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MERCOSUL
RESUMO: Neste início de século a integração regional e sul-americana volta a ser um dos desafios
para as novas gerações. Os países da América do Sul apresentam características históricas semelhantes,
seja em termos das desigualdades sociais e das assimetrias inter e intra-nações. Durante o período
em que houve o predomínio de governos neoliberais, muitos países da região adotaram políticas
desindustrializantes e de desnacionalização que acentuaram ainda mais as desigualdades sócio-
econômicas. Todavia, as experiências históricas de integração já realizadas durante o século XX (ALALC,
Pacto Andino e MCCA) e as reflexões teóricas e históricas sobre o desenvolvimento contribuem para
tornar as diferenças em fatores positivos para uma integração sul-americana orientada pela
complementaridade dos fatores produtivos, populacionais e das políticas de Estado. O papel estratégico
que o Brasil e a Argentina têm para uma integração sub-regional e sul-americana é essencial para o
futuro do Mercosul e da UNASUL, que aponte caminhos distintos aos da NAFTA e da ALCA. Novamente
os investimentos em transporte, energia e a criação de um sistema de crédito regional são fundamentais
para a superação das assimetrias e do baixo nível de intercâmbio.
PALAVRAS-CHAVE: Relação Brasil-Argentina. Integração. Mercosul. América do Sul.
ABSTRACT: In this new century, the regional integration and South American become, once more,
one of the challenges for the new generations. The South American countries present similar historical
characteristics, in terms of social inequalities and asymmetries of inter and intra-nations. During the
period in which there was the predominance of neoliberal governments, many countries in the region
adopted policies of denationalization and desindustrialization which aggravated socio-economic
inequalities even more. However, the historical experiences of integration during the past century
(ALALC, Pacto Andino e MCCA) and the theoretical and historical reflections on the development
contribute to making differences in factors positive for a South American integration driven by the
complementarity of production, population and policies of state factors. The strategic role that Brazil
and Argentina have for a sub-regional and South American integration is essential to the future of
Mercosur and UNASUL, which point to different ways of NAFTA and the FTAA. Further, investment in
transport, energy and the creation of a regional credit system are essential to overcome the imbalances
and the low level of exchange.
KEY WORDS: Brazil and Argentina relation. Integration. Mercosur. South America
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Três dos países da região se encontram região em direção aos Estados Unidos e à
voltados exclusivamente para o Pacífico, três Europa Ocidental. Há um milhão de
se debruçam sobre o Oceano Atlântico, uruguaios vivendo fora do Uruguai
quatro são caribenhos e dois são enquanto três milhões se encontram no
mediterrâneos. O Brasil tem 15.735 km de país. Há 400 mil equatorianos na Espanha
fronteiras com nove Estados vizinhos, e 4 milhões de brasileiros no exterior. Ao
enquanto a Argentina, a Bolívia e o Peru mesmo tempo, há grandes espaços
têm fronteiras com cinco vizinhos. Devido despovoados na América do Sul, onde a
a essas circunstâncias geográficas, os densidade demográfica é inferior a 1
pontos de vista geopolíticos de cada país habitante por quilômetro quadrado,
são inicialmente distintos, o que se agrava enquanto nas megalópoles a densidade
pelo fato de até recentemente - e mesmo populacional atinge mais de 10.000
até hoje - terem estado separados os países habitantes por quilômetro quadrado. A
da região pela Cordilheira, pela floresta, América do Sul exibe índices de
pelas distâncias e pelos imensos vazios concentração de renda e de riqueza, de
demográficos. pobreza e de indigência, de opulência e
O Brasil tem 190 milhões de luxo, contrastes espantosos entre
habitantes, que correspondem a cerca de riquíssimas mansões e palafitas miseráveis,
50% da população da América do Sul, entre excelentes hospitais privados e
enquanto o segundo maior país em hospitais públicos decadentes, entre
população, que é a Colômbia, tem 46 escolas de Primeiro Mundo e pardieiros
milhões de habitantes e o terceiro, a escolares. Todavia, conta a América do Sul
Argentina, tem 39 milhões. As taxas de com as vantagens da ausência de conflitos
crescimento demográfico variam de 3% no raciais agudos, ainda que ocorra
Paraguai a 0,7 % no Uruguai. A América discriminação racial; com a presença
do Sul viveu nos últimos anos um processo dominante de idiomas de comum origem
acelerado de urbanização, com o ibérica, ainda que em alguns países existam
surgimento de megalópoles que idiomas indígenas que conseguiram
concentram grandes parcelas da população sobreviver; com a ausência de conflitos
total de cada país, e que exibem periferias religiosos e predominância católica ao lado
paupérrimas e violentas. Há significativas da rápida expansão das igrejas
populações de deslocados internos no Peru, protestantes; com uma população grande,
como conseqüência da luta feroz contra a mas que não é excessiva, como em certos
insurreição do Sendero Luminoso, e de países asiáticos. O desafio que representa
refugiados, como no caso de colombianos a emergência das populações indígenas
na Venezuela e no Equador. No passado, historicamente oprimidas e seus efeitos
as ditaduras e os regimes militares para as relações políticas entre os países
provocaram o exílio de numerosos da América do Sul vão exigir, todavia,
militantes políticos, intelectuais, operários especial atenção e habilidade.
e sindicalistas, com grave prejuízo para o A América do Sul é uma região
desenvolvimento político dos países mais extremamente rica em recursos naturais,
afetados. Ademais, durante algumas que se encontram distribuídos de forma
décadas o reduzido ritmo de crescimento muito desigual entre os diversos países.
econômico provocou movimentos Enquanto o Brasil tem as maiores reservas
migratórios significativos dos países da mundiais de minério de ferro de excelente
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Essas políticas levaram à A capacidade de utilizar tradicionais
desindustrialização em maior ou menor instrumentos de promoção do
grau, à maior influência do capital desenvolvimento econômico, que aliás
multinacional e à desnacionalização de tinham sido amplamente usados pelos
importantes setores de suas economias, em países hoje desenvolvidos no início de seu
especial do setor financeiro, com efeitos processo de desenvolvimento (i.e. de seu
econômicos, e inclusive políticos, processo de industrialização), foi
significativos. abandonada pelos países da América do Sul
Essa maior integração, porém de na Rodada Uruguai, quando aceitaram
natureza passiva, dos países sul- normas sobre disciplina do capital
americanos na economia mundial é estrangeiro as quais proíbem políticas tais
radicalmente distinta da integração na como a nacionalização de insumos, o
economia global que ocorre com os países estabelecimento de metas de exportação e
altamente desenvolvidos ou com certos o reinvestimento de parte dos lucros; ou
países emergentes, como a Coréia. Nesses que estabelecem normas sobre propriedade
últimos casos, essa maior integração se intelectual que ampliaram os prazos de
verifica através da internacionalização das patentes e estabelecem patentes sobre
atividades de suas grandes empresas de fármacos, dificultando de fato o
atuação multinacional mas de capital desenvolvimento tecnológico e gerando
nacional, bem como de suas exportações enormes remessas financeiras. Este
de alto conteúdo tecnológico enquanto que, abandono dos instrumentos econômicos
no caso dos países sul-americanos, se tradicionais de uso do Estado, assim como
verifica através da maior participação de a confiança excessiva desses países no livre
megaempresas multinacionais em suas jogo das forças de mercado contribuíram
economias, já que não possuem esses para que viessem a ter seu ritmo de
últimos países (com raras exceções) crescimento reduzido ou estagnado. Por
grandes empresas capazes de se outro lado, a derrocada ideológica do
internacionalizarem, e da expansão de suas Welfare State nos países desenvolvidos fez
exportações de “commodities”. com que os países sul-americanos também
Em decorrência, os países da América contraíssem ou desarticulassem os seus
do Sul retomaram, voluntária ou programas sociais, o que contribuiu para
involuntariamente, sua especialização agravar a concentração de renda e de
histórica na exportação de produtos propriedade e para a pequena expansão de
primários, tradicionais ou novos, com maior seu mercado interno.
grau, por vezes, de elaboração, para Assim, em grande parte se explicam
atender à demanda dos países altamente as baixas taxas de crescimento na América
desenvolvidos e da China. Assim, grosso do Sul, das décadas de 80 e 90, quando
modo, sua agricultura se sofisticou e comparadas às de alguns países da Ásia, e
passou a ser denominada de agribusiness; a eventual derrocada dos governos
sua indústria foi adquirida ou cerrou suas neoliberais na Argentina, no Brasil, no
portas em um processo de Chile, na Bolívia, no Equador e na
desindustrialização/desnacionalização e Venezuela. Nos últimos anos, surgiram na
muitas de suas empresas de serviços, em América do Sul governos que procuram
especial as empresas modernas e aquelas manter as políticas de austeridade fiscal e
do setor financeiro, foram adquiridas por de controle inflacionário enquanto tentam
megaempresas multinacionais. ressuscitar o Estado como agente
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há possibilidade de crescer a 7% a/a na A redução das assimetrias é o
média durante um período longo sem um segundo elemento essencial da estratégia
suprimento suficiente, seguro e crescente brasileira de integração. Em um processo
de energia. Este suprimento depende de de integração em que as assimetrias entre
investimentos de prazo mais ou menos as partes são significativas tornam-se
longo de maturação, tais como a prospecção indispensáveis programas específicos e
de jazidas de petróleo, gás e urânio, a ambiciosos para promover sua redução. É
construção de barragens, a construção de óbvio que não se trata aqui das assimetrias
usinas hidro e termoelétricas, assim como de território e de população mas sim
nucleares. A América do Sul, como região, daquelas assimetrias de natureza
tem um excedente global de energia, porém econômica e social. É indispensável a
com grandes superávites atuais e existência de um processo de transferência
potenciais em certos países e com severos de renda sob a forma de investimentos
déficits em outros. No primeiro caso, se entre os Estados participantes do esquema
encontram a Venezuela, o Equador e a de integração como ocorreu e ocorre ainda
Bolívia para o gás e o petróleo. No caso de hoje na União Européia. Esse processo é
energia hidrelétrica, há excedentes ainda embrionário no Mercosul, sendo o
extraordinários no Brasil, no Paraguai e na Fundo para Convergência Estrutural e o
Venezuela. De outro lado, se encontram Fortalecimento Institucional do Mercosul -
países com déficit estrutural de energia FOCEM, apenas um modesto início.
como o Chile e o Uruguai e casos A generosidade dos países maiores e
intermediários como são o Peru, a Colômbia mais desenvolvidos é sempre mencionada
e a Argentina. Assim, a integração pelo Presidente Lula como um terceiro
energética da região permitirá reduzir as elemento essencial para o êxito do processo
importações extra-regionais e fortalecer a de integração do Mercosul e da América
economia da América do Sul. No esforço do Sul. Esta generosidade deve se traduzir
de fortalecer e de integrar o sistema pelo tratamento diferencial, sem exigência
energético da região, o Brasil tem de reciprocidade, em relação a todos os
financiado a construção de gasodutos na países da América do Sul que estejam
Argentina e tem se empenhado na engajados no processo de integração
concretização do projeto do Grande regional, nas áreas do comércio de bens,
Gasoduto do Sul que deverá vincular os de serviços, de compras governamentais,
maiores centros produtores de energia (a de propriedade intelectual etc. Isto é, o
Venezuela e a Bolívia) aos maiores Brasil deve estar disposto a conceder
mercados consumidores (o Brasil, a tratamento mais vantajoso sem
Argentina e o Chile). O Brasil está disposto reciprocidade a todos os seus vizinhos, em
a compartilhar a tecnologia que especial àqueles de menor desenvolvimento
desenvolveu na área dos biocombustíveis, relativo, aos países mediterrâneos e aos
acreditando que a crise energética e países de menor PIB per capita. O
ambiental somente poderá ser enfrentada Brasil, apesar de ser o maior país da região,
com eficiência a partir de uma modificação não acredita ser possível desenvolver-se
gradual da matriz energética mundial, de isoladamente sem que toda a região se
uma redução do consumo e do desperdício desenvolva econômica e socialmente e se
nos países altamente desenvolvidos, assegure razoável grau de estabilidade
principais responsáveis pela emissão de política e segurança. Assim, a solidariedade
gases de efeito estufa. nos esforços de desenvolvimento e de
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integração é uma idéia central na estratégia recuperação e fortalecimento industrial de
brasileira na América do Sul, assim como seus vizinhos nos levou à negociação do
a idéia de que este processo é um processo Mecanismo de Adaptação Competitiva com
entre parceiros iguais e soberanos, sem a Argentina, aos esforços de
hegemonias nem lideranças. estabelecimento de cadeias produtivas
A integração econômica da América do regionais e à execução do Programa de
Sul tem passado por um processo acelerado Substituição Competitiva de Importações,
de expansão, impulsionado pela redução cujo objetivo é tentar contribuir para a
das tarifas propiciada pelos acordos redução dos extremos e crônicos déficits
comerciais preferenciais. O comércio de comerciais bilaterais, quase todos favoráveis
bens intra-América do Sul que era de 10 ao Brasil. No campo externo, a estratégia
bilhões de dólares em 1980 passou para brasileira visa a ampliar os mercados para
68 bilhões em 2005. O comércio de as exportações do Mercosul através da
serviços, que era praticamente inexistente negociação de acordos de livre comércio ou
na década de 1960, também se expandiu, de preferências comerciais com países
ainda que em menor escala. Os exemplos desenvolvidos, como no caso da União
mais relevantes de expansão poderiam ser Européia; e com países em
dados pelo setor financeiro, com o desenvolvimento tais como a Índia e a
estabelecimento de filiais de bancos, pelo África do Sul, em busca da abertura de
setor dos transportes aéreos e mesmo mercados e visa a prestigiar e fortalecer o
terrestres, e pelo turismo intra-regional. Os processo de negociação em conjunto, que
investimentos de empresas da região em não só favorece os parceiros maiores, mas
terceiros países da própria região se também os parceiros menores do Mercosul,
tornaram expressivos, como demonstra a na medida em que obtêm eles condições
expansão das empresas chilenas e de acesso que possivelmente não
brasileiras, em especial na Argentina. alcançariam caso negociassem
Finalmente, houve considerável expansão isoladamente.
das populações de imigrantes intra- Em um sistema mundial cujo centro
regionais. Todos esses fatores contribuem acumula cada vez mais poder econômico,
para a formação de um mercado único sul- político, militar, tecnológico e ideológico;
americano, já que, implementados os em que cada vez mais aumenta o hiato entre
acordos comerciais bilaterais entre países os países desenvolvidos e subdesenvolvidos;
da região, cerca de 95% do comércio intra- em que o risco ambiental e energético se
regional será livre de tarifas, em 2019. A agrava; e em que este centro procura tecer
reativação do CCR e o estabelecimento de uma rede de acordos e de normas
uma moeda comum para transações entre internacionais que assegurem o gozo dos
Brasil e Argentina muito contribuirão para privilégios que os países centrais
a expansão do comércio bilateral e regional. adquiriram no processo histórico e em que
A estratégia brasileira no campo dessas negociações participam grandes
comercial tem sido procurar consolidar o blocos de países, a atuação individual,
Mercosul e promover a formação de uma isolada, nessas negociações não é
área de livre comércio na América do Sul, vantajosa, nem mesmo para um país com
levando em devida conta as assimetrias as dimensões de território, população e PIB
entre os países da região. A compreensão que tem o Brasil. Assim, para o Brasil é de
brasileira com as necessidades de indispensável importância poder contar
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T & M
SOBRE O AUTOR
É Embaixador do Itamaraty; foi Secretário-Geral das Relações Exteriores do Ministério
das Relações Exteriores, entre 2003 e 2009; ex-chefe do Departamento Econômico do
Itamaraty e ex-diretor do Instituto de Pesquisas em Relações Internacionais (IPRI) do
Itamaraty. Autor e/ou organizador de vários livros, dentre os quais cabe destacar:
Quinhentos Anos de Periferia (Editora Universidade/UFRGS/Contraponto, 2000) e ALCA
e Mercosul: riscos e oportunidades para o Brasil (IPRI/FUNAG, 1999).
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