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Resenha

Ligia Maria Durski & Gilberto Safra

O Eu-pele:
contribuições de Didier Anzieu
para a clínica da psicanálise
Ligia Maria Durski
Gilberto Safra

Resumo
Este trabalho configura-se como uma resenha crítica da obra de Didier Anzieu intitulada O Eu
-pele (1985). Destacamos aqui algumas contribuições do autor para uma reflexão sobre a clínica
da psicanálise, especialmente a partir de casos que remontam a problemas, abalos, insuficiências
nos limites do Eu. Sublinhamos a ideia de “Eu-pele”, de Didier Anzieu, sobre a formação do Eu
e suas relações com o órgão que cobre nosso corpo orgânico: a pele.

Palavras-chave
Psicanálise, Clínica, Formação do Eu, Pele, Corpo.

Didier Anzieu (1923-1999), psicanalista entre o aparelho psíquico e o corpo orgâ-


francês, que em sua trajetória obteve os nico, bem como para viabilizar uma com-
títulos de vice-presidente da Associação preensão mais ampla sobre a formação (e
Psicanalítica da França e de professor emé- as possíveis “deformações”) do Eu.
rito de psicologia clínica da Universidade Uma vez que em nosso tempo a si-
de Paris X, desenvolveu entre os anos tuação clínica é visitada por pessoas com
1970 e 1980 importantes estudos sobre deficiências na constituição do si mesmo,
a formação do Eu, que enriqueceram o embora o texto de Anzieu tenha sido es-
arcabouço teórico da psicanálise, princi- crito há trinta anos, as contribuições feitas
palmente sobre as noções de “fronteira”, pelo autor são bastante fecundas na dis-
de “limite” e de “continente”. cussão das problemáticas contemporâneas.
Podemos asseverar que, ao longo
dessas duas décadas, o livro, publicado A formação do Eu, a pele e o Eu-pele
em 1985, é uma síntese das pesquisas que Já no início do livro Anzieu adverte o
Anzieu havia iniciado em 1974 e que es- leitor de que, antes de ser um conceito
pecifica detalhadamente sua teoria sobre o teórico, o Eu-pele é uma vasta metáfora
que ele nomeou de ‘as funções do Eu-pele’. (Anzieu, 1985).
Nesse sentido, percorreremos porme- Ou seja, o Eu-pele é uma figura de
norizadamente a obra, buscando, assim, linguagem criada por ele para sublinhar
demonstrar algumas das ricas contribui- a importância de levarmos em conta,
ções de Anzieu à teoria psicanalítica. quando do desenvolvimento de teorias
É válido, pois, nesta breve introdução, do psiquismo, a união de duas verten-
adiantar ao leitor que os desenvolvimen- tes: a vertente biológica e a vertente
tos teóricos de Anzieu adquirem especial cultural.
importância para os psicanalistas que se Reconhecemos a importância dessa
debruçam sobre a temática das relações metáfora, pois se observa que na atuali-
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O Eu-pele: contribuições de Didier Anzieu para a clínica da psicanálise

dade emergem inúmeros modos de o ser Com isso, Anzieu realiza um paralelo
humano buscar estabelecer uma pele para entre nossa superfície cutânea e a forma-
o seu eu desalojado, por exemplo, o uso ção do Eu e aponta para o que ele nomeou
epidêmico dos anabolizantes, do botox, de uma “passagem do Eu-pele ao Eu psí-
das próteses de silicone, da intensa or- quico”, passagem que demonstraria que
ganização da aparência de si por meio de o Eu psíquico tem suas raízes no Eu-pele.
composições estéticas, na expectativa de Portanto, a pele é aqui pensada como
vir a encontrar o olhar do outro que lhe a base orgânica que auxilia – o que sig-
possa ofertar alojamento e morada. nifica que não necessariamente garante
Tal é, portanto, a posição de Anzieu – a fundamentação de funções específicas
ao fundamentar seu conceito/metáfora para futuras organizações do Eu.
do Eu-pele: Reconhecemos essa perspectiva como
significativa, pois a clínica assinala a im-
[Com o Eu-pele, procuro uma formulação portância do manuseio do corpo do bebê
que] respeite a especificidade dos fenô- não só para o desenvolvimento da elabo-
menos psíquicos em relação às realidades ração imaginativa do corpo, oferecendo
orgânicas como também em relação aos a tessitura simbólica necessária para o
fatos sociais – em resumo, um modelo que estabelecimento e desenvolvimento do
me pareça apto a enriquecer a psicologia psiquismo, como também para a cons-
e a psicanálise em sua teoria e sua prática tituição da unidade psicossomática – a
(Anzieu, 1985, p. 5). possibilidade de o corpo vir a ser a morada
da experiência de si.
Vale acrescentar que Anzieu demons- Vejamos, pois, algumas asserções de
tra ter teorizado o Eu-pele a partir de Anzieu sobre características da pele que
dados oriundos de sua clínica, de casos de fundamentariam certas funções do Eu:
pacientes que pareciam sofrer de “proble- • A pele, além de ser a matéria que
mas e incertezas com relação aos limites”. cobre todo o nosso corpo orgânico servin-
Eram pacientes que apresentavam: do, portanto, de proteção, de sustentação
e de diferenciação, fornece outros índices
[...] incertezas sobre as fronteiras entre o de qualidade, tais como calor, frio, pressão,
Eu psíquico e o Eu corporal, entre o Eu dor, irritação, etc. Ou seja, percepções
realidade e o Eu ideal, entre o que de- táteis, térmicas e dolorosas.
pende do Self e o que depende do outro, • A pele, inteiramente coberta de
bruscas flutuações destas fronteiras, terminações nervosas, capta e transmite
acompanhadas de quedas na depressão, excitações e possibilita úteis informações
indiferenciação das zonas erógenas, sobre a realidade.
confusão das experiências agradáveis e • A pele também fornece numerosos
dolorosas, não distinção pulsional que faz exemplos de funcionamento paradoxal –
sentir a emergência de uma pulsão como lembremos que, ao tocar, somos também
violência e não como desejo, vulnerabili- tocados – e faz com que Anzieu se per-
dade à ferida narcísica devido à fraqueza gunte “[...] se a paradoxalidade psíquica
ou às falhas do envelope psíquico, sen- não encontra na pele uma parte de sua
sação difusa de mal-estar, sentimento sustentação” (Anzieu, 1985, p. 19).
de não habitar sua vida, de ver de fora Esclareçamos igualmente que o fato
funcionar seu corpo e seu pensamento, de “ao tocarmos algo, somos concomitan-
de ser expectador de alguma coisa que é e temente tocados por esse algo” é, na obra
que não é sua própria existência (Anzieu, de Anzieu, de grande importância para a
1985, p. 8). futura capacidade reflexiva do Eu (assim
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resumida: “Eu me toco”), capacidade que mergulhado, superfície e volume que lhe
aponta para algo da ordem de um “dois em trazem a experiência de um continente.
um”, no qual se é sujeito e objeto de uma (Anzieu, 1985, p. 41).
mesma ação. Em resumo, a superfície do corpo,
Essa perspectiva é bastante interes- como um limite real de diferenciação entre
sante, pois assinala que muito precoce- o dentro e o fora do corpo orgânico, terá
mente a constituição do si mesmo ocorre por base imaginária o que Anzieu nomeia
por meio do que poderíamos denominar de Eu-pele, e será a base de um eixo narcí-
de experiências fundantes de intercorpo- sico próprio da constituição do psiquismo,
reidade. que tem funções e consequências específi-
Pois bem, com essa base no corpo cas dependendo de como se deu (ou não)
orgânico, na superfície cutânea, não po- tal constituição.
demos desconsiderar a importância das No campo da psicossomática, é fre-
ações realizadas sobre o corpo do bebê quente observar doenças da pele relacio-
e das consequências de tais ações para o nadas ao modo como a pessoa busca não
desenvolvimento de seu psiquismo. só encontrar os limites do interno e do
Em outras palavras: externo em sua corporeidade, mas tam-
bém como esperança de vir a encontrar
[Devemos considerar que] a maneira o toque terno do corpo do outro, que lhe
como uma criança se desenvolve de- possibilite a experiência de existir em sua
pende em boa parte do conjunto dos corporeidade.
cuidados que ela recebe durante sua Num aprofundamento sobre as suas
infância, não apenas da relação de ali- teorizações, é possível asseverar que a
mentação; que a libido não percorre a metáfora do Eu-pele foi criada por Anzieu
série de fases descritas por Freud quando para responder ao fato de o ponto de vista
o psiquismo do bebê sofreu violências; econômico sobre o aparelho psíquico – em
e que um desvio maior das primeiras termos de acumulação, deslocamento e
relações mãe-filho provoca neste úl- descarga de tensão – pressupor, dentro da
timo graves alterações de seu equilíbrio tópica psíquica, um início de formação
econômico e de sua organização tópica do Eu particularmente próximo ao corpo
(Anzieu, 1985, p. 25). orgânico.
Nesse sentido, o Eu-pele é a base de
Anzieu ressalta que a união sólida sustentação para a formação do futuro
entre o Eu psíquico e o corpo orgânico Eu psíquico, uma base ‘mais próxima’ do
dependerá, consequentemente, das rela- corpo orgânico, por assim dizer. E nesse
ções estabelecidas entre a dupla mãe-bebê. início parece não haver diferenciação
Ou seja, os limites da imagem do corpo e representação da unidade corporal, é
(ou a imagem dos limites do corpo) são como se fosse preciso, para que um Eu
também especialmente adquiridos durante se forme, a experiência da pele como
o processo de fusão/desfusão da criança experiência paradoxal de si e do outro
em relação com a mãe (e/ou substitutos). em único evento.
Essas atividades (o manejo do corpo Além disso, as fantasias de esva-
do bebê) conduzem progressivamente a ziamento, que Anzieu presenciara em
criança a diferenciar uma superfície que sua clínica, o levaram a inferir que tal
comporte uma face interna e uma face início de formação está particularmente
externa, isto é, uma interface que permite relacionado à ideia de ‘bolsa’, ‘contorno’,
a distinção do de fora e do de dentro, e ‘continente’, ‘capa protetora’, enfim,
um volume ambiente no qual ele se sente pele.
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O Eu-pele: contribuições de Didier Anzieu para a clínica da psicanálise

Desse modo, Anzieu conclui: outro, megalomania, fantasias de esvazia-


mento de uma substância vital, fantasias
Por Eu-pele, designo uma representação de persecutórias de invasão, entre outras. Ou
que se serve o Eu da criança, durante as seja, fenômenos patológicos resultantes de
fases precoces de seu desenvolvimento, insuficiências ou abalos nessa primitiva
para se representar a si mesma como Eu organização nomeada de Eu-pele.
que contém os conteúdos psíquicos, a Isto posto, em termos de conse-
partir de sua experiência da superfície do quências clínicas, Anzieu conclui que
corpo. Isto corresponde ao momento em é importante que o psicanalista esteja
que o Eu psíquico se diferencia do Eu atento na sessão não somente ao con-
corporal no plano operativo e permanece teúdo das associações do paciente, mas
confundido no plano figurativo (Anzieu, também às suas “flutuações” (suas faltas,
1985, p. 44, grifo nosso). sua frequência, seus problemas com ho-
rário, suas variações de fala e silêncio,
Podemos, então, reiterar que as ideias etc.), para que não ele – o analista –,
de Anzieu apontam que o Eu-pele é como mas ele – o paciente –, também perceba
que um pré-Eu, que prepara o caminho suas próprias flutuações, suas próprias
para o Eu psíquico: modificações de fronteira.
Podemos reconhecer nessa proposta
Este pré-Eu corporal é um precursor do que Anzieu nos assinala a possibilidade
sentimento de identidade pessoal e do de uma clínica não só assentada no campo
senso de realidade, que caracterizam o representacional, mas sobretudo como
Eu psíquico propriamente dito (Anzieu, campo de acontecimento, no qual as flu-
1985, p. 65). tuações estéticas na sessão poderiam ser
murmúrios de um Eu-pele em processo de
O que o autor deixa claro nesta últi- constituição.
ma passagem é que ele define um “início
de Eu” mais próximo do corpo orgânico, As nove funções do Eu-pele
nomeado de Eu-pele e uma “evolução do Resumamos, portanto, as nove funções
Eu”, rumo às abstrações da linguagem, no- do Eu-pele distinguidas por Anzieu, todas
meado de ‘Eu psíquico propriamente dito’. correlacionadas com as funções orgânicas
Sobre isso, inclusive, vale reiterar que, da pele, com suas construções psíquicas e
para Anzieu, segundo suas próprias pala- suas angústias subjacentes.
vras, “[...] o Eu, em seu estado originário, 1. Assim como a pele sustenta o cor-
corresponde então na obra de Freud ao po, o Eu-pele tem a função de sustentar
que eu propus chamar de Eu-pele” (An- o psiquismo e obviamente importam aí
zieu, 1985, p. 95). as pessoas encarregadas de “embalar” o
Interessa também aqui apontar as im- bebê. Como angústias ligadas a “defasa-
plicações dos desenvolvimentos teóricos gens” dessa função, estariam angústias de
do autor para sua reflexão sobre a clínica sentir-se perdido, sem referência, enfim,
da psicanálise. sem “objeto-suporte”.
Com seus estudos e sua prática clínica, 2. A segunda função estaria na rela-
Anzieu esclarece no livro O Eu-pele o que ção entre a casca e o conteúdo, pois é ne-
ele nomeou de “patologias do envelope”, cessário um conteúdo para fazer referência
que se apresentariam na clínica justamen- a um envelope. Para Anzieu a angústia
te sob o sentimento de despersonalização, ligada a defasagens dessa função seria de
indiferenciação entre o Eu e o não-Eu, esvaziamento, de incontinência física, de
dúvidas sobre o que é de si e o que é do dificuldade de resgate da memória, etc.
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3. A terceira função do Eu-pele 7. A sétima função está assim resu-


seria de paraexcitação, correlacionada mida:
às terminações nervosas da função tátil.
Tal função se refere ao que é permitido À pele como superfície de estimulação
entrar ou não, ao que é ou não passível permanente do tônus sensório-motor
de ser tocado. A angústia ligada a essa pelas excitações externas responde a
função é de teor paranoico de intrusão função do Eu-pele de recarga libidinal do
psíquica, gerando fantasias de ter uma funcionamento psíquico, de manutenção
superfície muito fina e passível de invasão da tensão energética interna e de sua
ou a ab-reação de formar uma carapaça repartição desigual entre os subsistemas
rígida e intransponível (como uma im- psíquicos (Anzieu, 1985, p. 119).
possibilidade de contato).
4. A quarta função do Eu-pele se A angústia ligada a esta sétima função
sustentaria no fato de a pele, por envolver estaria correlacionada a fantasias de explo-
todo o corpo, possibilitar ideias de que se são interna, por causa de uma sobrecarga
é uma unidade, sendo, pois, uma função de excitação, ou angústia de escoamento
de individuação que possibilita o senti- da excitação com o perigo de reduzir a
mento de ser único. A angústia ligada a tensão a zero.
essa função estaria relacionada a ameaças 8. Em paralelo às diversas informações
a essa individualidade, a invasão de ideias que a pele oferece, como temperatura,
sentidas como estranhas, promovendo o tato, pressão, a oitava função do Eu-pele
enfraquecimento das fronteiras do Self. seria a inscrição de traços que permitem
5. A pele, com seus orifícios alojando um retrato da realidade. Essa função se
os outros órgãos do sentido, permitiria ao liga ao que pode ser descrito como um
Eu-pele sua quinta função – a intersetoria- pergaminho originário que guarda traços
lidade –, que permite a entrada e a saída de um passado remoto. As angústias
de conteúdos “de fora” e, assim, é base de devido a insuficiências dessa função se
comunicação. Para Anzieu, a carência des- ligam a fantasias de ser marcado por algum
sa função corresponde à angústia de frag- traço infamante, ou de impossibilidade de
mentação do corpo, de desmantelamento, inscrições, de construção de uma história.
como se pudesse haver um funcionamento 9. A última função do Eu-pele des-
independente, anárquico, dos diversos crita por Anzieu seria como o negativo
órgãos do sentido. de todas as outras funções, uma função de
6. A sexta função do Eu-pele se sus- “autodestruição”. Tal função, que Anzieu
tentaria na capacidade de, na comunica- nomeou de função tóxica1 do Eu-pele,
ção pele a pele entre mãe e bebê, sentir estaria presente na pele como reações imu-
prazer, ser excitável ao tato. Portanto,
tal função pode ser designada como uma
função de superfície de sustentação da ex-
citação sexual. Para Anzieu (1985, p. 118)
1. Sobre a função tóxica do Eu-pele, aliás: Tal possibilida-
“[...] na falta de uma descarga satisfatória, de denotaria quase uma subversão total do princípio de
este envelope de excitação erógeno pode prazer, mas, para Anzieu, o existir através do sofrimento
se transformar em envelope de angústia”. não é uma subversão do princípio de prazer – muito
embora o pareça em casos extremos de masoquismo nos
As consequências de uma insuficiência quais o sujeito coloca sua vida no limite entre a vida e a
dessa função, ou de um posterior prejuízo morte. Nesses casos Anzieu defende que, pelo contrário,
nela, podem ser uma dificuldade em se o existir através do sofrimento seria como o derradeiro
recurso para prolongar a vida, a última possibilidade de
envolver numa relação sexual, ou dificul- tirar algum prazer, de suportar um pouco mais algo da
dade em concluí-la. ordem do insuportável.

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O Eu-pele: contribuições de Didier Anzieu para a clínica da psicanálise

nológicas adversas e parece se ligar a uma patologias do Eu-pele, sublinhou a impor-


tendência paradoxal que vai contra todas tância da consideração do ritmo das ses-
as outras funções. As complicações dessa sões, em paralelo com a ideia de operação
função demonstram um paradoxo entre de uma continuidade que permita ao pa-
ciente um suporte e uma possível “interio-
[...] o que é natural é vivido como artifi- rização” de uma continuidade nele próprio.
cial; o vivo é assimilado como mecânico; Anzieu deixa claro que o Eu-pele deve
o que é bom para a vida é sentido como ser superado. Porém, isso não significa que
um perigo mortal. Tal funcionamento não permaneça operante como tela de
psíquico paradoxal, por uma reação circu- fundo de novas funções e aquisições. Além
lar, altera a percepção do funcionamento disso, fica reafirmado que antes o Eu-pele
corporal e se torna reforçado nos seus deve ter sido suficientemente adquirido
paradoxos (Anzieu, 1985, p. 122). para somente então ser superado.

Com isso, Anzieu propõe uma con- Considerações finais


tínua revisão e um constante questiona- Isto posto, o vislumbre que Anzieu propor-
mento sobre o manejo clínico de casos ciona em termos de prática clínica quando
que apontam para problemas referentes ao da ocorrência de casos que apontam para
Eu-pele. Tal manejo não necessariamente malformações e/ou abalos no Eu-pele seria
obriga o psicanalista ao toque efetivo, desenvolver antes uma “pele de palavras
obviamente, muito pelo contrário, muitas que acalme a dor” (Anzieu, 1985, p. 214),
vezes ele pode, e até deve, para, com isso, iniciar um percurso de re-
construções de saídas no mínimo menos
[...] encontrar palavras que sejam equiva- destrutivas para o paciente.
lentes simbólicos do tocar e que exer- Para concluir, o analista certamente
çam as funções do Eu corporal e do Eu está escalado a responder em sua prática
psíquico que não receberam no passado sobre as consequências de suas ações no
as estimulações suficientes a seu desen- que tange à consideração do Eu-pele.
volvimento (Anzieu, 1985, p. 129). Nesse sentido, a contribuição de
Anzieu nos indica que, ao não propiciar,
Tal é o manejo clínico que Anzieu quando necessário, esse “objeto suporte”,
anuncia: o analista: (1) ou estaria sendo omisso – e
ignorante das consequências dessa omis-
Cabe ao psicanalista desenvolver no são; (2) ou, por um excesso de prudência,
paciente uma consciência suficiente de impediria ao paciente o acesso a novas
si e dos outros para que o paciente saiba construções, inviabilizando a própria
buscar, encontrar e conservar, fora da análise.
análise, os protagonistas capazes de sat- Nesse vértice, vemos que estaríamos
isfazer suas necessidades corporais e seus falando não tanto de uma clínica da es-
desejos psíquicos, sem preencher as falhas cuta, mas sim de uma clínica na qual a
narcísicas, e nem fornecer um objeto real sensibilidade do analista é convocada para
de amor. A saúde mental, dizia Bowlby, é dar suporte, acolhimento e reconhecimen-
escolher viver com pessoas que não nos to aos campos estéticos produzidos pelo
tornem doentes... (Anzieu, 1985, p. 139). paciente na sessão, que seriam possibilida-
des de eventos de intercorporeidade, base
Podemos perceber que, baseado em fundamental para a evolução em direção
sua clínica e teorizando sobre o Eu-pele, a experiências intersubjetivas na situação
Anzieu, além de definir o que nomeou de clínica. ϕ
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The Skin Ego: some Sobre os autores


contributions from
Ligia Maria Durski
Didier Anzieu for the Psicóloga e bacharel em psicologia pela
psychoanalysis clinic Universidade Federal do Paraná (2006).
Mestre em psicologia clínica/psicanálise
Abstract pela Universidade Federal do Paraná (2011).
This work presents a critical review Doutoranda em psicanálise pela USP.
Membro pesquisadora do Núcleo de Pesquisa
of Didier Anzieu’s work entitled “The e Laboratório PROSOPON da USP.
Skin-Ego (1985). We emphasize some
contributions of Didier Anzieu for thinking Gilberto Safra
about psychoanalytic clinic mainly through Graduado em psicologia pela USP (1976).
cases that deal with problems, shocks and/or Mestre em psicologia clínica pela USP (1984).
Doutor em psicologia clínica pela USP (1990).
insufficiencies on the limits of the Ego. We Professor doutor titular do Departamento de
emphasized the idea of the Didier Anzieu’s Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia
“Skin-Ego” about the Ego organization and da USP (desde 1991).
its relations with the organ the recover our Coordenador do Núcleo de Pesquisa
body: the skin. e Laboratório PROSOPON da USP.

Keywords
Psychoanalysis, Clinic, Ego organization,
Skin and Body.

Referência
ANZIEU, D. O Eu-pele. São Paulo: Casa do Psi-
cólogo, 1988.

Recebido em: 04/08/2015


Aprovado em: 11/03/2016

Endereço para correspondência

Ligia Maria Durski


E-mail: <ligiadurski@usp.br>

Gilberto Safra
E-mail: <iamsafra@usp.br>

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O Eu-pele: contribuições de Didier Anzieu para a clínica da psicanálise

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