potência, mas a capacidade do ser
humano de exterminar a própria espécie. Hans Magnus Enzensberger (1995) fala dessa natureza do homem
de destruir a si mesmo: “Somos a única espécie que planeja seu próprio extermínio”. Edgar Morin fala da
“Era Damocleana”, o poder científico a serviço do extermínio está associado a um Planeta interligado e
movido por uma rede de relações. Segundo Morin, cada um de nós carrega o planeta dentro de si.

ANTROPOLOGIA CULTURAL
91

condição vital que constrói o herói. Aquele que lidera as tropas deixa suas marcas
e galga quase sempre o ponto mais alto da memória coletiva. Temos inúmeros
ídolos da paz, mas cultuamos em demasia “os senhores da guerra”.
As fronteiras geradas nas áreas de dominação, aos poucos, foram organi-
zando uma cartografia que incrustou na história uma distribuição territorial e
impôs o encontro entre um número significativo de populações. As característi-
cas regionais foram dando lugar a caldo cultural que se formou pela convivência,
nem sempre pacífica, do ocidente com os demais povos. Nos desdobramentos da
empresa colonial, a manipulação dos nativos foi elemento vital para consolidar
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

a conquista. Estabelecer uma aliança com povos nativos implicou conhecê-los.


Ao analisarmos particularmente a história da América Colonial ou da África,
são inúmeros os exemplos de uma ocupação e conquista que dependeram de
alianças entre os europeus conquistadores e grupos nativos em guerras com ini-
migos tradicionais. Um dos exemplos que temos na nossa cultura é o conflito
entre os tupiniquins e tupinambás no litoral do Rio de Janeiro. Os portugueses
e franceses fizeram dos nativos um instrumento para atender a seus interesses
coloniais15.
Nas culturas de recriação de ambientes, quando falamos do caldo cultural
que se estabeleceu no Brasil colônia, amparados, por exemplo, em Darcy Ribeiro
(1995), presenciamos o estabelecimento de elementos únicos. O bandeirante,
uma mistura do europeu com o indígena, o sertanejo e o caboclo foram elemen-
tos vitais para a ocupação do território, o que gera uma identificação com um
lugar marcado pela ocupação europeia e resistência dos elementos nativos que
se traduzem em um homem novo. Essa construção social só foi possível pela
presença de culturas distintas em confronto, as quais foram forçadas a uma con-
vivência e encontro. Assim, o conflito acaba por ganhar um sentido que as duas
partes estabeleceram nesse encontro. Os elementos europeus e indígenas deram
ao encontro sentidos que permitiram a miscigenação. Levaram à formação de

15 Em 1554 uma expedição secreta francesa se dirigiu ao litoral brasileiro para detectar uma área de
instalação de um núcleo colonial francês. Interessados em manter um entreposto para poder extrair pau-
brasil no litoral do território português, os franceses desejavam ter uma colônia nas terras lusitanas na
América. Villegagnon foi escolhido pelo ministro francês Colygni para liderar a expedição de conquista.
Os franceses fizeram contato com os Tamoios, nativos tupinambás da região, para obter informações sobre
os portugueses. Posteriormente, foi com a ajuda deles que os franceses conseguiram se estabelecer no
território. Portugal reagiu com apoio dos tupiniquins, inimigos tradicionais dos tupinambás.

O Papel de Dominação que a Antropologia Exerceu em seu Nascimento como Ciência


92 UNIDADE II

um ser humano tipicamente brasileiro, que carrega dentro de si os traços de


dois mundos em conflito. Para Darcy Ribeiro (1995), esse encontro de raças que
ocorreu no Brasil é único, e a intensidade com que se deu essa ligação pode ser
verificada somente na “terra brasilis”.
Uma quantidade grande de novas nações emergiu com o rompimento da
colonização europeia, e as respectivas construções da nacionalidade foram mar-
cadas pelos traços que os colonizadores deixaram, e alguns desses traços foram
a língua e o desenho do território nacional. Se observarmos a exploração do
continente africano e considerarmos as inúmeras guerras que lá ocorrem, cons-

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tataremos que grande parte das etnias e tribos em conflito é um desdobramento
das linhas autoritárias, as quais demarcaram a formação das colônias europeias
consolidados em fronteiras dos Estados modernos.
A destruição de inúmeras civilizações com a aproximação do homem ociden-
tal, a exploração intensa sobre os territórios coloniais, ou influência e dominação,
sejam elasdireta ou indiretas, ainda ocorrem e estão em curso. Seria irônico
negar que ainda estamos vivendo o extermínio de culturas em diversas partes
do mundo. Essa eliminação se traduz não só na conquista territorial, mas na
exploração indireta, na economia que se estabelece pela dependência, na influ-
ência cultural que os meios de comunicação exercem em nosso dia a dia. Porém,
vamos tratar desse tema com maior detalhe mais à frente.

ANTROPOLOGIA CULTURAL
93

A QUESTÃO DA EMANCIPAÇÃO DO EVOLUCIONISMO


E A FORMAÇÃO DE UMA ANTROPOLOGIA FUNDADA
NA PESQUISA PARTICIPATIVA

Agora, é necessário construir um breve histórico da Antropologia já amadurecida


como ciência e traçar sua trajetória até nossos dias, explicar suas abordagens e
seus desdobramentos iniciais como uma etnografia, ou mesmo como uma etno-
logia, momento em que esteve mais preocupada com a relação entre o homem e
o meio ou com o estudo da constituição biológica do ser humano. Nessa forma
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primária de sua existência enquanto campo de conhecimento, procurou-se rela-


cionar a estrutura físico-biológica como fator determinante da organização social.
Embora o pensamento do homem ocidental tivesse avançado significativa-
mente nos séculos XVIII e XIX, ele ainda trazia uma perspectiva bastante limitada
acerca do conhecimento objetivo sobre os povos não europeus. Mesmo dentro
da Europa, estabeleciam-se diferenças que não eram percebidas. Já na América
do Norte, as ações de nativos americanos, seus hábitos alimentares, seus rituais
religiosos e econômicos eram vistos como falta de civilidade e ações de barbá-
rie que deviam ser reprimidas.
Essa condenação aos nativos americanos expressava a imagem dos europeus
sobre seu continente, o qual caminhava para uma homogeneidade incontestável.
Esse determinismo civilizador foi destituído dentro da Europa com o naciona-
lismo, conflitos mundiais e a organização de redutos culturais que persistem e
formam núcleos de resistência16. Mais que isso, se existe um ambiente que demons-
tra a variedade cultural impregnada dentro do mesmo espaço, esse ambiente são
as cidades. Estamos desvendando, aos poucos, o ambiente urbano, que se mos-
tra um bom campo de estudo para os antropólogos. Ele é construtor de rituais,
reprodutor de culturas e reinterpreta forças econômicas e simbologias das mais
diversas. Mas esse é um tema que iremos tratar em nossa próxima unidade.

16 No final do século passado, a Europa esteve envolvida com a formação de Comunidade Europeia, um
plano traçado após o final da Segunda Guerra Mundial (1945). Porém, mesmo diante da racionalidade
formadora de uma união das nações europeias, franceses e alemães demonstram o quanto não se aceitava
facilmente superar os anos de construção de uma identidade nacional forjada na rivalidade, na negação do
outro, no fortalecimento da fronteira.

A Questão da Emancipação do Evolucionismo e a Formação de uma Antropologia


94 UNIDADE II

Os primeiros pensadores da antropologia, como vimos, tinham uma visão de


que a civilização europeia caminhava, paulatinamente, para uma ordem única,
fundada na racionalidade, na capacidade de compreensão objetiva dos fenôme-
nos ou de uma organização política cada vez mais espelhada na democracia, na
liberdade de escolha lógica. Era preciso, segundo os pioneiros da antropologia,
ter isso como medida para compreender as demais civilizações. A idealização do
homem ocidental se transformou em fórmula de compreensão do não europeu.
Dessa maneira, enquadrava-se o primitivo em uma escala de desenvolvimento
das civilizações que tinha a Europa em seu topo. Uma supremacia que, como

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comentamos, foi questionada com a depressão vivida pelo ocidente no século XX.
A difícil capacidade da alteridade fez com que o ocidente descrevesse os povos
não europeus como uma aberração ou, como já falamos ao analisarmos o pensa-
mento de Hegel, apartados da história. Sua existência não afetaria em momento
algum a condição humana. Eles não poderiam ser vistos como algo que fosse além
do lugar onde foram encontrados, quase anulando, dessa forma, a diferença entre
o nativo e a natureza que o cerca. Para o olhar eurocêntrico, eles estão condena-
dos a permanecer como os animais e as plantas com quem convivem.
Não por acaso, essa visão abriu a possibilidade da formação de uma etno-
grafia, etnologia, arqueologia e, posteriormente, a antropologia cultural. Ou seja,
uma fragmentação do que se colhia no campo de investigação e a formação de
uma “tabela” de enquadramento de civilizações. As semelhanças aproximam e
as diferenças afastam. Com um modelo próximo ao dos usados pelos botânicos
para classificar as plantas, os etnógrafos e arqueólogos iniciaram sua colheita de
objetos e descrições de comportamentos para serem enquadrados.
Serão os etnólogos os que primeiro iniciarão, como observadores atentos, a
convivência com os povos nativos para assim compreenderem seu modo vida.
Eles vão se dedicar a descrever o comportamento, mas também aprender a língua
e entender o sentido dos rituais, dos gestos, das instituições e sua relação com o
ambiente. Será esse pesquisador que começará a entrar na cultura da sociedade
observada para compreender a lógica da organização social.
Nessa relação de convivência, organiza-se a vida dentro de um mundo comple-
tamente diferente daquele do pesquisador. Por mais preparado que ele considere
estar, para conviver com um ambiente social distinto do seu, profundamente

ANTROPOLOGIA CULTURAL
95

marcado por diferenças, o cientista se vê na necessidade de refazer toda a sua


orientação, o seu sentido de comportamento e de classificação dos fenômenos
que considera importante para a abordagem do chamado “estranho”.
François Laplantine define assim esse momento:
(...) O pesquisador compreende que a partir deste momento ele deve dei-
xar seu gabinete de trabalho para ir compartilhar a intimidade dos que
devem ser considerados não mais como informadores a serem questio-
nados, e sim como hóspedes que o recebem e mestres que o ensinam. Ele
aprende então, como aluno atento, não apenas a viver entre eles, mas a
viver como eles, a falar sua língua e a pensar nessa língua, a sentir suas
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próprias emoções dentro dele mesmo. Trata-se de como podemos ver, de


condições de estudo radicalmente diferentes das que conheciam o via-
jante do século XVIII e até o missionário ou o administrador do século
XIX, residindo fora da sociedade indígena e obtendo informações por
intermédio de tradutores e informadores: este último termo merece ser
repetido. Em suma, a antropologia se torna pela primeira vez uma ativi-
dade ao ar livre, levada, como diz Malinowski, “ao vivo”, em uma “natu-
reza imensa, virgem e aberta” (LAPLANTINE, 2000, p.75 - 6).

Foi dentro dessa primeira observação que se colocou a relação do homem com
a natureza como um determinante necessário à observação. Não se deve enten-
der aqui que o meio determina o homem, mas relevar a influência que esse
meio exerce em determinado grau. Existe um meio no qual estamos inseridos e
ele rege, até determinado momento, o que somos. Compreender isso colabora
fundamentalmente para estabelecer vínculos posteriores com outras variáveis.

ARQUEOLOGIA

Foram os arqueólogos que se dedicaram com profundidade a resgatar os vestí-


gios das civilizações e tentaram reconstruir a vida destas por meio dos objetos.
Seria como montar um quebra-cabeça que sempre terá a falta de peças que devem
ser recriadas com a fidelidade necessária para que imaginação não destrua o
que as evidências materiais denunciaram. Na arqueologia, é preciso estabelecer
uma leitura a partir do que existe e a partir da lógica que os objetos encontra-
dos orientam. Essa ciência foi fundamental para ampliar as pesquisas de campo,
assim como para elucidar a construção da história.

A Questão da Emancipação do Evolucionismo e a Formação de uma Antropologia


96 UNIDADE II

A pré-história foi organizada e constituída pelo trabalho da arqueologia.


A humanidade preocupada em entender sua origem tem na arqueologia uma
resposta que ainda está sendo dada, mas avança significativamente. Os estu-
dos com documentos mais precisos permitiram aos europeus que tivessem um
maior conhecimento da antiguidade. A história dos povos do Crescente Fértil, da
civilização egípcia, da Grécia e Roma, enfim, nas regiões mais distantes, a busca
pelos vestígios de civilizações já extintas ou que deixaram poucos remanescen-
tes, a investigação sobre a cultura maia, asteca ou inca são trabalhos constantes
dos arqueólogos. Esse campo vasto de conhecimento é um contribuinte impor-

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tante para a antropologia.
Os estudos da arqueologia reforçavam a ideia de uma evolução. Dessa forma,
levantou-se a hipótese de que o homem ocidental seria o resultado de uma longa
evolução da espécie humana iniciada na pré-história, deixando vestígios das civi-
lizações que fizeram parte da longa trajetória humana. Essa seria então a missão
das ciências que se dedicavam ao estudo dos povos não europeus.
O modelo industrial, urbano, racional e organizado em Estados-nação era a
demonstração da superioridade europeia. Cada elemento descoberto no mundo
se encaixava nesse destino preestabelecido pelo evolucionismo, o qual ainda con-
tinua sendo uma forma de compreender a existência da diversidade humana. O
processo de globalização que estamos vivendo e a cadeia mundial de produção
são exemplos de fatores que fazem com que as pessoas estabeleçam contato cada
vez mais constantemente com as diversas partes do mundo. Esses contatos acabam
por facilitar o acesso a informações, ajudam a conhecer culturas, mas também
influenciam mudanças. Na expansão ocidental a busca por integrar o mundo
a uma rede econômica capitalista foi o grande motivador a, ainda hoje a inten-
ção continua. A padronização imposta pela cultura de massas e a forma como
é trabalhada a diversidade tendem a expressar mudanças na cultura de pratica-
mente todos os povos. Estamos diante da formação de um mundo em evolução.
As diferenças existentes entre os seres humanos hoje seria então uma relação
constituída com os ambientes diferenciados, geografia, clima, vegetação, animais
e tudo o que se desenvolveu ao longo de milhares de anos. Fora essa condição
ambiental, está a construção de um saber com a natureza, de habilidades e orga-
nizações sociais relacionadas à necessidade de superar as condições que a própria

ANTROPOLOGIA CULTURAL
97

natureza determina. Outro fator de mudança dos seres humanos foram as mis-
cigenações, os encontros entre os diversos grupos e as mudanças que geraram.
O que se observa nas pesquisas contemporâneas sobre a formação biofísica
da espécie humana é que temos a mesma origem. Somos todos da mesma espécie,
somos alterados pelo tempo de vida em determinados ambientes. Nosso corpo
se adaptou a determinadas condições e está em constante mutação. Hoje, o que
estamos vendo do ser humano é um estágio de mudança constante que vai se
processando ao longo do tempo. Não há um ser ideal, apenas uma espécie em
constante mudança promovida pela própria ação do ser humano.
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As mudanças provocadas pela espécie humana tendem a se intensificar. A


integração que chamamos hoje de planetária se faz sentir por grande parte da
população mundial. Essa integração se dá por meio de produtos, mensagens e
linguagens associadas a símbolos. Temos que considerar, nesse sentido, que essa
integração já acontece desde o início da expansão ocidental, ou seja, há mais de
500 anos. Porém, nos últimos 60 anos, ela se intensificou. O que isso irá pro-
vocar ainda é um campo vasto para investigação, contudo, já dá os seus sinais.

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EVOLUCIONISMO

A base para o entendimento da sociedade dentro de uma lógica evolucionista foi


conseguida no século XIX com os estudos de Durkheim. O pensador francês,

A Questão da Emancipação do Evolucionismo e a Formação de uma Antropologia


98 UNIDADE II

herdeiro metodológico do positivismo de Comte, traça uma análise social fun-


dada na construção solidária dos fenômenos, ou seja, a sociedade tem uma
organização que gera dentro dela os fatos sociais. Para entender a dinâmica dos
fatos, é preciso entender a cadeia de dependência entre os elementos que com-
põem a sociedade. Sendo assim, sociedades mais complexas tendem a ter uma
gama de fenômenos mais variados, sociedades mais simples em sua organiza-
ção tendem a ter fenômenos menos variáveis e mais intensos.
A construção que Durkheim (1981) faz da análise social é uma correspondên-
cia necessária para o entendimento diferenciado da sociedade industrial europeia

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em relação às demais sociedades. Em sua análise sobre a divisão do trabalho social,
um dos importantes pontos de partida do teórico francês, a produção da vida em
sociedade depende de uma cadeia de relações que envolvem um determinado
número de indivíduos e funções. Nas sociedades com uma grande divisão de tra-
balho, há uma dependência maior do indivíduo em relação aos demais agentes
sociais. Em sociedades com menor divisão, há menos dependência.
Com esse princípio, foi definida a principal diferença entre a ordem social
complexa da sociedade industrial e a simplicidade das sociedades denomina-
das “primitivas”.
A organização racional da vida em sociedade é então uma derivação dessa
condição de organização. Para Durkheim (1981), não se pode associar de forma
simples a relação dos fatos com os indivíduos em uma sociedade industrial,
porém, em sociedades tidas como “primárias”, isso é possível. A baixa divisão
do trabalho faz com que cada agente social reproduza em suas ações o compor-
tamento de grande parte da coletividade.
Durkheim (1981) analisa as sociedades agrárias tradicionais da Europa, os
camponeses e as mudanças ocorridas com a industrialização. Há uma relação
de dependência maior entre os membros da sociedade industrial, porém a par-
ticularidade é um estímulo mais intenso nas sociedades urbanas. Nas sociedades
agrárias, há menor dependência, mas uma unidade maior em torno de valores
coletivos. Assim, as sociedades primitivas teriam uma organização mais simples,
o que geraria uma facilidade maior de entendimento.17

17 Comte considerava que sociedades que se organizavam de forma física ou metafísica estavam em condição

ANTROPOLOGIA CULTURAL
99

Quantas vezes, ao abordarmos sociedades primitivas, partimos da organi-


zação do trabalho para definir sua complexidade ou não. Consideramos, quase
sempre, que as comunidades primitivas têm uma divisão natural do trabalho
– divisão sexual do trabalho. Essa concepção foi, durante muito tempo, uma
estrutura vital para o entendimento da organização social humana.
Ferdinand Tönnies (1855-1936) reforça a ideia de Durkheim ao considerar
que os aglomerados humanos se diferenciam em intensidade e vínculos entre
seus elementos. Para ele, é necessário diferenciar a comunidade da sociedade.
A primeira é marcada pelo parentesco, a família como instituição principal, sua
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organização se dá pelas heranças e relação direta com o ambiente. Já nas socie-


dades existe a presença do estado, e os vínculos se estabelecem por regulagem
desse na busca de atender aos interesses coletivos.
No sentido contrário ao entendimento estabelecido pelos evolucionistas, o
materialismo histórico dialético, por meio do pensamento de Marx, faz a crí-
tica ao evolucionismo e à condição de que todas as civilizações fazem parte de
uma mesma história de civilizações em diferentes estágios de desenvolvimento.
Ela se sustenta na compreensão da totalidade das relações sociais fundadas nas
condições de produção da vida material. Nela, organizam-se todas as demais ins-
tituições sociais. Dessa forma, deve-se entender que a relação de apropriação que
o mundo ocidental promoveu sobre as diversas partes do mundo faz com que se
observem os povos europeus dentro da condição de dominação.
Logo, para os marxistas, adeptos das teses de Marx, não há uma evolução,
mas uma análise fundada na dominação ocidental. Os conceitos criados sobre os
povos dominados são consequência da exploração capitalista que se estabeleceu
com o desenvolvimento das relações capitalistas de produção. Dessa forma, o que
se tem é um domínio do ocidente sobre a produção da ciência assim como da
produção da vida material. Se as forças produtivas estão nas mãos dos capitalis-
tas ocidentais e se os governos das nações que sediam as empresas transnacionais
se detêm a atender aos interesses desses empresários,a ciência passa a ser um dos
instrumentos para ajudar o interesse do capital.

superior àquelas que tinham sua organização dependente de elementos místicos e religiosos. A falta de uma
organização complexa nas sociedades primitivas denuncia sua simplicidade de organização.

A Questão da Emancipação do Evolucionismo e a Formação de uma Antropologia


II
100 UNIDADE II

Uma das teorias emprestadas à sociologia e à política é o funcionalismo


weberiano, que fala a respeito da construção da subjetividade cultural, que, por
sua vez, seria o sentido que os elementos sociais dão a sua ação em uma relação
com os elementos constituídos dentro da sociedade. O significado da ação está
diretamente vinculado aos cultos que a sociedade estabelece ao longo da sua his-
tória. Em sociedades, em determinados momentos históricos que não se repetem
e que devem ser entendidos de forma singular, não se repetirá uma condição
social, e o que aparentemente é uma continuidade trai o olhar do investigador.
Dar a cada civilização uma existência singular, mesmo que vinculada a outras,

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
é uma revolução que o funcionalismo estabeleceu na análise social.
Porém, o grande passo que a Antropologia deu ao se consolidar como ciên-
cia foi com Franz Boas e Bronislaw Malinowski. Foram eles que romperam com
o evolucionismo como postulado metodológico que se colocava como uma natu-
ralização do olhar ocidental sobre as demais civilizações.

OS PAIS DA ANTROPOLOGIA CONTEMPORÂNEA

Franz Boas (1858-1942) é uma referência na análise das civilizações não euro-
peias. Foi com ele que as pesquisas de campo ganharam significado singular e
passaram a orientar outras abordagens. Para ele, tudo o que se observa em uma
civilização é resultado de uma totalidade que tem que ser entendida. O que não
se pode negar, segundo o evolucionismo moderno, é que o ser humano tem um
potencial inquestionável de adaptação ao meio, seja ele qual for.
Para ele, deveria se separar a evolução econômica da cultural. Há que se
compreender que o potencial de uma civilização em explorar o meio onde ela
se encontra depende de sua capacidade de desenvolvimento que envolve uma
diversidade de elementos. Porém, não se pode generalizar em um determinismo
universal o conceito sobre um determinado grupo. As condições de encontros
culturais com certos ambientes geram condições distintas para o desenvolvi-
mento de aspectos únicos a um determinado grupo social.
Há uma racionalidade nas civilizações ocidentais que deu a elas uma condição
de supremacia sobre a natureza. Para Boas, o desenvolvimento da complexidade

ANTROPOLOGIA CULTURAL
101 101

ocidental não se encontra em outros grupos humanos. Não adianta importá-los


e acreditar que se terá o mesmo resultado ao longo do tempo. Não há receita
de sucesso para uma civilização na trajetória da outra. Uma África, América e
Ásia não será uma Europa. É preciso ultrapassar etapas distintas e em condições
adversas às quais jamais poderão ser colocadas em uma linha de desenvolvi-
mento humano.
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Gilberto Freyre, o clássico da antropologia brasileira, tem em Boas a sua


inspiração. Foi seu aluno e lhe deve parte considerável de seu método que
exalta os encontros que geram as particularidades necessárias para o de-
senvolvimento de sociedades distintas. Em Casa Grande e Senzala, obra clás-
sica do pensador brasileiro, pode-se perceber a herança de Boas. Conside-
ra-se que se dá no Brasil uma condição distinta na formação do brasileiro. O
neto do senhor de engenho se dispõe a descrever um Brasil formado de um
encontro aculturado, mas que se coloca dentro de uma escala de evolução
que não se compara, mas se espelha. Nossa natureza imutável parece ser a
expressão maior da obra do pernambucano Freyre.

FUNCIONALISMO

O funcionalismo surge na antropologia a partir do pensamento de Durkheim.


Contudo, não tem a comparação entre civilizações como um critério válido. O
isolamento é uma condição fundamental para compreender um determinado
grupo humano. Ele é singular em relação aos demais. As semelhanças são apa-
rências. Deve-se viver e conviver com o grupo estudado, bem como entendê-lo
dentro de sua própria organização.
Bronislaw Malinowski (1884-1942) viveu entre os trobriandeses entre 1914
e 1918, momento em que o mundo vivenciava sua primeira guerra mundial.O
polonês radicado na Inglaterra inaugurava a pesquisa participativa para viver

A Questão da Emancipação do Evolucionismo e a Formação de uma Antropologia


II
102 UNIDADE II

em uma comunidade não europeia e buscar conhecer desde seus mais impor-
tantes rituais e instituições até os detalhes dos atos e significados do dia a dia.
Malinowski conhecia a língua trobriand, o que lhe permitiu se aproximar da
comunidade e ser aceito por ela. Um hóspede aluno, como afirma o próprio
Malinowski. Foi aceito e era atento a tudo para aprender o que podia, a fim de
recolher detalhes sobre os nativos. Muito do que se compreende não é ciente ou
consciente para os próprios trobriandeses.
Uma das curiosidades sobre a história de Malinowski é sua formação origi-
nal em matemática. Ele, formado em ciências exatas, vai se deixar envolver pela

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antropologia na Inglaterra. Um dos responsáveis por sua mudança de objeto de
observação foi Sir James Frazer, um estudioso dos rituais mágicos e da religiosidade.
Porém, quando Malinowski decidu viver junto aos nativos da Oceania, revolucio-
nou o comportamento do antropólogo e colaborou para que ele constituísse um
método mais próximo às ciências naturais, por exemplo, para a observação sobre
fenômenos concretos, os quais poderiam ser mensurados. Portanto, não havia mais
a presença de um intermediário, como o viajante, o missionário, o militar ou o tra-
dutor. Agora, o estudo se dava em campo, com o etnógrafo praticando a etnologia
para, enfim, chegar a uma compreensão antropológica18.
Uma das primeiras abordagens de Malinowski
junto aos trobriandeses foi a organização dos kulas.
Eles praticavam o contato entre os nativos e os ingle-
ses, colonizadores do território. O seu papel não era
exclusivamente comercial, por mais que praticas-
sem a troca de produtos entre os trobriandeses e os
comerciantes ingleses. Eles eram a instituição que
permitia o contato do povo das Ilhas Trobriand com
os ocidentais. Uma autorização que tinha seu funda-
mento, seu reconhecimento dentro de uma cultura.

18
Essa separação das funções da investigação se deve, em grande
parte, ao trabalho efetuado por Spencer, mas também por Boas
e Malinowski. Ser etnógrafo é levantar os documentos, observar e
descrever os comportamentos, os objetos produzidos pela civilização estudada. Fazer a etnologia é avaliar
previamente esses documentos, saber separá-los para facilitar sua leitura, sua análise. Essa última fase será
executada pelo antropólogo, dar sentido e totalidade ao que se recolhe e seleciona previamente.

ANTROPOLOGIA CULTURAL
103 103

Outro pensador que se destacou entre os funcionalistas e precursores da


antropologia moderna foi o inglês Alfred Reginald Radcliffe-Brown (1881-1955).
O antropólogo fez pesquisas de campo participativas na África e Austrália, era
formado em medicina e se dedicou ao estudo da organização familiar e das rela-
ções de parentesco. A Organização Social das Tribos Australianas é uma de suas
principais obras.
Radcliffe-Brown tem uma das mais contundentes críticas aos evolucionis-
tas. Para ele, não se pode colocar uma civilização na condição de primitiva por
ter instituições com um longo tempo de duração ou por apresentar um com-
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portamento que, em outra civilização, está ligado a sua origem. Uma mesma
instituição em civilizações diferentes não cumpre a mesma função nem serve
como parâmetro de classificação impositiva. Logo, se para os ocidentais certas
práticas de povos não europeus remontam a pré-história do homem civilizado,
não significa que ela serve como comprovação do atraso ou da condenação à
marginalidade dos valores que representa19.

A CRÍTICA

Os funcionalistas acabaram sendo criticados por serem colaboradores do colonia-


lismo que se lançou sobre a África, Ásia e Oceania. O contato que estabeleceram
com os nativos rompeu a resistência aos interesses ocidentais. A busca de com-
preensão das relações de integração e a harmonia nas diferenças entre culturas
que se encontraram geraram a possibilidade de se estabelecer administrações
ocidentais com a conivência de líderes locais.
Os funcionalistas acabaram sendo criticados por exaltarem o resultado do
encontro entre o ocidental e o nativo sem expor a violência que estava por trás
dessa relação. Essa forma de compreensão permitia que, aos poucos, os nãoeu-
ropeus fossem perdendo sua identidade e a fundissem e reconstruíssem com os

19 Darcy Ribeiro, antropólogo brasileiro, que junto com Gilberto Freyre, é considerado um clássicos
brasileiros, também considerava essa diversidade como uma característica de civilizações distintas. Em suas
obras “O Processo Civilizatório” e “O Povo Brasileiro”, ele deixa claro a aculturação como uma condição
formadora do Brasil.

A Questão da Emancipação do Evolucionismo e a Formação de uma Antropologia


II
104 UNIDADE II

ocidentais. Críticos do funcionalismo acusam pesquisadores de serem coniven-


tes com o extermínio, mais que isso, de dar meios teóricos que o justificassem.
Essa crítica se exaltou com o processo de descolonização da África, Ásia e
Oceania. A independência desses territórios fez emergir a seguinte contradi-
ção:as jovens nações buscavam resgatar sua identidade anterior à colonização
ocidental,porém, seus territórios, suas formas de governo, suas instituições e lín-
gua pátria denunciavam a herança europeia.
O próprio nacionalismo construído nos territórios que foram colônias do
ocidente se formou de maneira aculturada, sendo resultado do caldo “doce” ou

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“amargo” da convivência com o chamado homem branco. Vale aqui lembrar de
Benedict Andersen, um dos analistas da formação dos estados nacionais den-
tro e fora da Europa. Em cada canto onde a nação surge tem na formação de
uma inteligência os intelectuais que darão forma teórica, ideológica e cultural à
formação da pátria. A música, o romance, o folclore, a arte plástica, a religião e
o perfil nacional serão descritos pelas mãos dos intelectuais nacionais. O senti-
mento de identificação com a pátria que brotou de traços coloniais não significa
que a guerra contra o colonizador é rejeitar o amor pela obra que ele colabo-
rou na construção e a qual o nativo declara seu amor, a jovem nação que nasce
da “velha” colônia:
Numa época em que é tão comum que intelectuais cosmopolitas pro-
gressistas (particularmente na Europa?) insistam no caráter quase-pa-
tológico do nacionalismo, em suas raízes no medo e no ódio do Outro,
e em suas afinidades com o racismo, é útil lembrarmos que as nações
inspiram amor e, frequentemente, um amor profundamente abnegado.
Os produtos culturais do nacionalismo – poesia, ficção, música, artes
plásticas – apresentam esse amor com muita clareza, em milhares de
formas e estilos diversos. Por outro lado, quão raro, na verdade, é en-
contrar produtos nacionalistas análogos que exprimam temo e aversão.
Mesmo no caso de povos colonizados, que têm toda razão para sentir
ódio de seus dominadores colonialistas, é surpreendente como é insig-
nificante o elemento de ódio nessas expressões de sentimento nacional.
(...) (ANDERSEN, 1989, p.154-5).

Não se pode deixar de perceber o quanto o nacionalismo constituiu um campo


fértil para a reconstrução da identidade social dos povos que formaram as jovens
nações libertas do colonialismo. Mesmo naquelas nações que surgiram das

ANTROPOLOGIA CULTURAL
105 105

primeiras rupturas coloniais, em especial no continente americano, o naciona-


lismo se exaltou significativamente. Na história brasileira, é possível compreender
os efeitos do nacionalismo durante as duas guerras mundiais.
Dos movimentos nacionalistas de 1922, que fizeram brotar no solo brasi-
leiro o tenentismo, nasceu também a Semana de Arte Moderna. Nessas reações
nacionalistas se discutiu a formação do elemento brasileiro.
O que impressiona nessa busca de entender os fenômenos de construção da
nação e da nova nacionalidade é que o resgate do evolucionismo se fez presente
na Antropologia. Muitos intelectuais expressaram preocupação em relação ao
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futuro das nações que surgiram da descolonização, uma vez que estas buscaram
se espelhar no colonizador para se colocar diante do mundo organizado com
uma complexa rede de produção mundial, pois a economia vivia naquele perí-
odo o que se denominou, segundo Ianni (1999), a nova divisão internacional
do trabalho, resultado de uma expansão das empresas transnacionais ou mul-
tinacionais. Assim, ao mesmo tempo em que se buscava o rompimento com a
colonização, com a submissão militar, gerava-se uma nova ruptura de frontei-
ras. Instalava-se a cadeia mundial de produção.
Muitas vezes fechado em mundo local, em um regionalismo ou nacionalismo,
deixa-se de perceber o quanto a parte faz parte de um todo complexo. Um novo
desenho de uma sociedade mundial que integra as localidades, mas que nem sem-
pre se percebe como integrada, dependente. Nesse sentido, Octávio Ianni afirma:
Ocorre que o que é mais visível e evidente é o lugar, o local e o nacio-
nal, a identidade e o patriotismo, o provincianismo e o nacionalismo.
Ainda que problemático, esse lugar articula geografia e história, espaço
e tempo, servindo de ponto de referência, parâmetro, paradigma. São
séculos de tradições e façanhas, heróis e santos, monumentos e ruínas
cristalizados em valores e padrões, práticas e ilusões, línguas e religiões.
Sob vários aspectos, o enraizamento no lugar e a ilusão da identida-
de podem dificultar a percepção do que é outro, estrangeiro, diferente
ou estranho, assim como o que internacional, multinacional, mundial,
cosmopolita ou global. São gradações da geografia e história, do real e
possível, do ser e devir, que às vezes ultrapassam os dados imediatos da
consciência, as percepções empíricas e pragmáticas, as convicções sedi-
mentadas, as categorias elaboradas, as interpretações conhecidas(IAN-
NI, 1999, p.25-6).

A Questão da Emancipação do Evolucionismo e a Formação de uma Antropologia


II
106 UNIDADE II

A GUERRA FRIA E SEUS CONFLITOS

Um dos períodos em que a descolonização se acelerou foi durante a Guerra Fria


(1945-1989). Momento em que o mundo se viu dividido entre a polarização geo-
política entre o Bloco Capitalista e o Bloco Socialista. Os dois polos tinham em
suas lideranças as chamadas superpotências. No capitalista, os Estados Unidos da
América e, no Bloco Socialista, a ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
As superpotências foram formadas após a Segunda Guerra Mundial e deti-
nham uma organização militar capaz de intervir em qualquer parte do mundo.

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Essa interferência superou em intensidade e quantidade as potências tradicionais
europeias que estiveram à frente dos dois conflitos mundiais. A corrida arma-
mentista, com a posse, pelas duas forças, de armas nucleares, e a quantidade de
tropas organizadas e preparadas para uma intervenção, era descomunal20.
Essa força organizada, e com capacidade de atuação em qualquer parte do
mundo, foi determinante para garantir o interesse das superpotências em ações
pontuais em todo o Globo. As guerras de descolonização contaram com os inte-
resses dessas forças para chegar ao seu intento. A questão era qual das tendências
ideológicas as nações recém-emancipadas adotariam, o socialismo ou o capita-
lismo. O mundo se transformou em um grande “tabuleiro de xadrez” segundo
Henry Kissinger21.
Em conjunto com as forças armadas, há uma produção cultural ideológica
em parte considerável do Planeta. Difícil encontrar um canto deste mundo que

20 Um dos dados curiosos em relação ao final da II Guerra Mundial, quando o ambiente da Guerra Fria se
organizou, é que os números de soldados das duas superpotências aumentaram, mesmo em período de
“paz”. A derrota da Alemanha tinha sido uma obra das nações aliadas, em seu conjunto militar. Contudo, ao
final da guerra, a chamada “volta para casa” não ocorreu para uma parte do corpo militar. União Soviética e
Estados Unidos passaram a convocar tropas e a organizar entrepostos militares, bases armadas em diversas
partes do mundo. Também se aceleraram os acordos mundiais. Os mais conhecidos foram a Organização
do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), liderado pelos Estados Unidos e o Pacto de Varsóvia, liderado pela
União Soviética.
21 Alemão de origem judaica, ele acabou se naturalizando norte-americano e fazendo uma carreira brilhante
na diplomacia. Foi Secretário Geral dos Estados Unidos na presidência de Richard Nixon. Além disso,
ocupou importantes posições na diplomacia internacional, negociando acordos com as forças soviéticas.
Em várias entrevistas sobre a Guerra Fria, foi de Kissinger uma das definições mais interessantes sobre
como entendê-la. Segundo ele, o mundo se transformou em um imenso tabuleiro de xadrez em que os
jogadores (Estados Unidos e União Soviética) manipulavam as peças, as nações do mundo, de forma radical,
sem acordos aparentes. Um jogo disputado com inteligência e dificuldade entre as superpotências, porém,
segundo ele, sem jamais chegar ao extremo de um “xeque-mate”, o que seria a destruição mundial. Kissinger
tinha claro, como parte do mundo, que se um dia ocorresse um confronto entre os norte-americanos e
soviéticos não haveria vencedores.

ANTROPOLOGIA CULTURAL
107 107

não tenha ouvido falar do “perigo comunista” ou do “capitalismo selvagem”. O


discurso de formação educacional foi acompanhado da parcialidade ideológica
na formação de alunos nos mais diferentes níveis de ensino. Os rituais da Guerra
Fria influenciaram o mundo e geraram peculiaridades. As guerras moleculares
que levaram ditadores ao poder ou defenderam aberturas democráticas foram
algumas de suas expressões. Dentro dos mais diversos territórios nacionais, a
emergência da intelectualidade debatendo as correntes ideológicas e se posicio-
nando foi uma constante. A produção cinematográfica gerou inimigos e heróis
ligados à Guerra Fria. A literatura, as artes plásticas, a música e a produção jor-
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nalística também foram importantes meios de abrir um olhar ideológico sobre


o que ocorria no mundo e também sobre qual o significado das ações mundiais
das superpotências.
Na América Latina, nos países africanos e asiáticos, a busca de uma iden-
tidade nacional que fugisse da polarização entre soviéticos e norte-americanos
emergiu. No Brasil, por exemplo, a defesa do “não-alinhamento” automático
com os interesses norte-americanos foi uma tentativa de dar originalidade ao
papel do país na geopolítica mundial. Contudo, a história brasileira é marcada
pela influência que a polarização gerou. O regime militar no país tem dedo do
imperialismo estadunidense. O grau dessa interferência é discutível, mas existiu.
Essa mesma influência é perceptível em países como Argentina, Chile, Bolívia,
Cuba, Angola, Moçambique, Irã etc. O rumo da nação está dentro do “tabu-
leiro de xadrez”. A percepção do que é a identidade cultural das nações repassa
por esse viés. A luta pelo nacionalismo na América Latina, por exemplo, pas-
sou pelo resgate dos valores regionais, das raízes indígenas. O Brasil foi marcado
pela procura por uma identidade nacional. Nunca a busca por saber o que é ser
brasileiro, argentino, boliviano, venezuelano, chileno, angolano, cubano, porto-
-riquenho etc. contou tanto. A Antropologia foi plantada nesse campo fértil e
gerou seus frutos.
Acusada de ter compactuado com o processo de colonização no início do
século XX, ela buscou resgatar a identidade pátria e dar resposta à cadeia mun-
dial de exploração e aculturação. Foi com os antropólogos, em conjunto com
outros tantos intelectuais e artistas, que as nações revistaram o passado e des-
cavaram suas raízes para tentar fortalecê-las, entender suas origens para lhe dar

A Questão da Emancipação do Evolucionismo e a Formação de uma Antropologia


108 UNIDADE II

sentido e buscaram romper com o preconceito gestado dentro da própria socie-


dade nacional. Vamos observar na última unidade deste trabalho o quanto parte
considerável do olhar preconceituoso sobre o Brasil é fruto da construção de
uma visão superficial, sustentada por afirmações contidas no olhar de um bra-
sileiro que pouco sabe sobre o Brasil.
A antropologia marca uma nova etapa no ambiente da guerra fria e na cons-
trução da nacionalidade. Um dos expoentes dessa nova fase é o francês Claude
Lévi-Strauss (1908-2009), que, apesar de uma formação que tendia à Sociologia,
veio a ser um dos primeiros professores da recém-fundada Universidade de São

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Paulo com essa especialidade. Foi também no Brasil que Lévi-Strauss descobriu
a Antropologia. Seus estudos sobre os indígenas brasileiros tiveram início ainda
na qualificação acadêmica. Sua obra, Tristes Trópicos (1955) relata sua viajem
pela região central do Brasil (Goiás, Mato Grosso e Paraná).
Na obra, é impossível não perceber sua frustração com a condição em que
se deu o contato entre os elementos nativos brasileiros e a ocidentalização. Ele
afirma que os nativos não são nem selvagens, nem civilizados, encontram-se
nessa marginalidade absurda da rejeição. O que ele detecta é o início de um des-
dobramento do que ocorreu ao longo da história dos nativos indígenas no país.
Mais do que civilizar, o processo civilizatório exterminou nativos da forma mais
torpe, os adoeceu, os deixou passar fome, eles foram urbanizados pela fome.
Ainda hoje estão nos sinaleiros dos cruzamentos das cidades, nos traços, a lem-
brança de uma floresta que não reflete mais em seus olhos tristes, espelhando o
concreto urbano.
No início de sua vida acadêmica, Lévi-Strauss foi influenciado pelo mar-
xismo. Publicou em periódicos socialistas e atuou de forma engajada na denúncia
da violência cometida contra as populações marginais. No Brasil, sua expedição,
a qual deveria durar um ano, foi reduzida em seis meses por desentendimento
com autoridades do país. Ele era acusado de “ser um olhar socialista” nas terras
dos trópicos. Voltou à França na década de 1950 e se consolidou como um dos
mais importantes teóricos da antropologia.
O estruturalismo tem em Lévi-Strauss (1983) um dos seus maiores defen-
sores. O pesquisador reorganizou uma linha metodológica clássica, na qual a
Antropologia se solidificou na crítica aos evolucionistas. Sua postura em resgatar

ANTROPOLOGIA CULTURAL
109

detalhes da ordem social observada pelos hábitos cotidianos e estabelecer a rela-


ção destes com as instituições determinantes da coletividade permitiu um avanço
significativo na compreensão social. Sendo um dos elementos importantes para
sua observação: a ordem familiar e o parentesco - dois elementos que dão sus-
tentação à antropologia como ciência na atualidade.
As teses de Lévi-Strauss (1983) merecem mais respeito e dedicação pela
importância que o pensador francês tem na formação de um campo de conhe-
cimento da antropologia cultural. Empenhado no entendimento da organização
social, sua visão de estrutura é revolucionária. Ele parte das teses de Durkheim,
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mas é em Mauss que encontrou seu principal mestre. Esse pesquisador valoriza
o inconsciente de uma forma intensa, para alguns críticos, de forma exagerada.
Para Lévi-Strauss (1983), os fatos sociais são uma expressão das estruturas men-
tais. Essa condição de um inconsciente coletivo, mas que se expressa em cada
elemento do grupo, é o interesse do antropólogo francês.
Ele considera, então, que há uma universalidade no modelo de pensamento
do homem. Assim, o modo de pensar dos nativos será o mesmo dos homens oci-
dentais, sendo esta uma posição que se coloca em confronto com o evolucionismo.
Como se dedicou às relações de parentesco, para ele, há uma substituição gra-
dativa do instinto na ordem familiar, fundada inicialmente na reprodução sexual
puramente, para uma ordem estabelecida sobre uma simbologia que toma o sen-
tido da vida. Dessa forma, o instinto é moldado por uma série de estruturas que se
codificam na vida cotidiana. Não por acaso, Freud é um dos pilares do pensamento
de Lévi-Strauss. Esse inconsciente que se expressa nos fatos está na construção
da linguagem. A oralidade, nessa perspectiva, é para o antropólogo francês outro
elemento vital. Outro elemento importante nas teses que defende é a dialética de
Marx, a qual versa acerca da relação com a natureza que constrói uma ordem social
determinada pela busca de superação das necessidades humanas.
Lévi-Strauss aproximou a antropologia da psicologia e a afastou da sociolo-
gia. Ele considerava que a antropologia era uma psicologia social. Na busca de
entender o inconsciente, ele inaugura uma busca importante no entendimento
da vida social. Essa é uma ação que outros pensadores também vão efetivar,
como Eric Fromm, o psicanalista, filósofo e sociólogo germano-americano, que
defendia a necessidade de compreender os mecanismos sociais pela relação que

A Questão da Emancipação do Evolucionismo e a Formação de uma Antropologia


110 UNIDADE II

os indivíduos estabelecem entre si. A psicologia passa a ser chave para a com-
preensão dos fenômenos sociais.

O MARXISMO E A ANTROPOLOGIA

A partir da Guerra Fria (1945-1989), desenvolveu-se uma linha marxista da


Antropologia. Contudo, foi na França que se encontrou um reduto para a con-
traposição ao evolucionismo. Lévi-Strauss sofreu forte influência dessa linha

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marxista. Seu principal discípulo foi Maurice Godelier. O antropólogo francês
buscou trazer o marxismo para a antropologia, fazendo uma releitura da superes-
trutura e das relações de produção, para assim compreender como as sociedades
se organizam a partir de uma relação de apropriação da natureza e como as cons-
tituições simbólicas acabavam por determinar uma visão contraditória entre a
expressão do valor discursivo e a relação material estabelecida.
Essa postura se confronta com a do evolucionismo e, até mesmo, com parcela
do estruturalismo e funcionalismo. Há uma construção de símbolos que servem
para harmonizar os conflitos sociais. Nenhuma sociedade em um determinado
tempo e lugar pode ser comparada com outra. É possível que isso ocorra, mas
sem cair em um determinismo. Essa é a principal arma do antropólogo para lutar
contra a acusação que recaía sobre o marxismo antropológico: o determinismo.
A complexa relação de produção em diversas comunidades tem na terra o
fundamento inicial da apropriação. Partindo desse princípio, inicia-se a discus-
são sobre a necessidade de compreensão acerca de como essa apropriação se
estabelece e como ela envolve os elementos sociais.
Uma abordagem de Edgar Assis Carvalho que trata do marxismo na
Antropologia, na Revista Perspectiva, afirma:
Alguns princípios de natureza metodológica daí decorrem: em primei-
ro lugar, que o conceito de totalidade não é mais entendido como justa-
posições e camadas de instituições fundadas na regularidade compara-
tiva, mas como sistema cuja lógica interna deve ser apreendida em suas
contradições internas, em segundo, que a análise da gênese histórica
e da evolução é sempre posterior ao entendimento da especificidade
interna. Finalmente, em terceiro, que a causalidade estrutural dos pro-

ANTROPOLOGIA CULTURAL
111

cessos de produção e reprodução materiais devem fornecer os vetores


determinantes da dinâmica sócio histórica. Sem dúvida, esses foram
os princípios norteadores das análises teóricas realizadas por Godelier
(3:4), principalmente a dos Incas a partir do trabalho de Murra e a dos
Mbuti, grupo pigmeu pesquisado por Turnbull. Embora se trate de re-
leituras, o destaque dado ao “isomorfismo estrutural” e ao conjunto das
práticas simbólicas irá permitir desentranhar a conclusão que as prá-
ticas religiosas representariam um trabalho simbólico sobre as contra-
dições sociais, no sentido de garantir a reprodução do “sistema social
Mbuti “ e não um conjunto de formulações disparatadas de um bando
de pigmeus africanos (CARVALHO, 1985, p.155-6).
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No Brasil, uma das principais expressões do marxismo na Antropologia é José de


Souza Martins. Ele tem uma longa história na pesquisa das comunidades conhe-
cidas como “marginais”. A figura do camponês é central em suas teses. Para o
referido autor (1993), há uma população marginalizada que serve ao capital, e
ela não é entendida. A questão do “estranho” e do “estranhamento” são temas de
um dos seus trabalhos sobre as relações de apropriação que a economia capita-
lista estabelece por meio dos seus mais variados agentes. Na introdução da obra
“A Chegado do Estranho”, ele argumenta:
O estranho não é, entre nós, apenas o agente imediato do capital, como
o empresário, o gerente e o capataz, mas é também o jagunço, o policial,
o militar. E, ainda, o funcionário governamental, o agrônomo, o mis-
sionário, o cientista social. Embora cada um trabalhe para um projeto
distinto, raros são os que trabalham pela vítima dos processos de que
são agentes. São, portanto, protagonistas da tragédia que aniquila os
frágeis e que, por isso, nos fragiliza a todos, nos empobrece e nos mu-
tila, porque preenche com a figura da vítima o lugar do cidadão, E nos
priva, sobretudo, das possiblidades históricas de renovação e transfor-
mação da via, criadas justamente pela exclusão e pelos padecimentos
desnecessários da imensa maioria (MARTINS, 1993, p.13).

A questão do homem do campo é um elemento fundamental nas teses de Martins.


Ele recupera o olhar da antropologia sobre as populações marginais no campo,
nas chamadas fronteiras agrícolas. No trabalho “A Chegada do Estranho”, ele faz
uma abordagem da marginalização de comunidades e dos encontros promovidos
com os agentes de exploração. Martins desenvolveu a tese das chamadas frentes
de ocupação e integração à economia capitalista como uma forma de utilizar os
elementos da compreensão dos não europeus para estudar as comunidades que

A Questão da Emancipação do Evolucionismo e a Formação de uma Antropologia


112 UNIDADE II

vivem à margem ou são excluídas da chamada sociedade formal.


Mas Martins vai mais longe, em um dos seus trabalhos célebres, ele analisa
o Aparecimento do Demônio na Fábrica, no Meio da Produção, obra que escre-
veu em alusão a sua experiência em uma fábrica de azulejos. O pesquisador vai
analisar as visões que operários tiveram na indústria de azulejos em São Paulo,
na década de 1950. Aqui, há um breve relato do trabalho publicado na Revista
Tempo Social, da Universidade de São Paulo:
O engenheiro que era diretor da Divisão de Terra Cota, em que se si-
tuava a produção de ladrilhos, lajotas e telhas, e que era a pessoa com

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
maior informação e poder de decisão no caso, lembrou-se da ocorrên-
cia, tanto da aparição do demônio quanto da decisão de chamar o pa-
dre. O outro engenheiro lembrava-se das dificuldades técnicas que apa-
receram com a mudança de tecnologia nas novas seções de produção
de ladrilhos, mas não se lembrava do aparecimento do demônio. Um
filho do mestre da seção de escolha confirmou-me que seu falecido pai
fizera em casa comentários a respeito da ocorrência.

O mestre da seção de prensagem dos ladrilhos lembrava-se, também,


das dificuldades técnicas da mudança, mas não se lembrava do caso
do demônio. O antigo chefe da seção do pessoal lembrou-se de que o
padre fora chamado algumas vezes, mas também não se recordava do
caso. E, finalmente, o padre lembrava-se de ter ido duas vezes à fábri-
ca para celebrar missa num altar, diante da imagem de São Caetano,
que havia no pátio interno do estabelecimento, a chamado do chefe da
seção do pessoal. Mas, também não se recordava do caso do demônio
(MARTINS, 1994, p.2-3).

Martins (1994) faz de sua experiência de adolescente (pois trabalhou em uma


fábrica de azulejos) uma fonte para pesquisar as mudanças nas relações de tra-
balho e os efeitos que isso ocasionou na mentalidade dos operários. Ele viveu a
transição da produção manufatureira, fundada nos vínculos familiares, e pas-
sou para uma produção maquinofatureira, típica da cidade de São Paulo, década
de 1950. A dificuldade dos trabalhadores de se adaptarem às novas condições
de produção gera no imaginário a associação com a destruição das relações
estabelecidas em torno da produção. Junto com a mudança nas relações de tra-
balho estavam também chegando ao fim os vínculos afetivos criados em torno
da produção. Os mestres de ofício, típicos das fábricas de azulejos ainda arte-
sanais, estavam sendo dispensados pelos engenheiros. Uma simbologia que se

ANTROPOLOGIA CULTURAL
113

apresenta ainda hoje no ambiente urbano.


A questão urbana irá ganhar um tra-
tamento especial na Antropologia. O seu
entendimento é uma necessidade para uma
sociedade cada vez mais urbana, como já
comentamos anteriormente. A vida urbana,
durante muito tempo, foi o objeto que jus-
tificou a formação da Sociologia como
ciência, e agora vai ganhar uma conota-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

ção cada vez mais Antropológica. Vamos


abordar, na próxima unidade, a análise de
Jean Baudrillard sobre a ordem urbana(a nova faceta da comunidade humana,
a cidade e seu ambiente simbólico da sociedade de consumo).

O AMADURECIMENTO E O DILEMA ANTROPOLÓGICO

Alguns consideram uma revolução, o momento em que a Antropologia se apro-


xima da História e inaugura um novo campo de abordagem que entrelaça a
questão do tempo histórico e o olhar antropológico. Na França, nas décadas de
1960 e 1970, surge o que se convencionou chamar de “História das Mentalidades”,
a qual busca uma ruptura com a história dos grandes acontecimentos. Essa nova
vertente, também chamada de perspectiva dos fenômenos esperados, ganha traços
distintos do que é necessário resgatar na compreensão do homem. As peculiari-
dades, as migalhas, o detalhe, das civilizações, das relações, do ambiente privado,
passam a ser interesses da análise da vida social.
Esse encontro permitirá que tanto a Antropologia como a História caminhem
juntas, entretacem-se com os objetos e compreendam o homem sob uma nova pers-
pectiva. A religiosidade, os alimentos, a moda, os meios de transporte, o clima e a
demografia ganham destaque. É uma etnografia e etnologia da história. Foi Pierre
Chaunu (apud LE GOFF,1995) que chamou essa nova abordagem de cultural, eco-
nômica e demográfica. Nela, busca-se o entendimento do que está aparente. Uma
leitura do homem em seu dia a dia, como Malinowski busca na Antropologia.

A Questão da Emancipação do Evolucionismo e a Formação de uma Antropologia


114 UNIDADE II

Emmanuel Le Roy (1995) faz uma compreensão dessa nova forma de abor-
dagem histórico-antropológica, relacionando o olhar da sociedade em dois
extremos que saem das raízes das relações que sustentam a ação social. De um
lado, encontra-se o comportamento marcado na história, o movimento do parti-
cular e do ser coletivo que ficam escondidos no que ele chamava de “porão social”;
do outro, os que repousam no inconsciente coletivo e se expressam nas ações de
cada um, o “sótão”. Em outras palavras, um dos extremos é o fato racional capaz
de ser compreendido pela pesquisa historiográfica mais objetiva, o quantitativo
e qualitativo observável, e o outro extremo, o inconsciente, o que não se quanti-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
fica, mas tem um papel determinante na conduta da ação social.
A formação dessa abordagem ficou marcada pelo encontro de Jacques Le
Goff com Claude Lévi-Strauss, o antropólogo participou como convidado do
programa de rádio do historiador francês. Na conversa que tiveram nessa oca-
sião, ficou exposto o tom do fundamento metodológico que se estabeleceu entre
os dois campos de conhecimento. Lévi-Strauss afirma que a Antropologia e a
História são uma ciência única. A segunda metade do século XX é marcada pela
proliferação de uma série de obras que coroam essa abordagem: Carlo Ginsburg
em O queijo e os vermes; E. P. Thompson em A formação da classe operária
na Inglaterra; Robert Darton em O grande massacre dos gatos. Porém, uma
coletânea de trabalhos organizados por Jacques Le Goff e Pierre Nora é a mais
marcante nessa nova corrente, os títulos que compõem a trilogia são: História:
Novos Objetos; História: Novos Problemas; História: Novas Abordagens.
A contemporaneidade será analisada pela Antropologia por meio dessa
nova metodologia, sendo que esta fará do homem ocidental o novo objeto de
estudo. Ela irá se dedicar a compreender a vida cotidiana, seus signos, sua forma
de organização complexa, entrelaçando a origem e a atualidade na instituição
social. Pensadores como Jean Baudrillard, Pascal Bruckner e Zygmunt Bauman
são alguns deles. No Brasil, quem se destaca é Roberto da Matta, Jurandir Freire
Costa e João José Reis, na atualidade. Mas não podemos esquecer os clássicos
Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro. Todos eles serão nossos objetos de análise nas
próximas unidades.

ANTROPOLOGIA CULTURAL
115

A ESCOLA DE BOAS

Antes de ingressarmos em nossas próximas unidades, gostaríamos de falar sobre


a Antropologia nos Estados Unidos e destacar o seu principal fundador, Franz
Boas. O pensador, nascido na Alemanha, mas erradicado nos Estados Unidos,
gerou uma linha metodológica influente em várias partes do mundo e também
no Brasil.
Boas, como já falamos, dedicou-se a estudar os grupos de esquimós na
América do Norte e passou parte considerável de sua vida construindo uma
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

metodologia fundada na observação dos elementos culturais, sem perder de


vista a formação biológica associada ao meio. Preocupando-se com o dilema da
superioridade racial ou cultural, ele defendeu a igualdade entre os elementos da
espécie humana, afirmando que essa existe mesmo em condições distintas de
desenvolvimento.
A escola de antropologia que Boas fundou na Universidade de Columbia for-
mou uma geração de antropólogos voltados ao combate do preconceito racial.
Muitos dos movimentos em que Boas está envolvido dentro e fora da América
do Norte estão relacionados a essa temática. Ele combateu, por exemplo, as cor-
rentes políticas que desejavam proibir a migração de estrangeiros vindos da
Índia ou China para os Estados Unidos22. Não podemos esquecer que a pri-
meira metade do século XX foi marcante para os norte-americanos. A Guerra
da Secessão (1881-1885) deixou uma cicatriz aberta em relação à questão racial.
Ao mesmo tempo em que os norte-americanos viram seu país promover o auto-
extermínio, também viram o desenvolvimento econômico necessitar cada vez
mais do trabalhador imigrante. A Marcha para o Oeste foi uma demonstração
disso. Entretanto, a relação entre o branco, inglês e o protestante– considerado o
padrão étnico do país – foi “contaminada” pela presença de novas levas de euro-
peus, latinos, asiáticos e africanos23.

22 Ainda há uma discussão profunda na atualidade sobre os processos migratórios e seus efeitos. Qual é a
condição em que o imigrante chega e como será sua convivência com aquele que se intitula “nativo”. Desse
debate podem-se tirar alguns dos principais problemas da atualidade, a desigualdade econômica regional
e as formas que se utilizam para tentar impedir os efeitos que a migração das populações mais carentes
provoca no mundo. Hans Magnus Enzensberger, autor que iremos trabalhar na próxima unidade, trata
dessa questão como o fato mais importante do começo do século XXI.
23 Hans Magnus Enzensberger, em “A Guerra Civil” (1995) faz uma análise da presença dos hispânicos nos

A Questão da Emancipação do Evolucionismo e a Formação de uma Antropologia


116 UNIDADE II

Outra contribuição importante de Boas para a Antropologia é o seu olhar


biológico sobre a formação do ser humano. Observa-se, nesse sentido, que suas
pesquisas nos permitiram compreender o efeito que a geografia tem sobre o
ser humano e a capacidade desta de torná-lo apto para determinadas ações, é
a Antropometria, uma relação entre a construção que a natureza ao longo do
tempo processa no ser humano. Esse ramo da antropologia vai se transformar
em um campo de conhecimento polêmico quando utilizado para estabelecer a
superioridade racial. Porém, ela é fundamental para compreender também os
efeitos que o meio provoca nos homens e sua adaptação física a certas condições.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Na atualidade, a obesidade é uma denúncia do que a antropometria faz do com-
portamento do ser humano. Por meio dessa observação, podemos compreender
o efeito que uma alimentação industrializada promove na espécie. Há um hábito
alimentar que está associado também à simbologia dos alimentos. A função da
alimentação culturalmente mudou. Esse é um dos tantos campos para o qual a
antropologia urbana, cultural, biológica e social irá se dedicar.
Boas atuou na luta contra o preconceito, sempre é bom frisar. Muitas vezes,
cai-se na acusação irresponsável de que ele fundamenta suas teses no preconceito,
o que é um absurdo. A antropóloga Margarida Maria Moura estudou o trabalho
de Boas e recuperou o conhecimento sobre um dos mais importantes cientistas
sociais do século XX. Sobre a questão da luta contra o preconceito racial na his-
tória de Franz Boas, ela afirma:
Com sua atuação cada vez mais importante nos comitês dos direitos
civis, que procuravam contra-arrestar a crescente entrada de idéias fas-
cistas e mesmo nazistas nos Estados Unidos, o antropólogo desempe-
nhou, em 1940, papel dos mais importantes de mediação diplomática
por ocasião do chamado episódio Paul Rivet, quando pressionado pelo
governo de Vichy. Na França ocupada, anos mais tarde, teria de se de-
cidir sobre a sua mudança para a América, fosse para o México, fosse
para os Estados Unidos, o que finalmente ocorreu. Boas, nesse momen-
to, voltou a fazer uso extensivo de suas forças ainda notáveis, apesar de
diminuídas na sua amplitude e duração. Foi justamente aos 80 anos que
sua longa carreira científica chegou ao apogeu, em 1938.

Estados Unidos na atualidade. Para ele, alguns consideram esse fato como uma invasão. Essa migração
tomou o território estadunidense, mudando suas características originais. Mais do que em toda a sua
história, o país é fruto de uma imigração. Se no passado foi desejada, pela maioria da população, hoje é
vista com desconfiança. O que é irônico, os que apresentam maior preconceito com o imigrante é o recém-
chegado.

ANTROPOLOGIA CULTURAL
117

Nesse ano de 1938 deu-se a invasão da Universidade de Heidelberg


pela SS. Tratava-se da tropa de assalto hitlerista, comandada por Hein-
rich Himmler e diretamente subordinada ao Führer e que dispunha
de status que chegava a ser paralelo – e, às vezes, claramente superior
– aos quadros institucionais da Wehrmacht, o exército alemão. A SS
depredou a biblioteca e atirou, numa imensa fogueira armada no pátio
universitário, os chamados livros perigosos, obviamente, para o na-
zismo. Nessa fogueira foram atiradas às chamas as obras de Marx, de
Lênin, de Freud e de Boas, entre muitas outras. Apesar do obscurantis-
mo militante desse terrível ato, que se encadeou às perseguições mais
hediondas, que atacavam judeus, esquerdistas, liberais, homossexuais,
o antropólogo militou a favor da causa dos direitos civis, destacando
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

suas atividades no American Committee for Democracy and Intel-


lectual Freedom, de cunho público e societário, e mantendo-se à frente
da New School for Social Research, de cunho acadêmico. Foi a New
School que se envolveu diretamente com o problema de extradição
do antropólogo francês Paul Rivet, fundador do Musée de l’Homme
de Paris. O governo de Vichy ocorreu depois da queda da França, em
1940, logo no início da Segunda Guerra Mundial, exerceu autoridade
vigiada sobre a parte meridional da França, não ocupada diretamente
pelas tropas alemãs, e esteve sob a presidência do marechal Philippe
Pétain, preso e condenado após a derrota além (MOURA, 2006, p.132).

Gilberto Freyre (2005), o mais proeminente seguidor do pensamento de Boas


na Antropologia brasileira, será também tachado de preconceituoso em suas
teses, o que não cabe. Da mesma forma que seu mestre, ele deve ser entendido
como um homem de seu tempo. Seus trabalhos, portanto, são marcados pelo
olhar de quem viveu uma transição importante na observação dos fenômenos
sociais. Essa mudança atingiu uma importante questão da atualidade, a qual
nos permite olhar para o homem ocidental com outros olhos e ver nele o que
os primeiros antropólogos viram nos chamados “primitivos”, “bárbaros” ou, nos
primórdios, “selvagem”.

A Questão da Emancipação do Evolucionismo e a Formação de uma Antropologia


Nessa entrevista à “Revista de Antropologia”, Claude Lévi-Strauss fala de sua experiência
no Brasil,quando esteve trabalhando no país nas décadas de 1930 e 1950. Ele fala sobre
as suas viagens pelo interior brasileiro e do contato com o povo e com as comunidades
indígenas. Leia um pequeno trecho da entrevista dada à professora Beatriz Perrone Moi-
sés, do Departamento de Antropologia da USP:
Beatriz: No início do “Prólogo” a Saudades do Brasil o senhor se refere a uma memória
olfativa das expedições pelo interior. De que outros odores o senhor se lembra?
Lévi-Strauss: “Como se sabe, na época em que fui para o Brasil [1935], viajávamos de
navio, não havia aviões, e os navios eram também cargueiros, e faziam muitas escalas
[o navio em que veio Lévi-Strauss partiu de Marselha e fez escala em Barcelona, Cádiz,
Argel, Casablanca e Dakar antes de aportar em Santos]. Nunca me esquecerei que, ao
chegar — estávamos em alto mar havia dezenove dias, acho — e a primeira percepção
que tivemos do Novo Mundo — ainda não se podia ver a costa — foi um cheiro. Um
cheiro difícil de descrever, porque as associações são fáceis demais: cheiro de tabaco,
cheiro de pimenta... enfim, tudo isso está ligado ao Novo Mundo, não sei se é exatamen-
te isso. Mas é sem dúvida uma das dimensões da natureza brasileira, que não é apenas
visual, ou tátil, é também olfativa”.
Beatriz: E quais seriam esses “odores do Brasil”?
Lévis-Strauss:  «Há muitos outros odores, que emergem ao acaso. Lembro-me, por
exemplo, que depois dos Nambikwara, estávamos indo na direção do Madeira, e ainda
não era a floresta amazônica, era mais o campo, uma espécie de floresta seca, e de re-
pente, montado no cavalo, vi no solo um campo de abacaxis selvagens. Bastava inclinar-
se bem baixo, sem desmontar, para arrancar os frutos e comê-los. É uma das sensações
gustativas e olfativas que ficaram porque não era como o abacaxi que conhecemos, era
um abacaxi com um cheiro de framboesa absolutamente extraordinário. Há muitos e
muitos outros cheiros, mencionei esse apenas como um exemplo... há ainda o cheiro
do fumo, cheiro de fumo de rolo em toda parte. Aliás, era o que eu fumava, em folhas de
milho, que davam ao tabaco um sabor e um cheiro muito muito particulares, que tam-
bém ficou. Há também a pinga...”
Beatriz: O senhor gostava de pinga?
Lévi-Strauss: «Ah, sim, gostava muito! E me lembro também da fabricação, uma vez por
semana, da rapadura,nas fazendas do interior, para o consumo dos peões, de seus filhos
e de suas famílias, isso também tinha um cheiro e um gosto muito especiais».
O restante da entrevista você pode ler acessando o link disponível em: <http://www.scielo.br/
scielo.php?pid=S0034-77011999000100002&script=sci_arttext>. Acesso em: 5 set. 2014.
119

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A jornada vivida pela Antropologia até seu reconhecimento como ciência não
foi fácil. Sendo um produto da expansão ocidental e estando na linha de frente
das conquistas efetuadas pelos europeus diante de populações condenadas a se
submeterem, o Antropólogo tinha dilemas como: “Qual é a finalidade de sua
ciência?”, “Estaria a Antropologia condenada a um fim, quando não existissem
mais povos não europeus?”.
A conquista promovida pelo ocidente encurralou o antropólogo para ser
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

uma testemunha da superioridade europeia. Ele se negou. Venceu em meio à


pressão e ao extermínio de seu campo de conhecimento. A Antropologia sobre-
viveu e se diversificou. Hoje estabelece um intenso diálogo com a História e a
Sociologia, e vive nessa fusão e desdobramento que não parece ter um fim ou
necessitar de um.
O mais importante para aquele que se propôs a ser um cientista social é
perceber que há uma diversidade de métodos que permitem a abordagem da
trajetória humana. Há um rompimento das barreiras entre as áreas de estudo
dos homens, o que deixa mais à vontade os pesquisadores e mais ricos os resul-
tados dos estudos.
As correntes metodológicas da Antropologia influenciaram muitos pensa-
dores, inclusive os brasileiros, e permitiram que eles retrabalhassem sociedades
ocidentalizadas, como a brasileira, assim como todas aquelas que estão vivendo
mudanças pelo contato constante com os valores ocidentais. A indústria de sím-
bolos não para.
O ambiente atual, marcado pela economia em escala mundial, envolve as
civilizações das mais diferentes partes do mundo em uma padronização de ele-
mentos culturais a favor de interesses mercantis. Contudo, a regionalidade ainda
tem a capacidade de recriar sentidos. Onde houver a necessidade de entender
o legado humano em toda a sua intensidade, a Antropologia estará presente e
desvendará o “Homem por Inteiro”, como diz Laplantine.

Considerações Finais
1. A expansão ocidental proporcionou um ambiente para a formação da Antro-
pologia como ciência. Dela, nasceu às posturas “evolucionistas” dos primeiros
pensadores, o que caracterizou, para os críticos dessa postura, uma reafirmação
da supremacia Ocidental. Sendo assim, reflita por que isso ocorreu.
2. Dois pensadores se destacam como clássicos da Antropologia: Franz Boas e Ni-
colau Malinowski. Os dois apresentaram posturas distintas em relação à obser-
vação das civilizações e dos homens que a compunham. Eles defenderam a
pesquisa participativa. O que isso significa? Escreva com suas próprias pa-
lavras.
3. O século XVIII foi marcado por um novo conceito de homem, uma ideia de or-
dem racional que, colocou os homens em uma condição de igualdade natural:
somos todos seres humanos. No entanto, essa condição será abordada de forma
diferente por vários estudiosos. Sendo assim, leia as afirmações abaixo sobre
o modo como Hegel entendia as várias civilizações humanas e de que forma
isso foi importante para a formação da Antropologia enquanto uma ciência
que a princípio servia para detectar as diferenças entre os europeus e os
“outros”:
I. – Hegel entendia que as diferenças entre as civilizações se centravam no po-
der que elas tinham sobre a natureza e, portanto, em sua capacidade de se
organizarem. Quanto mais organizada e racional fosse uma civilização, mais
“evoluída” ela seria.
II. – Para Hegel todas as civilizações pertencem à espécie humana, desse modo,
não podemos emitir classificações para diferenciá-las.
III. – Hegel entendia que por mais que as civilizações sejam todas formadas por
seres humanos, elas estariam vivendo estágios diferentes.
IV. – As premissas de Hegel foram fundamentais para a formação de uma Antro-
pologia que nascia enquanto uma ciência que buscava estabelecer diferenças
entre uma Europa “civilizada” e os demais povos.
É correto, apenas, o que se lê em (enumere somente opção):
a. ( ) I e II.
b. ( ) I, II e IV.
c. ( ) I, III e IV.
d. ( ) I, II e III.
e. ( ) I, II, III e IV.
MATERIAL COMPLEMENTAR

Olhar Distanciado
Claude Lévi-Strauss
Editora: Martins Fontes
Sinopse: neste livro, Claude Lévi-Strauss busca esclarecer seu
método, sua forma de abordar temas como rituais místicos, família
e parentesco. Essa obra é o resultado de um longo trabalho de
observação de comunidades nativas, incluindo aquelas com as quais
conviveu no Brasil.
Lévi-Strauss, um estruturalista, fortemente influenciado pelo
marxismo, coloca sua experiência de pesquisador e esclarece o
método de pesquisa participativa que defende.

Dersu Uzala
Diretor: Akira Kurosawa
Ano: 1975
Sinopse: o filme faz um relato sobre as expedições russas
para a região do Lago Volga, na Sibéria. Vladimir Arseniev,
comandante de duas expedições, se relaciona com nativo
Dersu. A história relata a amizade que se desenvolveu entre
esses dois personagens e, muito mais que isso, a relação do
homem com o ambiente natural. A diferença do conceito
entre a forma como o homem nativo, Dersu, e o ocidental,
Capitão Vladimir, se posicionam diante da exploração do meio
ambiente.
A obra é resultado do livro de Vladimir Arseniev, o capitão russo,
que relata sua relação com DersuUzala e a convivência com
os homens da natureza, com o ambiente que gerou uma forte
admiração com o lugar. Uma natureza que as forças ocidentais
que o capitão Arseniev representou.

Material Complementar
Professor Me. Gilson Aguiar

A CRISE DO HOMEM

III
UNIDADE
OCIDENTAL

Objetivos de Aprendizagem
■■ Perceber a importância da Antropologia como ciência para a
compreensão do homem contemporâneo.
■■ Entender os principais dilemas da vida urbana e como se tem a perda
da racionalidade e da complexidade da sociedade atual.
■■ Ter uma postura crítica em relação ao homem cultural
contemporâneo.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ A crise de identidade da Antropologia como ciência
■■ O Estudo do homem contemporâneo e seus dilemas
■■ Os novos rituais de consumo e a simbologia como diferença
125

INTRODUÇÃO

Olhar para si não é uma tarefa fácil. Quando a Antropologia se viu diante da
possibilidade de desaparecer o seu principal objeto de estudo, as civilizações
não ocidentais, voltou o olhar para si mesma. Estudar o Ocidente passou a ser
o interesse dos antropólogos. O desafio de olhar o ocidente por uma ciência
constituída na busca de justificar sua superioridade. Hoje, o que chamamos na
Antropologia do “olhar para si mesmo” é um desafio. Entender o homem oci-
dental com os mesmos critérios que se buscou entender os nativos australianos
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

ou os indígenas das Américas.


Como definir o que é ou não um objeto de estudo quando se fala da análise
do homem ocidental? A Antropologia correu e corre o risco de se misturar com
a História e a Sociologia, mas não parece temer essa possibilidade. Ao contrário,
coloca-se cada vez mais impregnada e entranhada nessas duas ciências. Dessa
forma, transforma-se em uma extensão delas ou ainda faz delas complemento.
Por isso, o Antropólogo é um historiador e sociólogo do mundo dos detalhes,
uma vez que ele se atenta àqueles elementos que a historiografia tradicional não
ousou observar e os quais não passou pelo crivo do sociólogo.
A História das Mentalidades, ou do cotidiano, é uma influência da
Antropologia. De repente, o historiador se apodera da etnografia e faz dela uso
abusivo, redescobre objetos históricos nos talheres, no sapato, na roupa, nos ali-
mentos, nos rituais mortuários, na decoração, na arquitetura urbana vivida com
glamour simbólico. Muitos dos pensadores das mentalidades generalizavam o
termo “tudo é história”.
A sociedade atual vive a “Era do Globalismo”, como afirma Ianni (1999). O
cientista social brasileiro descreve a cadeia mundial de produção que se estabe-
leceu após a Segunda Guerra Mundial e que está em curso na atualidade. Essa
integração de relações produtivas gera produtos mundiais e símbolos globais.
Atrás dessa cadeia de produção, há um homem em mudança.
Nesta unidade, entenderemos como a sociedade atual passou a intrigar o
antropólogo com suas instituições e rituais. As simbologias urbanas, suas tribos
e suas segmentações passaram a ser o objeto de estudo dos antropólogos con-
temporâneos. A dita “Aldeia Global” também é um lugar de tribos, elas estão

Introdução
126 UNIDADE III

espalhadas por diversos lugares e geram uma diversidade urbana de pessoas e


espaços nas grandes cidades. Somente a sociedade industrial da cadeia global
de produção pôde gerar essa possibilidade.
Podemos considerar o exemplo da China. Uma nação que faz parte inten-
samente da cadeia mundial de produção de bens. O parque industrial chinês é
responsável pela produção de uma grande quantidade de bens industriais que
são consumidos em todo o mundo. Se a China está distante fisicamente, sua par-
ticipação em nossa vida está perto, pois muito do que consumimos vem de lá.
Contudo para nossa compreensão, a China ainda é mistificada, distorcida, na

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
interpretação que encontramos na mídia.
Muitas das marcas de produtos mundiais que encantam os chineses tam-
bém são desejadas por nós. Elas provocam e simbolizam uma padronização do
mundo. Porém, contraditoriamente, possuir produtos é buscar singularidade.
Vivemos a dualidade entre a identificação com a massa e a nossa busca de uma
particularidade que nos construa como únicos. Mas, por incrível que possa
parecer, os objetos de consumo permitem isso. Essa identificação de particula-
ridade com um bem industrial ou um serviço produzido em larga escala. Todos
desejam a mesma coisa, mas ter o objeto desejado nos faz diferentes, cobiçados.
Nossos rituais ficaram massificados, ao mesmo tempo em que se comuni-
cam com cada indivíduo. Praticamente, os bens de consumo que se encontram
nas prateleiras de um supermercado, em uma vitrine de shopping center, dese-
jados por uma multidão, são adquiridos pelo sentimento, principalmente, que
despertam em cada um. Claro que a compra de um determinado produto é tam-
bém uma escolha racional, mas seu principal apelo para aquisição está longe de
uma racionalidade.
Nas cidades, há uma identificação com elementos que nos permitem ter um
pertencimento em meio à multidão. O camponês e a vida agrária são reproduzi-
dos na cidade em forma de produtos cujas embalagens lembram a vida bucólica.
Mas, é apenas no rótulo que a foto romântica dos campos é expressa, sua ver-
dadeira origem não passa, nem de perto, pelo que a aparência busca associar.
Essa sociedade cheia de simbolismos e difícil de ser entendida com uma
racionalidade lógica é hoje o campo da Antropologia. Os rituais da sociedade
urbana são é um mar de objetos infinitos à espera de serem entendidos.

A CRISE DO HOMEM OCIDENTAL


127

A CRISE DE IDENTIDADE DA ANTROPOLOGIA COMO


CIÊNCIA

Há um homem em crise, ou seria apenas a dificuldade de entendê-lo? Existe


sim uma mudança em andamento. A sociedade se transformou e, atualmente, é
permeada por relações muito mais complexas e integradas do que aquela em que a
Antropologia deu os seus primeiros passos. O desenvolvimento de uma economia
global mudou o sentido do que é o estudo de uma civilização. A ocidentalização
se propagou pelo planeta e fez com que muitas das diferenças que marcaram a
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

necessidade de entendimento dos grupos não ocidentais desaparecessem.


As fronteiras que eram estabelecidas entre as sociedades, ao mesmo tempo
em que ruíram, constituíram novas fronteiras. Elas não são as mesmas definidas
pelo estado nacional autônomo como território pátrio. Há uma nova fronteira,
dentro de cada país e unindo pessoas que não tem, sempre, a mesma nacionali-
dade. Os bens de consumo, o acesso a determinados lugares, a aquisição de certos
serviços, identificam, cada vez mais profundamente, uma grande quantidade de
pessoas espalhadas pelo mundo. Para que se faça pertencer a essa “irmandade”
do consumo de bens, é necessário que se construa uma linguagem universal que
perpassa em grande parte todos os territórios.
O ambiente cultural distinto entre os grupos humanos, o qual diferenciou
durante séculos a civilização ocidental das demais civilizações, agora está aplai-
nado por uma diversidade exótica. Uma diferença que deixa de ser profunda.
Por mais que se anuncie que certos símbolos ainda carregam o valor fundamen-
tal das fronteiras, elas são frágeis. No restaurante de comidas típicas, seja ele qual
for, repousa a variedade de um cardápio que deixou mais leve a convivência.
O turista entra na sala de estar, conhece o que muitas nações nunca serão,
o lugar das visitas, o ambiente dos hóspedes, e consideram que sua experiên-
cia lhes dá o título de cidadão do mundo. Esse ser que deseja ser chamado de
aventureiro, leva uma câmera e percorre locais exóticos que nada têm de sur-
preendentes, ele não passa de um turista. Ao final, o território do estranho está
transformado em “parque temático”.

A Crise de Identidade da Antropologia como Ciência


128 UNIDADE III

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A expedição mais simples sobre qualquer território torna-se, para alguns, a alcu-
nha de “cidadãos do mundo”. Fazer turismo virou experiência de vida. Por isso, se
aceita-se com facilidade a discussão de que a paz mundial é possível, e conviver
com a diferença é uma possibilidade ao alcance de todos, se ela não aconteceu
ainda é porque esbarra na “má vontade”. Estamos diante da falta de dimensão da
verdadeira diferença e não se conhece com clareza nem o território onde se vive.
Os seres humanos estão se movimentando no que Mar Augé (1994) chama
de “não lugares”, aqueles espaços onde não há permanência, mas uma mudança
constante: os supermercados, os shoppings, os aeroportos, as casas de espetá-
culo, o restaurante, a loja, a livraria etc., ou seja, a grande maioria dos lugares
onde convivemos. Podemos considerar que uma nação, seus pontos turísticos
e sua diversidade exótica acabam por se tornar um não lugar. Eles estão sem-
pre se movendo. Há sempre algo novo a ser instalado no ambiente que se deseja
impressionar. Se no museu a exposição é trocada para permitir que novos ele-
mentos históricos e culturais possam nos dar uma noção de nossa civilização,
os ambientes de consumo, como shoppings, aeroportos, supermercados, maga-
zines estão a serviço de uma exposição de bens que são raros, mas foram feitos
para serem consumidos pelos visitantes consumidores.
Raros são os ambientes onde a identidade social é constituída de forma
“definitiva”, dentro de condições duradouras. Lugares onde se estabelecem as
permanências e a condição de uma existência humana do princípio ao fim. Os
lugares onde o conhecimento científico, onde as técnicas, a arte, ou a grande des-
coberta que mudou as nossas vidas estão em exposição.

A CRISE DO HOMEM OCIDENTAL


129

Estamos diante de uma sociedade em que tudo se desmancha da mesma forma


que se constitui. Nada permanece como a realidade de um único ser humano
e seus objetos. Tudo é “líquido”, como afirma Bauman (2003), e “se desmancha
nas mãos”. A realidade que nos conduz é volátil, pode desaparecer e se consti-
tuir em qualquer outra coisa e gerar um desprendimento dos símbolos que nos
constituem com nossas origens.
Nessa condição social em que se multiplicam símbolos por todos os lados,
os seres humanos perdem a referência da continuidade e convivem com a des-
continuidade constante. O descomprometimento é a regra para sobreviver sem
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se tornar descartável. Devemos nos desprender de qualquer coisa que remeta


a algo que nos anteceda ou que vá permanecer além da nossa existência. Para
uma grande parte da massa, nunca foi tão ruim fazer parte dela, ser mais um.
Na ilusão de ser único, é preciso ter tudo o que se deseja e praticar o desapego
em relação aos outros. Porém, contraditoriamente, é intolerável ser descartado.
O ser humano contemporâneo faz parte da multidão. Ele está dentro de um
mundo desconhecido, porém, que se resume em símbolos
Nas roupas, nas comidas, nas músicas, nos rostos multiplicados em outdoors
e luminosos, estamos mergulhados no símbolo que está em todos os lugares. Em
cidades pequenas, é a Igreja que determina o ponto de referência, já nas grandes
cidades, são os símbolos mundiais, presentes em quase todos os cantos e trans-
formados em monumentos, que indicam os sentidos do lugar e de quem somos.
O que já foi nas civilizações a construção de gerações, o monumento que
ficou para a posteridade como o símbolo de uma civilização – de uma história
de existência com lugares singulares e construídos dos trabalhos sociais – agora
são ambientes mutáveis pelas mãos dos arquitetos. Esses espaços não vão durar,
eles são efêmeros tanto quanto o desejo de estar neles, de adquiri-los, de estar
neles com uma extensão da sensação imediata que provoca. Por exemplo, ir a
uma festa pode ser apenas o desejo de dizer: “estive lá!”.
Nunca se construiu tantos lugares coletivos para despertar a individuali-
dade. Queremos estar sempre “bem acompanhados”, de preferência com nós
mesmos, porém, não sabemos quem somos.
Recentemente, uma reportagem que falava de cidades adensadas destacou o
apartamento particularizado, o qual se caracteriza por ser um ambiente para uma

A Crise de Identidade da Antropologia como Ciência


130 UNIDADE III

só pessoa. Essa mesma pessoa, quando sai, encontra em todos os lugares praze-
res, pequenos objetos e serviços, todos simbolizados e voltados ao personalismo.
Se quisermos adquirir os objetos de desejo, necessitamos única e exclu-
sivamente de um cartão, o chamado “dinheiro de plástico”. Ele nos estimula a
aquisição sem sentimento de culpa. A aquisição, por sinal, se transformou em
nossa grande meta na vida, pois ela nos garante a busca da perfeição dos obje-
tos. Reproduzimos nos bens que adquirimos um certo ardor e perfil de alguém
perfeito para encobrir nossa humanidade imperfeita. Nunca foi tão insano e
insensato ser humano.

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O CONSUMO NAS CIDADES

As cidades são o ambiente do ser humano cercado de objetos. É nela que convi-
vem mais da metade das pessoas que habitam o Planeta. As urbes são um lugar
confuso, cheio de contradições, onde se desenrola parte considerável dos pro-
blemas sociais. A miséria e a riqueza podem conviver lado a lado nos espaços
urbanos inclusive, muitas das cidades de grande porte apresentam essa realidade
pois são fatiadas e recheadas de lugares dos sonhos e ambientes de pesadelo.
Não quero fazer aqui uma crítica ao planejamento urbano, de forma alguma.
É importante entender a cidade. É fundamental compreender o que ela significa
e buscar fazer da convivência urbana uma condição de vida melhor. A cidade é
feita de pessoas, cidades devem ser para pessoas. É importante entender que a
cidade deve ter o sentido de coletividade que ela representa e é, na sua essência,
a construção de muitas mãos. Não há outra definição para a cidade que não seja
o encontro. Porém, o que assistimos em grande parte dos espaços urbanos é a
busca de garantir a privacidade no ambiente coletivo. Podemos, nesse sentido,
observar o crescimento das empresas de segurança e dos aparatos de vigilân-
cia dentro e fora dos ambientes privados. Os “inimigos” estão próximos. A luta
de “todos contra todos” é na cidade, para muitos, uma regra. Por isso, “vigiar e
punir” está incorporado a vida urbana como um sinônimo de “segurança”. Para
isso, as cidades se transformaram em um ambiente cinematográfico: “sorria,
você está sendo filmado”.

A CRISE DO HOMEM OCIDENTAL


131

LÁ SE FOI O OUTRO. E AGORA, O QUE NÓS SOMOS?

Quando a ocidentalização iniciou sua longa jornada, ela levou o homem europeu
para os cantos mais remotos do Planeta. A viagem marítima era uma aventura
que, em intensidade, pode ser comparada à dos astronautas diante de um espaço
incerto. Esses aventureiros, então, conquistaram novos territórios se impondo
sobre o outro, o estrangeiro.
Nas grandes navegações, o mapa recortava um mundo que não era conhe-
cido com precisão. Os desenhos cartográficos que orientaram as viagens de
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Colombo, de Américo Vespúcio, de Fernão Diaz, ou Vasco da Gama eram ape-


nas possibilidades incertas. Hoje, conhecemos as partes esse mundo com olhares
fotográficos que estão acima de nós, por isso, se há um pedaço de terra desco-
nhecido, terá sido distração e não desinformação. Foi por conta dessa incerteza
que se buscou dar aos povos encontrados um significado, assim foram seleciona-
dos os hábitos, reconhecidos os lugares, pesquisadas sua fauna e flora, para que
esse novo mundo pudesse ser catalogado dentro da normalidade. Lembrando
que a “normalidade” é o comportamento do homem ocidental. As navegações,
a conquista de povos na América, na África e na Ásia levaram ao extermínio.
Muitos dos símbolos usados pelas civilizações exterminadas e submetidas “pas-
seiam” diante de nossos olhos nas cidades.
Hoje, os símbolos estranhos não foram desvendados ao longo do tempo pelo
chamado civilizado. Originais, em seus lugares, os símbolos dos seres humanos
nativos. Eles eram tudo o que seus símbolos significavam.
A simbologia se alterou ao longo da história e ganhou um significado des-
prendido de sua origem. O que antropólogos como Boas e Malinowski ou, antes
deles, os missionários como Bartolomé de Las Casas viram diante de si, o des-
conhecido, agora está vulgarizado. Por isso, o que relataram em suas viagens foi
a intensidade do primeiro encontro e das buscas de definir um destino que iria
determinar o futuro. Concluir se o selvagem era bom ou mau, entender como as
comunidades se organizavam para produzir a existência e qual era o papel dos
símbolos como uma expressão das relações que as comunidades nativas prati-
cavam era um trabalho árduo de investigação.

A Crise de Identidade da Antropologia como Ciência


132 UNIDADE III

Na atualidade, os símbolos ganham a identificação de multidões e territórios


planetários. Porém, o que realmente mostram e o que denunciam da realidade de
quem se sente representado por eles? Seriam os símbolos uma criação humana
ou uma orientação para a desumanização humana na atualidade? Acredito mais
na segunda hipótese.
Industrializamos a cultura, temos massificado as marcas que originalmente
remontam civilizações que nunca conhecemos. Mas, resumimos a complexidade
do mundo em um foco estético sobre o território romantizado e suas imagens
trabalhadas para gerar um efeito de aproximação harmônica. Tudo o que não foi

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a conquista planetária, marcada pela violência, pela destruição, pela resistência,
pela ocupação, pela diversidade espalhada e autônoma nas diversas civilizações no
Mundo, foi rompida e se fez das marcas do antigo “estranho”, “bárbaro”, “nativo”,
“selvagem”, uma ilusão simbólica que nos cerca associadas a produtos. A diver-
sidade de produtos nas prateleiras dos mercados tem por detrás a mesma lógica
do ambiente aparentemente estranho do documentário televisivo ou reproduzido
nos sites dentro dos ambientes virtuais. Assistimos seguros à exposição harmô-
nica da história de civilizações extintas, seus mistérios, suas características, sua
eliminação, sem nos sentirmos “culpados” ou relacionados com o que vemos.
Se no passado havia tribos remotas, elas ocupavam um espaço único e repre-
sentavam a possibilidade exclusiva de se conhecer determinada tribo somente se
fossemos onde elas estavam. A viagem e o viajante eram necessários para poder
se sentir o cheiro, o gosto, e para se colocar em frente ao estranho. O convívio
exigia a alteridade. A relação com o estranho causava o sentimento de estra-
nheza, havia, portanto, a dificuldade de compreender os gestos, as intenções e
os elementos que constituíam a vida de quem não se conhecia. Não por acaso a
destruição de populações nativas se justificou das mais diferentes formas. A ine-
xistência da alma, a animalidade, a perversão e a maldade foram algumas das
justificativas que legitimaram extermínios. Teorias de superioridade, sejam elas
civilizadoras ou raciais, tomaram formas diversas e apontaram para uma única
direção, o extermínio do outro, do estranho.
Hoje, a intolerância em relação ao que se chama de estranho se multiplica.
Na Europa, diante das câmeras de televisão, faz-se associação de pessoas com
animais, joga-se a banana ao jogador de futebol, ele é chamado de macaco diante

A CRISE DO HOMEM OCIDENTAL


133

do mundo, via satélite. A banana ganha o mundo e o personagem discriminado


vira um símbolo de resistência ao preconceito. Simbolizando o mal, o exorciza-
mos aparentemente.
Muito do que se chama de preconceito racial é, na verdade, o temor da dis-
puta pela sobrevivência. O que se quer é reagir ao temor do imediato, da vontade
de eliminar a concorrência sobre a vida cotidiana. Os nazistas de hoje nada lem-
bram os seguidores de Hitler nas décadas de 1930 e 1940. Eles, atualmente, querem
apenas propagar o medo para se sentirem úteis. Os imigrantes ocasionam raiva
aos chamados “nativos”, despertam o preconceito, principalmente porque são
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pobres. Despertam uma guerra cheia de símbolos. Quantos andam por aí com
as marcas do nazismo estampadas nas roupas ou tatuadas no braço. Exigem res-
peito e estão prontos para combater por uma causa que desconhecem. Diferente
do passado, eles não conhecem a ideologia que seus símbolos representam.
Na antiguidade, assim como entre os povos que habitavam diferentes par-
tes do Planeta, o uso da lança demonstrava a clara condição de caçador. Ter a
arma de sobrevivência anunciava simbolicamente o poder que o seu portador
tinha de tirar a vida. Não por acaso, o acasalamento estava associado à condi-
ção de poder garantir a própria sobrevivência. A pintura no rosto ou no corpo
do caçador demonstrava o que sua habilidade comprovava com certeza, ele era
tudo o que os símbolos associados a ele indicavam, um vencedor, o herói. Hoje,
a simbologia não significa essa condição. O que expressa a vitória pode estar nas
mãos de quem não tem nenhuma habilidade ou capacidade de competir. O ati-
rador de bananas inveja o sucesso do homem que chama de “macaco” por ter
feito sucesso no mundo simbólico dos falsos homens civilizados.
Criamos a facilidade de manipular em nossas arenas o encontro e o desencon-
tro. Ao mesmo tempo em que promovemos os grandes feitos de uma sociedade
que avança e ganha espaço como uma aparente comunidade, ela também pro-
move as ações de violência com proporções tão intensas como quanto as pessoas
se relacionam ou interdependem umas das outras. Na sociedade industrial con-
temporânea, há uma cadeia de produção da vida humana em larga escala. Ao
mesmo tempo, as relações estabelecidas entre os indivíduos se intensificam, inter-
mediadas por meios de comunicação. Nunca foi tão fácil “fazer um amigo”, mas
ele é, quase sempre, virtual.

A Crise de Identidade da Antropologia como Ciência


134 UNIDADE III

Outra interdependência que marca nossa vida nas cidades e nossa relação
com os meios de comunicação é sermos testemunhas em tempo real da fata-
lidade. Ela é transmitida para todo o mundo em tempo real. Ao ligarmos a
televisão ou ao acessarmos um site de notícias, as informações vêm em “tempo
real”, dando notícias do mundo distante. A ação de um homem só ganha noto-
riedade mundial se for propagada na mídia eletrônica, ou nas emissoras de TVs
que percorrem o mundo via satélite. Esse ambiente de comunicação é constante,
contudo, como falamos, é virtual. Ele se expressa na transmissão da propagada
carregada de mensagens que nos chegam aguçando quase todos os nossos sen-

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tidos e promovendo o nosso desejo. Essa promoção da fantasia tem um efeito
anestésico sobre a condição real.
A nova forma de organização e relação social contemporânea tem seus sím-
bolos, seus rituais. Onde eles se sustentam? Como entender o significado das
instituições contemporâneas? Quantas instituições mudaram ao longo do tempo,
o que é da própria natureza da vida em sociedade, mas as mudanças na atua-
lidade parecem rápidas e provocam efeitos na vida em sociedade. Debruçar-se
sobre essa sociedade para entendê-la é o desafio ao qual a Antropologia se dispôs.
Uma crise se instalou na Antropologia quando o processo de mundialização
da produção se ampliou. Após as duas grandes guerras mundiais (1945), se inten-
sificaram-se os meios de integração da economia, das relações, das migrações,
dos produtos, dos símbolos. Os meios de comunicação tiveram nessa integra-
ção um papel crucial. Cada canto do mundo se tornou uma parte integrante de
um caleidoscópio que se movimenta e gera mudanças diversas dentro de uma
engrenagem planetária. Nem todos são ligados a ela da mesma forma, mas com
maior ou menor intensidade recebem seus efeitos.

A CRISE DO HOMEM OCIDENTAL


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A produção em cadeia mundial sofreu uma reorganização ao longo da traje-


tória do capitalismo. A produção de bens maquinofaturados, que no início foi
exclusivamente europeia, passou a se expandir para outras partes do mundo,
mantendo uma integração intensa entre as áreas produtoras de matéria-prima e
as de transformação em bens de consumo. O mercado consumidor se multipli-
cou. Ao longo do desenvolvimento da indústria capitalista, o consumo se desloca
da população europeia para os demais continentes, sendo que esse processo de
expansão ainda está em marcha. O deslocamento de produtos e pessoas se inten-
sifica e gera cada vez mais a integração de novas frentes agrícolas e de extração.
A ampliação da produção planetária é impulsionada pela convergência do
desenvolvimento científico e técnico, o que gera possibilidades de ampliação
da produção. Os meios de produção se articulam com uma eficiência capaz de
padronizar produtos e ampliar a cadeia produtiva. O deslocamento de unidades
industriais, na atualidade, é uma demonstração clara do potencial tecnológico
do desenvolvimento do capitalismo. Hoje, a cadeia produtiva está integrada em
uma rede mundial organizada em regiões com áreas de matéria-prima, par-
ques industriais, centros de desenvolvimento tecnológico, centros financeiros
e administrativos. Da mesma forma que temos uma geração de bens mundiais,
padronizados, elaborados pelos centros técnicos, há um encurtamento do tempo
entre projeto e consolidação do produto na linha de montagem. A novidade
chega cada vez mais cedo ao mercado para ser capaz de satisfazer ao interesse
pueril dos consumidores.

A Crise de Identidade da Antropologia como Ciência


136 UNIDADE III

Assim, entendemos por que há um bombardeio de imagens na busca de esti-


mular e satisfazer o mais ínfimo interesse. Há uma arrebatadora busca de cada
um por uma identidade que seja oferecida nas “prateleiras do mercado”. Essa
busca se associa ao que afeta todos e a todo o tempo: a busca pela novidade e
inovação. Enquanto as máquinas fotográficas se uniram com telefones celula-
res, a internet invadiu o telefone móvel e abriu um leque de possiblidades em
um mesmo momento. O ser humano passou a ter possibilidades múltiplas sem
se movimentar.
Nesse ambiente de múltiplas possibilidades, há uma invasão de informações

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e mensagens associadas a bens de consumo oferecidos pelas campanhas publici-
tárias. Elaboradas com toda a inteligência e conhecimento sobre o ser humano,
elas aguçam a busca pelo surpreendente, pelo que seduz, pela “inovação” que
falamos anteriormente. Queremos estar em um estado permanente de paixão
sem apego permanente1, isto porque tudo é descartável.
Parte considerável desta capacidade de influência que o ambiente de con-
sumo e dos meios de comunicação exercem sobre o ser humano na atualidade
está no conhecimento desenvolvido para entender o comportamento individual
e coletivo. Saber detalhadamente os elementos que estimulam as pessoas, o que
elas gostam, onde gostam de estar, quais os seus principais objetos de desejo,
com quem gostam de estar, são questões feitas e respondidas para atender a uma
meta, levar ao consumo, mas isso tem sua origem.

Hoje há uma busca incessante pelo novo, ao mesmo tempo em que se propaga a doença dos acumuladores.
1

Os fósseis eram, no passado, o resquício de civilizações e pessoas cujos objetos deixados são estudados
pelas civilizações posteriores. Nós, agora, temos empilhado nossos fósseis enquanto estamos vivos. O que
“ontem” era a novidade que diferenciava o indivíduo dos demais agora repousa em uma pilha de rejeitos,
de resíduos. Agora, a questão do “lixo” se transformou em um dilema apocalíptico. Vamos morrer afogados
nos produtos industriais que produzimos alguns anos antes e que tiveram pouco tempo de vida, mas o
bastante para saírem de nossos sonhos, serem usados e descartados.

A CRISE DO HOMEM OCIDENTAL


137

O ESTUDO DO HOMEM CONTEMPORÂNEO E SEUS


DILEMAS

Na fase imperialista do capital, na qual emergiram as empresas que inaugura-


ram os trustes, holdings e carteis, o chamado capital monopolista, a expansão
territorial das nações industrializadas era uma necessidade. As conquistas de
áreas coloniais, protetorados e de influência geraram uma partilha mundial. O
estudo das várias regiões do Planeta foi necessário para garantir uma exploração
adequada das condições naturais. A Antropologia encontrou aí um dos primei-
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ros momentos de sua formação, o conhecimento sobre os povos não europeus.


Associando inicialmente as populações aos lugares e as descrevendo como uma
parte da paisagem, os pesquisadores ocidentais geraram o conhecimento neces-
sário para promover a submissão necessária à exploração econômica. Conhecer
o “outro” sempre foi, na longa história de dominação ocidental, um elemento
fundamental para garantir a dominação econômica. Os jesuítas, na colonização
da América Latina, já tinham essa prática.
O interesse capitalista ocidental se deu das mais diferentes formas e em
diversos lugares. Sempre lançando mão de pesquisas científicas, de desenvolvi-
mentos técnicos para garantir o poder e a exploração de determinadas regiões.
Um exemplo foi à exploração agrícola que se desenvolveu no Brasil. A produção
agrícola se intensificou com o desenvolvimento tecnológico para a ocupação e
exploração das regiões agrárias. Ferrovias, instalação de máquinas de beneficia-
mento, armazéns, que iniciaram com dificuldade em conviver com o trabalho
escravo que ainda persistia em algumas nações (o Brasil entre elas) coexistiam.
Posteriormente, com a movimentação de trabalhadores livres que partiam da
Europa e da Ásia para diversas regiões do mundo, o processo de escravidão tinha
um substituto, o homem livre imigrante. Os imigrantes se tornam um elemento
vital para a expansão da agricultura ou extrativismo em boa parte do mundo.
Ferrovias foram construídas e passaram a integrar regiões distintas, impondo
ao território uma ocupação rápida. Na África e na América, a instalação de fer-
rovias e o uso dos trens geraram uma integração rápida de novos territórios na
medida em que destruíam culturas e aniquilavam civilizações.

O Estudo do Homem Contemporâneo e seus Dilemas


138 UNIDADE III

A literatura também criou seus heróis da destruição como se fossem per-


sonagens civilizadores que geraram a supremacia do homem branco. Tarzan,
Fantasma e Búfalo Bill são alguns dos personagens que povoaram o imaginário
da conquista e civilidade na “terra dos selvagens”. Muitos deles foram reeditados
e novos seres imaginários passaram a povoar o processo de conquista. Indiana
Jones foi um dos mais recentes personagens do processo de civilidade da aven-
tura do ocidental sobre o mundo selvagem.
Hoje, vende-se o sobrenatural como uma “realidade possível”, se não para
ser vivida, pelo menos para ser sentida. A sensação virou um produto funda-

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mental na busca do que se deseja consumir, já o compromisso com a realidade
não faz parte do “pacote de interesses do ser humano”. Se ao se falar dos nativos
da África e América, dos séculos XVI ao XIX, a literatura fantástica promovia
a criatividade literária, as obras literárias da atualidade estão desprendidas de
uma existência, não necessitam ser comprovadas, apenas sentidas. É a emoção
fantasmagórica ou fantástica.
Hoje, nas tribos indígenas, os chamados nativos se vestem com os trajes de
seus antepassados para promover o espetáculo ao visitante que se encanta ao
olhar o espetáculo que se desdobra no palco do teatro e acredita que o que está
presenciando é uma parcela da realidade cotidiana desses indígenas. Logo após
a encenação, o mesmo nativo coloca suas roupas ocidentais e se comporta como
a plateia. Onde repousa a cultura indígena que se quer proteger? Ela é apenas um
ambiente gerado para promover sensações, uma extensão do “shopping a céu
aberto” que promove a preservação que encanta e se descompromete em enten-
der a realidade por trás da cortina.
Os indígenas estão cada vez mais urbanos. Eles crescem na paisagem urbana
como fruto de uma migração que se acelera e que se coloca como constante.
Parte considerável dos nativos que vemos circulando pelos espaços urbanos no
Brasil são reflexo da falta de condições de sobrevivência nas reservas. Para com-
plementarem a renda ou mesmo garantir a sobrevivência, eles percorrem os
espaços urbanos, vendendo produtos de seu artesanato, adaptado para encantar
e pouco expressa a identidade de sua comunidade, a qual não existe em grande
parte do seu dia a dia.

A CRISE DO HOMEM OCIDENTAL


139

Não é por acaso que os indígenas que assumem sua identidade no Censo
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em sua maioria, vivem
entre a população marginal e sofrem as consequências disso. Em um dos cri-
mes mais polêmicos do país, jovens atearam fogo em um indígena, pois tinham
“confundido” o herdeiro da identidade nativa com um mendigo. Esqueceram
na escola de ensinar sobre a condição dos nativos na atualidade para que fosse
rompida a fantasia que repousa na mente da maioria da população do país, a
que ainda acredita que os indígenas vivem como aqueles que Cabral conheceu
na sua chegada ao Brasil.
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A imagem fantasiosa do indígena que vive na “floresta” serve como fonte


de orientação para uma grande parte da massa nas grandes cidades do mundo.
A questão indígena segue a lógica de tantos outros temas. Há uma necessidade
de se orientar a ação por um conhecimento fundado na informação racional e
lógica do conhecimento. Porém, como detectá-la? Onde encontrá-la? Onde se irá
informar sobre quem realmente são os indígenas na sociedade contemporânea?
Na quantidade de mensagens que se multiplicam ao nosso redor, há pouco
de um significado que nos reporte ao entendimento mais racional e lógico das
relações sociais, do sentido da vida coletiva. Estamos sendo orientados pela
ambientação voltada ao espetáculo. Para todos os lugares onde nossos olhar se
lança, ele captura a simbologia que associa uma imensidão de objetos aos senti-
dos da vida. Nunca em tantos lugares repousaram mensagens ditando um valor
de viver, uma forma de ser e uma qualidade humana. Porém, nunca se esteve
tão distante de um ser humano capaz de compreender o seu papel social ou de
se preocupar com uma questão que esteja além dele mesmo.

O Estudo do Homem Contemporâneo e seus Dilemas


140 UNIDADE III

UMA ANTROPOLOGIA PEGANDO O HOMEM PELA LÍNGUA

A linguagem se transformou, ao longo da história das civilizações humanas, em


um importante instrumento de organização e relação. As construções do sentido
social das coisas a nossa volta passam pela capacidade de a linguagem denomi-
nar e organizar seus valores.
Há mais do que simplesmente
um instrumento de contato, uma
forma de ligação entre o que se

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expressa e deseja, há uma ordem de
sentido da vida humana. Por isso,
é importante entender a linguagem
como uma construção humana e
resultado da consolidação da vida em
sociedade. A linguagem só chegou a
condição atual nas sociedades urba-
nas após uma ampla rede de relações
sociais terem se organizado e serem
integradas por meio da comunica-
ção que nos acompanha por todos
os lugares.
Hoje, a linguagem se tornou complexa e capaz de associações também com-
plexas, o que aumentou a capacidade de informação ou deformação da mensagem
com a manipulação de símbolos.
Ao mesmo tempo em que a mídia constituiu um campo novo do conheci-
mento para os cientistas sociais, a semiótica, também gerou um empobrecimento
dos sentidos e suas generalizações. Os significados de determinados códigos neces-
sitavam de um determinado ambiente para ser entendidos, agora eles podem dar
um significado aos ambientes que não têm vínculo com as relações que origina-
ram sua formação. Se buscarmos nas marcas dos produtos suas associações nas
relações sociais, teremos bons exemplos das distorções simbólicas a que assisti-
mos todos os dias nos comerciais ou lemos em mensagens publicitárias.

A CRISE DO HOMEM OCIDENTAL


141

Também chamada de semiologia, em sua origem, é um campo do conheci-


mento que busca entender o sentido, o significado dos signos, dos símbolos.
Duas vertentes surgiram desse entendimento. A primeira foi a que nasceu
dos trabalhos de Charles Sanders Peirce (1839-1914), um dos precursores
da semiótica, foi a defesa de uma expressão da ação humana na relação
com as coisas. Segundo as teses, de Charles há uma divisão entre a sintaxe,
forma como o signo está associado ao que expressa, e a semântica, como se
interpreta a simbologia. A simbologia nada mais seria do que a expressão
da natureza gerando a cultura. A forma como a cultura se estabelece em
uma ordem lógica seria a ideia. O desenvolvimento desse campo atingiu um
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amplo leque de análises. Hoje, autores como Umberto Eco e Roland Barthes,
seguidores de uma visão mais ampla da semiótica, levam em consideração
uma reflexão mais psíquica e fundada no inconsciente, diferente de Peirce,
que era muito mais próximo de neopositivismo, o qual se desenvolveu no
Círculo de Viena.

Iniciada como um campo de conhecimento ligado à linguística, a semiótica


se desenvolveu com os trabalhos dos clássicos Charles Sanders Peirce (1839-
1914) e o suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913). Peirce (1993) se ateve aos
fenômenos sociais ligados à interpretação simbólica, em que define uma feno-
menologia da linguagem. Ele considera que a semiótica, ou semiologia, deve ser
vista como o fenômeno da experiência humana com a percepção da natureza
de todas as coisas. Assim, para Peirce (1993), existe uma etapa inicial, o que ele
chamava de “primariedade dos signos”. Para ele, nessa fase, coloca-se a percep-
ção do fenômeno em seu estado puro. A Secundariedade é a condição em que
a consciência determina um valor ao fenômeno, sua interpretação simbólica.
Já Ferdinand Saussure vai dar autonomia à linguagem em relação aos fenô-
menos, que são um viés simbólico à interpretação dos elementos que constroem
a comunicação. Para ele, enquanto a língua é o que deve ser analisada por ser
o elemento comum que se compartilha com seus símbolos, a fala é a condição
conjuntural que sofre mudanças nem sempre lógicas em relação à expressão dos
símbolos e ao uso da linguagem.
Um dos maiores teóricos da semiótica na atualidade é Umberto Eco. Nascido
na Itália, em 1932, é hoje um dos mais reconhecidos teóricos na análise da cul-
tura de massas. Em sua tese, há uma relação entre a mensagem e aquele que a

O Estudo do Homem Contemporâneo e seus Dilemas


142 UNIDADE III

interpreta, dois polos diferentes, mensagem e receptor. O entendimento de um


texto dependerá de como esses elementos se confrontam. Essa capacidade de
entendimento deve dar significado e determinar um sentido para quem observa
o objeto, e os signos associados por meio desse objeto vão praticar uma ação – a
sua utilidade. A ação é então o resultado final de uma interpretação. Essa inter-
pretação tem que ser entendida por todos os seres humanos com os quais nos
relacionamos, ou seja, a leitura do significado de determinados elementos não é
só de um ser humano, mas de todos com os quais ele ser relaciona.
Não é por acaso que a psicologia e a antropologia, assim como a sociologia,

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aproximaram-se entre si e afinaram seus campos de conhecimento. Seus inte-
resses e objetos se fundem e geram facetas para as quais uma única perspectiva
de análise não se mostra capaz de dar uma resposta, se é que ela existe. Há um
emaranhado nas relações humanas da sociedade contemporânea. Há inúmeros
significados de elementos inteligentes elaborados racionalmente para envolver
a massa. O que aparentemente se parece com uma obra do acaso, não o é. Nada
do que estamos presenciando na ambientação dos “não lugares”, como afirma
Marc Augé (1994), é obra do acaso. Esses significados elaborados distorcem e
recriam o sentido da existência. Umberto Eco, ao tratar a linguagem como essa
relação entre a mensagem e o que se lê, quer denunciar a cumplicidade.
Muitos dos pensadores contemporâneos, utilizando a linguagem ou não,
buscam entender esses valores dominantes expressos nas mais diferentes for-
mas e sentidos que as relações sociais estabelecem. Estamos sempre à procura
do significado de tudo o que tem a nossa volta, acreditamos na lógica fundada
em um princípio comum.
A linguagem pode nos fazer entender os símbolos, seus significados e sig-
nificantes. Entre a boa prática e o elemento negativo a ela, seu oposto, há uma
distância onde só a irracionalidade poderia simplificar e anular os efeitos de
oposição, resolvendo toda a contrariedade em um passe de mágica. Um determi-
nado produto, mesmo que associado publicitariamente às práticas sustentáveis,
existe como fruto da apropriação da natureza, de sua transformação, destruição e
negação. Não é por acaso que colocamos a moça saudável, de corpo esbelto, con-
sumindo um alimento com alto teor calórico. A negatividade estimula a compra
do bem maléfico para aqueles que buscam o resultado oposto às consequências de

A CRISE DO HOMEM OCIDENTAL


143

sua aquisição. Se não há preocupação com o meio ambiente, os produtos fazem


em sua campanha publicitária a associação com a preservação ambiental e dão
a oportunidade a quem adquiri-lo fazer “as pazes com a natureza”.
Os efeitos que os ambientes causam nos seres humanos podem ser um exem-
plo melhor no sentido de entender a obra de Umberto Eco. O autor italiano faz
uma relação entre o ambiente e a sensação que ele provoca nas pessoas que os
frequenta. O autor de “O Nome da Rosa” descreve, nessa obra, a arquitetura de
um mosteiro onde a iluminação, o piso, os corredores, os quartos, enfim, todos
os lugares onde os personagens se relacionam, provocam efeitos de temor, de
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mistério. Essa preocupação da arquitetura do mosteiro cristão está na elabora-


ção dos ambientes de consumo que temos na sociedade atual. Em um shopping
center, há o mesmo planejamento: a busca de causar determinado efeito nos fre-
quentadores. Comentamos sobre isso na primeira unidade deste livro, quando
falamos sobre as Igrejas Góticas e o sentimento de pequenez do homem diante
da “obra de Deus” que fazem sentir temor contribuiu para garantir os interesses
de quem desejava controlar a mente e o corpo do homem medieval. Há a busca
do mesmo interesse de controle na sociedade atual.
Ao ingressar em um magazine,
hipermercado, shopping center, tenho
que sentir o desejo da aquisição como
uma forma de realização da existên-
cia. Possuir coisas é uma forma de
simbolizar nelas o que a construção
real da minha vida não me permite.
Realizo-me nas coisas e não na relação
com as pessoas. Nego a pessoalidade
na busca da falsa ideia de humanidade
que os objetos e seus símbolos me pro-
porcionam. Identifico-me, construo
o “SER” na aquisição do bem. Ele, o
objeto adquirido, dá-me a falsa ideia de essência onde só a vivência e superação
das condições humanas poderiam me oferecer no passado. Imagine que o caça-
dor das estepes africanas seja respeitado por, após uma longa jornada de desafios

O Estudo do Homem Contemporâneo e seus Dilemas


144 UNIDADE III

e riscos, caçar o animal selvagem. Ele é homenageado pela sua tribo quando
chega com o seu troféu. Quem duvidaria de sua coragem?
Agora, imagine que esse caçador ficou deitado à sombra de uma árvore, espe-
rando um tempo infinito e temendo os animais selvagens e a possibilidade de
ser devorado por eles. E aí, em suas andanças seguras, depara se com um animal
morto. Ele perfura o animal com sua lança, chega com ele em sua aldeia e é con-
templado como um vencedor. Esse falso caçador terá sua glória, mas não fez por
merecer as honrarias lançadas sobre ele. Colhe frutos que não plantou, nega o
esforço e reforça o valor simbólico da vitória. Nossos falsos heróis da atualidade

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são assim. Nada fizeram, mas são contemplados pelos símbolos que ostentam,
os quais foram adquiridos sem esforço nas prateleiras do mercado.
Nos espaços urbanos, os lugares estão carregados de mensagens publicitárias
e de associações de objetos e marcas; elas cercam o ser humano com linguagens,
associando os mais diversos sentidos. Quanta simbologia nos cercam. Como
esses símbolos são construídos? Qual é o efeito que geram? Perguntas relevantes
para o homem da atualidade perdido em meio a tantos significados e signifi-
cantes, porém, sem saber qual o sentido real da lógica da sua existência. É nessa
abertura, nas brechas da ausência de um sentido da existência, que o estudo da
semiótica ganha importância dentro do campo antropológico.
Para termos uma dimensão do que significa o estudo dos símbolos na con-
temporaneidade, faz-se necessário o encontro entre dois elementos vitais, um
deles é a linguagem e o outro é a compreensão da existência, quem sou e como
construo este sentido na vida em sociedade. A forma como organizamos nos-
sas ideias é estimulada constantemente pelas experiências em nossas relações
concretas. Ordenamos nossas ações subjetivamente em uma escala de valor no
sentido de uma causa e efeito. Conforme vamos experimentando nossas ações,
vamos reformulando o sentido da expectativa de uma “nova” experiência. A
existência se define por meio dessas cadeias de experiências vividas, que são
construtoras de um sentido na condição presente e buscam realizar um resul-
tado com uma ação futura.
Percebemos, então, que a simbologia é uma expressão de experiências e uma
associação com as intenções. Associam-se carros de luxo, roupas sofisticadas e
bebidas raras ao poder aquisitivo, pois há uma experiência vivida ou simbolizada

A CRISE DO HOMEM OCIDENTAL


145

no passado afirmando esse


valor. Na antiguidade, os
nobres tinham na vesti-
menta a denúncia de quem
eram. Hoje, o que procu-
ramos é expressar uma
condição que não é real. Mas
essa busca de ser o que não
somos, de aparentar o que
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não se comprova na realidade,


há cumplicidade. Essa associação não é só nossa, é fruto das experiências, das
“crenças”, onde o desejo presente coloca como necessidade a ser realizada para
atingir um determinado interesse.
O diálogo travado com uma pessoa está dentro dessa condição de buscar
realizar um interesse por meio de uma cadeia de valores onde a comunicação
simbólica desempenha um importante papel. Os meios de comunicação, na atua-
lidade, propagam esses símbolos da linguagem e geram uma leitura que identifica
os observadores e agentes comunicadores. Imagine que você conhece uma pes-
soa e sabe sobre seu passado. Ao ouvi-la relatar sobre uma de suas experiências,
você percebe que o relato é falso. Isso só foi possível porque você conhece a his-
tória do agente que propaga a informação. E se você não o conhecesse? Haveria
aí uma possibilidade significativa de você acreditar na história. É como visitar
uma fábrica de salsichas e depois se deparar com uma propaganda do produto
associando-a a um valor contrário à realidade das condições de produção do
alimento. A reação será diferente para quem desconhece essa experiência. Do
contrário, para quem sabe como a salsicha é feita, a propaganda não terá muito
sentido.
Nas condições em que a produção da vida se dá, em nossa sociedade, a quanti-
dade de bens e serviços está associada a uma gama de símbolos. Essa identificação
com marcas e sentidos ganhou força e se transformou em uma indústria. Hoje,
constroem-se os símbolos na mesma proporção em que se fabricam celulares,
calças, óculos e televisores. Por sinal, é na mensagem simbólica ligada a esses
produtos que está a fonte de orientação e de propagação da mercadoria. Estamos

O Estudo do Homem Contemporâneo e seus Dilemas


146 UNIDADE III

assistindo à inteligência de transformar a simbologia em produto. Marcas cus-


tam caro, às vezes mais caro que os produtos que representam. A simbologia não
só se transformou em um campo novo de conhecimento para a Antropologia
como também se tornou uma área de exploração econômica fundamental para
a concentração de riqueza.

A PEDAGOGIA DO CONSUMO

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A relação entre a semiótica, a antropologia e a economia é elemento importante
para a sociedade industrial contemporânea. Estudos sobre as relações sociais
dentro de determinados ambientes, além da própria relação com a disposição do
ambiente, são vitais para o desenvolvimento de estratégias de mercado. As cam-
panhas publicitárias têm se alinhado com uma propagação midiática eficiente.
Em todos os lugares onde os seres humanos estão, há a presença de símbolos
de produtos associados a marcas. Esses elementos geram uma leitura que indu-
zem ao consumo.
As cidades, espaço ao qual recorreremos a todo o momento neste livro, são o
campo de encontro dos seres humanos, onde se concentram, organizam-se e for-
mam suas vidas. Nela, apresentam-se os rituais sociais, as relações de tensões e o
centro de decisões política e econômica do mundo. As grandes cidades se trans-
formaram em pontos de referência para o que se propaga em todo o Planeta. As
grandes capitais passaram a ter importância na vida de toda uma nação. Algumas
das grandes cidades mundiais passaram a ter importância estratégica tão ou mais
importante que as nações onde estão inseridas. As metrópoles, algumas chama-
das de megalópoles, pela grande quantidade de pessoas habitando seu espaço,
têm um papel decisivo na economia e na geopolítica mundial.
Algumas grandes cidades se transformaram em referência de conceito urbano,
de condições de vida. Há, nessas grandes metrópoles, um ambiente de civilização
mundial. Elas estão carregadas de marcas, símbolos, hábitos, propagação de valo-
res da cultura de massa. Por isso, a simbologia urbana universalizou conceitos.
Comentamos anteriormente sobre as diferenças que habitam o ambiente
urbano. O mundo das cidades é um mundo de desigualdade. Claro que não é em

A CRISE DO HOMEM OCIDENTAL


147

todos os espaços urbanos que a contradição entre riqueza e pobreza se estabe-


lece, mas em uma parte considerável deles o foço entre riqueza e pobreza existe.
A diversidade de condições em que se vive em algumas das grandes metrópoles
mundiais tem uma longa história. A periferia urbana, por exemplo, em alguns
casos, tem mais de um século de história. Gerações nasceram, viveram e mor-
reram em um ambiente periférico, onde se teve tempo suficiente para criar leis
próprias, poderes paralelos, um local fértil para insurgentes contra as normas
estabelecidas pela chamada sociedade legal.
Não podemos deixar de considerar que a cidade, a grande metrópole, é por
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si um lugar onde vivemos e nos relacionamos e, sobretudo, onde damos sentido


a nós mesmos. Quem somos passa pela cidade, por tudo o que ela representa.
O viver urbano, na atualidade, porém, na história das cidades, refez a noção de
tempo, de longe e perto. A comunicação que aproxima os elementos mais dis-
tantes, também pode ser uma distância imensa para pessoas próximas. Isso é
o mesmo que dizer que viver parede a parede, ao lado de alguém, não significa
conhecê-lo, mas estar distante também não é estar longe, ou pelo menos ter a
sensação de distância.
Em uma propaganda de celular, há um número imenso de portas que se
abrem. Elas podem aproximar em um toque todos os que desejamos ter ao nosso
lado. Ao mesmo tempo em que o telefone móvel surge como instrumento de apro-
ximação é uma arma contra a solidão. O celular permite que a particularidade,
que o poder de ser, seja cercado de quem se deseja e se afastar dos indesejados.
Podemos, com o aparelho de telefone móvel, selecionar o que queremos con-
versar ou não. Quantos de nós já não fomos a um restaurante e nos sentamos
ao lado de uma família ou grupo de amigos em uma mesa, em que cada uma
das pessoas sentadas tinha na mão um produto eletrônico, celular ou tablete. É a
forma de suportar a convivência, estar em um lugar e manter contato com quem
se encontra a quilômetros de distância e se não quisermos manter um diálogo,
apenas desligamos o aparelho e a relação. Qual é o limite entre o uso eficiente e
a visão egoísta dos que nos cercam? Não há limites, se está no centro de um uni-
verso particular. Essa condição, a de cada um com seu objeto de comunicação,
forma reis solitários (sujeitos) mergulhados em seus desejos pueris.

O Estudo do Homem Contemporâneo e seus Dilemas


148 UNIDADE III

Ao particularizarmos os sentidos dos símbolos, ao organizá-los para uma


comunicação fundada no indivíduo desprendido do coletivo, geramos uma nova
forma de organização dos códigos simbólicos. Uma organização elaborada, pen-
sada detalhadamente para estimular a sensação de satisfação sem uma existência
construída socialmente e percebida como resultado da participação com o outro.
É importante frisar que a existência de uma relação social perece ter atendido aos
interesses particulares. A sociedade não foi eliminada, ela existe. É a condição
vital para a permanência da vida humana, a ruptura está na percepção da neces-
sidade da sociedade, de sua existência. Ainda somos fruto das relações sociais.

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Na contração dessa condição, temos a propagação de uma sensação de satisfa-
ção pessoal. Bastamo-nos, e pronto.
Essa construção particularizada dos significados dos elementos que nos cer-
cam começa na infância. Os rituais de apresentação dos sentidos humanos aos seus
novos componentes são feitos com esmero pelo particularismo. Organizamos o
quarto para o bebê se sentir senhor de um universo que gira a sua volta. Essa pro-
pagação da satisfação rápida, imediata e constante não irá se apagar ao longo da
vida. Amar é contribuir para que os símbolos falem de um sentimento que não é
construído nos gestos concretos da relação com as pessoas. A emoção é simbolizada
pelos objetos associados a mensagens publicitárias de amor, inteligência, compre-
ensão, combate ao preconceito, preservação etc. Por qual motivo construir um ser
humano, fazê-lo pensar? Os objetos são mais humanos e inteligentes que as pessoas.
Voltamos a lembrar dos caçadores e suas pinturas, suas marcas, seus símbolos.
Essa simbologia representava a realidade construída concretamente. A simbolo-
gia não sobreviveria a exigência de comprovação. Na noite, quando jovens saem
para curtir seus visuais de homens e mulheres adultos, o que estamos vendo na
aparência sedutora e amadurecida não é a realidade. É apenas um ritual carre-
gado de gestos e símbolos, os quais comprovam o efeito pela crença na fantasia
como realidade por todos que compartilham o mesmo lugar, que se relacionam
com objetos que idolatram, os que se alimentam de uma ilusão do espetáculo.
Hoje, a condição existe porque os símbolos a constroem. O prestígio, a honra,
o sentimento de vitória, não são geradores dos símbolos, mas os símbolos é que
geram os vencedores, como se possuir o troféu fizesse do seu detentor um vence-
dor, sem nunca ter participado de qualquer competição. A verdadeira competição

A CRISE DO HOMEM OCIDENTAL


149

é para saber quem tem o maior número de troféus adquiridos no mercado.


Se a necessidade fez o homem gerar, mediante a transformação da natureza,
as coisas das quais necessita e se o trabalho foi fundamental para que isso ocor-
resse, estamos agora diante das coisas que não se explicam mais pelo trabalho,
elas parecem brotar da terra, como uma árvore que se explica pela natureza que
a gera, sem a interferência humana.
Construímos, no passado, instrumentos para podermos satisfazer necessidades.
Agora, os objetos são responsáveis por nos dar uma função. Seria como pensar em
uma criança indígena que brinca com o arco e flecha no centro da aldeia, isso não
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faz dela uma caçadora, porém, lhe dá a noção de manuseio do objeto que é neces-
sária para poder iniciar sua vida e sobreviver. Hoje, brincamos eternamente com
os objetos sem ter a obrigação de dar a eles uma função. Mesmo adultos, continu-
amos no centro da aldeia, manipulando objetos sem o compromisso de crescer e
dar um sentido maduro a nossa existência. A eterna criança (BRUCKNER, 1997).
Desmaterializamos a construção da identidade cultural na atualidade. O
que já foi o resultado de uma condição de produção humana, agora, está asso-
ciado a um emaranhado de símbolos trabalhados visualmente e associados a
informações e mensagens de efeito, as quais manipulam os sentidos por meio da
manipulação do formato dos produtos, do cheiro e do som. Readequamos todo
o conhecimento sobre a percepção humana para que tenhamos o controle dos
efeitos que o mundo pode gerar na massa. Porém, a massa carregada de símbo-
los, em determinados momentos, fica imprevisível. Acredito que a violência a
nossa volta, por mais que esteja associada aos hábitos humanos, expressa uma
nova forma de se conceber o desejo de extermínio do “outro”. Particularizamos
interesses, dessa forma, somos exigentes na convivência, queremos que os que
estão a nossa volta cumpram o roteiro que estabelecemos, caso isso não seja
feito, podemos eliminá-los.
Os assassinatos dentro do ambiente familiar demonstram essa nova sim-
bologia da violência. Os pais sustentam os filhos, mantêm suas vidas materiais.
Porém, tudo isso está simbolizado no cartão de crédito, na conta corrente, no
dinheiro de plástico, nos bens materiais. Onde está o ser humano por trás de
tudo? Ele desaparece. Muito dos extermínios realizados pelos filhos para ficar
com o patrimônio dos pais está ligado à falta de entendimento do papel da

O Estudo do Homem Contemporâneo e seus Dilemas


150 UNIDADE III

produção da vida atrás dos bens de consumo. Quando pais exterminam filhos,
o extermínio de uma escolha minha (filhos) tem o mesmo peso de me desfazer
de um determinado produto. Não tenho tolerância para conviver com a abne-
gação dos prazeres particulares. Se o rebento se coloca diante do meu caminho
para satisfação da minha vontade pessoal, ele será eliminado.
O mais engraçado em relação aos dados da atualidade é que a sociedade
está ficando mais velha. O número de jovens está diminuindo, e o futuro aponta
para o predomínio de pessoas que estão na terceira idade. Porém, os mais velhos
desejam rejuvenescer e permanecer na juventude. Não se abre mão da adoles-

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cência assim tão facilmente. A felicidade repousa em não deixar o tempo passar,
ou melhor, em se manter eternamente jovem a qualquer preço. Não estamos nos
referindo ao cuidado com o corpo, mas à manutenção de nossa eterna juven-
tude mental. As emoções do adolescente e sua irresponsabilidade sobre os atos
agora estão eternizadas no adulto jovem.
O desejo da eternidade, de preferência da juventude eterna, é fruto de uma
educação. Uma complexa cadeia de estímulos que constroem uma percepção
lógica do mundo fundada na particularidade, no “eu mereço” viver tudo sem
ter arrependimento de nada. Esses objetos e ambientes estimulantes nos cer-
cam por todos os lados e constroem uma lógica perversa por meios eficientes.
Os ambientes produzem com intensidade o estímulo à particularidade, tradu-
zem os desejos mais tolos em necessidades vitais a serem atendidas a qualquer
preço, sob pena de pagarmos caro por não realizá-las, uma infelicidade eterna.
Todos temos o direito a uma justificativa para nossos atos, vontades, interesses
e, principalmente, erros. Erros são dados como parte de um direito natural ao
qual todos são sujeitos a desfrutar e a ter que aceitar em nós como uma condição
natural. A exceção virou regra e para garantir que esta seja cumprida, ganham-
se campos de investigação novos. Damos direito ao particular por incapacidade
de entender a coletividade.

OS NOVOS RITUAIS DE CONSUMO E A SIMBOLOGIA

A CRISE DO HOMEM OCIDENTAL


151

COMO DIFERENÇA

Retomamos aqui a discussão sobre a fábrica mundial, a rede de produção inter-


nacional da atualidade. Formada por uma gama de unidades de produção
interligadas mundialmente e por cadeias de informação com um amplo apa-
rato tecnológico, o qual permite a produção em série de bens e serviços. Uma das
principais características da fábrica mundial é a dispersão de seu parque indus-
trial, das unidades produtivas, que mesmo não estando em uma mesma região
têm uma capacidade de integração e produção inigualável na história humana.
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Essa cadeia de produção complexa agora envolve uma grande quantidade


de territórios apartados dos antigos centros de produção. Até o fim da Segunda
Guerra Mundial (1945), as unidades produtivas, industriais, estavam concen-
tradas nos países mais ricos. Nesses centros, também se estabelecia o controle
financeiro e tecnológico sobre a produção. Eram as grandes potências que regiam,
pelo seu parque industrial, as condições de consumo dos bens industrializados.
Para os consumidores, ter acesso a um bem de consumo industrial estava restrito
a lugares de venda em grandes centros com custos mais elevados de aquisição.
A demanda por produtos mundiais foi acelerada na proporção em que os cus-
tos de produção foram reduzidos. A tecnologia que temos na atualidade permite
isso: a condição de propagação de bens em cadeia mundial com custos menores
do que a produção no passado. Se levarmos em consideração como padrão a pro-
dução de um automóvel na atualidade e compará-la com a produção no passado,
podemos perceber que os custos de produção reduziram com o investimento em
tecnologia. Na mesma proporção em que a produção de bens se intensificou, a
durabilidade dos produtos reduziu. Hoje, em média, um bem de consumo vive
metade do tempo do que o mesmo produto, ou similar, há 30 anos.
Logo se multiplicaram os locais de consumo, o número de pessoas com acesso
aos bens de consumo, as condições para aquisição e também número de unidades
consumidas por pessoas. Seres humanos consomem cada vez mais em menos tempo
e mais da mesma coisa. Mesmo os bens chamados de duráveis já não são tão “durá-
veis assim”. É o que se convencionou chamar de “obsolescência”. Em alguns casos, a
construção do bem vem com um prazo de autodestruição. A grande produção de resí-
duos na atualidade é resultado dessa condição, como já comentamos anteriormente.

Os Novos Rituais de Consumo e a Simbologia Como Diferença


152 UNIDADE III

Para que a fábrica mundial chegasse a essa condição de produção, foi neces-
sário refazer toda a cadeia produtiva, fruto de um processo de 40 anos. No início
dos anos 1950, a cadeia produtiva passou a ter unidades em países onde as con-
dições de produção eram mais adequadas à redução de custos. Não por acaso
nasceram às economias emergentes, como chamamos hoje, sendo este um papel
que o Brasil exerceu ao longo da sua história e continua exercendo. O país viveu
de um estímulo sustentado na promessa de um futuro promissor para chegar
à condição das grandes potências. O chamado milagre econômico. Durante o
Regime Militar (1964 a 1985) a promessa de que o Brasil seria a potência do

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futuro foi sustentada no crescimento do parque industrial. Na multiplicação de
indústrias de bens duráveis, parte delas pertencentes a rede de empresas multi-
nacionais. As chaminés das fábricas já foram um símbolo de modernidade, tanto
quanto a foice e o martelo foram o símbolo do comunismo. Nos dois casos não
são mais. As chaminés poluem e o proletário já não utiliza a foice e o martelo
com tanta constância.
Octávio Ianni, em sua obra “A era do globalismo”, define assim a ocorrência
dos milagres econômicos em alguns países do mundo:
A relevância do trabalho, em geral e em suas formas particulares e sin-
gulares, começa a revelar-se quando se reconhece que o capitalismo
transformou o mundo em uma espécie de uma imensa fábrica. Em
relativamente poucas décadas, principalmente após a Segunda Guerra
Mundial (1939-1945), a industrialização espalhou-se pelo mundo. A
época da Guerra Fria (1946-1989) foi também uma época de desen-
volvimento extensivo e intensivo do capitalismo no mundo. A contrar-
revolução mundial embutida na Guerra Fria favoreceu a criação e o
desenvolvimento de indústrias em nações subdesenvolvidas, agrárias,
periféricas, do Terceiro Mundo. Incialmente desenvolvera-se políticas
de industrialização substitutivas de importação e, depois, de industria-
lização orientada pela a exportação, sendo que em vários casos combi-
nam-se as duas políticas. Em poucas décadas, muitas nações asiáticas,
latino-americanas e africanas ingressaram no sistema industrial mun-
dial. As empresas, corporações e conglomerados transnacionais desen-
volveram-se e generalizaram-se. Intensificou-se o movimento de capi-
tal, tecnologia e formação de trabalho, Formaram-se e expandiram-se
as alianças estratégias, os centros e os sistemas decisórios. Emergiram
as cidades globais, com elas as polarizações fundamentais da sociedade
global, muitas vezes lugares privilegiados das estruturas globais de po-
der (IANNI, 1999, p.20).

A CRISE DO HOMEM OCIDENTAL


153

Essa é a condição em que o capitalismo se encontra na atualidade. Porém, como


o próprio Ianni (1999) aponta, as cidades ganharam um papel de destaque nessa
nova forma de organização. Em países como o Brasil, que faz parte do que ele
relata sobre expansão do parque industrial em países que eram tipicamente agrá-
rios e tinham se industrializado para substituir os importados, principalmente
depois das duas guerras mundiais, as cidades passaram a receber um grande
número de trabalhadores. Um dos fatores para que isso ocorresse foi a meca-
nização agrícola, que gerou uma nova forma de organização da produção de
alimentos e passou a ser tão industrializada quanto a fábrica de bens duráveis.
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A organização de uma leva de trabalhadores oriundos do campo tornou


possível um encontro entre grupos étnicos que tomaram parte considerável do
mundo. O deslocamento migratório ocasionou uma reorganização da convivên-
cia na vida urbana e a reconstrução de identidades com novos valores elaborados
a partir do próprio encontro e com ingredientes oriundos dos seus territórios de
origem. Se levarmos em consideração a cidade de São Paulo como um modelo,
é possível perceber o quanto ela se fez e refez com os processos migratórios e o
quanto a cidade se organiza do encontro e do reencontro. Foi essa integração
da economia mundial capitalista que permitiu essa condição. Vale lembrar que
esse encontro não é harmônico, mas sim marcado por conflitos, o que denuncia
a desigualdade de condições em que a vida urbana foi e ainda é forjada.
O desenvolvimento industrial em escala global foi estabelecido por necessi-
dade de manutenção da própria estrutura de produção capitalista. A formação
de uma área de atuação planetária é resultado do desdobramento que o capital
sofreu desde sua formação. Sua organização inicial, na fase mercantilista, impli-
cava na circulação de produtos como eixo de acumulação, eram as empresas
comerciais que sustentavam o retorno das principais acumulações estabelecidas
pelo capital financeiro. Mesmo a produção industrial manufatureira dependia
das práticas comerciais para dar vazão à produção.
O advento da maquinofatura promoveu o início da relação de circulação de
bens. A circulação de mercadoria não poderia depender do controle de empre-
sas mercantis determinadas, mas de uma rede de dependência de mercado onde
os produtos maquinofaturados pudessem chegar sem entraves de barreiras

Os Novos Rituais de Consumo e a Simbologia Como Diferença


154 UNIDADE III

monopolistas2. O liberalismo cresceu sobre a égide da industrialização. O desen-


volvimento de uma nação já foi medido pela dimensão de seu parque industrial.
O que assistimos hoje é uma redução significativa dessa ideia. Sabe-se que não
é a dimensão de um parque industrial que determina a industrialização de uma
nação. Por muitas vezes, na atualidade, é exatamente o aglomerado de trabalha-
dores da produção industrial, os operários, o fator determinante para que surja
uma cadeia de problemas que se proliferam em larga escala e passam a domi-
nar uma gama cada vez maior de fenômenos típicos do crescimento urbano
desordenado3.

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No século XIX e na primeira metade do século XX, os movimentos urbanos
demonstraram os efeitos da industrialização nos países ricos com uma concen-
tração populacional desabituada ao espaço urbano, diferente do que ocorreu
em algumas das cidades que cresceram com a formação industrial posterior à
expansão dos parques industriais. Nelas, a migração campo cidade se deu tar-
diamente, além de conviver com um intenso processo de migração. Os conflitos
sociais que existiam nas sociedades agrárias, por muitas vezes, migraram para o
campo e geraram segregação disfarçada de novas simbologias4.

2
O processo de abertura dos mercados das antigas colônias mercantilistas foi fundamental. Se observarmos,
a partir dos séculos XVIII e XIX, irá se estabelecer uma política liberal de abertura de mercados. A Inglaterra
esteve à frente do processo de liberação dos mercados comerciais nas colônias ibéricas que acabaram por
gerar o processo de independência dos países latino-americanos. Esta abertura de mercado inicia uma nova
política econômica e diplomática. A luta pela independência passa a interessar países como a Inglaterra,
França, Holanda e mesmo, tardiamente, a Alemanha e Estados Unidos. O desejo te ter influência sobre uma
grande quantidade de mercados leva as nações industrializadas a uma disputa por áreas de influência ou
mesmo coloniais.
3
Não por acaso é fácil perceber o número de fenômenos sociais ligados ao crescimento urbano em larga
escala. As revoltas que surgiram a partir do crescimento urbano e da formação de sociedades complexas
dentro do ambiente das cidades são um exemplo disso. Na Inglaterra, nação pioneira no processo de
industrialização, as revoltas se multiplicaram entre 1750 e 1850. Uma das mais conhecidas foi o Movimento
Quebra-Máquinas, que ocorreu posteriormente às ações do movimento cartista e às ações grevistas em
Londres e Liverpool. Mesmo em países periféricos, como o Brasil, os movimentos urbanos se multiplicaram
no final do Século XIX e principalmente ao longo do século XX. Um dos movimentos mais conhecidos
foi a Revolta da Vacina, em 1904. As condições de trabalho eram desumanas. Os mesmos fatores que
impulsionaram as revoltas nas cidades inglesas foram também determinantes para os movimentos que
aconteceram no Brasil.
4
A análise da formação das periferias urbanas, para muitos autores ligados ao estudo das cidades, é a
reorganização das lutas agrárias. No Brasil se discute muito a periferia, as favelas, como uma demonstração
da marginalização agrária estendida para o espaço urbano. A questão da abolição da escravidão estaria
reproduzindo no centro urbano a discriminação e concentração dos descendentes da escravidão nas
periferias, nas favelas. Esta leitura tem lógica se observarmos, no Brasil, a concentração da população
afrodescendente nas periferias. Ela acabou por ser o ponto de chegada dos que tinham sido alforriados e
foram discriminados. A periferia urbana se tornou o reduto para a resistência a discriminação.

A CRISE DO HOMEM OCIDENTAL


155

Muitos dos conflitos gerados na fase agrária das sociedades não indus-
triais serão levados para o ambiente urbano. Em países da África e Índia, rituais
considerados típicos nas sociedades agrárias se reproduzem no espaço urbano
provocando um conflito entre o valor tradicional, que reivindica os movimentos
sociais, e as condições de existência no espaço urbano. Só por tolice podería-
mos considerar que a resistência dos afros nas cidades é uma luta, que começou
nos engenhos brasileiros, contra discriminação e violência praticada contra o
negro na senzala. Só por desconhecimento poderíamos associar as guerras na
África (entre tribos) à tentativa de fazer renascer os territórios e as tradições que
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remontam à era pré-colonial.


Hoje, a violência na África expressa o empobrecimento do continente. A
busca de sobrevivência está associada diretamente à mundialização econômica,
tanto no que diz respeito ao fator que deslocou a massa humana de seus terri-
tórios de origem quanto no que concerne ao desprendimento dos herdeiros dos
habitantes nativos de suas raízes culturais. Parte considerável dos descendentes
das culturas não europeias está sendo educada para resgatar sua própria cultura.
Citamos anteriormente o teatro que é a apresentação de comunidades nativas
aos visitantes. Ou seja, o turista, aquele que não conhece as condições em que
vivem determinadas comunidades, veem o cartão postal e o compram pela rea-
lidade a qual nunca conhecerão. Não há como voltar no tempo para recuperar
as civilizações perdidas. Nesse ponto, a Antropologia perdeu parte considerável
de seu objeto de estudo e agora se depara com o novo, com a civilização ociden-
tal e seus modelos, seus “Monstros Frankenstein” espalhados por todos os lados.
Havia uma propaganda de um carro francês na Índia em que um rapaz pobre
tenta transformar a marretadas o seu carro “velho” no modelo do veículo fran-
cês, o qual a propaganda exalta. O desespero toma conta do rapaz e seu desejo o
leva a forjar, a todo o custo, uma realidade com a qual sonha. Para isso, qualquer
meio vale, até mesmo a força. Os seres humanos escravos da estética “aceitável”
também usam suas marretas. O desespero é idêntico ao do comercial e expressa
a angústia da dúvida: “como ser sem ter”?
Na luta contra a realidade que insiste em nos “fazer infelizes”, toda a forma
de fuga é valida. As receitas de vida “enlatadas” são mais sedutoras por já esta-
rem integradas a uma cadeia de símbolos que estão disponíveis e já são aceitos

Os Novos Rituais de Consumo e a Simbologia Como Diferença


156 UNIDADE III

pela coletividade. Ao assumir a regra estabelecida pela campanha publicitária,


aceito com veemência a permanência de uma vida em “suspensão” com as dores
da condição do que sou. Para isso, toda a simbologia que produzimos industrial-
mente estará pronta para nos anestesiar. Como as dores se multiplicam e qualquer
contratempo se torna um pesadelo para quem nunca suportou a realidade, con-
sumimos meios de conter e amortecer a dor. Somos dependentes dos anestésicos
simbólicos, forjados a marretadas, como na propaganda do veículo francês.
Se compararmos essa condição com a que os nativos viveram quando se
encontraram diante dos bens materiais trazidos pelo “homem branco”, teremos

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uma noção do processo de aculturação que isso provoca. Temos a certeza de que
o objeto que traduz o domínio do ocidente faz por si um trabalho de catequi-
zação e conversão que muitos missionários, ao longo da história da propagação
do cristianismo, não conseguiram. Um exemplo é dado por Frederick Turner ao
falar do uso das armas de fogo pelos nativos da América do Norte:
Deste catálogo ele conclui que “com o arco e flecha, o selvagem do alto
rio Missouri pode passar muito bem sem o nosso comércio, que só se
impõe depois de criar necessidades”. A experiência de Tebeau no esta-
belecimento de vínculos comerciais no novo território levou também
a definir os três estágios de intercâmbio com os “selvagens”: “a fase do
outro, no primeiro encontro; a fase do ferro, quando eles começam a
perceber vantagens; e a fase do latão, quando uma experiência bem
longa já mitigou um pouco a sua ferocidade e o nosso comércio já se
tornou indispensável para eles”.

De fato, logo o comércio se tornava indispensável, pois as tribos das


Grandes Planícies cedo adotaram o rifle e bens correlatos; acostuma-
ram-se também com álcool, café, açúcar, cobertores e diversos tipos de
enfeites. O chefe Crow Plety-Coups lembra que seu povo demorou a
adotar os rifles carregados com cápsulas – que vieram depois dos que
eram carregados pela boca –, mas quando isso aconteceu, afirma:

“Eu não sosseguei até conseguir um rifle desses, que me custou dez
mantas muito boas. Esse rifle podia ser recarregado num cavalo a ga-
lope. Abandonei para sempre o meu arco. Alguns dos meus velhos, no
entanto, continuaram usando a sua arma familiar. Compreendia a sua
atitude antes da chegada do rifle de cápsulas, mas agora o arco me pa-
recia apenas um brinquedo (TURNER, 1990, p.264).

A CRISE DO HOMEM OCIDENTAL


157
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O que se assiste entre os dois momentos apresentados anteriormente é a capaci-


dade de incorporação que a simbologia associada aos objetos pode gerar. Não é
simplesmente o carro ou o rifle, é o significado que sua posse gera para os demais
membros da comunidade onde se reside. O efeito que faz ter a posse de deter-
minados bens conta tanto quanto seu uso. Vale lembrar aqui que aquele que
detém uma arma tem a intenção de usá-la, mas por qual interesse, este com cer-
teza não será algo nobre, de valor, ou que mereça, quase sempre, o uso excessivo
da força. O que gera a manipulação de um elemento que foge a minha compre-
ensão como ser humano, o objeto não produzido por nós, encanta e gera um
poder entre os nossos. Essa simbolização ocorreu ao longo do processo de oci-
dentalização. Foi ela a destruidora das comunidades nativas e a responsável por
romper a distância entre o ocidental e os demais povos que habitam o Planeta.
O “Outro” ficou cada vez mais parecido.
A propagação do produto ocidental traçou um plano de dominação ao pene-
trar na vida das comunidades nativas. Ao usarem um objeto industrializado que
não dominavam e o qual não eram capazes de produzir, permitiram que um ecos-
sistema fosse rompido. Diante da ausência do “saber fazer” e da necessidade de
seu uso, ocorreram mudanças nos sentidos das relações pelo bem material “estra-
nho” ou “estrangeiro”. Ao colocar aquele objeto dentro do seu mundo, de sua
linguagem, de seu universo simbólico, a comunidade nativa viria a degradar-se

Os Novos Rituais de Consumo e a Simbologia Como Diferença


158 UNIDADE III

sem retorno aos seus símbo-


los e significados originais5.
O prestígio, por exemplo,
passa a ser dado àquele que
tem acesso aos bens troca-
dos com os ocidentais. Ter
a arma, o chapéu, o colar de metal, os sapatos, o fraque, a cartola e qualquer que
seja o apetrecho dá ao membro da comunidade notoriedade sem que ele tenha
que se submeter ao ritual de seu grupo. A imposição da dominação não é apenas

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comandar, governar o território militarmente, se impor pela legislação, o domí-
nio é também simbólico e garante o poder pelo desejo do dominado reproduzir
o valor do dominante na aquisição dos objetos.
Para refletirmos um pouco sobre a importância do símbolo e seus efeitos,
vale mencionar o poema de Mário Quintana, “Supremo Castigo”:

O SUPREMO CASTIGO
Em todos os aeródromos,
Em todos os estádios,
No ponto principal de
Todas as metrópoles
- Quem é que não viu – aquele cartaz.
De modo que,
Se esta civilização desaparecer
E seus dispersos e bárbaros sobreviventes
Tiverem de recomeçar tudo, desde o início
- Até um dia também
Tenham seus próprios arqueólogos
- Estes hão de sempre encontrar,

Quantas guerras foram travadas por comunidades nativas utilizando as armas ocidentais. Para aliciar os
5

nativos que se deseja dominar, nada melhor do que promover o escambo, a troca de objetos, e introduzir
o produto em uma comunidade. Se, por séculos, a Cruz foi o símbolo maior da dominação, carregado
de um ideário ocidental, hoje, os símbolos dos produtos mundiais produzem um efeito devastador. Eles
promovem mais certezas do que dúvidas e rompem mais fronteiras do que, se comparados, o cristianismo
nos tempos de colonização.

A CRISE DO HOMEM OCIDENTAL


159

Nos mais diversos pontos do mundo


Inteiro, aquela mesma palavra.
E pensarão que COCA-COLA
Era o nome do nosso Deus!
(Mário Quintana)
No poema de Quintana, há uma verdade implacável, somos idólatras de símbolos
e os transformamos em deuses. Há uma liturgia que nos faz admirar o objeto e
colocá-lo em um lugar sagrado. Damos a ele os atributos de uma divindade por
conta dos efeitos mágicos que provoca em nossas vidas. Ter o elemento sagrado
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para se associar ao que ele representa não é novidade nas sociedades humanas.
Nossa vinculação aos objetos, a nossa identificação e da própria natureza, expres-
sam-se como uma linguagem. Como negar a condição que determina nossa
leitura do universo e fazer com que ele tenha sentido?
Com a multiplicação dos elementos midiáticos na atualidade, não podemos
mais escapar dessa possiblidade de simbologia. Faz-se necessário entender os
efeitos da relação com múltiplos símbolos e suas consequências na vida social.
Esse tem sido o objeto de interesse da Antropologia contemporânea. Nas cida-
des, os grupos humanos se segmentam. As tribos urbanas, como se costuma
dizer, se multiplicam e traduzem as novas formas de se estabelecer diferenças
dentro da sociedade. Michel Maffesoli, em sua obra “Tempo das Tribos”, afirma:

Essa é a experiência ética que a racionalização da existência havia ba-


nido. É isso, também que a renovação da ordem moral traduz de modo
bastante equivocado, pois perante racionalizar e universalizar as rea-
ções ou situação – pontuais aparentando-as como novos a priori, quan-
do sua forma provém do fato de estarem ligadas a uma sensibilidade
local. E não é senão a posterior que elas se encadeiam num efeito de
estrutura global. O ideal comunitário de bairro ou aldeia age mais por
contaminação do imaginário coletivo do que por persuasão de uma
razão social, Para retomar um termo que foi empregado por W, Benja-
min em sua reflexão sobre a obra de arte, direi que estamos na presença
de uma “aura” específica, que num movimento de feedback provém do
corpo social e, de retorno o determina. O que resumirei da seguinte
maneira: “a sensibilidade coletiva, originária da forma estética acaba
por constituir uma relação ética (MAFFESOLI, 2000, p. 27).

Os Novos Rituais de Consumo e a Simbologia Como Diferença


160 UNIDADE III

Tanto nas sociedades urbanas como em núcleos agrários, geramos um triba-


lismo simbólico, por muitas vezes, carregado de um imaginário determinado
por uma organização aparentemente racional, mas que se estabelece com um
sentido aparentemente próprio de cada lugar. Porém, esse sentimento “próprio”
é uma reordenação das determinações simbólicas globais. É a isso que Maffesoli
se refere. Para ele, não há uma lógica determinante na racionalidade que poderá
prever todas as manifestações sociais. Há uma construção dos elementos grupais
que se intensificam com as influências globais. Se analisarmos as manifestações
ocorridas no Brasil em junho e julho de 2013, vamos entender que ocorreram

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muito mais pela emotividade da fusão de elementos com interesses próprios do
que pela organização de um movimento com um fim de maior relevância definido.

A PERDA DE IDEOLOGIA

Há uma diferença que estamos acostumados a presenciar na racionalidade que


dominou o mundo acadêmico desde o século XIX, a decadência ideológica. A
proposta de uma ideologia que venha a se estabelecer e superar todas as desi-
gualdades constituídas na vida humana remonta à antiguidade e foi forjada no
Ocidente a partir do cristianismo. Viver em plena igualdade tem sido objetivo
final dos grandes projetos ideológicos.
O ocidente propagou suas conquistas estabelecendo seu modelo econômico,
social e cultural como uma forma de impor essa igualdade. As conquistas estabe-
lecidas pela civilização ocidental necessitaram consolidar valores que formaram
um sentido lógico para os movimentos sociais. Podemos exemplificar esta ques-
tão lembrando que os sentimentos que movem os seres humanos na sua vida
pessoal têm os mais variados sentidos, mas importam pouco como legado social.
As forças lógicas são aquelas que movem as massas humanas e não as particu-
laridades. Um exemplo, se os jesuítas, ou senhor de engenho do Brasil Colônia,
tinham em sua vida privada os mais diversos interesses, os quais conduziram sua
vida com seus detalhes até a morte, esses fatos, por si só, tem pouca relevância
na construção de uma ordem social complexa que os subordinou.
Construir um conceito comum que fosse aceito por todos os seres humanos,

A CRISE DO HOMEM OCIDENTAL


161

gerando um sentimento de verdade absoluta, uma estética e uma ética comum.


O que presenciamos hoje, na chamada globalização, onde a mensagem que se
propaga como ideal é a ética e estética comum, no seu pano de fundo, busca tam-
bém o rompimento com a diferença, não material, da qual o capitalismo jamais
poderá abrir mão. Porém, fala de uma igualdade racial, uma inclusão intensa de
todos e em todos os lugares.
Não podemos considerar essa inclusão como verdadeira, e sim como uma
forma de forjar uma sociedade ideal diante de uma condição real de desigual-
dade. Porém, na ilusão que as mensagens publicitárias propagam, ela parece
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possível. A fantasia do pertencimento se coloca resolvida quando os valores esté-


ticos e simbólicos industrializados permitem associar elementos de diferença
como iguais. Na atualidade, os conflitos históricos, aqueles que marcaram a iden-
tidade humana, ou serviram de referência para posicionamentos importantes
ideologicamente. Se considerarmos o preconceito racial, as questões religio-
sas, o comportamento sexual, estes são alguns dos temas polêmicos que ainda
povoam dilemas contemporâneos. Mas há uma solução rápida para romper a
ideia de exclusão, o consumo. A associação de indivíduos a determinados ser-
viços e produtos resolvem, aparentemente, conflitos milenares.
Gera-se assim um relativismo perigoso. A diferença que se quer superar é
ao mesmo tempo ressaltada. Gera-se a contradição de se pertencer a uma massa
padronizada em seus desejos e valores, sendo, contudo, o acesso aos bens muito
distintos. Assim, ter o que o outro não tem me faz ser “Eu” e coloca os demais no
mundo dos “Outros”. Porém, não há coisa singular no mundo da indústria da cul-
tura de massa. Todo o valor propagado é para a massa, para um número imenso
de pessoas, para o consumidor do bem industrial. Contudo, os que adquirem o
todo pela particularidade acreditam estar diante de um objeto ou momento único.
Essa busca pela particularidade tem sido trabalhada arduamente pelas ciên-
cias sociais para entender as condições em que os seres humanos se organizam
e buscam dar sentido à vida em sociedade. Porém, mais complexa do que essa
condição está a que estabelece para os seres humanos o sentido de si mesmo.
Nesse sentido, a formação da identidade vai ganhando espaço também como
objeto científico.

Os Novos Rituais de Consumo e a Simbologia Como Diferença


162 UNIDADE III

Na sociedade contemporânea, multiplicam-se os encontros dos mais variados.


Eles são muitos e se estabelecem das mais diferentes formas no mundo urbano.
Nas cidades, há encontros entre culturas trazidas por imigrantes que vieram de
lados opostos do mundo. É possível em Nova York ter bairros que se avizinham
onde as decorações de rua denunciam que se trata de um habitat de imigrantes,
uns vindos da Ásia e outros da porção latina da América.
Na forma como se organiza a economia mundial na atualidade, os acessos às
condições materiais se generalizam em ambientes de consumo dos mais varia-
dos. O que não falta nos cantos do mundo é um local onde se possa consumir,

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comprar, adquirir serviços e produtos. Porém, os majestosos ambientes da aqui-
sição não são para todos. Denuncia-se uma falsa democracia na atualidade. Nos
desejos de todos está o que se quer em comum, todos querem bens parecidos ou
desejam que frequentar determinados lugares. A inclusão tem um sentimento
de igualdade possível não por ter acesso as mesmas possiblidades, mas por ter
determinados bens que lhe atribuem o direito de ser respeitado. Associando à
aquisição, fator vital da inclusão, ao local público. Esta é uma forma eficiente,
mas superficial, de superar barreiras de discriminação.
Na rede econômica planetária os bens de consumo não têm comprometi-
mento com as relações concretas onde circulam os bens produzidos. O garoto
da periferia ou o residente de um condomínio de abastados podem circular
com o mesmo objeto. O bem desejado é o que há de comum, o que aproxima
os dois elementos distantes em seus ambientes. O excesso e a falta não deixam
de compactuar com o mesmo desejo. Sempre haverá uma busca frenética pelo
que não se tem.
Em nenhuma outra sociedade se constituiu uma vida estabelecida no desejo
da aquisição. O objeto de desejo é produzido em série e se envolve em uma sim-
bologia industrializada de larga escala, sendo direcionada a todos e saciando a
busca da existência particular. A todo o momento há algo novo a se buscar. Esse
novo desejo é ditado mundialmente, sendo muitas vezes lançado internacional-
mente para distinguir os possuidores dos despossuídos, um diferencial vital na
sociedade contemporânea.

A CRISE DO HOMEM OCIDENTAL


163

Fazer diferença por meio da aquisição é um comportamento cada vez mais


constante na sociedade. Precisamos justificar nossa existência e agregar a ela um
bem que seja desejado pelos demais. Fomos contaminados pela lógica dos obje-
tos disponíveis nos mercados, temos uma existência voltada para os outros, ela
é ditada na condição dos demais lerem em nossa vida um sentido. A coleção de
objetos nos imprime um significado. Para se constituir uma identidade, é neces-
sário organizar o mosaico dos elementos simbólicos adquiridos no mercado.
Objetos e serviços desejados por quase todos, buscados por uma parte e possu-
ído apenas por alguns, porém queremos sempre mais, nunca estamos satisfeitos.
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O bom comportamento deixou de ser aquilo que se constitui uma necessidade


social para ser o direito de satisfação digna da particularidade. Essa ganância
individual ganha destaque nas mensagens públicas e privadas. Estamos a todo
o tempo vendendo ao particular algo de seu interesse privado. Diante do “Eu”
supremo a coletividade se reduz, os “Outros” se transformam em um detalhe
organizado a partir do indivíduo. Os parâmetros da coletividade e do interesse
maior se perderam, eles já não importam enquanto meta comum para garan-
tir a convivência, a permanência de todos juntos. A fraternidade social, um dos
postulados das teses liberais, só é possível na conjuntura da sociedade atual se
a mínima vontade da particularidade for respeitada. A chamada “dignidade da
pessoa humana” se banalizou.
Toda essa argumentação é para entendermos a cadeia mundial de produção
da atualidade, como a produção mundial atinge a cada um de nós e qual o sig-
nificado que ela apresenta. A produção em série de bens dentro de uma cadeia
planetária de produção, a chamada fábrica mundial, segundo Ianni (1999), rom-
peu fronteiras e se estabeleceu na vida de cada um como uma realidade. Estamos
manipulando produtos cujos componentes vêm de diversas partes do mundo.
Sua montagem pode ser feita na China, na Índia, no Brasil, ou em um país afri-
cano. Porém, sua tecnologia pode ser originária de um país europeu, dos Estados
Unidos, do Japão ou de outro país do continente asiático. Mesmo a simbologia
organizada em torno do produto pode trazer uma marca tradicional italiana,
francesa, inglesa, norte-americana etc. O mundo compra o mundo pela aparên-
cia e também pela essência, contudo, mais vale a mensagem aparente.

Os Novos Rituais de Consumo e a Simbologia Como Diferença


164 UNIDADE III

Ela determina o sentido do bem consumido e esconde sua mundialização


nas condições de produção.
Atrás dessa cadeia produtiva mundial, há também um diferencial humano
interligado a essa condição de produção. Parte significativa dos bens produzi-
dos no mundo são confeccionados em condições degradantes. Essa realidade
violenta na estrutura produtiva existe, mas não é percebida. Parte considerável
dos bens de consumo está associada à rede mundial de produção que argumen-
tamos há pouco. Essa rede tem dentro de si uma malha de relações produtivas
diferenciadas nas regiões nas quais arregimentam meios e forças de produção,

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assim como matéria-prima. A realidade de trabalho para o número imenso de
seres humanos envolvidos direta ou indiretamente na produção de bens mundiais
é contraditória, desigual e surpreendente diante da imagem do bem produzido
e sua simbologia.
Há uma exploração maciça de trabalhadores que desempenham suas ati-
vidades em condições desumanas na cadeia produtiva mundial. Isso é um fato
conhecido e preocupante. Essa realidade é mantida exatamente pela importân-
cia da redução dos custos de produção, que utiliza um número significativo de
seres humanos disponíveis para exploração em larga escala. Os ambientes de tra-
balho onde eles são dispostos são regidos por um Estado nação que compactua
e gera condições para a exploração massiva de trabalhadores. Na Índia, cons-
tantemente se têm notícias de desabamentos de prédios que matam centenas de
trabalhadores. Edificações precárias que abrigam facções de empresas que pres-
tam serviços para marcas internacionais ruem e provocam a morte de pessoas.
A marca que está associada ao produto não será lembrada quando a catástrofe
for anunciada nos meios de comunicação mundiais, se quer percebida ou asso-
ciada, na hora da aquisição do produto.
A quantidade de pessoas disponíveis para a exploração em larga escala cresce
nos países periféricos. Nesse sentido, o termo “periferia” necessita ser trabalhado
com cautela, tanto no que diz respeito à periferia econômica (região marginal na
rede de decisões, de comando, da economia capitalista) quanto no que se refere
aos espaços físicos dos centros urbanos ou conglomerados de cidades, chama-
das de periféricas. Há uma diferença significativa entre esses dois conceitos.

A CRISE DO HOMEM OCIDENTAL


165

Na atualidade, o que se se chamava de nação rica é discutível. O que temos


são regiões ricas, cidades viáveis e de potencial de renda significativo e quali-
dade de vida elevada. Por outro lado, dentro do mesmo espaço urbano há uma
desigualdade gritante. É possível fazer um recorte entre a riqueza e a pobreza, a
concentração de renda e a miserabilidade em territórios próximos, vizinhos. Não
há mais um distanciamento padronizado entre o viável e o inviável em grande
parte da cadeia mundial de produção.
Dentro da vida urbana, das desigualdades de condições encontradas nas cida-
des, há uma periferia. Ela é marcada pela ausência do básico e apaixonada pelo
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supérfluo, e no que diz respeito a esta última característica, tanto quanto as regi-
ões requintadas do espaço urbano, onde vivem aqueles consumidores “naturais”.
As periferias amam os produtos e são capazes de sentir nele uma inclusão que
os programas sociais de governo não podem resolver. A periferia está ligada à
idolatria dos signos da cadeia mundial com a mesma intensidade que os consu-
midores considerados ideais para a aquisição do bem. Lembrando que o termo
“ideal” utilizado por nós não pode ser restrito, e sim estético. Na propaganda,
há aquele que se associa esteticamente ao bem. Observando e incorporando a
mensagem publicitária está aquele que não se reconhece na estética natural do
bem, mas pretende tê-la ao adquirir o produto.
Logo, o desejo de possuir um bem de consumo aproxima os desiguais e realça
a diferença. Coloca-nos acima dos problemas coletivos. Um determinado bem con-
sumido e toda a simbologia que ele traduz nas mensagens publicitárias permite
valorizar o particular e destacá-lo diante de uma realidade empobrecedora. Uma
expressão simbólica inversa à condição comum de todos da comunidade a qual
pertenço. Se resido em uma periferia marcada pela falta de condições básicas, onde
a renda per capita é baixa, ter um objeto de desejo nas mãos é expressar minha
“singular” diferença. A telefonia móvel é um elemento de inclusão social, não há
dúvida, mas a importância dos aparelhos que permitem isso gera mais relevância
para a particularidade do que a necessidade social do sistema de comunicação.
Se observarmos toda a construção simbólica em torno do bem de consumo
e da prática de consumir vamos entender a reflexão que Jean Baudrillard (1995)
desenvolve sobre a transformação do homem em objeto. Considera que a cons-
trução de uma identidade a partir da simbologia do consumo rege as relações

Os Novos Rituais de Consumo e a Simbologia Como Diferença


166 UNIDADE III

entre os seres humanos e os objetos. O ser é o que a coisa à qual estou associado
determina. Minha existência se expressa na possibilidade de ter a mensagem
publicitária como a explicação vital para a vida. Estamos cercados pelos obje-
tos, como afirma Baudrillard:
À nossa volta, existe uma espécie de evidência fantástica do consumo e
da abundância, criada pela multiplicação dos objetos, dos serviços, dos
bens materiais, originando como uma categoria da espécie humana.
Para falar com propriedade, os homens da opulência não se encontram
rodeados, como sempre acontecera, por outros homens, mas mais por
objetos. O conjunto das suas relações sociais já não é tanto o laço com

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seus semelhantes quanto, no plano estatístico segundo uma curva as-
cendente, a recepção e a manipulação de bens e de mensagens, desde a
organização doméstica muito complexa e com suas dezenas de escra-
vos técnicos até ao “mobiliário urbano” e toda a maquinaria material
das comunicações e da natividades profissionais, até ao espetáculo per-
manente da celebração do objeto na publicidade e as centenas de men-
sagens diárias emitidas pelos “mass media”, desde o formigueiro mais
reduzido de quinquilharias vagamente obsessivas até aos psicodramas
simbólicos alimentados pelos objetos noturnos (...) (BAUDRILLARD,
1995, p.15).

Essa condição de vida estabelecida a partir de uma grande quantidade de bens


de consumo e de sua oferta, e esta relação entre o elemento humano e o outro
intermediado por bens simbolizados na mídia como uma extensão da natureza
humana tende a crescer cada vez mais. Há uma proliferação da ideia de que se
todos tivessem acesso aos bens de consumo a felicidade reinaria. Seria a abundân-
cia como condição de superar a desigualdade impossível de se dar efetivamente,
visto que é a diferença que move o desejo pelos objetos. Ao se propagar o desejo
pelo bem de consumo, estamos vendo a propagação da fusão entre o princípio
da convivência coletiva com a condição imediata das particularidades. O que
pensamos como melhoria das condições sociais de todos passa a ser avaliada
e determinada pela particularidade. É a vida particular a qual irá determinar a
condição comum, a de todos. Eu passo então a transformar o bem comum em
uma condição privada. A minha condição de vida privada é parâmetro para ava-
liar as questões que envolvem a humanidade.

A CRISE DO HOMEM OCIDENTAL


167

O aparecimento destes direitos sociais novos, que se agitam como “slo-


gans” e como anúncio democrático da sociedade de abundância, surge
como sintoma real da passagem dos elementos mencionados à cate-
goria de sinais distintivos e de privilégios de classe (ou de casta). O
“direito ao ar puro” significa a perda do ar puro como bem natural, de
igualitária. Seria bom não considerar como progresso social o objeti-
vo (a inscrição como “direito” nas tábulas da lei), o que não passa de
progresso do sistema capitalista – isto é, de transformação progressiva
de todos os valores concretos e naturais em formas produtivas, ou seja
em fontes de lucro econômico e de privilégio social (BAUDRILLARD,
1995, p.57).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Na condição em que a eco-


nomia mundial se apropria
e integra as mais diver-
sas regiões do mundo,
temos que levar em con-
sideração a superação dos
entraves jurídicos locais.
As normas regionais, dos
estados, devem ser supe-
radas pela permissão ao
acesso ao bem de con-
sumo. Legitimar o direito
do consumidor ou estabelecer a possibilidade do consumo como condição vital
para o exercício da cidadania é fundamental para se estabelecer o “bem-estar”.
Porém, para ter, tem que pagar, ou do próprio bolso ou mediante políticas sociais
que elevem o excluído à condição de consumidor.
Um dos elementos que ganhou prestígio na sociedade atual é a questão
ambiental ou de sustentabilidade. Ela transformou em necessidade a busca por
um ambiente saudável com múltiplos entendimentos. Nunca foi tão simples enten-
der e difícil definir o que é a sustentabilidade. Nesse contexto, ela é impossível
dentro de uma lógica de transformação da natureza que procura obter o neces-
sário para o uso, porém buscada como condição do homem que contribui para a
permanência do meio ambiente natural, evitando que este seja degradado, assim
faz-se com que a impossibilidade se transforme em meta. Por isso, a simplicidade

Os Novos Rituais de Consumo e a Simbologia Como Diferença


168 UNIDADE III

está na aquisição de um “produto verde”. Diante da “culpa” se compra o “perdão”.


Essa multiplicação de possibilidades de consumo de bens é uma meta. Ela
deve ser superada pelas empresas para atingir a todos em todos os lugares.
Falamos por muitas vezes no desenvolvimento de uma inteligência voltada ao
consumo, assim como das estratégias de sedução dos seres humanos para se
sentirem incluídos por meio da aquisição. Convencer a todos com mensagens
massificadas, mas direcionadas a cada um o apelo à necessidade de consumir
para se incluir. As respostas para os dilemas da vida humana se tornaram fáceis.
Ninguém consegue reduzir em uma frase a essência da vida humana como um

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
publicitário. É como se a filosofia fosse tomada de assalto pelo profissional de
propaganda, e a reflexão se transformasse na busca do melhor slogan para lite-
ralmente se vender uma ideia.
Quando a novidade salta aos olhos como um surpreendente encontro, a
resposta para os nossos problemas parecem vir de um “estalo”. Tudo se resolve
como em um passe de mágica. Dessa forma, “a grande tacada” será dada e todos
os demais problemas acumulados ao longo do tempo, com um histórico neces-
sário para o seu esclarecimento, se torna obsoleto. Desparece a necessidade da
lógica profunda e emerge a crença simples de uma lógica resumida. A frase de
impacto pode traduzir o que os pensadores ao longo do tempo não consegui-
ram desvendar, o mistério da vida6.
Com a simplificação, faz-se o distante ficar perto, o complexo se torna sim-
ples e a condição de existência se reduz à experiência da particularidade. Uma
banalidade se torna um fato de relevância e passa a dominar as manchetes dos
jornais ou a se associar aos símbolos publicitários. Revive-se e reveste-se a bana-
lidade com toda a pompa para que ela se torne, na estética do imediato, mais
relevante ao ponto de encobrir temas efetivamente importantes. Nesse contexto,
emerge o que se chama de minorias, a condição que antes existia como exten-
são de um elemento menor agora se encontra diante de seus próprios interesses

Uma evidência interessante do quanto estamos vendendo a falsa ideia de inteligência e enlatando a
6

complexidade esta nos livros de autoajuda ou os manuais de pensadores em forma de livro de bolso. De fácil
leitura, trazem um número imenso de frases de pensadores diferentes. As ideias contraditórias dos teóricos
desaparecem diante da necessidade de atender a um leitor sem capacidade e tempo para compreender a
complexidade das ideias. Dessa forma, tudo se resume e se alia às oposições históricas. Em uma mesma
obra, é possível encontrar uma obra de Locke e de Marx, ou aliar as mensagens de Comte às devesas de Mao
Tsé-Tung. Não há comprometimento com a coerência ideológica, mas sim com a particularidade rasa.

A CRISE DO HOMEM OCIDENTAL


169

e deve ser atendido de forma prioritária.


Há uma multiplicação de movimentos ligados a minorias com gays, lésbicas,
negros, mulheres, indígenas, idosos, moradores das periferias e comunidades
das mais diversas. Os que se enquadram nesses seres excluídos podem reivin-
dicar a inclusão. Agora a democracia se faz por migalhas, na busca de juntar as
partes de pequenos excludentes e suas condições imediatas de exclusão se prega
dar benefícios aos excluídos e aceitar sua condição sem gerar um ambiente que
lhes permita o acesso a oportunidades. O que antes era fruto de uma proposta
mais ampla que merecia o comprometimento de uma força social maior e aten-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

dia a inúmeros interesses, agora está compartimentalizada e se refere a um grupo


restrito. O atendimento no varejo deve satisfazer ao “cidadão-cliente” de forma
personalizada.
Essa confusão entre a cidadania e o excesso da particularidade se apro-
funda ainda mais se levarmos em consideração a exclusão da vida do consumo.
Manifestações públicas de aparência focada em um ideal coletivo, na defesa do
interesse cidadão, multiplicam-se. Porém são aparentes, o que os move é a busca
de satisfação privada. Os excluídos de determinado ambiente agora se colocam
na condição de exigir o acesso a lugares os quais costumeiramente são proibi-
dos de frequentar por conta de suas condições financeiras. Não ter o poder de
consumo de determinados bens e lugares está se transformando em uma rei-
vindicação social justa. Chamam os agentes do ato, de manifestação contra a
opulência, de luta contra o preconceito aos menos favorecidos. Haverá um dia
que não ter um cartão de crédito é uma humilhação tão profunda como perten-
cer a uma minoria racial constantemente discriminada. Porém, a questão não é
racial e, se existe uma linha divisória entre os que podem e os que não podem,
ela é definida muito mais pela renda do que por algum tipo de apego cultural
vinculado ao passado.
Os movimentos sociais perderam sua sustentação ideológica. A simplifica-
ção da lógica que impulsiona o movimento facilita a conquista de adeptos para
as causas mais tolas. A simplicidade do raciocínio acaba por gerar um campo fér-
til para o autoritarismo ou extremismo que esses movimentos por muitas vezes
expressam. Mesmo a violência praticada por manifestantes que promovem a des-
truição e saques de lojas, mercados, escolas, postos de saúde, etc. Não há critério,

Os Novos Rituais de Consumo e a Simbologia Como Diferença


170 UNIDADE III

há apenas a manifestação que se desvia constantemente de uma meta maior para


não perder a oportunidade de destruir ou saquear sem ter que se responsabilizar.
Muitos manifestantes arrombaram bancos, destruíram concessionárias de
veículos, saquearam mercados e lojas. A oportunidade de destruir o patrimô-
nio alheio sem culpa não podia ser perdida. Quem pode encontrar na multidão
o responsável? Ele estava perdido em meio à massa, com o rosto quase sempre
encoberto. Ele se autoriza, pelo movimento coletivo, a agir por conta própria.
Sua ação descaracteriza a lógica do movimento do qual participa. As cenas mis-
turam os vândalos aos manifestantes e confunde-se um com o outro.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Não podemos deixar de considerar que o ambiente simbólico promovido
pela economia mundial gera essa fusão entre cidadão e consumidor. Eles já não
podem ser separados nas análises de seus comportamentos ou em relação àquilo
que desejam. É na busca de realizar o desejo particular, disfarçado no discurso
do “bem comum”, que repousa o estímulo para agir. Quem se compromete com
a meta de atender seus próprios interesses se sente incluído no debate social.
As minorias se formam então nesse bojo. Voltadas para os seus interesses,
gerando seus próprios partidos políticos, multiplicados para atender interesses
específicos e contribuindo para a manutenção de uma ordem cada vez mais desi-
gual. Segundo Baudrillard:
É a lógica da classe que impõe a salvação por meio dos objetos, que é
uma salvação pelas obras: princípio “democrático” oposto à salvação
pela graça avantaja-se sempre em valor à salvação pelas obras. É em
parte ao que assistimos na classes inferiores e médias, onde a “prova
pelo objeto”, a salvação pelo consumo, se asfalta por atingir um estatuto
de graça pessoal, de dom de predestinação. Mas este, seja como for,
continua a ser privilégio das classes superiores que, por outro lado,
comprovam a sua excelência no exercício da cultura e do poder
(BAUDRILLARD, 1995, p.59).

O querer se redimir da culpa por meio da aquisição se torna um elemento chave


para o entendimento do porque estamos cada vez mais interessados na condição
efetiva dos nossos interesses atendidos e não numa relação social que privilegie o
conjunto no qual estamos inseridos de forma mais ampla? Nesse emaranhado de
particularidades, se valorizam os fragmentos e não se tenta dar forma ao todo. As
ciências, em quase todos os seus campos de conhecimento, estão cada vez mais

A CRISE DO HOMEM OCIDENTAL


171

voltadas ao estudo dos elementos ligados aos fragmentos da vida, do olhar, no


elemento individual. A busca de estudar os pontos específicos da sociedade sem
estabelecer uma regra metodológica coletiva. Para os que ainda estão apegados às
teses dos grandes clássicos, onde é necessário entender uma lei geral e promover a
busca de uma ação política comum, a preocupação com o imediato não tem valor.
Por isto, esses teóricos ficam tão fora de uso na atualidade. O clássico é chamado
de ultrapassado, mas na prática apontou problemas que ainda não se resolveram.
Nas mensagens que marcam as vidas estão frases ligadas ao mundo da vivên-
cia individual. Nossos periódicos multiplicam-se com temas específicos voltados
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a um determinado público. Como se certas questões dissessem respeito, exclu-


sivamente, a um determinado grupo de indivíduos. Estamos, com isso, gerando
um tribalismo urbano, identificando um grupo de pessoas com símbolos e pre-
ocupações, gerando um reduto de particularidades, essas por sua vez irão se
transformar em fronteiras, em uma muralha erguida tijolo a tijolo para prote-
ger os “Nossos” interesses tribais.
Se houver alguma dúvida do pertencimento a determinado grupo, se ocor-
rer de a crise existencial atingir um determinado número de pessoas, elas podem
procurar mecanismos disponíveis de inclusão. Haverá um número de pessoas,
uma coletividade segmentada, disposta a fazer a inclusão. Nas páginas sociais,
se multiplicam estes grupos. Eles se organizam para promover suas ações de rei-
vindicação sem o comprometimento da eterna união. Podem estar juntos hoje,
mas isso não é duradouro. A identidade volátil se adapta e facilmente se desfaz
sem deixar vestígios. Por isso, a angústia da memória, da lembrança e do legado.
Nada ficará para a posteridade, tem que ser consumido agora.
Não por acaso, os produtos vendidos no mercado mundial obedecem a um
fluxo e refluxo constante, tudo é possível de cair no esquecimento, mas em seu
aparecimento ou auge se colocam como eternos. A publicidade promove a ade-
são à nova “onda”. A moda retrô se consolida na perspectiva da volta da estética
a um passado sem que seja necessária sua compreensão mais profunda. Os anos
50 ou 60 nunca voltarão a nossa memória com todo o peso de sua existência, com
o legado que ainda persiste. Eles serão vividos nos móveis, no jeito da roupa ou
do cabelo, na frase de efeito dos líderes, dos grandes personagens do período.
Nada que fira a mente fraca limitada quando se trata de grandes raciocínios.

Os Novos Rituais de Consumo e a Simbologia Como Diferença


172 UNIDADE III

A memória é hoje mais uma aparência do que a essência. Os monumentos


históricos são espaços de apreciação sem entendimento de seu significado mais
profundo. Todos sabem que simplificações podem provocar ações irresponsá-
veis pela ausência da consciência. Parte considerável de nosso comportamento
imediato é, também, resultado da desinformação, cultuada em quase todos os
lugares. Hoje, até mesmo na escola, o domínio de certos mecanismos básicos
não implica a capacidade de reflexão racional e lógica esperada.
Se repararmos, vamos perceber o quanto a ciência está banalizada e pouco
contribui para a compreensão da realidade. O que se aprende como fundamento

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racional da vida, que está na construção do sentido dessa civilização (ocidental),
agora é minimizado. Todos podem frequentar a escola, o que parece uma vitória.
Há menos de 50 anos, faltavam instituições de ensino básico, médio ou superior,
as pessoas deveriam aceitar o rompimento da vida escolar pela ausência de uma
instituição educacional. Ingressar no ensino superior foi o desejo de muitos, a
condição de poucos e a valorização do conhecimento adquirido como uma pos-
sibilidade de mudança concreta da vida. A formação acadêmica, o laureado, era a
comprovação simbólica da eficiência do ser humano que estava associado ao que
era uma conquista. Parece, contudo, que as instituições de ensino se proliferaram
na proporção em que o conhecimento ficou medíocre e seu domínio desmerecido.
Há uma diferença fundamental entre elevar o nível das pessoas ao de uma
instituição acadêmica e rebaixar as exigências da formação educacional para dar
sensação de inteligência a massa ignorante. Reduzimos a altura dos obstáculos
para aumentar a porção de vitoriosos. Tudo para dar aos derrotados um motivo
de orgulho. Quantos não ficariam para trás se a eficiência fosse exigida daque-
les que se dispõem a cumprir determinadas funções?
O que estamos presenciando é o rebaixamento do saber. O conhecimento
fundado na lógica simplificada, como já afirmado antes, é o que se desenvolve
atualmente. O saber científico, com toda a sua complexidade, não é mais pré-re-
quisito para se entender uma questão relevante na vida social. A abordagem de
temas complexos segue o roteiro simples que tenta facilitar a compreensão pela
redução da lógica. O improvável, os opostos, a negação, o contraditório, agora,
associam-se e sem que tenham que estar vinculados à necessidade substancial
da racionalidade. Na mídia, essa simplificação é mais notável.

A CRISE DO HOMEM OCIDENTAL


173

Os dados estatísticos, por exemplo, que são trabalhados nos meios de comu-
nicação, são muitas vezes apresentados de forma distorcida, favorecendo uma
associação perigosa entre os números e a dimensão da fatalidade que não corres-
ponde à verdade dos fatos ou permite uma generalização. Índices de renda per
capita, violência, uso de drogas, aborto, prostituição etc. são dados apresentados
como certezas, “costurados” com textos que associam números a comportamen-
tos que não se comprovam com tanta facilidade7. Não se sabe, como em muitos
laboratórios médicos, se estamos diante de uma doença que deve ser curada com
o medicamento certo ou se estamos dando uma dose de tranquilizante para anes-
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tesiar o paciente da realidade.


Sendo assim, o conhecimento sobre a sociedade ocidental é um desafio sig-
nificativo para a Antropologia. Tanto pela perspectiva do antropólogo não ter
mais possibilidade do “olhar distanciado” sobre o “Outro”. Agora, os objetos
de pesquisa do antropólogo é a sociedade a qual ele pertence. Essa sociedade
embaça o olhar. A busca de compreender com olhar limpo, sem a influência da
exaltação constante aos símbolos, é um exercício difícil e estranho ao pesquisa-
dor. Se no passado Malinowski e Boas lutaram para não permitir que os valores
ocidentais viessem a perturbar seu olhar que buscava detectar elementos impor-
tantes da cultura do “estranho”, agora, temos que tomar cuidado para não sermos
dominados pelo ambiente que é “nosso”. O desafio é entender como o outro, o
estranho, nos olharia. O método da alteridade está agora invertido e determi-
nado por um único lado.
Para se ter a dimensão do que o simbolismo representa enquanto condição
na sociedade atual necessitamos retomar a discussão da cidadania fundida com
o consumidor. A relação entre o que é necessário para a cidadania ser exercida,
os direitos fundamentais e deve ser igual para todos, com o lugar onde ocorre a
falsa ideia da sensação democrática, os ambientes de consumo.

Nossa sociedade é abortiva. Prática que já se coloca no Brasil com números preocupantes. Contudo, o
7

tema é mal trabalhado nos veículos de comunicação e está carregado de uma simbologia religiosa. Trata-se
a sexualidade, tema relevante, inclusive para tratar do aborto, como se fosse um tabu. E é importante frisar
que não estamos tratando de uma sociedade árabe, carregada de uma cultura determinante na vida social.
Somos uma civilização fundada na ciência e geramos uma organização política que expressa o interesse de
organizar a vida coletiva sob a égide da racionalidade lógica. Porém, não é isso que ocorre ao se tratar de
certos temas, como os dois que colocamos aqui.

Os Novos Rituais de Consumo e a Simbologia Como Diferença


174 UNIDADE III

Nestes lugares repousa a compreensão de que o consumo poderá nos dar o


que as ideologias mais clássicas não permitiram: a socialização, a distribuição
e a inclusão.
A lógica urbana apossa-se novamente tanto da abundância como dos
prejuízos. A influência do meio urbano e industrial faz aparecer novas
raridades: o espaço e o tempo, a verdade, a água, o silêncio... Deter-
minados bens, outrora gratuitos e disponíveis em profusão, tornam-se
bens de luxo acessíveis apenas aos privilegiados, ao passo que os bens
manufaturados ou os serviços são oferecidos em massa.

A homogeneização relativa ao nível dos bens de primeira necessidade

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dobra-se, pois, de certo “deslize” dos valores e de nova hierarquia das
utilidades. A distorção e a desigualdade não se reduziram, foram trans-
feridas. Os objetos de consumo corrente tornam-se cada vez menos
significativos de categoria social, e até mesmo os rendimentos, na me-
dida em que a maiores disparidades se vão atenuando, vêem diminuir
o seu valor com critério distintivo. É mesmo possível que o consumo
(tomado no sentido de despesa, de compra e de posse de objetos visí-
veis) perca progressivamente o papel eminente que desempenha hoje
na geometria variável de estatuto, em proveito de outros critérios e de
outros tipos de conduta. Em última análise, será o apanágio de todos,
quando já nada significar (BAUDRILLARD, 1995, p.56).

A forma como a organização da vida real é feita não se torna tema elementar para
grande parte da sociedade. Não será tratada com relevância. Busca-se o elemento
que traz a aparente satisfação da redução da desigualdade enquanto a verdadeira
necessidade a ser atendida é desprezada. No Brasil, há uma falta de saneamento
básico que corrói uma parte considerável da condição de vida da população de
baixa renda e lhe deixa a margem de qualquer possibilidade futura. Porém, esse
não é o desejo maior para quem busca o sonho da casa própria. Programas como
o “Minha Casa, Minha Vida” carregam esse estigma.
O ser humano compreende na atualidade a inclusão ao se identificar com
determinados símbolos do consumo que são oferecidos em todos os cantos. Ele
deseja o que todos desejam, mas o que ele não quer é ser qualquer um, impera a
busca do “ser único”. A vontade de realizar o sonho da particularidade, da felici-
dade como uma condição privada, é o apogeu da existência na atualidade. Mais
que o estar vivendo em meio à coletividade, condição vital para a vida do indi-
víduo, viver para si mesmo é uma obrigação que se tem ao nascer.

A CRISE DO HOMEM OCIDENTAL


175

O que nos parece contraditório é que a sociedade ocidental vive a massifica-


ção, a padronização dos bens de consumo. Os produtos mundiais são vistos em
todos os cantos do Planeta, eles são adquiridos, mas também desejados. Eles reme-
tem há uma vida onde a materialidade se humanizou e o ser humano com sua
imperfeição, pode buscar abrigo no objeto para melhorar seu caráter, seu status,
sua reputação. Mas como afirmou Baudrillard anteriormente, não é na aquisição,
no consumo, na renda que irá se estabelecer a verdadeira diferença social, mas na
condição de acesso à vida, à qualidade de viver, ao tempo, à água e ao ar limpo.
Temos que ficar atentos a essa condição em que massificação parece nivelar
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todos no mesmo sentido. Ter alguma coisa em comum com o outro não me faz
um igual. A verdadeira igualdade não está aí. Ela repousa na qualidade humana
de existir, de viver e sentir a humanidade em sua condição legítima, tudo o que o
processo de industrialização não permite ao ser mortal. Por sinal, o ser humano
se esquece constantemente de sua mortalidade.
A sociedade ocidental massifica, mas vê nascer a desesperada busca pela par-
ticularidade, pelo tribalismo, pela exclusividade. Tanto nos produtos como nos
movimentos sociais há uma sociedade se estabelecendo enquanto um recorte na
massa. Uma colcha de retalhos está se constituindo e fazendo com que as cos-
turas que a mantêm unida ao restante do corpo social se desprendam, sem que
deixe de fazer parte do mosaico social. A bandeira gay é conhecida, ela ocupa
o espaço junto com outros símbolos, como as bandeiras dos estados nacionais.
Há um movimento separatista agindo na busca de independência de um deter-
minado território. Não se crê tanto no ideal da causa como na vontade de fazer
algo da própria vida, mesmo que seja de significado duvidoso.
As metrópoles estão cheias de redutos ao mesmo tempo em que estão mas-
sificadas. Seus habitantes são capazes de entender os cartazes, outdoors das
grandes empresas, são apaixonados pelos símbolos e fazem de tudo para tê-los.
O garoto da favela deseja o tênis de marca, sonha com a roupa de grife, com o
carro esporte ou com a moto de muitas cilindradas. Porém, o mesmo garoto sabe
que vive na periferia, nas regiões da exclusão e sofre os efeitos da marginalização.
Ele espera superar essa marginalização com a aquisição dos produtos simbóli-
cos que o fariam ser aceito pelo grupo que ele considera “dominante”, mas que
na prática tem apenas uma coleção maior de objetos.

Os Novos Rituais de Consumo e a Simbologia Como Diferença


176 UNIDADE III

O EMPOBRECIMENTO HUMANO

Nesse emaranhado da sociedade atual, inscreve-se um novo ser humano. Ele é


fruto dessas relações que se estabelecem carregadas de simbolismo. Ela se orga-
niza na construção das particularidades que se tornam o limite onde os olhos
alcançam o horizonte da vida social. Com a proliferação de uma simbologia des-
conectada da substância, da essência que a gera, valoriza-se a expressão estética
e o ser humano que está associado a ela. Não ser aceito esteticamente está se
tornando um fardo social do qual poucos entendem ou sentem o peso, mas ele

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existe. Nunca foi tão difícil ser feio.
Aqui temos o que chamamos de contradição da vida social. Toda a cadeia
mundial de produção da qual falamos é fruto de uma ciência e tecnologia que
geraram as condições para o desenvolvimento da civilização ocidental. Porém, ele
não é mais que um valor distante para a grande maioria dos indivíduos que vivem
e desfrutam de forma desigual das condições que a sociedade planetária gerou.
A potencialidade científica do ocidente a serviço de uma submissão,
de conquista e sedução, aproximou todos os cantos do mundo, integrando
pela força, pela persuasão da economia, pela informação e seus meios,
gerando uma cadeia mundial de dependência, que se chama mundiali-
zação ou globalização. É fato que a economia capitalista se organiza em
uma rede de relações planetária. Essa mesma rede mundial se alimenta, também,
do movimento de pessoas, da
imposição de uma condição
de produção em larga escala
que envolve a grande parte
dos indivíduos. Para resu-
mir, somos frutos de uma
alta capacidade científica e
técnica. Indiscutível.
O homem desses meios
complexos é nada mais que
um ser infantil. Estamos
retomando a “lógica da

A CRISE DO HOMEM OCIDENTAL


177

piscina rasa” para crermos que navegamos em “mar aberto”. Explicamos o todo
pela parte e acreditamos no simplismo como o conhecimento de todas as coisas.
Em todos os cantos, a mensagem que se propaga é a de garantir ao indivíduo o
seu lugar no mundo. Ele deve ser aceito. Não se pode recriminar a individuali-
dade. Para isso, pode-se colocar em prática a lógica da criança, abrir espaço para
a infantilidade como um direito do adulto.
Os rituais sociais estão criando uma criança adulta. Nossas preocupações
repousam em um mundo onde o interesse primário, os direitos tolos, típicos da
primeira idade até a adolescência, são aceitos para os mais velhos.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Ora, o indivíduo infantil, ao contrário, é a utopia da renúncia à renún-


cia. Ele só conhece uma palavra de ordem: seja o que é por toda a eter-
nidade. Não se atrapalhe com nenhum tutor, nenhum entrave, evite
qualquer esforço inútil que não lhe confirme a identidade para si pró-
prio, só dê ouvidos à sua singularidade, Não se preocupe com reforma
nem com progresso ou melhoria: cultive e cuide de sua subjetividade,
que é prefeita pelo simples fato de ser sua. Não resista a nenhuma ten-
dência, pois seu desejo é soberano, Todos têm deveres para com você
(BRUCKNER, 1997, p.105).

O que Pascal Bruckner apresenta é uma espécie de estatuto do homem contem-


porâneo, ao qual, claro, faz a crítica. O que ele considera é que a responsabilidade
ea autonomia dos seres humanos, buscadas ao longo da história das civiliza-
ções como o objetivo último da construção dos indivíduos, como agente social,
estão se perdendo. O que no discurso liberal se chamou de cidadania plena, a
maturidade, está abolida. Não há o porquê do esforço para fazer com que o ser
humano se responsabilize por si mesmo e pelos seus atos em relação aos outros.
Desse modo, queremos tudo e o seu contrário: que essa sociedade nos
proteja sem nada nos proibir, que ela nos mime sem nos obrigar, nos
assista sem nos importunar, nos deixe tranquilos mas também nos se-
gure por mil laços de uma relação afetuosa, em suma, que ela esteja
aqui para nós sem que estejamos aqui para ela. “Deixe-me tranquilo,
ocupe-se de mim”. A autossuficiência da qual nos gabamos se parece
com a da criança, que brinca sob a tutela de uma mãe onipresente e
nutriz que ela já não vê de tanto estar envolvida por ela. Vivemos no
meio dos outros como se estivéssemos sozinhos sobrevivemos nessa
ficção: um mundo onde o próximo só existiria para nos assistir sem que
por isso lhe sejamos devedores. Tomamos da coletividade o que nos

Os Novos Rituais de Consumo e a Simbologia Como Diferença


178 UNIDADE III

convém, recusamos-lhe nossa colaboração para o resto (BRUCKNER,


1997, p.107).

A chamada “idolatria do eu” ganha a forma de condição comum a todos, uma


naturalização do sentido da vida em sociedade. As relações estabelecidas nessa
sociedade se fundamentam no interesse da particularidade e com a certeza de
o “Eu” estar no centro de todas as coisas. Assume-se abertamente o poder da
unidade sobre o todo. Mistifica-se o potencial do indivíduo e lhe são ofereci-
das todas as formas para lhe convencer de sua superioridade sobre os demais.
Não há o que questionar, um homem só é capaz daquilo que uma massa inteira

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não foi capaz. Acredita-se na resposta guardada dentro de cada um. Pregando a
certeza de que nós não precisamos de ninguém para sair de nossos problemas8.
Vale lembrar aqui da divertida obra de Rudolf Erich Raspe, escritor alemão
que publicou “As loucas aventuras do Barão de Munchehausen”, um clássico
europeu que relata a história de um nobre russo e suas aventuras fantásticas.
Munchehause sai dos problemas, das situações mais difíceis, com ações mágicas,
sem precisar de ninguém. A mais fantástica é quando afunda em areia movediça
e não há ninguém que possa ajudá-lo. Diante de tal situação, ele salva a si e a
seu cavalo, pegando a si mesmo pelo cabelo. Não por acaso, livros e filmes como
os da saga do jovem bruxo Harry Potter estão entre os mais lidos e assistidos.
Não há nada contra a literatura fantástica. Muitas das obras de ficção mere-
cem toda a consideração e respeito pelo sucesso atingido. Porém, ao distorcer
a realidade, os autores desse tipo de obra sabem que ela não tem comprome-
timento com a descrição do real e muito menos com receita objetiva de vida.
Porém, há hoje um número imenso de “novos profetas” apregoando as “aventu-
ras do Barão” como uma forma de comportamento possível, anunciando uma
solução para todos os problemas.
Ligando o que afirmamos até aqui, temos então um indivíduo que tudo pode,
não deve ser contrariado e tem uma infância legitimada até a fase adulta, onde
a preocupação com os atos pode ser absolvida pelo potencial de superar qual-
quer problema instalado, de forma “oculta” dentro de cada um de nós. Esse bebê

8
Polêmico ou irônico, a chamada “autoajuda” passou a ser um campo de exploração literária. A lucratividade
dos livros focados nesse tema é denunciada pelos títulos mais vendidos. Eles estão sempre no topo da lista.
Obras contraditórias em seu fundamento ideológico viram bíblias para a busca de sucesso.

A CRISE DO HOMEM OCIDENTAL


179

grande e com um poder sobre todas as coisas, “o pequeno reizinho mimado da


maioridade”, também deve ser absolvido quando faz parte das minorias, e ele (o
reizinho) e as minorias (se multiplicam).
Nunca criamos tantas regras para atender as exceções ameadas pela condi-
ção comum. Há sempre de se entender os sufocados, humilhados, violentados,
excluídos, rejeitados, manipulados, explorados, usados, impedidos pelo “sistema”.
O sentimento de culpa virou “profissão de fé” nos campos de conhecimento das
ciências sociais, tanto quanto pelos legisladores e juristas. Sempre há um motivo
para considerar a essência. Quer se combater o preconceito, mas na própria lei
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

já se estabelece um pré-conceito chamado de “Justiça”.


É excelente que toda a jurisprudência atual vá no sentido de uma maior
proteção dos sinistrados, dos excluídos. Porém as boas intenções, assim
manifestadas, não estão isentas de ambiguidade. A esse respeito, o
exemplo da lei de 1985 sobre os acidentes de trânsito é bem instrutivo:
um pedestre pode cometer qualquer imprudência, atravessar fora dos
sinais ou das faixas, correr na rua, ele está certo de estar acobertado
(mesmo quando comete uma “falta indesculpável”, noção que quase
nunca é reconhecida pelos tribunais.) No entanto, uma lei dessas supõe
que somente a pessoa motorizada (o forte) deve ser virtuosa, que o
fraco sempre tem razão, que, no confronto que os opõe, o primeiro
parte com desvantagem, o segundo com um triunfo. Não se busca mais
avaliar um prejuízo preciso, e sim colocar posições que têm precedência
sobre qualquer outra consideração. Em outras palavras, se esse sistema
se espalhasse, os indivíduos não seriam mais julgados, mas prejulga-
dos, absolvidos inocentados antes de qualquer inquérito, se estivessem
do bom lado da barreira, acusados em caso contrário. Com o pretex-
to de defender os fracos, instalariam imediatamente certas categoriais
fora do direito comum, livres do dever da prudência, da precaução. Por
esse ponto de vista a justiça se tornaria, ao lado da política, um meio de
reparar as desigualdades sociais e o juiz se colocaria em concorrência
com o legislador (BRUCKNER, 1997, p.128-9).

Os Novos Rituais de Consumo e a Simbologia Como Diferença


180 UNIDADE III

O que estamos assistindo é exatamente a relação entre a justiça e o legislador


se fundir e sere tratada da mesma forma. No Brasil, o juiz do Supremo Tribunal
Federal se torna um ídolo público, “o salvador da pátria”, por em “um ato só”
redimir todas as nossas injustiças. Em países onde o autoritarismo impera e a
ignorância toma conta de quem deve elaborar as leis, o Poder Judiciário se tor-
nou a “casa dos justiceiros”.
Quando nos propomos a discutir o que são minorias, esbarramos nessa ten-
dência seguida pelos poderes públicos, pelos agentes privados e suas instituições
e representantes. Quem sai em defesa das “falsas” minorias não são somente os

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
representantes públicos. Eles estão na mesma toada que os discursos publicitários,
as obras literárias, as tendências dos enfoques das instituições acadêmicas. Não
se culpa ninguém que seja um “inocente eterno”. Há uma regulamentação da fra-
gilidade permanente das particularidades. Uma parte considerável da sociedade
pode se enquadrar na condição de “excluído” e usufruir dos benefícios legais que
oferece, contudo, nunca houve um número tão grande de minorias como agora.
Os poderes legislativos espalhados pelo ocidente regulamentam constan-
temente algum benefício para aqueles que são considerados excluídos. Todos
podem ter algo que os coloque como excluídos e merecer tratamento diferen-
ciado. O que não falta é abaixo assinado pedindo para mais uma minoria ainda
não reconhecida ser incluída no benefício.
Infantil e profético, o mundo das minorias vai traçando o caminho dos
conflitos urbanos e dificultando a construção de uma razão lógica para enten-
der os fenômenos na atualidade. De um lado, a simplificação do entendimento
das relações sociais gera uma infantilidade, por outro, impõe o autoritarismo da
particularidade como lógica sem razão. Em todos os campos do conhecimento,
estamos nos agarrando às particularidades por não termos competência de expli-
car a totalidade. Vamos, nesse sentido, esvaziando o projeto social coletivo e a
exigência da participação de todos por um bem comum. Porém, as grandes per-
das continuam ocorrendo, a desigualdade se estabelece mais agressiva e poucos
percebem seu curso e suas consequências.

A CRISE DO HOMEM OCIDENTAL


181

Jean Baudrillard deu uma entrevista à Revista Época, em 2002. Nela, ele falou sobre um
dos seus principais temas, “A Sociedade do Espetáculo”. Autor de “A Sociedade de Con-
sumo”, ele fala da simbologia que tomou conta da sociedade atual. Para ele, perdemos
o contato com a realidade e há uma perda ideológica sensível. Leia um trecho da entre-
vista:
ÉPOCA - Como o senhor explica a espetacularização da realidade?
Baudrillard  - Os signos evoluíram, tomaram conta do mundo e hoje o dominam. Os
sistemas de signos operam no lugar dos objetos e progridem exponencialmente
em representações cada vez mais complexas. O objeto é o discurso, que promove
intercâmbios virtuais incontroláveis, para além do objeto. No começo de minha
carreira intelectual, nos anos 60, escrevi um ensaio intitulado ‹A Economia Política dos
Signos›, a indústria do espetáculo ainda engatinhava e os signos cumpriam a função
simples de substituir objetos reais. Analisei o papel do valor dos signos nas trocas
humanas. Atualmente, cada signo está se transformando em um objeto em si mesmo
e materializando o fetiche, virou valor de uso e troca a um só tempo. Os signos estão
criando novas estruturas diferenciais que ultrapassam qualquer conhecimento atual.
Ainda não sabemos onde isso vai dar.
Leia a entrevista na íntegra em:
<http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT550009-1666,00.html>.
182 UNIDADE III

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entender o homem contemporâneo é, hoje, um exercício da Antropologia.


Acredito que essa seja uma tarefa mais da Antropologia do que de qualquer
outra ciência social, pela sua capacidade de analisar o homem por inteiro, suas
relações e os rituais simbólicos que derivam delas. Muito dos nossos valores con-
temporâneos têm que ser entendidos pelos rituais aos quais estão associados. Os
ambientes aparentes de consumo se transformaram em um novo ambiente de
sentidos e de uma educação que vai além da simples prática de mercado.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Há uma construção simbólica na relação com os objetos e também com
os ambientes de consumo. São novos valores derivados dessa mundialização
de marcas e produtos, que são como ditadores de uma nova realização. O que
define a associação de pessoas a determinados valores como vestimentas, músi-
cas, penteados e frequência a determinados ambientes expressa as formas como
as pessoas encontram uma maneira de pertencimento.
Estamos vivendo uma organização de fronteiras dentro da sociedade urbana.
A constituição de rituais comuns para habitantes de uma mesma cidade, mas
separados pela frequência em ambientes distintos. Alguns desses ambientes
como escolha. A segregação é uma prática de todos e contra quase todos os
tipos de diferença.
A Antropologia ganhou um novo lugar no campo das ciências humanas e
não deve perdê-lo mais. Ela irá realizar, ao longo de seus estudos, uma compre-
ensão dos fenômenos urbanos, ambiente em que os homens contemporâneos
vivem a maioria de suas relações sociais. A Antropologia se desdobra a entender
o que eles são e qual é o papel da vida em sociedade em que as identificações se
pulverizam em um ambiente cosmopolita.

A CRISE DO HOMEM OCIDENTAL


183

1. A Antropologia ultrapassou muitos desafios ao longo de sua trajetória. Atual-


mente, encontra na sociedade contemporânea um campo vasto para pesquisa,
sendo o próprio homem contemporâneo um dos mais interessantes. Que fato-
res levaram a Antropologia a estudar a própria civilização ocidental?
2. O homem contemporâneo vive em uma sociedade carregada de símbolos. Eles
estão espalhados por todos os lados. Por que nossa sociedade apresenta,
para Baudrillard, uma simbologia perigosa?
3. O mundo atual, onde as fronteiras foram destruídas, fruto das novas relações
ditas “globais”, possui diversas nacionalidades convivendo dentro de um mes-
mo território/Estado, onde o que impera é a diversidade. Nesse sentido, leia as
afirmações abaixo sobre como a Antropologia de uma ciência que estudava o
“outro” se tornou uma ciência que também estuda a complexa sociedade atual:
I. - A Antropologia entrou em uma crise existencial, pois, se antes ela estudava
o homem não europeu, este, estava sumindo com a globalização e as novas
relações mundiais.
II. - Diante da sociedade atual, com suas novas fronteiras, fruto das relações glo-
bais mais complexas, tornou-se objeto da Antropologia entender as raízes
dessa sociedade contemporânea, assim como os seus símbolos e rituais.
III. – De acordo com Marc Augé, as mudanças se fazem nos chamados não lu-
gares: lojas, restaurantes, shoppings, aeroportos, etc. E essas mudanças são
rápidas, há sempre algo novo, o que dificulta a criação de identidades.
IV. – Os meios de comunicação fazem com que todos, independente do local
onde vivem, estejam igualmente ligados com a mesma intensidade nessa en-
grenagem planetária fruto da globalização.
É correto, apenas o que se lê em (enumere apenas uma única opção):
a. ( ) I e II.
b. ( ) I, II e IV.
c. ( ) I, III e IV.
d. ( ) I, II e III.
e. ( ) I, II, III e IV.
MATERIAL COMPLEMENTAR

Livro: O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo


Autor: Jurandir Freire Costa
Editora: Garamond
Sinopse: Jurandir Freire Costa é médico psicanalista. Hoje,
entre os autores brasileiros, é um especialista na análise do
homem contemporâneo. Sua abordagem sobre os aspectos do
comportamento humano na simbologia da sociedade atual é
enriquecedora em “O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral
do espetáculo”.
Como seres humanos em uma lógica artificial, estamos nos perdendo
pelo consumo e nos impondo uma forma de compreender e ser.

Livro: A sociedade de consumo


Autor: Jean Baudrillard
Editora: Saraiva
Sinopse: Para quem ficou instigado com a entrevista de Jean
Baudrillard, a dica é “Sociedade de Consumo”, um dos mais
importantes trabalhos do pensador francês. Ele avalia a constituição
de uma relação social em meio aos objetos de consumo e suas
simbologias. Baudrillard analisa o quanto a sociedade aumenta
o consumo de bens com curta duração. Consumir deixou de ser
uma prática econômica para estabelecer um diferencial entre os
indivíduos. Faz-se necessário ser diferente se associando a objetos e marcas.

Filme: O show de Truman


Direção: Peter Weir
Ano: 1998
Sinopse: O ator Jim Carrey interpreta o personagem principal desse
filme que é uma crítica à sociedade do espetáculo que se confunde
com a intimidade das pessoas. Um reality show focado na vida de um
único personagem, o qual não sabe que está passando sua vida em
uma grande redoma. Ele é criado em um show assistido por milhares
de pessoas sem ter consciência de que a vida a sua volta é uma
superficialidade.
O drama de se descobrir vivendo uma vida inteira de mentiras
publicitárias, ter a própria vida como uma mensagem de propaganda e
uma relação direta com simbologia de consumo contemporânea choca-o.
Professor Me. Gilson Aguiar

IV
BRASIL: A CONSTRUÇÃO

UNIDADE
DA SOCIEDADE E DE UM
ESTADO AUTORITÁRIO

Objetivos de Aprendizagem
■■ Conhecer a formação da sociedade brasileira e seus encontros
étnicos, o ambiente onde se deu a formação regional e os conflitos
sociais.
■■ Estabelecer a relação entre o regionalismo e a formação do Brasil
com sua diversidade, as diversas formas de organização social e o
processo de miscigenação.
■■ Entender a formação do Estado nacional brasileiro, a questão
autoritária do Estado e suas heranças que permanecem até nossos
dias.
■■ Compreender a transição da sociedade agrária para a sociedade
urbana e seus efeitos.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ As condições sociais, econômicas e culturais para a formação da
colonização portuguesa
■■ A instalação da colonização e o papel do engenho. A manutenção da
grande propriedade o mando agrário
■■ A questão da escravidão e os efeitos sociais do trabalho escravo
■■ As mudanças sociais com a imigração e a urbanização brasileira
■■ A formação do Brasil contemporâneo e a reflexão sobre a brasilidade
■■ As questões sociais do Brasil e seus principais pensadores
187

INTRODUÇÃO

O Brasil desconhece o Brasil. Quando pensamos na dimensão territorial brasi-


leira e na diversidade de sua formação hoje impregnada no regionalismo, temos
um país desconhecido até mesmo para seu povo. Isso sem contar com a dificul-
dade de definir o que chamamos de “povo”. O Brasil tem muitas caras e elas não
deixam de ser um registro dos encontros possíveis dentro do território.
Nesta unidade, vamos entender um pouco esta brasilidade que se tenta dese-
nhar. Longe de ser uma explicação final sobre como se formou o país, é uma
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

singela maneira de colocar as questões da organização dos rituais, costumes e ins-


tituições econômicas que formam uma nação, com os limites que a condição exige
e que temos para a produção dessa análise. O Brasil é uma “colcha de retalhos”.
O começo de nossa abordagem remonta à formação de Portugal, a nação
colonizadora, às peculiaridades portuguesas como nação ocidental e às condi-
ções em que se deram os encontros formadores dentro do território colonial
português nas Américas. O resultado desta condição está em cada um de nós.
O encontro entre os elementos branco, negro e índio; uma formação brasileira
traçada como um “erro” e “acerto”. A potência do futuro que nunca consegue atin-
gir sua meta de ser para o mundo a grande nação prescrita em seu nascimento.
A condução da história política nos dá uma resposta para nossa sociedade,
hoje, cheia de problemas e sonhadora de um futuro de glória. O “gigante pela
própria natureza” ainda não realizou o seu destino. Conduzida por um Estado
autoritário em boa parte de sua história, a sociedade tem pouca habilidade com
a democracia. Se esta existe hoje, ainda não conseguiu gerar a participação social
que direciona os passos econômicos e sociais para superar antigos problemas.
Estamos hoje diante de um Brasil moderno, com ambientes integrados à
economia mundial e sintonizados com as questões consideradas relevantes da
humanidade. Na atualidade, a cadeia mundial de produção tem no Brasil um
dos pontos de geração e consumo de bens. As cidades brasileiras de grande porte
oferecem grande parte dos objetos de desejo mundial. O mercado de compras,
antes instalado nas capitais litorâneas, agora está propagado em parte conside-
rável das regiões brasileiras. Porém, em alguns casos, isso não mudou o foço
social originário de sua formação. Os centros urbanos brasileiros expressam

Introdução
188 UNIDADE IV

contradições que anteriormente se encontravam dispersas nas áreas rurais. A


desigualdade econômica, a riqueza e a miséria remontam à origem e se constitu-
íram como permanência ao longo da nossa história. Portanto, é preciso entender
um pouco tudo isso.

AS CONDIÇÕES SOCIAIS, ECONÔMICAS E CULTURAIS

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
PARA A FORMAÇÃO DA COLONIZAÇÃO PORTUGUESA

O maior desafio deste livro é falar sobre a formação humana do que denomi-
namos Brasil. Desenha-se aqui o território? Fala-se das pessoas e abre-se mão
das diferenças? Isto é impossível. Estas dúvidas podem parecer tolas, “se fala do
Brasil e pronto!”, porém, não é bem assim. Há uma longa história que aqui pode
ser apresentada cortando um começo, que confesso: é impossível de delimi-
tar. Grandes pensadores da formação do Brasil, como Darcy Ribeiro, Gilberto
Freyre, Caio Prado Junior, Sérgio Buarque de Holanda e tantos outros, pensa-
ram o Brasil partindo de Portugal, da formação do Estado luso, das povoações
ibéricas. Freyre, por exemplo, chega a buscar nos mouros um pouco do colo-
rido da arte sarracena. É preciso ir tão longe? Acredito que sim! E daria para ir
mais! Porém, aqui não posso.
Meu começo, para falar do Brasil, também vai a Portugal, como Raymundo
Faoro, na formação do Estado português, com sua burocracia, sua corte, sua
imposição denunciante do apartado social, um Estado que se impõe e demarca
o território. Ao mesmo tempo em que advém das forças sociais, nega e oprime
as forças geradoras de sua identidade. O Brasil é português neste aspecto, é a
“mãe-pátria” deixando marcas no filho pródigo. Se um dia os portugueses quise-
ram fazer de sua colônia nos trópicos uma “imensa” Portugal, não conseguiram,
contudo, olhando o rosto da “terra brasilis”, se percebe os traços da nação lusitana.
Lá, além do mar, está a impregnada busca de conquista expressa na formação
de Portugal. O reino ibérico, forjado pela cruzada cristã contra os muçulmanos,
tem na sua raiz uma profunda relação da terra com a Igreja Católica. O rei, Dom

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


189

Afonso Henriques, entre 1147 e 1160, conquista as regiões de Santarém, Alcobaça


e praticamente todo o Tejo, Sul de Portugal. Parte destas conquistas será entregue
à Ordem de Cister, dissidente beneditina, a qual passa a administrar parte das
terras, mas subordinada ao rei. Há aqui uma mistura entre pátria e fé, a santifi-
cação do solo, que irá mover a busca portuguesa por novas terras. Dentro desta
cultura, deste culto à fé, os portugueses vão nominar suas conquistas com um
eterno agradecimento, seja pelo bem ou pelo mal feito: Dom Afonso Henriques
fincou várias vezes sua espada na terra e se pôs de joelho para agradecer pela
conquista e pedir perdão pelas mortes. Ainda hoje, o jogador de futebol se ajo-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

elha, pede e agradece, coloca nas mãos de Deus sua conquista.


A religiosidade vai atravessar o Atlântico com as caravelas portuguesas e
desembarcar no território chamado inicialmente de Ilha de Vera Cruz, depois
terra de Santa Cruz, Ilha Brasilis, “terra do pau-brasil” e Brasil. O nome sai da
santidade e vai para a madeira, mas nunca se perdeu a denominação da santi-
dade do lugar. São Salvador, São Vicente, São Sebastião do Rio de Janeiro, São
Paulo, Santos, São Matheus, Belém, são muitos os exemplos da sacralização do
lugar para que este seja abençoado e conquistado.
A espada do Rei continua sendo fincada para agradecer e pedir perdão. O
sangue escorreu dela inúmeras vezes, mas a necessidade de se fazer a conquista
se compensa com a doação, com a filantropia, típica de uma casta dominante
em busca do reconhecimento, da absolvição e da permanência no poder. Sempre
repousará a dúvida: se faz filantropia pelo bem ao outro ou a si mesmo?

As Condições Sociais, Econômicas e Culturais para a Formação da Colonização Portuguesa


190 UNIDADE IV

O quanto se faz de filantropia no Brasil? Uma pergunta que é respondida


pelo número de instituições assistenciais. Elas se multiplicam para poder
gerar uma permanência. A miséria se tornou no Brasil um ponto de apoio
da desigualdade. Em uma grande parte das ações filantrópicas, a principal
meta é santificar o doador e lhe dar créditos para compensar o mal que ele
faz. A construção das igrejas tem sempre um grande número de doadores
ameaçados em sua cultura, em suas crenças, pela possibilidade de ser con-
denado pelos pecados. É preciso pagar materialmente a dor com a doação
de uma mísera parte e santificar quase que a totalidade. A materialização da
Igreja Católica no Brasil cresce neste campo fértil de pecadores com o poder.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Mas este é apenas um aspecto de nosso sangue, também lusitano. Há o outro
lado da crença brasileira cristã que se difundiu no Brasil, consistente no trato
das coisas do dia a dia. A religiosidade afro-indígena, Umbanda em especial,
deu misticismo ao cristianismo típico e peculiar dos trópicos, e tem nos símbo-
los o encontro entre a magia afro, a cura da pajelança e a fé cristã. Esta crença
permitiu resolver as dores do corpo, promover a convivência improvável pela
razão e fortalecer a resistência à dominação disfarçando a identidade afro ou
indígena dentro da aparente unidade cristã. O filho doente, o parto, a dor de
cabeça, a fome, a vontade de vingança, o amor impossível e tantos outros males
irão se resolver nos terreiros de umbanda, nas “garrafadas”, na constante prá-
tica do xamanismo. Vem do afro e seu culto, mas também do indígena e suas
crenças, o uso do alimento como forma de salvar o corpo, o que se deve comer
em determinados tempos, os perigos das misturas que podem levar à morte, a
salvação pelos chás, inclusive incorporados por ordens religiosas e padres trans-
formados em apóstolos e feiticeiros.1
Hoje, há uma proliferação de igrejas cristãs marcadas pela magia, pelo transe,
êxtase dos membros das comunidades religiosas marcadas por rituais chamados
de “intervenção”, são movimentos religiosos, neopentecostais, que não foram

A construção do messianismo no Brasil é fruto desta capacidade mágica do líder religioso. Os Muckers
1

(1871-1874), no Rio Grande do Sul; a Guerra de Canudos (1896-1897), na Bahia; e do Contestado (1912-
1916), na fronteira do Paraná com Santa Catarina, foram conflitos onde os líderes religiosos tinham uma
liderança política e militar inconteste. Nem em todos, como no caso de Canudos, liderado por Antônio
Conselheiro, havia a ocorrência de milagres, como no caso de Jacobina, líder dos Muckers, e no Contestado,
José Maria.

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


191

originados no Brasil, porém cresceram aqui como em nenhum outro país. O


motivo desta proliferação está exatamente neste campo religioso fundado nos
rituais de magia que existem no Brasil desde sua formação. Para Darcy Ribeiro
(1995, p. 19), o Brasil é um encontro regido pelos portugueses.
Nessa confluência que se dá sob a regência dos portugueses, matrizes
raciais díspares, tradições culturais distintas, formações sociais defasa-
das se enfrentam e se fundem para dar lugar a um povo novo (Ribei-
ro 1970), num novo modelo de estruturação societária. Novo porque
surge como uma etnia nacional, diferenciada culturalmente de suas
matrizes formadoras, fortemente mestiçada, dinamizada por uma cul-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

tura sincrética e singularizada pela redefinição de traços culturais delas


oriundos. Também novo porque se vê a si mesmo e é visto com uma
gente nova, um novo gênero humano diferente de quantos existiam.
Povo novo, ainda, porque é um novo modelo de estruturação societá-
ria, que inaugura uma forma singular de organização socioeconômica,
fundada num tipo renovado de escravismo e numa servidão continu-
ada ao mercado mundial. Novo, inclusive, pela inverossímil alegria e
espantosa vontade de felicidade, num povo tão sacrificado, que alenta e
comove a todos os brasileiros.

Este encontro se consolida dentro de uma condição única nas Américas. Não há
composição similar à formação do Brasil dentro do continente. Ela é, ao mesmo
tempo, uma formação que atende aos interesses de uma economia mercantil em
expansão, assim como os demais nações latino-americanas, porém, também
traz peculiaridades que dão forma a uma sociedade original; não será o que os
europeus e portugueses estabeleceram em seu projeto colonizador nem os tra-
ços fortes das populações afro-indígenas.
Esta mistura, este encontro, e o Brasil é um país de encontros, se deu de
forma diferente em regiões distintas, com peculiaridades econômicas e sociais.
Lembrando que, quando falamos de encontros humanos, processos migrató-
rios, estamos nos referindo a grupos étnico-culturais distintos e ao papel que
desempenharam nas atividades produtivas, marcadas por conflitos constantes.
Em muitos casos, os conflitos estabelecidos permaneceram durante séculos e
também deixaram suas marcas nas gerações futuras.
No nordeste brasileiro, a relação entre o sertanejo e a terra é uma expres-
são do que a história cunhou. Esta região exige um trato constante com o solo,
onde a produtividade é difícil e acontece em ciclos descontínuos de tempos de

As Condições Sociais, Econômicas e Culturais para a Formação da Colonização Portuguesa


192 UNIDADE IV

fartura e penúria. Esta população resiste associando a sobrevivência a um forte


sentimento de religiosidade constituída de uma fé que se propagou, iniciada
como um dos instrumentos de colonização e refeita em esperança na associa-
ção da luta pela terra.
Ironicamente, o nordeste foi o centro da economia colonial local onde se
deu início a colonização portuguesa; ocorre uma propagação deste ponto do
território colonial para outras regiões, onde o rio São Francisco foi o caminho
para a integração do território. Padres, bandeirantes e garimpeiros percorreram
o “Velho Xico”, antes destes, os índios, com interesses diferentes, mas formando

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
um mesmo destino. Nesta caminhada, acabaram gerando uma sociedade que
se fez com muitas mãos. Quando os africanos vieram para o Brasil, para a con-
dição de escravidão, percorreram o Rio São Francisco e formaram quilombos à
margem dele e de seus afluentes.
Isoladas e integradas posteriormente, as demais regiões brasileiras foram
ocupadas gradativamente. Acabaram se moldando e iniciando a colcha de reta-
lhos que acabaria por ser uma das principais características da formação da
sociedade brasileira e sua diversidade. Porém, vale lembrar que as peculiarida-
des de cada região do Brasil não foram capazes de impedir a unidade nacional,
a formação de um “povo brasileiro”. Esta se constitui dos laços econômicos esta-
belecidos pela sociedade colonial e incentivados por um Estado centralizador
instalado a partir de 1549, com o Governo Geral, e 1759, com a implantação do
regime de províncias e a transferência da sede administrativa da colônia para o
Rio de Janeiro.
A integração final do território se deu com a transferência da corte portu-
guesa liderada por Dom João VI, em 1808. Ela atravessa o Atlântico, fugindo de
Napoleão Bonaparte, e se instala no Brasil para decretar o fim do período colo-
nial e iniciar a formação do Estado autônomo. O Brasil ganharia a condição de
nação das mãos da metrópole; foi ela que lhe deu o contorno da porção territorial
e estabeleceu o modelo administrativo que permaneceu após a independência
formal (1822). O Brasil nasce do Estado Português, mas não será uma Portugal.
Ao longo da trajetória formadora do Estado-nação, ocorre uma série de mudan-
ças da ordem social que deram início à colonização.
Sem ter como evitar, por consequência da própria expansão colonizadora

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


193

que interessou a Portugal, sua principal colônia acabou por constituir vida pró-
pria. Gerou-se uma sociedade vinculada à colônia e formando hábitos nativos,
distintos dos aceitos no território metropolitano.
Da relação estabelecida entre o branco lusitano, os indígenas e, principal-
mente, os africanos, se gerou um novo elemento, o brasileiro. O mulato e caboclo
propagaram pelas diversas partes do território brasileiro uma diversidade de ati-
vidades econômicas e formaram valores culturais distintos.
Afastados do empreendimento colonial português instalado no litoral ou
nas regiões auríferas, ocuparam o interior das matas e constituíram plantações
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

de subsistência, comunidades isoladas da sociedade colonial, muitas rejeitadas


pelo Estado colonizador ocidental. Entre marginalizações e conflitos, a diversi-
dade deu um “rosto” de muitas faces e facetas à “terra brasilis”.

AS ORIGENS

Temos que voltar à abordagem que fizemos anteriormente, falarmos do embrião


lusitano. Para podermos entender a formação da nação brasileira, é necessário
compreender os portugueses que determinaram o processo colonizador. Portugal
tem suas particularidades como Nação. A presença da Igreja Católica na conso-
lidação da monarquia lusitana e seu reconhecimento diante dos reis castelhanos
associaram profundamente a fé e o poder do Estado Nação. Com um forte ideário
cristão sobre o mundo e sobre si mesmo, os lusitanos defendem sua nacionali-
dade navegando com a cruz estampada em suas caravelas da mesma forma que
lutaram em nome de Deus contra os mouros.
O mar deu a Portugal a possibilidade de expansão de seu território, limitado
pela fronteira espanhola, assim como de resistir às tentativas castelhanas de ane-
xá-las. Ser português, de certa forma, é resistir aos espanhóis.2 A cada conquista

O Brasil, de certa forma, demonstrou, em sua expansão territorial e na luta por suas fronteiras, uma
2

reprodução do que Portugal efetivou na Península Ibérica, a resistência à Espanha. Cercada por inúmeras
colônias espanholas e anexando parte considerável das terras da Espanha na América, indo muito além
do Tratado de Tordesilhas, a formação do território, ou pelo menos uma grande parte dele, se deu pela
aventura do bandeirante. Um branco miscigenado com indígena, apaixonado pelas guerras e movido pela
fé.

As Condições Sociais, Econômicas e Culturais para a Formação da Colonização Portuguesa


194 UNIDADE IV

marítima da nação lusitana se consolidava a autonomia nacional construída pela


aliança entre empresa mercantil, Estado, Igreja e povo. Vale ressaltar que na ori-
gem de Portugal, a nobreza feudal tradicional, a qual deteve o poder durante a
formação do território, seria alijada e daria lugar a uma nova aristocracia rural
ligada aos interesses do Estado. Isto se deu com a Revolução de Avis (1383-1385)
e a ascensão de Dom João I. A nova monarquia expressou a consolidação do
projeto naval português, a troca da terra europeia pelo mar e a terra além-mar.
O ritual de poder estabelecido pelo Estado tende a garantir um grupo domi-
nante vinculado ao poder do governante. A nação portuguesa foi construída

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pela centralização precoce, acontecida ainda no século XII, a primeira a estabe-
lecer um Estado Nacional monárquico na Europa. Desta forma, o poder do Rei
se coloca acima das questões sociais, porém, é preciso fazer sentir este poder,
que necessita ser exercitado pelo uso da força, da língua, da economia orientada
pelo governo central e associado às instituições representativas da sociedade.
Tudo isso a monarquia portuguesa consegue estabelecer e consolidar entre os
séculos XII a XIV.
A primeira dinastia francesa foi a de Borgonha, uma família nobiliária aliada
ao Reino de Leão para combater os mouros na Península Ibérica. Esta família
se constituiu ao longo do tempo com uma ameaça à unidade da Península tão
desejada por asturianos e castelhanos. E o temor se fez realidade quando veio a
conquista de Alcobaça e Lusa, assim como o reconhecimento do Papa das con-
quistas borgonhesas. Portugal nasceu pela caneta do Sumo Pontífice3. É o papa
que nomeia Henrique de Borgonha “Rex Portucalense”. Assim, na a formação
de Portugal pelas armas, há o reconhecimento da autoridade do Rei pelo Papa.
O rei e “Deus” geram uma intimidade inseparável no imaginário lusitano.
A Ordem de Cister, desdobramento da Ordem Beneditina, é uma instituição
presente e importante na formação de Portugal, que acabou por administrar ter-
ras conquistadas pela Família Borgonha. A relação entre a Ordem e o poder real
se ampliou; ter nos membros do Clero defensores da autoridade monárquica e

Pela caneta do Papa se estabeleceram as fronteiras de muitos dos territórios europeus e fora da Europa.
3

Os tratados de limites entre Portugal e Espanha são o exemplo da influência da Igreja sobre as monarquias
ibéricas. O Tratado de Tordesilhas (1494) definiu com uma linha imaginária as fronteiras dos domínios
espanhóis e português no além-mar. “Quando Deus na Bíblia, no Gênesis, estabeleceu que o Mundo
pertencia a Portugal e Espanha”, reclama o Rei da França, Henrique IV.

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


195

papal em conjunto permitiu traçar uma resistência aos inimigos. Foi exatamente
o trabalho de propagação do cristianismo nos territórios dominados pelos muçul-
manos que minou, em parte, o poder mouro na Península Ibérica e gerou uma
unidade entre os cristãos, representada pela figura do Rei.
Tratamos deste tema em nossa primeira unidade, quando discutimos a oci-
dentalização, por isso vamos tratar de aspectos que ainda não foram abordados,
a formação da língua e da participação do clero na constituição da gramática ofi-
cial do reino lusitano e seu exercício pelo governo; exigir que determinada língua
seja o instrumento de comunicação entre o poder instituído e os governados. A
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monarquia também se reconhece pela língua pátria. Na formação de Portugal, a


constituição de uma língua oficial, pátria, também se estabelece precocemente.
Os registros históricos da monarquia passaram a ser relatados pelos mem-
bros do clero católico em português. Os relatos (feitos históricos), ordenações
(compilações de leis monárquicas) e nomeações (documentos oficiais dando
autoridade aos súditos) escritos na língua pátria fortaleciam a identificação do
povo com o monarca. Mesmo o território passou a ser desenhado também pela
língua portuguesa, uma barreira ao castelhano.
Desta forma, navegar constituiu uma resistência ao vizinho incômodo, a
Espanha. As tentativas de anexar Portugal, por parte da Espanha, foram evitadas
pelo sentimento nacionalista construído com a formação da monarquia nacio-
nal. As grandes navegações, as conquistas marítimas portuguesas, contribuíram
para isso, para a defesa da pátria, pelo fortalecimento do sentimento naciona-
lista e o orgulho da aventura lusitana nos mares.
O grande impulso à aventura naval portuguesa se dá em meio à crise dinás-
tica. A ameaça constante de anexar o reino português sempre existiu, mas no
século XIV, ela se intensifica com a crise do governo pela sucessão dinástica. A
morte do rei Dom Fernando abriu espaço para a revisão da autoridade monár-
quica sobre as terras lusitanas.
Para que se entenda a crise, é fundamental entender o regime de proprie-
dade estabelecido em Portugal com a migração da população camponesa para
o litoral diante da ameaça da Peste Negra e da dificuldade de sobrevivência com
os problemas climáticos, seca principalmente, nas regiões do centro português.

As Condições Sociais, Econômicas e Culturais para a Formação da Colonização Portuguesa


196 UNIDADE IV

Diante da diminuição da população agrícola e das consequências que isso gerou,


o Rei Afonso IV impõe a Lei de Sesmarias.
A Lei tinha como objetivo aumentar a produtividade de terra ameaçando
sua desapropriação caso ela não fosse produtiva. Com o passar de cinco a sete
anos de improdutividade, a propriedade rural passaria para as mãos do Estado
e ele poderia repassá-la a outro, diante das mesmas condições. Esta medida era
o enfrentamento do Estado diante da propriedade feudal, fato que desconten-
tou a nobreza tradicional portuguesa, mas alegrou os empresários mercantis,
que viram a terra ter um aumento de produtividade favorecendo a necessidade

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do mercado exportador.
Aqui há uma aliança clara entre a burguesia e o Rei, mas, além disso, outro
elemento acaba consolidando esta relação, organizando uma representação
junto aos camponeses e trabalhadores urbanos, mantendo o poder monárquico
a favor de uma nação unida pela identificação com o poder central e não com a
nobreza, a Igreja Católica portuguesa. O monarca atrai os interesses e só sobre
sua autoridade eles se resolvem.
Com a morte do Rei Dom Fernando, filho de Afonso IV, surge a oportu-
nidade da nobreza portuguesa reestabelecer o seu poder. Para isso, era preciso
enfrentar a autoridade da Igreja, impor-se sobre uma burguesia urbana e mer-
cantil em ascensão e a relação próxima entre as classes populares, camponeses e
servos, e o Estado. Vale lembrar que o Rei Afonso IV já havia instituído a língua
pátria e comunicava-se com sua população pela língua nacional. 4
O enfrentamento acabou por ocorrer quando a viúva do Rei, Leonor Teles,
declara a unificação do reino lusitano com Castela (1383). Sem condições de
acordo, os grupos nacionalistas encabeçados pela Igreja e aliados aos empre-
sários mercantis fazem de Coimbra o centro da resistência e nomeiam o filho
bastardo do rei, Dom João de Avis, monarca. Na batalha de Aljubarrota (1385),
consolida-se a autonomia portuguesa sob uma nova organização de forças. São
elas que irão promover as navegações e formar o império colonial de Portugal.

O Testamento de Afonso IV foi um dos primeiros documentos regidos em português, reconhecido como a
4

língua pátria.

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


197

A busca por realizar e manter a autonomia portuguesa estava conjugada à


organização de um empreendimento náutico. O português já navegava antes
da formação de seu país. A pesca colocava os lusitanos em uma vantagem no
Atlântico; conheciam um pouco mais o mar que as demais nações da Europa.
Nas rotas marítimas que se estabeleceram entre o Mar Mediterrâneo e o Mar
do Norte, Portugal foi entreposto fundamental para o comércio entre as cida-
des italianas e o Mar do Norte. A cidade do Porto, uma das mais importantes na
atividade comercial litorânea de Portugal, era mais que uma simples concentra-
ção urbana, foi a casa da empresa portuguesa; Coimbra, o centro intelectual, e
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Lisboa, a administração central. Portugal foi feita nas ruas, nos mercados, nas
trocas à beira-mar, e arrastou a sociedade feudal predominante na zona rural
para esta empresa sob a “benção de Deus”.
A primeira grande conquista portuguesa foi a África. Frequentado por
comerciantes aragoneses e italianos, o mercado norte-africano era cobiçado e dis-
putado pelos navegadores cristãos e muçulmanos. Foi a Cruzada para o oriente,
em busca de Jerusalém, que permitiu abrirem-se à Europa ocidental de forma
mais intensa os objetos do comércio, e Portugal desejava participar desta busca.
Ceuta, cidade na desembocadura africana e europeia que forma o estreito
de Gibraltar, foi a meta da conquista lusa. Em 1415, a ação portuguesa foi bem-
-sucedida, a conquista da cidade africana foi consolidada, mas não significou
uma vitória mercantil, e sim, um desastre:
A conquista de Ceuta, em 1415, não representou, contudo, a constru-
ção de uma sólida rede comercial na África. A Ceuta portuguesa foi,
quase de imediato, isolada pelos mouros dos demais centros comerciais
e os grandes mercadores, inclusive transaarianos, desviaram suas rotas
da cidade, que passou a importar alimentos para o seu abastecimento.
Desde o início surgiram vozes, no próprio Portugal, de desacordo sobre a
manutenção, ou não, da cidade. O rei temia, entretanto, a belicosidade de
seus nobres, ou como nos diz o próprio Zurarar. O hábito de “travarem
arruídos e contentas entre si, como se lê que fizeram os romanos depois
que tiveram suas guerras acabadas e estava sob pressão dos seus filhos
mais novos, os infantes dom Henrique e dom Pedro, interessados em pro-
verem-se de domínios, independente do seu irmão, o príncipe do Duarte.
Como bem destaca, porém, Lúcio de Azevedo: “iniciada a passagem à
África, as mesmas necessidades da conquista impunham o alargamen-

As Condições Sociais, Econômicas e Culturais para a Formação da Colonização Portuguesa


198 UNIDADE IV

to dela”. A manutenção de Ceuta e, mais tarde, a decisão de ampliar a


conquista, presentaram um compromisso da política portuguesa com
uma forma de expansionismo novo, diferente do simples comércio, do
corso e das expedições militares pontuais, abrindo caminho para uma
ação de maior envergadura.

Portugal era, ao mesmo tempo, obrigada a voltar-se para outro vetor de


expansão: o mar Oceano, a costa ocidental africana e as ilhas atlânticas.
Impulsionado por dois motivos básicos mudava, ou ampliava sua polí-
tica de expansão: de um lado o relativo fracasso da conquista de Ceuta,
após os lucros imediatos auferidos com o saque e, de outro, a pressão
constante do reino de Aragão pela ocupação das fabulosas “Islas Afor-
tunadas”, o arquipélago das Canárias (YEDA, 1996, p.19).

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A conquista portuguesa poderia ter cessado em Ceuta. Diante do fracasso eco-
nômico, o reino lusitano se coloca em marcha para um projeto mais ousado,
amplo, a conquista das ilhas atlânticas e do literal ocidental da África; a formação
de um império colonial português exigia planejamento. Era preciso direcionar
recursos financeiros e humanos para vencer os obstáculos que as conquistas
marítimas exigiam.
A Escola de Sagres foi um exemplo da organização promovida pelo rei e
seus aliados. Sagres era um mosteiro onde se concentrou inúmeros técnicos em
navegação, voltados a desvendar e copiar mapas, aprimorar a engenharia náu-
tica e dar a Portugal um plano para sua aventura marítima. O Estado lusitano,
mais que qualquer outro, no século XV e XVI, abraçou profundamente o curso
marítimo por ser a condição vital para sua permanência. Se Fernando Pessoa
afirmou que “navegar é preciso”, foi porque ele tinha a dimensão do que repre-
sentava para a vida da nação portuguesa a conquista de terras além-mar, manter
a independência da “terra-mãe” na Europa. Portugal foi uma “matriarca” alimen-
tada por seus filhos; ela lhes deu vida, mas tirou deles tudo o que pôde em busca
de sobreviver a ameaças constantes dos reinos castelhanos.
O Estado português passa a reger no além-mar a mais importante força
econômica de sustentação da nação. São os benefícios propagados pelo poder
monárquico que garantem dentro do reino o sucesso ou insucesso das empre-
sas mercantis. Empresários que adquirem monopólios comerciais para portos na
África ou exploração das exportações dos produtos produzidos nas colônias. Não
por acaso, estar ligado à autoridade monárquica faz bem aos negócios. As famílias

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


199

portuguesas que constituíam uma nobreza nova e influente desejavam se apro-


ximar do rei e garantir a continuidade de seus empreendimentos. O nepotismo
e o clientelismo têm, em Portugal, um bom berço e depois de maduro, atraves-
saram o Atlântico para viver nos trópicos onde se propagaram e ambientaram.
No Brasil, a prática de confundir o patrimônio público e privado, negociar os
favores do Estado em troca de benefícios pessoais tem sua origem nas práticas
dos administradores lusitanos no território colonial.
Os investimentos portugueses nas navegações foram bem-sucedidos, tive-
ram retorno, mas necessitaram de uma expansão constante. O crescimento da
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empresa marítima está ligado diretamente à relação de ampliação dos mercados


e à garantia que eles sejam estáveis, ou seja, garantia de segurança. A colonização
portuguesa necessitava organizar meios de estabilizar o contato com os territó-
rios e, em alguns casos como no Brasil, gerar meios de exploração.
A rivalidade espanhola, que se constituiu em fato marcante com a unificação
entre Aragão e Castela (1492), foi marcada pela chegada de Cristóvão Colombo
na América no mesmo ano. A empresa portuguesa já estava no mar há aproxi-
madamente 70 anos quando o trunfo castelhano foi anunciado. A preocupação
lusitana com um Estado monárquico concorrente e organizado, então, tornou-
-se significativa. Os tratados se multiplicaram e os conflitos se estenderam. Não
demorou para que outras nações iniciassem também suas aventuras náuticas. O
Atlântico virou o eixo da economia mundial, também o início de uma geopolí-
tica, que teve um preço significativo para o mundo.
Nestes desdobramentos da expansão lusitana e suas conquistas em meio a
um quadro de rivalidades, se chega ao Brasil. Discute-se até hoje se as navega-
ções portuguesas já tinham consciência de existência de terras além do Tratado
de Tordesilhas, em 1500 a descoberta se formalizou. Porém, fazer parte do mapa
não implica em existir. As primeiras décadas após a chegada portuguesa signifi-
caram pouco na alteração da vida no território que viria a se tornar a principal
colônia portuguesa e geraria a nação brasileira.
A colonização foi um longo processo, de quase 300 anos, iniciada pela pro-
dução de açúcar, um produto conhecido pelos portugueses, experiência que
trouxeram do Arquipélago dos Açores para estabelecer no Brasil. Vendido por
seu “peso em ouro”, o açúcar mascavo não enriqueceu somente os portugueses.

As Condições Sociais, Econômicas e Culturais para a Formação da Colonização Portuguesa


200 UNIDADE IV

Holandeses e Ingleses foram importantes atravessadores do produto, fizeram o


comércio açucareiro para alguns dos principais portos da Europa, como o de
Amsterdã, por exemplo. A lucratividade portuguesa acabou sendo sustentada
muito mais pela produção açucareira e sua exportação do que seu refino. Já o
comércio de escravos, que deram suporte às unidades produtivas instaladas na
colônia, foi atividade mais rendosa. Gerou-se, assim no século XVII, uma con-
centração de riqueza com os mercadores do tráfico superior aos que obtiveram
os mercadores do açúcar no mesmo período.
A instalação do empreendimento colonial português no Brasil foi um desa-

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fio para o Estado e exigiu empenho de recursos. A monarquia precisou buscar
sócios para o empreendimento, porém foi avalista de garantias. Empréstimos
com banqueiros holandeses permitiram as condições iniciais para se estabele-
cer as primeiras unidades, mas foi o governo português assumiu que os maiores
riscos do empreendimento colonizador.
Vale ressaltar que o Estado português e, posteriormente, o brasileiro serão
ordenadores da prosperidade econômica e controladores da ordem social. O
autoritarismo fez a riqueza para aqueles que estão ligados de alguma forma ao
Estado. A sociedade teve e tem, pela imposição, uma desigualdade difícil de
superar; esta não pode ser justificada como se fosse natural, ela é uma condição
construída socialmente.
Ao longo da história brasileira se naturalizou, cristalizou no interior da
população, uma identificação muitas vezes semelhante às castas indianas. Não
somos a Índia, não há semelhança na história ou na forma em que a economia
e a sociedade foram constituídas, mas uma semelhança é a hereditariedade do
poder, o endurecimento da ordem social, o abismo entre os privilegiados e os
“condenados”, o que ainda é um desafio brasileiro. Considera-se que poder abu-
sar das pessoas e colocá-las como um instrumento a serviço de um determinado
grupo dominante é um direito naturalizado.
Portugal estabeleceu no Brasil uma sociedade diferente daquela estabelecida
na metrópole, porém, uma extensão do reino. Os privilégios dentro do territó-
rio colonial continuaram ligados a um grupo restrito de senhores detentores
do poder. Esta “casta” administrativa, política e econômica se diversificou nas
atividades econômicas e estabeleceu os hábitos de poder, famílias tradicionais,

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


201

sobrenomes que passaram a se associar ao mando, presentes até hoje na realidade


política e econômica do país. Constitui-se, ao longo da formação social brasi-
leira, um ritual de legitimidade da autoridade dos senhores sobre seus escravos e,
mais tarde, com o processo abolicionista, sobre os trabalhadores livres. Há, ainda
hoje, uma formalização entre o poder constituído e a simbologia que ele carrega.
O senhorio perpetua-se na condição hereditária e os vínculos dos senhores
com o poder se tradicionalizam com o tempo, havendo pouca mobilidade social
e econômica. Uma herança autoritária atravessa os anos, décadas e, até mesmo,
séculos ganhando a percepção de imutável; tudo é possível, menos a perda do
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prestígio, da hereditariedade da autoridade. Os donos da terra, assim como os


proprietários das empresas, que se estabeleceram nos mais diversos cantos do
Brasil, se formam como “nobreza” nos trópicos, reproduzem gestos e simbolo-
gias da corte, sem ter o mesmo brio cinzento, no lugar, constituem um colorido
farfalhado de mando.
Porém, isto se constituíra a custa de imposição, o mando não se conquista
pela relação do respeito fundada na empresa comum. O trabalho que se esta-
beleceu na colônia não foi aquele imposto pela empresa colonizadora, o senhor
das terras se legitima pela força, se impõe e faz valer sua autoridade pelo custo
de vidas. Nas mãos do senhor repousam a existência de todos os que dele depen-
dem, direta ou indiretamente. Quando Antonil, padre que percorreu a Colônia
no século XVIII, afirmava que os senhores de engenho eram de “cabedal e poder”,
atestava o quanto as vidas de todos estavam nas mãos do senhor de engenho.5

5
Engraçado perceber que esta condição de mando e seus rituais ainda se repetem de uma forma mais
declarada nas regiões agrícolas, que ainda preservam o tradicional ritual coronelista. Nelas, o senhor de
terras “faz e desfaz” das pessoas à sua volta. Usa-lhes e tem ao seu entorno um número significativo de
vidas dispostas a lhe satisfazer. Os que resistem sentem o peso da mão sobre suas vidas. As dificuldades de
poder satisfazer interesses e os bloqueios às buscas. Se quiser algo que dependa do poder terá dificuldade.
Já os apadrinhados do poder podem se elevar com facilidade, desde que beneficiem a autoridade instituída.

As Condições Sociais, Econômicas e Culturais para a Formação da Colonização Portuguesa


202 UNIDADE IV

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As castas estabelecidas foram diferentes, dependendo de cada região do Brasil.
Elas se constituíram de formas e relações distintas, ligadas às atividades eco-
nômicas e ao ambiente cultural em que foram geradas, reproduzindo, por sua
vez, novos símbolos. A dialética das relações se coloca como ferramenta para
cunhar significados. Esta simbologia da autoridade permite que se aceite o que
em outros lugares se estabelece como resistência. O hábito faz das pessoas seres
que esperam ou não resultados de determinadas práticas, assim, constituiu-se,
por exemplo, a questão do trabalho, valorizado em determinadas regiões por
migrações de homens livres que foram as bases do trabalho no sudeste e no sul
do Brasil. Porém, nas regiões de predomínio do trabalho escravo, ele, o traba-
lho, não representou uma satisfação, mas penúria. Ser livre é não trabalhar, ser
feliz é não ter o labor diário como obrigação, peso.
O regionalismo é um elemento a ser considerado quando se fala da formação
da nação brasileira. Há condições distintas na organização dos espaços físicos e
humanos; o que foi viável em determinadas regiões, não foi em outras; o que se
teve, por exemplo, nas áreas de produção açucareira do nordeste brasileiro, não
se repetiu nas produtoras de café na região sudeste. Os tempos de formação dos
povoamentos de diversas regiões do Brasil, os relevos, os ambientes naturais,

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


203

foram diferentes, mas uma organização social fundada na escravidão e na pro-


priedade da terra é uma permanência na história brasileira.
Enquanto a aristocracia nordestina teve uma origem direta da colonização
implantada por Portugal e fundou uma identificação regional de resistência à
administração central, nas regiões cafeeiras (sudeste), esta resistência não existiu
com intensidade. Há uma cumplicidade entre a formação do Estado e a constitui-
ção do poder cafeeiro. As relações sociais nessas duas regiões tiveram o trabalho
escravo como elemento fundador, porém, no primeiro caso, nordeste, não havia
um Estado constituído como condição do exercício da autoridade, no segundo
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caso, sudeste, isso existia. A monarquia, principalmente o segundo reinado, foi o


deslocamento do poder para a região sudeste e a constituição de uma elite cada
vez mais organizada na busca de suas permanências6.

RESISTÊNCIA SOCIAL NOS PRIMEIROS TEMPOS

O controle social sempre foi uma necessidade dentro da colonização. O Estado


português, mediante a utilização de seus representantes locais (capitães heredi-
tários, governadores e vice-reis), agia como instrumento preventivo e coercitivo
no estabelecimento da ordem; utilizava de todos os meios possíveis para garantir
que a empresa colonial fosse atendida. Isto explica a burocracia lusitana instalada
na Colônia. Garantir o controle exigia a fidelidade dos membros do Estado ao
poder, exigia organizar uma administração com um grande número de indivíduos
ligados por grau de parentesco e compromisso. Até hoje convivemos com isso.
Mas houve resistências a isso, e elas se multiplicaram na proporção em que a
ocupação e a exploração de terras se estenderam no território colonial. As formas
de combater o colonizador ou as condições apresentadas de exploração foram

A constituição do trabalho escravo foi fundamental para estabelecer as empresas agrícolas no Brasil, tanto
6

no período colonial como na monarquia. Contudo, não representaram uma relação idêntica nas relações
de autoridade. Há peculiaridades no exercício do poder dos senhores de engenho e da aristocracia cafeeira
escravista do Império. No primeiro, a unidade agrícola era um mundo em si mesmo, não produzia sua
própria vida, mas tinha uma relativa autonomia na constituição social. Já, a economia cafeeira estava
vinculada a uma rede de produção, o Estado lhe era fundamental para gerenciar seus interesses. A
aristocracia cafeeira participava da construção do poder. Já a elite dos engenhos disputava e se rivalizava
com o poder instituído.

As Condições Sociais, Econômicas e Culturais para a Formação da Colonização Portuguesa


204 UNIDADE IV

diversas, dos quilombos ao bandeirantismo, e deste à exploração dos nativos e


cooptação das ordens religiosas, em especial os jesuítas. Sem contar os conflitos
entre os próprios indígenas, que serviram ao colonizador manipulando rivali-
dades que antecediam a colonização.
Se usarmos o exemplo da Confederação dos Tamoios, tema que já aborda-
mos anteriormente, perceberemos o quanto a resistência à ocupação foi também
uma guerra de colonização. Os índios tupinambás vão encontrar na aliança com
os franceses instalados na Baía da Guanabara aliados para resistir aos tupiniquins
e também seus aliados portugueses. As informações que os nativos passaram aos

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europeus foram vitais para garantir o sucesso da conquista, mas também mani-
pularam os inimigos europeus visando ao mesmo interesse.
Darcy Ribeiro chega a argumentar a possibilidade de uma supremacia gua-
rani nas terras da América do Sul, ou em boa parte dela, na porção brasileira,
principalmente se o processo colonizador não tivesse se instalado. As guerras
indígenas eram uma permanência, um ambiente propício para certas possibi-
lidades. Desta forma, se o português era intencionado a se impor, a intenção
também residia entre os nativos.
Estas guerras de resistência ocorreram em diversos momentos da histó-
ria brasileira. A vitória da empresa colonizadora deu-se devido à capacidade
de organização da empresa mercantil ocidental. A condição em que a autori-
dade portuguesa se estabeleceu não foi simples, a conquista não foi uma ação
sem revés ou contrariedade, exigindo a alteração de estratégias de dominação;
existe uma mudança de curso e de negociação, um fluxo e refluxo na busca de
manter o poder.
Nos discursos de cunho nacionalista brasileiro, buscou-se resgatar o gua-
rani; fez-se da língua indígena uma simbologia da originalidade. Durante um
bom tempo do início da colonização, a “língua geral”, como era chamada o gua-
rani, predominou sobre vários territórios brasileiros.
A alimentação gerada na colônia é a alimentação indígena. A mandioca pre-
cisa ser lembrada como o alimento básico da população nos primeiros tempos da
formação social brasileira, era indígena e foi incorporada pelo colonizador em
conjunto com outros alimentos da “mesa”, hábito português. A roça, o contato
sexual com a mulher indígena, a formação do caboclo e a ocupação do interior

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


205

contribuíram para o surgimento de novos hábitos alimentares. O cultivo da


mandioca foi a condição da sobrevivência e da confluência de uma organização
social da comunidade agrícola miscigenada que vive de si mesma. O caboclo foi
o agente de ocupação vital para garantir a fronteira7 estabelecida por Portugal.
A conquista do interior do território brasileiro é resultado desta condição e os
bandeirantes são o seu melhor exemplo.
A bandeira paulista tinha em seus líderes o exemplo da miscigenação entre
o branco e o indígena. Este típico brasileiro implantou pelo caminho percorrido
no interior, no sertão, as comunidades caboclas perdidas que seriam resgatadas
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com a integração do território, na segunda metade do século XIX e na primeira


do século XX.
A alimentação é, sem dúvida, um dos elementos importantes da miscigena-
ção. A organização da cozinha, formada pelos conhecimentos de cada uma das
etnias, permitiu a constituição de pratos típicos e ricos em sabor e composição.
Rica pelo cheiro, aparência e paladar dos sabores da mesa brasileira, a alimen-
tação expressa muito da formação social e dos significados que a convivência
entre os elementos étnicos geradores do povo brasileiro constituiu.
É interessante perceber que os encontros étnicos não foram pacíficos, antes,
marcados por uma série de conflitos, extermínios humanos, ainda em anda-
mento em alguns casos. Porém, não somente a questão da mesa, mas houve
muitos outros frutos desta terra, que fervilhou como em uma panela em fogão
à lenha. O calor dos trópicos foi o ambiente de formação do povo brasileiro, do
trabalho escravo e seu suor, das batalhas que esquentaram o sangue e o derra-
maram como caldo que temperou a terra fértil e fez brotar a sociedade. O Brasil
não está pronto, ainda persistem inúmeros conflitos impulsionados pela mesma
desigualdade econômica, miserabilidade da população, gerados desde os primei-
ros tempos da formação da sociedade brasileira. Ainda são estes conflitos que
alimentam o dia a dia do país.
A resistência, como falamos, foi uma característica presente no processo
colonizador, mas nem sempre só em relação à exploração colonial. Os conflitos

Seria o Brasil gigante pela própria natureza da mandioca? A conquista do território brasileiro foi feita com a
7

permanência das comunidades caboclas, abandonadas, distantes, incialmente, do projeto colonial. Somente
nos últimos 150 anos foram anexados com a expansão agrária, a “marcha para o oeste” brasileiro.

As Condições Sociais, Econômicas e Culturais para a Formação da Colonização Portuguesa


206 UNIDADE IV

foram diversos, com formas de organização que expressaram tradições das guer-
ras entre as tribos indígenas da América ou do continente africano, até mesmo
a reprodução da sociedade escravocrata dentro dos quilombos, que aparente-
mente deveria combatê-lo (trabalho escravo). Não podemos considerar que a
escravidão nos quilombos tenha reproduzido as mesmas bases de exploração
nos engenhos, porém ela existiu.
A escravidão enquanto instituição ainda está para ser entendida; faltam estu-
dos de suas relações dentro dos engenhos e fora deles. Na grande propriedade,
a relação estabelecida entre os indivíduos também precisa ser melhor compre-

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endida. O escravo tornou-se uma imagem generalizada, porém teve momentos
distintos dentro de condições específicas, com trabalhos nas lavouras que se dife-
renciavam entre si. A produção do açúcar e a lavoura da cana, a produção do
cacau, do algodão, as criações do gado foram diferentes da mineração.
O preço do escravo diferenciava de região para região. A oferta reduzida
de trabalhadores nas regiões menos produtivas ou que tinham um significado
periférico para o processo colonial lusitano influenciava no tratamento dado ao
cativo. O custo de manutenção de um escravo nas áreas menos produtivas para
a empresa colonial e seu retorno demorado enquanto mão de obra determinava
uma relação diferenciada com o senhor, seu proprietário.
Além dessa questão econômica, há a relação estabelecida entre o senhor e o
escravo, o homem livre e o trabalhador compulsório. Se em alguns momentos
o escravo se torna necessário para todas as atividades, como objeto de uso, um
patrimônio do senhor, ele também manteve relações íntimas com seu “proprie-
tário” e explorador. A miscigenação marca a formação do povo brasileiro. Parte
considerável e uma das mais importantes na constituição do elemento nacio-
nal é aquela estabelecida entre o homem branco, o colonizador, e o escravo de
origem africana.
Nos engenhos, na mineração, além de outras atividades, os libertos, alfor-
riados, quando eram pessoas simpáticas aos seus senhores, recebiam escravos
e reproduziam a escravidão em terras doadas ou adquiridas. Em Minas Gerais,
na história da produção de subsistência ou naquela voltada ao mercado interno,
há um número considerável de pequenos proprietários rurais que foram escra-
vos e tinham escravos.

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


207

Desta forma, podemos considerar que a escravidão se naturalizou, ganhou


aspectos de condição comum à vida econômica e passou a direcionar as ações
dos indivíduos como algo a ser reproduzido dentro de uma naturalidade cons-
tante. A identificação com o trabalho escravo era a condição para se estabelecer
a relação econômica e o princípio da vida social.
Considerando esses pontos e dentro desse contexto, podemos considerar
que o preconceito se constrói pela herança que esta naturalização gerou e foi
exercida após a abolição. O rompimento com o sentido que o trabalho escravo
estabeleceu, da inferioridade do negro, de serem eles nossa parte “ruim” entre
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

os elementos que formaram a identidade nacional, ainda é um desafio. Estamos


lutando contra o preconceito diariamente; o interpretamos mal e por isso não
sabemos dimensionar seus efeitos na atualidade.
Torna-se fundamental estudar as consequências do trabalho escravo e enten-
der como a condição do negro na atualidade é reflexo deste passado. Um dos
mais importantes estudiosos da questão afro na atualidade, João José Reis (1993,
p. 193-194), se posiciona sobre o tema:
Finalmente chegamos ao domínio da escravidão, que representa quase
metade da população intelectual sobre a experiência negra no Brasil.
Além de uma revisão profunda do papel social e até político do escra-
vo, reavaliou-se a importância do negro e do mestiço livre, redimen-
sionando uma sociedade que antes se interpretava apenas através da
matriz escravo/senhor. Está demonstrando que havia senhores grandes
e pequenos, entre os quais pessoas pobres, ex-escravos e até... escravos.
A resistência escrava sempre foi objeto de muitos interesses. Os levan-
tes e quilombos continuam a ser descobertos e os já conhecidos a ser
revisados a partir de documentação inédita, inclusive arqueológica, e
perspectivas novas. Dos velhos papéis emergiram movimentos reivin-
dicatórios coletivos surpreendentes, na cidade e no campo, envolvendo
petições e greves contra abusos senhoriais e por melhores condições de
trabalho e vida (...).

As Condições Sociais, Econômicas e Culturais para a Formação da Colonização Portuguesa


208 UNIDADE IV

Como diz Reis (1993), a escravidão se desdobrou de diversas formas e gerou


diversas resistências. Na atualidade, estamos vendo e revendo estas questões. O
estudo sobre as heranças do trabalho escravo ainda está por se fazer e ainda vai
gerar mudanças significativas no nosso olhar sobre o passado. Porém, no Brasil,
em especial, esta produção demora a chegar à grande parte da população. Por
mais que se multipliquem os estudos acadêmicos a respeito do preconceito e
da escravidão, há uma dificuldade para que se torne leitura corrente, acessível
a maior parte dos brasileiros. Não por acaso, há uma resistência ou ausência de
compreensão do significado do que foi a instituição do trabalho escravo de forma

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
racional. O senso comum se estabelece como medida para tratar a discussão de
políticas públicas em relação aos afrodescendentes. A questão das cotas raciais, o
desemprego, a violência contra jovens negros ainda é debatida superficialmente.
A mesma escravidão que gerou violência, também constituiu nossa identi-
dade. Ela resgatou em nós um princípio comum de miscigenação, pregada ora
como o nosso mal ora como herança identificadora. A mistura que nos formou
ainda está sendo digerida pela sociedade carregada de preconceito, não conse-
guimos ter a plena consciência de nossa identificação como um povo fruto do
encontro, das possibilidades migratórias, da diversidade e não da segregação.
Hoje, quando falamos da violência praticada dentro da sociedade brasileira,
vemos que ela é histórica. Sua construção se deu ao longo de conflitos que se
generalizaram e persistem até nossos dias. Parecem “insolúveis”. Entender a ori-
gem destes conflitos, as condições em que ocorreram e as suas consequências
ao longo da história é um passo fundamental para resolver os seus reflexos nos
movimentos sociais da atualidade.

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


209

A INSTALAÇÃO DA COLONIZAÇÃO E O PAPEL DO


ENGENHO

Os conflitos se generalizaram pelo território colonial português na América. O


interesse de Portugal em manter a supremacia sobre as terras gerou uma série
de conflitos. Nos primeiros tempos da ocupação lusitana, o conflito se deu dire-
tamente com as tribos nativas presentes nos primeiros povoados e áreas de
exploração instaladas em regiões pontuais do litoral; posteriormente, o des-
dobramento da colonização gerou conflitos generalizados. Até mesmo grupos
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

indígenas que eram aliados de Portugal se voltaram contra o conquistador.


Tomé de Sousa, primeiro governador da colônia, em 1549, estabeleceu seu
poder sobre o território eliminando a resistência dos nativos. A implantação de
uma política expansionista dentro do território colonial se voltou intensamente
contra os nativos; a busca por riquezas no interior e garantia da ocupação das
áreas litorâneas para a produção açucareira desdobraram conflitos de extermínio.
Um dos conflitos mais conhecidos concebeu uma das obras literárias clássicas
que trata da Colônia, “O Guarani”, de José de Alencar, que relata a história de
Peri e Cecília e Álvaro e Isabel. O romance retrata as artimanhas dos coloniza-
dores “ambiciosos” e a resistência dos nativos à ocupação do homem ocidental.
O desenrolar da colonização se deu com regionalismos. Em diversas regiões
da colônia, se instalarem unidades de exploração com características próprias.
Mesmo na região litorânea se mesclavam as áreas de exploração, ligadas direta-
mente à empresa mercantilista portuguesa e às áreas de povoamento do litoral.
Nestas áreas de povoamento, economicamente periféricas, a empresa coloniza-
dora, um número considerado de portugueses, em sua maioria desterrados, fazia
o papel de agentes de ocupação. Porém, foi nestas áreas de povoamento que se
desenvolveu uma cultura singular de forte influência indígena.

A Instalação da Colonização e o Papel do Engenho


210 UNIDADE IV

Podemos considerar como uma das prin-


cipais áreas de miscigenação, na empresa
colonizadora de povoamento, a Capitania de
São Vicente. Nela, além da “Muralha” 8, se esta-
beleceu a comunidade fundada em torno do
Colégio Jesuíta de Piratininga. A criação da mais
importante cidade brasileira, São Paulo, se deu
em 25 de janeiro de 1554. Sua fundação é resul-
tado da ação entre os jesuítas José de Anchieta e

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Manoel da Nóbrega em sua marcha catequizadora
sobre os índios Guaianases, chefiados por Tibiriçá. A relação entre os indígenas
da região e os “homens brancos” foi intermediada por João Ramalho, coloniza-
dor que já habitava as terras do Planalto Paulista antes mesmo da fundação da
Capitania de São Vicente9.
Muitas destas empresas de catequização e o estabelecimento de núcleos de
povoamento tinham como meta apaziguar a convivência entre os nativos e os
colonizadores. Portugal e o Governo Geral implementaram ações de conquista
de regiões litorâneas e de áreas que entravam território adentro margeadas pelos
rios que desembocavam no litoral Atlântico da colônia. São Paulo, assim como
São Matheus, Vitória do Espírito Santo e São Sebastião do Rio de Janeiro são
resultados deste desdobramento.
A fundação de Salvador, por Tomé de Sousa, deu-se pelo combate aos indí-
genas, que tinham eliminado a primeira empresa colonizadora instalada na
Capitania de Todos os Santos (Bahia), 1549. Os sucessores do primeiro gover-
nador tiveram problemas com as revoltas nativas e a presença de estrangeiros
no litoral.

8
A Serra do Mar ganhou este apelido, Muralha, ao longo da colonização. Sua extensão, do Rio de Janeiro ao
Rio Grande do Sul, significou um obstáculo à tentativa portuguesa de uma ocupação efetiva do interior do
território colonial que hoje corresponde à parte da região sudeste e sul. Em busca de instalar uma empresa
colonizadora que se efetivasse como uma ação sobre as intenções espanholas sobre a região platina, os
portugueses estabeleceram entrepostos para atingir as fronteiras do Rio da Prata e chegar o mais próximo
possível dos empreendimentos mineradores dos espanhóis.
9
A Capitania de São Vicente foi o marco entre a fase de reconhecimento do litoral e a exploração exclusiva
do Pau-Brasil para o estabelecimento da colonização. Martin Afonso de Sousa foi o primeiro donatário a
tomar posse das terras estabelecidas pela coroa portuguesa, em 1530.

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


211

Espanhóis e franceses foram os que mais ameaçaram as posses portuguesas


na América. Interessados no Pau-Brasil, mas também em implantar núcleos de
ocupação nas áreas lusitanas, os conflitos foram constantes no mar e por terra.
A linha imaginária do Tratado de Tordesilhas (1494) deixou brechas para a
indagação das duas nações ibéricas (Espanha e Portugal) a respeito dos verda-
deiros limites dos seus respectivos territórios coloniais. As fronteiras estavam
para serem feitas entre o que o traçado sobre um mapa impreciso estabeleceu e
a porção real do território.
Neste ambiente, os conflitos se generalizaram, mas também a expansão.
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Em uma análise mais profunda, até mesmo a instalação do Governo Geral teria
sido uma ação de Portugal para garantir suas porções territoriais na América,
diante dos avanços da Espanha e, posteriormente, França, Inglaterra e Holanda
sobre outras partes do Império Colonial lusitano em outras porções do mundo,
como a África10.
Outro fato relevante na busca para a expansão do interior por Portugal foi a
conquista espanhola além da Cordilheira dos Andes. Ao conquistar as Minas de
Botosi, na Bolívia, os espanhóis estabeleceram uma importante unidade de ocu-
pação que permitiu o avanço sobre o Peru, Venezuela, Colômbia e, mais tarde,
a consolidação da ocupação sobre a Bacia do Prata.
O domínio sobre a bacia platina seria um dos episódios fundamentais para
a delimitação das fronteiras entre a colonização portuguesa e espanhola em suas
áreas coloniais. A forma afunilada do território brasileiro é um registro desta luta
por terras na região platina. Estabelecer as fronteiras nestes territórios implicou
em constantes ações de ocupação. Empesas de exploração foram implantadas
nas áreas extremas da colônia portuguesa. O Rio Grande do Sul e a indústria
da carne, as missões jesuítas implantadas às margens dos rios da Bacia do Prata
deixaram registros que ainda hoje são objetos de pesquisa por arqueólogos, his-
toriadores, antropólogos etc.

10
Os portugueses assistiram as invasões e perdas de uma série de territórios na África, um dos fatores foram
os custos de manutenção de tropas em áreas de ocupação litorâneas onde foi difícil garantir a manutenção
de tropas. Cabo Guiné (1549), Safin e Azamor (1542), Alcacer Ceguer e Arzila (1550) são alguns exemplos
das perdas portuguesas em um curto espaço de tempo. Associados aos conflitos no litoral brasileiro com os
nativos, estes fatos geraram tensão e exigiram reação por parte da coroa lusitana.

A Instalação da Colonização e o Papel do Engenho


212 UNIDADE IV

A descoberta de prata e ouro em áreas de ocupação espanhola além da


Cordilheira dos Andes aguçou a busca portuguesa por riqueza no interior. Desta
busca, se estabeleceu o bandeirantismo, um desdobramento das condições em
que os elementos coloniais se miscigenaram dentro de um ambiente que favo-
receu o encontro entre a busca de aventura dos nativos e a ambição material do
elemento português. O aventureiro das Bandeiras foi agente de propagação da
colonização sobre os moldes da mistura.
O elemento nativo, o indígena, estava no centro das ações conquistado-
ras, em determinado momento, como vítima do extermínio e, em outro, como

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agente participativo das guerras de conquista. O elemento conquistador aliciou
parte dos indígenas em sua empresa aventureira pelo desejo de fazer a guerra,
isso era visto como honra para muitos indígenas.
Dois agentes sociais acabaram por se encontrar neste ambiente, o elemento
religioso e o conquistador bandeirante. Os dois serviram à coroa portuguesa,
mas foram fortemente influenciados pelas comunidades indígenas, com quem
conviveram e, de certa forma, colaboraram para alterar profundamente sua orga-
nização original. Enquanto muitos nativos incorporaram as técnicas ocidentais
de combate, outros foram eliminados por elas. Darcy Ribeiro (1995, p. 34) retrata
as guerras constantes em que viviam os tupis:
Cada núcleo tupi vivia em guerra permanente contra as demais tribos
alojadas em sua área de expansão e, até mesmo, contra seus vizinhos da
mesma matriz cultural (...). No primeiro caso, os conflitos eram cau-
sados por disputas pelos sítios mais apropriados à lavoura, à caça e à
pesca. No segundo, eram movidos por uma animosidade culturalmen-
te condicionada: uma forma de interação intertribal que se efetuava
através de expedições guerreiras, visando à captura de prisioneiros para
a antropofagia ritual11.

Esta tendência dos nativos buscarem a guerra como uma forma de afirmação
de seus próprios valores serviu ao europeu como instrumento de manipulação
das comunidades nativas para atender à ocupação do território e à submissão

11
Vale lembrar que José de Souza Martins não considera a antropofagia como uma prática dos indígenas
que habitaram o território brasileiro, diferente do que Darcy Ribeiro apresenta. Esta, até hoje, é uma
questão polêmica. Difícil de ser delimitada. Há registros por viajantes de atos antropofágicos, mas eles não
permaneceram ao ponto de ainda hoje serem detectados entre as comunidades indígenas.

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


213

de uma porção considerável dos indígenas. Os aliados dos colonizadores, indí-


genas que, pelos mais diversos motivos, formaram um pacto com o elemento
colonizador, também foram submetidos pela dependência aos meios materiais e
culturais que os europeus estabeleceram. Porém, esta submissão teve um preço
para o colonizador, ele mesmo sofreu mudanças na sua organização, influenciado
pelos nativos, a construção de uma nova identidade que, aos poucos, foi estabe-
lecendo o vínculo cada vez maior com o território colonial, o que se chama na
historiografia brasileira de sentimento nativista.
Os jesuítas foram um instrumento importante para a construção de um ideá-
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rio religioso profundo, mas não são os únicos, os números de ordens religiosas se
multiplicaram dentro do território colonial. A presença das instituições católicas
apenas reafirmou a construção de uma cultura cristã profunda. Esta religiosi-
dade deu ao colono a compreensão de que sua vida era orientada também pela
fé, porém, com o contato com os elementos étnicos no território colonial, ao
longo das gerações de colonizadores, incorporaram a magia presente nos ritu-
ais indígenas.
Em alguns lugares do Brasil, nos seus múltiplos cantos, estão benzedei-
ras, parteiras, curandeiros, padres que dominam a cura pelas ervas, as receitas
miraculosas de garrafadas etc. São tantas as formas de estabelecer dentro de um
cristianismo a magia do afro-indígena que os terreiros de Umbanda ou mesmo
a importação do Candomblé são apenas um esboço.
Quem resistia a esta prática se lançava em um campo perigoso. A difícil fuga
da dominação estabelecia campos estreitos para a vida dentro do território colo-
nial: fugir para o interior e tentar escapar da conquista do “homem branco” ou
se submeter; crer ou se deixar morrer, como afirma Darcy Ribeiro (1995, p.43):
Mais tarde, com a destruição da base da vida social indígena, a negação
de todos os seus valores, o despojo, o cativeiro, muitíssimos índios dei-
tavam em suas redes e se deixavam morrer, como só eles têm o poder
de fazer. Morriam de tristeza, certos de que todo o futuro possível seria
a negação mais horrível do passado, uma vida indigna de ser vivida por
gente verdadeira.

Sobre esses índios assombrados com o que lhes sucedia é que caiu a
pregação missionária, com um flagelo. Com ela, os índios souberam
que era por culpa sua, de sua iniquidade, de seus pecados, que o bom

A Instalação da Colonização e o Papel do Engenho


214 UNIDADE IV

deus do céu caíra sobre eles, como um cão selvagem, ameaçando lançá-
-los para sempre nos infernos. O bem e o mal, a virtude e o pecado, o
valor e a covardia, tudo se confundia, transtrocando o belo com o feio,
o ruim com o bom.

Esta dominação se daria, neste sentido, diferente com o indígena do que o que
se processou com o negro. Enquanto com o primeiro se retira as condições de
sobrevivência que tinha, com o outro se amputa a vida em determinado lugar
para estabelecer a força em outro. Implanta-se o interesse da exploração nos dois
elementos, porém, com um se recria uma cultura diante do estranho (negro)
e com o outro se destrói a condição existente para implantar-se a dominação.

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Esta luta incessante entre os movimentos humanos em um ambiente colo-
nial e, posteriormente, o que viria a ser o território nacional imposto pela força
do Estado, seria contínua e necessária para formar um território nacional, o povo
brasileiro, regionalizado e unificado pela autoridade mais do que pela integração.
As condições de dominação se estenderam por grande parte do território
colonial com atos extremos de violência. O dominador legitimou seus interesses
de todas as formas que pretendeu, criou em torno de si um imenso patrimônio,
porém, o custo para a acumulação deste patrimônio ainda é elevado. Hoje, no
Brasil, são as áreas de fronteira agrícola que traduzem a violência em seu aspecto
tradicional. A violência dos primeiros tempos de colonização para a conquista
do território, o extermínio para tomar a posse da terra, na qual o dono do lugar
é aquele que permanecer de pé sobre ela é uma constante. Ainda hoje está pre-
sente em muitas fronteiras agrícolas brasileiras.
O ocidental venceu por dar ao território um sentido além das fronteiras. A
ambição do europeu se traduz na concentração de uma riqueza que gerou um
significado oposto àquele que o nativo estabeleceu sobre a natureza, desta forma,
há um encontro de sentidos diferentes. O branco (e seu mando), interessado no
empreendimento lucrativo e se identificando como um “civilizador”, se defron-
tou com um nativo em seu ambiente, vivendo sem a ambição acumulativa do
homem ocidental mercantil. Os indígenas em natureza apresentavam, sob diver-
sos aspectos, diferenças significativas em relação ao branco cristão. Uma destas
diferenças os aproximou, mas com sentidos diferentes na prática conjunta do
contato sexual. O “bem resolvido” indígena seduziu o homem branco, mas isso
não o livrou do extermínio:

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


215

Esses índios cativos, condenados à tristeza mais vil, eram também os


provedores de suas alegrias, sobretudo as mulheres, de sexo bom de
fornicar, de braço bom de trabalhar, de ventre fecundo para prenhar.
A vontade mais veemente daqueles heróis d’além-mar era exercer-se
sobre aquela gente vivendo como seus duros senhores. Sua vocação era
a de autoridade de mando e cutelo sobre bichos e matos e gentes, nas
imensidades de terras de que iam se apropriando em nome de Deus e
da Lei (RIBEIRO, 1995, p. 48).

Porém, esta construção da identidade não pode ser romantizada, necessita ser
analisada a partir das condições reais em que foram estabelecidas. A exploração
colonial instalada no território brasileiro é determinante no destino dos indíge-
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nas. A forma como tratamos o tema do índio e sua condição na atualidade nos
parece mais uma retórica saudosista que desconhecemos do que uma compreen-
são fundada na racionalidade gerada pela lógica dos fatos. Os relatos do próprio
Darcy Ribeiro, que nos serviu até aqui como uma orientação, são exagerados,
porém reflexivos. Não podemos negar o “mal feito”, sempre levando em consi-
deração para quem ele serviu. O processo colonizador exterminou os nativos
e lhes deixou à margem da sociedade. Destituiu as condições de sobrevivência
e gerou a obediência de forma torpe. O gozo que foi obtido ao se apropriar do
corpo da nativa foi acompanhado do ódio, não permitindo a extensão da con-
vivência necessária sobre a égide do respeito.
Dentro da construção da regionalidade, ambiente onde a identidade nati-
vista se formou, a religiosidade integrou as diferenças. Em todas as porções do
território formador do Brasil, a fé é elemento comum. A religiosidade preservou
a possibilidade de comunicação cultural entre os diversos espaços onde a pre-
sença da intenção colonizadora se estabeleceu. Como uma parte do folclore, as
diversas regiões brasileiras se consolidaram com variados rituais de fé.
O cristianismo foi, desde o período colonial, um elemento comum nas variá-
veis da relação entre os grupos étnicos formadores brasileiros. Há uma construção
gradativa dos símbolos religiosos e a definição de como eles se organizaram den-
tro do imaginário regional. A fé foi, também, fundamental para estabelecer a
compreensão da dominação.

A Instalação da Colonização e o Papel do Engenho


216 UNIDADE IV

OS BONS E MAUS

A expansão da empresa catequizadora foi fundamental para dominar o nativo,


mas isso não se deu com tanta facilidade como se pensa. Converter o nativo à fé
cristã não foi um empreendimento tão bem-sucedido e não se deu da maneira
que a Ordem Jesuíta estabeleceu, muito menos o Estado Português. No início
da ação catequizadora, a relação entre os padres da Companhia de Jesus foi de
fidelidade ao interesse do Estado, mas esta condição não se propagou, e os inte-
resses dos inacianos e do Estado português foram se distanciando.

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O trabalho feito com as comunidades indígenas se desdobrou para regiões
cada vez mais distantes dos núcleos litorâneos, onde a colonização tinha se ini-
ciado. O empreendimento colonial produtor de açúcar ou de outros produtos
agrícolas voltados à exportação aos poucos estabeleceu uma sociedade escravo-
crata interessada na ampliação das estruturas de colonização que atendessem à
necessidade de uma elite colonial. Muito do regionalismo esteve ligado à ascen-
são de uma aristocracia agrária e extrativista, estas empenhadas na defesa de
seus interesses.
As empresas evangelizadoras se distanciaram de sua função inicial, servir
como evangelizadoras, mas garantir o domínio sobre os povos indígenas pela
coroa portuguesa. Uma das formas de compreendermos este distanciamento
é o posicionamento do Padre Vieira em relação à exploração de nativos no
Maranhão, no século XVII, quando o território colonial português foi invadido
pelos holandeses e o tráfico negreiro foi interrompido com parte considerável
das áreas produtoras agrícolas coloniais. Os empresários se voltaram para os
nativos na busca de trabalhadores compulsórios que viessem substituir a carên-
cia de mão de obra africana.
A extensão do território brasileiro foi fruto do deslocamento de missionários
e de bandeirantes; mais o segundo do que o primeiro se destacou na anexação
dos territórios que foram oficializados como portugueses pelo Tratado de Madri
(1750) e depois consolidados no de Badajós (1803), com a anexação de Sete Povos
das Missões. Os missionários também tiveram um papel de destaque no dese-
nho cartográfico do território do país.

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


217

Essa condição de ocupação se desdobrou mais tarde em conflitos de resis-


tência dos padres inacianos diante da política nacionalista portuguesa e da
laicização da empresa colonizadora. Não se aboliu a Igreja Católica do projeto
colonial, mas se limitou significativamente sua função como empresa de ocu-
pação de terras e de ação econômica em áreas distantes dos empreendimentos
coloniais portugueses.
O inaciano passou a constituir, nas regiões onde implantou suas missões,
empreendimentos fundados na coletivização do trabalho agrícola e na busca de
organizar as comunidades para desenvolverem atividades geradoras de alimen-
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tos e criações. Essa produção alimentou os indígenas aldeados, mas também deu
aos padres inacianos empresas econômicas promissoras. O governo de Pombal12
considerou a presença dos jesuítas uma “ameaça estrangeira” ao domínio por-
tuguês nos trópicos.
O empreendimento inaciano tinha aspectos duros nas relações de conversão
dos nativos, tinha uma ordem constituída sob uma orientação disciplinar militar,
rígida, onde converter implicava em domesticar o corpo. Os inacianos retiraram
a organização nativa das aldeias, da convivência na família, separando os idosos
e, principalmente, as crianças do seio familiar. Eles não queriam que os jovens
tivessem os vícios da vida “selvagem” que seus pais tinham. Consideravam que os
hábitos dos indígenas eram pervertidos e destruíam o caráter das crianças. Para sal-
vá-los, eram retirados desde cedo do convívio familiar e educados de forma rígida
na busca de formar uma geração afinada com os princípios da religiosidade cristã.
As gerações que se criaram dentro das missões e aldeamentos incorpora-
ram a fé cristã, mas alguns resistiram a ela. Muitas das empresas jesuítas viram
os nativos fugirem com a aproximação dos bandeirantes, eles desejavam ter uma
vida de aventura a ficarem condenados à pregação e à monotonia do cotidiano
doutrinário inaciano. Os paulistas das Bandeiras não foram só uma ameaça às
missões jesuíticas pelos ataques que faziam às comunidades missionárias, mas
também pela forma de viver, que seduzia os jovens indígenas.

12
O Marquês de Pombal governou Portugal entre 1750 e 1777. Seu governo foi marcado pela busca de
um empreendimento nacionalista, valorizando as empresas portuguesas. Sua administração foi marcada,
também, por problemas recorrentes de déficit orçamentário. Os gastos da coroa foram elevados quando um
maremoto atingiu o litoral de Portugal e destruiu Lisboa. Não por acaso o Marquês pensava em transferir a
capital portuguesa para o Brasil. Ato que foi executado mais tarde pelo Regente D. João VI.

A Instalação da Colonização e o Papel do Engenho


218 UNIDADE IV

A empresa inaciana chegou a ter mais de 150 mil nativos sobre seu domí-
nio. Em diversas partes da colônia portuguesa, os missionários jesuítas foram o
braço avançado da ocidentalização, porém, sonharam em organizar uma repú-
blica associada aos nativos, em especial aos guaranis, erguendo um território
livre onde os padres seriam os organizadores de um Estado separado do empre-
endimento colonial português e espanhol. Aqui se firma, na região da Bacia do
Prata, no século XVIII, a possibilidade de implantar uma República Guaranítica.
Em 1753, os indígenas da região de Sete Povos se recusaram à retirada do
território onde tinham se estabelecido em amplas áreas produtivas e se organi-

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zado em comunidades lideradas pelos padres inacianos. Alegavam que todo o
território tinha sido organizado pelos missionários e indígenas convertidos. A
luta deveria ser pela implantação de uma comunidade autônoma apartada da
colonização portuguesa e espanhola. Os jesuítas ousaram desafiar o reino portu-
guês e espanhol e constituir uma república guaranítica na Bacia do Rio do Prata.
Os jesuítas desejavam um território disputado pelas coroas ibéricas. Espanhóis
e portugueses desejavam o controle da desembocadura do Rio do Prata onde
desembocavam os rios Paraná, Paraguai e Uruguai. Uma região estratégica para
a invasão espanhola no interior do território boliviano, onde imperava o extrati-
vismo castelhano, mas a região também era valorizada pela produção agrícola e
a criação de gado. As riquezas produzidas pelos aldeamentos jesuítas instigaram
o interesse dos portugueses e espanhóis, exatamente em um tempo, no século
XVIII, em que a fé iniciava sua submissão aos interesses do capital.
As mudanças nos interesses portugueses sobre seu território colonial foram
um reflexo das condições em que o capitalismo ingressou em sua fase industrial.
A racionalidade da política econômica, que ganhou corpo na Europa, afetou, de
determinada forma, os interesses portugueses ligados às práticas mercantilistas.
A empresa comercial monopolista passaria a ser explorada pelo império inglês
para atender às demandas da produção maquinofatureira e valorizar o processo
de transformação de bens. Portugal buscou um desenvolvimento industrial para
romper com a dependência da economia inglesa. O Marquês de Pombal foi a
expressão política desta busca de autonomia portuguesa através de medidas eco-
nômicas nacionalistas.

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


219

Para atingir o seu objetivo, Pombal tomou uma série de medidas político-
--administrativas, mas também econômicas. A expulsão da Ordem Jesuíta foi
uma delas. A presença inaciana nas colônias portuguesas com o poder mate-
rial e humano adquirido em forma de terras, índios convertidos e membros do
clero, ameaçavam os planos de Portugal de romper com qualquer interferência
externa. A Igreja Católica, antiga aliada, passou a ser uma ameaça.
A retirada dos jesuítas, em 1759, desmantelou a política educacional e cate-
quizadora. A orientação religiosa e educacional promovida pelos inacianos não
se manteve dentro do território, porém deixou suas marcas. A religiosidade se
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consolidou como a prática do colonizador ou o instrumento de resistência do


explorado. O discurso religioso ganhou formas distintas e também orientou as
resistências estabelecidas nas mais diversas regiões do território brasileiro.
Não foi por acaso que o messianismo, a crença no salvador que guiará o povo
sofrido para a salvação, foi um dos elementos de liderança de diversos movimen-
tos sociais no território brasileiro, principalmente os que tinham como principal
questão a luta pela terra.
Nos discursos dos místicos, o messias prega que na “terra santa”, na “nova
Canaã”, nos “quadros santos”, ou na “volta de São Sebastião”, repousa a felici-
dade final. Os discursos religiosos se multiplicaram e levaram a guerras entre as
autoridades oficiais e as forças paramilitares dos movimentos religiosos. Estes
aparatos eram compostos, via de regra, por populações marginais organizadas
em torno de um líder religioso.
Enquanto essa tendência se propagou pela terra, o poder estabelecido toma
posição em outra direção. A expulsão dos jesuítas dos territórios coloniais foi
uma das ações do Estado português em direção ao “desenvolvimento” capitalista,
relembrando que o capitalismo lusitano não se desenvolveu pela modernização
das empresas privadas ou pelos seus investimentos em estruturas de produção
para a dinamização da economia. Foi o Estado o agente econômico vital para as
mudanças necessárias no propósito de fazer de Portugal uma grande nação. O
que não ocorreu, mas foi o sentido que orientou as ações do governo pomba-
lino. Uma tendência que o Brasil tomaria por herança lusitana, a busca de ser a
nação do futuro. O Estado sempre teve e tem um papel excessivo na vida econô-
mica. Ao mesmo tempo em que a sociedade lhe será um “sanguessuga”, também

A Instalação da Colonização e o Papel do Engenho


220 UNIDADE IV

será seu capacho aceitando suas imposições. Quem se aproxima do poder e lhe
dá apoio recebe as benesses do regime instalado.
O governo de Pombal foi o marco de uma política econômica despótica, ao
modelo lusitano, onde o poder do rei será sempre exercido, mesmo associado a
atos de desenvolvimento. O poder público, aqui, se coloca como determinante
das mudanças, gerador da infraestrutura e garantidor dos retornos financeiros
necessários e encorajadores do burguês.
Vale lembrar que a burguesia lusitana, assim como a brasileira, ao longo da
história, dependerá do poder público para lhe fazer as vezes e alimentar uma

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“covardia econômica” típica; ter influência no poder público permite favores.
Essa prática é antiga na nação portuguesa e remonta sua formação quando da
relação dos reis da Dinastia Borgonha e Avis, cada uma a seu tempo e intensi-
ficada com os Bragança.
Os empresários portugueses dependeram de sua coroa para a conquista do
mar; o empresário mercantilista na sua dependência, “sombra”, nos desdobra-
mentos da colonização, na busca por tomar posse de terras e estabelecer empresas
agrícolas. O comércio controlado pelo Estado é outra demonstração da depen-
dência da burguesia em relação ao poder público.
Não foi por acaso que, com a transferência da corte portuguesa, em 1808,
Dom João VI fundou o Estado Nacional Brasileiro, sem sua autonomia formal.
Esta seria efetuada por seu filho Dom Pedro II. Este, o herdeiro do trono por-
tuguês, se tornou líder do Estado-nação brasileiro. Uma liderança obtida pelas
condições estabelecidas por seu pai, quando transferiu a Corte de Portugal para
o Brasil. As condições geradas no passado, organizada por Dom João são per-
manências que a monarquia no Brasil incorporou e usou como prática política
constante. Uma delas foi o clientelismo e o nepotismo, o uso da máquina pública
para beneficiar os aliados do poder.
Dessa forma, o território foi se constituindo por uma autoridade distante
de parte considerável da sociedade. A grande maioria da população não convi-
veu com os serviços públicos, não conheceu o exercício da representatividade,
mas foi marcada pelas agressões constantes sobre aqueles que denominavam
seus súditos, nos tempos do império, ou cidadãos, na república. O Estado surgiu
e se impôs através de leis de gabinete, dos decretos voltados aos interesses das

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


221
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aristocracias, das práticas despóticas e do nepotismo propagado pela máquina


administrativa pública.
A formação do Estado brasileiro reuniu a herança lusitana, no sonho de criar
“uma grande Portugal”, com uma sociedade marcada pela escravidão, regada ao
“caldo de uma sociedade nova” (RIBEIRO, 1995), cheia de encontros. Autoritário
em sua formação, o Brasil teve uma capital (Rio de Janeiro) “virada de costas
para o Brasil”, e o reconhecimento de que se pertencia a um território nacional
viria bem mais tarde, porém, não menos autoritário.

O TERRITÓRIO SEM POVO

O desenho do território já estava pronto desde o século XVIII. Os tratados assi-


nados entre Portugal e Espanha delimitavam, em praticamente sua totalidade, o
que veio a ser o Brasil. Dentro dos limites, uma série de revoltas tomou propor-
ções preocupantes para Portugal e depois para o Estado brasileiro.
Os movimentos separatistas definiram um regionalismo consolidado. Mesmo
não sendo capazes de romper a unidade, não deixaram de estabelecer traços
locais significativos.
Movimentos como a Inconfidência Mineira (1789) ou a Conjuração Baiana
(1798) demonstraram o quanto as elites agrárias estavam determinadas pelo seu
próprio interesse regional acima de um projeto nacional. O Brasil que temos hoje

A Instalação da Colonização e o Papel do Engenho


222 UNIDADE IV

existia para a administração portuguesa mais do que para os colonos. Era o resul-
tado de uma anexação de territórios a Oeste, além do Tratado de Tordesilhas.
O Brasil é colcha de retalhos costurada por linha dura. O regionalismo foi
vencido pela capacidade de intervenção e controle do Estado centralizador e das
alianças promovidas com membros das elites locais. Os oligarcas proprietários
de terras que ousaram enfrentar o Estado Português sofreram as consequências.
O poder regional dos grandes proprietários de terra, das oligarquias, se estabe-
leceu antes mesmo da formação do Estado nacional. Mantiveram-se depois de
um acordo implícito de legitimidade do centralismo em respeito ao localismo

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patriarcal. O senhor de terras tinha seus mecanismos para manter o controle
sobre uma grande massa de trabalhadores rurais. O poder se perpetuou e pas-
sou a significar uma tradição, lhe dava um significado incontestável na vida
social, cotidiana. As bases do Império (1822-1889) foram o acordo oligárquico
e a manutenção da escravidão amalgamada pelas forças de repressão, fossem elas
o exército ou as pertencentes aos senhores de terras e escravos.
A violência representa no Brasil um meio comum para garantir a ordem
interessante ao grupo dominante. A economia, neste sentido, explica sua orga-
nização na lógica de deter, com os instrumentos de repressão, de censura, ou
interpretação, as forças populares, assim como fazer cumprir o que se denomina
de “ordem estabelecida”. As revoltas ao longo da história brasileira expressam o
não reconhecimento pela sociedade do Estado estabelecido.
O que faz uma autoridade ser reconhecida? Na formação do Estado brasi-
leiro, há uma série de fatores a serem pontuados. Um deles é a repressão que o
Estado brasileiro exerceu e exerce sobre a sociedade. Foi excessivo em sua for-
mação e manteve-se ao longo de sua história. Não é por acaso que nossa relação
com o Estado ainda é conflituosa e engatinha para uma maturidade democrática.
Constantemente se idealiza o processo representativo como uma organização
social voltada a tomar o Estado e fazer dele um representante dos interesses
sociais, gestar organizações partidárias, ou associações civis, aptas a tomarem as
instituições públicas e fazê-las ser uma expressão da vontade popular. Contudo,
a história construída não é essa. O poder público não é público, ele tem dono,
tem seus “senhores”.

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


223

Quando a colônia dava os seus primeiros passos, era a casa grande nos enge-
nhos a sede administrativa da região. Fazia-se da propriedade do senhor a sede
administrativa da região, o espaço de convívio de todos. Quando a sede adminis-
trativa se instalou em um lugar próprio, o qual deveria ser público, foi instituída
sob a égide da extensão da “casa grande”, porém, os senhores locais trocaram de
lugar físico para simbolizar o mando ainda praticado dentro de seu patrimônio,
assim, o mando do poder público é a chibata do senhor sobre o escravo.
Sentimos todos os dias o distanciamento do poder público em relação aos
nossos interesses. O Estado é para nós um agente de repressão sentido de forma
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predisposta. Em todos os lugares onde se tem a necessidade de cumprir uma


obrigação estabelecida pelo Estado nos é sensível a submissão e é compreensível
o temor da repressão. Este hábito totalitário, constituído ao longo do tempo, é
exercitado das mais diversas formas e ganha, hoje, novos moldes, mas sem dei-
xar de cumprir o designo de dono.

O NASCIMENTO DO ESTADO NACIONAL

Ao compararmos a formação nacional brasileira com a de outras nações que se


constituíram ao longo da expansão ocidental, notamos singularidades e semelhan-
ças, porém as singularidades são mais intensas que as semelhanças, no aspecto
racional da representação pública, estabelecida com a Revolução Francesa, o
liberalismo e suas teses de representatividade.
A forma como se estabelece o poder em uma determinada sociedade depende
das condições sociais, econômicas e culturais dispostas. O Brasil tem suas par-
ticularidades, porém foi um território colonial ibérico, como parte considerável
da América Latina, e está sujeito a elementos comuns da colonização ibérica. O
território colonial brasileiro atendeu, por exemplo, às práticas mercantis, serviu
de produtor de gêneros agrícolas e importador de bens manufaturados euro-
peus. O monopólio comercial se instalou intermediando a Europa e os portos
brasileiros. Durante o Período Colonial, o Brasil já sentia os efeitos de estar inte-
grado a uma economia mundial e sofrer os efeitos desta integração nas mudanças
das atividades econômicas ou condições em que ela se estabeleceu. Foi assim

A Instalação da Colonização e o Papel do Engenho


224 UNIDADE IV

na decadência da economia açucareira, na ascensão e queda da produção aurí-


fera, nas atividades agrícolas do algodão, do cacau ou do tabaco, na expansão
do gado e a “indústria do charque”.
A escravidão, por exemplo, implantada durante o período de colonização,
não foi uma instituição exclusivamente brasileira, em diversas partes do territó-
rio americano ela existiu e teve seus efeitos na construção dos Estados nacionais.
Nossa peculiaridade, neste aspecto, foi uma demora em romper com o trabalho
compulsório. A abolição da escravatura foi, no Brasil, uma instituição resistente,
mesmo quando as forças econômicas mundiais se expressaram contra o trabalho

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escravo através de uma política diplomática de combate ao tráfico negreiro ou ao
trabalho escravo no Brasil. Tendo como alvo o governo imperial, o governo de D.
Pedro II, por exemplo, manteve-se resistente. Não se pode negar, por mais que
os “ilusionistas” tentem, a abolição da escravatura foi o resultado da mudança
do contexto econômico mundial e das pressões diplomáticas sofridas pelo país.
Há o peso do movimento abolicionista? Há, mas não com tanta determinação
sobre o desfecho expresso na abolição.

BRASIL, UMA NAÇÃO DO FUTURO DESDE O PASSADO

O aspecto marcante da formação do Estado Nacional brasileiro é, sem dúvida,


a transferência da Corte Portuguesa (1808) de Portugal para o Brasil, a vinda de
Dom João VI e sua corte, a fuga das tropas napoleônicas e a execução do plano
pombalino de estabelecer nos trópicos o sonho da “grande Portugal”, a formação
de um Estado desenvolvido, que fosse capaz de se impor sobre as demais nações
pelo poder de sua riqueza. A dimensão do estado lusitano sempre foi um obs-
táculo à meta de cumprir a grandiosidade que a empresa portuguesa desenhou.
As navegações têm este sentido, além de outros, é claro.
O Marquês de Pombal já buscava este objetivo ao implantar medidas que
gerassem uma maior produtividade e arrecadação dentro dos limites dos territó-
rios comandados por Portugal. Administrar as terras teria uma orientação prática.

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


225

O incentivo aos estudos das ciências exatas e técnicas nas reformas educacionais
que Pombal promoveu expressa isso. A expulsão dos jesuítas, considerados uma
ameaça aos interesses nacionais portugueses, foi uma das expressões do raciona-
lismo e produtividade buscadas por Pombal e mantidas no governo de D. João VI.
A transferência da capital, de Salvador para o Rio de Janeiro, foi uma das
medidas tomadas por Pombal para integrar o território colonial. Com ela, a extin-
ção das capitanias hereditárias e a implantação das províncias, colocando fim
aos administradores privados. A definição das fronteiras foi fundamental para a
nacionalização do comércio, a reorganização da política de produção a busca de
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uma diversidade agrícola que atendesse a diversos mercados e fizesse do Brasil


um território integrado internamente e com o mercado externo.
Diversas atividades econômicas se desdobraram dentro do território colonial,
tendo Minas Gerais como centro. A extração de ouro e diamante no sudeste e cen-
tro-oeste gerou uma convergência de produtos e pessoas, permitindo se desenhar
uma integralidade nunca vista na colônia antes do século XVIII. A população
cresceu por causa desta convergência em torno da mineração. A infraestrutura
colonial se expandiu, mereceu mais cuidados e uma adequação administrativa
para manter o controle sobre a riqueza extraída do território colonial.
Foi nesse contexto que Pombal tomou as medidas para fortalecer o Estado.
A emergência de forças econômicas nativas dentro do território colonial colo-
cou em risco a integridade do território. No século XVIII, movimentos como
a Inconfidência Mineira (1789), a Conjuração Baiana (1798), os movimentos
liberais no Rio de Janeiro (1792) e a formação das lojas maçônicas, como a dos
Cavaleiros da Luz de Pernambuco, trabalhada no Engenho Suassuna, da famí-
lia Holanda Cavalcante, eram prelúdios de mudanças difíceis de serem contidas.
Estes movimentos demonstravam um nascimento da inteligência13 dentro do
território colonial. Mesmo impedindo a instalação do Ensino Superior no terri-
tório colonial, os portugueses não conseguiram evitar a formação de uma elite
culta e de seus representantes. A inteligência, como afirma Benedict Andersen

13
A inteligência a qual Benedict Andersen se refere é o grupo de intelectuais formados dentro de um
determinado território, os quais terão o papel de formar os valores teóricos de emancipação. Na literatura,
esta condição fica mais clara. Parte, por exemplo, dos inconfidentes mineiros eram escritores. Ligados ao
Arcadismo, eles foram os responsáveis por dar à busca de liberdade um ideal social. Interpretaram teóricos
clássicos e gestaram um modelo, romântico ou não, nacional.

Brasil, Uma Nação do Futuro Desde o Passado


226 UNIDADE IV

(1989), foi fundamental para a constituição dos Estados nacionais. É ela a líder
das ações rebeldes, bem-sucedidas ou não, que vão dar o tom da organização do
Estado e os moldes pelo qual se forma. Hoje ainda há esta inteligência. Os filhos
da elite continuam sendo formados nas academias fora do território nacional.
A política despótica pombalina foi um prelúdio do que viria. O despotismo
esclarecido instalado na administração portuguesa se fez sentir no reino e em
suas extensões, no Brasil com mais singularidade. A regência de D. João VI
retoma esta política. A morte de Dom José I, o monarca que tinha no Marquês
o seu ministro, fez romper parcialmente o projeto de racionalização da produ-

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ção e reorganização da máquina pública. A busca de formar em Portugal uma
política econômica voltada aos interesses da empresa capitalista e romper com
os misticismos religiosos e os humanismos elitizados foi frustrada parcialmente.
Foram os desdobramentos europeus ligados à emergência do liberalismo e
das guerras napoleônicas vinculadas à nova ordem econômica, política e social
um ato determinante para a mudança do curso da história portuguesa. Foi este
contexto o responsável pela transferência da Corte para o Brasil.
Porém, o deslocamento da sede do reino para os trópicos não era novidade.
Pombal já tinha esta ideia quando Lisboa foi abalada por um tsunami14: fazer
de Portugal uma potência capaz de enfrentar suas nações rivais, estabelecer um
poderoso império integrado que cobrisse o Atlântico e desse aos portugueses
uma dianteira econômica, que perdera depois da União Ibérica (1580-1640).
A mineração no Brasil foi importante para reorganizar as contas do Estado,
porém os recursos obtidos pela extração aurífera não foram utilizados em inves-
timentos produtivos. O erário público atendeu aos gastos da corte parasita. A
dinâmica econômica percebida em países como a Inglaterra, Holanda e França
não fora praticada pela monarquia portuguesa.
A debilitação do Estado português era o resultado de uma política de sus-
tentação de uma máquina pública onerosa e enferrujada, inchada pela elite
aristocrata, improdutiva desde sua origem. O trabalho não foi uma meta cultu-
ada no reino, mas, sim, viver dos benefícios do poder público ou das empresas

14 Portugal foi abalado por um tsunami em 1755. A cidade foi destruída. Até hoje há estudos sobre este fato.
Muitas incertezas sobre onde estaria o epicentro que provocou um avanço de ondas de mais de 10 metros
sobre a cidade. Calcula-se a morte de 10 mil pessoas com o evento.

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


227

lucrativas garantidas pelo monopólio. O objetivo era fazer parte do poder para
manter privilégios. Esta elite formada dentro e em torno do Estado português
foi um mal difícil de ser vencido, considero que o maior de todos.
A transferência da Corte para o Brasil, a implantação da sede do reino na
principal colônia lusitana, foi tomada como decisão temporária aparentemente,
mas se fez permanente pela intenção e pela ação do rei Dom João VI. O estabe-
lecimento de uma burocracia estatal foi o ato determinante da constituição de
forças sociais distintas. Mesmo implantando uma estrutura administrativa trans-
ferida de uma nação para outra, o Estado criado no Brasil ganhou características
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próprias dentro de uma lógica lusitana. A implantação só foi possível pela exis-
tência previamente, no território brasileiro, de práticas comuns em Portugal.
Algumas das práticas comuns foram o nepotismo, o patrimonialismo e o
intervencionismo. A família real foi a expressão da hereditariedade do poder e
a associação do sobrenome ao mando, ato existente no território brasileiro antes
do período joanino e potencializado com a chegada da corte15.
Neste contexto, o clientelismo e a gentileza deveriam ser recompensados. O
ato de colaborar é um pré-requisito fundamental para ter acesso aos favores do
Estado e ter acesso ao rei implicava em facilitar empreendimento.
Enquanto o Estado se estabelecia, uma sociedade amalgamada se constitui,
nas fronteiras estabelecidas, de forma autoritária ao longo da colonização. A defi-
nição do território foi mantida e expandida no período Joanino (1808-1821).
O reino deveria reproduzir em sua dimensão a intenção do Império, construir
uma nação poderosa e com capacidade de expressar a busca de ser uma potên-
cia. O mesmo Napoleão que fez Dom João VI se retirar de Lisboa foi inspiração
para implantar nos trópicos um grande território.
A inspiração em Napoleão, por sinal, seria mais evidente em Dom Pedro I.
O filho de Dom João vai mostrar que a ruptura formal com a coroa portuguesa
não irá significar a perda dos interesses de um poderoso território. O “gigante
pela própria natureza” é a simbologia da dimensão fadada ao insucesso, nunca
realizado plenamente para o povo, mas propagado como a redenção possível. O

15 O Estado português ordenou a desapropriação de casas no Rio de Janeiro para receber os membros
da Corte, sem indenização. Porém, muitos dos proprietários de imóveis na cidade do Rio de Janeiro
fizeram questão de oferecer seus bens ao monarca lusitano. Um primeiro ato de gentileza que deveria ser
recompensado pelo Estado em um momento adequado.

Brasil, Uma Nação do Futuro Desde o Passado


228 UNIDADE IV

respeito da nação é constituído como a condição de se sujeitar ao mando esten-


dido por um imenso território.

O POVO

A sociedade estabelecida nas fronteiras brasileiras foi sendo moldada ao sabor


das correntes migratórias dos seres humanos e interesses econômicos resultan-
tes da economia mundial e dos interesses internos dos empresários capitalistas.

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O Brasil se organizou dentro de uma lógica de integração ao capitalismo, porém,
foi sendo definido com elementos específicos de cada região, onde as relações
geraram identificações próprias.
Estamos falando deste regionalismo perceptível e descrito por Darcy Ribeiro
(1995) como “cinco brasis”, cada um deles com uma história de formação distinta
em diferentes regiões foram resultados de uma empresa colonizadora autori-
tária. Hoje, é possível perceber as consequências desta formação, os traços de
identificação regional que se preservaram ao longo do tempo e incorporaram
elementos de regiões mais distantes. Uma organização imposta por lutas, dizima-
ção e exploração, porém, de encontros fundamentais para as misturas de raças.
O Brasil caboclo da região amazônica, marcado pela miscigenação do indígena
com o branco, é típico dos desdobramentos das bandeiras, missões religio-
sas e migrações de nativos e miscigenados da exploração colonial portuguesa.
Permaneceram, por muito tempo, isoladas dentro do território. Os seringuei-
ros são expressão desta possibilidade de viver isolado na mata e extrair dela a
sua sobrevivência. Isolado na floresta o homem vive e retira dela seu sustento.
O conhecimento indígena permite a vida no ambiente que é inóspito para uma
parte considerável do civilizado. O território amazonense está longe de ser um
ambiente de ocupação intensa, sua população não preencheria a quantidade de
habitantes da capital paulista, porém, é o território que guarda a originalidade
da maior parte dos nativos.
No nordeste brasileiro se formou o sertanejo, ser sofrido que habitava as
regiões formadas pela periferia dos engenhos constituídos no Período Colonial.
Muitos deles se transformaram em vaqueiros e outros em agricultores de terras

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


229

difíceis. A seca se associa constantemente à fome. Muitos desses sertanejos eram


herdeiros de uma escravidão abolida, deslocados para o interior do território
administrando a sobrevivência. Estes sertanejos serão construtores das cidades
do sudeste e do sul do país, que migraram à procura de sobrevivência, seja pela
fé ou pelo sonho. Aos que permaneceram nas regiões do agreste nordestino,
muitos foram submetidos, não sem resistência, ao grande proprietário, o “coro-
nelismo” fundado na grande propriedade. Importante lembrar-se do cangaço,
dos levantes messiânicos como o de Canudos na Bahia (1892) e a liderança do
Padre Cícero em Juazeiro do Norte.
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No sul e no sudeste brasileiro, temos o caipira, formado pelo deslocamento


das bandeiras, das tropas, pelas incursões colonizadoras ou guerras. O caipira teve
papel vital à formação brasileira, nele se desenvolveu a religiosidade, a crença na
vida pela terra dada e depois tomada. Uma das regiões de maior conflito de terras
no país está no sudeste e sul; nelas, o combate ao chamado “posseiro” determi-
nou o extermínio de comunidades. A lavoura cafeeira, integrada plenamente à
economia capitalista, foi o ambiente onde o caboclo esquecido e por isso ocu-
pante de terras sem escrituras passou a ser o posseiro incômodo que deveria ser
eliminado. Para isso, foi deslocado ou combatido para não impedir o curso do
“progresso”. Do Sudeste para o Sul e deste para o Centro-Oeste, sempre fugindo
da marcha econômica agrária.
Os crioulos da faixa litorânea foram formados nos encontros étnicos dos
portugueses, índios e, principalmente, negros. No ambiente formado pela coloni-
zação, eles constituíram a mão de obra do escravo, o liberto, o pequeno produtor,
o carregador, o marceneiro, o ferreiro, o pescador etc., tudo o que se necessitava
do fruto do primeiro encontro. São os habitantes dos núcleos urbanos que se con-
solidaram nos primeiros séculos. No Rio de Janeiro, Salvador, Recife, São Luiz
e Belém, o cenário urbano ainda tem seus rostos como personagem da massa,
eles são a melhor demonstração da “ponte” que se fez entre a África e o Brasil.
No sul do Brasil, nas terras gaúchas, catarinenses e paranaenses, os imi-
grantes europeus se instalaram em uma leva constante nos séculos XIX e XX.
Também fazendo parte do cenário do sudeste com a lavoura cafeeira, foram a
solução encontrada para a substituição do trabalho escravo. Os que ocuparam
o espaço das grandes propriedades agrícolas mantiveram traços originais de sua

Brasil, Uma Nação do Futuro Desde o Passado


230 UNIDADE IV

nacionalidade, mas se misturaram com facilidade aos elementos dos trópicos. Já,
os que habitaram as terras do sul, as fronteiras agrícolas dos pampas, das regi-
ões serranas e planaltos às margens da Bacia do Prata, mantiveram traços de sua
nacionalidade de origem. Porém, estes imigrantes, italianos, alemães, eslavos,
ucranianos, japoneses, fundaram muitos quistos étnicos, geraram conflitos e são
uma exclusividade brasileira. Não se encontra na Alemanha os nossos alemães;
nossos japoneses e italianos falam uma língua que se distanciou em muitos ter-
mos da língua pátria.
Não por acaso, pesquisadores da língua clássica alemã encontram no Rio

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Grande do Sul um campo fértil do uso contínuo de uma língua que ficou conge-
lada no tempo. O quisto racial, a fronteira cultural, gerou um isolamento fundado
no preconceito com o brasileiro. Os imigrantes que fundaram suas comunidades
não desejavam a cultura deste povo brasileiro, se pudessem, teriam transformado
o território que ocuparam em uma extensão de sua “mãe-pátria”. Eles não con-
seguiram a autonomia, mas organizaram um mundo “à parte”.
Hoje, partes consideráveis dessas comunidades se transformaram em pontos
turísticos, um atrativo para conhecer partes do Brasil invadido por um estran-
geiro. Blumenau, Nova Trento, Mafra, Pomerode, São Bento, São Leopoldo e
tantos outros são lugares de línguas correntes estrangeiras misturadas com um
português com sotaque de terras distantes.

OS ENCONTROS E DESENCONTROS ECONÔMICOS

Nessa construção retalhada dentro de um pano chamado Brasil, o número de


brasileiros que abandonaram o campo e migraram para os espaços urbanos se
multiplicou, porém, para entender esta mudança, é importante compreender as
relações sociais nas áreas rurais que aos poucos foram se desfazendo ou tiveram
seu tempo e deram lugar para outras formas de produção.
A organização agrária foi fundada na grande propriedade rural. Se formos
considerar os núcleos integrados à economia mundial, o predomínio do lati-
fúndio foi à condição que se manteve desde a fundação do Brasil. A colônia foi
formada nas áreas de produção escravocratas por uma dependência da economia

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


231

mundial. A organização da empresa agrária foi determinante para tudo, tanto


para as relações que ocorreram nas regiões como para a influência estabelecida
sobre o poder central. Seja na monarquia ou na primeira república, o poder esta-
belecido no Rio de Janeiro refletia as forças oligárquicas agrárias.
Eles, os senhores das terras e de escravos, não detinham poderes semelhantes
na conjuntura de poder formado no Brasil. Porém, mesmo tendo pouca influ-
ência sobre os destinos do Estado autoritário e centralizador que se impunham
sobre a nação, os oligarcas locais demonstravam prestígio em suas regiões. Os
rituais de aproximação do poder eram variados, de região para região, mas estar
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próximo da autoridade que se estabelecia localmente era fundamental para garan-


tir a própria vida, tivesse ela a dimensão que fosse.
O trabalhador agrícola, o homem livre estabelecido em pequenas proprie-
dades, o comerciante, o profissional liberal, o padre, nas cidades do interior do
Brasil, se subjugavam ou tentavam enfrentar o julgo. Quando a escolha era a
segunda, os riscos de ter a vida interrompida ou a existência atrapalhada pelos
mecanismos de dominação implantados pelos senhores das terras aumentavam.
Neste mando, se instituiu o coronelismo, a autoridade suprema do senhor.
Uma instituição que prevaleceu e ainda prevalece em algumas regiões do Brasil.
A implantação do poder oligárquico fundiu, como já falamos anteriormente, o
patrimônio privado e público. Nos pequenos núcleos urbanos, era o proprietá-
rio de terras o homem de poder sobre a administração pública.
O termo “coronel” veio a se implantar posteriormente à autoridade instituída.
Resultado da criação da Guarda Nacional, em 1831, o termo ganhou notorie-
dade e representava os senhores que tinham o direito ao comando de tropas
legítimas para a manutenção da ordem local16. A Guarda Nacional foi institu-
ída como uma alternativa e, até mesmo, uma oposição ao exército, enfraquecido
com a queda de Dom Pedro I. Os militares foram considerados uma força regu-
ladora do poder, pois não compactuavam constantemente com os interesses dos
senhores locais. A destituição do poder militar foi, para o Período Regencial,

16 A relação entre o exército e o poder no Brasil é íntima. Nos principais momentos em que a luta pelo poder
se estabeleceu, a autoridade militar se impõe como instrumento regulador, porém, nunca só, nunca com um
projeto próprio de governança e quando tentou, acabou por se isolar e necessitou se articular com os grupos
dominantes no Congresso Nacional.

Brasil, Uma Nação do Futuro Desde o Passado


232 UNIDADE IV

uma forma de colocar um freio nas pretensões militares de implantar um regime


sob a regência da farda.
O militarismo esteve presente em diversos momentos da vida nacional. Os
militares constituíram, na vida latino-americana, uma presença constante no
poder. Sob sua orientação se instalaram regimes, se consolidaram poderes e
articulações autoritárias expressas nas fronteiras do Continente Americano. Os
principais heróis da independência das nações latinas da América eram milita-
res, ou vestiram a farda para assumir a frente das tropas.
Mesmo no século XX, quando a maioria dos Estados nacionais latino-ameri-

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canos já estavam consolidados, os movimentos rebeldes, socialistas em especial,
reinventaram o militarismo. Um exemplo é a Revolução Cubana, liderada por
Fidel Castro, o general instituído por um movimento libertador e estabele-
cido com o mesmo simbolismo militar do general que se propunha derrubar.
As Forças Revolucionárias da Colômbia (FARC), enfraquecidas na atualidade,
aliadas ao tráfico de drogas, seu principal financiador, estabeleciam a busca pela
liberdade, mas se colocam hoje como um movimento dos camponeses, exata-
mente os repreendidos pelo militarismo guerrilheiro das FARC.
Mas voltamos à nossa Guarda Nacional e ao “coronelismo” que ela instituiu,
o militarismo como uma constante na vida brasileira. Ao longo da trajetória do
Estado Nacional, as rupturas e permanências têm sempre a farda como vesti-
menta de alguns de seus importantes personagens.
Na implantação do Estado Nacional (1822), quando da ruptura com Portugal,
vale lembrar que com o filho do rei assumindo o comando das tropas, que antes
eram portuguesas, os militares fizeram-se presentes como braço do Imperador.
Lima e Silva, seu oficial de ordens, foi um importante aliado para garantir a uni-
dade das forças necessárias para combater os portugueses na Bahia. O mesmo
Lima e Silva estaria à frente do movimento que pediu a renúncia do imperador,
em 1831. O militarismo se constituiu como a vertente do contraponto oligár-
quico da máquina pública. O “moralizador” do regime, como mais tarde os
marechais da Guerra do Paraguai (1864-1870) passaram a declarar, com base
no Positivismo com o qual eram simpáticos.
Os coronéis e a Guarda Nacional como relatamos anteriormente, desmo-
bilizaram parte do exército e transferiram seu poder de fogo e repressão para o

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


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comando civil. Os grandes proprietários de terra arregimentaram seus jagun-


ços e os fizeram um bando armado, voltado aos seus (proprietários) interesses.
A principal vítima desta força, objeto de repressão constante, foi a população de
trabalhadores agrícolas, sejam escravos ou homens livres, o caboclo, o crioulo,
o caipira, e também os indígenas.
Mesmo depois de destituída, durante a Primeira República (1889-1930),
a titulação de coronel continuou sendo usada por aqueles que detinham sua
própria força armada. O mando regional foi consolidado com o aparato de vio-
lência instituído pelo grande proprietário. Esta força local vai dar bases para que
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o regime republicano articule a escolha da presidência da república e formate


a cadeia de votos que legitimaram o mando das oligarquias agrárias. Este loca-
lismo ainda existe.
Nas regiões ainda dependentes da produção agrícola, onde a grande proprie-
dade existe e arregimentam trabalhadores, agora sazonais, para sua produção,
o mando do proprietário rural se faz valer, usando todos os meios necessários
para ter seus interesses atendidos, seja a exploração para o trabalho ou, ainda, o
curral eleitoral, que garante a ele e aos membros de sua família o prestígio para
ascenderem aos cargos públicos.
Os mandos e desmandos, extermínios e chacinas ainda eram realizados. Nas
fronteiras agrícolas distantes dos centros econômicos e urbanos mais dinâmicos,
a implantação da violência sobre as classes populares é prática corriqueira. O
Pará, Amazonas, Acre, Tocantins, Mato Grosso, Rondônia e Roraima, são algu-
mas das unidades da federação onde a violência no campo existe e persiste. Não
significa que nas áreas tradicionais de sua ocorrência, onde o coronelismo aflo-
rou, ela ainda não ocorra.
Há, ainda, outras formas de mandos patriarcais, o patronato impositor, em
espaços novos. Nas cidades, nos pequenos municípios e nos médios, as famí-
lias de poder existem e fazem valer sua vontade. O sobrenome consolidado pelo
controle dos principais cargos públicos, conquistados pela manipulação do voto
permanece. Se durante a Primeira República os coronéis tinham a maioria dos
seus eleitores controlados na zona rural, hoje, na vida urbana, há novas formas
de currais e “coronéis modernos”.
O clientelismo, que nasceu da troca de favores entre o que detém o controle

Brasil, Uma Nação do Futuro Desde o Passado


234 UNIDADE IV

da máquina pública e aquele que depende de seus favores, tem aspectos do mando
agrário. Hoje, há meios discretos de controle dos votos mesmo com as elogiadas
urnas eletrônicas. O controle do eleitor se faz e se recompensa com pequenos
favores: dentaduras, panelas e tampas, contas de água, luz e aluguel pagos, furar
a fila do transplante e a guia de atendimento médico; estes favores contam como
meios para satisfazer e alimentar o poder da oligarquia agrária e urbana.
A miséria foi o “prato” em que os coronéis se serviram no passado, do Brasil
predominantemente agrário, para poder satisfazer a fome de poder. Mesmo
com o farto campo produzindo uma grande quantidade de produtos, a mesa do

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caboclo e do caipira permanecia vazia. A fome tem sempre duas formas de ser
entendida neste contexto: aquela que é satisfeita por quem tem o poder e a que
mata pelo estômago os que produzem o alimento.
Estes hábitos de mando não se desfazem com facilidade, pois instituem o
predomínio das forças que estabeleceram no Estado-nação sua marca. Não por
acaso, a terra, a propriedade agrícola de grande extensão, vista pela simbologia de
poder, nunca foi tratada com a lógica capitalista merecida. Ainda somos lusitanos
e medievais ao considerarmos que a porção de terra é a medida certa da riqueza.
Na agricultura adensada da atualidade, nas técnicas agrícolas e insumos que fazem
da terra árida fértil, há aqueles que na porção veem a razão da agricultura. O Brasil
sofre e perde com esta mentalidade arcaica, por não saber fazer o uso adequado
da terra, por uma cultura estabelecida sobre a idealização da propriedade rural.
Mas a estrutura extensiva da terra permanece, agregando, no passado, a
grande maioria da população do país. A zona rural foi o espaço de controle
da vida social, nela, as famílias de produtores agrícolas estabeleceram núcleos
coloniais, as vilas de camponeses, que geraram pequenos municípios, ainda
persistentes em algumas regiões do país, como no interior de São Paulo, Sul
de Minas e noroeste do Rio de Janeiro, onde há pequenos núcleos agregados a
antigas propriedades agrícolas. Foi neste ambiente que o imigrante europeu foi
arregimentado em meados do século XIX.
Na implantação de um capitalismo moderno, como o que temos na atu-
alidade, há uma mudança gradativa na estrutura de produção rural, a cidade
se sobressai como campo de concentração populacional e de mando social. O
mundo urbano capta um grande número de trabalhadores, estes deslocados das

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


235

antigas atividades rurais, e a mecanização agrícola fez o seu papel, associando


tecnologia de ponta ao campo, alterando a paisagem rural.

A BUSCA DO “BRANQUEAMENTO”

O campo foi o responsável por grande parte da construção do Brasil. Não por
acaso, Ianni (1999) tem em uma de suas principais obras a análise da formação
agrária do Estado brasileiro. É na atividade agrícola extensiva que as relações
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econômicas encontraram seu desdobramento no poder. O senhor agrário, como


falamos, se estabeleceu como senhor das terras e do Estado.
Foi também no campo a mudança social de maior significado, a transição
entre o trabalho escravo e o livre. A decadência da mão de obra compulsória
escravocrata e a imigração, especialmente europeia, repôs o trabalhador, ocasio-
nando uma mudança cheia de nuanças. O imigrante europeu só se transformou
em resposta definitiva como trabalhador agrícola após um longo debate político
sobre as formas que o trabalho escravo poderia ser superado.
A defesa de integração do trabalhador brasileiro, a continuidade do traba-
lho afro na condição de homem livre, a possibilidade dos trabalhadores asiáticos,
chineses, indígenas e um novo aldeamento religioso, a implantação de escolas
agrícolas e tantas outras propostas de superar a escravidão ganharam a pauta do
parlamento imperial, mas nenhuma ganhou a ressonância do imigrante europeu.
Vários fatores contribuíram para isso e a disponibilidade de trabalhadores na
Europa foi um deles, porém, o branqueamento deu o tom que justificaria a pre-
sença do europeu. Era necessário apagar o passado afro e buscar uma qualificação
do trabalhador pela solução rápida de uma imigração de famílias portuguesas,
espanholas e italianas. Até mesmo os alemães migraram no início do Império e
acabaram permanecendo na região serrana do Rio de Janeiro, tendo Petrópolis
como resultado da concentração de imigrantes alemães, povoando em torno do
Palácio Quitandinha (1847). Outros tantos imigrantes europeus migraram para
o Sul do Brasil17.

17
Há inúmeros estabelecimentos de núcleos europeus no Sul do Brasil. Uma diversidade de nacionalidades se

Brasil, Uma Nação do Futuro Desde o Passado


236 UNIDADE IV

A presença dos imigrantes fez mudar o ambiente rural e urbano brasileiro,


com o surgimento de novas atividades econômicas, prosperando-as, e com novos
produtos e hábitos adquiridos. A diversidade racial que já era uma caracterís-
tica da formação social se multiplicou com o imigrante europeu. No sudeste, o
brasileiro não seria mais o mulato, como forma de mistura típica do país; o cai-
pira ganhou um novo elemento; nosso “jeca” tem, às vezes, cabelo loiro e olhos
azuis. As sardas, a presença de massas na alimentação e a queda pelo queijo se
instalaram na mesa da roça.
A panificadora, o açougue e a cervejaria encontram, nos imigrantes, parte

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significativa de seus empreendedores. Estabelecimentos urbanos passam a ter
na fachada a lembrança da terra de origem. A ocupação das cidades se deu pelo
“acaso”. As cidades, receptivas à imigração, constituíram cortiços e isso dege-
nerou a convivência pela sua falta de planejamento, com alamedas espremidas
e formas desorientadas cortando as cidades. O português, dono de muitos dos
estabelecimentos urbanos alugou, despejou e especulou o mercado imobiliário.
Houve a concentração desordenada nas cidades litorâneas do Rio de Janeiro e
Salvador, mas também o Porto Alegre e Recife foram núcleos onde a falta de
infraestrutura propagou doenças e mortes em massa.
No século XIX, o Rio de Janeiro foi atingido por uma epidemia de varíola
e o imperador Dom Pedro II convocou profissionais de várias nacionalidades
para conter a doença. Neste momento, a medicina ganhava força no mundo e os
médicos se tornavam personagens sociais destacados na Europa, porém a ten-
tativa de cura de uma doença pela racionalidade da medicina não era vista com
“bons olhos” pela população. Enquanto para o governo era uma questão de ação
científica, por mais que autoritária, para a população, era mais uma tentativa de
aniquilamento popular.
A doença no Rio de Janeiro só foi erradicada na Primeira República, em
1904, quando Oswaldo Cruz, secretário de saúde do Rio de Janeiro, estabeleceu
a vacinação obrigatória da população. E para colocar em prática sua medida, ele

estabeleceu nos territórios dos estados de Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná. No caso deste último,
sua emancipação em 1853, se desdobrando do estado de São Paulo, foi uma busca de ocupação mais intensa
do chamado vazio entre o sudeste e o sul. A imigração foi uma das formas encontradas pelo Império para
garantir a posse de terras que faziam fronteira com os países do Prata (Argentina, Uruguai e Paraguai).

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


237

organizou uma brigada sanitarista, associada às forças militares, para invadir as


casas dos populares resistentes à vacinação e praticar a imunização à força, assim,
o ato gerou revolta, uma guerra urbana das tantas que o Brasil assistiu e assiste.
O desenho dos centros urbanos, desordenados, contribuiu para o encontro
da desigualdade dentro do mesmo espaço. A separação se tornou tarefa difícil
para o poder público no país. Estabelecer o zoneamento urbano gerou guerras
entre segmentos e denunciou a função dos ambientes, e um dos exemplos mais
claros é a reurbanização do Rio de Janeiro (1904), em conjunto com o problema
da varíola, que falamos anteriormente.
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O que ocorreu no Rio de Janeiro foi uma expressão do problema pelo qual
as cidades vindas do período colonial passaram. Várias delas guardam estes tra-
ços em seu desenho atual: o encontro entre a miséria e a abundância; a falta de
espaços públicos articulados com a valorização imobiliária. Outro problema,
denunciado pelos encontros que a cidade promoveu e promove, é a falta de sane-
amento básico, no caso do Rio de Janeiro, agravado no final do século XIX com
o aumento significativo da população.
Frédéric Mauro (1991) fala sobre o problema da cidade do Rio de Janeiro com
a chegada do imigrante no século XIX, um dos encontros marcados pela propa-
gação de doenças, o que desde a formação do Brasil é uma constante. A doença
denuncia a herança portuguesa em uma declaração de Charles Ribeyrolles, na
obra de Mauro (1991, p. 28-29):
Essas negligências um pouco portuguesas demais, essas infecções que
não arredam pé, esse desprezo insalubre pela água lustral são ainda
mais graves porque o Rio carece de ar. Nos morros entravam a venti-
lação da terra e do mar. Ela só chega por lufadas, nesta planície baixa
sobre a qual o raio tropical e os seus reflexos ardentes convergem como
em uma fornalha. Às vezes, nos tórridos calores do verão, a cidade fica
em fermentação, e até o negro procura abrigo.

Na obra de Mauro (1991), se fala em jardins não frequentados pelo calor, ruas
com esgoto a céu aberto, com uma proliferação de ratos em algumas das ruas
centrais. A cidade do Rio de Janeiro, assim como parte considerável das cidades
vindas do período colonial, convivia com o encontro entre o passado e o pre-
sente, e a necessidade de refazer os ambientes sobre a pena de um caos.

Brasil, Uma Nação do Futuro Desde o Passado


238 UNIDADE IV

Assim, os espaços foram refeitos e a crise instalada, a miséria se multipli-


cou na proporção em que foi concentrada nas periferias. A criação da Avenida
Central no Rio de Janeiro, hoje Avenida Brasil, necessitou da desapropriação de
cortiços. Muitos destes eram propriedades de portugueses que transformaram
suas casas sobradadas em uma série de “puxadinhos” em pensões para os recém-
--chegados imigrantes ou trabalhadores agrários migrados.
Aos casebres irem a baixo deu-se origem à revolta. O poder público mais uma
vez iria fazer valer o interesse da modernização do país à força. Desde a chegada da
Corte (1808), o Rio convivia com mudanças abruptas; tentava-se resistir, mas não

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se conseguia. Aqui, o morro passou a ser moradia dos desalojados e constituiu um
novo espaço para a resistência; as favelas nasceram e se multiplicaram neste ambiente.
Com este exemplo do Rio de Janeiro, podemos ilustrar os desdobramentos
urbanos de muitas cidades brasileiras. Diferentes de cidades como Recife, plane-
jada pelos holandeses, no século XVII; ou Petrópolis, planejada pelo interesse do
Imperador, no século XIX, as cidades tradicionais viveram este conflito. Hoje, mui-
tos dos grandes centros urbanos do país vivem uma guerra urbana, onde os espaços
públicos não são públicos e o tratamento é desigual dentro de um mesmo ambiente.

HERANÇAS E MUDANÇAS

O encontro entre o velho e o novo no território brasileiro foi diverso. Em alguns


momentos, a modernização foi rápida e gerou alterações significativas no cenário
do país; outras mudanças foram lentas e não romperam com tanta intensidade
o legado adquirido ao longo do tempo, porém, foi, sem dúvida, a transição do
trabalho escravo para o trabalho livre a principal alteração social. A abolição
rompeu os vínculos que durante séculos movimentaram a economia e consoli-
daram os papéis sociais. Os senhores de escravos fundaram em torno de si uma
autoridade carregada de culto a sua imagem. A questão da escravidão deixou um
legado sobre a cor da pele, fruto dos conceitos da autoridade racial justificada
pelo discurso religioso ou pela superioridade étnica. Uma simbologia da convi-
vência. O ser brasileiro passava pela cor da pele ou pelo menos nela expressava
os benefícios e os malefícios sociais.

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


239

As convivências com novas formas de organização produtiva, tanto no


campo quanto na cidade, exigiram reformulação de símbolos e do papel do
poder. Os senhores da vida econômica e pública apresentavam uma mentalidade
mais racional, empresarial para o homem de negócios e lógica para o público. A
empresa de café aos poucos foi se destituindo dos símbolos herdados dos tem-
pos do engenho, porém com uma série de revoltas por parte dos imigrantes que
não se adaptaram facilmente aos maus tratos dos senhores de terra acostuma-
dos com escravos.
Os imigrantes se revoltaram, queimaram lavouras e fugiram do trabalho no
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campo. Os contratos assinados com os proprietários eram injustos, marcados por


artimanhas que favoreciam uma exploração intensa do trabalhador com baixa
remuneração para o colono. O próprio instrumento de repressão dos latifundi-
ários era usado costumeiramente para garantir a ordem e fazer a justiça local.
Na cidade, não se encontrou um mundo diferente. A violência praticada con-
tra os operários e a forma como acabaram sendo colocados nas fábricas, com
longas jornadas de trabalho, ambiente insalubre, reproduziu aqui, no Brasil,
o que se encontrou na Europa no início da industrialização. A exploração do
trabalho infantil, por exemplo, contrariava a Lei municipal no Rio de Janeiro,
que impedia a exploração de menores nas fábricas. Os turnos para as crianças
começavam a noite e terminavam de madrugada, exatamente quando o fiscal
da prefeitura não trabalhava.
Os operários imigrantes europeus também resistiram à exploração do tra-
balho urbano, organizando suas associações, embriões sindicais, estabelecendo
caixas de previdência, buscando amenizar a miséria, fundos para atender aos
desempregados, os doentes, as viúvas, e para pagar o enterro e educar os filhos.
Os operários davam o tom, determinavam a linha do que seria a política previ-
denciária adotada mais tarde pelo Estado Varguista, sem resolver definitivamente
a condição de miséria. Possivelmente, um dos maiores erros do país foi oficiali-
zar sindicatos e trazer o peleguismo para dentro do movimento operário.
O anarquismo foi inaugural enquanto tese de defesa operária. A base ideoló-
gica do movimento travava uma luta contra o Estado, considerando que todo o
benefício estabelecido pelo poder é ilegítimo. Romper com o poder público esta-
belecido é um princípio vital para os anarquistas. A importação desta perspectiva

Brasil, Uma Nação do Futuro Desde o Passado


240 UNIDADE IV

de luta gerou arranjos e desarranjos. Jornais operários brotaram, assim como


escolas para os filhos dos trabalhadores. As manifestações de rua exigiram do
poder público novas formas de tratar as classes populares, com rebeldias con-
centradas e direcionadas em um único espaço, a cidade.
Não por acaso, o anarcossindicalismo brotou e, posteriormente, o socialismo.
A maneira diferente de se fazer a luta contra o poder estabelecido tinha sem-
pre o Estado como interlocutor, por isso, talvez a dificuldade do anarquismo se
estabelecer no Brasil com intensidade produtiva, pois o Estado brasileiro é sem-
pre presente nos movimentos sociais como agente de interferência e controle.

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A burguesia no Brasil é dependente do poder público e necessita dele para
gerar condições favoráveis de produção, portanto, lutar com a burguesia sem ter
o reconhecimento do Estado ou fazer dele um campo de luta se tornou inviável.
Por isso os anarcossindicalistas foram mais eficientes ao reconhecerem o sindi-
cato como instrumento de negociação com o Estado.
O cotidiano operário também teve sua forma de organização cultural: seus
lugares, bares, moradias, músicas, esportes, linguagem, alimentos e os bairros,
como o do Bexiga, Moca ou o Brás18, lugares onde o ambiente denuncia uma
unidade entre os primeiros moradores na busca de uma solidariedade no campo
estranho da nação que os recebeu. Todo imigrante traz consigo os valores de sua
pátria e se agarra a eles nos primeiros tempos no lugar onde chega. É a forma de
enfrentar o estranho, de dar sentido às pequenas coisas no dia a dia. Muito desta
permanência é o resgate à origem como forma de sobreviver à pressão da explo-
ração do trabalho. Para os japoneses, o Bairro Liberdade teve a mesma finalidade.
Contudo, vale lembrar que os braços que construíram as cidades moder-
nas brasileiras foram os dos nordestinos. Não haveria a São Paulo de hoje, Belo
Horizonte, a expansão do Rio de Janeiro, Campinas e as demais cidades do inte-
rior paulista ou do Paraná sem a vinda e convívio do trabalhador migrado do
nordeste do país. A presença dos nordestinos deixou, no Brasil, traços cultu-
rais fortes, tanto quanto o italiano, o espanhol e português, e fez as periferias se
multiplicarem.

18 Tem quem fale que a pizza paulista é a melhor do mundo. Se é, não sabemos, mas que o mundo passou
por São Paulo passou e comer uma pizza no Brás e Bexiga é algo brasileiro que os italianos desenharam.

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


241

Luiz Gonzaga foi uma expressão do que o nordeste trouxe para o sudeste e
se propagou para o resto do país. Ele foi um de tantos outros também que fize-
ram de sua arte regional um passo para a conquista do restante da nação. Na
literatura de Jorge Amado ou na música de Dorival Caymmi, fundiram-se a arte
regional com o desenho de uma cultura nacional identificada com a diversidade.
O que Minas Gerais representou no Período Colonial, como o território de for-
mação brasileiro, a “esquina do Brasil”, São Paulo foi, no século XX. A capital
paulista recebeu o migrante, o nacional, e ambientou o estrangeiro, o italiano, o
espanhol, o português, o asiático.
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Vale lembrar que estes encontros não foram fáceis de digerir no conhecido
“país da diversidade”; houve movimentos que desejavam expulsar os nordestinos
de São Paulo. A busca por purificar a raça sempre perseguiu muitos na terra da
miscigenação e este preconceito existe até hoje. Na nossa última unidade, vamos
tratar deste tema, o qual ainda é uma ferida aberta.
O Brasil foi construído por muitas raças, porém houve o desejo de ter uma
pureza e a luta por esta busca gerou ações nacionalistas radicais de branquea-
mento, em especial, quando a abolição da escravidão se estabeleceu.
É importante recuperar neste contexto a questão da inteligência, os intelec-
tuais que interpretaram as transformações brasileiras ou tiveram que dar conta
de entender o Brasil sem escravidão e sua miscigenação. Uma das questões que
foram o ponto de partida para a discussão da “brasilidade”, “O que é ser brasi-
leiro?”, seguia dos sentidos distintos, nossa miscigenação seria um mal ou um
bem? Para compreender a formação do povo brasileiro, muitos intelectuais e
artistas se dispuseram a trabalhar os valores que formaram o Brasil, uns para
maldizer e condenar nossa origem, para eles, a principal responsável pelas maze-
las que assolam o país; já na compreensão de outros, o que temos de melhor é a
mistura. Segundo estes, a originalidade brasileira deve ser compreendida, enten-
dida e usada em benefício da nação.
Há inúmeros fatores que podem fazer despertar o sentimento de nacionali-
dade. Movido por acontecimentos internos ou influências externas, até mesmo
ameaças colaboraram para compreendermos o porquê a nação desperta. O
fato externo foi a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), quando as nações se
colocaram em confronto e mudaram as relações econômicas com regiões de

Brasil, Uma Nação do Futuro Desde o Passado


242 UNIDADE IV

dependência. Ao mesmo tempo, a idealização da Europa como o berço da civi-


lização se desfaz. Ingleses, alemães, franceses, italianos, austríacos etc. travaram
uma guerra encarnada e carregada de destruição, morte e insanidade.
No Brasil, onde a intelectualidade buscou copiar o modelo europeu de nação,
de organização social, e mesmo de “branqueamento” étnico como uma solução
para as mazelas da pátria, esta referência se desfez. Diante do fracasso do que
antes era considerado ideal, onde repousaria nossa virtude? “No próprio Brasil”,
seria a resposta para muitos dos pensadores, intelectuais que discutiram o tema
da brasilidade. Monteiro Lobato, Oswaldo de Andrade e Mário de Andrade são

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exemplos. Mas como descobrir o Brasil?
O início do século XX foi carregado de buscas pela brasilidade. Esta condi-
ção se associou à formação de uma burguesia urbana, interessada em uma nova
organização do poder no Brasil e voltada ao mercado interno, principalmente. A
indústria de substituição de importados deu ao capitalista brasileiro um imenso
mercado a ser explorado. Um mercado aberto pela falta de produtos que antes
eram comprados dos europeus e passaram a ser substituídos pela produção nacio-
nal. Para poder se apoderar das decisões do Estado, e favorecer o mercado de
produtos da indústria nacional, era necessário participar amplamente das deci-
sões governamentais. Os empresários industriais brasileiros teriam que mudar
o curso da tradicional relação entre o Governo Federal e a aristocracia agrária,
relação histórica entre o poder oriundo do mando agrário e a máquina pública.
Para isso, se fazia necessário incorporar os elementos de origem do trabalho,
associar-se à luta pela construção de um Brasil moderno, exaltar a nacionalidade
e retrabalhar os símbolos de formação brasileira. Valorizar o elemento nacio-
nal, sua cultura. Estabelecer a cidade como o ponto de concentração social, pois
nela habitava o operário.
É exatamente o trabalhador urbano que se organizou em sindicatos e mani-
festava-se nas ruas das principais cidades brasileiras, São Paulo, Rio de Janeiro,
Porto Alegre, Salvador, Curitiba, Belo Horizonte. Esta manifestação operária
gerou frentes ideológicas em forma de partidos. O anarquismo, o anarcossindi-
calismo e o socialismo foram suas principais expressões.
A intelectualidade, os meios de comunicação e a propagação de valores tam-
bém passaram por mudanças. Inspirados inicialmente no mando do grande

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


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oligárquico agrário, os pensadores expressavam a discriminação da mestiçagem.


Um símbolo deste pensamento discriminatório foi Oliveira Viana (1883-1951).
Sua postura discriminadora em relação à existência de determinados elementos
responsáveis por condenar o progresso brasileiro define a tendência eurocêntrica
que ainda permanecia como discurso corrente. Viana, em sua obra “Populações
Meridionais do Brasil”, deixa claro sua tendência à defesa da eugenia, a criação
de uma raça qualificada fazendo dela o instrumento de desenvolvimento do país.
Mas antes de Viana, gerou-se a linha literária e intelectual voltada a outra
forma de abordagem da formação brasileira. Lima Barreto, em sua obra “O
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triste fim de Policarpo Quaresma”, publicada em folhetins, em 1911, e em livro,


em 1915, indicava os rumos do entendimento do personagem nacionalista de
classe média, militar, acreditando no movimento republicano e na ascensão
de Floriano Peixoto ao poder; a ilusão do personagem Policarpo ao ser traído
quando sua principal intenção era servir a pátria. Policarpo gostava das coisas
do Brasil, sonhava com a língua guarani como pátria. Ele também estava em
busca de uma brasilidade.
Outros literários lhe fizeram coro, como Aluísio de Azevedo, Machado de
Assis, Adolfo Caminha, Tobias Barreto, Joaquim Nabuco e Rui Barbosa, todos
interessados em reavaliar a forma como se estabelecia o que seria o Brasil com
um olhar de raízes próprias. Os dramas e tramas do país, seu cotidiano, sua
gente e mistura, suas peculiaridades se transformaram em tema de teses e tex-
tos, livros e projetos políticos.
Porém, nada como Euclides da Cunha para nos servir com marco desse perí-
odo. “Os Sertões”, principal obra de Euclides da Cunha, deixa claro que há um
país em conflito, há uma realidade mal entendida que fica distante dos olhos da
chamada “civilidade” brasileira. Os moradores “cultos” de cidades como Rio de
Janeiro e São Paulo, assim como Salvador e as demais capitais do país, ficaram
espantados com as descrições do engenheiro militar e também jornalista, o pri-
meiro a acompanhar uma expedição militar à Bahia, para dizimar a resistência
de fanáticos religiosos taxados de “monarquistas”. Foi sem dúvida uma das pri-
meiras vezes que uma parte do Brasil olhou para a outra parte do Brasil. É na
periferia do Rio de Janeiro, principalmente na ocupação dos morros, a paisagem
“serra acima”, que as encostas foram ocupadas, nascendo um país miserável às

Brasil, Uma Nação do Futuro Desde o Passado


244 UNIDADE IV

margens da grande cidade. Já para quem mora na periferia, a miséria se trans-


formou em uma condição de muitas gerações.
O conceito de “povo brasileiro” mudou, ganhou inúmeras conotações, teve
inúmeros significados pelas mais diferentes formas de encontro, interpretadas tam-
bém de formas diferentes. Nas academias se inicia uma interpretação da formação
brasileira, onde os intelectuais constituem linhas de pesquisa, correntes metodoló-
gicas e direcionam os estudos sobre a sociedade com preocupações comuns, dando
um significado à sociedade brasileira e entendendo suas diferenças.
A história de Gilberto Freyre, neste ponto, é emblemática. Pernambucano, foi

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estudar nos Estados Unidos, na Universidade de Columbia, e teve a influência das
ideias de Franz Boas. Passou pela Inglaterra e Portugal e desembarcou aqui com
parte de sua obra máxima, “Casa Grande & Senzala”, produzida em manuscritos
de recortes de papel, feita de lembranças e vivências. Como ele, Joaquim Nabuco,
Caio Prado Junior, Rui Barbosa e, posteriormente, Darcy Ribeiro, cada um à sua
forma e jeito, também determinados por seu tempo e origem, construíram nas
suas análises, o Brasil que se colocava à frente de seus olhos ou repousavam na
sua lembrança fervilhante.
A Semana de Arte Moderna, em 1922, pode ser trabalhada com um resul-
tado dessa proposta de redescoberta do Brasil. Mesmo quem não participou dela,
estava ligado a seus temas, é o caso de Monteiro Lobato. A Semana foi voltada à
Classe Média, consumidora cada vez maior de uma cultura nacional. Este con-
sumo, diga-se de passagem, era também uma forma de traçar fronteiras com a
elite oligárquica e dar um enfoque original ao seu gosto, o Brasil. No movimento
organizado no Rio de Janeiro e com braço em São Paulo, buscou-se resgatar os
valores brasileiros, porém sem perder o romantismo. Propondo-se a serem rea-
listas, os modernistas foram idealistas e deram um passo à frente, conseguindo
romper com a literatura de corte predominante no país.
Quando falo em idealismo no movimento modernista brasileiro, estou falando
de Mário de Andrade, o autor de “Macunaíma”. Nesta, o Brasil se inventa do
herói afro-indígena, que gerou relevos, sabores, esportes e crenças. O Brasil foi
uma invenção de um encontro natural carregado de coincidências inexistentes
no mundo real. Por mais que a diversidade seja um fato, sua construção é cheia
de cicatrizes e tem gosto de fel para seus construtores.

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


245

Villa Lobos não foi entendido em seus sons, um emaranhado sem lógica
para os críticos da época. O maior compositor clássico brasileiro foi reconhe-
cido na França e fez de sua música a expressão dos sons do Brasil, descobertos
por meio das visitas às regiões distantes para uma busca da sonoridade original,
porém arranhando os ouvidos acostumados à harmonia desejada dos seus clás-
sicos europeus. O ato de se negar também está na música e isso, para alguns, é
demonstrado na definição de nossa música como barbárie.
Nas artes de Di Cavalcanti, Anita Malfatti ou Menotti Del Picha estavam a
expressão do olhar sobre o novo Brasil. Os temas são antigos, porém sob novas
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cores; o trabalho, os problemas sociais, a vida cotidiana pintada sob uma nova
tonalidade dava ao Brasil um sentido novo. Porém, estabelecer a relação com
as raízes não significava estar satisfeito com o que se era. Todos consideravam a
mudança como algo necessário para o Brasil, mas qual seria o seu melhor destino?

CLÁSSICAS SAÍDAS E OS PENSADORES CLÁSSICOS

Para uns, o melhor destino seria estabelecer um crescimento rápido sob a regên-
cia do Estado. A formação de um governo centralizador é imposta, fundada em
uma ética progressista e levada a cabo por militares ou grupos similares em hie-
rarquia. A questão da sociedade deveria ser resolvida, para este grupo, pela ação
de purificação, se destacando aqui mais uma vez a busca pela eugenia.
O integralismo de Plínio Salgado foi o que melhor expressou esta ideia de
desenvolvimento, autoritarismo e eugenia. Para ele, a indolência do brasileiro
e sua tendência à morosidade eram prejudiciais. Formar um elemento nacio-
nal disposto ao trabalho, determinado às regras e voltado ao crescimento seria
uma tarefa árdua e iria requerer uma ação de doutrinamento. Investir em seto-
res específicos voltados a essas medidas seria fundamental.
Nacionalista convicto, sua proposta era a de fortalecer o amor pela pátria,
assim o civismo deveria ser estimulado na escola, precisaria fazer com que
desde cedo as novas gerações mantivessem uma relação afetiva pela pátria e seus

Clássicas Saídas e os Pensadores Clássicos


246 UNIDADE IV

símbolos. Plínio Salgado era literário e também fez parte do grupo modernista,
conviveu com outros pensadores que tinham posição oposta à sua, mas o nacio-
nalismo era um ponto em comum.
Enquanto Salgado buscava a eugenia, Gilberto Freyre publicava sua obra
baseada na miscigenação, onde era valorizando o regionalismo. E foram essas
diferenças locais que formaram o Brasil, os encontros entre os elementos étni-
cos formadores que trouxeram consigo as heranças dos lugares de onde vieram.
Porém, considerava que em cada região do país os encontros étnicos se deram
em condições diferentes, ou seja, seria impossível generalizar a formação ou lhe

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dar um padrão, como queria Salgado.
O posicionamento de Freyre contrariava a busca de um Brasil que fosse igual
em todos os sentidos. Para ele, o bem e o mal se encontravam em uma única
forma e nenhum teria existido sem o outro, como o caráter ruim, o bom; a ale-
gria e a dor, que formaram o que o Brasil se tornou.
Em diversos momentos da obra “Casa Grande & Senzala”, é possível per-
ceber a subjetividade exagerada. Há uma pessoalidade na forma de retratar os
elementos formadores e o perfil das três raças. Nota-se que Freyre tem certo
desdém pelo indígena, não o considerando com o mesmo valor que o afro ou o
português. Deste último, faz críticas degenerativas e coloca-lhe atos de prejuízo
pouco vistos em sua época, dar ao elemento europeu a responsabilidade pela
devastação moral, pela promiscuidade e violência que constituíram meios tor-
pes na formação da sociedade brasileira. Freyre foi ousado em dar ao branco a
responsabilidade pela contradição entre a santidade religiosa, moralista e con-
troladora do corpo – castidade e fidelidade – e ser o elemento que se utilizou do
mando, principalmente os senhores de engenho, para se apropriar do corpo das
escravas negras ou indígenas. Tudo isso em um tempo em que o elogio a nossa
parte ocidental cristã europeia era visto como civilizador.
Mas há mais que isso no nascimento de um olhar sobre o Brasil, há Caio
Prado Junior e a primeira análise com base metodológica marxista sobre a for-
mação brasileira. Foi em sua primeira obra, “Evolução Política do Brasil”, que
buscou fundamentar a formação da sociedade agrária com os engenhos e deu às
capitanias hereditárias e aos senhores donatários os aspectos de consideração feu-
dal, ponto criticado mais tarde como o “grande calcanhar de aquiles” de sua obra.

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


247

Prado Junior considerou que as capitanias hereditárias instaladas pelos por-


tugueses para estabelecer a colonização nada mais foram do que uma reprodução
do feudo europeu sobre os moldes escravistas, porém, sua obra vai além disso. A
questão de estabelecer uma análise fundamentada na relação de classes sociais de
Marx e constituir uma visão sobre a economia onde a burguesia se coloca como
classe interessada na organização de um poder que lhe garanta o controle sobre
a terra e os meios de produção através do Estado foi inovadora.
Ele era um dos poucos autores apegados à contemporaneidade para construir
a lógica de sua formação mediante a economia. Não foi por acaso que se dedicou
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a este tema também em sua segunda obra, “Formação do Brasil Contemporâneo”.


Foi fundador da Revista Brasiliense, para a qual dedicou parte considerável de
sua vida, e gerou, também, um periódico acadêmico de grande expressão.
As linhas teóricas de análise se multiplicaram no Brasil, mas foi com Sérgio
Buarque de Holanda e Raymundo Faoro que a análise do poder ganhou uma
forma profunda. O primeiro, Sérgio Buarque, declaradamente utiliza o método
weberiano para a compreensão da formação do poder no Brasil, o monopólio do
poder político por uma elite e sua cultura nas relações de mando. Com o segundo,
Faoro, a constituição do poder dos coronéis, o patrimonialismo e o clientelismo
como condição gerada pela matriz portuguesa. Neste mesmo sentido, a análise
de Buarque (1995) também se sustenta, nossas heranças lusitanas e coloniais.
“Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda (1995), identifica os hábitos
dos brasileiros também com suas raízes, a prática de modelo, reforçada ao longo
da nossa história, de estabelecer com o poder uma relação de troca de favores,
“fazer para receber”, uma implícita manipulação do querer usar do benefício e
escalar os interesses com uma rede de troca de favores. Esta troca de gentilezas
saiu do campo, veio para a cidade e se instalou ao longo do tempo em diversas
instituições e lugares. Este modelo é impregnado por ser a manutenção de uma
herança, um valor tradicional que nos absolve e condena, inocenta e favorece o
pobre por estar subordinado ao poderoso, que usa de sua influência e manipula
as necessidades do miserável. Esta será uma relação de longa duração.
Faoro trabalha com um patrimonialismo constituído desde nossa herança
portuguesa, a fusão entre o patrimônio público e privado, tema que tratamos
nesta unidade. É uma construção das manutenções de privilegiados no poder,

Clássicas Saídas e os Pensadores Clássicos


248 UNIDADE IV

da permanência da preservação de relações além da regra jurídica. Os rituais


de mando vão além das leis, do que está escrito nas tantas constituições que o
Brasil teve ao longo de sua história. A obediência aos senhores do poder, come-
çando na formação agrária brasileira, onde senhores de engenhos do Período
Colonial, e os coronéis do final do Império e da Primeira República praticaram
com intensidade. Uma naturalização de que alguns nasceram para mandar e
outros para obedecer.
Porém, a efervescência de ideias sobre a sociedade brasileira fez brotar linhas
teóricas distintas de como tratar o dilema da brasilidade e desenhar o futuro do

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país, como já falamos. Nesta busca e neste sentido, surgiram teses novas e com
mais sustentação científica. Pesquisas de campo, análises de documentos voltadas
ao estudo das ciências sociais, que se preocupavam em organizar o pensamento
afinado aos interesses de um tratamento racional às questões sociais.
Uma dessas instituições foi a Escola Livre de Sociologia e Política, de São
Paulo, uma instituição de tendência norte-americana, liberal-conservadora, mas
defensora da democracia, e buscava um alinhamento com a postura dos Estados
Unidos, algo que muitos intelectuais já demonstravam ao longo de seus traba-
lhos ainda na primeira república, como Quintino Bocaíuva e o próprio Joaquin
Nabuco.
Outra instituição importante a ser lembrada é a Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras, fundada em 1934, em São Paulo, um dos braços formado-
res da maior universidade do Brasil, a Universidade de São Paulo (USP). Ela
se colocou como uma corrente de esquerda e foi fortemente influenciada pela
escola francesa de ciências sociais. Seu principal expoente foi Armando Salles
de Oliveira, fundador da academia e responsável pelo peso que ela teve na for-
mação de outros intelectuais.
Na Universidade de São Paulo, ao longo de sua história, diversos pensado-
res produziram as mais importantes obras sobre a formação do Brasil, Florestan
Fernandes, Octávio Ianni, Fernando Henrique Cardoso e José de Souza Martins,
mas falaremos destes pensadores posteriormente. O que vale ressaltar no momento
é a atração que a USP promoveu trazendo intelectuais europeus, foi a chamada
“Missão Francesa”, na qual desembarcou Roger Bastide, Paul Arbousse-Bastide,
Fernand Braudel, Georges Gurvitch e Claude Lévi-Strauss.

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


249

Os estrangeiros vieram para o Brasil à procura de uma sociedade diferente


daquela que viram entrar em guerra e com a qual se decepcionaram. Na con-
tramão desta busca, muitos pensadores brasileiros desejavam que o país fosse
analisado pelo modelo europeu, que fosse moldado dentro das academias um
método inspirado na produção europeia e colocá-lo como um detector das “ver-
dades” escondidas ou distorcidas do Brasil.

AS COISAS MUDARAM
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É importante entender a organização do poder no momento em que se ergueram


as instituições de ensino e a chamada formação do Brasil Moderno. O rompi-
mento com o passado se deu nas ruas, nas músicas, nas análises e na economia,
principalmente. O rompimento com as oligarquias cafeeiras foi notado nos levan-
tes tenentistas na década de 1920, onde estes tomaram as ruas e empolgaram a
classe média, afinal, o militarismo sempre empolga quem gosta de moralidade
e considera o ato popular de rebeldia uma falta de força extra de ordem, e se
havia uma instituição que se considerava a propagadora da ordem eram as Forças
Armadas, em especial o Exército.
Dentro das fileiras militares, com a Guerra do Paraguai (1864-1870), se
desenvolveram as teses positivistas. A Escola de Cadetes da Praia Vermelha,
hoje extinta, teve um papel significativo neste período, tendo um Benjamin
Constant um dos seus professores mais ilustres, como um positivista convicto.
Como ele, outros militares, não tão bem formados, mas agarrados na doutrina
salvacionista, desejavam colocar em prática o poder da farda sobre a sociedade
civil. O corporativismo forte, impregnado de desejo de poder e condições de
crise social e econômica foram ingredientes fundamentais para o estabeleci-
mento do poder militar.

Clássicas Saídas e os Pensadores Clássicos


250 UNIDADE IV

Em 1930, Getúlio Vargas, também vindo das fardas e dos campos coronelistas
das estâncias gaúchas, se colocou à frente das tropas. Ele tinha na sua formação
os dois elementos de acesso ao Estado. Outro fator importante da ascensão getu-
lista é o chamado “vazio de poder”, estabelecido com a crise entre os oligarcas
agrícolas diante de uma sociedade que se industrializou parcialmente e teve na
cidade um núcleo de poder diferenciado daquele habitual da extensão de terra.
Os militares que apoiaram Vargas estariam contra ele 15 anos depois. Em
1945, um golpe dirigido pelo marechal Eurico Gaspar Dutra colocou fim à
Ditadura do Estado Novo. Vargas foi para sua fazenda em São Borja para voltar

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mais tarde “nos braços do povo”. Funda-se o Personalismo no Brasil e Vargas foi
seu autor, pois tinha carisma e deixou um legado de idolatria, a qual não morreu
e não morre, sendo um dos símbolos pátrios que Vargas construiu como legado.
A personificação do poder é uma construção típica de determinadas socie-
dades onde o carisma do líder tem na história das relações sociais uma constante.
A autoridade está relacionada diretamente ao culto ao líder. As práticas do poder
associadas a uma carga simbólica fundada no paternalismo e na religiosidade
construída ao longo do tempo. “O salvador da pátria”, aquele que com um ato
pessoal vai redimir toda uma sociedade, um cristo político, um messias.
O personalismo influenciou as sucessões de poder e ainda faz carreira dentro
dos cargos públicos eletivos; no Poder Executivo é mais fácil perceber os seus efei-
tos políticos. Com força e identificação carismática, esta forma de fazer política e
se identificar com ela tem o populismo, a identificação com o líder, governar apa-
rentemente para as massas e saber manter-se no poder, como grande expressão.
Juscelino Kubitscheck, Jânio Quadros, João Goulart, Ademar de Barros e,
recentemente, Luís Inácio Lula da Silva são expressões do populismo ou pelo
menos de suas heranças, identificando o povo com o líder como expressão paternal
sobre uma nação carente. A propaganda política pública colaborou para cons-
truir esta imagem de patriarca bondoso ou pai austero e preocupado. Getúlio
Vargas se dedicou a construir um Departamento de Imprensa e Propaganda
(DIP) e seus efeitos foram positivos em uma sociedade a caminho da urbaniza-
ção. O rádio, como meio de comunicação, também contribuiu para criar uma
ligação entre o governante e o povo.

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


251

Associando os símbolos nacionais aos mais diferentes espaços, públicos e


até mesmo privados, a propaganda pública permitiu arregimentar na mentali-
dade popular a ideia de tradição da cultura e o poder estatal. Não por acaso que
o governante se faz presente nos eventos em que a população despeja seus senti-
mentos de identificação, sendo alguns deles transformados em símbolos nacionais,
determinadas modalidades esportivas, danças, rituais sagrados. Para nós, bra-
sileiros, o futebol, o carnaval, o samba, a feijoada são alguns destes elementos.
Ao trabalhismo, que discutimos anteriormente, com a formação de uma
classe operária urbana, o poder público também se associou. O 1º de maio, Dia
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do Trabalho, passa a ser comemorado como um marco da política estatal, aqui, o


trabalhador ganha notoriedade. Vargas fazia questão de comemorar este dia com
desfile e discurso, com evento festivo. A ironia é que o trabalho é homenageado
em um país que teve por tantos anos o escravo como seu principal trabalhador,
onde uma elite oligárquica e agrária rejeitou o trabalho como condição para jus-
tificar seu poder; no país, onde ainda hoje muitos se fazem contrariando a lógica
de que ele, o labor, “dignifica o homem”, negando-o.
Para Raymundo Faoro, formas de poder centralizadas como Vargas são um
desdobramento de políticas autoritárias herdadas do governo pombalino, fomen-
tado na corte imperial e fundado por Dom João VI e seus herdeiros, Dom Pedro
I e Dom Pedro II. Faoro considerava que a forma de intervencionismo estatal foi
se moldando ao tempo e se tornando uma permanência para manter o controle
social. Para ele, a relação entre o estado e a sociedade constituiu vícios de cum-
plicidade entre os abusos do poder e os favores que gera, um aperfeiçoamento
do nepotismo e do clientelismo.
Neste quadro de mudanças, a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) teve
um papel de destaque. O Mundo passou por uma crise de identificação geopo-
lítica que gerou um antagonismo ideológico como determinante, aqui vamos
ressuscitar o que já tínhamos trabalhado anteriormente, mas sob outro aspecto,
a Guerra Fria (1945-1989), o “Jogo de Xadrez”, de Henry Kissinger, onde pre-
dominou a polarização internacional dentre o capitalismo e o socialismo, as
superpotências (União Soviética e Estados Unidos).

Clássicas Saídas e os Pensadores Clássicos


252 UNIDADE IV

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O Brasil não ficou imune a esta polarização, na qual também sen-
tiu os efeitos econômicos gerados. Nossa economia se dinamizou com a
aceleração da industrialização. As bases fundadas por Getúlio Vargas para receber
o capital estrangeiro e ampliadas por JK permitiram um crescimento econômico
acelerado. A migração da população do campo para a cidade, o êxodo rural, foi sig-
nificativo e também foi expressiva a preocupação em agilizar políticas públicas para
atender às novas demandas sociais. O crescimento urbano, como já falamos ante-
riormente, trouxe novas formas de organização e relações para o tratamento público.
Nesta perspectiva, temos a questão da América Latina dentro do jogo de for-
ças das duas superpotências, Estados Unidos e União Soviética. Qual o papel que
as nações latino-americanas desempenharam dentro de uma economia mun-
dial que se multiplicava em multinacionais, aportando em países como o Brasil,
Argentina, México e Chile? Como entender o camponês latino-americano agora
jogado nas cidades ou explorado por novas formas de organização da produção
agrícola, a mecanização do campo? A reforma agrária, por exemplo, se trans-
formou em tema corrente nas décadas de 1950 a 1970.
Inúmeros teóricos passaram a defender, por meio de suas teses, o cami-
nho que a América Latina deveria tomar no jogo de forças da Guerra Fria.
Enquanto pensadores como Florestan Fernandes defenderam uma ruptura com
a dependência norte-americana e uma aproximação com a comunidade latino-a-
mericana, Raymundo Faoro (2001) vai orientar uma discussão de modernização

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


253

civilizadora, mais próxima do interesse norte-americano na geopolítica interna-


cional. Porém, com uma cultura própria, o continente latino-americano estava
sujeito ao jogo de forças mundial e teorias como da dependência passaram a
ganhar força. Nosso papel estava ligado à exploração mundial e era necessário
romper com a imposição do capital estrangeiro, sendo o nacionalismo exaltado
e as políticas protecionistas, buscando combater os favorecimentos de empresas
estrangeiras, respostas a isso. Desta forma, uma economia imperialista estava
em andamento depois da Segunda Guerra Mundial, atraindo as nações latino-
--americanas para uma rede de produção que interferiria na vida da sociedade e
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aprofundaria a desigualdade. Os governos defensores do liberalismo nada mais


seriam do que agentes desta política de abertura mundial que atende ao capital
estrangeiro. A proteção da empresa nacional seria uma forma de conquistar a
autonomia e romper a dependência. A integração das nações da América Latina
seria uma alternativa contra o imperialismo, em especial, dos Estados Unidos.
Neste contexto, dois pensadores precisam ser destacados, Florestan Fernandes
e Celso Furtado. O primeiro, como um analista dos movimentos sociais brasi-
leiros na busca por transformá-los, a chamada militância, termo que Florestan
colaborou para difundir. Fundadas nas teses de Marx, as críticas de Florestan
foram direcionadas às condições em que o capital se estabeleceu no Brasil. O
sociólogo da USP considerava que era preciso entender a estrutura de produção
do capital no Brasil, como ela se desenvolveu dentro de certas peculiaridades e
como gerou antagonismos dentro da sociedade, em especial, nos espaços urba-
nos. Por defender a militância, se colocar na condição de quem deveria agir para
mudar, Florestan Fernandes atuou na vida política, foi deputado federal e foi um
dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT).
Já Celso Furtado foi economista, um dos mais importantes orientadores da
política econômica da América Latina. Furtado desenvolveu trabalhos junto à
Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal), onde questionava
as leituras econômicas clássicas sobre a realidade latino-americana, considerava
que tentar enquadrar o Brasil dentro de um esquema de economia mundial de
mercado, onde a realidade brasileira seria um campo econômico idêntico aos dos
dois países desenvolvidos, era uma forma de formar modelos de exploração que
atendiam aos interesses da burguesia dominante, principalmente internacional.

Clássicas Saídas e os Pensadores Clássicos


254 UNIDADE IV

Furtado, assim como os pensadores da escola econômica de dependência,


analisa a conjuntura em que o capitalismo mundial se desenvolve, os aspectos
nacionais da economia e as condições em que a sociedade brasileira se adequa à
cadeia mundial de produção. Para Celso Furtado, o subdesenvolvimento brasileiro
não pode ser entendido como uma etapa para se chegar ao pleno desenvolvi-
mento capitalista, é uma condição permanente de exploração. Assim, o papel
que as nações, a exemplo do Brasil, desempenharam na economia mundial não
iria mudar, seria uma permanência da realidade social e econômica. Os pro-
blemas sociais, saúde, educação, segurança e, principalmente, a desigualdade

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econômica são reflexos desta permanência. Nos países mais atrasados, como no
caso das nações do Caribe, a realidade próxima à da colonização, agrária expor-
tadora, continuaria.
Foi por idealização de Celso Furtado que foram criados o Banco Nacional
de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a Superintendência para o
Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE). Ele participou ativamente dos gover-
nos de Juscelino Kubitscheck (1956-1961) e de João Goulart (1961-1964). Estas
atuações acabaram por marcá-lo como um protetor da burguesia nacional. Sua
postura protecionista lhe dava o perfil de defensor da empresa brasileira atra-
vés de barreiras alfandegárias e favorecimentos fiscais, pelo menos, foi este um
dos perfis de sua teoria; contudo, foi também incentivador do desenvolvimento
econômico.

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


255

O FIM DE UMA GUERRA FRIA E DE UMA DITADURA QUENTE

Ao longo da década de 1960, o Brasil teve um golpe em sua democra-


cia, a ascensão dos militares ao poder em 1964. O enrijecimento
do regime militar mudou o olhar sobre a sociedade e própria
vida do brasileiro. A Ditadura se estabeleceu por mais de
25 anos (1964-1985) e ampliou ainda mais a
urbanização brasileira e sua economia, fun-
dada em uma agricultura moderna e com um
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parque industrial com a presença significativa


do capital estrangeiro. Neste sentido, a eco-
nomia caminhou nos mesmos passos que o
regime derrubado por ela e considerado uma
ameaça comunista.
Neste período, a industrialização acele-
rou e gerou uma concentração ainda maior
da população nos espaços urbanos. A violên-
cia do regime não se fez sentir somente nas
instituições políticas organizadas, mas também nos movimentos sociais ou nos
locais onde se considerava que a ordem poderia estar ameaçada. Nem toda a
ação social pôde ser considerada ideológica, ainda mais em um regime carente
de inteligência para saber detectar isso.
A repressão do regime intensificou a violência, ampliou o poder dos apara-
tos de segurança e, hoje, a segurança pública se transformou em um problema
dentro do corpo social, em muito pela forma como a força pública é utilizada
na repressão. Há uma guerra permanente nos grandes centros entre a periferia
onde o crime organizado se prolifera e o aparato de segurança não tem controle.
Esta perda de controle se dá mais pelo abandono da população em relação aos
serviços e bens públicos básicos, do que da índole, do caráter, que se quer fazer
acreditar como fator que determina quem tem práticas ilícitas, quem se envolve
com o crime.

Clássicas Saídas e os Pensadores Clássicos


256 UNIDADE IV

O abandono ou marginalização fez com que a periferia se organizasse e pas-


sasse a buscar meios para resistir, reagir e agredir a sociedade legal e o aparato de
segurança repressor. As relações sociais ganharam conotações novas com a intro-
dução de novos meios de comunicação, a multiplicação dos bens de consumo
e seus simbolismos. Os habitantes da periferia passaram a usufruir de meios de
comunicação que apresentaram o Brasil para os brasileiros.
Uma das mais importantes produções cinematográficas da década de 1970
foi “Bye Bye Brasil!”; aqui, Caca Diegues mostra a influência da televisão na
mudança do hábito dos brasileiros. Uma companhia de teatro mambembe per-

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corre os lugares mais distantes do país e se vê na Amazônia, em Altamira, mas
lá a televisão também já havia chegado. E assim se redefine o tamanho do país
para os próprios brasileiros, também suas preocupações com os demais seres
humanos que habitam o lugar onde vivem, quem são e onde estão. A televisão
muda a noção de espaço e tempo, abre uma janela que traz de forma resumida
uma lógica complexa que não será sentida em toda a sua profundidade.
A sociedade onde as relações de produção econômica são complexas, onde
há uma cadeia internacional, envolveu inúmeras unidades produtivas; a deno-
minada “fábrica mundo” se expande e inclui todos os cantos do planeta em sua
rede de produção. Os bens gerados por esta rede são incompreensíveis quando
estamos diante dos bens produzidos. Aí entra em cena a simbologia midiática.
Ela vai reconduzindo os sentidos das relações sociais e invadindo o que consi-
derávamos próximo ou realmente preocupante. Os movimentos sociais urbanos
apresentam agora novas formas de entender o mundo que parece ser traduzido
nos meios de comunicação. A internet é um campo novo de investigação e rápido
de ação. Tivemos, em 2013, as manifestações de julho, e muitos consideravam
que seriam um marco na mudança do país, mas não foi. Não repercutiu efeitos
duradouros, porém, foi uma expressão nova que deve ser investigada.
Não é por acaso que os meios de comunicação estão ganhando um papel vital
nesta nova relação mundial de produção. A complexa cadeia que gera os bens abre
espaço para ambientes que expliquem ou reexpliquem a origem dos produtos. O
que Marx considerava a reificação dos objetos, da mercadoria, ou a simbologia
dos sentidos de Max Weber se propaga e intensifica. Muitos dos bens que utili-
zamos e nos relacionamos ganham significados distantes de sua função racional.

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


257

Com a propagação da televisão, os temas tratados em uma dimensão regio-


nal passam a ser nacionais, como a questão operária, o preconceito, a violência,
a educação, a saúde, o transporte, a comunicação, a questão indígena, a emanci-
pação feminina e todos os problemas que a cidade gera como núcleo de encontro
de correntes populacionais das mais diversas origens. Dentro disso, ocorre a
necessidade do estudo social e os efeitos culturais dessas vivências. Os antropó-
logos e sociólogos mergulham neste campo e muitas vezes se afogam nele sem
conseguir uma resposta definitiva.
A democracia ressurgiu no Brasil exatamente na expressão estética da aber-
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tura da propaganda política industrializada e na fantasia de falsos movimentos


socias de peso. Em 1989, as eleições para a presidência da república foram dire-
tas e Fernando Collor de Melo venceu como a esperança da vontade popular,
mas ele mesmo, o presidente eleito, era fruto do regime anterior e caiu dois anos
depois envolvido em crimes de corrupção, os quais prometeu combater em sua
campanha. Ele não foi o primeiro e não será o último a fazer isso.
Porém, em 1994, com a eleição de Fernando Henrique Cardoso e seus dois
mandatos, assim como a eleição, por mais dois mandatos, de Luís Inácio Lula da
Silva, houve a estabilização da democracia. Esta está amadurecendo pelos dias
em um país que, na sua história, não está habituado à liberdade.
A sociedade está mais complexa e difícil de ser compreendida com padrões.
O caminho para a liberdade será rever quem somos sobre esta nova ótica do que
chamamos erroneamente de pós-modernidade. Esta não existe, há apenas a con-
tinuidade de uma formação em construção que nunca acaba.
Um dia o Brasil viu desembarcar em suas terras os imigrantes, no século
XIX os europeus, no início do século XX, os japoneses. Estes lutaram tanto para
manter viva a sua cultura ao ponto dela se transformar em um atrativo turístico
e marcar nossas vidas com alimentos, cultos, templos e cores. Agora, os netos
dos nipônicos migrados para o Brasil migram para o Japão. Quando tentam
retornar não se adaptam e se ficam no Japão, serão trados como estrangeiros,
como “brasileiros na terra de seus avós, sem conseguir ter uma “terra-pátria”.
Os decasséguis são um exemplo do movimento humano que tem atingido o
mundo, inclusive o Brasil.

Clássicas Saídas e os Pensadores Clássicos


258 UNIDADE IV

Hoje, recebemos haitianos, colombianos, paraguaios, venezuelanos, coreanos


etc. Somos ainda um país dos desejos de africanos e, até mesmo, de qualifica-
dos europeus; somos o Brasil da imigração e do encontro, carregado de marcas
mundiais em todos os lugares, simbolizado como produto e visto como pátria,
porém também exportamos gente. Estamos integrados em uma rede mundial
em movimento, e fazemos parte dela com toda a nossa peculiaridade.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Brasil é um país de dimensões continentais e formado por uma sociedade


diversificada, mas só isso não explica as suas peculiaridades, suas características
únicas. Os encontros promovidos dentro do território brasileiro geraram uma
nação ímpar no mundo, um povo único. Esta condição nos faz cheios de pos-
sibilidades. Conhecer nossas origens é uma obrigação, entender o nosso papel
dentro de um ambiente formado pelo encontro e desencontro permite consci-
ência dos problemas permanentes.
O Brasil de hoje é obra dos encontros formadores, das heranças consolidadas
pela história, uma produção de regiões, economia, povos e suas etnias, seus hábi-
tos variados e todos os resultados possíveis. Temos como identificação a mistura,
assim a sociedade brasileira não pode se deixar seduzir pela eugenia. Infelizmente,
em muitos momentos se tentou a via da condenação do passado miscigenado
para explicar nossos atrasos. Ainda hoje há as blasfêmias lançadas ao se dirigir à
maioria da sociedade e chamá-la de “tupiniquim”. A ignorância tem destas coisas.
Agora que você conhece um pouco sobre nossa formação, e aqui ainda é
pouco, há muito mais para saber, é preciso se posicionar de forma diferenciada
e buscar uma ação mais consciente. O preconceito ainda existe, mas do quê?
Contra o que lutamos quando discriminamos os afrodescendentes e os indí-
genas? Rejeitamos a nós mesmos, não aceitamos nossas origens, ou melhor,
as desconhecemos. A ignorância não constrói a paz e sim perpetua a guerra.
O Brasil ainda é um país em “guerra permanente”, como afirma Darcy Ribeiro.

BRASIL: A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE E DE UM ESTADO AUTORITÁRIO


259

Esta guerra não é feita de forma declarada ou organizada, ela é diária. É


resultado da ausência de possibilidades e de ambientes sem justiça e capacidade
de dar aos indivíduos oportunidades de desenvolver seu potencial. Por um lado,
o paternalismo tradicional gerando seus “currais” eleitorais, seus redutos de
poder dos senhores; por outro lado, uma economia sem competitividade, cheia
de apadrinhamentos e consolidada com vínculos de clientelismo. O empresário
bem-sucedido necessita de “gentilezas” vindas do poder público.
Há uma casta política e muitos consideram que fazer parte dela é garantir a
estabilidade para o resto de suas vidas. Este profissionalismo político, natural da
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

vida democrática ocidental, no Brasil, tem perfil parasitário e pernicioso. Suga a


vida da sociedade, sobrevive da miséria perpetuada. A ignorância cai bem como
instrumento de manipulação social para se obter interesses pessoais.
As mudanças da economia mundial abriram oportunidades de transforma-
ções na sociedade brasileira, tanto para o bem como para o mal. Porém, temos
que saber gestar estas mudanças e conhecermos do que realmente necessitamos,
senão vamos aprofundar nossas heranças e colaborar para a manutenção deste
servilismo presente no país.

Considerações Finais
1. A formação do Brasil foi marcada pelo encontro étnico-cultural de três raças: o
branco, o negro e o indígena. Nesta condição se desenhou a colônia portugue-
sa e a afirmação de um povo marcado pela mistura. Havendo a relação entre o
interesse de obtenção de riqueza pelo colonizador e a resistência de escravos e
indígenas. Sendo assim, faça um relato histórico das resistências das classes
populares, passando pela invasão, escravidão, até a sociedade atual.
2. A formação do Estado nacional brasileiro foi marcada pela permanência da fa-
mília real portuguesa no poder. Desta formação original do Estado, com a mo-
narquia como regime, vivemos por muito tempo o autoritarismo. Ainda hoje é
possível perceber o quanto há de autoritarismo nas práticas de quem está no
poder. O nepotismo e o clientelismo são alguns dos exemplos de abuso do
poder público. Justifique esta afirmação.
3. Ao falar do regionalismo no Brasil, Darcy Ribeiro fala da existência de “cinco bra-
sis”. Cada um deles como sendo o resultado de encontros e migrações que se de-
senvolveram de forma variada em cada uma das regiões brasileiras, dando-lhes
aspectos sociais e econômicos variados. Sobre as características gerais desses
“cinco brasis”, leia as afirmações abaixo e assinale a alternativa correta:
I. – Na região amazônica, fruto da miscigenação entre o branco e o índio, temos
a figura do caboclo. Região essa que, por ser afastada e ter permanecido iso-
lada por muito tempo, possui ainda muitos traços nativos originais.
II. – No nordeste temos o sertanejo, herdeiro de uma escravidão abolida e sofri-
do devido às constantes secas que tornam a agricultura difícil e dão espaço
ao “coronelismo” baseado na submissão, não sem resistência, aos grandes
proprietários de terra.
III. – No sul e no sudeste temos o caipira, fruto das bandeiras, de incursões colo-
nizadoras ou guerras por disputas territoriais, que vive aflito diante do pro-
gresso que consigo traz a marcha agrária da qual ele tanto foge.
IV. – Na faixa litorânea a figura do crioulo é resultado dos encontros étnicos en-
tre brancos, índios e negros, que ao habitarem os primeiros núcleos urbanos
do Brasil, se dedicaram as mais variadas atividades.
V. – No sul, a leva de imigrantes acabou por disseminar as culturas estrangeiras
e eliminar a antiga cultura dos pampas.
É correto, apenas o que se lê em (enumere somente uma opção):
a. ( ) I, II e III.
b. ( ) I, II e IV.
c. ( ) II, III e IV.
d. ( ) I, II, IV e V.
e. ( ) I, II, III e IV.
261

Darcy Ribeiro é um dos mais importantes cientistas e pensadores brasileiro. Sua obra
é vasta e direcionada para a compreensão da América Latina e do Brasil, em especial.
Ele deu uma entrevista ao Programa Roda Viva, exibido pela TV Cultura, em 1995. Nela,
ele fala sobre a sua trajetória profissional, suas múltiplas atividades, e mais que isso, sua
paixão por conhecer o país, os brasileiros.
Um dos destaques desta entrevista é a produção do livro “O Povo Brasileiro”, o qual foi
uma das bases para a confecção desta obra que você tem em mãos. Com esta entrevista,
Darcy coloca o Brasil como uma nação a ser construída. Lembra-se dos autoritarismos e
relata sua paixão por ser um ser inquieto e de muitas atividades.
Aqui você tem um pequeno trecho desta entrevista:
Matinas Suzuki: Bem, para fazer esta entrevista histórica com o senador e antropólogo
Darcy Ribeiro, nós convidamos hoje o jornalista Zuenir Ventura, que é repórter do Jornal
do Brasil; a socióloga Maria Victoria Benevides, que é professora da USP; o comentarista
da Rede Cultura e diretor da revista Placar, Juca Kfouri; o jornalista Marcos Augusto Gon-
çalves, que é editor de domingo da Folha de S. Paulo; o colunista de O Estado de S. Pau-
lo José Castello e o jornalista Ricardo Noblat, diretor de redação do Correio Braziliense.
Matinas Suzuki: Boa noite, senador Darcy Ribeiro. O senhor, vendo as imagens que a
gente colocou aí, disse que “tinha saudades de mim mesmo”. O que o senhor quis dizer
com isso?
Darcy Ribeiro: Isto. Cada vez que eu vejo imagens dessas, que me colocam nas posi-
ções que eu ocupei, eu fico com saudade. Por que que eu não fiquei ali? Por que eu não
fiquei com os índios, tratando só de índio? Por que eu não fiquei só na universidade
dando aulas? A minha vida é uma variação constante. Eu sou um homem inconstante.
Se eu ficasse em uma coisa só, eu poderia ser o melhor etnólogo do mundo, porque
eu sou competente nisso. Mas enjoei. E depois eu poderia ser o melhor educador do
mundo também, um dos melhores, como Anísio Teixeira. Fui ministro da Educação, po-
deria ter ficado nisso, quietinho. Mas a política era irresistível. Fazer alguma coisa para
o Brasil melhorar, fazer alguma coisa para mais gente usar os instrumentos do poder
para mudar. Depois caí do cavalo, me jogaram no exílio. E lá eu fiquei, pondo remen-
dos nas universidades, inventando novas universidades, dando conferências, e, digo de
mim e do Fernando Henrique que “nós comemos o amargo caviar do exílio”, porque no
primeiro dia estávamos contratados. Então, muitos exilados passaram uma vida muito
dura, eu não gosto muito de falar do meu exílio, que o meu exílio foi um passeio muito
bonito, contratado de país em país. Então eu vim na minha vida variando assim. No
Rio, ao voltar, fui eleito. Fiz coisas formidáveis, quinhentas escolas para mil alunos. Uma
universidade nova [Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF),
implantada, em 1993]. Te digo: o ministro da Educação esteve lá para dar a aula inaugu-
ral. E disse que esta nascente universidade, que eu estou fazendo no norte do Rio, essa
nascente universidade é a quarta universidade do Brasil.
Acesse a entrevista na íntegra em:<http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/63>.
MATERIAL COMPLEMENTAR

Raízes do Brasil
Sérgio Buarque de Holanda
Editora: Companhia da Letras
Ano: 1995
Sinopse: Sérgio Buarque de Holanda é um clássico brasileiro. É
impossível entender o que somos e esta nossa forma de compactuar
com os mandos e desmandos e as nossas expectativas de termos
resultados pessoais com as relações cordiais. Nosso modelo
de autoridade é associado às heranças de uma nação marcada
pela desigualdade. Muito dos hábitos considerados nocivos são
constituídos em nossas origens e reproduzidos ao longo do tempo. Em “Raízes do Brasil”, Sérgio
Buarque de Holanda fala de nossa formação. Temos que saber de onde viemos para compreender
a realidade à nossa volta e darmos um passo na busca da mudança. Lembrando sempre que
qualquer olhar sobre o passado é um conceito e ele não significa a realidade. Temos que admitir
nossa pessoalidade mesmo na busca da racionalidade científica. Nas ciências humanas, não
há uma neutralidade como os positivistas defendem, mas há uma racionalidade na busca de
compreender os fenômenos sociais.

O povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil


Darcy Ribeiro
Editora: Companhia das Letras
Ano: 1995
Sinopse: Não poderíamos deixar de indicar para nossos alunos “O
Povo Brasileiro” de Darcy Ribeiro. Entender nossas origens com seus
encontros e desencontros. A regionalidade, o passado e o presente
que se fundem nos traços da nossa realidade. Ribeiro fala dos
encontros e das possibilidades que os encontros sociais geraram. O
caboclo, o caipira, o gaúcho, o imigrante são alguns dos personagens
descritos por ele na busca da identidade nacional, da brasilidade, tão argumentada em nossa
obra.
MATERIAL COMPLEMENTAR

Filme: Bye Bye Brasil


Direção: Carlos Diegues
Ano: 1979
sinopse: “Bye Bye Brasil” é uma expressão das mudanças do Brasil.
Uma companhia de teatro mambembe percorre o interior do país
até chegar à Altamira, na Amazônia. Em fuga da televisão, tentando
sobreviver onde as imagens via satélite ainda não tinham chegado.
Mas o espaço vai ficando curto e vai se descobrindo um Brasil
hipnotizado pelas imagens televisivas. Onde menos se espera os
brasileiros de todos os cantos estavam sendo apresentados pela
televisão.
A desigualdade, a miséria e o esquecimento, as populações marginais
são tratadas na obra de Cacá Diegues. O filme, da década de 1970, é uma expressão de um país
antagônico, integrado por um meio de comunicação. A companhia de teatro liderada por José
Wilker como um dos atores principais, expressa em seus membros a contradição humana entre
a compaixão e a ganância, mesquinhez e atos torpes. Uma condição humana em um Brasil em
mudança em pleno regime militar.

A formação social brasileira é sempre debatida como um dos fatores de nos-


so “atraso”. Nossa origem já foi expressa como um problema para o futuro,
um obstáculo para o desenvolvimento. Esta visão ainda persiste. Há quem
considere que nada somos além de um povo miscigenado e, por isso, sem
condições de ter um futuro promissor. Outros consideram que nossa pobre-
za cultural, nossos hábitos nos condenam. Seria realmente a nossa origem
que nos condena ou a falta de entendê-la?

Material Complementar
Professor Me. Gilson Aguiar

V
O ENCONTRO COM O

UNIDADE
INDÍGENA E A PONTE COM
A ÁFRICA

Objetivos de Aprendizagem
■■ Estabelecer um relato sobre os encontros entre os elementos étnicos
brasileiros e suas consequências para a sociedade atual.
■■ Compreender a formação das comunidades indígenas antes da
chegada dos europeus e sua trajetória até a atualidade.
■■ Conhecer as condições em que a população africana foi
transplantada para a América portuguesa e a relação que
estabeleceru dentro das áreas produtivas.
■■ Analisar os resultados deste encontro em relação aos problemas
atuais derivados deste passado escravista e de exploração social.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Moradores da Terra Brasilis.
■■ Encontros étnicos e a formação do Brasil
■■ O resultado desses encontros e os reflexos na condição atual
brasileira
267

INTRODUÇÃO

A violência é considerada uma marca do país. Ela está estampada nos meios de
comunicação e toma o interesse de boa parte da sociedade. Ao tentar compreender
as imagens que são estampadas nos jornais, imagens essas associadas ao barba-
rismo diário de assassinatos, furtos, tráfico de drogas e vandalismo, nota-se que
o perfil dos agressores é quase sempre o mesmo: eles são afrodescendentes. Mas
isso corresponde à realidade? A violência é uma questão de raça, de cor da pele?
Para aqueles que trabalham esses temas com racionalidade, a resposta é não.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Porém, para o sensacionalismo, para a ignorância alimentada pelas interpreta-


ções midiáticas, é quase sempre sim. Não se fala, ninguém assume abertamente
a pretensão de colocar os afrodescendentes na berlinda e de naturalizar a ideia
de propensão à violência por determinados grupos sociais ou mesmo elemen-
tos étnicos de identificação, porém, essa pretensão existe.
Na novela, na propaganda, nos heróis pátrios ensinados e idolatrados nos
bancos escolares, na história da felicidade e harmonia associada ao branco e
a desarmonia agressiva associada aos negros e indígenas, há mais romance,
idealismo, do que uma abordagem racional e lógica. O desconhecimento cien-
tífico aprofunda a ignorância, pois ele gera, na maioria dos brasileiros, o hábito
de generalizar. Tudo fica mais fácil de compreender quando não há um com-
promisso com uma abordagem científica e fundada em uma análise crítica da
realidade. A ciência deve cumprir este papel quando abordamos os movimen-
tos sociais brasileiros.
Hoje há manifestações claras de desconhecimento de temas polêmicos que
deveriam ser sustentados, debatidos, sobre uma lógica científica. O preconceito,
a violência e a desigualdade econômica são alguns dos polêmicos temas que
envolvem a sociedade brasileira.
Não é nossa pretensão fechar essa discussão e encerrar esse debate, quem
dera. Não temos as respostas para essa crise, somos apenas um ponto de busca
para trazer um pouco do que consideramos lúcido nessa discussão que remonta
a nossas origens, aos conflitos sociais e ao preconceito.
O que falta na formação brasileira é o entendimento da existência de uma
história indígena e da África, a existência de elementos formadores, de uma

Introdução
268 UNIDADE V

construção social diversificada, de uma população de múltiplas possibilidades


e que existia antes do encontro estabelecido dentro do território brasileiro. Há
um antes que deve ser conhecido para se entender o durante e o depois.
Nosso ocidentalismo sempre nos coloca na perspectiva de que tudo come-
çou na Europa e dela se emanou a história da humanidade, como se não existisse
civilização antes da expansão Ocidental. Falamos sobre essa questão nas pri-
meiras unidades deste livro. Nelas, deixamos clara a dificuldade de promover
uma abordagem que não coloque a civilização ocidental como determinante das
civilizações não ocidentais. Na análise da sociedade brasileira, não é diferente.

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Não pretendemos construir o discurso da “história dos vencidos”, o que nos
parece sem função. Não há como refazer os fatos, mas há como entender suas
interpretações e permanências, as condições em que foram produzidos e seus
reflexos na atualidade. Um desses elementos foi o trabalho escravo, ele tem uma
relação direta com a discriminação racial na atualidade. Se desejamos combater o
preconceito, temos que conhecer e reconhecer os fatos da formação da sociedade
brasileira. Há uma gama de informações e análises que podem nos dar respos-
tas melhores do que a superficialidade com que o preconceito racial é analisado
na atualidade. Vamos tentar um pouco disso aqui.

MORADORES DA TERRA BRASILIS

Quando as embarcações europeias chegaram ao território americano, encon-


traram a terra habitada, mas quem eram seus ocupantes? Essa pergunta seria
respondida das mais diferentes formas. Como discutimos na primeira e na
segunda unidades, as definições sobre os “nativos” americanos transitaram
entre as do “bom” ou “mal” selvagem.
O imaginário europeu criou inúmeras formas de representar os nativos. Eles
tinham hábitos descritos como os de seres demoníacos ou gentis. A gentileza
exigia a educação cristã para completar o ciclo do “bom” selvagem. Já o exter-
mínio era justificado quando se expressava o lado “negativo” do nativo, o “mal”

O ENCONTRO COM O INDÍGENA E A PONTE COM A ÁFRICA


269

selvagem. Essa condição se propagou ao longo da história e não relata muito


bem o que realmente eles eram.
A vida nas Américas pré-colombianas era dinâmica, pois havia uma grande
quantidade de nações que habitavam de norte a sul do continente. Essas nações
iam dos esquimós (ao norte) até as civilizações mapuches que habitavam o sudo-
este argentino. Desse modo, nesse continente, eram desenvolvidas atividades
comerciais, organização de uma língua, formação de cidades, como no caso de
Astecas, Incas e Maias, até a atividade constante do escambo entre os guaranis.
Migrações e guerras também faziam parte das civilizações pré-colombianas.
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Os combates eram marcados por disputas territoriais, foi o caso dos caingangues
contra os guaranis e destes contra os xetás. Guerras entre civilizações nativas
também foram a marca da coexistência entre astecas e texcocos para ampliar a
escravidão ou resistir a ela. Darcy Ribeiro (1995) acreditava que se os europeus
não tivessem chegado à América, os guaranis teriam construído um império
nas terras sul-americanas.
Mas essa variedade de povos que habitou a América antes da chegada dos
europeus não é originária do território. Na verdade, esses povos são herdeiros
de uma migração pré-histórica através do Estreito de Bering, há 15 mil anos.
Eles se espalharam gradativamente pelo continente, consolidaram-se em agru-
pamentos com ambientes distintos de sobrevivência e formaram comunidades
com interesses variados e organizações sociais particulares.
A população original de nativos anterior ao encontro com o homem branco
era calculada em 20 milhões. Hoje, restam menos de 2,5 milhões. No Brasil, há
uma parte considerável dessa população indígena americana, mais de 800 mil
(pelos menos dos que se declaram indígenas). As condições em que os nativos
vivem no continente, nos diversos Estados Nacionais que se formaram, não se
diferem muito. Em sua maioria, os índios estão marginalizados nas nações onde
vivem. Se há algum destaque sobre sua existência, está mais nos livros didáticos
das escolas do que no tratamento dado aos descendentes indígenas.
A população indígena que habitava o território brasileiro era de aproximada-
mente cinco milhões de nativos. As variações linguísticas, de hábitos alimentares,
ou organizações sociais dessa população eram variadas. Como exemplo, podemos
citar o mito do canibalismo entre as nações indígenas que habitavam o território

Moradores da Terra Brasilis


270 UNIDADE V

brasileiro. Para José de Sousa Martins, é uma lenda, não houve canibalismo, ele
teria sido uma construção do imaginário ocidental para justificar a selvageria e
permitir o extermínio dos índios. Já Darcy Ribeiro trabalha com essa possibili-
dade e fala dos rituais antropofágicos como forma de renovação da vida.
Independente de a antropofagia ter existido ou não entre os nativos da
América, repousou no imaginário europeu, de diversas formas, a demonização
dos indígenas. Outras formas de considerar os nativos pelos europeus foi a apro-
priação do corpo das índias e a mudança dos hábitos alimentares. A influência
da roça guarani garantiu o alimento no período colonial. O milho, a mandioca,

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
a bata doce e o amendoim foram alguns dos produtos que permitiram a supe-
ração da fome.
A língua também foi uma expressão da influência indígena sobre a popula-
ção branca. Em parte considerável do litoral, a “língua geral”, como era conhecido
o guarani, se propagou. Em cidades como São Paulo, fundada pelos jesuítas, ela
era a forma de comunicação da população. As identificações com a língua estão
expressas, hoje, no nome dos lugares, dos rios, das serras e das cidades.
A propagação da população nativa pelo território gerou nações e promoveu a
demarcação de territórios. As guerras eram uma constante entre nativos, às vezes,
dentro da própria nação. Os guaranis, os
tupiniquins e os tupinambás travaram
combates homéricos no litoral. Muitos
deles, durante o Período Colonial, ser-
viram como mecanismo de dominação
dos portugueses ou para auxiliar as
tentativas de invasão dos franceses e
holandeses. Pode parecer contraditório,
mas o indígena estava ao lado do branco
na conquista do território para a expan-
são da colônia portuguesa. As Bandeiras
(forma de expedição militar organizada
pelos colonos, cuja Capitania de São
Vicente foi o principal ponto de origem

O ENCONTRO COM O INDÍGENA E A PONTE COM A ÁFRICA


271

e partida das expedições) eram formadas em sua maioria por indígenas apreados1.
Em todo o território correspondente ao que hoje é o Brasil, habitavam mais
de 215 grupos ou nações. Cento e oitenta línguas eram faladas entre os indíge-
nas, lembrando que a classificação dessas línguas, ainda hoje, sofre mudanças,
pois novos elementos são descobertos.
Os jesuítas foram os primeiros a tentar desvendar os múltiplos dialetos usa-
dos entre os nativos. Inicialmente, classificaram esses dialetos em tupis e tapuias,
língua solta e língua travada. A sonoridade e a construção das variações verbais
serviram como parâmetro para a transformação da língua indígena em escrita.
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Esse papel de transformação, inicialmente, coube aos jesuítas e foi um instru-


mento importante da dominação dos padres sobre os nativos, tanto para a obra
de catequização quanto para esses jesuítas serem aceitos e terem influência sobre
os indígenas.
No Brasil, os guaranis, nação de contato constante com o europeu, foram a
principal organização indígena que habitava a parte maior do litoral da colônia
portuguesa e também a região dos vales dos grandes rios, como o Rio Paraná e
a Bacia do Prata. Nessas áreas, ocorreu uma ação catequizadora por parte dos
países ibéricos. A tentativa era de arregimentar o maior número possível de
nativos para uma aliança com os colonizadores, mas essa tentativa nem sempre
aconteceu com sucesso, pois a busca de converter o guarani foi a custo de cons-
tantes guerras.
A utilização dos nativos como escravos foi uma prática comercial que domi-
nou a colônia desde a sua fundação. Essa prática colaborou para o extermínio
de nações indígenas e gerou tensão em diversas partes do território. Não houve
tempo de ruptura da exploração do nativo como escravo. Nas regiões mais pobres
do Brasil, eles representaram uma mão de obra de fácil acesso, porém, não tão
produtiva como a escrava africana, pela própria dinâmica do trabalho e a forma
como estava organizada a grande e a pequena empresa colonizadora.

1 Quando falamos do nativo apreado, estamos nos referindo àquele que intensificou sua convivência com o
homem branco, passou a incorporar alguns dos seus hábitos e promover relações de miscigenação. No caso
das Bandeiras, os nativos encontravam nelas a forma de exercitar a aventura, promover a caminhada para
o interior da floresta. Os guaranis acreditavam que a vida é uma eterna procura por um lugar para se viver
de fartura. Porém, pela própria natureza da crença em um paraíso, como nós ocidentais sempre tivemos
também, essa busca nunca é alcançada, porque o nosso destino é continuar caminhando sempre. O que se
exalta é o motivo para o constante deslocamento.

Moradores da Terra Brasilis


272 UNIDADE V

Assim, perceberemos, ao longo da história da colonização, o extermínio gra-


dativo das comunidades indígenas. A guerra por conquista territorial não foi o
único elemento de destruição, pois a fome também pairou sobre os índios com
a chegada do homem branco. Desse modo, deslocados de suas terras e perdendo
o ambiente de sobrevivência, os nativos se viram obrigados a fugir para o inte-
rior ou servir aos colonizadores com sua produção, além de passar fome ao viver
com as sobras que a exploração da terra permitia.
A catequização também foi um braço do extermínio. A Cruz se propagou na
colônia, gerou uma devastação cultural, eliminou as crenças, os sentidos e a iden-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
tificação dos povos indígenas aldeados pelos padres da Companhia de Jesus. A
conversão se deu de modo autoritário, separando as famílias nativas, e as crian-
ças foram o principal alvo dessa conversão religiosa. Assim, após a maturidade, os
curumins tinham se transformado em adultos que temiam a floresta, com crenças
contrárias à vida na “selva”. Já não sabiam caçar, pescar, correr e guerrear. A depressão
foi um sentimento constante entre nativos aldeados2 distantes de sua vida original.
Contudo, e vale ressaltar, nada dizimou mais a população indígena do que
as doenças transmissíveis, pois milhares de nativos foram mortos pelas relações
que estabeleceram com o homem branco. A gripe, a sífilis e a tuberculose são
exemplos de doenças que se propagaram com a chegada da colonização euro-
peia, visto que a miscigenação fez a troca de bactérias e vírus se multiplicar. O
organismo do nativo assim como do homem ocidental passaram por mutações
devido ao contato com outros ambientes, contudo, essa mutação é uma condição
que leva séculos para acontecer, mas o tempo para que haja uma estabilização
no organismo foi e é o suficiente para o extermínio de uma espécie.
A destruição dos indígenas chegou a reduzi-los a uma população de pouco
mais de 150 mil almas. O interesse de se pensar é que nossa visão do extermí-
nio é sempre ligada à colonização. Contudo, foi depois dela que a violência se
estabeleceu com mais intensidade. O século XIX e início do XX foi o período
de um grande número de extermínio.

2 Não por acaso, quando os aldeamentos tinham notícia da proximidade de uma Bandeira, nativos
abandonavam a missão religiosa e se uniam à expedição vicentina. Quando isso não ocorria, eram atacados
pelos bandeirantes, que capturavam os nativos aldeados para eles se transformarem em escravos dóceis na
mão de colonizadores.

O ENCONTRO COM O INDÍGENA E A PONTE COM A ÁFRICA


273

No século XIX, com as mudanças que levaram ao fim da escravidão e à


implantação das ferrovias para integrar o interior do território às áreas litorâ-
neas, as comunidades nativas que haviam fugido do convívio com o colonizador
foram atacadas. O resultado foi a morte de mais de 1,5 milhões de nativos em 150
anos, o que vai de encontro a nossa compreensão mais superficial de que a morte
dos nativos, em grande quantidade, deu-se nos primeiros séculos de ocupação.
Hoje, segundo levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), o número de indígenas, ou que se define como tal, chega a 734 mil, um
crescimento significativo. Esse crescimento resulta de uma redução do extermí-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

nio, do nascimento de nativos em áreas preservadas, mas, principalmente, da


autoidentificação, pois muitos dos que antes negavam sua origem agora estão
assumindo-a.

PRIMEIROS ENCONTROS E CONFRONTOS

O início da relação entre indígenas e homens brancos foi pacífico, marcada pela
troca de presentes e de carícias. Já na relação inicial, o português seduzido pela
nativa e realizando seus desejos que em Portugal seriam vistos como pecado, com
essa nativa, deu origem ao primeiro brasileiro. O mameluco ou caboclo nasce
desse encontro. Muito do Brasil será povoado por esse elemento. Um encontro
constante que até hoje se dá e faz uma das faces mais importantes do Brasil, a
constante miscigenação.
As bugigangas trazidas nas caravelas encantam. O espelho parece um rio
congelado, um olhar para si mesmo que o nativo não tinha como hábito. Apesar
de vaidoso, de gostar da higiene pessoal tanto quanto da decoração do corpo,
o indígena não tinha o hábito do “amor egocêntrico”, ao qual o europeu estava
habituado, particularidade essa que alimenta ainda hoje as almas dos chama-
dos civilizados.
Nessa troca inicial também foram articuladas as primeiras explorações, como
no caso do Pau-brasil. A madeira extraída, que servia para a confecção de tinta
na Europa, existia em abundância do litoral da Bahia ao Rio de Janeiro. Os nati-
vos foram arregimentados para extrair a árvore em troca das delícias luminosas

Moradores da Terra Brasilis


274 UNIDADE V

e brilhosas que eram os presentes ocidentais. Os índios não entendiam porque


os brancos trocavam tamanha riqueza por árvores. Essa ingenuidade do indígena
diante da ambição portuguesa seria respondida com o extermínio e a apropriação.
O nativo não conseguiria enfrentar o poder material de combate do ocidental.
A violência se propaga quando o projeto colonial se consolida e a ocupação
das terras leva ao combate com os nativos. A resistência desses nativos foi con-
siderável, tanto que várias tentativas de ocupação do território fracassaram. As
capitanias hereditárias instaladas pelos portugueses, com unidades iniciais ao
longo da costa brasileira, tiveram dificuldade ou insucesso. Por esse motivo, o

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governo lusitano instalou o Governo Geral em 1549.
Uma das principais funções dos governadores era conter a resistência indí-
gena e promover o combate daqueles que gerassem resistência. A invasão francesa
(1555), na Baía da Guanabara, foi uma dessas expressões da resistência nativa aliada
ao invasor francês. Interessados em ampliar a crença protestante e se apoderar de
parte do território colonial luso, os franceses huguenotes se lançaram em uma
empresa colonial nos trópicos brasileiros e fizeram dos tupiniquins seus aliados.
As Bandeiras passaram a ter um papel importante para conter as invasões
estrangeiras. Os bandeirantes tinham uma formação com elementos miscige-
nados e que conheciam as técnicas de sobrevivência na floresta, este era o seu
lado indígena. Por outro lado, e ao mesmo tempo, tinham como meta a submis-
são do nativo aos interesses do colonizador, uma ambição típica do ocidental.
Ao longo da colonização, a presença dos nativos foi incorporada no cotidiano,
ou foram colocados em um lugar mais distante, devido à proliferação da escravi-
dão afro nas regiões litorâneas. Assim, esses nativos passaram a uma condição
de marginalidade, porém a chegada da exploração ao interior fez ser inevitável
o contato com o colonizador, o que gerou algo inevitável, o momento de maior
extermínio das comunidades nativas. Também foi o momento de busca para se
conhecer a forma de organização e preservação dessas comunidades.
Os deslocamentos das expedições colonizadoras no interior, a partir de 1870,
geraram uma releitura das comunidades nativas. A organização de novos alde-
amentos no Período Imperial (1822-1889) definia o nativo como um marginal,
ou seja, ele não era considerado um elemento nacional. Ele passa a ingressar a
condição de brasileiro no final do Império e na Primeira República (1889-1930).

O ENCONTRO COM O INDÍGENA E A PONTE COM A ÁFRICA


275

O bandeirante é um mercenário forjado da mistura. Isso era o ingrediente


que lhe dava eficiência, capacidade de agir e conter os indígenas rebeldes,
capturá-los para a escravidão e se apoderar de terras e riquezas do interior.
Ele era o inimigo e o ídolo de muitos nativos. O temor e admiração que o
índio sentia vinha da coragem do bandeirante. Envolvido sempre com aven-
turas, percorrendo o interior do território e colaborando decisivamente para
a expansão da colônia portuguesa, o indígena admirava a eficiência daque-
le que tinha seu sangue nas veias.
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Um dos personagens mais importantes da construção de uma identidade dos


indígenas foi o Marechal Cândido Rondon (1865-1958)3. O militar foi respon-

3 Militar e sertanista, descendente de indígenas, muito sedo órfão, Rondon se dedicou à causa indígena
por dois fatores: sua origem e sua experiência em expedições pelo interior do Brasil. Foi responsável pela
instalação de cabos telegráficos no Mato Grosso, momento em que conheceu e passou a admirar a cultura
indígena. Ele ordenava a não reação aos nativos quando a expedição militar encontrava com os indígenas
ou era atacada por eles. Preservar a vida do nativo, para ele, era fundamental. O Marechal conhecia o sertão
como a “palma da mão”, pois viajava constantemente pelas áreas mais inóspitas. Ele era um bandeirante
moderno.

Moradores da Terra Brasilis


276 UNIDADE V

sável pela criação do primeiro órgão público de proteção ao índio, o Serviço de


Proteção ao Índio (SPI). Também levou indígenas para serem apresentados em
órgãos de decisão e grupos de influência no poder, pois ele queria que os diri-
gentes do país se sensibilizassem com a causa.
A sociedade brasileira também foi constituída pelo elemento indígena. Não
foi só o imigrante ou o abolido o habitante das cidades, os indígenas passaram a
frequentar o ambiente urbano, mas em condição de marginalidade. Não foi por
acaso que a redução das comunidades nas áreas de reservas indígenas foi fla-
grante, pois o contato com o homem branco reduziu significativamente o número

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de pessoas nas áreas de preservação. A fome atinge a reserva indígena e arregi-
menta os nativos à procura de sobrevivência na selva de pedra.

DEFENSORES DA SELVA

O conhecimento sobre as diferentes realidades do país também foi alterado. Os


meios de comunicação permitiram a propagação de ideias, os livros se multiplica-
ram, mesmo (e como sempre) tendo poucos leitores. Muitos destes conhecimentos
vieram das expedições que estrangeiros fizeram no interior do país. Os estrangeiros
foram notados nas viagens para o interior à procura de conhecer a realidade dos
nativos, Lévi-Strauss viajou pelo centro-sul. Antes dele, um brasileiro, Marechal
Cândido Rondon, foi um dos conhecedores profundos do interior, pois condu-
ziu a expedição de Roosevelt pela Amazônia. Além disso, o Serviço de Proteção
ao Índio nasceu do ideal de Rondon (1917).
Também, mais tarde, o Parque Nacional do Xingu foi o resultado do trabalho
dos Irmãos Villas Boas na busca por preservar os nativos e lhes dar condições de
permanência sem ou com pouca interferência do homem “branco”. Conhecer os
nativos foi o que Orlando, Claudio e Leonardo Villas Boas fizeram, com a inten-
ção de preservá-los. Os três foram discípulos do Marechal Rondon e se colocaram
contra as diretrizes estabelecidas pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI),
criada em 1967 para administrar a questão indigenista no Brasil.

O ENCONTRO COM O INDÍGENA E A PONTE COM A ÁFRICA


277

Darcy Ribeiro, um dos principais antropólogos brasileiros, passou a se inte-


ressar pela questão e fez parte do grupo de estudos estabelecido pelos Irmãos
Villas Boas. Ribeiro desenvolveu um trabalho de avaliação dos efeitos civilizató-
rios sobre as comunidades latino-americanas. Em “O Processo Civilizatório”, o
antropólogo retrata esses efeitos e busca compreender a resistência dos nativos e
a riqueza de suas culturas, mesmo diante da interferência da civilização ocidental.
O que estamos demonstrando é o quanto a busca por mapear a localização
dos nativos foi fundamental, visto que a preservação das comunidades tribais
dependeu desses trabalhos, ou seja, da busca por compreender o significado do
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“ser indígena” dentro de uma expansão civilizadora, muitas vezes, inevitável e


destrutiva. A aculturação sofrida pelos nativos é um processo em andamento.
Hoje, ensina-se a língua nativa aos descendentes indígenas, como uma forma de
recuperar a identidade de quem já a perdeu e precisa reencontrá-la.
Atualmente, segundo dados do IBGE, cerca de 320 mil nativos vivem nas
cidades, a maioria em condição de miséria e com baixa qualificação. Por mais que
programas sociais tenham melhorado a condição do nativo, ela está longe de ser
considerada ideal, pois eles ainda são vistos como “preguiçosos”, “mal intenciona-
dos” e “malandros”. O alcoolismo, por exemplo, cresce e acarreta nos nativos uma
devastação do organismo, que não está habituado à ingestão de bebida alcoólica.
Como comentamos anteriormente, na Unidade IV, os nativos se encontram
à margem de sua cultura. Eles, os indígenas, estão sendo educados para resgatar
a sua própria cultura. Os civilizados, os ocidentais, agora se colocam na condi-
ção de educador de valores, rituais, de outras civilizações. A civilização ocidental
tenta resgatar no descendente indígena o gosto por suas origens. No entanto,
muito desse resgate é apenas uma preservação simbólica.
A Constituição de 1988 foi fundamental para ampliar as garantias das comu-
nidades indígenas e lhes dar a condição de preservação de seu próprio espaço.
A própria FUNAI está vivendo uma reorganização, mas com a dificuldade de
garantir o acesso à educação e saúde bem como a estabilização da vida econô-
mica das comunidades nas reservas.
Há uma política de inclusão dos nativos em programas sociais: cotas em
instituições de ensino e ajuda financeira para se sustentarem e se aprimora-
rem, porém, a cultura ainda grita dentro do coração e da mente dos indígenas.

Moradores da Terra Brasilis


278 UNIDADE V

Dessa forma, os que procuram esses benefícios têm dificuldade de se adaptar ao


ambiente das cidades. Sendo assim, o abandono dos cursos superiores pelos indí-
genas se dá, e muito, pela condição em que vivem, isto é, distantes de seu grupo.
Porém, vale lembrar, muitos nativos estão ainda em terras com pouco con-
tato com o homem branco. São mantidos em sua comunidade, vivendo em um
ambiente próximo ao que seus antepassados viviam, mas nem sempre com as
mesmas condições. Qualquer contato dos civilizados com os nativos promove
mudanças e marca o destino das comunidades indígenas para sempre, é a acul-
turação da qual falamos tanto aqui. Não há como evitá-la.

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A tendência é que os nativos venham a se aproximar, cada vez mais, das
comunidades tidas como civilizadas, das populações integradas à economia capi-
talista e dos efeitos da vida ocidental de mercado. Em muitos dos agrupamentos
e reservas, já se percebe o efeito do desejo pelos objetos e símbolos, pois os nati-
vos ainda desejam a troca de suas coisas pelas “coisas” do homem branco. Essa
troca continua desigual e promovendo, lentamente, o afastamento dos nativos
de sua originalidade.

O ENCONTRO COM O INDÍGENA E A PONTE COM A ÁFRICA


279

ENCONTROS ÉTNICOS E A FORMAÇÃO DO BRASIL

A África é a mãe de todas as civilizações, pois lá nasceu o homem que habitou


todos os cantos do Planeta. Foi nas estepes africanas que se iniciou a aventura
da humanidade sobre a Terra. Por interesses dos mais diversos, a humanidade
teve na África seu ponto de partida. O ser humano, que ocupou o Planeta com
deslocamentos constantes, nunca deixou de promover o movimento, o desloca-
mento, a migração. Migrar faz parte da existência humana. A história está lá no
neolítico, há 10 mil anos a.C.
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O desenho do continente africano pode ser estabelecido por dois núcleos de


ocupação que ainda hoje se fazem notar: ao Norte, com a costa mediterrânica e
o contato com a Europa e a Ásia, onde o Egito foi o núcleo de povoamento ini-
cial de migrantes vindos do deserto do Saara e do Sinai. Nesse espaço geográfico,
o Rio Nilo foi o berço de uma das mais antigas civilizações. O outro núcleo, o
Sudão, foi o marco de passagem das áreas de integração mediterrânica com o
comércio intenso de produtos trazidos por caravanas e o interior fundado na
coleta e agricultura rudimentar. Muito dessa África interiorana serviu ao litoral
como fonte de riqueza em forma de produtos e seres humanos.

A escravidão já era praticada entre os africanos. Grupos rivais se utilizavam


dos prisioneiros para servir aos trabalhos agrícolas ou mesmo na prática da
criação de animais. Castas se organizaram no Sudão em torno da incorpo-
ração de civilizações vizinhas aprisionadas. Com o passar do tempo, o reino
sudanês estabeleceu uma hereditariedade de estamentos consolidados.
Muitos desses membros de castas distintas a reproduziram no Brasil colônia,
seja nos quilombos ou mesmos na senzala. Na escravidão que se estabele-
ceu no Brasil não se fez distinção de plebeus ou príncipes africanos.

Encontros Étnicos e a Formação do Brasil


280 UNIDADE V

O contato entre esses dois núcleos, a África sudanesa e o Nilo, foi marcado pelo
comércio entre o Lago Vitória e as regiões do Delta do Nilo. Muitos dos nobres
das dinastias egípcias eram negros e vinham de linhagens do sul do Império. O
comércio de escravos era praticado costumeiramente entre civilizações medi-
terrânicas e o império egípcio.
Fenícios, gregos, cartagineses, sicilianos e persas praticaram o comércio de
produtos egípcios e negociaram escravos em troca de alimentos. Na costa norte
da África, as cidades se multiplicaram como pontos de troca de grande quanti-
dade de bens que vinham do interior do continente. Esse comércio de especiarias

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e pessoas encantou muçulmanos, os quais avançaram sobre o norte africano à
procura de estabelecer seus entrepostos e dominar a orla do Mar Mediterrâneo.
Califas surgiram ao norte e desenvolveram a política de conversão e inte-
gração ao islã. Não por acaso, até hoje, as comunidades do centro-africano se
converteram, assim como, as do norte. Argélia, Nigéria, Marrocos, Egito, Líbia
são exemplos de nações com uma cultura muçulmana aguçada.
No que se refere aos sudaneses, esses foram convertidos ao islã no século X.
Essa conversão se fez refletir no Brasil, mais tarde, quando as revoltas de escravos
na Bahia estavam ligadas aos conflitos entre cristãos e muçulmanos. As chamadas
Revoltas dos Males assolaram a Bahia entre os séculos XVIII e XIX. Assim, ser
islâmico era um ponto a mais da resistência do negro à escravidão, lembrando
que essa cultura islâmica também se expressa nas roupas brancas das baianas.
Mas foi a expansão europeia que ocasionou a maior ruptura na trajetória
do continente africano. A conquista de Ceuta por Portugal (1415) foi o prelúdio
de uma expansão ocidental que se desenha até nossos dias, como afirma Edgar
Morin. Essa ocidentalização levaria à conquista do litoral africano no século XV e,
posteriormente, à sua anexação e divisão ao longo dos séculos XVIII a XX. Nesse
último, a emancipação dos países africanos deixou as marcas do poder europeu.
Na expansão marítima vivida pela Europa nos séculos XIV e XV, a con-
quista do litoral africano implicou novas rotas comerciais e o interesse intenso
sobre produtos. Pedras preciosas, marfim, canela, cravo, pimenta, café e seres
humanos foram alguns dos produtos explorados pelo mercado mundial fun-
dado pela Europa.

O ENCONTRO COM O INDÍGENA E A PONTE COM A ÁFRICA


281

Ao serem trazidos para o Brasil, que absorveu 38,7% dos africanos traficados
para a América, eles perdiam suas origens. Diferentemente dos afros trazidos para
as colônias inglesas na América ou espanholas e francesas, no Brasil se arregimen-
tou um grande número de trabalhadores compulsórios para a empresa açucareira.
Portugal estabeleceu uma rede comercial extensa e sólida de comércio de
escravos. Entre os grupos étnicos trazidos para o Brasil, como escravos estão os
Bantos, vindos do Congo e da costa angolana, comercializados em Pernambuco,
Rio de Janeiro e, durante a mineração no século XVIII, em Minas Gerais. Também
foram trazidos os sudaneses, estes tinham uma conversão ao islamismo e vinham
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da Nigéria, Daomé e Costa do Marfim.


O número de africanos trazidos para o Brasil na condição de escravos ainda é
impreciso, pois os documentos de registro da entrada dos afros são questionáveis.
Mas um levantamento feito pelo IBGE, quando foram completados 100 anos da
abolição (1988), calcula que mais de 4 milhões de africanos saíram de seu con-
tinente para serem trazidos à escravidão, sendo que destes, 667 mil morreram
no caminho. Para se ter uma ideia da desproporção que isso significa, o segundo
destino com o maior número de afros nas américas foi as Treze Colônias Inglesas
(futuro Estados Unidos da América), mas esse número não chegou a 500 mil.
As “peças”, como eram chamados os escravos, tinham, em sua maioria, entre
15 e 30 anos, mas a vida na colônia, dependendo da atividade que esses escravos
desenvolviam, não ultrapassava os 15 anos. Sendo assim, a morte chegava cedo
para a maioria que tinha a vida na roça, destino bem diferente dos que eram
escolhidos pelo senhor para as atividades domésticas.
Desde a aquisição nos portos, onde a compra dos escravos se dava em grande
quantidade pelos senhores, até o rumo traçado na senzala, o destino dos africanos
era marcado pela opressão. Na senzala, onde a vida os faria ser misturados dentro
de um mesmo lugar, havia condições pouco conhecidas por parte considerável dos
brasileiros. Por exemplo, grande parte dos escravos não dominava a língua portu-
guesa e, também, muitas vezes, não falava a mesma língua entre si. Assim, a África
era generalizada como um continente e as pessoas se esqueciam de que dentro dela
há muitas nações e línguas diferentes, por isso, dentro da senzala havia línguas dife-
rentes entre os escravos e muitos não se entendiam. Vale lembrar, que aqueles que
não falavam a língua portuguesa eram chamados de boçais.

Encontros Étnicos e a Formação do Brasil


282 UNIDADE V

A escravidão se expandiu, intensificou-se, com a instalação dos pontos de


escambo portugueses no litoral da Guiné, São Tomé, Príncipe, Angola e, mais tarde,
Moçambique. Inicialmente, os escravos eram comercializados com a população
nativa, responsável por capturar e trazer os prisioneiros para serem embarcados,
ficando em feitorias instaladas na costa, depois capturados pelas próprias empre-
sas portuguesas, criadas para abastecer a demanda de escravos no Brasil.
Vale lembrar que 5,5 milhões de africanos saíram de seu continente para
serem escravizados no Brasil, durante todo o predomínio do tráfico negreiro
(1530-1850). Contudo, chegaram ao continente 4,8 milhões, pois 667 mil mor-

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reram no caminho e seus corpos foram jogados no mar. Os navios negreiros
vinham abarrotados de escravos. O excesso de seres humanos nas embarcações
negreiras era um meio de garantir um bom lucro prevendo a perda de pessoas
capturadas pelo caminho.
Para se ter uma ideia do que significou a construção dessa ponte entre a
África e o Brasil, forjada de sangue, de muitas vidas deixadas como rastro no
Oceano Atlântico, o número de mortos com o tráfico é maior que a quantidade
de afros levada para ser escravizada nos Estados Unidos da América, 472 mil.
38% dos afros que serviram à escravidão europeia foram levados para as terras
brasileiras, por isso, somos o maior país afro fora da África.
O tráfico de escravos se lançou, principalmente, sobre as populações de ban-
tos, angolanos e sudaneses. As guerras tribais entre esses grupos e seus rivais
colaboraram no comércio de escravos. A guerra entre as tribos africanas per-
mitia e facilitava a captura de um grande número de pessoas. A negociação dos
prisioneiros com os europeus passou a ser uma constante. Muitas nações euro-
peias, além de Portugal, praticaram o tráfico – ingleses, franceses e holandeses.
A prática passou a ser uma atividade mercantil lucrativa. Para algumas nações
africanas, era uma fonte de sobrevivência, uma prática que se fez constante, con-
forme o contato com os ocidentais aumentava.
Para Portugal, o tráfico negreiro significou uma das principais fontes de
riqueza, muitas vezes e por muito tempo, sendo mais lucrativo do que o comér-
cio do açúcar. Assim, o produto incentivador do tráfico para o Brasil não foi tão
lucrativo e eficiente, enquanto prática mercantil, quanto foi o comércio de seres
humanos.

O ENCONTRO COM O INDÍGENA E A PONTE COM A ÁFRICA


283
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Depositados nos navios negreiros, separados por homens adultos, crianças e


mulheres, com uma alimentação rala e suficiente para não promover a morte pre-
matura, os afros eram desembarcados nos portos já pré-selecionados, para evitar
que permanecessem unidos parentes e membros da mesma nação. Assim, quanto
mais diversificado fosse o lote a ser vendido pelos agenciadores nos portos, mais
facilmente os escravos poderiam ser domesticados nos engenhos. No entanto, nem
sempre essa tática funcionou, pois, em muitos casos, gerou malefícios para o senhor.
Na venda para os senhores, as chamadas “peças” eram compradas por lotes,
alguns com dezenas de escravos. “Senhores de cabedal e poder”, como afir-
mou Antonil, tinham centenas de escravos trabalhando em suas terras. Em
Pernambuco, por exemplo, um engenho de grande porte poderia chegar a ter
300 desses escravos trabalhando em sua unidade. Usados para todos os fins, eles
eram “as mãos e os pés” dos senhores de engenho e espalhavam-se pela uni-
dade produtiva em todas as atividades: na colheita, na indústria açucareira e no
ambiente doméstico. Serviam ao senhor de todas as formas, por isso, no enge-
nho, na casa grande e na senzala se formou muito do Brasil.
Nas vendas de escravos comprados ainda no porto, nas casas de leilão, orga-
nizadas pela empresa que monopolizava o comércio, o senhor se interessava pelos
mais diferentes tipos de seres humanos apreendidos na África. Analisados por
especialistas para identificar idade e saúde, capacidade muscular, os escravos eram
selecionados dependendo da atividade que iriam exercer na propriedade do senhor.

Encontros Étnicos e a Formação do Brasil


284 UNIDADE V

Os homens jovens e com musculatura menos avantajada, mas mais resis-


tentes ao trabalho diário, eram preferidos. Ou seja, o angolano, o moçambicano,
os bantos (que hoje são os vencedores das maratonas que assistimos, com um
olhar estranho, frequentemente na televisão, perguntando-nos o porquê sempre
eles ganham as corridas de longa distância) herdaram a capacidade de resistên-
cia física de suas origens.
Da mesma forma, os senhores os compravam para o trabalho na lavoura,
contínuo, estafante, de sol a sol. A exploração do trabalhador escravo foi utili-
zada para inúmeras finalidades dentro do território colonial. No espaço onde se

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estabeleceram as plantações de açúcar ou o engenho, na casa grande, o trato e o
uso do escravo tiveram os diversos fins. As mulheres escravas que eram novas,
por exemplo, também eram usadas na lavoura, porém, algumas eram colocadas
no serviço doméstico. Com algumas delas, o senhor teve seus filhos mulatos, os
quais carregavam no próprio nome o preconceito, o desrespeito, a condição a
que seriam subordinados nas dependências do engenho. A palavra “mulato” vem
de mula, animal que é fruto do cruzamento do jumento com a égua. A mula é
estéril pela própria condição de formação. Dessa forma, o senhor se considerava
um ser humano, a escrava um ser inferior, o filho, resultado desse “cruzamento”,
é um ser sem identidade.
Mas todas as miscigenações que se estabeleceram na colônia foram marca-
das por termos pejorativos. Se formos considerar o “mameluco”, filho do branco
com a índia, o termo vem do uso dos jesuítas e é uma redefinição para o indígena
traidor que lutava ao lado do bandeirante. Já o termo “cafuzo”, mistura do índio
e do negro, é considerado uma designação de indolência. Para concluir, ser bra-
sileiro também é uma forma de dar rótulos discriminatórios aos seres humanos
que ocupam esse território. Quase todas as palavras que terminam com sufixo
“eiro” são relacionadas à profissão ou ação de pouco valor ou de comportamento
desprezível: sacoleiro, muambeiro, maconheiro, trambiqueiro, cambalacheiro e,
também, o ser brasileiro.
O mulato, filho do senhor e da escrava, crescia no engenho com outras
crianças, tinha sua infância junto com os filhos dos escravos negros e do senhor.
Brincar era também exercitar o mando da escravidão. Os mesmos “amigos” de
infância seriam mais tarde divididos pelo mando de um sobre os outros. Porém,

O ENCONTRO COM O INDÍGENA E A PONTE COM A ÁFRICA


285

a discriminação recaía mais sobre o mulato, o fruto do encontro negado entre o


branco e o negro. Esse mulato apanhava e era motivo de escárnio, por isso, sua
raiva por ter uma parte negra e não ser branco o acompanharia pela vida. Na
fase adulta, receberia do pai ou do meio irmão a chibata, seria nomeado o “capi-
tão do mato” e poderia exercer a raiva de seu lado negro, branqueando-se a cada
golpe sobre o lombo do escravo e lamentando a mãe que tinha.
A ironia de ser a mãe do mulato é ter que amamentar, muitas vezes, e dar
carinho materno ao filho do senhor com a senhora branca. O “sinhozinho”, filho
do senhor de engenho, branco, que se apega à mãe preta, mãe de cria, por ter
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lhe dado carinho, os gostos pelo cafuné (como a índia lhe fará o alimento sabo-
roso), cantará para ele dormir e, mesmo depois de tudo isso, será negado a ela
sentar-se com o senhor à mesa. Essas contradições se preservam na condição
de muitos dos mulatos e negros elevados na sociedade, pois nossos heróis afro-
descendentes nem sempre souberam lidar com sua origem.
Machado de Assis, por exemplo, era mulato, assim os amigos o chamavam
quando se encontravam na casa do mais importante autor da literatura brasileira.
Porém, Machado proibia que o chamassem pelo apelido nos encontros sociais. É
interessante ressaltar que, nas festas da corte, era convidado, pelas filhas do impe-
rador, a dançar, pois tinha dificuldade em encontrar parceiras, e pela boa educação
das filhas do monarca, exigia-se o esforço por parte delas dançarem com “o” mulato.
O maior literário brasileiro casou-se com uma mulher branca. Sua mãe que o criou,
negra, ele visitava sempre sozinho, aos domingos, na periferia do Rio de Janeiro.
Muitos dos nossos mulatos bem-sucedidos ainda fazem isso, tentam se branquear.
Suas origens os incomodam, pois eles compraram o discurso de desvalorização que
o branco lhes impôs. O branqueamento legitima a violência do mulato de farda con-
tra o negro ou mulato periférico. Por exemplo, em determinados momentos, ainda
na Primeira República, as forças armadas, os aparatos de segurança, tinham uma
grande quantidade de mulatos em suas fileiras, prontos para bater, exercer sua auto-
ridade subalterna, mas que permitia atos de branqueamento mediante a violência.
Também houve a resistência, a busca por negar a condição de escravo e fugir
do mando do senhor. Ela se propagou pelos quilombos, formas de organização
em comunidades que ainda persistem em diversos estados brasileiros, as quais
passaram a ser protegidas por lei.

Encontros Étnicos e a Formação do Brasil


286 UNIDADE V

OS QUILOMBOS

A resistência em relação ao trabalho escravo, no Brasil colônia, teve diversas for-


mas de expressão, por exemplo, a resistência dentro dos engenhos (a busca de
envenenar o senhor foi uma dessas tentativas). Mas esse temor à resistência dos
escravos foi maior ainda nos primeiros tempos da escravidão, por mais que esti-
vesse presente em todo o período em que o trabalho escravo existiu.
Talvez por uma ironia do destino, a vida alimentar do senhor de engenho foi
de responsabilidade da escrava - a principal cozinheira, senhora dos alimentos da

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colônia. A escrava que, por muitas vezes, era também um objeto de uso do senhor,
com seu consentimento ou não, foi quem deu a ele o gosto pela alimentação. Se
“envenenou” o senhor, foi mais com seus encantos do que desejando a morte dele.
Mas foi o quilombo a forma de resistência mais conhecida. As comunidades
quilombolas existem, hoje, em praticamente todas as partes do território bra-
sileiro. São registros vivos da resistência dos afros ao processo de escravidão e
uma forma de eles reproduzirem as características de sua herança cultural tra-
zidas da África, as quais permaneceram reeditadas em condições adversas na
colônia. A existência do trabalho escravo nos quilombos, durante o período colo-
nial, foi uma dessas expressões.
Os quilombos se constituíram como um núcleo de resistência em diversas partes
do território brasileiro. Concentraram-se em maior escala nas porções territoriais
onde o processo colonizador foi mais intenso, na região nordeste principalmente.
Em Alagoas, a formação do Quilombo de Palmares é um marco na resistên-
cia das comunidades marginais em relação à sociedade colonial, mas também
uma alternativa de convivência coletiva. Palmares abrigou não só escravos que
fugiam das lavouras extensivas ou engenhos, mas também brancos e indígenas,
fugitivos ou não. O fato comum é que todos eram marginalizados ou buscavam
uma alternativa de sobrevivência.
Os quilombos recuperaram muito da cultura afro em territórios onde a cul-
tura ocidental foi negada. Não podemos esquecer que a forma como a captura
dos afros e o tráfico foi organizada buscou eliminar a identificação dos africanos
com as suas comunidades de origem, pois esses africanos tiveram suas famílias
separadas e foram separados também de suas comunidades e dos membros dela.

O ENCONTRO COM O INDÍGENA E A PONTE COM A ÁFRICA


287

Não podemos esquecer, como falamos anteriormente, que o continente africano


tem uma diversidade imensa de grupos étnicos, muitas línguas, formações eco-
nômicas, organizações religiosas e estamentos sociais e esse ambiente diverso se
reproduz no Brasil. Portanto, nos quilombos não foi diferente.
Quando dominados por grupos étnicos que tinham a escravidão em sua
origem, os quilombos chegaram a reproduzir a servidão ou o trabalho escravo
diante de membros de castas inferiores de sua própria comunidade. Em deter-
minadas regiões, os formadores de quilombos eram ex-escravos, que utilizaram
a mesma forma de trabalho a que foram submetidos: a escravidão. Também,
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pequenos produtores utilizaram o escravo e organizaram sistemas cooperati-


vos em comunidades agrícolas onde socializavam esse tipo de mão de obra. As
regras para muitos serem livres eram ser fugitivos e se refugiarem nos quilom-
bos. Assim, aqueles que eram pegos nos engenhos como escravos permaneciam
nessa condição até trocarem sua liberdade pela de outro ou por outro escravo
capturado nos engenhos.
Em Minas Gerais, no século XVIII, o trabalho escravo nas minas fez com que
se agrupasse um grande número de quilombos. Esses quilombos tinham os mais
diferentes tamanhos. Um dos mais famosos foi o de Campo Grande, na região
das Gerais, nele havia uma organização complexa, com estabelecimento de uma
aristocracia e de uma rede de obediência ampla e diversificada. Isso demonstra
que generalizar os quilombos é uma simplificação perigosa4.
Apesar de se multiplicarem, não há relação entre eles, pois são o resultado de
resistências isoladas, marcadas por fatores localizados sem uma construção de um
código comum. Em regra, as comunidades quilombolas duraram pouco e sofreram
duras repressões. As que se mantiveram por mais tempo dependeram de uma orga-
nização complexa e uma condição econômica que gerasse atividade permanente.
Porém, o mais importante quilombo da história brasileira foi Palmares.
Localizada em uma extensão da Capitania de Pernambuco, em meados do século

4 O Quilombo do Campo Grande, em Minas Gerais, tinha práticas de ataque a caravanas e tropas que
vinham com uma grande quantidade de ouro. Os saques a essas tropas eram a forma de obter recursos para
a manutenção do quilombo, mas também acumular riqueza e garantir a permanência das castas dentro
dos territórios quilombolas. Há os que associam essa prática à resistência das periferias no Brasil. Assim,
os ataques feitos a bairros de melhor renda, pilhagens e resistência urbana seriam uma expressão do que os
quilombos praticaram no passado.

Encontros Étnicos e a Formação do Brasil


288 UNIDADE V

XVII, hoje no atual estado de Alagoas, a comunidade quilombola foi formada


por escravos fugitivos dos mais diferentes engenhos do nordeste. No entanto,
um fato foi determinante: a invasão holandesa em Pernambuco, pois as guerras
com os invasores e os ataques aos engenhos geraram uma instabilidade provi-
dencial para permitir que os escravos fugissem.
Dividida em diversas comunidades, sendo Macaco a principal, Palmares
agrupou cerca de 20 mil habitantes, os quais se dividiam em pessoas responsá-
veis pela produção e coleta, caçadores e guerreiros. Esse quilombo formou uma
prática de troca para poder manter as condições de sobrevivência da sua comu-

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nidade. Zumbi foi seu principal líder e Palmares durou mais de 100 anos.

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289
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A derrota do Quilombo de Palmares aconteceu mediante uma estratégia típica


dos bandeirantes durante o período colonial: contaminar roupas e propagar a
gripe em meio aos nativos, para minar a comunidade pela doença. Essa é uma
prática que dizimou uma grande parte dos nativos e dos quilombos, uma ação
dos bandeirantes liderados por Domingos Jorge Velho.
Resistir é uma constante e o que Palmares demonstrou foi essa capacidade.
A formação dos quilombos se deu em todo o período no qual a escravidão foi a
principal força de trabalho no Brasil. Com a abolição, e mesmo antes dela, um
grande número de libertos migrou para os núcleos urbanos e passou a viver nas
áreas periféricas. A marginalização se associa à cor e as condições de pobreza
alimentam a discriminação. Muitas das lutas e marginalizações que temos em
nossos dias são o resultado do que começou na senzala. A violência que o tra-
balho escravo gerou continuou nas cidades brasileiras com a exploração de um
grande número de pessoas, as quais vivem em condição marginal.
O escravo foi “as mãos e os pés” dos senhores de engenho, como retratou
Antonil. A violência praticada pelos senhores deveria ser ponderada para se evi-
tar uma agressão em demasia que viesse a deixar o negro incapaz. A análise desse
jesuíta, contudo, é considerada uma das melhores descrições das atividades eco-
nômicas coloniais, pois demonstrou o poder do senhor de terras e de escravos,
dando destaque para o senhor de engenhos.

Encontros Étnicos e a Formação do Brasil


290 UNIDADE V

André João Antonil (1649-1716) foi um jesuíta italiano, por mais que passou
parte considerável de sua vida em Salvador. Amigo do Padre Vieira, o qual o
convidou a vir para a Bahia, ele discordou em muitos pontos do parceiro de
Ordem. A questão da escravidão dos nativos foi um dos pontos de discórdia
entre eles. Porém nunca romperam sua amizade por isso. A maior obra de
Antonil foi Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas. Neste tra-
balho, o padre jesuíta descreve a economia e a sociedade do Brasil colônia,
em especial as relações econômicas e o poder dos senhores de engenho.

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A EXPANSÃO DO ESCRAVISMO NAS DIVERSAS PARTES DO BRASIL

Inicialmente, a escravidão dos afros se instalou no nordeste brasileiro, mas se


espalhou, ao longo da colonização, por outras regiões. O sudeste foi a que deteve
o maior número de escravos após as regiões produtoras de açúcar. Um dos fato-
res para esse crescimento foi uma ampliação da empresa colonial. Sendo assim,
pode-se dizer que a mineração, na região sudeste, foi a grande motivadora da
propagação do escravismo pelo interior e a responsável por fazer de Minas Gerais
um estado negro no coração do Brasil, visto que esse estado é a esquina onde as
raças se encontraram e geraram um ambiente rico em cultura.
Em Minas, principalmente, a cozinha foi marcada pelas mãos das africanas,
as quais trabalharam o feijão, temperaram a carne de galinha de angola e usa-
ram de forma eficiente os temperos, assim como o azeite do senhor. O sabor do
Brasil é feito dessa capacidade de multiplicação cultural realizada pelo alimento.
Em Minas Gerais, essa condição fica nítida, assim como na Bahia.
A mineração fez ampliar a presença do afro e a miscigenação no Brasil.
Também, fez multiplicar as unidades produtivas pequenas, onde negros alfor-
riados se constituíram como proprietários de suas próprias terras. Alguns desses
negros emergiram na sociedade e reproduziram o que tinham aprendido com
seus senhores ou traziam de suas origens: a escravidão.
Com a implantação dos cafezais no Rio de Janeiro, em São Paulo, no Espírito
Santo e, também em Minas Gerais, o escravo continuou sendo usado como
força de trabalho, mas a escravidão perdeu sua intensidade com o fim do trá-
fico negreiro em 1850. Lentamente, durante 38 anos, o processo de abolição foi

O ENCONTRO COM O INDÍGENA E A PONTE COM A ÁFRICA


291

organizado sem acarretar prejuízos aos senhores, mas marcado por uma pro-
funda discriminação do negro.
A imigração europeia foi a solução para a crise de mão de obra que se ins-
talou com a falta de trabalhadores para a expansão das lavouras de café. A lenta,
gradual e discriminatória abolição deixou os afros na periferia econômica. Como
saída, muitos migraram para as cidades à procura de trabalhos alternativos, fazer
o “bico” ou “biscate”.
A discriminação aumenta exatamente nesse momento, na hora em que a
liberdade chega sem gerar condições para que se alterasse a condição de explo-
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ração nas relações de trabalho. O negro sofreu a violência constante do senhor,


mesmo depois de liberto. Nas cidades, onde migrou, vivia a humilhação, o que
se reproduz, de certa forma, nos números da violência até nossos dias.
Desqualificados, em sua maioria, os negros conviveram com ambientes insa-
lubres de trabalho. Desde a escravidão, no Rio de Janeiro, por exemplo, eram
os que levavam os tonéis de fezes, segurados ao corpo por tiras de couro, das
casas grandes até o mar, para ser despejado o conteúdo. Dessa forma, a acidez
do dejeto branqueava, ironicamente, sua pela, deixando-os rajados como “tigres”,
como eram chamados.
Quando o saneamento chegou à casa do senhor, não chegou à periferia habi-
tada pelo afro (a favela), a qual, para muitos, era a extensão da senzala. No mercado
de trabalho, a qualificação do negro dependeu sempre de políticas públicas que
nunca chegaram a ele da mesma forma que foi estabelecida para a elite branca.
Ainda é possível perceber os resultados dessa condição, pois, hoje, a remu-
neração de um homem branco que cumpra a mesma função de um negro é
superior em 56%. Se compararmos uma mulher negra ao homem branco, a dife-
rença chega a 98%, segundo dados do IBGE divulgados em 2005. Além disso, a
maioria das crianças que trabalha ilegalmente no país é negra ou parda.
A violência cotidiana também denuncia a manutenção da desigualdade. O
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) expõe que, em 2011, a taxa
de homicídios da polulação negra foi 35,2 por 100 mil habitantes, taxa 9% acima
do que a observada cinco anos antes, quando foram registrados 29.925 casos, ou
seja, 32,4 por 100 mil habitantes.
Ressalta-se que, ao mesmo tempo em que negros ficaram mais vulneráveis à

Encontros Étnicos e a Formação do Brasil


292 UNIDADE V

violência nesses cinco anos, a taxa de homicídios da população branca caiu 13%,
ao passar de 17,1 por 100 mil habitantes, em 2006 (15.753 em número absoluto),
para 14,9 por mil, em 2011 (13.895 casos).
Logo, fica evidente que todo histórico da escravidão tem sequelas, e isso
comprova que o que assistimos nos noticiários tem origem. Resta saber como
trabalhamos com esses dados e qual é o significado que eles têm e terão na his-
tória da sociedade brasileira.

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Na reportagem Três momentos da falsa democracia racial no Brasil, a jornalista Larissa Ve-
loso fala sobre três momentos de preconceito no cotidiano brasileiro. Ela aponta aque-
las atitudes pequenas que deixam marcas profundas e minam o discurso da democracia
racial. Leia, a seguir, um pequeno trecho:
Na rua
Nesta semana, conheci um cara numa mesa de bar. Ele tem 19 anos, é negro, alto, não
diria que é forte, mas tem um porte físico bem grande. É também incrivelmente simpá-
tico e um pouquinho nerd. Como ele mora num bairro vizinho ao meu, perguntei como
ele voltaria para casa. “A pé”, ele disse. Eu me admirei: “Nossa, eu não tenho coragem de
voltar a pé para casa à noite, vivo com medo de ser assaltada. Mas isso realmente não
deve ser problema para você” (eu não passo dos 1,60m, e ele tem mais de 1,80m fácil).
Ao que ele respondeu: “Bom, eu tenho um certo medo sim. Mas o pior nem é isso. O pior
é quando as pessoas têm medo de mim”.
Então ele me contou os diversos episódios no qual as pessoas atravessavam a rua quan-
do o viam vindo em sua direção. Ou quando apressam o passo quando ele se apro-
ximava. “Ontem mesmo eu estava descendo a minha rua, ouvindo música no fone de
ouvido, todo feliz, quando vi uma velhinha com uma criança mudarem de calçada para
me evitar. Cara, isso é algo que estraga o seu dia. Já cheguei a chorar por coisas desse
tipo”, desabafou.

Disponível em: <http://www.eleconomistaamerica.com.br/reportajes-en-eAm-br/noticias/5558717/02/14/


Trs-momentos-da-falsa-democracia-racial-no-Brasil.html#Kku8sa2XeZISjIgA>. Acesso em: 24 maio 2014.
294 UNIDADE V

A grande maioria dos brasileiros tem dificuldade em compreender a ques-


tão do afro em sua totalidade. Sempre associamos nosso passado africano
exclusivamente à escravidão. Mas há muito mais da “África” entre nós. Por
que não conseguimos perceber onde estão nossos traços africanos com
tanta facilidade quanto os valores ocidentais? Onde deveríamos apreender
que somos o “maior país afro fora da África?”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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A violência continua e a consciência ainda não se fez da forma necessária. Estamos
ainda longe de rompermos o preconceito, pois ele está enraizado. Uma das for-
mas para conseguirmos buscar meios de consolidar a sociedade de encontro que
somos é a razão científica. Ou seja, conhecermos a história dos elementos que
nos formam, dedicarmo-nos a agir em prol da verdadeira inclusão, romper com
a desigualdade econômica e desassociá-la da questão da raça.
Somos ainda embebedados pela nossa busca de branquear, pois aquele sen-
timento que moveu intelectuais como Oliveira Viana ou Plínio Salgado ainda
encanta muitos ao retratarem o Brasil. Ou seja, ainda temos o sonho de esquecer
nossa mãe afro-indígena, mas ela existe e é a nossa melhor parte. Desse modo,
compreender de onde viemos sempre nos dá lucidez para tratar dos problemas
que enfrentamos, é o que a Antropologia no Brasil tem descoberto.
Ações educativas estão sendo feitas nesse sentido. Uma das questões impor-
tantes que se discute é a inclusão de afrodescendentes e indígenas no âmbito
educacional. As cotas raciais podem não ser uma resposta duradoura, se não
forem acompanhadas de outras ações, como: a busca de uma efetiva melhora de
renda e de empregabilidade, a inclusão pelo trabalho e pela construção de uma
dignidade de origem. Afinal, somos afros e indígenas, mais do que pensamos. Não
podemos nos apoderar da herança cultural deixada por raízes que nos explicam
tão bem e denunciam o porquê de sermos uma diversidade e não um padrão.
Na educação, medidas foram tomadas para que o ensino da história e cultura
afro fosse resgatado, mas pouco material está disponível para isso. O cumpri-
mento do Artigo 11, das Leis e Diretrizes Básicas da Educação afirma:

O ENCONTRO COM O INDÍGENA E A PONTE COM A ÁFRICA


295

Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, pú-


blicos e privados, é obrigatório o estudo da história geral da África e
da história da população negra no Brasil, observado o disposto na Lei
9.394/1996 (BRASIL, 2012).

Em seus principais pontos, o artigo considera:


1o  Os conteúdos referentes à história da população negra no Brasil
serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, resgatando
sua contribuição decisiva para o desenvolvimento social, econômico,
político e cultural do País.

2o  O órgão competente do Poder Executivo fomentará a formação ini-


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cial e continuada de professores e a elaboração de material didático


específico para o cumprimento do disposto no caput deste artigo.

3o  Nas datas comemorativas de caráter cívico, os órgãos responsáveis


pela educação incentivarão a participação de intelectuais e represen-
tantes do movimento negro para debater com os estudantes suas vivên-
cias relativas ao tema em comemoração (BRASIL, 20012).

Porém, a Lei ainda é só um sonho, uma expectativa. A cada tempo, a cada dia,
podemos realizá-la ou simplesmente transformá-la em letra morta. Nossos atos
vão construindo o caminho que nos aproxima ou nos afasta desse ideal. Com
este livro, pretendemos contribuir para alcançarmos esse objetivo.

Considerações Finais
1. Há uma discriminação latente na sociedade brasileira. Essa discriminação tem
origem em nossa formação, mas como identificá-la no passado e descobrir
sua expressão na atualidade? Essa questão deve ser o ponto de referência
para a produção de um texto que leve em consideração a formação brasileira
com a participação do afro-indígena.
2. A África é um continente pouco conhecido por nós. O que ela representa? Uma
incógnita. Porém, faz-se necessário conhecer o quanto temos que aprender so-
bre o continente africano para entendermos nossa própria origem. Pontue o
que há de afro na cultura brasileira e como isso foi formado nas relações
sociais que formaram o Brasil.
3. Vários quilombos se espalharam por vários territórios como resultado de resis-
tências isoladas, com características próprias dos locais e das condições em que
foram criados. Sobre algumas características dos Quilombos que se formaram
no Brasil desde o período colonial, leia as afirmações abaixo e assinale a al-
ternativa correta:
I. - Os quilombos foram responsáveis em muitos casos, por realizarem um res-
gate da cultura afro em muitos territórios onde a ocidentalização foi negada.
II. – A escravidão era uma prática entre muitos povos africanos e chegou a ser
reproduzida nos quilombos.
III. – O continente africano tem uma diversidade imensa e nos quilombos, que
reuniam vários grupos étnicos, essa diversidade esteve presente.
IV. – As comunidades quilombolas em geral tinham características bem pareci-
das, portanto, podemos afirmar que mesmo espalhados pelo Brasil possuí-
am a mesma formação e práticas semelhantes.
É correto apenas o que se lê em (enumere somente uma opção):
a. ( ) I e II.
b. ( ) II e III
c. ( ) I, II e III.
d. ( ) I, II e IV.
e. ( ) II, III e IV.
MATERIAL COMPLEMENTAR

Brasil: Afro-Brasileiro
FONSECA, Marina Nazareth Soares
Editora: Autêntica
Sinopse: “Brasil Afro-Brasileiro” é o livro organizado por Maria Nazareth Soares
Fonseca. Um trabalho que busca pesquisas e análises sobre a formação afro
no Brasil. Vários dados surpreendem por demonstrarem o quanto somos
uma ponte com o continente africano. O país, carente de pesquisas sobre
nossa negritude, tem aqui um bom exemplar que resgata origens e dilemas
cotidianos.
A simbologia brasileira, as palavras e os lugares, a história e os dados
contemporâneos ajudam a desenhar o que somos: uma mistura.

Macunaíma
Baseado na obra de Mário de Andrade, Macunaíma (1969) relata a aventura
do personagem que é o herói brasileiro, o mito da construção do Brasil.
Marcado por uma origem de deuses nórdicos-afro-indígena, Macunaíma é
coisa nenhuma e todos nós. O herói, Macunaíma, sai em suas aventuras e,
nelas, gera as comidas, os relevos e, até mesmo, o futebol. Um bom começo
para se pensar, com uma obra da Semana de Arte Moderna de 1922, o que é
a busca de ser brasileiro e nossos múltiplos lados.

Material Complementar
299
CONCLUSÃO

A Antropologia é uma ciência consolidada, pois não há mais a crise de objeto de


pesquisa que a norteou durante sua trajetória. Ela está mergulhada na análise da
sociedade que a gerou. Desse modo, o que antes era um instrumento da Civilização
Ocidental para conhecer as civilizações dominadas pela expansão, passa a conhecer
o conquistador. Por isso, ela é a ciência mais completa e está em um diálogo cons-
tante com a História e a Sociologia. Sendo capaz de transitar entre as duas áreas de
conhecimento, resgata elementos que escapam das duas ciências irmãs.
Na defesa de um universalismo entre as ciências humanas, a Antropologia é a de-
monstração mais fiel do rompimento definitivo das fronteiras do academicismo
conservador e temeroso de se ter o objeto de estudo invadido. As fronteiras tradi-
cionais dos campos de conhecimento devem ser rompidas.
Superada essa etapa de nascimento, a Antropologia tem que ser entendida em sua
raiz como o resultado da própria ocidentalização. Essa ciência não poderia ter nas-
cido de outra forma, pois ela foi a crise de consciência que a nossa civilização sofreu
diante da dominação e do extermínio de inúmeros povos que atravessaram o ca-
minho da ocidentalização planetária. Depois de duas guerras mundiais, a Antropo-
logia buscou alternativas na figura de seus mais ilustres pesquisadores, Franz Boas,
Nicolau Malinowski, Claude Lévi-Strauss e Roge Bastide, os quais saíram da Europa
e buscaram, em outras civilizações, uma alternativa para o olhar sobre si mesmo.
A Antropologia tornou-se preocupação de intelectuais em diversas partes do mun-
do. No Brasil, Gilberto Freyre inaugurou uma visão original, regional e apegada às
nossas diferenças tão negadas por tantos intelectuais. Assim, a brasilidade passa a
ser tema corrente entre pensadores brasileiros a partir do início do século XX.
Movimentos nacionalistas sempre estiveram em busca de suas raízes. Ao vasculhar
o passado, chegamos a conclusões de quem somos. Assim, alguns podem até con-
siderar a Antropologia a responsável pelos nossos problemas, mas a compreensão
de sua função para a formação do Brasil, por aqueles que entenderam o sentido dos
encontros que se deram em nosso território, superou esse olhar míope de desamor
por quem nos gera. Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Junior, Florestan Fer-
nandes, Celso Furtado e Darcy Ribeiro são alguns dos contribuintes para um olhar
maduro dos brasileiros sobre o Brasil.
No encontro entre as raças formadoras da sociedade brasileira (o branco, o negro
e o índio), duas dessas raças ainda lutam pelo reconhecimento de suas marcas na
formação de nossa identidade. A educação é um importante instrumento para isso,
para superar o preconceito e afirmar a racionalidade em nossa identidade.
A trajetória dos indígenas dentro de nossa formação é romantizada. Sua presença
em nossas vidas é pouco conhecida. Por isso, combater a desinformação é funda-
mental. Para isso, apresentar as condições em que as comunidades indígenas vivem
em nossos dias e a trajetória que as levaram as condições atuais é essencial.
CONCLUSÃO

Encerramos este livro com um olhar sobre a África, reconhecendo nossa “ponte so-
bre o Atlântico”. Somos um país com profundas raízes africanas. É importante nos-
Lembrarmos que os escravos não são fruto de um tráfico, de uma civilização pa-
dronizada, generalizada em nossas mentes. São muitas as nações africanas, muitas
civilizações e histórias distintas. Saber como elas se formaram é buscar pelo olhar
diferenciado que nos leva a uma ação consciente. Este livro buscou descrever um
pouco a história da África e a escravidão como instituição. Esperamos ter alcançado
com êxito nossos propósitos.
301
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RUSSEL, Bertrand. História do Pensamento Ocidental: a aventura das ideias dos
pré-socráticos a Wittegenstein. Tradução de Laura Alves e Aurélio Rebello. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2001.
TEYSSIER, Paul. História da Língua Portuguesa. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
TURNER, Frederick W. O espírito ocidental contra a natureza: mito, história e as
terras selvagens. Tradução de José Augusto Drummond. Rio de Janeiro: Campus,
1990.
WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 5 ed. Rio de Janeiro: LTC, 1982.
WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito Capitalista. Tradução de José Marcos
Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
305
GABARITO

UNIDADE I

1. Segundo Aguiar (2014, p. 22), “as ocupações territoriais desenhadas ao longo da


história humana podem ser analisadas em muitos aspectos. Falar das necessida-
des econômicas, entender os rituais, a cultura que tem em si o estímulo a buscar
‘além do horizonte’. A migração é uma constante social”. Assim, o aluno deverá
nortear suas considerações analisando as necessidades econômicas e anseios
oriundos das cargas culturais ocidentais para entender a expansão ocidental.
2. Para essa questão, espera-se que o aluno trace paralelos entre o conteúdo pre-
sente na Unidade I do livro didático e a realidade em que vive. Como exemplo, o
aluno poderá dissertar sobre o racismo, xenofobia, homofobia, etc.
3. (a) O desenvolvimento das práticas mercantis intensificou o contato entre as
pessoas e destruiu muitas fronteiras entre as civilizações, no entanto, muitas fo-
ram reconstruídas com bases nas novas relações estabelecidas.

UNIDADE II

1. Segundo Aguiar (2014, p. 77), “há de se considerar Hegel, o teórico alemão, fun-
dador de uma dialética histórica que influenciou parte considerável dos pensa-
dores alemães, entre eles Marx. Ele considera que se faz necessário compreender
o desenvolvimento das civilizações por meio do potencial que se constrói da
relação do homem com a natureza, de sua concepção de si mesmo e de sua ma-
turidade racional, gerando a superioridade de determinadas civilizações sobre
outras. Para Hegel, por exemplo, determinados grupos humanos que se encon-
tram em estágios primários, povos africanos e americanos, estão apartados do
progresso civilizador, estão fora de qualquer capacidade de contribuição para a
evolução humana” (apud LAPLANTINE, 2000, p. 51).
Ademais, o aluno deverá atentar-se à concepção de ciência e de seu objeto, o
homem, oriundas de vertentes como o positivismo e a estruturalista. Tais corren-
tes defendiam o estudo do homem em sociedade tal qual o estudo da natureza,
assim, as mesmas regras metodológicas foram aplicadas e disso derivaram con-
clusões como a concepção evolucionista da História.
2. Resposta presente no tópico “A QUESTÃO DA EMANCIPAÇÃO DO EVOLUCIO-
NISMO E A FORMAÇÃO DE UMA ANTROPOLOGIA FUNDADA NA PESQUISA
PARTICIPATIVA” (AGUIAR, 2014, p. 93).
3. c) I, III e IV.
GABARITO

UNIDADE III

1. Segundo Aguiar (2014, p. 134), “uma crise se instalou na Antropologia quando


o processo de mundialização da produção se ampliou. Após as duas grandes
guerras mundiais (1945), intensificaram-se os meios de integração da economia,
das relações, das migrações, dos produtos, dos símbolos. Os meios de comunica-
ção tiveram nessa integração um papel crucial. Cada canto do mundo se tornou
uma parte integrante de um caleidoscópio que se movimenta e gera mudanças
diversas dentro de uma engrenagem planetária. Nem todos são ligados a ela da
mesma forma, mas com maior ou menor intensidade recebem seus efeitos”. As-
sim, novos objetos e temas passaram a compor o estudo antropológico, dentre
eles, os dilemas do próprio ocidente na contemporaneidade.
2. Para Aguiar (2014, p. 165), “se observarmos toda a construção simbólica em tor-
no do bem de consumo e da prática de consumir vamos entender a reflexão
que Jean Baudrillard (1995) desenvolve sobre a transformação do homem em
objeto”.
3. d) ( x ) I, II e III.

UNIDADE IV

1. Foram várias as formas de resistência, desde alianças com outros colonizadores


(Confederação dos Tamoios) até greves gerais, ocorridas desde os tempos do sis-
tema escravocrata no Brasil. Resposta presente no tópico RESISTÊNCIA SOCIAL
NOS PRIMEIROS TEMPOS (AGUIAR, 2014, p. 203).
2. Nessa questão é possível fazer uma análise que contemple a gênese de algumas
práticas abusivas e corruptas na política brasileira. O aluno poderá mencionar
que tais práticas, já comuns em Portugal, foram trazidas por Dom João VI, bem
recebidas pela classe política colonial e se tornaram permanências no Brasil. Para
subsidiar a resposta, o aluno pode recorrer ao tópico “Os bons e maus” (AGUIAR,
2014, p. 2016).
3. e) ( X ) I, II, III e IV.
307
GABARITO

UNIDADE V

1. Deve-se discutir a vida dos povos nativos que habitavam o território que veio a
ser o Brasil antes da chegada dos portugueses e as transformações na vida dos
mesmos após a chegada destes, mas, sobretudo, dar destaque a marginalização
contínua das populações indígenas conforme a colonização se efetuou e, poste-
riormente, com a formação do Estado brasileiro independente, que não inseriu
esses indígenas completamente, pois, ou eles vivem afastados ou em contato
com a “civilização”, perdendo suas raízes e tendo os seus costumes destruídos.
Quanto ao negro africano, deve-se apontar que desde a escravidão eles viveram
em condições de trabalho insalubres. Conforme a escravidão foi perdendo for-
ças com o fim do tráfico, decretado em 1850, a abolição foi se delineando, con-
tudo, de forma lenta e gradual, o que legou aos ex-escravos e seus descendentes
à uma marginalização econômica. Se nas colheitas e na casa grande eles sofriam
com as chibatadas, após a abolição da escravidão, com a marginalização, se vi-
ram excluídos em sua maioria de condições que lhe garantissem qualificação e
por consequência, trabalho digno. Tudo isso gerou uma visão que, ao longo dos
séculos, identifica o negro à essas condições indignas, visão distorcida que gera
preconceito.
2. O continente africano é imenso e com uma diversidade cultural muito grande. O
Brasil, considerado o país mais afro fora da África, pois para cá vieram a grande
maioria dos africanos durante o comércio Atlântico de escravos. Das etnias que
se destacaram, encontram-se os bantos, os sudaneses e angolanos. No campo,
na indústria açucareira ou na casa grande, os africanos serviam ao senhor de
várias formas e ao mesmo tempo formavam muito do Brasil. A preferência por
jovens resistentes ao trabalho legou resistência física, assim como as mulheres
escravas deram vida a muitos dos filhos “mulatos” que formam o povo brasileiro.
Em Minas Gerais a mineração foi responsável por tornar esse estado um estado
negro, acrescentando à cozinha o feijão, a carne da galinha d’angola e muitos
temperos. Vemos progressivamente aspectos afros adentrando a formação do
povo brasileiro e da sua cultura.
3. c) ( x) I, II e III.

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