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RESUMO
Este trabalho pretende demonstrar que os discursos modernos de
legitimação da ordem política, baseados em teses contratualistas,
acabam por criar uma contradição entre indivíduo e sociedade na
qual o indivíduo é deslegitimado como sujeito ativo da política.
Tal deslegitimação, associada a uma cultura de mercado, favore-
ce políticas de exclusão social por meio de processos de subjeti-
vação que desumanizam os excluídos da cadeia de consumo.
Palavras-chave: Teoria política; contratualismo; legitimação;
individualismo; subjetividade; exclusão social; Foucault; Freud.
ABSTRACT
This research work intends to demonstrate that the modern argu-
ments based upon the contractual theories about the legitimation
of the political order, create an enormous contradiction among
the individuals and the society in which they become disabled
as an active part in the political scenery. As a matter of fact, 1
Mestre e doutorando
the mentioned situation and its association to a market culture em Direito Constitucio-
nal e Teoria do Estado
ends up favoring policies of social exclusion through processes pela PUC-RJ. Professor
de Teoria do Direito e
of subjectivism which dehumanize the ones excluded from the do Estado da Universi-
dade Federal do Espíri-
consumption chain. to Santo (UFES). É tam-
Keywords: Political theory; contractual theory; legitimation; in- bém coordenador do
colegiado do curso de
dividualism; subjectivity; social exclusion; Foucault; Freud. Direito da UFES.
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A tese contratualista
baseia-se na crença de
que o homem liberta-se de, ou, numa linguagem mais familiar ao meio jurí-
da natureza e começa
a construir seu próprio dico, às esferas pública e privada, nos referimos a distintos
mundo à parte da cele-
bração racional de um pontos de vista sobre as relações humanas, ou seja, posso
contrato, momento es-
se diferenciador de du-
observar, analisar e julgar o homem basicamente sob duas
as etapas, a pré-social
(natural) e a social ou
perspectivas distintas: individual ou coletivamente. Tal vi-
política. são dualista é marcante nos autores modernos cujo contratua-
3
Robson Cruzoé, náu-
frago que, sozinho em lismo afasta as duas categorias, indivíduo e sociedade, ou
uma ilha, por não es-
tar em sociedade, não público e privado, ou, ainda, natural e social (ou político)
conviveria também
com uma ordem social,
como se fossem apenas etapas que se sucedam cronologica-
política ou jurídica, até
o dia da chegada de
mente2, e não como formas de consideração distintas do ho-
Sexta-Feira (doravan- mem, tomado em seu aspecto individual ou coletivo. Somos
te seu companheiro),
momento a partir do todos, ao mesmo tempo (e não em tempos sucessivos), indi-
qual uma ordem polí-
tica e jurídica natural- víduos e cidadãos. Até mesmo o exemplo de Cruzoé3, lou-
mente surgiria, tendo
em vista a necessida- vado por Rousseau em seu Emílio4, denota tal fato, bastando
de de regulamentação
das atividades desses apontar que, ao ver-se náufrago e sozinho em uma ilha, a
dois indivíduos nessa
sociedade. Analisemos
primeira coisa que nosso herói tratou de fazer foi um calen-
tal discurso: as afirma-
ções das relações en-
dário, de tal forma que ao novo amigo deu o nome de Sexta-
tre sociedade e direito
não demonstram uma
Feira, pois sabia que era uma sexta-feira. Por qual motivo
relação existente entre um náufrago precisaria de calendário? Que diferença faria
essas duas categorias,
apenas afirmam a exis- se hoje é sexta-feira ou domingo se não há nenhum evento
tência de uma relação
qualquer, cuja prova social cuja demarcação do tempo nos ajudaria a cumprir?
da existência de tal re-
lação é a constatação A resposta é simples, o calendário para o personagem não
mesma da inexistência
de sociedade sem di- é uma questão de utilidade, mas de identificação como ente
reito (constatação essa
também afirmada). Tal
social, uma identificação de si para si mesmo. Ora, todos
argumento é falacio-
so, portanto, inválido.
nós somos produto de nossas respectivas culturas, culturas
Note que afirmar que essas que são construídas socialmente. A lapidar e muitas
um argumento seja in-
válido não significa as- vezes mal citada afirmação de Aristóteles: “O homem é um
segurar que suas pro-
posições sejam falsas, animal político”, refere-se à idéia de que o homem, mesmo
mas apenas que de tal
argumento não é pos- considerado de forma individual, diferencia-se dos outros
sível concluir absoluta-
mente nada de neces- animais por ser marcado pela polis de forma essencial, ou
sariamente verdadeiro.
4
Em O Emílio ou da
seja, o conceito aristotélico de homem não é uma questão
educação, Rousseau biológica, mas política, na medida em que o homem é, em
afirma que de todas as
obras que Emílio deve si, simultaneamente, um produtor e produto da polis.
Tal discurso da diferenciação é reforçado quando da for- ler para que possa ser
bem educado de acor-
mulação da idéia de ordem política com base na fundamen- do com os bons valores
do estado de nature-
tação jusnaturalista moderna apresentada no modelo hob- za, a principal, talvez a
besiano de Estado5. Tal modelo, de inspiração iluminista6, única fundamental, se-
ja Robson Cruzoé. Tal
parte da hipótese de que a sociedade e os governos não são afirmação se justifica
pelo fato de o persona-
uma produção divina, e sim humana. Assim sendo, é neces- gem encontrar-se numa
situação de necessitar
sário que haja um momento em que exista o homem e, no julgar qual de seus co-
nhecimentos adquiri-
entanto, não exista a sociedade e tampouco o Estado, uma dos socialmente lhe era
realmente útil, critério
vez que o criador antecede à criatura no tempo. Tal situação, fundamental na peda-
gogia de Emílio, que o
hipotética ou histórica, dependendo do autor7, denomina-se possibilitaria levar uma
vida dependente ape-
“estado de natureza”. A teoria moderna do direito represen- nas do útil, fruto das
tará o indivíduo, freqüentemente, associado ao homem do necessidades naturais,
e não do fútil, fruto de
estado de natureza, representando-o, assim, não como uma invenções culturais que
acabaram por desviar o
perspectiva do homem propriamente, mas como um estágio homem de sua natureza
piedosa.
histórico ou circunstância em que o homem aproxima-se 5
O modelo hobbesiano
é uma categoria apre-
mais do animal “selvagem” ou “incivilizado”, cujas ações sentada por Norberto
Bobbio em seu artigo O
são pautadas mais pelos instintos e desejos do que pela ra- modelo jusnaturalista,
zão universal. publicado em BOBBIO,
Norberto & BOVERO,
O passo seguinte seria a saída do homem de seu estado Michelangelo. Socieda-
de e Estado na filoso-
de natureza, construindo, assim, a sociedade civil, sendo fia política moderna.
São Paulo: Brasilien-
que tal passo, denominado “contrato social”, não seria se, 1996. E refere-se à
forma de concepção da
uma atitude pautada pelos instintos, mas pela razão uni- origem do Estado par-
tindo-se de um estado
versal. Tal contrato seria marcado por dois estágios: um de natureza e chegan-
do a uma sociedade ci-
pacto de sociedade, que constituiria uma sociedade em si, vil mediado por um con-
trato. Bobbio o afirma
e um pacto de sujeição8, responsável pela constituição do como modelo porque as
governo. Algumas conclusões se antecipam: em primei- mesmas categorias são
utilizadas por Locke,
ro lugar (1) há uma representação de indivíduo na Teoria Rousseau, Espinosa e
Kant, dentre outros.
do Direito com base na sua concepção racional-social em 6
Rouanet, em seu arti-
go O mal-estar na mo-
oposição a uma representação individual dessocializada, dernidade, apresenta
como características do
associada à irracionalidade. (2) Outra conclusão parece pensamento iluminista
ser a idéia de que a sociedade seria a negação, em si, do o individualismo, o que
leva a uma perspectiva
indivíduo, ou, dito de outra forma, parece existir no mode- de que tanto a socieda-
de quanto os governos
lo jusnaturalista moderno uma representação de estado em são uma criação consi-
derada a partir do ho-
oposição ao indivíduo. mem sob seu aspecto
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categoricamente que o
nenhum tipo de financiamento. Entretanto, aqueles que homem seja um ser des-
se consideram em melhor situação freqüentemente negam provido de racionalida-
de em tal estado. Antes,
aos pobres as características e comportamentos associados o ideal iluminista tem
como pressuposto a ra-
a capitalismo e modernidade, como racionalidade, cionalidade do homem
como característica es-
conhecimento, capacidade de poupar, de planejar sencial do humano. No
e de aproveitar ao máximo os recursos.11 entanto, o que ocorre é
que no estado de natu-
reza o homem, apesar
de racional, não pauta
É apenas um exemplo, mas que denuncia a forma pela o seu existir político pe-
los ditames da razão, ou
qual, discursivamente, reproduzimos uma série de exercí- seja, a sua razão é ape-
cios de poder nos valendo de nossas “posições” sociais pri- nas uma possibilidade
biológica, porém não
vilegiadas. Tais posições simbolicamente são construídas utilizada. Cabe, ainda,
ressaltar o fato de Rous-
com base na deslegitimação do outro como ente racional seau apresentar a idéia
de estado de natureza
e, portanto, excluído do pacto social racionalmente cons- de forma distinta de Ho-
bbes e Locke, por exem-
truído. O exemplo refere-se a pobres das favelas de São plo. Para Rousseau o es-
tado de natureza é em si
Paulo, mas poderia ocorrer o mesmo mecanismo discursi- um estado marcado por
uma racionalidade po-
vo deslegitimador em relação aos negros, às mulheres, aos sitiva do homem, porém
tal racionalidade foi es-
criminosos etc.: “Direitos humanos são destinados a seres quecida pelo homem da
sociedade civil em virtu-
humanos. Aquele que estupra, mata etc. não é um ser huma- de de usurpações de
poder historicamente
no, é um animal” – uma afirmação mais ou menos recorren- constituídas, devendo,
assim, o contrato social
te em debates sobre Direitos Humanos ou pena de morte. servir para reformular a
sociedade civil em dire-
Em suma, a idéia contida na argumentação jusnaturalista de ção ao bom modelo de
fundamentação do Estado é propícia a uma reprodução de estado racional que o
estado de natureza re-
um discurso de exclusão social, apesar de os autores mo- presenta. Ainda assim,
tal distinção apresenta-
dernos citarem a igualdade como princípio fundamental. da por Rousseau não in-
valida a afirmação con-
Ainda assim, tal igualdade, na esfera política contemporâ- tida no parágrafo, qual
seja, a da existência de
nea, ainda é mero ideal a ser alcançado. Não quero com um campo de anula-
ção das individualida-
isso afirmar que a desigualdade seja uma conseqüência do des, denominado pela
maioria dos jusnatura-
discurso político moderno, mas apenas que o discurso da listas modernos como
estado de natureza e
teoria política moderna deixa brechas para que um sistema por Rousseau como so-
ciedade civil.
de diferenciação social funcione “impunemente”, sendo até 10
CALDEIRA, Teresa Pi-
mesmo possível concretizar com base na lei uma série de res do Rio. Cidade de
muros: crime, segre-
desigualdades sociais, apesar do reconhecimento simultâ- gação e cidadania em
São Paulo. São Pau-
neo da igualdade como princípio. É possível afirmar que o lo: Editora 34/Edusp,
2000.
problema está no fato de a igualdade fundamental entre os 11
Idem, ibidem, p. 71.
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16
Ou multiplicidade de
tiplicidade à unicidade de poderes16 e outro que vai da plu- poderes e potências,
como observado ante-
ralidade legal à legitimidade da lei. E é sobre esses pilares riormente.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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