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A EMANCIPAÇÃO INTELECTUAL COMO PROPOSTA

METODOLÓGICA

PASQUALATTO, Tamara Havana dos Reis – UNIOESTE


tamarapasqualatto@hotmail.com

Eixo Temático: Didática: Teorias, Metodologias e Práticas


Agência Financiadora: Capes

Resumo

A ousada proposta apresentada nesse estudo é uma possibilidade de mudança dos paradigmas
do processo de ensinar e aprender, por acreditar que os modelos vigentes não dão conta de
formar um cidadão independente e autônomo intelectualmente. Tendo em vista o cenário
educacional atual – marcado por desinteresse, descaso, alienação, indisciplina, etc.–, se faz
necessário repensar nossos princípios e nossas praticas pedagógicas. Assim, procurou-se fazer
uma análise da forma de atuação do presente sistema de ensino, fazendo uma crítica ao
método explicador de ensinar, expondo o processo de alienação de inteligências e prisão de
liberdade de pensamento a que ele leva. Sugere a emancipação intelectual como proposta de
ensino, que parte do princípio direcionador que é o pressuposto da igualdade das
inteligências. Esses pensamentos têm como referência principal as idéias de Jaccques
Rancière, filósofo francês contemporâneo, apoiadas pelas do também filósofo, o alemão
Immanuel Kant. O método utilizado foi o da revisão bibliográfica. Os argumentos sustentam
que é inútil explicar (os conteúdos das matérias) sem implicar o aluno no processo de
produção de conhecimento. Acredita que, partindo do principio da igualdade das
inteligências, um mestre pode emancipar um aluno, ou seja, levá-lo a utilizar sua própria
inteligência para adquirir os conhecimentos necessários exigidos pelos cursos de ensino
obrigatório e também para toda sua vida. A função do mestre nesse sistema não seria de
explicar, mas de acompanhar o aluno na marcha em buscar do conhecimento. Assim, o aluno
não mais se coloca alheio ao aprendizado, mas ao contrario, ele mesmo, com sua própria
capacidade irá construir seu saber. Dessa forma, serão cultivados estudantes e posteriormente
cidadãos esclarecidos, independentes e não alienados mentalmente, que terão capacidade,
liberdade e vontade de raciocinar livremente e de usar suas próprias faculdades para formar
seus juízos e conceitos.

Palavras-chave: Sistema de ensino. Proposta metodológica. Emancipação intelectual.

Introdução

Este estudo faz uma análise do sistema educacional presente, verificando seus métodos
de ensino, sua atuação, seus resultados e também seus princípios norteadores. Faz oposição ao
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seu sistema explicador de ensinar, por acreditar que essa forma de ensinar (explicando) é
pouco eficaz, e que gera o desinteresse e o descaso pela educação verificado em nosso tempo.
Traz a emancipação intelectual como uma nova possibilidade de proposta pedagógica e
metodológica, pois tem o objetivo de levar o aluno a pensar, a criar, a fazer o saber e o
conhecimento tendo o professor como um companheiro de caminhada.
O sistema explicador e a emancipação intelectual

Entendi isso, diz o aluno satisfeito. – Isso é o que você pensa, corrige o mestre. Na
verdade, há uma dificuldade de que, até aqui, eu o poupei. Ela será explicada quando
chegarmos à lição correspondente. – O que quer dizer isso? pergunta o aluno,
curioso. – Eu poderia lhe explicar, responde o mestre, mas seria prematuro: você não
entenderia. Isso lhe será explicado no ano que vem. (RANCIÈRE, 2002, p. 20)

Esse fragmento do livro de Rancière exemplifica o que acontece em praticamente


todas as salas aulas. Ele deixa clara a relação que está estabelecida entre um aluno e um
professor: distância. Distância entre as posições ocupadas, entre os seus saberes, entre a
matéria a ser ensinada e o sujeito a instruir, e também entre o aprender e o compreender.
A própria configuração de uma sala de aula já demonstra o quão longe está o aluno de
seu mestre. O professor se posiciona entre o quadro – instrumento de exposição do seu saber
–, e os alunos – massa sem luz à sua frente–, colocada em ordem, pronta para encher-se
daquilo que o mestre oferece. Assim, entre o saber exposto no quadro e os alunos, existe um
mediador.
O aluno é por tradição1 submisso ao professor. Suas posições são marcadas pela
desigualdade: o mestre é figura de autoridade, e por isso deve ser respeitado e obedecido pelo
aluno, pois este ocupa uma posição inferior.
Outra ruptura aparece: a dos saberes. O saber do professor sempre vai estar acima do
saber do aluno. É isso que mostra o fragmento de Rancière (2002), acima: quando o aluno
pensou ter compreendido alguma coisa, seu mestre lhe esclarece que na verdade ele
compreendeu apenas uma parte, a parte fácil. A difícil (que o mestre sabe) o aluno ainda não
sabe e nem teria chances de aprender naquele momento, pois ainda não estava preparado, e
isso lhe seria explicado mais tarde. Assim, o aluno mantém essa ignorância, esse não saber.

1
Aqui entendida como desde o momento em que o ensino foi institucionalizado.
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Dessa forma seu saber nunca alcançará o do mestre. Ele sempre vai ficar alienado e
dependente de um explicador.
O conteúdo a ser estudado também está longe do sujeito que deve aprender. O livro é
apresentado ao aluno em palavras e não como objeto material a ser descoberto. E ainda, não o
livro, mas partes dele, as mais fáceis, da forma mais fácil, para facilitar a compreensão. O
aluno não acessa o conteúdo das páginas, mas toma conhecimento delas (quando realmente
toma) através da interpretação do seu professor. Não o que pensa o autor, na sua totalidade,
mas uma leitura terceira, uma voz objetivada que diz o que se deve compreender com aquelas
páginas, como se o livro necessitasse desse recurso (a fala) para ser apreendido. Não
bastariam as palavras de um livro para se entendê-lo?
A presente forma de ensinar será marcada por seleção, progressão e incompletude,
necessariamente. O livro, que é um todo, é o centro ao qual se pode associar tudo o que se
aprender de novo, nunca será apreendido na sua completude. O acontece é: estuda-se uma
parte, algumas noções daquele autor, ou ainda um capitulo daquele livro, e parte para outros.
“Aprendem-se algumas regras e alguns elementos, que são aplicados a alguns trechos
escolhidos de leitura, alguns exercícios correspondendo aos rudimentos adquiridos”
(RANCIÈ, 2002, p. 19). O livro nunca está inteiro e a lição nunca acabada.
As ações mentais: aprender e compreender. O dicionário Aurélio (1986) define esses
dois termos da seguinte forma: aprender é “tornar-se apto ou capaz de alguma coisa, em
conseqüência de estudo, observação, experiência, advertência, etc. e compreender é “perceber
ou alcançar as intenções ou o sentido de”. O que as definições nos mostram é que as duas
atitudes são distintas. O aprender exige um esforço do sujeito que lhe é recompensado com
determinada aptidão advinda desse esforço. O compreender, por sua parte, é a apreensão
passiva de algo dado.
Para Rancière (2002), a lógica do nosso sistema de ensino é a da explicação. A
conseqüência de uma explicação é uma compreensão2, e compreender é o que [o aluno] “não
pode fazer sem as explicações fornecidas, em certa ordem progressiva, por um mestre”
(Idem). Ou seja, quando um professor explica, o aluno só “aprende” que “compreender” é
aquilo que ele nunca vai fazer sozinho.

2
Explicar, de acordo com o dicionário Michaellis (1998) significa “fazer-se compreender”.
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Falaremos, pois desse sistema de ensino. Sua lógica, então, é a da necessidade de


explicação. Por trás dela há um pressuposto: é preciso explicar, pois o aluno é incapaz de
aprender sozinho. E há também um princípio: a desigualdade das inteligências.
Uma ação é sempre direcionada por um princípio que é sua base, seu fundamento. Ou
seja, é algo em que se acredita o suficiente para nortear um exercício. O princípio do sistema
vigente de ensino produz a prática verificada: um mestre sábio explicando aos alunos que não
sabem. Por partir da noção de que as inteligências são diferentes, de que o mundo é dividido
em sábios e ignorantes, espíritos maduros e imaturos, capazes e incapazes, inteligentes e
bobos, então é necessário que exista alguém com uma inteligência elevada que auxilie os
menos inteligentes a deixar o estado de ignorância. Essa é a função de um professor.
O professor seria aquele esclarecido que, nos termos de Kant (2005), direciona o
entendimento de outra pessoa. E como direciona o entendimento de um ignorante e incapaz,
ele deve proceder por meio de métodos que vá do simples ao complexo, do fácil ao difícil,
adaptando os conteúdos às capacidades intelectuais do aluno. Tal é o principio da explicação.
Tal é o principio do embrutecimento.
O embrutecimento é aqui entendido como o ensinar a partir do método explicativo,
tendo como principio a desigualdade das inteligências. Ou seja, é manter a postura de mestre
explicador com a convicção de que seus alunos não têm capacidade suficiente para aprender
sem suas explicações. É não levar o aluno a pensar com suas próprias faculdades mentais,
com sua própria inteligência.
O professor embrutecedor não é como expõe Rancière (2002), o velho mestre estúpido
que enche a cabeça dos alunos de conhecimentos confusos e mal compostos, ou ainda, o ser
maléfico que pratica a “dupla verdade, para assegurar seu poder e a ordem social” (Idem,
p.07). Ele é exatamente o contrário disso. O mestre embrutecedor é culto, esclarecido, de boa
fé. E por assim ser é mais eficaz, pois assinala com precisão a lonjura que separa o seu saber
da ignorância dos ignorantes. Ele vai afirmar que é preciso que o aluno compreenda, e para
isso, é necessário que ele forneça explicações cada vez mais aprimoradas.
É essa a preocupação de um pedagogo esclarecido: a criança está compreendendo?
Não? Então vamos encontrar novas formas de explicar, novos métodos mais atrativos. Vamos
aperfeiçoar para melhor explicar, criar materiais didáticos, novas propostas, utilizar as novas
tecnologias para que o aluno compreenda. Nobre preocupação! No entanto, verificamos
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evolução correspondente na chamada “compreensão” efetiva pelo aluno? Ou seja, o aluno está
interessando-se mais? Compreendendo mais?
Uma discussão feita por Aquino (1996), chamada “A desordem na relação professor-
aluno”, traz o fato de que é uma queixa bastante comum dos educadores que o aluno atual é
acometido por agressividade, rebeldia, apatia, indiferença, desrespeito e falta de limites. Isso
só vem corroborar com a nossa suspeita de que talvez os métodos de ensino não estejam
sendo tão eficientes assim.
O professor entra em sala de aula, e depara-se com alunos agitados, desinteressados. E
não é raro, em um determinado momento da explicação, ter que ouvir e responder perguntas –
como o próprio Aquino (1996) coloca –, do tipo: “Pra que eu tenho que estudar isso? Pra que
serve isso? Eu vou usar isto algum dia?”
O que percebemos? Para o professor – que se dedicou em preparar sua aula, que
dispensou horas nesse exercício, pensando no seu tema, objetivos, metodologia, usou a
tecnologia, fez uma apresentação de slides, procurou vídeos, imagens – tudo o que ele diz
parece ser muito interessante e empolgante. No entanto, para o aluno parece ser tão
desinteressante, ao ponto de ele se questionar sobre o motivo de ele estar lá, escutando aquilo.
O que acontece no método explicador é que o único que está envolvido nesse processo
de conhecer é o professor. O aluno está totalmente alheio a tudo o que está acontecendo na
sala de aula. Por mais que o mestre se importe, se aperfeiçoe na arte de bem explicar, e
procure as melhores formas de fazer o aluno compreender, a única coisa que ele vai conseguir
é embrutecer o aluno. Ou seja, vai impossibilitar o aluno de utilizar sua própria inteligência e
capacidade.
Ao trazer todos os conhecimentos prontos, digeridos e expor aos alunos está se
reproduzindo a distância entre o conhecer e o aluno. Isso quer dizer que no processo
explicativo, o aluno não se apropria e nem se interessa pelo conhecimento porque ele não faz
parte daquilo que se expõe. Ele não sabe de onde veio o que se explica, e nem para onde vai,
então, é natural que ele não se interesse por coisas com as quais ele não se envolveu.
Quando um professor explica determinado conteúdo ao aluno, o processo sempre se dá
por simplificação da matéria. Por exemplo: ao trabalhar determinado autor, o professor vai
escolher uma determinada obra, selecionar alguns fragmentos, ou mesmo, algum trecho de
um comentador do assunto, para deixar fácil e melhor explicar aquilo aos alunos. O que o
aluno vai ver desse processo é: um nome estranho (autor), que nasceu em algum lugar, e
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escreveu ou fez aquilo que o professor está falando. Isso se mostra nas frases que ouvimos, e
que até mesmo já falamos: um tal de Bhaskara que “inventou um fórmula que não serve pra
nada”. Um tal de “sei lá eu quem” que “disse que viemos dos macacos”, e um tal de Kant que
“eu nem sei o que disse”.
Quando o aluno não faz parte do processo de conhecer, quando ele não está envolvido
nessa produção ele não vai se interessar, pois lhe dão como função apenas reter na mente
aquilo que se está falando, e ele se vê obrigado àquilo, pois lhe será cobrado depois. Ele tem
uma ordem que é a de saber, no entanto, esse saber não vem dele, mas lhe é imposto de fora,
de longe, é um estranho que quer se infiltrar. Quando não participamos das etapas de uma
construção é natural que nos encontremos na obra pronta.
Todos os anos que o aluno passou na escola vivendo o processo explicativo só
ensinaram a ele efetivamente uma coisa: quem sabe é o professor. E o aluno só saberá se lhe
for explicado. É um processo de alienação. Aliena-se a inteligência do aluno à inteligência do
professor. E isso começou desde o primeiro dia que a criança ingressou no que chamamos de
“ensino propriamente dito” 3. Aí inserem o aluno no sistema explicador, interrompem o
movimento da sua razão, destroem sua confiança em si mesmo.
Antes de entrar na escola, uma criança sempre conheceu o mundo e aprendeu as coisas
pelas suas próprias mãos, com suas faculdades e capacidade. Rappaport (1981), discorrendo
sobre a teoria de Piaget, afirma que é a própria criança que irá construir seu crescimento
mental, ou seja, ela é vista como agente de seu próprio desenvolvimento. Assim, tudo o que
ela vai aprender e saber sobre o mundo, os objetos, as pessoas e as relações será
responsabilidade e trabalho dela.
Um dos grandes feitos de uma criança é adquirir a linguagem. Segundo Rancière
(2002, p. 05), o que “todos os filhos dos homens aprendem melhor é o que nenhum mestre
lhes pode explicar”: a língua materna. E como a criança faz isso? Elas escutam, retêm,
imitam, repetem, erram, corrigem-se, acertam por acaso e recomeçam. Esse é o método da
criança: a adivinhação4, (Idem, p. 09).
No entanto, ao começar o ensino formal, simplesmente esquece-se dessa capacidade
infantil e assim como de tudo o que a criança já fez e já aprendeu até esse momento através do
seu próprio empenho, esforço e inteligência, e a tratam como se não fosse conseguir mais

3
Primeiros anos do ensino obrigatório.
4
Método da adivinhação: “observar e reter, repetir e verificar, associar o que se busca aprender àquilo que já
conhecia fazer e refletir sobre o que havia feito”. Rancière( 2002, p.09)
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nada sozinha. Simplesmente ignoram o fato de que ela é competente para usar seu próprio
entendimento para se apropriar também dos conhecimentos escolares.
Ora, se a criança sozinha aprendeu várias coisas, qual o problema de acreditar que ela
pode usar sua inteligência para continuar aprendendo? Por que ela não pode permanecer
utilizando o seu método? Não seria esse método da criança – o da adivinhação –, o verdadeiro
movimento da inteligência humana que toma posse de seu próprio poder? Não seria
necessário inverter a ordem admitida dos valores intelectuais? Não seria melhor emancipar ao
invés de embrutecer? Fazer pensar e não explicar?
O conceito de emancipação intelectual é o seguinte: uma inteligência que obedece a
ela mesma, que se liberta da alienação do saber de outro. Ele relaciona-se muito bem com o
conceito kantiano de “esclarecimento”, que é a “saída do homem de sua menoridade (...). A
menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro
individuo” Kant, (2005, p. 63). Emancipar, portanto é fazer uso da sua própria inteligência,
servir-se dela, independente de outro, de forma livre.
Bertrand Russel, já apontava a emancipação intelectual – no entanto, não com esse
termo – como essencial à função de um mestre, quando discorria sobre a alienação deste ao
estado. Afirmava ele:

O sentimento de independência intelectual é essencial ao adequado preenchimento


das funções de professor. A este cabe fundamentalmente, participar no processo de
formação de opinião publica, transmitindo todo o conhecimento e toda a
racionalidade que for capaz. (Russel, 2000, p. 72)

O principio da emancipação intelectual é oposto ao do embrutecimento. Ele parte do


pressuposto da igualdade das inteligências. Ou seja, não mais divide o mundo em inteligentes
e bobos, sábios e ignorantes, mas vê um mundo em que todo o homem, no uso de sua
inteligência pode, através da sua vontade, chegar onde quiser. O pressuposto de que todas as
inteligências são iguais permite a retirada das distâncias, abismos e obstáculos entre duas
pessoas, entre duas inteligências. Ele faz crer que, “na ordem intelectual, podemos tudo o que
pode um homem” Rancière (2002, p.24). O aluno pode o que o professor pode, o homem do
povo pode o que pode o gênio, a criança pode o que pode o adulto.
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“Quem ensina sem emancipar, embrutece”, diz Rancière (2002, p.16), e o que
emancipa ou embrutece não é procedimento ou a maneira usada para ensinar, é o princípio. É
o pressuposto por trás da ação que emancipa ou embrutece. O principio da desigualdade é
embrutecedor, não importa o que se faça.
Dar uma explicação embrutece quando se explica por crer que o aluno não consegue
aprender sozinho, bem como pode emancipar se ela tiver um caráter de troca de pontos de
5
vista. “O velho não embrutece os alunos ao fazê-los soletrar, mas ao dizer-lhes que não
podem soletrar sozinhos”. (Idem, p.26)
O principio da igualdade emancipa, independente do procedimento, método ou lição e
o mestre que deseja emancipar interroga os alunos à maneira dos homens, e não à maneira dos
sábios, justamente por crer na igualdade presente entre eles. No entanto, só emancipa um
homem aquele que é emancipado.
De acordo com Kant (2005, p. 64),

É difícil, portanto para um homem em particular desvencilhar-se da sua menoridade


que para ele se tornou quase uma natureza. Chegou mesmo a criar amor a ela, sendo
por ora realmente incapaz de utilizar seu próprio entendimento, porque nunca o
deixaram fazer a tentativa de assim proceder. Preceitos e fórmulas, estes
instrumentos mecânicos do uso racional, ou antes, do abuso, de seus dons naturais,
são os grilhões de uma perpetua menoridade. Quem deles se livrasse só seria capaz
de dar um salto inseguro mesmo sobre o mais estreito fosso, porque não está
habituado a este movimento livre. Por isso são muito poucos aqueles que
conseguiram, pela transformação do próprio espírito, emergir da menoridade e
empreender então uma macha segura.

O filosofo alemão, com o seu termo, menoridade, esclarece de forma clara a


dificuldade de entrar na maioridade, ou, como chamamos, de se emancipar. Para ele, o
homem se acomodou a não pensar, a permanecer na menoridade, e ainda afirma que por ora,
ele é realmente incapaz de se conduzir pelo seu próprio entendimento, pois nunca o deixaram
fazer a tentativa de proceder desse modo. Por conta disso, são poucos os que conseguiram
atingir a “maioridade”.
Mas uma vez emancipado, um homem pode emancipar outro, que por sua vez
emancipa outro, e ainda outro. Mas como fazer isso? Como emancipar alguém? Fornecendo
não a fórmula do saber, mas formando a consciência do que pode uma inteligência quando ela
se considera como igual a qualquer outra e qualquer outra igual a sua. Deixando tentar,
5
Velho: método explicador, para Rancière (2002).
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deixando proceder conforme sua inteligência, deixando errar, dando a oportunidade de se


lançar ao mar do saber correndo todos os riscos que ele oferece. Uma inteligência que sabe ser
igual a todas, sabe também que pode chegar onde quiser com a condição de que a use. Repito
a frase de Rancière (2002, p. 24): “Na ordem intelectual, podemos tudo o que pode um
homem”.
É fato que vemos desempenhos intelectuais diferentes, que vemos inteligências
errarem. Mas isso acontece porque um homem trabalhou menos bem que outro, que não viu
bem porque não olhou bem, que dedicou ao seu trabalho menos atenção e menos vontade. O
erro e a suposta “incapacidade” no uso da inteligência é nada mais que a pouca vontade
dedicada a essa atividade, ou a preguiça ou a covardia como assinala Kant, (2005).
Há desigualdade das manifestações da inteligência. Isso há. E o que determina essa
desigualdade é a energia que a vontade concede à inteligência. Há melhor desempenho
intelectual se há maior dispêndio de energia em determinada atividade, quando há grande
vontade. O contrario também é verdadeiro: há menor desempenho se for dispensada menor
energia, por uma vontade pequena. O êxito ou não de um intelecto está à mercê da vontade.
“Talvez o fato de vontades desigualmente imperiosas seja suficiente para explicar a
desigualdade das performances intelectuais” Rancière (2002, p. 49).
Existe desigualdade nas manifestações da inteligência, mas não há hierarquia de
capacidade intelectual. Ou seja, as inteligências se mostram de várias formas, no entanto,
todas podem o que uma pode. Não existe diferença de inteligências. Não há uma inteligência
superior e uma inferior. Esse é o pressuposto que permite o principio da igualdade “e é a
tomada de consciência dessa igualdade que se chama emancipação” Rancière (2002, p. 26)
A função do mestre emancipador é a de encorajar seus alunos a usarem suas próprias
inteligências, por acreditar que eles podem fazer isso. Ele se colocará juntos aos seus alunos
na busca do saber, mantendo-se sempre perto deles para conservá-los em seu caminho quando
suas vontades não forem suficientes para isso.
Já o professor embrutecedor vai explicar alguns conteúdos aos seus alunos, porque
pensa que eles jamais entenderiam aquilo sem ele. E essa é a virtude dos explicadores: “o ser
que inferiorizam, eles o amarram pelo mais sólido dos laços ao país do embrutecimento: a
consciência de sua superioridade” Rancière (2002, p. 21). Dessa forma, é o explicador que
tem necessidade do incapaz, e não o incapaz que precisa de um explicador. É ele que constitui
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o incapaz como tal. Se não fossem os inaptos, o que fariam os explicadores, qual seria sua
função?
O homem pode aprender sem mestre explicador, mas não sem mestre. O mestre
emancipador vai guiar o aluno na sua passagem pelo país do conhecimento, verificando se ele
está pesquisando continuamente. Ele sempre vai estar à porta do aluno e quando este disser
“eu não consigo”, o mestre diz “você consegue! Olhe mais uma vez, repita, tente novamente”.
E o interrogará sempre à maneira dos homens e não à maneira dos sábios, ou seja, em posição
de igualdade.
De tudo o que o aluno aprender, o mestre lhe pedirá que fale. Que diga o que ele vê, o
que pensa disso, o que faz com isso. E tudo o que ele disser deverá demonstrar a
materialidade do livro. Ele deve observar o mundo por ele mesmo. E de tudo onde investir
sua inteligência, deverá responder à tríplice questão – o que vê? O que pensa disso? O que faz
com isso? – e demonstrar na materialidade do livro.
O mestre emancipador vai verificar não o que o aluno descobriu, para confirmar ou
negar suas afirmações, mas verificará se ele buscou, se estava atento enquanto buscava, se
estava pesquisando continuamente. O que ele deve exigir do seu aluno é que prove que
estudou com atenção.
O aluno emancipado é aquele que se coloca na marcha do conhecimento. Ele acredita
na sua capacidade e caminha com suas próprias pernas. Ele sabe que todas as inteligências são
iguais as dele e a dele é igual à de todos. E é esse pressuposto que permite ir adiante. “O que
embrutece o povo não é a falta de instrução, mas a crença na inferioridade de sua
inteligência.” Rancière (2002, p. 38). Essa crença barra o movimento da razão e inibe a
autoconfiança, ao ponto do homem estagnar intelectualmente e esperar que o saber sempre
venha do outro. É isso que vemos em nas salas de aulas. Alunos estancados, inundados de
crenças de senso comum, pouco interessados com as matérias e com o conhecimento, ou seja,
alunos embrutecidos. Eles não sabem ainda do seu potencial desbravador, não estão
convencidos do seu poder intelectual, aliás, estão descrentes dele, estão ignorantes dele.
É inútil tentar explicar sem implicar o aluno nessa ação, acreditando que ele vai se
interessar e aprender. Emancipar o aluno coloca-o de volta no processo de conhecer, devolve
a ele a satisfação em descobrir, em achar, encontrar o saber com suas mãos. Ele se sentirá
poderoso, capaz, apto e competente e estará pronto para tomar suas próprias decisões e
escolher pela sua vida, utilizando sua inteligência.
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No entanto, só um homem (emancipado) pode emancipar um homem, como já foi dito


anteriormente. Mas isso é repetido para esclarecer que jamais um governo, um exercito, uma
instituição ou um partido conseguirá fazer isso. A emancipação não é um método social
(RANCIÈRE, 2002). Ele não pode ser disseminado nas instituições da sociedade e nem por
iniciativa delas. Ele é o método dos homens e por isso, não pode ser dirigido senão a
indivíduos, jamais a sociedades.
Um pai pode emancipar um filho. Um professor pode emancipar um aluno, depois
outro e depois outro. Um homem pode emancipar um homem, e depois outro, e depois outro.
Emancipar é tornar consciente do seu poder intelectual, é praticar essa suposição da igualdade
e mantê-la em qualquer circunstancia.
O que se pretende com o método da emancipação intelectual é mostrar a necessidade,
a importância e a utilidade de se levar a pensar de forma independente. É tentar mostrar que
uma prática pedagógica que não priorize tanto o aperfeiçoamento das explicações, ou que não
gaste tanta energia em criar métodos explicativos e atrativos, talvez possa voltar sua atenção
para o aluno enquanto sujeito cognoscente, ou seja, que tem autonomia no processo de
construção do seu conhecimento.
Reconhecer o estudante enquanto agente do conhecimento, já é um grandioso passo
em direção à sua emancipação. O mestre deve saber, dever enxergar e deve principalmente,
acreditar na potencia escondida em cada rosto à sua frente, e seus esforços em sala de aula
precisariam ser em direção a transformar em ato toda a capacidade cognoscível do seu aluno.

Considerações Finais

Este texto teve por objetivo trazer algumas reflexões sobre nossas concepções de ensinar e
aprender. Buscou demonstrar que a nossa lógica de ensino estaria invertida, pois dispensa
esforços buscando novas metodologias de explicar, quando é necessário colocar o aluno
perseguir o conhecimento e isso se faz através da sua emancipação intelectual. Ao emancipar
o aluno, ele se torna agente do seu conhecimento, participante do processo de saber. Ele será
autoconfiante e corajoso, e saberá que todas as inteligências são iguais a sua e a sua igual à de
todos. E a partir disso, poderá criar livremente. A emancipação intelectual não ambiciona
tornar-se um método social, ou uma imposição governamental. Aqui não se pretendeu querer
dizer o que é certo e o que é errado, ou ainda tornar o método da emancipação uma lei, uma
imposição. Apenas procurou mostrar que com ela podemos obter grandes avanços no
5429

processo de ensino aprendizagem, podemos trazer o aluno de volta para o saber, sem coerção.
A emancipação é o método dos homens por excelência. Todos os homens já utilizaram essa
forma de aprender um dia. Falta reconhecê-la efetivamente, e dar-lhe o devido lugar, a devida
importância, e deixar que ela faça o seu trabalho.

REFERÊNCIAS

AQUINO, Julio Groppa. Indisciplina na escola: alternativas teóricas e práticas. Org. Julio
Groppa Aquino. São Paulo: Summus, 1996, p. 39-55

FERREIRA, Aurélio B. de Hollanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de


Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: que é “esclarecimento”? In: ___. Textos Seletos.
Petrópolis: Vozes, 2005, p.63-71.

RANCIÈRE, J. O mestre ignorante: Cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad.


Lílian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

RAPPAPORT, Clara Regina; FIORI, Wagner da Rocha; DAVIS, Claudia. Psicologia do


desenvolvimento. São Paulo: EPU, 1981.

RUSSEL, Bertrand. As funções de um professor. In. POMBO Olga. Quatro textos


excêntricos. Lisboa: Relógio d’água, 2000. (71- 85)

WEISZFLÖG, Walter. Michaelis: Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo:


Companhia Melhoramentos, 1998.

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