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Volume 1
Flávio Limoncic
Mônica Grin

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História e Sociologia
História e Sociologia

Volume 1 – Módulos 1 e 2

Flávio Limoncic
Mônica Grin

Apoio:
Fundação Cecierj / Consórcio Cederj
Rua Visconde de Niterói, 1364 – Mangueira – Rio de Janeiro, RJ – CEP 20943-001
Tel.: (21) 2334-1569 Fax: (21) 2568-0725

Presidente
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Vice-presidente
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UNIRIO – Keila Grinberg

Material Didático
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ELABORAÇÃO DE CONTEÚDO
Flávio Limoncic
Mônica Grin EDITORA PROGRAMAÇÃO VISUAL
Tereza Queiroz Davi Daniel de Macêdo
COORDENAÇÃO DE DESENVOLVI- Sanny Reis
MENTO INSTRUCIONAL REVISÃO TIPOGRÁFICA
Cristine Costa Barreto Cristina Freixinho ILUSTRAÇÃO
Daniela de Souza André Dahmer
SUPERVISÃO DE DESENVOLVIMENTO Diana Castellani
INSTRUCIONAL CAPA
Elaine Bayma
Cristiane Brasileiro André Dahmer
Patrícia Paula
DESENVOLVIMENTO INSTRUCIONAL PRODUÇÃO GRÁFICA
COORDENAÇÃO DE Patricia Seabra
E REVISÃO PRODUÇÃO
Alexandre Belmonte Jorge Moura
Marcelo Bastos Matos

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Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer meio
eletrônico, mecânico, por fotocópia e outros, sem a prévia autorização, por escrito, da Fundação.

L734h
Limoncic, Flávio.
História e Sociologia. v. 1 / Flávio Limoncic, Mônica Grin. -
Rio de Janeiro: Fundação CECIERJ, 2010.
230 p.; 19 x 26,5 cm.

ISBN: 978-85-7648-548-3
1. História. 2. Sociologia. I. Grin, Mônica. II. Título.
CDD: 901

2010/1 Referências Bibliográficas e catalogação na fonte, de acordo com as normas da ABNT.


Governo do Estado do Rio de Janeiro

Governador
Sérgio Cabral Filho

Secretário de Estado de Ciência e Tecnologia


Alexandre Cardoso

Universidades Consorciadas

UENF - UNIVERSIDADE ESTADUAL DO UFRJ - UNIVERSIDADE FEDERAL DO


NORTE FLUMINENSE DARCY RIBEIRO RIO DE JANEIRO
Reitor: Almy Junior Cordeiro de Carvalho Reitor: Aloísio Teixeira

UERJ - UNIVERSIDADE DO ESTADO DO UFRRJ - UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL


RIO DE JANEIRO DO RIO DE JANEIRO
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UFF - UNIVERSIDADE FEDERAL


FLUMINENSE UNIRIO - UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO
Reitor: Roberto de Souza Salles DO RIO DE JANEIRO
Reitora: Malvina Tania Tuttman
História e Sociologia
SUMÁRIO
Volume 1 – Módulos1 e 2

Módulo 1 – A emergência histórica da Sociologia

Aula 1 – Sociologia e senso comum _____________________7


Flávio Limoncic / Mônica Grin

Aula 2 – As grandes transformações do século XIX


e o surgimento histórico da Sociologia___________25
Flávio Limoncic / Mônica Grin

Aula 3 – A consciência moderna: modernidade x tradição_ 47


Flávio Limoncic / Mônica Grin

Aula 4 – Duas visões sobre a sociedade: Durkheim e a


coesão social e Marx e o conflito social_________71
Flávio Limoncic / Mônica Grin

Aula 5 – Marx Weber e o desencantamento do mundo____97


Flávio Limoncic / Mônica Grin

Aula 6 – Escola de Chicago: a inovação da prática


sociológica no contexto norte-americano_______127
Flávio Limoncic / Mônica Grin

Aula 7 – O ensaísmo como precursor da Sociologia


no Brasil __________________________________149
Flávio Limoncic / Mônica Grin

Aula 8 – O pensamento social brasileiro II:


os pensadores autoritários __________________ 177
Flávio Limoncic / Mônica Grin

Módulo 2 – A Sociologia no Brasil

Aula 9 – A Sociologia in no Brasil dos anos 1950_______191


Flávio Limoncic / Mônica Grin

Aula 10 – Grandes temas da Sociologia brasileira I:


preconceito, tensão racial e a integração
do negro no Brasil _______________________ 207
Flávio Limoncic / Mônica Grin

Referências _______________________________________223
Aula 1
Sociologia e
senso comum
História e Sociologia

Meta da aula

Levar o estudante a diferenciar o conhecimento sociológico


das opiniões e das observações do senso comum.

Objetivos

Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de:

1. identificar as diferenças entre as observações e as crenças do senso comum e as


formas de conhecimento sociológico dos fenômenos sociais;
2. reconhecer a realidade e os fenômenos sociais à sua volta, a partir de uma visão
crítica e diferenciada do senso comum.

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Aula 1 – Sociologia e senso comum Módulo 1

INTRODUÇÃO

Muito provavelmente você já deve ter tido algum contato com


a disciplina Sociologia ao longo do Ensino Médio, ou ao menos já
ouviu falar da Sociologia e de alguns importantes sociólogos. Nem
todos sabem, mas nós já tivemos até um presidente da República
que é sociólogo: Fernando Henrique Cardoso. A Sociologia é uma
ciência que se ocupa do conhecimento, da pesquisa e da reflexão
de fenômenos sociais, ou seja, dos temas da vida em sociedade.
O sociólogo é um observador atento da vida cotidiana, imerso no
mundo dos homens, em suas histórias, em suas paixões. Sendo
parte desse mundo, sua própria vida converte-se em parte do seu
campo de estudo. Muitas vezes o que ele comunica parece óbvio
ou familiar, parece não ser muito diferente do que você observa no
mundo. O que, então, torna as observações do sociólogo sobre
a vida em sociedade diferentes das suas?

O senso comum e o conhecimento


sociológico

Vejamos algumas situações. Abra a porta da sua casa.


O que você está vendo? Se você mora em uma cidade, verá,
possivelmente, casas, edifícios, lojas, fábricas, parques e praças, ruas
e avenidas cheias de ônibus e carros, muitas pessoas andando para
lá e para cá... Se sua casa for na zona rural, possivelmente você
verá animais domésticos e hortas, pessoas passando a cavalo
ou a pé, o caminhão do leite... Cenas que, de tanto ver, você as
considera naturais. Afinal, tanto na cidade quanto no campo, todos os
dias as pessoas se levantam para trabalhar, se deslocam de um lugar
para o outro, as crianças vão para a escola, mercadorias são produzidas
e vendidas, trocas são realizadas, namorados se beijam, pais e
mães cuidam de seus filhos. Enfim, você vê a vida cotidiana como está
acostumado a vê-la.

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História e Sociologia

Vamos tornar essa história um pouco mais complexa.


Imagine agora um sociólogo que faça o mesmo que você, ou seja,
que abra a porta de sua casa, seja ela na cidade ou no campo,
e descreva o que está vendo. Muito provavelmente ele verá coisas
que você, que vive cotidianamente nessa paisagem, a sua paisagem,
talvez nunca tenha visto.

“O fascínio da sociologia está no fato de que sua perspectiva


nos leva a ver sob nova luz o próprio mundo em que todos
vivemos.” – Peter Berger

Durkheim é considerado um dos funda-


dores da Sociologia como disciplina.
Ele a definiu como um modo sistemático
de compreender o fenômeno social a
partir de uma perspectiva distinta da
tendência comum, ou do senso comum,
que tende a reduzi-lo à experiência dos
indivíduos.

10
Aula 1 – Sociologia e senso comum Módulo 1

O que, exatamente, o sociólogo observará ao abrir a porta


da sua casa? Em primeiro lugar, o sociólogo buscará compreender
a sua paisagem a partir de métodos, conceitos, referências
teóricas, comparações com outras realidades e culturas e regras de
verificação. Isso porque a Sociologia é um campo de conhecimento
científico que tem como objetivo compreender os fenômenos sociais,
os indivíduos e suas formas de coesão social; examinar as estruturas
sociais (organizações, comunidades); identificar as categorias sociais
(classe, gênero, raça), as instituições (parentesco, economia, política
e religião). Compreender como essas forças sociais formam nossas
vidas, especialmente aquelas que afetam nossa consciência ou
ignorância, nossas atitudes, ações e oportunidades é o objetivo
principal da Sociologia.

Isso quer dizer que o pensamento sociológico produz um


tipo de conhecimento bastante diferente e mais complexo do que
aquele produzido pelo senso comum. Enquanto este naturaliza a Senso comum
É o conhecimen-
realidade em que vivemos, a Sociologia procura desvendar relações,
to baseado em
conflitos, regularidades e padrões, de modo a que vejamos coisas observações da
que, à primeira vista, não percebemos. Eis a chave: as coisas não realidade cujos funda-
são o que parecem ser. mentos são as expe-
riências subjetivas, o
Observe agora um novo exemplo que poderá esclarecer um saber imediato, conhe-
pouco mais essa distinção: cimentos cotidianos
acumulados, sociali-
zação dos indivíduos,
tradição, crenças e mitos.

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História e Sociologia

Digamos que você se encontra em uma aula de Sociologia


e que o professor introduz o tema da favela. Ele, então, começará
a aula descrevendo a favela. Falará sobre seus problemas, seus
habitantes, seus hábitos e costumes, as relações entre as pessoas etc.
Digamos que você more em uma favela. Para você, parecerá óbvia
a descrição do professor. Afinal, é parte da sua vida a observação
cotidiana desse contexto, a favela. É natural que você pense: "Nada
do que o professor fala é novo. Por que ele acha que pode falar
melhor da favela quando quem mora na favela sou eu?" Para você,
talvez a única diferença é que o professor de Sociologia usa uma
linguagem sofisticada para dizer o que você já sabe. Afinal, você é o
morador da favela. Mas a aula continua... O professor de Sociologia
que iniciou a aula fazendo uma descrição simples e familiar da favela
passa então a utilizar categorias complexas, conceitos, exemplos
de comunidades parecidas com favelas em outros países, propõe
comparações com exemplos pouco familiares, apresentando dados
estatísticos e diagnósticos sobre violência, por exemplo, que não
se escutam nas esquinas da favela nem nas conversas em família.
Nesse percurso da aula, o professor foi capaz de trazer para a aula
novas camadas de significados que podem perfeitamente levar um
aluno, como você, a mudar sua própria percepção da tão “familiar”
favela. Essa transformação nas percepções dos alunos é que
mostra como o conhecimento sociológico se diferencia das
percepções do senso comum.

Agora, você verá um exemplo que irá tornar ainda mais clara
essa distinção. Para você, o que significa uma mãe cuidando de
uma criança ao longo de um dia?

12
Aula 1 – Sociologia e senso comum Módulo 1

A partir dessa cena, um sociólogo poderia levantar várias


hipóteses:

• a família à qual pertence essa mãe se estrutura a partir de


uma lógica tradicional: o pai trabalha e traz o pão de cada
dia, e a mãe cuida da casa e das crianças;

• no lugar em que aquela família mora não há creches e,


portanto, a mãe, que gostaria de trabalhar fora, acabou
aceitando o papel de cuidar do filho ao longo do dia;

• no lugar em que aquela mãe mora, os homens ganham salários


melhores do que os das mulheres, mesmo para ocupações
iguais, e, portanto, na ausência de creches, o pai acabou
assumindo o papel de provedor da casa.

Essas três possibilidades, que serão analisadas pelo sociólogo


através de métodos variados como pesquisas de campo e de opinião,
ou da análise de indicadores econômicos e sociais na região onde
moram a mãe e sua família, podem levar a várias conclusões a
respeito da cultura do lugar, dos serviços públicos oferecidos (ou
não) pelas autoridades locais ou a respeito do cruzamento da
dinâmica do mercado de trabalho com a oferta de serviços públicos.

13
História e Sociologia

Seja qual for a conclusão do sociólogo, ela será diferente da


concluída pelo senso comum, que provavelmente verá na cena
simplesmente uma mãe amorosa cuidando de seu filho.

Atende aos Objetivos 1 e 2

1. Converse com três mães casadas que cuidam dos filhos e não trabalham fora e com três
mães casadas que trabalham fora. Tente recolher, ao menos, as seguintes informações:
Para as que só cuidam dos filhos:

1. a razão pela qual não trabalham fora;


2. se gostariam de trabalhar fora;
3. se o pai compartilha as responsabilidades do cuidado da casa e da(s) criança(s)
quando está em casa, à noite.

Para as que trabalham fora:

1. a razão pela qual trabalham fora;


2. com quem ficam o(s) filho(s) durante o trabalho;
3. se o salário que elas recebem são utilizados nas despesas domésticas ou se são gastos
nas despesas pessoais delas;
4. se o pai compartilha as responsabilidades do cuidado da casa e da(s) criança(s),
quando ambos estão em casa.

Depois de realizadas as entrevistas, faça uma comparação entre as respostas, tentando


estabelecer padrões. Por exemplo, quantas mães responderam de forma similar a uma
pergunta ou quantos tipos de respostas similares foram dadas.

14
Aula 1 – Sociologia e senso comum Módulo 1

Comentário
Esta atividade não tem uma resposta única. É possível que você tenha recolhido depoimentos
muito diferentes uns dos outros, mas ela representa uma primeira aproximação com o trabalho
do sociólogo, que muitas vezes trabalha utilizando o método de entrevistas.

Mas é possível também que, das entrevistas que você fez, algum padrão tenha aparecido.
Por exemplo, duas mães que dizem que trabalham fora em razão do baixo salário do marido e
que, portanto, dividem as despesas da casa com ele, mas que fazem todo o serviço doméstico,
quando os dois estão em casa. Ou então, duas mães que gostariam de trabalhar fora, mas
seus maridos não deixam, ou que não têm com quem deixar os filhos.

Desse conjunto de respostas possíveis, você terá um quadro bem mais amplo das razões que
levam uma mãe a trabalhar fora, ou das razões que a impedem de fazê-lo. Com isto, sua
visão a respeito de questões como maternidade, padrões de comportamento familiar, divisão
de tarefas entre maridos e mulheres etc., estará se aproximando da visão de um sociólogo.

Agora que você já tem uma ideia mais aprofundada da


diferença entre o pensamento sociológico e o senso comum, ao abrir
a porta de sua casa você olhará para as coisas de modo diferente.
Se mora em uma cidade, poderá perguntar: qual a relação entre o
tipo de ocupação de uma pessoa na fábrica e o grau de educação
dela? Ou ainda: há diferenças de ocupação, nessa mesma fábrica,
entre homens e mulheres? Essas mulheres têm filhos? Onde eles ficam
enquanto elas trabalham? Se essas mulheres são casadas, quando
chegam a casa ainda fazem todo o trabalho doméstico ou seus
maridos dividem com elas as tarefas de arrumá-la, lavar a louça e
cuidar das crianças?

Se você mora no campo, poderá perguntar: por que o


caminhão do leite passa todas as manhãs? Ele compra o leite de
pequenos produtores para levar para uma fábrica, pagando um
preço baixo pelo litro, ou os pequenos produtores se organizaram

15
História e Sociologia

em uma cooperativa, compraram um caminhão e, com isto,


conseguiram melhores preços para o seu produto? Se a segunda
alternativa for a verdadeira, que tipo de cooperativa é esta?
Como ela foi organizada? Ela implicou outras mudanças na vida
econômica e social dos produtores de leite da região?

Atende aos Objetivos 1 e 2

2. O local de trabalho geralmente possui regras de comportamento ditadas por sua


administração, seja loja, fábrica ou escritório. Por exemplo, pontualidade. Por isso, quando
um funcionário chega atrasado, seu patrão muitas vezes o critica. Também pode criticá-lo
por estar sempre cansado e desatento. O senso comum – afinal de contas, seu chefe não é
um sociólogo! – aponta para a individualização do problema. O problema é o funcionário
relapso. Converse com seus colegas de trabalho para verificar se isso também acontece
onde você trabalha.

16
Aula 1 – Sociologia e senso comum Módulo 1

Agora, junto aos seus colegas, verifique a distância entre as casas deles e o local de
trabalho, como eles se deslocam entre essas duas localidades. Se vão a pé ou de ônibus,
ou a pé e de ônibus; quanto tempo levam no deslocamento; se andam muito ou ficam em
pé no coletivo etc.
Escreva a seguir as conclusões dessa sua pesquisa.
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Comentário
Você deve ter ouvido várias respostas diferentes de seus colegas de trabalho. Poucos vão
admitir que não conseguem acordar cedo. A maioria, provavelmente, vai reclamar dos ônibus
atrasados e lotados, das grandes distâncias que devem percorrer entre a casa e o ponto de
ônibus e coisas do gênero. Se você mora no campo, muitos de seus colegas devem percorrer
longas distâncias a pé. Você também deve conhecer pessoas que, mesmo morando muito
longe de seu local de trabalho, nunca chegam atrasadas, não é?

Você compreenderá que vários fatores, que não são em absoluto problemas individuais,
condicionam a pontualidade de um funcionário. O local onde ele mora, sua renda, os
meios de transporte que utiliza etc. têm grande importância. Com isto, você vai tornar a
sua compreensão sobre os atrasos no trabalho mais complexa; portanto, mais próxima
da compreensão de um sociólogo.

17
História e Sociologia

Mas seu olhar sociológico não se limitará ao mundo de fora


da sua casa. Você também poderá transpor a visão do senso comum
a partir da compreensão da sua própria vida familiar.

Em sua família, como se relacionam os adultos, os sexos, as


Faixa etária diferentes faixas etárias? Para desenvolver uma compreensão
Muitas vezes pais e sociológica, você não deve olhar apenas para a sua família. Olhe
filhos têm relações con-
também para as famílias de seus vizinhos (mas não para fazer
turbadas, principalmente
quando os filhos chegam fofoca, o suprassumo do senso comum. Só assim você entenderá
à adolescência e bus- as dinâmicas familiares de sua região, da estrutura de classes
cam a independência.
sociais ou do perfil cultural. Você provavelmente se surpreenderá
O chamado conflito de
gerações também pode ao perceber que as dores e delícias de sua vida doméstica não
ser alvo do trabalho são exclusivamente suas, que dores e delícias muito parecidas
de sociólogos, que, são compartilhadas por outras famílias e que o pensamento
através do estudo do
sociológico pode ajudá-lo a compreender tudo isso.
comportamento de
jovens e adultos, tentam
estabelecer a compre-
ensão de aspirações
de vida e padrões Você pode estar se perguntando o que a Sociologia,
de comportamento ou mais precisamente a História, tem a ver com a
e conflito de acordo fofoca. Entre no site abaixo e descubra como algumas
coma faixa etária.
fofocas mudaram o rumo da História.
Fonte: historia.abril.uol.com.br/2006/edicoes/
vidaprivada/mt_243008.shtml#texto

Será que, a esta altura, você já é capaz de reconhecer


a diferença entre o senso comum e a Sociologia?

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Aula 1 – Sociologia e senso comum Módulo 1

Observe o quadro abaixo:

Senso comum Sociologia

1. Visões do senso comum são frequentemente 1. Visões sociológicas são baseadas em rigorosa pesquisa
baseadas nas experiências imediatas e limitadas das e em evidências. Podem ser baseadas em pesquisa
pessoas. Por exemplo: as pessoas podem perceber quantitativa ou qualitativa. Por exemplo: 1) o relatório
um aumento na criminalidade baseadas em suas do IPEA (Instituto de pesquisa Econômica Aplicada) sobre
experiências pessoais com o problema da violência. as desigualdades sociais faz uso de estatísticas oficiais
Um familiar assaltado, um parente assassinado, uma sobre níveis de desigualdade entre os mais ricos e os
vizinha ameaçada por traficantes. mais pobres na sociedade brasileira. 2) professores da
UFRJ identificaram, através de entrevistas informais com
2. Visões do senso comum são frequentemente mutan- estudantes de universidades públicas, um alto índice de
tes, simples e podem refletir algum grau de preconceito. rejeição à privatização do ensino público.
Por exemplo: os mendigos são um perigo para
a sociedade e devem ser retirados da rua. 2. Visões sociológicas são baseadas em teorias que
informam algumas conclusões complexas. Por exemplo:
3. Visões do senso comum tendem a refletir tradições os funcionalistas acreditam que a religião é a maior
e convenções sociais e em muitos casos resistir agência de socialização para a transmissão de normas e
às mudanças sociais. Por exemplo: as crianças valores morais.
serão melhor formadas se suas mães conservam
a estrutura de família nuclear ou as empregadas 3. As abordagens sociológicas sobre conflito podem muitas
domésticas de crença protestante são mais honestas. vezes estimular a mudança social. Por exemplo: 1) marxistas
ressaltam o conflito de classes baseado na exploração do
4. Visões do senso comum quase sempre se baseiam proletariado pela burguesia. Marx argumentava que a
em estereótipos que são reforçados pela mídia. Por classe trabalhadora deveria se unir para derrotar a classe
exemplo: a maioria dos assaltantes é de cor preta. dominante. 2) feministas radicais levantam sérias críticas
às sociedades patriarcais que pressionam e exploram
5. Visões do senso comum tendem a enfatizar explicações as mulheres, sugerindo que essas sociedades devam ser
individualistas e naturalizadas do comportamento. radicalmente mudadas.
Por exemplo: estudantes com desempenho ruim
na escola são rebeldes e carecem de inteligência. 4. Visões sociológicas desafiam os estereótipos. Por
exemplo: sociólogos que estudam violência nos Estados
6. Visões de senso comum carecem de verificação Unidos reconhecem que alguns negros roubam por
e validade científica. razões econômicas. Contudo, eles também sugerem que
o fenômeno da criminalidade entre os negros tem sido
exagerado e ampliado pelas agências de controle social,
pela mídia e pela polícia.

5. Visões sociológicas sugerem que poderosas forças


sociais explicam o comportamento humano. Por exemplo:
Durkheim acreditava que o suicídio ocorria devido a muito
pouco ou ao exagerado constrangimento imposto ao
indivíduo pela sociedade.

6. Visões sociológicas baseadas em dados quantitativos


são em geral altamente confiáveis. Por exemplo: dados
do IBGE sobre população estão baseados em entrevistas
que cobrem quase a totalidade do domicílios brasileiros.

19
História e Sociologia

Agora que você aprofundou mais um pouco sua compreensão


da diferença entre senso comum e conhecimento sociológico, você
pode aplicar seus novos conhecimentos a vários campos da vida.
Aliás, os métodos sociológicos podem ser aplicados a quaisquer
campos da vida em sociedade. Até nas coisas mais inesperadas.
Você já se deu conta de que:

1. o lixo pode ser alvo de investigação sociológica? Pode.


Como? Se o senso comum diz que lixo é lixo, o sociólogo
pode fazer uma sociologia do lixo: quem joga fora o quê,
quando, de que maneira, etc. Pode-se fazer, por exemplo,
um cruzamento das latas de lixo com a renda dos donos
de tais latas;

2. violência doméstica pode ser alvo de investigação sociológica?


Pode. Se o senso comum muitas vezes responsabiliza a
violência entre maridos e mulheres, por exemplo, pela
bebida alcoólica, o sociólogo entenderá esse fenômeno muito
provavelmente a partir de uma ótica que levará em conta
várias outros fatores: o meio social, a cultura, a carência de
instituições policiais, judiciárias e educacionais que tornem
efetivo o constrangimento e a punição da violência etc.;

20
Aula 1 – Sociologia e senso comum Módulo 1

3. a opção sexual pode ser alvo de investigação sociológica?


Pode. O senso comum pode muitas vezes interpretar uma
opção sexual como um desvio de conduta, uma aberração
moral, uma saliência, uma anomalia física etc. O sociólogo
buscará compreender esse fenômeno pelas suas dimensões
sociais e culturais; buscará compreender como esses fenômenos
rompem determinados tabus morais etc. Ele relativizará os
preconceitos do senso comum tentando entender o fenômeno
da homossexualidade com instrumentos de pesquisa como:
pesquisa de campo, estatísticas, registros de violências
homofóbicas, o peso da tradição e da religião etc.

CONCLUSÃO

Deve ter ficado claro para você que o senso comum e o


pensamento sociológico são tipos diferentes de conhecimento
e compreensão dos fenômenos sociais e da realidade que nos
cerca. A observação imediata ou, se preferirmos, “a olho nu” não
é garantia de que se está conhecendo a realidade de um ponto de
vista sociológico. Ao contrário do senso comum, podemos pensar que
o saber sociológico possui disciplina, natureza científica, regras de
verificação, conceitos, estatísticas e um quadro de referências com
limites rigorosos. É a partir desse complexo repertório metodológico
e do controle de preconceitos e de preferências pessoais que o
sociólogo compreende o mundo e se diferencia da compreensão
que o senso comum tem desse mesmo mundo.

21
História e Sociologia

Atividade Final
Atende aos Objetivos 1 e 2

Como você pode utilizar instrumentos para a análise sociológica?

Use como campo de observação o espaço do polo do CEDERJ de sua cidade,


desenvolvendo as seguintes atividades: descrição do local aos sábados, partindo da
observação dos alunos se relacionando entre si e também do relacionamento desses com
seus tutores e os funcionários do local. Faça uma tabela com o perfil sócio-econômico das
pessoas que frequentam o polo; entreviste essas pessoas pedindo para que elas falem sobre
o problema da violência em sua cidade. Analise as respostas identificando a linguagem,
as crenças, os mitos e os preconceitos que os respondentes utilizam. Ao final, você deverá
reconhecer a diferença entre as visões do senso comum e as visões sociológicas sobre
o tema da violência.

Resposta Comentada
Você provavelmente identificará, na fala dos entrevistados, uma linguagem repleta de
imagens, exemplos pessoais, preconceitos e juízos morais sobre o tema da violência.
Você poderá, como um sociólogo, realizar uma correlação entre a resposta do
entrevistado e o seu perfil sócio-econômico, desenvolvendo um quadro cujo resultado
pode ser uma tentativa de interpretação das respostas das entrevistas, por exemplo,
por hipótese, um entrevistado cujo perfil sócio-econômico é mais alto será talvez mais
cuidadoso em sua fala, evitando emitir juízos simples sobre o problema da violência.
De outro modo, esse mesmo entrevistado pode ser bastante preconceituoso ou radical
caso ele tenha sido vítima de algum tipo de violência. Caberá a você, então,
identificar, por meio dessa atividade, as diferenças entre
o senso comum e o conhecimento sociológico.

22
Aula 1 – Sociologia e senso comum Módulo 1

RESUMO

Agora você conhece a distinção entre o conhecimento de


mundo baseado no senso comum daquele baseado no conhecimento
sociológico.

O senso comum tem por base nossas experiências pessoais.


Ele é, portanto, muito subjetivo e está diretamente relacionado a nossos
preconceitos e preferências. Por outro lado, quando compreendemos o
mundo a partir do senso comum, as informações de que dispomos são
sempre bastante limitadas. Por exemplo, o fenômeno da criminalidade
fica circunscrito ao que aconteceu conosco, com amigos ou vizinhos
e, daí, tiramos uma série de conclusões a respeito do crescimento
(ou não) da ocorrência de crimes.

Já o pensamento sociológico tem por base o levantamento


e interpretação de dados, a partir de uma série de técnicas,
metodologias e teorias, que revelam o que o senso comum oculta.
Assim, uma pesquisa sociológica sobre a criminalidade, ao realizar
uma investigação sobre dados de ocorrência de diferentes crimes,
séries históricas, cruzamentos de informações etc., pode chegar
à conclusão de que, muito embora a sensação de insegurança
– baseada no senso comum – tenha crescido em um determinado
lugar e momento, a criminalidade esteja, de fato, diminuindo.

Em suma, o pensamento sociológico, ao superar as barreiras


do senso comum, joga luz para que compreendamos melhor
o mundo em que vivemos.

Informações sobre a próxima aula

O tema da próxima aula tem um sabor mais histórico. Você


conhecerá um pouco mais sobre as grandes transformações do
século XIX e como, nesse contexto, a Sociologia surge como uma
nova ciência da sociedade moderna, buscando compreender
os novos fenômenos sociais.

23
Aula 2
As grandes
transformações
do século XIX e o
surgimento histórico
da Sociologia
História e Sociologia

Meta da aula

Proporcionar uma compreensão histórica das razões da


emergência do pensamento sociológico.

Objetivo

Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de:
reconhecer as condições históricas de emergência do pensamento sociológico,
especialmente através do fenômeno de laicização das visões de mundo, da crise
da autoridade do Antigo Regime e dos processos de industrialização
e de modernização da vida social no século XIX.

Laicização
Processo de tornar laico, ou
seja, destituído de qualquer
conteúdo religioso ou sagra-
do. No contexto aqui apresen-
tado, refere-se ao processo
histórico através do qual
a explicação da vida dos
homens, da mecânica celes-
te e do mundo natural deixou
de ser baseada na ideia da
criação e do ordenamento
divinos e passou a ser pesqui-
sada através de critérios
científicos, buscando, nos pró-
prios objetos pesquisados, as
leis de seu funcionamento.
Em outras palavras, a laici-
zação das visões de mundo
é um processo em que visões
imanentes surgem e afirmam-
se, em confronto com as
visões transcendentes.

26
Aula 2 – As grandes transformações do século XIX e o surgimento histórico da Sociologia Módulo 1

INTRODUÇÃO

Na primeira aula, discutimos as diferenças entre o senso


comum e o pensamento sociológico. Vimos que a Sociologia busca,
através de um conjunto de métodos, técnicas de pesquisa e teorias,
uma compreensão detalhada e complexa da sociedade a fim de
superar a visão naturalizada do senso comum.

A Sociologia, no entanto, não é uma disciplina tão antiga


como, por exemplo, a Filosofia. Pelo contrário, surgiu apenas
no século XIX. Nesta aula, você vai mergulhar na história desse
século para compreender as razões pelas quais um novo campo de
conhecimento, o pensamento sociológico, surgiu e se consolidou. E não
só ele; nasceram também outras disciplinas das chamadas ciências
humanas, como a Economia Política, a História e a Antropologia.

Este ponto é muito importante: todas as disciplinas, a Sociologia,


inclusive, têm uma história, e você, como futuro historiador, deve ter
sempre isso em mente. Então, a partir da aula de hoje, sempre que
falarmos da Sociologia, de suas diversas correntes, de seus teóricos
mais importantes e de suas problemáticas, faremos referências aos
seus contextos históricos, às suas historicidades. Em outras palavras,
vamos falar das condicionantes externas, dos fenômenos sociais em
sua historicidade e como eles mobilizaram a reflexão do sociólogo.
Vamos falar também dos fundamentos internos da Sociologia, pois os
sociólogos, quando a instituem como um saber científico, criam seus
instrumentos analíticos, seus métodos de pesquisa e seus enfoques
teóricos, que são permanentemente criticados ou reafirmados, revistos
ou aprofundados.

Nesta aula, vamos destacar dois pontos que, a nosso ver,


são muito importantes para explicar o surgimento da Sociologia
(e de todas as disciplinas das ciências humanas) no século XIX.
De um lado, o processo de laicização das visões de mundo, um
processo de longa duração que já vinha ocorrendo havia vários
séculos e, de outro, um processo de profundas transformações sociais,

27
História e Sociologia

Transcendência econômicas e políticas que estava acontecendo desde o século


Ideia de que o ele- XVIII. No século XIX, esses dois processos se encontraram, ensejando
mento que rege o
a produção de novos saberes entre os quais o sociológico.
mundo, a criação
dos homens e do
universo, a própria
explicação da vida A laicização das visões de mundo:
humana, reside em um a transcendência e a imanência
princípio inalcançável,
superior ao mundo, aos
homens e ao universo, Vamos primeiro falar do processo de longa duração. Trata-se
representado pela do processo de laicização das visões de mundo. É provável que
divindade.
você esteja se perguntando o que significam termos a uma primeira

Imanência vista tão difíceis como laicização, transcendência, imanência.


Ideia de que a natureza Fique tranquilo. Você não é o primeiro, tampouco será o último.
e os homens, assim Para explicá-los, vamos fazer uma breve referência a uma figura
como as sociedades
que você talvez já conheça: Galileu Galilei, que viveu na época
criadas por estes, são
regidos por princípios do Renascimento.
próprios, internos a
cada um deles. Por-
tanto, refere-se também
Renascimento
à rejeição da ideia
de que algo externo e O Renascimento foi um momento muito importante
superior ao objeto em da história europeia. Compreendido, grosso modo,
estudo, ou seja, Deus,
entre os séculos XIV e XVI, nele ocorreram profundas
seja responsável
transformações culturais, científicas, filosóficas, políticas,
por sua explicação.
econômicas e religiosas, como a Reforma Protestante, a
descoberta das Américas, uma revolução científica, a crise
do feudalismo, o surgimento de novas teorias políticas,
o humanismo e a redescoberta da estética e da filosofia
clássicas, tanto latinas quanto gregas. O humanismo e o
antropocentrismo, ou seja, a ideia de que o homem deve
ocupar o centro das perspectivas sobre o mundo, eram
elementos importantes do Renascimento. A partir da Itália,
o Renascimento atingiu grande parte da Europa Ocidental,
tendo grandes expoentes em Michelangelo, Galileu, Dante
Alighieri, Leonardo da Vinci, Rafael e Maquiavel.

28
Aula 2 – As grandes transformações do século XIX e o surgimento histórico da Sociologia Módulo 1

Galileu afirmou, a partir de observações dos astros, que a


Terra girava em torno do Sol, contrariando a visão, então em voga,
de que o Sol girava em torno da Terra. Galileu punha assim em
dúvida não apenas uma visão tradicional sobre a mecânica dos
corpos celestes (cujas origens remontam a Aristóteles e Ptolomeu),
mas também, e sobretudo, a visão então oficial da Igreja Católica
a respeito do ordenamento do mundo, concebido por ela como
obra do Criador.

Entravam em choque duas visões sobre o conhecimento do Galileu


mundo: uma visão transcedente, que buscava explicar a mecânica Galileu Galilei viveu
entre 1564 e 1642 e
celeste a partir da criação e do ordenamento divinos; e uma
foi um dos principais
imanente, que buscava explicar o movimento dos astros a partir da expoentes do pensa-
observação, pelos homens, do movimento dos próprios astros. mento científico de
sua época. Seus ex-
A Renascença ou Renascimento foi um momento importante
perimentos, suas in-
de laicização das visões de mundo. Ela afirmava a ideia de que o venções e suas pesqui-
homem pode conhecer o mundo a partir da observação, da pesquisa, sas englobavam a Mate-
da formulação de teorias e de hipóteses e que a resposta aos seus mática, a Física e a
Astronomia. Sua visão
questionamentos deveria ser formulada em termos relativos ao objeto
heliocêntrica, ou seja, de
estudado e não a Deus. Dito de outra forma, se você estuda os que o sol ocupa o centro
astros, como Galileu, deve necessariamente buscar respostas a suas do sistema solar, acabou
perguntas pelo estudo da mecânica celeste; se quer compreender o por colocá-lo em rota de

funcionamento do corpo humano, deve estudar como se comportam colisão com o Tribunal
do Santo Ofício, a In-
os seus diferentes órgãos e assim por diante.
quisição. A Inquisição
condenou-o a abjurar
de suas ideias, e seus
livros foram incluídos no
Index (relação de livros
proibidos pela Igreja).
O conflito entre Galileu
e a Igreja acabou por
se tornar um dos mais
importantes exemplos
da tensão entre visões
de mundo imanentes
e transcendentes.

Figura 2.1: Reprodução do quadro da aula de anatomia, de Reembrandt.


Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Imagem:Rembrandt_Harmensz._van_Rijn_007.jpg

29
História e Sociologia

Atenção! A Renascença não eliminou Deus. Pelo contrá-


rio. No mesmo momento em que visões imanentes do mun-
do se afirmavam, visões transcendentes permaneciam. E isto se
refletiu em vários campos da atividade renascentista. Você já
deve ter visto muitos quadros medievais. Em tais quadros, o
tema principal é sempre a revelação divina, a vida dos santos,
passagens bíblicas... Nos quadros renascentistas, a revelação
divina continua a aparecer, como bem evidencia a Capela Sistina,
no Vaticano, pintada por um dos maiores gênios renascentistas,
Michelangelo. Mas agora, ao lado de temas religiosos, há também
estudos sobre o corpo humano e a figuração de indivíduos,
como a Mona Lisa, de Leonardo da Vinci.

Figura 2.2: Capela Sistina, Mona Lisa, medidas humanas de Leonardo da Vinci.

30
Aula 2 – As grandes transformações do século XIX e o surgimento histórico da Sociologia Módulo 1

A afirmação das visões imanentes, portanto, não fez


desaparecer as visões transcendentes. O processo de laicização
das visões de mundo nunca foi linear, como nunca são os processos
históricos. Portanto, visões imanentes e transcendentes passaram a
coexistir, muitas vezes entrando em choque umas com as outras, como
nos mostra a própria história de Galileu. Nos dias de hoje, basta
olharmos à nossa volta para perceber que visões transcendentes
de mundo continuam existindo, disputando, palmo a palmo com
as visões imanentes, as consciências das pessoas. Na próxima
aula, quando discutirmos o embate entre Tradição e Modernidade,
voltaremos a este tema. Por ora, você vai realizar uma atividade que
tornará mais claro o embate contemporâneo entre visões imanentes
e transcendentes do mundo.

Imanência e transcendência nos dias de hoje

1. Você já deve ter percebido que, em questões contemporâneas como aborto, células-
-tronco, eutanásia, homossexualidade etc., as opiniões se dividem entre aqueles que baseiam
suas visões em critérios científicos e aqueles que as baseiam em critérios religiosos.
Desenvolva uma pesquisa na sua cidade com pessoas de diferentes gerações. Peça para
que elas opinem sobre esses temas, se são contra ou a favor, e também para que justifiquem
suas opiniões. Ao final, faça uma análise das respostas procurando compreender os
embates de opinião e quantifique os que se fundamentam em critérios científicos e os que
se baseiam em critérios religiosos.

31
História e Sociologia

Comentário
Você deverá apresentar uma espécie de quadro ou tipologia de opiniões a partir dos temas
sugeridos, de modo a refletir sobre a oposição entre a transcendência e a imanência como
um fenômeno recorrente e atual.

Se o Renascimento foi um momento importante de afirmação das


visões imanentes de mundo, os séculos seguintes presenciaram cada
vez mais, e de maneira mais vigorosa, essa afirmação. Nos séculos
XV, XVI e XVII, as explicações para o funcionamento do universo,
da Natureza, dos organismos, das leis da Física etc. foram sendo
cada vez mais formuladas a partir da observação, da pesquisa, da
investigação da elaboração de hipóteses rejeitando ou pelo menos
achando insuficientes as visões que se esgotavam em afirmativas
baseadas na criação divina ou em princípios religiosos.

Ao longo desses séculos, por vezes o mesmo fenômeno ense-


java explicações diferenciadas, algumas enfatizando visões
transcendentes de mundo, outras visões imanentes. É o caso,
por exemplo, da descoberta da América. Os índios brasileiros
ocuparam um lugar muito importante como objetos de especulações
nesse debate. Para alguns, como os jesuítas, eles representavam
a possibilidade de construção de uma nova cristandade, intocada
pelo pecado original; para outros, representavam a evidência da
concepção da bondade natural do homem, um dos pilares do
pensamento ilustrado.

32
Aula 2 – As grandes transformações do século XIX e o surgimento histórico da Sociologia Módulo 1

Figura 2.3: Catequese de índios pelos jesuítas no período da catequese.

A Ilustração (Iluminismo) do século XVIII foi outro momento


importante de afirmação das visões imanentes do mundo. Muito
embora diversos autores identificados com a Ilustração, como Voltaire
e Rousseau, um dos principais formuladores da ideia de bondade
natural do homem, tivessem visões diferentes sobre vários problemas,
a uni-los havia a certeza de que era necessário entender o mundo à
luz da razão, não da superstição ou da crença. A própria Revolução
Francesa, iniciada em 1789, deve sua possibilidade de realização,
ao menos em parte, à visão de que o homem pode construir seu
mundo pelas próprias mãos, ou seja, pela ação e pelos ditames da
razão derrubando reis cuja legitimidade, em muitos casos, derivava
do direito divino. No entanto, sobre a Revolução Francesa, falaremos
mais na próxima aula.

Portanto, quando o século XIX chegou, já havia uma longa


e consolidada tradição de pensamento imanente, que buscava
compreender os fenômenos a partir da observação desses mesmos
fenômenos de modo a encontrar neles suas dinâmicas internas e leis
de funcionamento. O caminho estava preparado para o surgimento
da Sociologia, ciência que buscava compreender o funciona-
mento da vida em sociedade a partir da observação desta e da
busca de suas leis internas.
33
História e Sociologia

Agora que já vimos um dos pilares sobre os quais se assenta


o surgimento da Sociologia, vamos ver o outro pilar, que diz respeito
às grandes transformações sociais, políticas e econômicas que,
iniciadas no século XVIII, aprofundam-se no XIX.

As grandes transformações do século XIX

Você já ouviu falar em Charles Dickens (1812-1870)? Dickens


foi um arguto observador da Inglaterra do século XIX. Em um de seus
livros mais conhecidos, ele narra os dramas e misérias de Oliver Twist,
órfão e sem família, que busca sobreviver entre ladrões e desajustados
na grande cidade do século XIX. Outro arguto observador das novas
condições sociais que se desenhavam foi o francês Émile Zola (1840-
1902). No livro Germinal, um clássico da literatura francesa do século
XIX, Zola narra o despertar de uma família de mineiros:

Agora a vela alumiava o quarto, quadrado, de duas


janelas, atravancado com três camas. (...) Na cama da
esquerda, Zacarias, o mais velho, rapaz de vinte e um
anos, estava deitado com seu irmão Jeanlin, que ia fazer
onze; na da direita, dois pequerruchos, Leonor e Henrique,
este de quatro anos e aquela de seis, dormiam abraçados;
e a terceira (Catarina) compartilhava com Alzira, tão
enfezada para os seus nove anos, que nem a sentiria junto
de si, se não fosse a giba da pequena enferma, que lhe
arrombava as costelas. A porta da vidraça estava aberta,
divisava-se o corredor do patamar, o cubículo onde o pai
e mãe ocupavam outra cama, encostado à qual tinham o
berço da mais nova, Estela, de três meses apenas.

A família vai acordando e conversa:

E a mulher de Maheu continuou em voz baixa, a cabeça


imóvel, fechando de vez em quando os olhos à tristonha

34
Aula 2 – As grandes transformações do século XIX e o surgimento histórico da Sociologia Módulo 1

claridade da vela. Falava do armário vazio, dos pequenos


pedindo pão, do café que ia faltando, da água que fazia
cólicas, e dos longos dias a enganar a fome com folhas
de couve cozidas. Pouco a pouco foi elevando a voz,
porque o berreiro de Estela abafava-lhe as palavras.
Estavam sendo intoleráveis esses gritos. Maheu pareceu de
repente ouvi-los e, fora de si, agarrou a pequenita no berço
e atirou-a para cima da cama, gaguejando com furor:

---- Toma, pega-a, senão esgano-a... Raio de criança! Não


lhe falta nada, mama quando quer e lamenta-se mais
que os outros!

Dizem que uma imagem vale mais do que mil palavras.


Há controvérsias. Nada substitui a literatura e, muitas vezes,
versões cinematográficas de obras literárias ficam muito a
dever aos originais que as inspiraram. Seja como for, leia
os livros e veja os filmes! Oliver Twist, de Roman Polanski (2005),
e Germinal, de Claude Berri (1993), dão uma boa discussão a
respeito das relações entre cinema e literatura.

Pesado, não? Zola era um adepto de descrições nuas e cruas


da dura realidade vivida pelos trabalhadores franceses. Esse tipo
de romance, de forte conotação social, muitas vezes chocava seus
contemporâneos; mas ilustra, assim como as obras de Dickens, as
novas condições de vida das grandes cidades da Inglaterra e da
França assim como de suas novas zonas industriais ou mineiras.
Eles não falavam de amores românticos, de nobres ou de guerras
heroicas, tampouco exaltavam a pátria e seus símbolos máximos,
mas de fábricas e cortiços, criminosos, jovens desorientados e
trabalhadores, muitas vezes submetidos à fome e ao frio, que organi-
zavam sindicatos e faziam greves. Dickens e Zola escreviam sobre

35
História e Sociologia

os novos atores sociais, surgidos a partir das grandes transformações


da Revolução Industrial. Para melhor compreender a complexidade
das transformações ocasionadas pela Revolução Industrial, dê uma
olhada no Quadro 2.1.

Quadro 2.1: Mudanças econômicas, sociais e políticas ocasionadas pela Revolução Industrial

Até o século XVIII, espaço doméstico e espaço de produção confundiam-se. As pessoas frequentemente moravam e
Substituição trabalhavam no mesmo lugar. Em fins do século XIX, os espaços de moradia e os de trabalho estavam radicalmente
da manufatura separados. O trabalho agora era realizado em uma grande indústria, que reunia, sob o mesmo teto, centenas
doméstica pela de trabalhadores. Essas pessoas, ao contrário do que acontecia na manufatura doméstica, frequentemente não
grande indústria se conheciam até que começassem a trabalhar juntas. Não conheciam tampouco seus patrões, o que significa
como unidade dizer que as novas relações de trabalho eram marcadas por regras impessoais.
básica de Por outro lado, a passagem da manufatura doméstica para a grande indústria representou o desenvolvimento
produção de novas formas de produzir e armazenar a energia: da tração animal ao motor de combustão interna,
passando pelo vapor e energia hidrelétrica.

A grande indústria necessitava de grandes contingentes de trabalhadores reunidos em um só lugar. Portanto,


o espaço da grande indústria é a cidade. Se até o século XVIII as populações de países como Inglaterra e
França viviam basicamente no campo, ao longo do século XIX grandes cidades se consolidaram, como Londres,
Urbanização
Paris e Manchester. O mesmo processo de urbanização ocorreu nos Estados Unidos, com o surgimento de
grandes cidades como Chicago e Nova York, formadas por contingentes de imigrantes europeus. Em tais
cidades, emergiu o que alguns chamavam de “questão social”.

Para que a grande indústria se estabelecesse e a urbanização se consolidasse, uma grande transformação
social ocorreu. O camponês e o artesão, que dominavam as técnicas de produção e possuíam os instrumentos
de seu trabalho, deram lugar ao trabalhador industrial, que dominava apenas uma parte do processo produtivo
Trabalhadores
e não mais possuía nenhuma ferramenta de trabalho, apenas sua própria força de trabalho; por outro lado,
industriais e
formaram-se os proprietários de fábricas, que haviam investido seus recursos na construção das mesmas,
proprietários
contratavam os trabalhadores e, em troca, esperavam receber lucros. Um ponto importante a salientar é que
de fábricas
as relações de assalariamento também se generalizaram nesse momento, ou seja, a única via de acesso para
que o trabalhador pudesse satisfazer suas necessidades de sobrevivência passou a ser o salário que recebia
em troca da venda de sua força de trabalho.

Da virada do século XVIII para o XIX à virada deste para o XX, países europeus como a França e a Inglaterra,
assim como os Estados Unidos, presenciaram profundas transformações nas formas de viver das pessoas.
Os exemplos podem ser vários, mas basta citar a revolução nos meios de transporte. Um aldeão francês do
XVIII, se quisesse ir de uma aldeia a outra, provavelmente o faria a cavalo. Portanto, sua capacidade de
deslocamento era bastante reduzida. De fato, um camponês dessa época conhecia apenas sua aldeia e as
Modificações aldeias vizinhas. No século XIX, a introdução da ferrovia alargou a área de deslocamento de europeus e
nos modos de norte-americanos. Uma pessoa já poderia se deslocar a grandes distâncias com mais facilidade. Em várias
vida pequenas cidades, o horário da passagem dos trens passou a regular a vida cotidiana. Em fins do século XIX
e princípios do século XX, o automóvel permitiu que os deslocamentos se tornassem individuais, ocasionando
uma série de modificações nos hábitos de vida.
Outro exemplo importante: não fosse o desenvolvimento do navio a vapor, as grandes migrações do século
XIX, que envolveram o deslocamento de dezenas de milhões de pessoas da Europa e da Ásia para as
Américas não teria sido possível.

36
Aula 2 – As grandes transformações do século XIX e o surgimento histórico da Sociologia Módulo 1

Enfim, no espaço relativamente curto de algumas décadas,


o mundo urbano-industrial se afirmou, e surgiram o trabalhador
industrial e o proprietário das fábricas. E esse novo mundo trazia
desafios, contestações, revoltas, antes desconhecidos: cidades
enormes com bairros operários, cortiços superlotados, desemprego,
salários geralmente baixos, insatisfação operária, fortes contrastes
entre riqueza e pobreza... Resultado: grandes greves, revoluções
frustradas, destruição de máquinas, desordem urbana e multidões
trazendo medos para uns, esperança para outros. Você pode
imaginar como esses novos fenômenos desafiavam a compreensão
e ao mesmo tempo fascinavam homens como Dickens e Zola, que
buscavam, com seus romances, descrever, discutir e compreender
essa nova realidade.

Mas essa nova realidade não ensejou apenas o surgimento de


uma literatura engajada com os temas sociais. Ensejou também o
surgimento das novas ciências humanas, cuja linguagem exibia mais
o rigor da ciência do que a flexibilidade da literatura. Muito embora
cada uma destas ciências guardasse características próprias, todas
tinham um pressuposto comum, herdado das visões imanentes do
mundo: a de que o estudo dessa nova sociedade urbano-industrial
deveria se basear em critérios científicos, muitas vezes inspirados
pelos critérios das ciências naturais e biológicas.

A Sociologia e as novas ciências sociais

Nem todas as ciências surgidas nesse período, ou disciplinas


que se queriam científicas, sobrevivem ainda hoje. A Eugenia, por
exemplo, perdeu legitimidade científica nas primeiras décadas do
século XX. Vamos falar um pouco mais dela, para que você tenha
ideia de como uma ciência que buscava dar respostas ao mesmo
conjunto de problemas que a Sociologia, acabou por perder, em
algumas décadas, seu caráter científico.

37
História e Sociologia

Racialismo A Eugenia se definia como o estudo das formas de aperfei-


e racialista çoamento das futuras gerações da humanidade. Formulada inicialmente
Racialismo é uma dou-
pelo inglês Francis Galton, a partir de 1865, partia do pressuposto de
trina do século XIX que
postula a existência de que a raça humana encontrava-se em permanente evolução biológica,
características heredi- base da evolução moral, e que a ciência eugênica deveria ajudar, e
tárias possuídas por
até mesmo acelerar, a natureza nesta tarefa evolucionista. Assim, em
membros de nossa es-
pécie, que nos permitem uma época marcada por grandes transformações sociais, econômicas,
dividi-los num pequeno políticas, culturais e demográficas, como foi o século XIX, a Eugenia
conjunto de raças, de vinha afirmar que a miséria dos cortiços operários, com todas as
tal modo que todos os
suas doenças e desarticulação familiar, resultavam menos de tais
membros dessas raças
compartilham entre si transformações e mais da incapacidade de corpos e de espíritos
certos traços e tendências inferiores em se adaptar às novas condições que se apresentavam à
que eles não têm em
evolução da espécie.
comum com os membros
de nenhuma outra raça, Várias correntes de pensamento na virada do século XIX para
o que lhes garante uma
o XX, dos socialistas aos liberais, dos católicos aos anarquistas,
espécie de essência
racial. O racismo está no incorporaram, de alguma forma, princípios eugênicos às suas
cerne das tentativas do propostas políticas. A educação sexual; o combate às “doenças
século XIX de desenvolver morais”, como a sífilis, e aos vícios, como o álcool; a esterilização
uma ciência de diferença
de doentes mentais; reformas habitacionais; programas de educação
racial. Para esta dou-
trina, que não é neces- física, foram todas; políticas inspiradas pelo pensamento eugênico,
sariamente racista, as nos países mais diferentes, como a Suécia social-democrata, os
qualidades morais posi-
Estados Unidos e o Brasil da Era Vargas.
tivas distribuem-se por
todas as raças, cada Ainda no século XIX, no entanto, correntes do pensamento
uma delas pode ser
eugênico associaram-se ao pensamento racialista, então em
respeitada, por ter
seu lugar “separado,
desenvolvimento. A experiência política mais evidente do casamento
mas igual”. Nem todo entre eugenia e pensamento racial, já no século XX, foi o nazismo.
racialista é racista. O nazismo, no entanto, inovou as práticas eugênicas ao não só
Entretanto, todo racista
evitar o nascimento de crianças consideradas indesejáveis, como
é racialista. Caso tenha
curiosidade por esse as que resultariam de relações entre arianos e não-arianos (as Leis
tema, você pode ler um de Nurenberg proibiam o casamento de alemães arianos e judeus),
livro muito interessante.
como buscaram criar uma super-raça nórdica. Para tal, criaram
APPIAH, Anthony K.,
Na casa de meu pai:
uma instituição chamada lebensborn, para incentivar a procriação
a África na filosofia da de arianos puríssimos. Os bávaros, por exemplo, considerados
cultura. Rio de Janeiro: demasiadamente morenos, não poderiam participar da formação
Contraponto,1997.

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Aula 2 – As grandes transformações do século XIX e o surgimento histórico da Sociologia Módulo 1

dessa super-raça. Por fim, os nazistas resolveram também eliminar,


fisicamente, aqueles que consideravam uma ameaça racial aos
arianos, dando início então ao genocídio de judeus e ciganos.

Na segunda metade do século XX, a Eugenia já estava


desacreditada como ciência, por articular, de forma infundada,
a herança biológica de um indivíduo com suas características
morais. Por fim, os avanços da genética sepultaram, de vez, o
pensamento eugênico.

A Sociologia teve melhor sorte do que a Eugenia. Não por


acaso você está estudando, em seu curso de História, uma disciplina
chamada Sociologia, ao passo que talvez nunca tenha ouvido falar
na Eugenia.

O surgimento da Sociologia esteve intimamente ligado a uma


questão que, aos olhos de muitos, parecia central no século XIX:
como manter a coesão social em um mundo em que as autoridades
tradicionais perdiam capacidade de ordenar a sociedade? Antigo Regime
Período que designa, de
Antes da Revolução Francesa, as instituições de poder
forma geral, os séculos
baseadas na autoridade política do rei e no poder religioso da XVI a XVIII na Europa.
Igreja, além de instituições como a família, garantiam a coesão O Antigo Regime era
social, muito embora as sociedades de Antigo Regime fossem marcado pela ideia
da autoridade divina
hierarquicamente organizadas.
dos Reis absolutistas, e
Com a Revolução Francesa e a Revolução Industrial, essas de que a sociedade se
estruturava a partir de
autoridades perdem legitimidade e a crença na democracia, no
privilégios, não de
igualitarismo e no individualismo se aprofunda. É bom lembrar que direitos. Portanto, as
os franceses chegaram a decapitar seu rei! Ao fazê-lo, não estavam sociedades de Antigo
Regime eram hierar-
apenas separando corpo e cabeça de uma pessoa, mas questionando
quicamente organiza-
uma ordem política secular, legitimada pela Igreja como divinamente das por privilégios de
concebida. Ao mesmo tempo, as crescentes diferenças de renda e nascimento, sangue,
riqueza entre proprietários e trabalhadores, atores novos surgidos da ofício etc. Por outro
lado, valores como
urbanização e da industrialização, descortinavam um novo cenário
honra serviam como
de conflito social. elementos de distinção
social mais importantes
do que o acúmulo de
riquezas materiais.

39
História e Sociologia

2. Olhe com olhos de sociólogo a região em que você mora. Que fenômenos da sua região
você considera sociologicamente relevantes? Ela se industrializou recentemente ou é uma
região rural? Se for uma região rural, ela é economicamente dinâmica ou encontra-se
estagnada? Há, na sua cidade, algum processo de transferência de população rumo a
cidades maiores? Muitos jovens saíram para tentar empregos maiores em grandes centros
urbanos? Faça um inventário, uma listagem de tais mudanças.

Comentário
Realizando um inventário de tais mudanças na sua cidade, você pode ter uma ideia
geral de como fenômenos parecidos com estes, que ainda careciam de compreensão,
desafiavam e fascinavam os sociólogos do século XIX.

Charles Baudelaire (1821-1867), um dos mais importantes


poetas franceses do século XIX, viveu justamente nesse momento,
registrando as profundas transformações de Paris, como no poema
"Paisagem":

Quero, para compor os meus castos monólogos,


Deitar-me ao pé do céu, assim como os astrólogos,

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Aula 2 – As grandes transformações do século XIX e o surgimento histórico da Sociologia Módulo 1

E, junto as campanários, escutar sonhando


Solenes cânticos que o vento vai levando.
As mãos sob o meu queixo, só, na água-furtada,
Verei a fábrica em azáfama engolfada;
Torres e chaminés, os mastros da cidade,
E o vasto céu que faz sonhar a eternidade.

Vamos fazer um breve exercício para que você compreenda


melhor as questões que estão sendo levantadas. Suponhamos que
você vivesse na época de Baudelaire. Você nasceu em uma pequena
aldeia. Esqueça os vinhos e os queijos e concentre-se no universo
social que o cerca.

Nessa aldeia nasceram também seus pais, avós e bisavós.


Todos na aldeia conhecem você: seus vizinhos, o pároco, o
grande senhor de terras... Sua vida está mais ou menos traçada
e vai ser muito parecida com a de seus pais: você vai se casar
na mesma igreja que eles e terá filhos, que serão batizados nessa
mesma igreja, talvez pelo mesmo pároco que casou você e sua
esposa. Festejará as datas religiosas, terá seu trabalho no campo
regulado pelas estações do ano...

Mas a vida também apresenta dificuldades. Um inverno mais


rigoroso pode prejudicar a colheita, alguém da sua família (ou você!)
pode ficar doente, seus filhos pequenos precisam de alguém que
tome conta deles enquanto você trabalha no campo e sua esposa
cuida dos afazeres domésticos. O que fazer? Você aciona uma rede
de solidariedade e ajuda mútua que lhe cerca: vizinhos, família (os
avós cuidam dos netos pequenos que, quando crescem, ajudam a
cuidar de seus avós já velhinhos), a paróquia, o senhor de terras.
Você sabe que o princípio da reciprocidade é muito importante.
Em troca da caridade que presta, a Igreja exige a fé e, quando
possível, o dízimo; em troca do grão, em épocas de fome, o senhor
de terras exige lealdade, e assim por diante. O mundo da sua aldeia
é hierárquico, cada um sabe o seu lugar, mas proporciona alguma
segurança material e espiritual.

41
História e Sociologia

Mas as coisas começam a mudar. O senhor das terras, que


permitia que você criasse algum gado ou plantasse alguma cultura
em terras consideradas comuns, agora veda seu acesso a elas.
Ou, se você é um artesão, perde seus fregueses para alguma fábrica que
produz o mesmo produto que você por preços bem mais baixos. Sua
sobrevivência está cada vez mais difícil. Você resolve ir para Paris.

Esqueça a Cidade Luz, a Torre Eiffel, os passeios românticos


pelo Sena... Essas coisas não existiam ainda. Paris, para você, é um
cortiço e uma fábrica. Seus vizinhos ficaram para trás, seus pais e
avós também, seu pároco, assim como o senhor de terras. Você está
só com sua mulher e filhos, que você tem de sustentar. Ao seu lado,
multidões de outros trabalhadores como você, mas que você não
conhece. Você e eles trabalham em uma grande fábrica, ganham mal,
cumprem uma disciplina fabril que detestam e, caso fiquem doentes
ou impossibilitados de trabalhar, não vão receber salários.

Este é um ponto fundamental. Em Paris se vive de salário.


Se, na sua aldeia, você tinha acesso a terras comunais ou sua
oficina, se tinha sua família e seus vizinhos para acudi-lo em caso de
necessidade, se tinha o pároco e o senhor local para o atendimento
de uma urgência, na velhice ou na doença, na cidade você só tem
seu salário. Redes de solidariedade ficaram para trás, autoridades
tradicionais, idem. Você vende sua força de trabalho, recebe seu
salário. Fora dele, não há nada.

O que você faria nessa situação, em que os laços que o


ligavam aos outros membros da sua comunidade estão se
desmanchando, dando lugar à impessoalidade, ao isolamento, à
insegurança permanente, às relações mediadas pelo mercado? Você
provavelmente irá buscar construir novos laços, baseados não na
tradição, mas em interesses compartilhados. Por exemplo, vai se unir
a outros trabalhadores e fundar um sindicato, um partido operário,
vai organizar greves...

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Aula 2 – As grandes transformações do século XIX e o surgimento histórico da Sociologia Módulo 1

Enfim, você agora será membro de uma sociedade marcada


pela impessoalidade, na qual interesses, frequentemente contradi-
tórios e em confronto, parecem colocar em risco os elementos
de coesão social proporcionados pela tradição, como a família,
a religião e a autoridade política do rei. Esse é o problema dos primei-
ros sociólogos.

Para eles, os primeiros sociólogos, era preciso conhecer a fundo


essa nova sociedade, dinâmica, incerta, movediça, contraditória, e
conhecê-la cientificamente, buscando sua dinâmica interna, imanente,
de modo a poder propor soluções para torná-la novamente coesa.

E assim estavam dadas as condições para o surgimento do


pensamento sociológico.

CONCLUSÃO

Agora que fizemos essa grande percurso histórico, do


Renascimento ao século XIX, você tem uma visão geral das condições
históricas da emergência do pensamento sociológico.

A Sociologia, em seu nascedouro, buscava gerar compreensão


para as grandes transformações nas instituições políticas (crise do
Antigo Regime e Revolução Francesa), sociais (emergência de
novas classes sociais) e econômicas (industrialização e o advento
do mercado), que pareciam desarticular os elementos tradicionais de
coesão social, como a religião, o Estado absolutista e a família. E os
primeiros sociólogos perguntavam-se: na ausência de mecanismos de
autoridade baseados na tradição, como preservar a ordem social?
Como identificar e corrigir os riscos do conflito social?

43
História e Sociologia

Atividade Final

Agora há pouco você fez um exercício. Colocou-se no lugar de um francês do tempo


de Baudelaire que vivia na aldeia e foi morar em Paris. Nessa passagem, você viu
desaparecerem suas referências tradicionais de vida, suas redes de solidariedade e ajuda
mútua e, no lugar delas, surgiu a impessoalidade do salário e do trabalho fabril.

Agora, você vai fazer uma atividade parecida com aquela experiência. Converse com
os membros mais velhos da sua família a respeito de como era sua cidade ou local de
moradia há 30, 40 anos. Pergunte a eles como eram as relações entre as gerações de
uma mesma família, como lidavam com as dificuldades da vida, como doenças, como se
relacionavam com as autoridades religiosas, com os proprietários de terras da região...
Converse agora com pessoas mais jovens da sua família e faça a elas as mesmas perguntas.
Depois, confronte as respostas dos mais velhos com a dos mais novos.

Comentário
O Brasil, em particular o Rio de Janeiro, passou por grandes transformações na
segunda metade do século XX, como a urbanização e a industrialização. Portanto,
com muitas diferenças em relação à França do século XIX, processos de crise dos laços
tradicionais de coesão social ocorreram aqui também. Ao realizar essa atividade,
você provavelmente perceberá que houve mudanças importantes entre a realidade das
pessoas mais idosas e das mais jovens da sua própria família. Por exemplo, é possível
que seus pais tenham cuidado de seus avós na velhice, mas que você não espere o
mesmo de seus filhos e assim por diante.

44
Aula 2 – As grandes transformações do século XIX e o surgimento histórico da Sociologia Módulo 1

RESUMO

O pensamento sociológico se constituiu a partir de uma gama


de processos históricos bastante complexos, alguns de duração
bastante longa.

O processo de longa duração refere-se à afirmação das visões


imanentes do mundo, que buscavam a explicação dos fenômenos a partir
de leis a eles intrínsecas, passíveis de serem reveladas pela observação,
construção de hipóteses e teorias. Tais visões recusavam, ou percebiam
como insuficientes, as explicações baseadas na criação divina para
o funcionamento do universo, da natureza e da vida humana. Esse
processo abarcou alguns séculos, a partir do Renascimento, no século
XIV, passando pela Ilustração, no século XVIII, até chegar à construção
de diversas ciências humanas, no século XIX.

Se as visões imanentes tiveram grande importância para a


emergência do pensamento científico aplicado ao homem e à sua
sociedade, as grandes transformações sociais, econômicas, culturais
e políticas dos séculos XVIII e XIX, como as Revoluções Industrial
e Francesa, completaram o cenário. Tais transformações foram
sentidas, por muitos, como um processo de perda da coesão social,
anteriormente garantida por autoridades tradicionais, gerando
conflito social e sentimentos de isolamento e anomia. Entender Anomia
cientificamente essa sociedade e buscar novos elementos de coesão, A definição corrente
mais simples é a de
na ausência da tradição, foram desafios centrais enfrentados pelo
ausência de leis, de
pensamento sociológico nascente. normas ou de regras
de organização. É o
enfraquecimento das
normas sociais de um
povo ou grupo social.
Informação sobre a próxima aula Este termo foi cunhado
Durkheim em seu
Na próxima aula, você aprofundará ainda mais seus livro O suicídio.

conhecimentos a respeito do grande debate do século XIX entre


modernidade e tradição, de modo a ter uma visão ampla e
consolidada a respeito das grandes questões que informaram o
nascimento do pensamento sociológico.

45
Aula 3
A consciência
moderna:
modernidade
x tradição
História e Sociologia

Meta da aula

Levar o estudante a refletir sobre a emergência histórica da oposição entre


modernidade e tradição e como a consciência moderna nasce dessa oposição.

Objetivos

Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de:
1. identificar a emergência da consciência moderna e como esta se afirma ao mesmo
tempo em que busca se contrapor à ideia de tradição;
2. relativizar a oposição dos termos modernidade e tradição, inclusive a sua dimensão
temporal, através da percepção de que são termos interdependentes, ou seja,
a modernidade precisa da tradição e, desse modo, elas coexistem no tempo
e no espaço;
3. comparar o individualismo moderno e o holismo das sociedades tradicionais
e hierárquicas.

Holismo Pré-requisitos
Holismo, ou a visão
holística, é uma maneira Para uma melhor compreensão das questões tratadas nessa
de ver o mundo, o aula, é importante que você tenha percebido a diferença
homem e a vida em si
entre o senso comum e a reflexão sociológica e que tenha
como entidades únicas,
clareza do momento histórico em que surgiu a disciplina
completas e intimamente
sociológica. Na posse desse repertório, você certamente
associadas. Esta pala-
vra vem do grego compreenderá a oposição construída entre os termos
HOLOS, que significa modernidade x tradição.
“Inteiro” ou “Todo”,
como em “Holograma”;
grama=figura/ Holos=
inteira, e representa um
novo paradigma científico
e filosófico que surgiu como
resposta ao individualismo
radical da modernidade,
em grande parte causado
pela cisão dos aspectos
humanos e naturais.

48
Aula 3 – A consciência moderna: modernidade x tradição Módulo 1

INTRODUÇÃO

Você teve a oportunidade de ver na aula passada como o


século XIX foi um palco histórico de enorme relevância, justo por
testemunhar o nascimento de saberes científicos, a sociologia entre
eles, mobilizados para a compreensão de um mundo em acelerada
mudança política, econômica, social, moral e cultural. O século
XIX, após a Revolução Francesa – marco político da promulgação
dos direitos civis, ou seja, das noções de igualdade e liberdade
e da noção de soberania popular – testemunha a transformação
do súdito em cidadão; de grande parte dos camponeses em
operários; vê o burguês ampliando seus valores, gostos, hábitos e
moralidade para o conjunto da sociedade; vê o mercado definindo
quem são os proprietários e quem são os empregados; assiste ao
crescimento urbano e populacional, ao ritual das multidões nas
cidades; à opulência e à miséria; à paz e ao conflito; testemunha
o fortalecimento do nacionalismo, das utopias revolucionárias, do
socialismo etc. O novo e o moderno contrapõem-se, de modo geral,
ao que seria considerado ultrapassado, tradicional, conservador,
e até reacionário: a monarquia, a aristocracia, o mundo da corte
e da etiqueta cortesã, o campo, a moralidade e a religiosidade, o
conservadorismo, a hierarquia social, a autoridade, a casta social.
Na modernidade, esses termos ganham o nome genérico, de “Antigo
Regime”. Mas seria essa oposição tão estática, tão óbvia? Você deve
estar se perguntando sobre como então ainda hoje utilizamos essa
oposição? Como, e isso é bastante frequente, identificamos os mais
velhos com a tradição e os mais jovens com o moderno?

Modernidade, ruptura e a invenção


da tradição

Você já identificou nas aulas passadas um cenário histórico,


o século XIX, que abriga uma oposição entre o que se convencio-
nou denominar “o novo” e “o velho”; “o moderno” e “o atrasado”;

49
História e Sociologia

“a mudança” e “a conservação”; “o urbano” e “o rural”; “o burguês”


e “o aristocrata”; “o camponês” e “o operário”; “a transcendência” e
“a imanência”; entre “o sagrado” e “a ciência”; entre “a autoridade”
e “a liberdade”. Ao contrário do que pode parecer, a história não é
uma sucessão de eventos que se superam uns aos outros. É comum,
quando se pensa na história, ou no processo histórico, que um novo
evento e um novo tempo apaga tudo o que há de “velho”. Entretanto,
como você já deve estar se dando conta, a história pode condensar
em um mesmo espaço de tempo, fenômenos, eventos e atores
aparentemente contraditórios. O que talvez seja mais interessante
para você, que agora problematiza os termos modernidade e
tradição, é compreender que a modernidade significa em muitos
casos a coexistência de fenômenos aparentemente contraditórios.
A isso muitas vezes chamamos ambiguidade ou ambivalência.
A poesia de Baudelaire é bastante expressiva desse mundo
contraditório, repleto de ambiguidades:

É impossível não ficar emocionado com o espetáculo dessa


população doentia, que engole a poeira das fábricas,
que inala partículas de algodão, que deixa penetrar
seus tecidos pelo alvaiade, pelo mercúrio e por todos
os venenos utilizados para produzir obras-primas (...)
Essa população se mata esperando as
maravilhas que o mundo lhe parece dar
direito; sente correr sangue purpúreo em
suas veias e lança um longo olhar, carregado
de tristeza, para a luz do sol e para as som-
bras dos grandes parques (in BENJAMIN,
1985, p.98).

50
Aula 3 – A consciência moderna: modernidade x tradição Módulo 1

A consciência moderna

Você já pode compreender, a essa altura, que a consciência


moderna, ou a consciência histórica moderna, promoveu uma
comparação entre o presente e o passado, reforçando a sensação de
que tudo está em acelerada transformação e que o que antes definia
e dava sentido à vida das pessoas na sociedade em que ela vivia,
deixou de ter sentido ou, ao menos, foi se transformando em objeto
de dúvida, de interpretação e de relativização crescentes. Ou seja,
tudo o que era sólido desmanchou no ar, como diagnosticava Karl
Marx. A tradição não era mais um suporte, um fundamento seguro
para os homens. Era como se os homens tivessem que buscar no futuro
e não no passado o sentido para as suas vidas. Essa reformulação
do tempo e do sentido do tempo é o que convencionamos chamar
consciência histórica moderna. A consciência histórica que surge
na modernidade é, basicamente, uma consciência de “tempo”, ou
melhor, da temporalidade. Mas o tempo não era visto de uma só Alexis de
maneira. O que significava, para alguns, uma libertação dos grilhões Tocqueville
Alexis Henri Charles
da tradição, dos valores do passado, para outros podia significar
Clérel, visconde de Toc-
o fim das certezas, da prudência, da experiência, da segurança e queville (29 de Julho de
da familiaridade com os repertórios morais, políticos e religiosos do 1805 – 16 de abril de
1859) foi um pensador
passado, ou melhor, da tradição. Há uma expressão de Alexis de
político, historiador e
Tocqueville, um importante pensador francês do século XIX, que escritor francês. Tornou-se
bem demonstra o seu temor com a quebra da tradição. Para ele, célebre por suas análises
“Desde que o passado deixou de lançar luzes ao futuro, a mente da Revolução Francesa,
da democracia ameri-
do homem vagueia nas trevas”.
cana e da evolução das
Com as Revoluções Francesa e Industrial, a modernidade democracias ociden-
tais em geral. As suas
continuaria a avançar em países como Inglaterra, França, Bélgica
obras incluem: Du système
e Holanda. Mas tal avanço não foi linear. Pelo contrário, produziu pénitentiaire aux
uma reação profunda por parte daqueles que passaram a defender États-Unis et de son
application en France
o que entendiam ser a tradição. Vejamos essas linhas, não menos
(1833), De la démocratie
geniais, de Alexis de Tocqueville: (1840), e L’ancien régime
et la révolution (1856). Foi
um defensor da liberdade
e da democracia.

51
História e Sociologia

Fui passar os últimos dias que precedera a luta eleitoral


na minha pobre e querida Tocqueville. Era a primeira vez
que para lá retornava depois da Revolução; talvez fosse
deixá-la para sempre! (...) Cheguei sem ser esperado.
As salas vazias, onde só encontrei meu velho cão
para acolher-me, as janelas desguarnecidas, os móveis
amontoados e poeirentos, as lareiras apagadas, os
relógios parados, o ar sombrio, a umidade das paredes,
tudo me pareceu anunciar o abandono e pressagiar a ruína.
O pequeno pedaço de terra isolado, e como que perdido
em meio a sebes e prados de nosso campo normando,
que tantas vezes me parecera a mais encantadora solidão,
assemelhava-se no estado atual de meus pensamentos a um
deserto desolado. Mas, através da desolação do aspecto
presente, percebia, como do fundo de um túmulo, as
imagens mais doces e alegres de minha vida. (...) Acabava
de ver a queda da Monarquia; assisti depois às cenas mais
terríveis e sangrentas; pois bem! afirmo que nenhum desses
grandes quadros havia-me causado emoção tão pungente
e profunda quanto a que experimentei nesse dia, à vista
da antiga morada de meus pais e à lembrança dos dias
tranqüilos e das horas felizes que lá havia passado sem
saber o quanto valiam. Posso dizer que foi nesse lugar e
momento que compreendi melhor toda a amargura das
revoluções (TOCQUEVILLE, 1991, p. 112).

A nostalgia de um mundo harmônico que ficou para trás,


a ideia de uma Idade de Ouro no passado e o temor das grandes
transformações, geralmente sangrentas, estão presentes nas palavras
de Tocqueville. No entanto, Tocqueville só se dá conta de que era
feliz quando perde a felicidade. Da mesma forma, a tradição só
se dá conta de si mesma quando se contrapõe à modernidade: o
Antigo Regime só é concebido como tal, ou seja, antigo, diante do
novo: a Revolução Francesa.

52
Aula 3 – A consciência moderna: modernidade x tradição Módulo 1

Individualismo moderno x tradição


romântica

Oh, Romeu, Romeu, por que és tu, Romeu?! Renega teu


pai e recusa teu nome ou, se não puderes, jura somente
pelo meu amor que eu não mais serei uma Capuletto...

Somente teu nome é meu inimigo. Tu não és mais do que ti


mesmo, não um Montecchio. O que é um Montecchio? Não
é nem mão, nem pé, nem braço, nem rosto, nem qualquer
outra parte que pertença a um homem. Oh, sê outro nome!

O que há em um nome? O que chamamos de rosa


teria o mesmo cheiro doce se tivesse qualquer outro
nome. Então, Romeu, não fosse ele chamado Romeu,
reteria essa cara perfeição que possui sem tal título.
Romeu, joga fora teu nome e, com esse nome que não
é parte de ti, possua-me por inteira... (Romeo and Juliet,
Act II, scene II)
Fonte: SHAKESPEARE (1990, p. 1020)

Você pode observar nessa passagem de Romeu e Julieta,


de Shakespeare, um exemplo bastante emblemático de como as
noções de indivíduo, de subjetividade e de escolha, independente da

53
História e Sociologia

autoridade da família, do nome e da tradição, já estavam presentes


na literatura shakespeariana desde o século XVII. Entretanto, será
apenas com o iluminismo e com a valorização das noções de
racionalidade e de ciência, entre os séculos XVIII e XIX, que a
tradição entendida aqui como continuidade, vinculação, coesão,
ritual, religiosidade, hierarquia, autoridade, será desafiada.
A fala de Julieta, anteriormente destacada, corresponde a um desejo
de rompimento, ou um desafio, dos rituais medievais de casamento
e união, em geral definidos pelas escolhas das famílias, através de
seus códigos morais e de honra. É como se os valores que definiam
Livre-arbítrio a moralidade do dever ser na sua comunidade tradicional de origem
Crença ou doutrina
filosófica que defende
não mais correspondessem aos desejos, vontades e tentativas de
que os homens têm escolhas dos indivíduos. É claro que a possibilidade da escolha
o poder de escolher autônoma, a que chamamos também individualismo, não logrou
suas ações. Tal crença
sucesso na história de Romeu e Julieta. O final, como você bem
foi defendida como
importante para o sabe, teve o efeito de uma tragédia, ou seja, seria a expressão da
julgamento moral por impossibilidade, ainda naquele contexto, da experiência do amor
diversas autoridades
romântico. A única escolha possível, já que não era simples enfrentar,
religiosas e criticada
por filósofos como
sequer derrotar a força da tradição, fora a morte, o suicídio que,
Spinoza e Marx. em contrapartida, significava a preservação do equilíbrio daquela
A expressão costuma ordem social.
ter conotações obje-
tivistas e subjetivistas. Se os indivíduos e suas escolhas representavam uma desmedida,
No primeiro caso, uma expressão de crise, em um mundo pré-moderno ou um mundo
indicam que a rea-
da tradição do Antigo Regime, no século XIX o indivíduo já é uma
lização de uma ação
por um agente não entidade cuja ação baseia-se no livre-arbítrio, na necessidade e
é completamente nos ditames da razão.
condicionada por
fatores antecedentes.
No segundo caso,
Indivíduo autônomo e livre-arbítrio
indicam a percepção
do agente que sua
ação originou-se
Vejamos como a noção de livre-arbítrio e de indivíduo
na sua vontade. Tal
percepção é chamada
autônomo está consolidada e até naturalizada nos dias de hoje.
algumas vezes de A versão Romeu e Julieta no tempo presente talvez tivesse razões
“experiência da e desfecho bem diferenciados da versão original.
liberdade”.

54
Aula 3 – A consciência moderna: modernidade x tradição Módulo 1

Digamos que você, Romeu ou Julieta, esteja apaixonado (a)


por uma pessoa que poderia: 1) pertencer a uma classe social
diferente da sua; 2) possuir cor da pele e traços fenotípicos diferentes
do seu; 3) professar uma religião diferente da sua. Nesses casos,
vamos supor que a sua família e/ou amigos imponham juízos e
limites à aproximação de um indivíduo, potencial parceiro (a), que
se inclua em uma ou mais categorias listadas. Hoje, ao contrário
de se matar e matar o seu parceiro (a) pela impossibilidade de se
cultivar livremente o amor romântico, você escolhe e decide com
base no seu desejo e no seu interesse, mesmo que estes contrariem os
juízos de sua família e de seus amigos. Você, nessas circunstâncias,
muito provavelmente será capaz de tomar uma decisão, de exercer
seu livre-arbítrio, de lutar pelos seus valores e escolhas, podendo
até mesmo rejeitar vigorosamente qualquer constrangimento que se
imponha aos seus desejos e interesses. O princípio da individuação
já se encontra hoje de tal maneira consolidado no ocidente moderno
que mesmo um conselho dos pais ou um argumento de bom senso
podem vir a se tornar para você “intromissões” sobre as quais
você pode responder com visível repulsa. Se antes o suicídio era
uma resposta trágica à impossibilidade de transpor as instituições
e valores da tradição – família, honra, religiosidade, status social etc.
– hoje, as possibilidades de livre escolha se impõem naturalmente
às barreiras com base em argumentos conservadores da tradição.
Qualquer tentativa de intromissão, ou interferência nas razões de
nossas escolhas, especialmente as amorosas ou afetivas, torna-se um
combustível a mais para a afirmação da autonomia individual.

É claro que você, indivíduo autônomo, se pensa como


soberano absoluto de suas próprias decisões. Entretanto, não vivemos
isolados como átomos na vida social. Somos, talvez sem que nos
apercebamos disso, indivíduos sociais cujos desejos e interesses são
desenhados em sociedade, ou seja, com os estímulos das instituições
e valores sociais que habitam nosso mundo. Você nasce, de modo
geral, em meio a uma família, que habita uma cidade, um bairro,
no qual encontra-se, provavelmente, a escola que você estudou e
toda uma rede de amigos, vizinhos, conhecidos que bem ou mal

55
História e Sociologia

influenciam suas decisões, sobretudo se elas afetam ou interferem


na vida social da qual você também é parte.

Digamos, contudo, que esse indivíduo que nasce com a


modernidade, só existe idealmente. A modernidade pretende ter
retirado o indivíduo dos grilhões do Antigo Regime, transformando
a tradição em “ruínas”. O advento do “indivíduo soberano”, entre
o Renascimento e o humanismo e o iluminismo do século XVIII,
representou o começo da chamada ruptura com a tradição. Vários
fenômenos históricos contribuíram para a formação desse indivíduo
moderno ou da modernidade: a Reforma Protestante que libertaria
a consciência individual dos constrangimentos da institucionalidade
religiosa, a Igreja católica, por exemplo, deixando o indivíduo
diretamente orientado para Deus; o humanismo renascentista que
tornaria o homem o centro de tudo; as revoluções científicas que
davam ao homem a capacidade de duvidar, de questionar e de
inquirir a natureza; o iluminismo, focado na racionalidade, na
ciência, libertado do mito, das crenças e da intolerância.

Para Julieta, não importava o sobrenome de Romeu, dado pelo


acaso do nascimento. Importava apenas que Romeu era o objeto de
sua paixão. Em poucas linhas de um diálogo de amor, o gênio de
William Shakespeare afirmava noções modernas de indivíduo e de
escolha subjetiva, em contraposição às concepções então vigentes
de família e autoridade, que regulavam as relações matrimoniais.
E tudo isso no século XVII!

O século XIX presenciou, portanto, um embate profundo


entre modernidade e tradição. O quadro a seguir é esclarecedor
desse embate.

56
Aula 3 – A consciência moderna: modernidade x tradição Módulo 1

Modernidade Tradição

urbano monarquia
industrial aristocracia
republicano privilégios
racional moralidade cristã
individual religiosidade
impessoal rígida hierarquia social
científico comunidade
livre afeto
classes sociais autoridade
mobilidade social

Dificilmente tal embate poderia ter sido evitado, pois, se para


alguns a modernidade foi sentida como libertação da autoridade
e da tradição, para outros foi sentida como perda da segurança,
inclusive espiritual, e da coesão social.

Mas tradição e modernidade não se confrontaram apenas,


muito embora o tenham feito com muito vigor. Houve também
momentos de encontro, de reconciliação, de convivência. A socio-
logia nasceu, justamente, nesse confronto/encontro entre mo-
dernidade e tradição.

Modernidade e tradição

Você deve estar querendo uma definição pronta, rápida e


acabada de tradição e modernidade. Vamos com calma. Se, ao
final da aula, você tiver uma noção do que significam esses termos,
suas oposições e encontros, os objetivos desta aula terão sido
claramente atingidos.

O que a história de Romeu e Julieta nos mostra? Nela, Julieta


colocava seus desejos e vontades acima dos valores que definiam a
moralidade de sua comunidade, expressando um desejo de rompimen-
to com os rituais medievais de casamento e união, então definidos
pelas escolhas familiares, através de códigos morais e de honra.

57
História e Sociologia

Você sabe como a história do amor de Romeu e Julieta terminou.


É melhor nem falar. Deixemos isso para outra ocasião, quando
estivermos falando a respeito de um dos fundadores do pensamento
sociológico, Emile Durkheim, que refletiu sociologicamente sobre o
suicídio. Pronto, já dissemos a palavra. E, dado que já dissemos,
vamos um pouco adiante: o suicídio expressava, naquele momento,
a força da tradição sobre os desejos autônomos, afirmando a
preservação da ordem social tradicional.

A história de Romeu e Julieta, ainda que escrita no século XVII,


expressa bem essa tensão entre modernidade e tradição, desejos
individuais e constrangimentos familiares e de nascimento. Se, no
século XIX, os valores do individualismo já estavam muito mais
consolidados do que no XVII, com a ação individual baseada no
seu livre-arbítrio, nos seus interesses e desejos, nos ditames da razão,
instituições tradicionais como a família e a igreja, valores tradicionais,
como os que enfatizavam a coesão social e as hierarquias sociais,
ou modos tradicionais de compreender o mundo, como os religiosos,
ainda exerciam poder de regular relações entre pessoas e grupos
sociais. Até porque algumas dessas formas tradicionais também se
modernizaram. A Atividade 1 vai ajudar você a compreender.

Atende ao Objetivo 1

Uma imagem contemporânea de Romeu e Julieta


1. Vejamos como a noção de livre-arbítrio e de indivíduo autônomo está consolidada e
até naturalizada nos dias de hoje.
Digamos que você, Romeu ou Julieta, esteja apaixonado (a) por uma pessoa de uma classe
social inferior à sua, ou que tenha cor da pele ou traços fenotípicos diferentes do seu,
ou que professe outra religião. Para não complicar muito nossa atividade, a pessoa possui
apenas uma dessas características.

58
Aula 3 – A consciência moderna: modernidade x tradição Módulo 1

Sua família se opõe ao romance, faz pressão, dá conselhos... Qual sua atitude?
1. tal como Julieta ou Romeu, a morte trágica é seu destino;
2. você decide, contrariando sua família, casar-se com aquele(a) que você ama;
3. você ouve os conselhos da sua família e decide romper seu romance;
4. você até ouve os conselhos da sua família mas decide casar-se com quem ama.
Pense um pouco a respeito, escolha uma das opções e elabore uma reflexão para
embasar sua escolha.

Comentário
Nos dias de hoje, muito dificilmente você decidiria se matar. Poderia até ser o caso (não é!
não é!), mas muito provavelmente você ficaria dividido entre as opções 2, 3 e 4.

Se você optou pela segunda alternativa, estaria afirmando seu desejo autônomo de
casar-se com quem você ama. Estaria exercendo seu livre-arbítrio, lutando por seus valores e
escolhas, podendo mesmo rejeitar, vigorosamente, qualquer constrangimento aos desejos.
O princípio da individuação já se encontra hoje de tal maneira consolidado no ocidente
moderno que mesmo um conselho dos pais ou um argumento de bom senso podem vir a se
tornar para você “intromissões” sobre as quais você responde com visível repulsa. Se antes
o suicídio era uma resposta trágica à impossibilidade de transpor as instituições e valores da
tradição – família, honra, religiosidade, status social etc. – hoje, as possibilidades de livre
escolha se impõem naturalmente às barreiras com base em argumentos conservadores da
tradição. Qualquer tentativa de intromissão, ou interferência nas razões de nossas escolhas,
especialmente as amorosas ou afetivas, torna-se um combustível a mais para a afirmação da
autonomia individual.

Mas você pode também ter optado pela alternativa 3, ouvido os conselhos da sua família
e resolvido acabar seu romance. Que conselhos foram esses? Suponhamos que foram os
seguintes:

a. que o casamento com uma pessoa de classe social inferior vai trazer dificuldades para a
sua vida. A educação formal dela é deficiente e, portanto, ela terá pouca capacidade de
contribuir para a estabilidade financeira da sua futura família;

b. que o casamento com uma pessoa de outra etnia ou fenótipo trará problemas para
seus filhos. Evidentemente sua família não é racista, mas, se for branca, argumentará
que seus filhos provavelmente enfrentarão episódios de racismo e você não deseja isso
para aqueles que mais ama;

59
História e Sociologia

c. que o casamento com pessoas de outra fé acarretará problemas sérios para a educação
dos filhos, divididos entre duas tradições religiosas.

Nesse caso, a situação é mais complexa. Você estará dando ouvidos a uma autoridade
tradicional, a família, mas poderá basear sua ação em critérios que julga racionais. Estará
optando por romper o relacionamento por:

a. julgar que os interesses materiais se sobrepõem aos desejos. Nesse caso, estará dando
ouvidos a uma autoridade tradicional, a família, mas baseará a ação em critérios que julga
modernos, racionais.

b. julgar que o preconceito racial existe, as próprias raças existem, e deseja evitar que seus
filhos o sofram. Nesse caso, também estará ouvindo uma autoridade tradicional para embasar
um critério moderno, do século XIX, de racialização da espécie humana.

c. julgar importante a criação dos seus filhos na mesma fé que você. Nesse caso, estará
ouvindo uma autoridade tradicional e embasará sua escolha em um vínculo de coesão social
tradicional, a religião.

Portanto, mesmo hoje, as ações podem ser informadas por critérios modernos e tradicionais,
assim como por agentes modernos e tradicionais, o que evidencia a permanência destes e
a tensão entre estes e os valores modernos.

Agora que você já realizou essa atividade, vamos voltar à


nossa discussão com um exemplo histórico de um fenômeno que
entrelaçou dimensões tradicionais e dimensões modernas: a Reforma
Protestante.

60
Aula 3 – A consciência moderna: modernidade x tradição Módulo 1

A Reforma Protestante: a religião no Reforma


Protestante
encontro entre modernidade e tradição A Reforma Protestante
foi um movimento
Com a Reforma Protestante, a Europa católica viu-se que começou no século
XVI com uma série de
cindida. Até então, a Igreja Católica exercia o monopólio da
tentativas de reformar a
interpretação da revelação divina e colocava-se como interme- Igreja Católica Romana
diária exclusiva entre os homens e Deus. Nesse sentido, a Reforma e levou subsequente-
Protestante representou um duplo rompimento, que poderíamos mente ao estabeleci-
mento do Protestantis-
considerar moderno:
mo. Esse movimento
1. rompimento com o monopólio da interpretação: ao instaurar resultou na divisão
da Igreja do Ociden-
uma multiplicidade de interpretações possíveis para a
te entre os “católicos
revelação divina, a Reforma afirmava o princípio último romanos” de um lado
da escolha individual. Em outras palavras, cada indivíduo e os “reformados” ou
“protestantes” de outro;
poderia exercer o livre-arbítrio de escolher, entre tantas
entre esses, surgiram
formas de adorar Deus, a que melhor lhe conviesse ou a varias igrejas, das
que mais o convencesse; quais se destacam
o Luteranismo (de
2. ao afirmar que a intermediação entre os homens e Deus,
Martinho Lutero), as
realizada pela Igreja Católica, era indevida, e que os homens igrejas reformadas e os
poderiam se relacionar diretamente com Deus, a Reforma Anabatistas. A Reforma
teve intuito moralizador,
aprofundava a positividade da dimensão do individualismo.
colocando em plano de
Uma das igrejas reformadas, em particular, contribuiria ainda destaque a moral do
indivíduo (conhecedor
mais com o individualismo: o calvinismo. Enquanto os católicos
agora dos textos religi-
possuíam um deus misericordioso, clemente, um deus de amor, osos, após séculos
inclusive com exemplos a seguir, a vida dos santos, o calvinismo em que estes eram o

jogou os homens na total solidão espiritual, ao declarar que a domínio privilegiado


dos membros da hie-
graça divina, e a salvação eterna dela decorrente, era concedida
rarquia eclesiástica).
segundo leis divinas inatingíveis. Fossem quais fossem as boas ou Suas principais figuras
más ações dos indivíduos, sua sorte já estava lançada a priori e foram Jan Huss (1370-
1415), Martinho Lutero
era irrevogável (predestinação). São palavras de Calvino, Livro III,
(1483-1546) e João
Capítulo XXI, da Institutio: Calvino (1509-1564).
A resposta da Igreja
Católica Romana foi o
movimento conhecido
como Contra-Reforma.

61
História e Sociologia

Ninguém que seja religioso ousa negar diretamente a


predestinação pela qual Deus escolhe alguns para a
esperança da vida e condena outros à morte eterna.
(...) Por predestinação, entendemos o eterno decreto de
Deus pelo qual decidiu em seu próprio espírito o que
deseja que aconteça a cada indivíduo em particular, pois
nenhum homem é criado nas mesmas condições, mas para
alguns é preordenada a vida eterna, para outros a eterna
condenação.

Para Calvino, deveriam ser banidas todas as mistificações,


rituais de salvação, magias, tidos como inúteis para a salvação.
Tirava-se da religião todo o seu lado emocional e propunha-se
ao homem uma conduta racional e individualista ao extremo.
O desencorajamento de Calvino à confissão reforçava a inter-
nalização da moral e a individualização do homem. Assim, o
cristão predestinado à graça (e ninguém estava certo da sua) teria
de, para aumentar a glória de Deus e tentar confirmar sua graça,
demonstrar, com obras e sua conduta diária, a predestinação,
diferentemente do católico medieval que, através de boas ações
esporádicas e mesmo da compra de indulgências e da confissão,
buscava sua salvação, confirmada por membros da burocracia
eclesiástica. O cristão viu-se só no mundo: sua salvação (ou não)
já estava determinada e nada do que fizesse alteraria seu destino.

Se o calvinismo é por muitos entendido como central na


construção da modernidade, por enfatizar o indivíduo e uma ética
do trabalho afim à capitalista, em contrapartida ele retira do cristão
as ações para a salvação.

O choque, inevitável, entre catolicismo e religiões protestantes


levou às guerras religiosas do século XVI. Para pôr fim a tais guerras,
outro elemento central da modernidade começou a se firmar: a
separação entre Estado e confissão religiosa, entre política e
moralidade cristã. Foi a partir de então que o laicismo penetrou,
definitivamente, na esfera da política, muito embora ele já estivesse

62
Aula 3 – A consciência moderna: modernidade x tradição Módulo 1

anunciado desde, pelo menos, Maquiavel. Seja como for, o laicismo


na política, a ideia de separação entre Estado e confissão religiosa,
é um dos pilares do pensamento iluminista e da idéia de República.
Mais ainda: como veremos nas aulas seguintes, para alguns, o
protestantismo foi fundamental para a emergência do capitalismo.

O laicismo é uma doutrina filosófica que defende e promove


a separação do Estado das igrejas e comunidades religiosas,
assim como a neutralidade do Estado em matéria religiosa. Não
deve ser confundida com o ateísmo de Estado. Esta corrente surge a
partir dos abusos que foram cometidos pela intromissão de correntes
religiosas na política das nações e nas universidades pós-medievais.
O laicismo teve seu auge no fim do século XIX e no início do
século XX.

Não deixe de ver o filme A rainha Margot para conhecer


um pouco mais as guerras religiosas do século XVI.

Ainda assim, a reforma protestante, o calvinismo em particular,


representa um momento de encontro entre modernidade e tradição:
ao mesmo tempo em que afirma valores modernos etc., aprofunda o
poder discricionário de Deus na condução das vidas humanas.

Agora que já discutimos o “casamento” entre modernidade e


tradição, você pode realizar a Atividade 2.

63
História e Sociologia

Atende ao Objetivo 2

2. É claro que você, indivíduo autônomo, se pensa como soberano, absoluto de suas
próprias decisões. Entretanto, você não vive isolado como um átomo. Somos, talvez sem
que nos apercebamos disso, indivíduos sociais cujos desejos e interesses são desenhados
em sociedade, ou seja, com os estímulos das instituições e valores sociais que habitam nosso
mundo. Você nasce, de modo geral, em meio a uma família que habita uma cidade, um
bairro, no qual encontram-se provavelmente a escola que você estudou e toda uma rede
de amigos, vizinhos, conhecidos que bem ou mal influenciam suas decisões, sobretudo se
elas afetam ou interferem na vida social da qual você também é parte.
Vamos nos concentrar na questão da escolha da profissão. A escolha profissional é um
momento muito importante na vida de um indivíduo e é, por assim dizer, um elemento
moderno: você escolhe, opta, vários caminhos são possíveis. No entanto, na escolha da
sua profissão, várias dimensões se cruzam: realização pessoal, desejo de ascensão social,
de prestígio e distinção, mas também pressões familiares e de amigos, dos mais velhos etc.
Escreva um pequeno texto a respeito da sua escolha profissional, levando em consideração
o entrelaçamento da sua dimensão individual e das pressões sociais que sofreu.

Comentário
Essa atividade não tem resposta única, pois cada indivíduo possui uma experiência própria a
respeito. Afinal, estamos no século XXI! Mas é muito possível que sua escolha profissional tenha
resultado de um complexo jogo de razões, algumas delas que poderiam ser caracterizadas
como modernas, como desejo de ascensão social, outras tradicionais, como desejo de
distinção. Assim como de forças modernas e tradicionais: sua escolha pessoal e pressões
familiares.

64
Aula 3 – A consciência moderna: modernidade x tradição Módulo 1

Modernidade e oposição: desencontros

Se modernidade e tradição se alimentam uma da outra, ou


se só são possíveis no embate com a outra, não é menos verdade,
como colocou Anthony Giddens, que a modernidade reconstruiu a
tradição enquanto a dissolvia.

De fato, a modernidade tem esse poder solvente. Se já fizemos


referência a um dos marcos do pensamento sociológico, Emile
Durkheim, vamos fazer agora a outro, Karl Marx. Marx afirmava que
a modernidade desmancha no ar tudo o que é sólido ou que parecia
ser. A mesma impressão tinha o poeta, já nosso conhecido, Charles
Baudelaire. Para ele, a modernidade significava muito mais do que
fábricas e chaminés. Significava também o triunfo do transitório, do
efêmero, do contingente.

Para se ter uma ideia melhor do que estamos falando, veja


o Quadro 3.1, em que alguns dos elementos de oposição entre
modernidade e tradição estão sintetizados:

Quadro 3.1: Elementos da tradição e da modernidade

Tradição Modernidade

Sociedade: é marcada pela impessoalidade, pela


Comunidade: é o espaço da vida social onde todos se afirmação do valor do indivíduo, pela ausência de
conhecem, sabem e aceitam seus lugares sociais e suas hierarquias sociais preestabelecidas e pela mudança
obrigações recíprocas. A comunidade se sobrepõe ao permanente. Como o espaço de liberdade do indivíduo
indivíduo, nela a mobilidade social é restrita, se é que é maior do que na comunidade, as pressões sobre
existe, e os constrangimentos sociais contra comportamentos comportamentos transgressores (como os de ordem sexual)
considerados transgressores (como os de ordem sexual) são podem continuar a existir, mas as punições tendem a se
muito intensos. Por outro lado, a comunidade oferece abrandar. Se a sociedade oferece mobilidade, por outro
segurança espiritual e também material aos seus membros. lado proporciona menos segurança espiritual e material a
seus componentes.

65
História e Sociologia

Razão: o mundo natural e as relações sociais são entendidos


Religião: o mundo natural e as hierarquias sociais são
como construções humanas. Os homens, portanto, podem
regidos pela revelação divina, o que justifica a ausência de
conhecer seus funcionamentos e mudá-los, com o uso da
mobilidade social, mas proporciona segurança.
razão. Portanto, o mundo é dinâmico.

Hierarquia social: a comunidade é hierarquicamente Mobilidade social: não importa o local e o sobrenome, o
organizada e tal hierarquia é estática. As diferenças sociais que importa é a capacidade de cada indivíduo de traçar
são dadas pelo nascimento. o seu destino baseado na sua razão.

Coesão social: a religião, o poder do Rei de direito Competição: a afirmação do indivíduo, a mobilidade social
divino, as redes comunitárias de proteção social e ajuda – que pode ser ascendente ou descendente –, a incerteza,
mútua proporcionam coesão a um mundo socialmente colocam as satisfações individuais como valor absoluto e
hierarquizado. minam os laços tradicionais de coesão social.

Afeto: o afeto regula uma boa parte das relações sociais na


Impessoalidade: em um mundo marcado pela ideia de
esfera comunitária. As redes tradicionais de solidariedade
competição e mobilidade social, pela venda da força de
e as autoridades tradicionais – família, vizinhos, paróquia,
trabalho em troca de um salário, as relações se baseiam
senhor de terras – cimentam suas obrigações recíprocas na
em interesses, frequentemente passageiros e/ou contra-
esfera do afeto, que podem inclusive passar de geração
ditórios, não em compromissos afetivos estáveis.
para geração.

Permanência: a tradição pensa o mundo como dese- Mudança: a modernidade pensa o mundo como
javelmente estável, permanente, imutável, posto que coeso permanente mudança, sempre passível de aperfeiço-
e harmônico. amento a partir da razão humana.

66
Aula 3 – A consciência moderna: modernidade x tradição Módulo 1

Atende ao Objetivo 2

3. Observe o quadro sobre tradição e modernidade. Ele não é estático. Vários exemplos
podem ser adicionados a cada item. Considerando as sugestões do quadro, observe a
sua cidade e descreva o que você considera tradicional e o que você considera moderno.
A observação deve levar em conta os seguintes aspectos: a arquitetura da cidade,
vestuário, comportamento das pessoas em público, regras morais e avanços tecnológicos.
A atividade pode contemplar também o espaço familiar (membros da família, padrões de
comportamento, visões de mundo etc.)
Você deverá fazer uma descrição, com base nas suas observações, do par tradição/
modernidade, inclusive através de imagens (você pode criar um painel de fotos e
disponibilizar para os seus colegas no polo do CEDERJ de sua cidade). O desafio é que
você, através do levantamento de imagens e impressões, reflita sobre a interdependência
e simultaneidade do par tradição/modernidade.

Comentário

Essa atividade estimula o seu olhar para a simultaneidade de padrões arquitetônicos,


visuais e comportamentais ora considerados tradicionais, ora modernos na comunidade na
qual você vive. Assim você será desafiado a refletir sobre como a ideia de modernidade
que emerge no século XIX é vista hoje como tradição, e como o que consideramos
moderno hoje, amanhã poderá ser considerado tradição. O objetivo é estimular a ca-
pacidade de relativização no tempo e no espaço, e de quebra de percepções
congeladas, da oposição tradição/modernidade. Essa relativização deve valer
também para a comparação que de modo geral fazemos com culturas de outros países.
O que nós ocidentais consideramos tradicional pode ser moderno para outra cultura,
especialmente as orientais, e vice-versa.

67
História e Sociologia

CONCLUSÃO

Muito provavelmente você já consegue compreender as


complexas relações entre tradição e modernidade. Se nos situarmos
no momento preciso da emergência dessa relação, veremos o
advento da consciência moderna como uma tentativa de afirmar
o presente pela negação do passado, ou melhor, pela negação
do tradicional. A Revolução Francesa, para se afirmar como um
fenômeno inovador, moderno, teve de realçar que tudo o que não
era parte da novidade da revolução deveria ser considerado como
parte do Antigo Regime. Esse jogo de espelho entre o novo e o velho,
sugere-nos, igualmente, que a oposição tradição e modernidade
permanece ainda hoje como um marcador da relação entre novos e
velhos fenômenos. Mas, como uma última questão para você refletir,
perguntamos: O que isso importa para a Sociologia?

68
Aula 3 – A consciência moderna: modernidade x tradição Módulo 1

RESUMO

Bem, para a Sociologia, o fenômeno da oposição entre


modernidade e tradição produz novos fenômenos que se trans-
formam, como você já deveria saber, em temas de estudos
sociológicos. O tema do individualismo e do holismo; o tema do
hábito, da moralidade pré-moderna e do livre-arbítrio do indivíduo
autônomo; o tema da miséria e da pujança; o tema da exploração
da classe trabalhadora; das cidades em transformação, o tema da
ambiguidade, todos tornam-se matérias-primas que serão, ao longo
da modernidade, processadas pela pesquisa sociológica.

Informações sobre a próxima aula

Nos primórdios da Sociologia, ou seja, no século XIX,


os fenômenos produzidos pelo choque entre tradição e
modernidade serão objetos privilegiados de dois grandes autores,
Karl Marx e Emile Durkheim – ambos iniciam suas abordagens
em Sociologia ainda no século XIX – e, na próxima aula,
você terá o prazer de conhecê-los.

69
Aula 4
Duas visões sobre a
sociedade: Durkheim
e a coesão social e
Marx e o conflito
social
História e Sociologia

Meta da aula

Articular biografias, temas sociológicos e a questão social no século XIX.

Objetivos

Ao final desta aula, você deverá ser capaz de:

1. compreender como a disciplina sociológica possui expressões diferenciadas


no século XIX, que são tentativas possíveis de se responder aos desafios sociais
da sociedade industrial;
2. familiarizar-se com as biografias de grandes sociólogos do século XIX e suas
relações com a sociedade na qual eles produziram conhecimento e agiram
politicamente;
3. familiarizar-se com conceitos centrais das sociologias durkheimiana e marxista,
como solidariedade mecânica, solidariedade orgânica, luta de classes, mercadoria,
modo de produção;
4. conhecer duas formas distintas de se compreender a dinâmica social:
a durkheimiana, que enfatiza a noção de solidariedade, e a de Marx,
que enfatiza o conflito social.

Pré-requisitos

Para melhor compreensão desta aula, é importante que você relembre


os conceitos apresentados nas Aulas 2 e 3, principalmente no que
se refere à discussão sobre tradição e modernidade.

72
Aula 4 – Duas visões sobre a sociedade: Durkheim e a coesão social e Marx e o conflito social Módulo 1

INTRODUÇÃO

As sociedades, em todos os tempos, tiveram alguma ideia


sobre o que eram e o que desejariam ser. Somente as sociedades
modernas, no entanto, pretenderam ter um conhecimento científico
sobre si mesmas. O contexto europeu do século XIX trouxe à tona
dois eventos que se transformaram em objetos de interesse filosófico
e científico: a Revolução Francesa e a Revolução Industrial. Grande
parte dos sociólogos do século XIX se dedicou a interpretar a
destruição das hierarquias sociais do Antigo Regime, a queda da
monarquia francesa e o desenvolvimento das sociedades industriais,
com suas novas hierarquias baseadas em divisões de classes e no
mercado de trabalho. Algo de profundo estava mudando naquelas
sociedades, e uma lente com um foco muito especial deveria refletir
essa mudança. Essa lente chamava-se sociologia.

Mas essa sociologia não era apenas uma abstração,


um conjunto de ideias metafísicas, descoladas do mundo real.
Ela dependia de atores históricos de carne e osso, que pudessem
olhar para o mundo em que viviam através de um amplo repertório
cognitivo: novas ideias, novos valores, responsabilidade política,
objetividade e instrumentos metodológicos. Pretendia-se, com esses
procedimentos, criar uma nova ciência – a ciência da sociedade.
Entretanto, esses atores históricos, os chamados pais da nova
ciência – a sociologia –, embora tomados e envolvidos pelos
novos acontecimentos de seu tempo, não os trataram da mesma
maneira. Talvez em comum o fato de que interpretavam a sociedade
do século XIX de um modo ambíguo: ao mesmo tempo que essas
transformações na política, na economia, na moralidade e nos
hábitos os seduziam, muito da incerteza desses novos tempos os
abatia: a nova sociedade capitalista não era um mar de rosas.
Produzia alienação, injustiça, desigualdade, miséria e opressão.
O que a sociologia promovia em seus primórdios era a identificação
dos males da sociedade industrial, moderna e capitalista, e, em
alguns casos, arriscava e prognosticava algum remédio para
amenizar ou superar esses males.

73
História e Sociologia

Karl Marx e Émile Durkheim são dois exemplos de


como o conhecimento da sociedade, por mais científico que
quisesse ser, produzia consequências ou implicações sociais que
se expressavam diferentemente de um sociólogo para outro: podiam
reforçar ou enfraquecer instituições, criticar ou inaugurar hábitos,
fortalecer ou enfraquecer partidos políticos. Marx e Durkheim
eram sociólogos imersos em seu contexto, e a sociologia que eles
produziram reflete, claramente, essa imersão.
Émile Durkheim
Você pode estar se perguntando: Seria coincidência o fato
(Epinal, 1858-
Paris, 1917) de Marx e Durkheim serem, ambos, de origem judaica? Esse pode
É considerado um dos pais do ser um interessante problema sociológico. Colocando a pergunta
pensamento sociológico. Seu
de outro modo: haveria alguma relação entre a sociedade europeia
pai, seu avô e seu bisavô eram
rabinos, e, apesar de ter se do século XIX, que passava por tantas transformações, a condição
distanciado da religião e tratado específica dos judeus europeus de então, e a emergência da
os fenômenos religiosos a partir
sociologia como disciplina científica? A resposta poderia ser:
de condicionantes sociais e
sim e não. Não, porque Marx e Durkheim não foram os únicos
não divinos, nunca se afastou
definitivamente da comunidade pensadores que tiveram importância na nova disciplina, embora
judaica. Muitos de seus cola- sejam considerados seus pilares, e muitos desses pensadores não
boradores foram judeus e
eram judeus. Sim, porque a especificidade da condição judaica
alguns, inclusive, seus parentes,
como Marcel Mauss. Professor na Europa do século XIX colocava, a muitos judeus de então, uma
da Escola Normal Superior, série enorme de perguntas, que precisavam, de alguma forma, ser
foi influenciado pela obra
respondidas.
de Auguste Comte. Por outro
lado, teve grande influência
sobre o pensamento histórico Karl Heinrich Marx (Trier,
francês da Escola dos Annales, 1818-Londres, 1883)
particularmente sobre Tal qual Durkheim, nasceu em uma família
Marc Bloch. de origem judaica, perto da fronteira entre
Alemanha e França e, portanto, não longe
de Epinal. Seu pai, contudo, havia se
convertido ao protestantismo e se distanciado
completamente de sua tradição religiosa.
Tendo vivido em Paris e Londres, Marx
articulou militância política e produção teórica,
realizando uma profunda reflexão sobre o
capitalismo e desenvolvendo importantes
conceitos como materialismo histórico, mais-
valia e modos de produção.

74
Aula 4 – Duas visões sobre a sociedade: Durkheim e a coesão social e Marx e o conflito social Módulo 1

Talvez você não tenha ideia do que significava ser judeu, ou


ter nascido no seio de uma família judia, na Europa do século XIX.
Os desafios que os judeus enfrentaram para se integrar àquela nova
sociedade liberal que se inaugurava com a Revolução Francesa
foram muitos e decisivos para a geração que buscou, nos bancos
escolares e nas universidades, formas de mobilidade social e de
reconhecimento intelectual em sociedades ainda excludentes, anti-
semitas e competitivas. O Caso Dreyfus (veja mais sobre ele no boxe
a seguir), já no alvorecer do século XX, mostraria que, mesmo após
a emancipação política dos judeus na França, país e contexto no
qual Durkheim nasceu e fundou a sua sociologia, o antissemitismo
não era apenas um fantasma, mas um fenômeno real que, por meio
de ardis como a calúnia e a difamação, tentavam retirar dos judeus
seus direitos à igualdade e à cidadania que haviam adquirido após
a Revolução Francesa. Nesse sentido, é bom que você, estudante de
História, compreenda um pouco da trajetória dos judeus na Europa
após a Revolução Francesa, pois por meio da compreensão dessa
trajetória você se sentirá mais apto a compreender a vida e a obra
tanto de Durkheim quanto de Marx.

Caso Dreyfus
Em 1894, o capitão do Exército francês Alfred Dreyfus, de religião
judaica, nascido em Mulhouse, Alsácia – não muito longe de onde Durkheim
e Marx nasceram –, foi acusado e condenado, em um julgamento secreto,
à prisão perpétua por ter passado segredos militares franceses para os alemães, crime
de alta traição. Dreyfus, no entanto, era inocente. A condenação baseara-se em documentos
falsos, e, quando altos oficiais franceses perceberam o erro judiciário, procuraram ocultá-lo.
O Caso Dreyfuss dividiria a opinião francesa e a europeia, entre dreyfusards (simpáticos a
Dreyfus) e os anti-dreyfusards (a ele contrários), ensejando debates sobre o antissemitismo
na França, o país da Revolução, da República e da igualdade, fraternidade e liberdade.
O Caso Dreyfus esteve mesmo na base do nascimento do sionismo, movimento nacionalista
que definia o judaísmo como nação, não como religião. Entre os dreyfusards, Émile Zola,
que você já conhece. Em 1906, Dreyfus foi readmitido no Exército francês. O ato de traição
havia sido cometido, na verdade, pelo major Walsin-Esterhazy, que era católico.

75
História e Sociologia

Os judeus e a modernidade

Nos séculos que precederam a modernidade, os judeus


da Europa central e oriental (denominados ashkenazim) viviam
fechados em suas comunidades. Tinham suas próprias escolas, onde
aprendiam a lei judaica, sinagogas, cemitérios e instituições de ajuda
mútua. E tinham também suas próprias normas de conduta pública e
pessoal, assim como instituições que supervisionavam a observação
dessas normas. Tal mundo fechado não resultava unicamente de uma
escolha dos próprios judeus. Vivendo entre populações cristãs e em
sociedades hierárquicas do Antigo Regime, os judeus ashkenazim
eram convidados a permanecer ou eram expulsos de cidades,
regiões ou reinos, ao sabor das vicissitudes políticas de duques,
condes, barões ou reis. Por outro lado, dado que lhes era vedado
o acesso a diversas ocupações profissionais e à terra, acabaram
por se dedicar ao comércio e ao artesanato, limitando seus contatos
com o mundo exterior às necessidades impostas por suas atividades
profissionais e necessidades políticas.

A partir do século XIX, a modernidade, com seu poder


dissolvente, veio colher tais judeus de forma avassaladora:

1. Em países como a Alemanha, onde Marx nasceu, e a


França, onde nasceu Durkheim, a separação entre Estado
e confissão religiosa tornou os judeus cidadãos plenos, com
os mesmos direitos e deveres dos cristãos, abrindo-lhes as
portas do serviço público, da universidade e das profis-
sões liberais.

2. A industrialização e a urbanização na Rússia e no que hoje


é a Polônia (no século XIX, o território polonês estava dividido
entre a Prússia, a Rússia e o Império Austro-Húngaro) levaram
a um esvaziamento do sthetl (aldeia judaica da Europa
oriental), ou seja, a um esvaziamento da comunidade judaica
tradicional, fazendo com que tais judeus se tornassem em
grande medida proletários ou pequenos artesãos e alfaiates
em grandes cidades do Império Russo, como Varsóvia,
Kiev e Odessa.

76
Aula 4 – Duas visões sobre a sociedade: Durkheim e a coesão social e Marx e o conflito social Módulo 1

Tais mudanças colocaram para os judeus o desafio de redefinir


suas inserções e lealdades no seio das sociedades em que viviam. Se os
muros de sua comunidade tradicional estavam caindo, o que fazer?

Diversas foram as respostas por eles construídas:

• Os judeus que sentiram a modernidade como uma libertação


da tradição abraçaram as novas identidades nacionais na Alemanha,
Áustria-Hungria, Inglaterra e França, como Durkheim, chegando
muitos a se converter ao cristianismo, como o pai de Marx. Na
Polônia e na Rússia, onde os judeus eram muito mais numerosos e a
tensão com o Império Czarista era mais acentuada, muitos aderiram
aos movimentos revolucionários, pregando a revolução socialista.

• Os judeus que sentiram a modernidade como uma ameaça


rejeitaram-na em sua totalidade e buscaram fechar-se ainda mais
em suas comunidades em crise. Passando a ser conhecidos como
ortodoxos, tais judeus encerraram-se em suas de casas de estudos,
à espera do Messias.

• Houve também judeus que buscaram conciliar modernidade


e tradição, articulando fé na esfera privada e cidadania na esfera
pública. Tal foi o caminho de muitos judeus alemães e franceses.

• A emigração foi outra das respostas dos ashkenazim


à modernidade europeia. Entre 1880 e 1920, cerca de quatro
milhões de judeus russos e poloneses foram viver nas Américas,
onde construíram novas identidades, como a do judeu americano,
ou afastaram-se por completo da tradição religiosa e cultural de seus
antepassados. Muitos judeus emigraram também para o Brasil nas
primeiras décadas do século XX.

• Por fim, houve judeus que redefiniram a identidade judaica,


rejeitando sua natureza religiosa e afirmando sua dimensão nacional.
Para esses, conhecidos como sionistas, cuja importância cresceu em
razão do Caso Dreyfus, os judeus formavam uma nação, à moda
europeia, e deveriam defender a criação de um Estado-Nação para
os judeus na Palestina, o que se concretizou em 1948, com a criação
do Estado de Israel.

77
História e Sociologia

O filme Um violinista no telhado, além de ótimo


musical, retrata muito bem o poder dissolvente da
modernidade sobre uma tradicional comunidade judaica
da Europa oriental. O filme é de 1971, foi dirigido por
Norman Jewison e está disponível em DVD.

Karl Marx e Émile Durkheim eram fruto dessa grande


transformação da vida judaica europeia e, como tantos intelectuais
judeus de então, buscaram compreender e interpretar o novo mundo
que se lhes abria. Ao fazê-lo, no entanto, construíram respostas
diferentes aos desafios a eles colocados.

Vamos, então, analisar um pouco a obra de cada um deles.

Durkheim e sua obra

Você agora pode recapitular um pouco da última aula sobre


a emergência do individualismo na modernidade. Com o exemplo
de Romeu e Julieta, de Shakespeare, vimos que a nova concepção
de indivíduo se articulava à ideia de liberdade e de livre-arbítrio.
Era como se os laços com a tradição, com a moralidade tradicional,
fosse ela religiosa, aristocrática ou camponesa, perdessem o seu
poder de controle sobre as ações dos indivíduos. Nas sociedades
Utilitarismo
Surgido no século modernas, é como se o indivíduo encontrasse dentro de si mesmo,
XVIII e desenvolvido dos seus próprios interesses e paixões, as motivações para a sua
ao longo do século
ação no mundo. O século XIX se abre com a Revolução Francesa e
XIX, por intermédio
dos escritos de Jeremy com a promessa de direitos iguais e de liberdade para todos.
Bentham e John Stuart
O desenvolvimento da sociedade industrial pressupunha
Mill, o utilitarismo pode
ser definido como a também a emergência de um mercado no qual os indivíduos
doutrina que defende circulassem livremente, quer para comprar mão-de-obra, quer
que a ação deve para vender a sua própria mão-de-obra. As teses e teorias liberais,
sempre produzir a
especialmente o utilitarismo, acreditavam que os indivíduos
maior quantidade de
bem-estar coletivo. naturalmente participariam do mercado e que não seria necessária

78
Aula 4 – Duas visões sobre a sociedade: Durkheim e a coesão social e Marx e o conflito social Módulo 1

nenhuma autoridade de “fora”, como o Estado, ou uma moralidade,


como a religiosa, para regular as trocas e os contratos.

Tudo isso em tese parecia perfeito. Indivíduos livres, donos


dos seus narizes, autônomos para participar livremente no mercado.
Acreditava-se que a ordem social se auto-organizaria, pois os
indivíduos seriam racionais e estariam em busca da felicidade.
Não interessaria a tais indivíduos que a sociedade se transformasse
num caos, numa bagunça em que homem fosse o lobo do próprio
homem. Ao contrário, acreditava-se que os homens eram capazes de
se auto-organizarem e que uma das formas dessa auto-organização
eram os contratos. Sendo todos os indivíduos livres e iguais, tanto
em termos políticos quanto econômicos – no sentido de que, ao
contrário do que ocorria no Antigo Regime, estavam abolidos todos
os laços de dependência e de trabalho compulsório –, tais indivíduos
ajustariam, livremente entre si, contratualmente, portanto, os termos
das suas relações.

Contudo, o que Durkheim observava, com seu olhar arguto


de sociólogo, é que essas teses não eram tão bem-sucedidas assim.
Os ideais do individualismo liberal, proclamados pela Revolução,
encontravam-se muito distantes da realidade das sociedades européias
do século XIX. Ainda assim, Durkheim sabia que a sociedade estava
em franca transformação e que não adiantava retomar os valores
do passado, do Antigo Regime, como queriam os conservadores,
para os quais o individualismo representava uma patologia, uma
doença que estaria contaminando toda a sociedade.

Em seu primeiro importante estudo, A divisão do trabalho social


(1893), Durkheim criticava, ao mesmo tempo, os conservadores,
que queriam uma volta aos valores do passado, e os liberais, que
achavam que a sociedade podia abrir mão de qualquer tipo de
autoridade moral. Para ele, a sociedade emergente não poderia
abrir mão de uma moralização das relações sociais, mesmo que
essa nova ordem moral contrastasse radicalmente com a antiga. Esse
ponto é importante: para Durkheim, a moralidade era um sistema
dependente das condições sociais, portanto dinâmica, sendo assim

79
História e Sociologia

um equívoco o desejo conservador de insistir em recuperar valores


tradicionais. De fato, como aplicar, por exemplo, uma moralidade
religiosa que fosse compartilhada automaticamente por todos, nas
condições modernas, onde as diferenciações sociais, inclusive as
de crença – como atestava a própria família de Durkheim –, eram
muito profundas? Era necessário, pelo contrário, dotar o indivíduo e o
mercado de uma nova ordem moral, que fosse com eles compatível.
Para Durkheim, portanto, deveria haver um “elemento não-contratual
no contrato”, cabendo à sociologia, justamente, investigar as fontes
dessa autoridade moral moderna e quais os constrangimentos que
ela imporia aos indivíduos, para que estes não se comportassem de
forma egoísta e maximizadora de seus próprios interesses.

A sociologia de Durkheim, portanto, compreendia a inevita-


bilidade do individualismo como valor na modernidade, mas
rejeitava o individualismo da perspectiva do homem egoísta, que
queria ter vantagem em tudo. O individualismo que interessava a
Durkheim era o individualismo moral, aquele que se orientava para
a liberdade e a igualdade e que permitia ao indivíduo exercitar
a solidariedade social. Nas condições de seu tempo, pensava
Durkheim, o mercado produzia uma dinâmica de relações que
obrigava a cada indivíduo ter consciência de que a sua ação
poderia afetar outros e prejudicar um consenso moral prévio.
O que desafiava Durkheim era reconhecer, na estrutura social das
sociedades industriais, nas quais se observava uma crescente divisão
do trabalho social, os elementos que promovessem a coesão dos
indivíduos ou a coesão social. Diante de tal desafio, ele propôs os
conceitos de solidariedade mecânica e solidariedade orgânica.

80
Aula 4 – Duas visões sobre a sociedade: Durkheim e a coesão social e Marx e o conflito social Módulo 1

Solidariedade mecânica
Por solidariedade mecânica, Durkheim compreendia os laços
de coesão social típicos das sociedades tradicionais, em que os
indivíduos se identificam por intermédio da família, da religião, da
tradição, dos costumes. É uma sociedade que tem coerência porque
os indivíduos ainda não se diferenciam; reconhecem os mesmos valores,
os mesmos sentimentos, os mesmos objetos sagrados, dado que se
percebem como pertencentes a uma mesma coletividade.

Solidariedade orgânica
Por solidariedade orgânica, Durkheim entendia os laços de coesão social
das sociedades capitalistas. Nestas, há a divisão do trabalho social, os
indivíduos tornam-se interdependentes, diferenciados, e o que garan-
te a coesão não é a tradição, a religião, a família ou os costumes, mas
a solidariedade engendrada pela própria divisão social do trabalho.
A divisão social do trabalho enseja a solidariedade orgânica porque, ao
se tornar responsável pela produção de apenas uma pequena parcela
dos bens e serviços de que precisa para viver, o individuo se sentirá
cada vez mais dependente do que outros indivíduos produzem, criando
uma grande rede de interdependência entre indivíduos que têm, todos, o
mesmo objetivo: ter acesso aos bens e serviços de que necessitam para
viver. A metáfora orgânica é evidente: um organismo possui vários órgãos
independentes e com funções distintas – um produz sangue, outro processa
alimentos, um terceiro elimina as impurezas, o mais importante de todos
organiza todas essas funções etc. –, mas por cima de suas diferenças,
todos são solidários no seu objetivo: manter o organismo vivo e, se possível,
reproduzi-lo.

81
História e Sociologia

Atende ao Objetivo 3

1. Faça uma descrição das atividades e dos costumes na sua cidade que traduza o que
Durkheim chama, de um lado, “solidariedade mecânica” e, de outro,“solidariedade
orgânica”.
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Comentário
Você provavelmente notará que muitas relações na sua cidade são baseadas no princípio
da solidariedade mecânica. Assim, por exemplo, as relações familiares e as religiosas. No
entanto, tais solidariedades não são capazes de estabelecer laços de coesão entre aqueles
que delas fazem parte e aqueles que não. Por exemplo, a solidariedade mecânica que
se estabelece entre pessoas que frequentam o mesmo culto não se estende a pessoas que
não o frequentam. Nesse caso, em que uma maior diferenciação social ocorre, deveria ser
acionado, para utilizar a terminologia de Durkheim, o princípio da solidariedade orgânica.
Por exemplo, a solidariedade que pode ser percebida entre prestadores e consumidores de
serviços. O estudo das sociedades mais complexas levou Durkheim às ideias de normalidade
e patologia sociais, a partir das quais introduziu o conceito de anomia, ou seja, ausência
ou desintegração das normas sociais. Como as sociedades mais complexas se baseiam na
diferenciação, é preciso que as tarefas individuais correspondam aos desejos e aptidões de
cada um. Isso nem sempre acontece, e a sociedade se vê ameaçada pela desintegração,
pois os valores ficam enfraquecidos.

82
Aula 4 – Duas visões sobre a sociedade: Durkheim e a coesão social e Marx e o conflito social Módulo 1

Se a solidariedade orgânica iria fornecer as bases morais


de uma nova ordenação social, que superasse as limitações do
individualismo liberal, Durkheim sabia também que ela não era
uma realidade em seu tempo. Para ele, tal fato se explicava
porque a passagem da solidariedade mecânica para a orgânica
não seria automática, exigindo um aprendizado e instituições que
promovessem a disciplina dos indivíduos. Por um lado, haveria
resíduos da solidariedade mecânica na sociedade emergente, e, por
outro, algumas condições sociais não satisfaziam o funcionamento de
uma sociedade baseada na solidariedade orgânica. A solidariedade
orgânica não se estruturaria plenamente, por exemplo, se persistissem
elementos de uma consciência religiosa que fosse excludente dos
não-crentes, assim como também não se realizaria se a justiça
social e a igualdade de oportunidades não estivessem dadas,
ou seja, enquanto essas condições não estivessem amadurecidas e
os resíduos da solidariedade mecânica persistissem, a sociedade
emergente padeceria do que Durkheim chamava de “patologias
sociais”. A luta de classes era, para Durkheim, uma patologia social,
a manifestação de uma anomia, em um contexto de transição da
comunidade simples para a sociedade complexa, da solidariedade
mecânica para a orgânica. Não se tratava, pois, apenas de punir
o indivíduo com prisão, torturas etc., mas de discipliná-los, educá-
los e normatizá-los para a vida do trabalho e para a vida social.
É nesse contexto que as instituições penais de correção, os hospitais
psiquiátricos, os internatos e as escolas técnicas surgem para
disciplinar e assegurar a manutenção de uma moralidade individual
e o bem-estar da sociedade.

Como você poderá ver no final desta aula, na listagem de livros


de Durkheim, seu campo de interesses era vasto, indo desde questões
relativas à divisão social do trabalho, que acabamos de discutir, até
religião, passando por questões educacionais e metodológicas. Um
estudo particularmente interessante de Durkheim, no entanto, é o
que diz respeito ao suicídio. Os autores que estudaram o fenômeno
do suicídio antes de Durkheim buscavam explicações individuais
(mentais) ou não-sociais (fatores raciais) como causas do suicídio.

83
História e Sociologia

Durkheim, pelo contrário, buscou compreender o suicídio a partir


de seus fundamentos sociais. Assim, ele descreveu três tipos de
suicídio: o egoísta, em que o indivíduo se afasta dos seres humanos;
o anômico, originário, por parte do suicida, da crença de que
todo o mundo social, com seus valores, normas e regras, desmo-
rona-se em torno de si; e o altruísta, por lealdade a uma causa.

A importância do trabalho de Durkheim é que, por meio do


método sociológico, ele identifica no suicídio um fato social que
precisa ser explicado por intermédio de outros fatos sociais. Durkheim
pôde perceber, por exemplo, que as taxas de suicídio eram mais
baixas em países católicos do que em países protestantes. Você
pode agora facilmente concluir que, em sociedades nas quais o
individualismo é mais desenvolvido (países protestantes), a taxa de
suicídio provavelmente será maior, ao passo que em sociedades
nas quais prevalece o catolicismo, a taxa de suicídio provavelmente
será menor e a solidariedade, maior. Pense nos países nórdicos, na
Suécia, por exemplo. Sempre ouvimos dizer que as taxas de suicídio
nesses países são altas. Parece um paradoxo. São países com baixa
taxa de desigualdade, com maior igualdade de oportunidades, com
alto índice de desenvolvimento humano, com liberdade, direitos
plenamente resguardados, de modo geral protestantes, e, no entanto,
as pessoas cometem suicídio com significativa frequência. Esse
é um fenômeno que não pode ser somente estudado da perspec-
tiva da medicina ou da psicologia. É um fato social que merece a
atenção da sociologia, como já chamava a atenção Durkheim.

E no Brasil, o que você sabe sobre o fenômeno do suicídio?


Qual é a incidência desse fenômeno na sua cidade?

84
Aula 4 – Duas visões sobre a sociedade: Durkheim e a coesão social e Marx e o conflito social Módulo 1

Atende ao Objetivo 2

2. Identifique na sua cidade (na instituição que reúna os óbitos, como a Santa Casa ou
o cartório de registro civil) as mortes por suicídio atestadas no último ano. Faça uma
tabela que expresse se o suicídio é maior entre homens ou mulheres, as faixas etárias
mais frequentes, o estado civil e outras variáveis que você achar interessantes. Um pouco
mórbido, não? Mas esse é um procedimento tipicamente sociológico.
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Comentário
A sua tabela pode ter resultados muito diferentes das tabelas construídas em outras cidades.
O que importa é que, ao realizá-la, ao perceber que os suicídios podem ser agrupados
em categorias, você perceberá que o suicídio é um fato social, um fenômeno social e não
apenas individual.

Sugere-se a leitura de um livro de Durkheim, O suicídio,


que deve ser feita junto à atividade proposta.

85
História e Sociologia

Durkheim: a sociologia como disciplina


acadêmica

Se você compreendeu as três primeiras aulas deste curso,


não lhe escapará a sensação de que o século XIX, que nasce com a
Revolução Francesa, sob influência do Iluminismo, e termina com o
Caso Dreyfus, já na Terceira República na França, como um caso de
antissemitismo que coloca abaixo os valores da própria Revolução
– igualdade, liberdade e fraternidade –, é realmente um século que
desafia todos os seus intelectuais e pensadores a tomarem posições
políticas, a se envolverem com o seu tempo e a buscarem soluções
para os problemas que eles observam em suas sociedades. O caso
de Durkheim é muito interessante, pois ele parece manifestar alguma
ambiguidade sobre seu papel na sociedade.

Por exemplo, em As regras do método sociológico, Durkheim


afirma que a sociologia deveria voltar-se para um público restrito.
Afastando-se das demandas da sociedade, ela se implantaria como
uma ciência a serviço da empresa acadêmica. Por outro lado, como
atestam seus biógrafos, Durkheim tinha opiniões políticas que
conservou para o resto da vida. Era simpático ao republicanismo e às
reformas sociais, embora nunca tenha participado mais efetivamente
da dinâmica política na França. A preocupação com o tema da
moral é uma demonstração clara de seu interesse pela sociedade
francesa e as possibilidades da sua coesão social.

Agora que você já viu um pouco sobre as preocupações


sociológicas de Durkheim, sua preocupação com a questão da coesão
social e da necessidade de profissionalização da sociologia, conhecerá
um pouco mais sobre a obra de Karl Marx, que partia de pressupostos
diferentes. Para Marx, o princípio organizador da sociedade não
era a coesão, mas o conflito, assim como o conhecimento só fazia
sentido se articulado à ação política. Afirmava ele que os filósofos já
interpretaram o mundo e que cabe agora transformá-lo.

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Aula 4 – Duas visões sobre a sociedade: Durkheim e a coesão social e Marx e o conflito social Módulo 1

Marx e sua obra

Certamente você já ouviu muito falar de Marx, marxismo,


comunismo, ditadura do proletariado, União Soviética, leninismo,
stalinismo, totalitarismo... Muitas vezes, tais termos são utilizados
quase como sinônimos. Marx, no entanto, não pode ser acusado
do que outros fizeram posteriormente em seu nome, assim como
Jesus Cristo não pode ser acusado pelo que a Igreja Católica fez,
também em seu nome, durante a Inquisição. Na verdade, por ter
sempre associado o conhecimento por ele produzido à ação política,
à necessidade de transformar o mundo, o pensamento de Marx se
prestou a variadas apropriações por diferentes líderes e partidos
políticos, alguns dos quais realizaram políticas que o teriam deixado
de cabelos – e barba – em pé.

Marx dedicou sua obra a compreender o funcionamento do


que chamava de modo de produção capitalista, a partir de uma
concepção materialista da História. Rejeitando o que entendia
ser o socialismo utópico, preocupado em formular engenharias
de reforma social completamente desvinculadas da realidade,
como os falanstérios, Marx, ao lado de seu inseparável Falanstérios
companheiro Frederich Engels, propunha-se a compreender Fazendas coletivas
propostas pelo socialista
cientificamente o capitalismo, de modo a poder transformá-lo de
utópico francês Charles
modo revolucionário. Fourier (1772-1837),
onde cada indivíduo
A obra de Marx foi escrita ao longo da segunda metade do
desempenharia suas
século XIX e girava em torno de alguns conceitos fundamentais, dentre tarefas em prol da
os quais podem ser destacados o já citado materialismo histórico, comunidade e, em
troca, receberia
o modo de produção, o modo de produção capitalista e a luta de
o necessário para
classes. Como o objetivo dessa aula não é um estudo aprofundado suas necessidades.
do marxismo, mas o de ressaltar que o pensamento sociológico
produziu duas formas de compreender as grandes transformações
em curso na Europa do século XIX, uma que enfatizava o princípio
da coesão social e outra que enfatizava o princípio do conflito social,
apenas esses conceitos marxistas serão aprofundados.

87
História e Sociologia

O conceito de materialismo histórico

No livro A ideologia alemã, escrito em colaboração com


Engels, Marx afirmava que o que determina a História são as condições
materiais de sua reprodução, e não a consciência. Portanto, para o
materialismo histórico, são as condições materiais, o trabalho humano
de transformação da Natureza, que estão na base da construção
do mundo, e não as ideias. Estas, pelo contrário, são construídas a
partir dessas bases materiais. Portanto, para compreender o mundo,
é preciso compreender como os homens produzem suas condições
de existência, ou seja, o modo de produção.

O conceito de modo de produção

Os homens podem extrair sua sobrevivência da Natureza de


várias formas, estabelecendo entre si diversas relações de produção e
utilizando, também, vários instrumentos, desde os mais rudimentares,
como o tacape, aos mais sofisticados, como as máquinas. Em seu
prefácio a Contribuição à crítica da economia política, de 1859,
Marx assim definia o conceito de modo de produção:

na produção social da sua vida os homens entram em


determinadas relações, necessárias, independentes da
sua vontade, relações de produção que correspondem
a uma determinada etapa de desenvolvimento das suas
forças produtivas materiais. A totalidade destas relações
de produção forma a estrutura econômica da sociedade,
a base real sobre a qual se ergue uma superestrutura
jurídica e política, e à qual correspondem determinadas
formas da consciência social. O modo de produção
da vida material é que condiciona o processo da vida
social, política e espiritual. Não é a consciência dos
homens que determina o seu ser, mas, inversamente, o
seu ser social que determina a sua consciência. Numa

88
Aula 4 – Duas visões sobre a sociedade: Durkheim e a coesão social e Marx e o conflito social Módulo 1

certa etapa do seu desenvolvimento, as forças produtivas


materiais da sociedade entram em contradição com as
relações de produção existentes ou, o que é apenas uma
expressão jurídica delas, com as relações de propriedade
no seio das quais se tinham até aí movido. De formas de
desenvolvimento das forças produtivas, estas relações
transformam-se em grilhões das mesmas. Ocorre então
uma época de revolução social.

http://www.marxists.org/portugues/marx/1859/01/prefacio_

crit_eco_pol.htm)

Um ótimo site da internet para você ter acesso a


vários textos de Marx e de vários autores marxistas é:
http://www.marxists.org/portugues/

O capitalismo, objeto de estudo de Marx, surge, então, como


um modo de produção historicamente construído, com determinadas
relações de produção correspondendo a uma determinada fase do
desenvolvimento das forças produtivas.

Quais seriam, então, as características de tal modo de


produção?

O conceito de modo de produção capitalista

O capitalismo surge, na teoria marxista, como um modo


de produção específico, distinto de outros modos de produção
anteriormente existentes, por distintas serem suas relações de
produção e sua base técnica, ou seja, o desenvolvimento das forças
produtivas. É o modo de produção da Europa do século XIX, época
em que viveu o próprio Marx, marcado pelo surgimento da grande
indústria, sua base técnica, e pela emergência de duas classes sociais
antagônicas: a burguesia e o proletariado.

89
História e Sociologia

A grande indústria, a máquina, a maquinofatura (a fabricação


com máquinas), é a base técnica do capitalismo. Na era da máquina,
o trabalhador não possui mais controle sobre seu processo de
trabalho, tampouco sobre os instrumentos para realizá-lo, como
nos tempos da manufatura artesanal. A fábrica, as máquinas, a
decisão de como, quando e em que quantidade produzir são, todas,
propriedades e atribuições do capitalista.

E o capitalista produz não para consumo próprio, mas para


vender, na forma de mercadoria, o que foi produzido. Portanto,
todas as decisões a ele atribuídas têm por base um cálculo do
valor de troca de sua produção, com vistas ao lucro. Por exemplo,
o proprietário de uma fábrica de roupas não as produz em razão
do valor de uso que elas possam ter, como agasalhar as pessoas no
inverno, mas em razão do quanto ele vai obter de lucro ao vendê-las
para uma loja. Se, por alguma razão, ele achar que esse lucro não
vai ser compensador, ele pode diminuir a produção de sua fábrica,
ou diversificá-la ou, no limite, mudar as mercadorias que produz.

Atende ao Objetivo 2

3. Tente identificar, na sua cidade, situações como a descrita anteriormente. Se você mora
na zona rural, não é improvável que conheça produtores de leite que, de tempos em tempos,
jogam fora a sua produção. Se mora em uma cidade, certamente você conhece casos
de pequenos ou grandes empresários que, diante da queda de preço dos seus produtos
no mercado, reduzem a produção, demitem funcionários ou buscam novas alternativas.
Converse com tais produtores, identifique a motivação de tais atitudes e escreva uma
reflexão a respeito.
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Aula 4 – Duas visões sobre a sociedade: Durkheim e a coesão social e Marx e o conflito social Módulo 1

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Comentário
É provável que, após as conversas, você identifique, como a razão principal de tais atitudes,
o fato de que esses produtores estão voltados à produção de mercadorias que precisam
ser vendidas com lucro no mercado. Portanto, eles devem ter jogado a mercadoria fora por
acharem que o preço do litro do leite, ou de qualquer que seja a sua mercadoria, está muito
baixo. Em outras palavras, o objetivo do produtor de leite – ou de qualquer mercadoria – não
é produzir um alimento para crianças, mas vender, com lucro, uma mercadoria chamada leite.
Se a mercadoria não está dando lucro, ele pode até destruí-la, buscando com isso elevar seu
preço. É esse o sentido das ideias de valor de uso e valor de troca. A mercadoria, seja ela
qual for, deve ser sempre pensada em termos de seu valor de troca no mercado.

Em tal situação, resta apenas ao trabalhador vender sua força


de trabalho para o capitalista, em troca de um salário. A relação
salarial diferencia decisivamente o modo de produção capitalista de
outros modos de produção. Ao contrário do que ocorria nos modos
de produção escravista e feudal, no capitalismo o trabalhador é
formalmente livre, pode ou não vender sua força de trabalho, assim
como escolher o empregador que quiser. Portanto, as relações entre
patrões e empregados são contratuais, e não compulsórias.

No entanto, a relação salarial embute uma apropriação, por


parte do empregador, do valor agregado pelo trabalhador ao que
ele produziu. Marx chama tal apropriação de mais-valia. O conceito
de mais-valia é muito importante na teoria marxista, então vamos
olhá-lo com mais cuidado. A força de trabalho é uma mercadoria,

91
História e Sociologia

a única mercadoria de que o trabalhador é proprietário. Mas a força


de trabalho é uma mercadoria diferente de todas as outras: ela é
a única capaz de agregar valor. Dito de outro modo, ao vender
sua força de trabalho para o capitalista, o trabalhador agregará
valor ao que o capitalista estará produzindo. No entanto, quando
receber seu salário, esse valor que ele agregou não será remunerado
pelo salário, mas apropriado pelo capitalista. Em suma, o trabalho
humano gera valor e, no caso do capitalista, esse valor é apropriado
pelo capitalista, em detrimento do trabalhador. Daí a origem da
luta de classes.

O conceito de luta de classes

A ideia de luta de classes é central para a análise marxista do


capitalismo. Em tal modo de produção, duas classes, a capitalista
e a trabalhadora, ou proletária, possuem interesses contrários e
irreconciliáveis, não cabendo qualquer tipo de consenso entre elas.
Uma é a proprietária das fábricas, das máquinas, de todos os meios
de produção, enfim, enquanto à outra só resta vender sua força de
trabalho em troca de um salário. Mais do que isso, nessa relação
está embutida uma exploração: a apropriação, pelo capitalista, do
valor que a força de trabalho agregou ao seu produto. Em suma,
o trabalhador, além de nada possuir de seu, apenas seu braço,
ainda é explorado. Daí ser o conflito entre patrões e empregados,
a luta de classes, inevitável, inseparável mesmo do capitalismo.
Ao desenvolver a consciência da sua exploração, os trabalhadores
unem-se para, coletivamente, combater seus exploradores, seja
por meio da organização sindical, seja por meio da luta política,
com vistas à construção de um novo modo de produção do qual
a exploração esteja ausente.

Finalmente, Marx percebia a sua análise do capitalismo como


dotada de um método científico, dialético, que buscava compreender
as contradições do capitalismo, e não como mais uma interpretação,
dentre tantas possíveis, portanto subjetiva, com vistas a edulcorar

92
Aula 4 – Duas visões sobre a sociedade: Durkheim e a coesão social e Marx e o conflito social Módulo 1

tais contradições ou propor soluções românticas ou utópicas para


as mesmas. Pelo contrário, seu diagnóstico, científico, devia pautar
a ação política consequente da classe trabalhadora, com vistas à
derrubada do capitalismo.

Marx, Durkheim e a questão judaica

Você já deve estar ansioso para perguntar, mais uma vez:


Qual a relação, enfim, entre Durkheim e Marx e o judaísmo?
Do ponto de vista sociológico, é possível perceber algum padrão nas
abordagens sociais de ambos, tão diferentes entre si, e a questão
judaica na Europa do século XIX?

É claro que não podemos arriscar aqui uma explicação causal,


cuja sentença seria: uma vez judeu, necessariamente sociólogo. Se
assim fosse, todo sociólogo seria judeu e todo judeu, sociólogo.
Entretanto, se buscarmos alguma compreensão histórica e sociológica
da trajetória dos judeus na Europa, especialmente no século XIX,
veremos que muitos dentre eles que se tornaram intelectuais tiveram a
preocupação, ora no plano teórico, ora no plano político, de propor
a possibilidade de uma sociedade igualitária, com oportunidades
iguais para todos. Eles próprios recém-admitidos ao mundo da
igualdade moderna, estavam particularmente preocupados em
contribuir para a construção de uma sociedade cuja solidariedade
não tivesse como base apenas uma cultura ou uma religião,
ou que não estivesse dividida em novas e modernas formas de
hierarquização social, como as classes sociais. Durkheim e Marx
fizeram, assim, parte de uma tradição de judeus europeus, que se
estendeu até a ascensão do nazismo, na Alemanha da década de
1930, que desejava o homem não como burguês ou proletário,
como cristão ou judeu, mas o homem como homem, em toda a sua
plenitude universal e humana.

93
História e Sociologia

CONCLUSÃO

Durkheim e Marx são considerados, frequentemente, como


fundadores de duas formas distintas de se pensar a sociedade
originária da Revolução Francesa e da Revolução Industrial. De um
lado, a sociologia de Durkheim buscava pensar os laços de coesão
modernos que, em substituição aos laços tradicionais, evitariam a
anomia social e manteriam a coesão de uma sociedade de homens
que não mais necessariamente acreditavam no mesmo deus, se é
que acreditavam em algum, não tinham mais relações de parentesco
ou vizinhança, não mais se conheciam pessoalmente e podiam,
mesmo, possuir preferências políticas diferentes. De outro, Marx
entendia a sociedade e a economia europeia do século XIX como
arena de conflito, fundamentalmente o conflito entre capitalistas e
trabalhadores, em razão de sua interpretação do modo de pro-
dução capitalista e do materialismo histórico. Ao contrário de
Durkheim, que percebia no conflito uma patologia, a incompletude
da solidariedade orgânica, para Marx o conflito era a norma
de um modo de produção que opunha uma classe a outra, levando
necessariamente à transformação da sociedade. Coesão social e
conflito social, dois conceitos que, em última análise, estão na base
da sociologia produzida no século XX, muito embora a maioria dos
sociólogos hoje já não se filie diretamente a um ou a outro autor
como sendo sua matriz teórica.

94
Aula 4 – Duas visões sobre a sociedade: Durkheim e a coesão social e Marx e o conflito social Módulo 1

Atividade Final

Atende ao Objetivo 4

Olhe, mais uma vez, para sua cidade. Tente identificar algumas relações que nela se
estabelecem. Relações de trabalho, de grupos de interesse, de vizinhança, de gênero etc.
Elabore um texto no qual você defina a sua forma de compreensão de tais relações, ou
seja, se elas se inscrevem em uma visão de sociedade que enfatiza a coesão, e que tipo
de coesão, ou o conflito.

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Comentário
Ao elaborar o texto, você poderá entender melhor a sua própria forma de compreender
a sociedade. Caso você perceba que os elementos de coesão e solidariedade social
estão na base de sua compreensão, poderá ter uma visão próxima à de Durkheim.
Caso a sua visão enfatize o conflito, poderá ter uma visão afim à de Marx.
Seja qual for a sua visão, você estará dando um passo importante
para a construção do seu olhar sociológico.

95
História e Sociologia

RESUMO

Há uma distinção entre duas visões básicas, a de Durkheim


e a de Marx, de se perceber a dinâmica social.

Durkheim, ao pensar a sociedade francesa que emergia da


Revolução Francesa, estava preocupado em estabelecer modernos
elementos de coesão social, diante da fragilização dos elementos
tradicionais, como a religião e a família. Assim, propunha as
ideias de solidariedade mecânica para sociedades tradicionais,
de baixa diferenciação social, e de solidariedade orgânica para
sociedades altamente diferenciadas e com profunda divisão social
do trabalho.

Marx, por seu lado, propunha que o conceito básico para


a compreensão da sociedade que emergia da Revolução Industrial
era o de modo de produção capitalista. Tal conceito, dentro da
perspectiva do materialismo histórico, encerrava o princípio de
que uma formação social capitalista, como a europeia do século
XIX, é essencialmente conflituosa, dado que seus dois componentes
básicos, as classes trabalhadora e burguesa, possuem identidades
e interesses irreconciliáveis.

As visões de coesão e conflito, de Durkheim e Marx, estão na


base do pensamento sociológico construído ao longo do século XX.

Informações sobre a próxima aula

Na próxima aula, você vai conhecer Max Weber, que, ao


lado de Marx e Durkheim, é considerado um dos pilares do
pensamento sociológico. Vamos aprender alguns
conceitos básicos de Weber, como o de formas
de dominação e desencantamento do mundo.

96
Aula 5
Max Weber e o
desencantamento
do mundo
História e Sociologia

Meta da aula

Apresentar a importância da obra de Max Weber para a consolidação


da sociologia clássica.

Objetivos

Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja


capaz de:

1. articular os conceitos de modernização, secularização, tipo ideal, desencantamento


do mundo, religiosidade e capitalismo;
2. identificar, na sociologia de Weber, o sentido que os indivíduos atribuem às suas
ações, através do que ele define como “tipos ideais de ação social” e “tipos ideais
de dominação”.

Pré-requisitos

Para que você compreenda melhor esta aula, é importante que você relembre as aulas
anteriores, especialmente os temas da tradição e da modernidade, tratados na Aula 3.

98
Aula 5 – Max Weber e o desencantamento do mundo Módulo 1

INTRODUÇÃO

Você conhecerá, nesta aula, mais um pensador que contri-


buiu para consolidar a Sociologia como disciplina científica:
Max Weber. Max Weber
Como Marx, Weber
nasceu na Alemanha,
na cidade de Erfurt, em
1864, de uma família
de classe média,
Sua carreira univer-
sitária – professor
das Universidades
de Berlim, Freiburg
e Heidelberg
– foi interrompida por
episódios de depressão,
o que não o impediu
de construir uma das
mais importantes obras
Depois de conhecer Durkheim e Marx, e agora diante de sociológicas do período
e de constituir, ao lado
Weber, você deve estar se perguntando, com razão: Afinal, o
de Marx e Durkheim,
estudo da Sociologia é o estudo de pensadores, os sociólogos, ou o trio considerado
de problemas da sociedade? A resposta é: de ambos. como fundador
do pensamento
A Sociologia é muito diferente, por exemplo, da Medicina. sociológico.
Poucas são as pessoas que, sem ter conhecimento específico sobre
o corpo humano, adquirido em escolas de Medicina, sentem-se
capacitadas a diagnosticar e tratar doenças. No entanto, com a
sociedade, objeto da Sociologia, acontece algo diverso. Como
vivemos todos em sociedade, achamos que conhecemos muito bem
nossos problemas e que sabemos, melhor ainda, como resolvê-los.

Você já sabe, graças à primeira aula, quando conheceu a


distinção entre senso comum e conhecimento sociológico, que não
é bem assim. Com isso não se quer desqualificar o senso comum.
A maioria esmagadora das pessoas de qualquer país não é formada
por sociólogos, o que não a impede de construir uma compreensão
sobre o mundo e formular estratégias para enfrentar seus desafios.

99
História e Sociologia

É o que você próprio tem feito até hoje. No entanto, como você
sabe, o senso comum é muitas vezes enganador. Quando muito,
pode fornecer elementos para estratégias individuais. A Sociologia
– a partir de suas teorias, seus métodos e suas pesquisas está,
seguramente, muito mais capacitada a fornecer uma compreensão
mais ampla da sociedade do que a experiência pessoal – sempre
parcial, subjetiva e limitada.

E é aí que entram os sociólogos. Se o objeto da Sociologia é a


sociedade, e se o estudo dessa sociedade é feito a partir de teorias,
metodologias e pesquisas construídas e realizadas pelos sociólogos,
conhecer a obra de cada um deles, ou ao menos dos principais, é
fundamental. Marx, Durkheim e Weber foram quase conterrâneos
e contemporâneos, e estavam preocupados em compreender a
passagem de um mundo tradicional para o mundo moderno; mas,
ao fazê-lo, construíram formas diferentes, e hoje consideradas
clássicas, de compreender tal passagem.

Em Marx, como você deve se lembrar, as tensões entre


tradição e modernidade se estruturavam especialmente pelos
fatores econômicos, sempre determinantes, conforme as relações
entre infraestrutura (economia) e superestrutura (política, moral,
religião), de tal modo que a sua concepção de História era, em
muitos aspectos, considerada totalizadora. A partir de então, pôde
mesmo se estruturar uma filosofia materialista da História, em que o
sentido desta era dado pelo desdobramento dos modos de produção.
Já em Durkheim, a tensão entre tradição e modernidade não se
explicitava como um problema histórico, ou no sentido da História,
como em Marx. Mais decisivo, para ele, seria adotar um método
Fato social científico que permitisse identificar o que é fato social e interpretar
Regras jurídicas,
o comportamento moral em um mundo onde os valores da tradição
morais, religiosas,
costumes que, dotados não mais garantiam a solidariedade moral entre indivíduos cada
de existência própria, vez mais diferenciados. Ambos os autores sentiam-se desafiados
externa ao indivíduo, tanto pelas ideias iluministas e pela Revolução Francesa quanto pelo
são capazes de condi-
desenvolvimento do capitalismo e as transformações sociais que
cionar, e mesmo deter-
minar, as ações deste. este promovia na modernidade. Marx e Durkheim eram, portanto,

100
Aula 5 – Max Weber e o desencantamento do mundo Módulo 1

sociólogos imersos em seu tempo, e as Sociologias que produziram


expressavam, claramente, essa imersão.

A Sociologia de Weber, assim como as de Marx e Durkheim,


buscava compreender as grandes transformações de seu tempo. Seu
próprio país, a Alemanha recém-unificada, industrializava-se, Unificação alemã
A Alemanha, entendida
grandes fábricas eram construídas e movimentos operários eram
como um Estado-
organizados, a organização racional do trabalho avançava, o -Nação, surgiu em
Estado se burocratizava e a religião, crescentemente, deixava de 1871, ao fim da Guerra
fornecer o sentido do mundo. Mas Weber tinha horizontes mais Franco-Prussiana, com a
formação do Segundo
amplos do que os das fronteiras alemãs, tendo viajado por diversos
Reich (daí o período
países, inclusive os Estados Unidos, onde encontrou também uma nazista ser conhecido
sociedade em acelerado processo de transformação. como Terceiro Reich).
Até então, o que hoje
Contudo, ao contrário de Durkheim e, principalmente, de é o território alemão
Marx, Weber recusava a compreensão dos fenômenos sociais por estava dividido em
várias autoridades
meio de grandes sistemas explicativos. Por outro lado, pode-se
políticas diferentes,
dizer também que, se para Marx a chave para a compreensão da como pequenos reinos,
sociedade era a ideia de conflito, para Durkheim era a de coesão, ducados e cidades
Weber estava muito mais aberto à incerteza e à indeterminação livres. A unificação
de tais autoridades foi
dos processos sociais.
liderada pela Prússia de
No que consistia, então, a Sociologia weberiana? Otto von Bismarck,
o Chanceler de Ferro.

Primeiro, Segundo e Terceiro Reiches


O Império alemão (Deutsch Reich) consistia na região da atual Alemanha, que só se consolidou como Estado-
Nação em janeiro de 1871 (fim da unificação alemã). O chamado Segundo Reich durou até a abdicação do
Kaiser Guilherme II em novembro de 1918, após a derrota alemã na Primeira Guerra Mundial e o advento da
República de Weimar. Por essa lógica, considera-se o Sacro Império Romano-Germânico (843-1806) como o
primeiro Império alemão (Primeiro Reich). A expressão Segundo Reich refere-se ao Estado-Nação que nasceu
com a unificação alemã e o Terceiro Reich, aquele que se iniciou com a ascenção do regime nacional-socialista
de Hitler, que durou de 1933 a 1945.

101
História e Sociologia

A Sociologia weberiana

A Sociologia de Weber parte de uma visão de ciência e de


um grande problema sociológico, a partir do qual ele vai realizar
sua ampla reflexão sobre várias dimensões da sociedade. Por um
lado, Weber entendia a realidade como algo fragmentado e infinito,
não havendo uma lógica ou um sentido inerente aos acontecimentos
históricos e sociais, e a ciência sociológica deveria lidar com tal fato.
Por outro lado, a preocupação básica de Weber era compreender a
singularidade do Ocidente, ou, dito de outra forma, compreender a
modernidade com suas dimensões de racionalização, secularização
e desencantamento do mundo, mas também em sua complexidade e
indeterminação. Por isso, sua obra se caracteriza pela pluralidade
de temas: religião, direito, economia, metodologia histórica e
comparativa.

Você pode, mais uma vez, se perguntar, e com razão: Se,


para Weber, a realidade é algo tão fragmentado, aberto e mesmo
indeterminado, seria possível compreendê-la cientificamente?
Para Weber, sim, mas não da mesma forma que para Marx ou
Durkheim.

Em Weber, a Sociologia surge como uma ciência da realidade,


do que é e do que existe, voltada para a compreensão do significado
dos fenômenos sociais contemporâneos e para o entendimento da
origem histórica destes. Portanto, para Weber, a Sociologia tinha o
estatuto de ciência, voltando-se, como qualquer ciência, para a com-
preensão do seu objeto. Nisso ele estava de acordo com Marx e
Durkheim. No entanto, ao contrário destes, e, sobretudo, de Marx,
Weber recusava a possibilidade de um conhecimento absoluto,
totalizante, da realidade social. Para ele, não seria possível ao sujeito
do conhecimento ter o controle ou tentar conhecer a totalidade dos
fenômenos sociais, ou a totalidade da história humana, por meio
de um sistema único ou de uma teoria social geral. Para Weber, o
mundo social surgia como complexo e fragmentário demais para ser
engolfado por uma explicação única, geral e universal. Pelo contrário:

102
Aula 5 – Max Weber e o desencantamento do mundo Módulo 1

o conhecimento da realidade social seria sempre uma escolha de


temas e enfoques realizada pelos sujeitos do conhecimento, frente
a um universo vastíssimo de fenômenos. Assim, para Weber, é o
sociólogo que escolhe seus problemas, e não a realidade social que
lhe impõe o que estudar.

Vamos dar um exemplo. Você pode querer conhecer algum


aspecto da realidade social, como a religiosidade, e decidir, com base
em seus próprios valores culturais, privilegiar um recorte ou aspecto
particular da religiosidade, como estudar o protestantismo como um
fenômeno social. Nessas suas escolhas, não há neutralidade. Você
poderia optar por estudar a violência, a sexualidade ou questões
urbanas ou, ainda, para ficar no campo da religiosidade, a Igreja
Católica, o budismo ou o judaísmo como fenômenos sociais. Mas
não. Você escolheu estudar a religiosidade protestante porque
tem interesse nesse assunto. Nesse sentido, você estará fazendo
uma escolha fortemente carregada pela sua subjetividade, em um
universo vastíssimo de fenômenos possíveis de serem estudados
sociologicamente.

Você pode, ainda uma vez, se perguntar: Se o sociólogo só po-


de conhecer a realidade parcialmente, e se a escolha do que ele
pode conhecer se dá por meio dos seus valores, o conhecimento
por ele produzido pode ser considerado científico?

Para Weber, sim. Se assim não fosse, não haveria distinção


entre pensamento sociológico e senso comum, não é? Para ele,
se a escolha dos temas e o enfoque a ser aplicado resultavam da
subjetividade do sujeito do conhecimento, o estudo em si do objeto
deveria ser conduzido de forma neutra, garantindo a cientificidade
do conhecimento produzido. O sociólogo, na visão de Weber,
deveria sempre curvar-se aos resultados de suas pesquisas, mesmo
se eles contradissessem o seu enfoque inicial.

Este ponto é importante: para Weber, o sociólogo deve,


sempre, saber diferenciar seus valores, móvel inicial de sua
pesquisa, de suas análises científicas. Juízo de valor é uma coisa,
trabalho de pesquisa é outra. Embora, para Weber, o sociólogo

103
História e Sociologia

se baseie em valores para selecionar seus objetos e ângulos de


investigação, ele não deve fazer julgamentos de valor (não pode
dizer como os atores sociais devem agir, se estão certos ou errados),
mas fazer apenas juízos de fato (descrever as ações sociais de
maneira imparcial, ou seja, descrevendo o que os atores podem e
querem fazer). O sociólogo deve se restringir a buscar conclusões
científicas sobre a realidade tal como esta é empiricamente, não
sobre como ela supostamente deveria ser. Em decorrência, Weber
sempre advertiu para se separar as análises sociológicas dos
engajamentos políticos, muito embora ele próprio, como cidadão,
fosse politicamente engajado no campo democrático. O político é
um moralista. O sociólogo, não. O sociólogo fala “daquilo que é”,
o político, “daquilo que deveria ser”.

Agora que você já viu um pouco a respeito do que Weber


entendia como ciência, vai conhecer um pouco mais das questões
sociológicas por ele trabalhadas. A grande questão de Weber,
como você já sabe, era a especificidade do Ocidente, ou seja,
a modernidade. Mas o que caracterizaria, para Weber, a
modernidade? Para Marx, a modernidade se confundiria com
o próprio modo de produção capitalista. Para Durkheim, pela
passagem da solidariedade mecânica para a solidariedade
orgânica, como você viu na aula passada. Para Weber, ela se
expressaria por múltiplos fenômenos, muitas vezes contraditórios
e não necessariamente paralelos, mas que teriam resultado na
secularização e na racionalização.

A especificidade do Ocidente:
racionalização e secularização como
características centrais da modernidade

Para Weber, a racionalização se manifestaria de várias


formas: no cálculo racional para a obtenção de um dado
objetivo, como a acumulação capitalista, na burocratização dos
procedimentos estatais, na utilização do conhecimento científico

104
Aula 5 – Max Weber e o desencantamento do mundo Módulo 1

para a compreensão do mundo natural... Em suma, ela faria parte


do grande processo histórico de secularização característico do
Ocidente, ou seja, de diferenciação entre esferas – a economia, a
política, o direito, a moralidade, a estética etc. – antes unificadas e
reguladas pela religião. No momento em que, por exemplo, a política
se emancipa da religião, em que o poder deixa de ser legitimado
por Deus, é preciso encontrar uma outra forma de legitimação que
não recorra ao mundo metafísico e que, portanto, seja mais racional
para se realizar. Esse ponto vai ser retomado adiante.

O importante a salientar aqui é que os processos de


racionalização e secularização, por meio dos quais o mundo deixa
de ser regulado pelo divino, seriam característicos, para Weber,
do Ocidente moderno. No mundo islâmico, por exemplo, eles não
teriam ocorrido, ao menos na época de Weber, lá na virada do
século XIX para o XX. Ainda hoje, se você olhar para alguns países
islâmicos, como o Irã e a Arábia Saudita, verá que a política não
se separou da religião, que a moralidade sexual ainda é fortemente
regulada pelos preceitos religiosos ou que os códigos jurídicos são
aqueles dados pela Sharia, a lei religiosa islâmica. Outros, pelo
contrário, como o Egito, foram mais influenciados pela modernidade
ocidental ao longo do século XX, existindo uma maior diferenciação
das esferas.

Isso não quer dizer, claro, que a religião tenha desaparecido


no Ocidente. Você mesmo pode ter uma religião, e é muito provável
que seus pais ou avós sejam, ou tenham sido, muito religiosos. Mas
a secularização, ao emancipar a economia, a política, o direito,
a moralidade etc. dos princípios religiosos, permitiu o avanço da
racionalização nessas áreas, jogando a dimensão religiosa para a
esfera privada, referida à crença de cada pessoa em particular. Você
vai compreender melhor essa discussão ao realizar a Atividade 1.

105
História e Sociologia

Atende ao Objetivo 1

1. Você tem alguma religião? Digamos que sim. Digamos que você seja católico. Você
deve ter amigos que não são católicos. Espíritas, ateus, protestantes, judeus. Converse
com cada um deles a respeito da moralidade sexual presente em suas tradições religiosas,
depois as compare e busque identificar suas semelhanças e diferenças. Uma vez feito isso,
converse com um conhecido seu que seja advogado e pergunte a ele se a moralidade
sexual presente em tais tradições religiosas está presente no ordenamento jurídico brasileiro.
Escreva um ensaio a partir de suas observações sobre a moralidade sexual, no qual as
duas perspectivas, a religiosa e a secular (ou jurídica), possam ser contrastadas à luz do
que você aprendeu com Weber.
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Comentário
Você perceberá que, dependendo da confissão religiosa, ou da ausência desta, a moralidade
sexual varia. Em algumas tradições religiosas, o sexo está associado ao casamento e à
procriação, outras admitem com mais liberalidade os aspectos do amor e do prazer, algumas
vedam absolutamente a homossexualidade, ao passo que outras a aceitam. Sejam quais
forem os aspectos morais que cada confissão religiosa atribui ao ato sexual, nenhum deles
está presente no ordenamento jurídico brasileiro. Se os envolvidos no ato sexual, tenha ele
a dinâmica que tiver, forem maiores de 18 anos e consentirem no que estiver acontecendo
entre eles, não há lei que proíba tal ato. No século XIX não era assim. Não havia sequer

106
Aula 5 – Max Weber e o desencantamento do mundo Módulo 1

separação entre Igreja Católica e Estado, e mesmo o registro civil era realizado pela Igreja.
Isso quer dizer que o direito brasileiro aprofundou sua separação da tutela da religião. Esse
é um dado do processo de secularização. Em outros campos, no entanto, a religião continua
influenciando o direito brasileiro. Por exemplo, nas questões relativas ao aborto, as concepções
de vida e morte presente nas religiões continuam informando o debate público, e a interrupção
da gravidez continua sendo considerada crime.

É importante ter clareza de que, para Weber, seguindo sua


concepção de ciência, a secularização era um fato verificável no
Ocidente de seu tempo, e não uma “lei histórica” do Ocidente. Em
outras palavras, quando realizou seus estudos sociológicos, Weber
constatou que o Ocidente havia se secularizado, mas que tal
secularização não era algo imutável ou irreversível. Se assim fosse,
Weber estaria construindo uma teoria geral do desenvolvimento
histórico do Ocidente, um grande sistema explicativo, que entenderia
a História ocidental como um caminhar inexorável para a laicidade,
o que ele, como você já viu, rejeitava.

Se Weber se preocupava com as questões relativas à seculari-


zação do Ocidente, a Sociologia da religião acabou por constituir um
dos seus campos de investigação mais importantes. Na verdade, toda
a Sociologia da religião escrita no século XX tem como referência,
positiva ou negativa, para servir como fonte de inspiração ou crítica,
a obra de Weber. E, dentro da Sociologia weberiana da religião, um
dos conceitos centrais é o de “desencantamento do mundo”.

O desencantamento do mundo

Você já deve ter escutado a expressão “desencantamento


do mundo”, que sugere a ideia de um mundo sem graça, de um
mundo depressivo, sem vida, muito embora a expressão, em si, seja
muito bonita. Essa expressão foi criada por Weber, inspirado em
Schiller, um filósofo alemão, para pensar o mundo moderno e as
transformações nele em curso.

107
História e Sociologia

No campo da Sociologia da religião e da teoria sociológica


como um todo, Weber fez uma distinção entre secularização
e “desencantamento do mundo”. Enquanto o processo de
secularização se referia a uma retirada da religião das esferas do
poder, da economia, da estética, da moralidade etc., ou seja, à
“morte de Deus” na regulação da vida econômica, política, moral
e social, o fenômeno do “desencantamento do mundo” referia-se
Ascetismo a um fenômeno interno ao campo da própria religião. Em outras
Filosofia de vida em que palavras, para Weber, o “desencantamento do mundo” dizia respeito
os prazeres são refrea-
não à “morte de Deus”, mas ao fenômeno religioso inaugurado pelo
dos. Em seu lugar,
devem prevalecer
judaísmo e aprofundado pelo puritanismo.
a austeridade e a
Para Weber, o “desencantamento do mundo” coincidia com o
parcimônia como
sinais de elevação
nascimento e a edificação das religiões monoteístas. Nesse sentido,
espiritual. O asceta, em o judaísmo foi a primeira religião “desencantada”. Ao cultuar um
busca da purificação de deus único, que sequer imagem tinha, repleta de regras éticas de
sua alma, sacrifica seu
conduta, baseadas na máxima de um “dever ser” que se opunha às
próprio corpo.
O trabalho árduo, o crenças e superstições, aos ritos mágicos ou às magias religiosas, às
jejum, a abstinência imagens e politeísmos de seu tempo, o judaísmo propunha, com seus
sexual são, todos,
dez mandamentos e 613 obrigações, uma rotinização de condutas
expressões de modos
de vida ascéticos.
conscientes. Ao judaísmo, Weber acrescenta o puritanismo como
uma religião desencantada.
Predestinação
Segundo o calvinismo,
O judaísmo e o puritanismo representavam, para Weber,
a predestinação refere- formas de racionalização histórica da religião, pois, ao destruir
se ao fato de que a vários deuses e seus múltiplos agentes (como os santos, na tradição
salvação de cada
católica), retiravam da religião a sua magia. O puritanismo,
indivíduo tem pouca
relação com suas particularmente em sua versão calvinista, aprofundaria ainda
virtudes ou defeitos, mais o desencanto do mundo, com seu ascetismo e o tema da
mas resulta da graça
predestinação.
de Deus. É ele, Deus,
e somente ele, que Nesse processo de desencantamento do mundo, em sua
decide quem está entre versão puritana, fortalece-se o princípio de que somente por meio
os salvos (os eleitos).
de condutas e realizações racionais é possível obter sinais da graça
O homem nada pode
diante de Deus e deve, divina. Promove-se assim uma intelectualização dos fiéis pelo domínio
portanto, seguir um da palavra escrita, pela possibilidade da leitura da Bíblia. Não à toa,
roteiro a ele previa-
tanto para o judaísmo quanto para as religiões reformadas, ainda
mente definido.

108
Aula 5 – Max Weber e o desencantamento do mundo Módulo 1

que por razões distintas, o estudo, a leitura da lei, é fundamental


para o exercício da fé.

No campo do cristianismo, o puritanismo promoveria dire-


tamente a secularização, pela rejeição de tudo o que é tido como
irracional ou demasiado pessoal nas condutas (sensualismo, ócio,
esbanjamento, intimidades etc.). Nesse sentido, o crente se aproxima
do que é mais impessoal e racional (a disciplina, o trabalho, a
regularidade, a ascese, a poupança) como sinais da graça de Deus.
Segundo Weber,

Não à castidade, como no monge, mas à eliminação de


todo prazer erótico, não à pobreza, mas à eliminação
de todo prazer à base de rendas e da alegre ostentação
feudal da riqueza, não à mortificação ascética do
convento, mas o modo de viver desperto, racionalmente
dominado, e à evitação de toda entrega à beleza do
mundo ou à arte ou às impressões e sentimentos próprios,
estas são a exigência, disciplina e método no modo de
viver, o fim unívoco, o homem de vocação, o representante
típico, a objetivação e socialização racionais das
relações sociais, a consequência específica do ascetismo
intramundano ocidental em contraste com todas as outras
formas de religiosidade do mundo (1991, p. 373.
Grifos do autor).

Se o judaísmo e o puritanismo tiveram, para Weber, a função


de “desencantar o mundo” dentro da esfera do fenômeno religioso, a
Reforma Protestante, por encobrir uma boa parte dos cristãos a partir
do século XVI em países como Inglaterra, Alemanha e Holanda, teria
importância fundamental também no campo da economia. Haveria,
segundo Weber, uma afinidade eletiva entre a Reforma Protestante e o
espírito do capitalismo. Nesse sentido, a Reforma Protestante deixaria
de ser um fenômeno puramente religioso para tornar-se, também, ele-
mento da dimensão econômica.

109
História e Sociologia

Esse é o tema de um dos maiores clássicos da Sociologia


do século XX, escrito por Weber em 1904: A ética protestante
e o espírito do capitalismo. Nesse ensaio, subvertendo a lógica
da argumentação marxista, Weber buscou mostrar o papel da
ética protestante na gênese do capitalismo moderno. Como você
sabe, para Marx as ideias eram construídas a partir da realidade
material, e não o contrário. Para Weber, a base material não
teria primazia sobre o mundo das ideias e este poderia ter, sim,
incidência na configuração dos fenômenos econômicos. Portanto,
a ética protestante e o espírito do capitalismo é, ao mesmo tempo,
um estudo sobre religião e sobre economia, e as afinidades entre
essas duas esferas da sociedade.

O dado curioso é a surpresa que a tese weberiana muitas


vezes causa. Quando você pensa em religião, provavelmente não
faz nenhuma correlação com dinheiro, lucro, empreendimento
empresarial, trabalho, ou seja, com o capitalismo. Para Weber, no
entanto, haveria uma íntima relação entre protestantismo (calvinismo,
pietismo, metodismo e seitas batistas) e o avanço do capitalismo.
Ele observava, em suas pesquisas, que as regiões onde o avanço
das técnicas de trabalho, dos empreendimentos capitalistas, das
empresas modernas, da escolaridade, do comércio e da mão-de-
obra qualificada era mais acentuado eram justamente aquelas onde
predominava o protestantismo e não o catolicismo. Isto acontecia em
sua própria Alemanha natal, onde o norte protestante avançava mais
em termos de progresso capitalista do que o sul católico. Por quê?
Porque o protestantismo encorajaria um comportamento econômico
peculiar: o trabalho passaria a ser um dever, uma vocação, uma
manifestação de fé. A ascese, a abstinência, a poupança e a
disciplina contribuiriam indiretamente para o desenvolvimento do
capitalismo. O protestantismo oferecia um novo ethos econômico: o
empreendedorismo, a indústria e o trabalho árduo, entendidos como
um dever moral. Não que não houvesse capitalismo em sociedades
com outras religiões, entretanto, o que para Weber caracterizaria o
capitalismo do Ocidente protestante, ou o moderno capitalismo, em

110
Aula 5 – Max Weber e o desencantamento do mundo Módulo 1

relação aos demais, era a busca pacífica e racional pela aquisição


do lucro. O protestantismo, na visão de Weber, era a única religião
que conciliava salvação pessoal e interesses econômicos.

Agora que você já viu alguns dos temas centrais do pensamento


weberiano – a secularização, a racionalização, o desencanto do
mundo, as afinidades eletivas entre o espírito do capitalismo e a
ética protestante –, vai conhecer também alguns outros elementos
da Sociologia de Weber.

O tipo ideal

Para Weber, dada a complexidade do mundo dos homens


e das sociedades por eles criadas, ensejando múltiplos caminhos
para o seu desenvolvimento histórico, o método comparativo surgia
como importante instrumento para destacar a singularidade das
configurações históricas, religiosas, sociais e políticas. E, para fazer
comparações, ele sugeria um instrumento conceitual ao qual deu o
nome de tipo ideal.

O tipo ideal é uma construção, uma representação de uma


configuração histórica, que não existe na realidade concreta
(o próprio Weber nos ensinava que a História é muito mais
complexa, ambígua e desordenada). O tipo ideal, no entanto, cria
uma representação que permite ao sociólogo, por contraste, pensar
a realidade concreta com a qual se defronta. A Atividade 2 vai
contribuir um pouco para que você compreenda melhor o conceito
de tipo ideal.

111
História e Sociologia

Atende ao Objetivo 1

2. Imagine que você é um sociólogo que estuda as cidades, em particular a sua cidade.
Trace um perfil dela: é um grande centro industrial ou administrativo, ou uma pequena
cidade que vive de atividades agrícolas ou pastoris? Bem, agora construa para ela um
tipo ideal de cidade.
Por exemplo: digamos que a sua cidade seja uma grande cidade industrial. Dessa forma, você
construirá um tipo ideal de cidade industrial. Ela deve ter indústrias, serviços, transportes,
comércio, lazer, espaços de moradia, vias de acesso para receber e escoar mercadorias,
diferentes bairros ocupados pelas diferentes classes sociais, escolas técnicas...
Agora, compare, por escrito, esse “tipo ideal” de cidade (industrial ou do campo), com
as características reais da sua própria cidade.
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Comentário
O tipo ideal é uma construção que permite a análise comparativa de cada caso concreto.
Assim, em que medida a sua cidade se aproxima do tipo ideal de cidade industrial? Ela tem
todas as características do tipo ideal ou algumas delas, por exemplo, a diferenciação social
dos bairros residenciais, não são encontradas? Em que medida a sua cidade se aproxima
mais ou menos do tipo ideal de cidade industrial? A partir daí, você pode comparar a sua
cidade industrial com cidades industriais de outros continentes, que também vão se aproximar
mais ou menos do tipo ideal de cidade industrial.

112
Aula 5 – Max Weber e o desencantamento do mundo Módulo 1

Você sabe que Weber, ao contrário de Marx e Durkheim,


rejeitava grandes sistemas para a explicação dos processos históricos.
Por essa razão, ele dava muita importância à ação humana, que
sempre pode levar a resultados sociais e históricos inesperados.
A ação humana abre, portanto, campo para a indeterminação,
que, ao fim e ao cabo, não se encaixa em nenhum grande sistema
explicativo. Para Weber, no entanto, a ação humana era dotada de
sentido, produzindo, intencionalmente ou não, consequências sociais
para além do indivíduo que a realizou. Mas qual o sentido dessa
ação? Ou melhor, haveria um sentido único para a ação humana?
Não. Recorrendo, como fazia com frequência, à noção de tipo ideal,
Weber identificou ao menos quatro tipos de ação.

Os tipos ideais de ação social

A teoria weberiana da ação social distingue quatro tipos


ideais de ação:

• A ação racional com relação a um fim: é uma ação


concreta que tem um fim específico. Ao entrar com uma ação na
justiça, o advogado quer ganhar uma causa; ao fabricar um tênis,
uma fábrica quer obter lucros etc. Quando um indivíduo inicia uma
ação racional com vistas a um fim determinado, ele leva em conta
qual será o comportamento dos outros indivíduos em relação à sua
ação, avaliando, racionalmente, suas condições de alcançar os fins a
que almeja. Assim, por exemplo, ao entrar na justiça, o advogado irá
levar em conta os argumentos do advogado da outra parte, de forma
a traçar sua estratégia argumentativa. Da mesma forma, ao fazer o
tênis, a fábrica vai levar em conta as outras fábricas que também
produzem tênis, de modo a desenvolver um modelo novo ou a elaborar
novas estratégias de marketing. Em outras palavras, a ação racional
com relação a um fim não apenas tem claro o fim a que almeja, como
também elabora, racionalmente, os meios de a ele chegar.

113
História e Sociologia

• A ação racional baseada em um valor. Quando


um comandante afunda com seu navio, ou um aristocrata arrisca a
vida duelando em nome de sua honra, ele está baseando sua ação
na crença em um valor, que pode ser ético, estético, religioso ou
qualquer outro. A ação é racional, conforme a crença do ator, que
aceita todos os riscos que ela encerra. O objetivo da ação, nesse
caso, não é a obtenção de um resultado exterior (ganhar uma causa
na justiça, ter lucro fabricando tênis), mas o de permanecer fiel à
sua honra, à crença consciente no valor que quer defender.

114
Aula 5 – Max Weber e o desencantamento do mundo Módulo 1

• A ação afetiva. É guiada pela paixão, ditada pelo estado


de consciência ou humor do sujeito. Assim, ela é definida por uma
reação emocional do ator em determinadas circunstâncias, e não
em relação a um objetivo ou a um sistema de valores. Com muita
frequência, tal ação pode resultar mesmo em algo distinto do que o
ator, em outras circunstâncias, desejaria. Assim, por exemplo, com
uma pessoa casada pode acontecer de, em determinado momento e
em circunstâncias emocionais específicas, trair seu cônjuge, a quem
no fundo ama e com quem quer permanecer vivendo lado a lado.

• A ação tradicional. É a ação ditada pelos hábi-


tos, costumes e crenças. É como se fosse uma segunda
natureza, que o ator realiza quase sem perceber. Para agir
conforme a tradição, o ator não precisa conceber um objeto
ou um valor, nem ser impelido por uma emoção. Obedece a
reflexos adquiridos pela prática, pelo dia-a-dia. É o caso,
por exemplo, do católico que faz o sinal-da-cruz sempre
que passa diante de uma igreja.

115
História e Sociologia

É importante lembrar que, em sendo esses quatro tipos de ação


“tipos ideais”, eles não constituem a totalidade das ações possíveis
ou esgotam as possibilidades das ações sociais. A rigor, as ações
sociais se aproximam ora mais, ora menos, desses tipos ideais.
Não raro, elas podem combinar tipos diferentes. Ou seja, para
Weber as interações sociais podem produzir oposições, conflitos
compromissos, solidariedades.

Na Atividade 3, você irá aplicar os tipos ideais weberianos


de ação às suas próprias ações do dia a dia.

Atende ao Objetivo 2

3. Faça uma listagem de suas ações cotidianas. Depois, tente classificá-las em um dos
quatro tipos ideais de ação weberianos.
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Comentário
Você provavelmente perceberá que, ao longo de um dia, realiza ações de diferentes tipos.
Ao aplicar dinheiro no banco, estará realizando uma ação racional, ao passo que ao dar uma
bronca muito forte no seu filho, você poderá estar realizando uma ação afetiva. Justamente aí

116
Aula 5 – Max Weber e o desencantamento do mundo Módulo 1

residem a multiplicidade, a indeterminação, a riqueza de possibilidades sociais identificadas


por Weber. Porque você, em vez de dar uma bronca muito grande em seu filho, poderia
conversar com ele, mostrando que o que ele fez para merecer a bronca não deveria ter
sido feito, em razão das consequências que acarretou. Em outras palavras, você poderia ter
realizado uma ação racional com vistas a um fim: dialogar com seu filho para que ele não
tornasse a fazer algo de errado. Por outro lado, em vez de colocar dinheiro no banco, para
render juros, você poderia ter doado esse mesmo dinheiro para um orfanato da sua igreja,
realizando assim uma ação racional baseada em um valor, a caridade religiosa. Por fim,
você poderia também combinar tipos de ações. Por exemplo, suponhamos que você seja um
político religioso que quer ser eleito. Em busca de angariar votos para sua campanha, você
pode fazer doações para instituições de caridade. Nesse caso, sua ação pode encerrar
tanto uma dimensão racional com vistas a um fim como uma dimensão racional baseada
em um valor.

Esses diferentes tipos de ação social encontram paralelo no


processo de secularização, racionalização e desencantamento do
mundo, que Weber constatou no Ocidente. A ação racional com
relação a um fim é um tipo ideal de ação que, segundo Weber, se
relaciona a um mundo racionalizado, ao passo que a ação tradicional
pode ser percebida como um tipo ideal de ação que possui afinidades
com os valores daqueles que resistem ao desencantamento do mundo.

Como você já sabe, para Weber as ações, mesmo as in-


dividuais, possuem sempre resultados sociais, pois atingem um
conjunto de pessoas maior do que os indivíduos que as realizaram.
Quando alguém faz uma doação a uma instituição de caridade,
beneficia não apenas aqueles que, diretamente, dependem dessa
instituição como também uma série de outros atores sociais. Por
exemplo, se se trata da um orfanato, a ação de caridade beneficiará
também o comércio em torno dele, que irá vender mais alimentos
para as crianças nele alojadas. Se se trata, pelo contrário, de uma
ação na justiça, envolverá necessariamente outras partes. Portanto,
as ações estão inseridas em relações sociais.

117
História e Sociologia

Dentre as inúmeras possibilidades de relações sociais existentes,


Weber entende uma como fundamental para a compreensão das
sociedades: aquelas orientadas pelo conflito ou pela submissão.
A esse tipo de relação Weber dá o nome de dominação, ou formas
de dominação, e, assim como faz em relação às ações, caracteriza-
as também a partir de tipos ideais.

As formas de dominação

Weber define a dominação como a “oportunidade de


encontrar uma pessoa pronta a obedecer a uma ordem de conteúdo
determinado”. Essa discussão, no vasto conjunto da obra de Weber,
é muito importante, pois diz respeito, em última instância, à política
e ao Estado.

Antes de falarmos das formas de dominação, você terá, ainda


que brevemente, uma noção do que seja o Estado para Weber. De
forma sucinta, ele define o Estado como o conjunto politicamente
organizado de pessoas que impõem, sobre um determinado
território, o monopólio do uso legítimo da força. O monopólio da
força é imprescindível para os outros monopólios que o Estado deve
construir sobre o seu território: da criação e administração da lei, do
fisco, da relação com outros Estados e, no caso dos Estados-Nação,
da identidade nacional.

A ideia do monopólio pressupõe que o conjunto da população


desse Estado obedeça a uma autoridade, o que implica dizer que
essa autoridade tem de ser percebida como legítima, ou seja,
como toda dominação necessita de uma justificação, ela é sempre
acompanhada de uma razão, uma crença social que a legitime.
Weber distinguiu três formas, três tipos ideais, de dominação:

1. A dominação tradicional: baseia a sua legitimidade


na tradição. A dominação, nesse sentido, reproduz-se por sua
antiguidade, porque sempre existiu, porque a experiência evidenciou

118
Aula 5 – Max Weber e o desencantamento do mundo Módulo 1

sua validez, pelos valores que ela expressa. As sociedades do


Antigo Regime, por exemplo, hierarquicamente organizadas por
estamentos sociais (nobres, clero, camponeses, em que os primeiros
exerciam o mando), podem ser caracterizadas como uma dominação
tradicional. Também as sociedades agrárias e patriarcais recorrem
a esse tipo de dominação. No Brasil escravista, o senhor de terras e
de escravos dominava não apenas os escravos, mas os agregados
e sua própria família.

2. A dominação carismática: baseada na figura de


uma personalidade excepcional. Nesse sentido, ela se opõe tanto
à dominação tradicional quanto a uma ordem institucionalizada, do
tipo racional-legal. Um chefe carismático – um grande imperador
ou profeta, um líder político – cujo poder reside na sua força de
convencimento e em um forte apelo emocional, frequentemente
ampliados pela propaganda, ou na capacidade de mobilizar as
massas, está sempre pronto a subverter, ou ao menos desconsiderar,
as tradições e as instituições, principalmente em razão do fato de
que buscará estabelecer uma relação direta com as massas.

119
História e Sociologia

Getúlio Vargas Benito Mussolini e Adolf Hitler O aiatolá Khomeini


Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/ Fonte: http://upload.wikimedia.org/ Fonte http://en.wikipedia.org/wiki/Image:
Get%C3%BAlio_Vargas wikipedia/commons/f/f0/Benito_ Khomeini_Famous_Portrait.jpg
Mussolini_and_Adolf_Hitler.jpg

3. A dominação racional-legal: baseia-se na ideia de


um direito abstrato, institucionalizado por regras que obedecem
a critérios de racionalidade, impessoalidade e universalidade.
A dominação racional-legal se afirma pela submissão a um código
ou regra universal percebido como racional, que se autossustenta,
e pode ser encontrada, para além do Estado, em grandes empresas
e outras organizações burocráticas.

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Imagem:Brasilia_Congresso_Nacional_05_2007_
221.jpg

É importante lembrar, mais uma vez, que tais tipos ideais de


dominação dificilmente são encontrados em estado puro na realidade

120
Aula 5 – Max Weber e o desencantamento do mundo Módulo 1

concreta. Para ficarmos em um exemplo brasileiro, Getúlio Vargas


é sempre associado à forma carismática de dominação, por sua
personalidade excepcional, seu forte apelo emocional e sua capa-
cidade de diálogo direto com os “trabalhadores do Brasil”. Contudo,
nesse diálogo com as massas, é possível também identificar-se, em
Getúlio, elementos da dominação tradicional, patriarcal, como
quando ele aparece como o “pai dos pobres”, a encarnação de
um membro das elites agrárias que, paternalmente, busca proteger
seus “filhos”, ao mesmo tempo que os submete à sua autoridade.
E, no entanto, Vargas também pode ser percebido como o fundador
do moderno Estado brasileiro, impessoal e universal, ou seja,
identificado à dominação racional-legal, como quando estabelece
a profissionalização do serviço público.

Também no plano internacional, dificilmente um tipo ideal de


dominação é encontrado na realidade concreta. Você já deve ter
ouvido falar que grandes líderes autoritários, como Stalin e Hitler,
eram carismáticos, mas o fenômeno da liderança carismática também
pode ser percebido em regimes liberal-democráticos, em contextos
de dominação racional-legal, como os Estados Unidos de Franklin D.
Roosevelt ou a Inglaterra de Winston Churchill e, mais recentemente,
de Ronald Reagan e Margareth Thatcher. Enfim, como diria Weber, Winston Churchill
a realidade é muito mais criativa do que a capacidade de qualquer Fonte: http://upload.wikimedia.org/
wikipedia/commons/3/35/Churchill_
um de conceituá-la de forma total, fechada e acabada. portrait_NYP_45063.jpg

Ronald Reagan
Margareth Thatcher
Franklin D. Roosevelt
Fonte: http://upload.wikimedia.org/
Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/
Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/
wikipedia/commons/1/16/Official_
commons/6/65/Margaret_Thatcher_1983.jpg
commons/b/b8/FDR_in_1933.jpg
Portrait_of_President_Reagan_1981.jpg

121
História e Sociologia

Por fim, é importante salientar que, assim como existe um


paralelo possível entre as formas de ação social e o processo de
secularização do Ocidente, tal paralelo poder ser identificado também
com as formas de dominação. Na dominação tradicional, com
frequência fatores religiosos são acionados para legitimar o mando.
Não à toa, no Antigo Regime europeu, o rei era rei por direito divino.
Na dominação racional-legal, são elementos racionais, seculares, que
estão na base da legitimidade do poder. Se a lei, no Antigo Regime,
era de certa forma sagrada, posto que derivada, em última instância,
da revelação divina, no Estado laico – terreno próprio da dominação
racional-legal –, em que o campo do direito está dissociado da esfera
de poder da Igreja, a lei é dessacralizada. Para usarmos conceitos
que utilizamos lá na nossa primeira aula, na dominação racional-legal
o poder deixa de se legitimar por uma autoridade transcendente e
passa a se legitimar por uma autoridade imanente.

CONCLUSÃO

No Brasil, assim como em vários países do mundo, a im-


portância de Weber tem sido atualizada pelos debates em torno
do que alguns chamam de retorno da religião. Para nele se apoiar
ou para ele criticar, muitos sociólogos da religião têm utilizado
conceitos weberianos como secularização ou desencantamento do
mundo, em seus estudos sobre as novas igrejas que, no âmbito do
protestantismo, vêm surgindo em velocidade cada vez maior, ou a
respeito da renovação carismática na Igreja Católica.

122
Aula 5 – Max Weber e o desencantamento do mundo Módulo 1

Mas a importância de Weber não se restringe


à sociologia da religião. Seu conceito de seculari-
zação, referido à emancipação das esferas da
política, do direito, da moral, da ciência, da estética,
do âmbito da verdade revelada, encerra também profundas
consequências para a democracia e para a República. No momento
em que, no Brasil e no mundo, se assiste a um avanço do pensamento
religioso sobre os sistemas políticos – com a formação, por exemplo,
de bancadas religiosas nos Congressos nacionais ou a construção
de regimes políticos abertamente teocráticos –, o princípio da
secularização parece central para o respeito das diferenças e,
portanto, para o convívio democrático e republicano.

Já que você conhece tanto Durkheim como Weber, pode


compreender toda a relevância do princípio republicano da
separação entre a esfera religiosa e a esfera política.

Durkheim, por um lado, afirmava que a modernidade


se configurava pela dissolução da comunidade mecânica e
sua substituição pela comunidade orgânica. Na dissolução da
comunidade mecânica, um elemento importante, dentre outros,
é a diferenciação no âmbito da fé religiosa. Por exemplo: o Antigo
Regime, até a Reforma Protestante, era compreendido como uma
comunidade de católicos. A Reforma instaurou a diferenciação entre
os cristãos: agora, alguns são católicos, outros são protestantes e não

123
História e Sociologia

há mais entre eles, para usar o termo durkheimiano, comunidade me-


cânica, a comunidade entre iguais. Na inexistência de comunidade
mecânica e na ausência de um novo elemento de coesão, o século
XVI foi o das guerras de religião: católicos contra protestantes.

Por isso, a emancipação da esfera política da esfera religiosa,


traço da secularização moderna europeia, conforme Weber, tornou-se
elemento central da República. A República deve estender sua
legitimidade a todos os cidadãos, que são muito diferenciados
em termos religiosos. Sejam eles católicos, protestantes, judeus,
umbandistas, ateus, adeptos do candomblé ou de quaisquer religiões
orientais, xamanistas, animistas ou adeptos da New Age, todos,
sem exceção, devem encontrar, na República, a autoridade legítima
que regule as suas interações. Suas convicções religiosas devem,
consequentemente, regular suas vidas privadas ou, no máximo, suas
relações familiares ou associativas.

Por essa razão, quando representantes de uma confissão


religiosa tentam impor, por meio da eleição de uma bancada
no Parlamento, elementos da moralidade de sua confissão – por
exemplo, os relativos ao sexo, à vida e à morte, ao casamento etc.
– ao conjunto da população, que engloba fiéis de outras confissões
ou mesmo ateus, o fenômeno da secularização, que permite a
convivência dos diferentes, está em jogo. Esse fenômeno pode
ser aferido, com bastante clareza, não só nos países teocráticos
do Islã como nos Estados Unidos, em que as políticas públicas e
posicionamentos políticos a respeito de temas como o casamento
de homossexuais e o aborto são fortemente condicionados pelo
discurso religioso. Como Weber bem sabia, a secularização não é
uma “lei da história” do Ocidente.

124
Aula 5 – Max Weber e o desencantamento do mundo Módulo 1

Atividade Final
Atende ao Objetivo 1

Ao ler o jornal, ou ao olhar em volta na sua cidade, conversando com seus amigos e
parentes, você deve estar percebendo a seguinte tensão: de um lado, uma volta às religiões,
e, de outro, o avanço, no plano político, de discussões como aborto e células-tronco.
Com base em seus conhecimentos sobre Weber, faça uma análise dessa tensão.

Comentário
Você viu que, para Weber, a realidade não se explicava por um sistema total, capaz,
inclusive, de predizer resultados futuros. Pelo contrário, para ele, a ação humana poderia
ser capaz de reorientar processos, entendidos sempre como indefinidos. Então, a tensão
já apresentada pode ser entendida como a tentativa de aprofundamento do processo de
secularização (o Estado buscando emancipar-se, cada vez mais,
da tutela religiosa), ao mesmo tempo que grupos sociais resistem
ao processo de desencantamento do mundo.

RESUMO

Max Weber, ao lado de Marx e Durkheim, é considerado um


dos pilares do pensamento sociológico. Entender a especificidade
do Ocidente, ou seja, a modernidade, com seus corolários de
racionalização, secularização e desencantamento do mundo, era a
grande questão a que Weber se propôs a compreender, lançando
mão, para tal, de instrumentos conceituais como tipo ideal, tipos de
ação e tipos de dominação.

Ao contrário de Marx e Durkheim, no entanto, Weber rejeitava


grandes sistemas explicativos, compreendendo a Sociologia como
a ciência do que “é”, e não do que “deveria ser”. Assim, Weber

125
História e Sociologia

limitava-se a constatar fenômenos observáveis, e não a inseri-


-los em grandes sistemas causais, muito menos a predizer o que
poderia vir a acontecer. A partir de Weber, dificilmente se poderia
conceber uma filosofia da história, como acabou por acontecer em
certas leituras de Marx. Por exemplo, Weber constatou que, à sua
época, o fenômeno da secularização era empiricamente observável.
Daí, contudo, ele não concluiu que a secularização era um dado
inexorável do desenvolvimento histórico do Ocidente.

Informações sobre a próxima aula

Na próxima aula, você conhecerá a Escola de Chicago.


Ao passo que Marx, Durkheim e Weber lançavam as bases do
pensamento sociológico na Europa, a Escola de Chicago, nos
Estados Unidos – diante dos fenômenos da industrialização,
urbanização, imigração, dos conflitos étnicos e raciais –,
construía os elementos fundamentais do que seria o pensamento
sociológico americano, que teria grande influência no brasileiro.

126
Aula 6
Escola de Chicago:
a inovação da
prática sociológica
no contexto
norte-americano
História e Sociologia

Meta da aula

Levar você a entender como a Sociologia pode se diferenciar em seus métodos e


pressupostos, dependendo do contexto histórico, cultural e geográfico no qual ela se
desenvolve. As diferenças entre a Sociologia clássica européia e a sociologia norte-
americana da Escola de Chicago são uma evidência dessa diferenciação.

Objetivos

Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de:
1. reconhecer a Escola de Chicago como expressão de uma nova sociologia;
2. diferenciar a sociologia da Escola de Chicago da sociologia clássica;
3. correlacionar os temas da nova sociologia da Escola de Chicago com o contexto
histórico e social norte-americano;
4. reconhecer a metodologia e as categorias sociológicas adotadas pela Escola de
Chicago para a investigação dos problemas urbanos, com ênfase na ecologia
urbana, na criminalidade e na imigração.

Pré-requisitos

Para melhorar o entendimento desta aula, é importante que você leia as


Aulas 4 e 5, especialmente porque Marx, Durkheim e Weber são
autores clássicos de grande influência para a produção sociológica
em outros contextos que não apenas o europeu.

128
Aula 6 – Escola de Chicago: a inovação da prática sociológica no contexto norte-americano Módulo 1

INTRODUÇÃO

Você já é capaz agora de compreender o surgimento da


sociologia no contexto europeu do século XIX e como essa sociologia
buscou interpretar fenômenos emergentes na sociedade moderna,
capitalista e liberal. Viu como a sociologia se funda por meio da
compreensão crítica dessa sociedade, identificando as razões e
finalidades de sua dinâmica e movimento: em Marx, o conflito, ou
luta de classes, conforme seu materialismo histórico, ou seja, uma
abordagem sociológica em que uma grande teoria se sobrepõe
aos desígnios dos indivíduos; em Durkheim a coesão, ou as formas
de solidariedade social presentes na sociedade moderna, uma
abordagem em que as instituições influenciam e definem a ação
dos sujeitos sociais; em Weber, a incerteza e a indeterminação
da ação e dos processos sociais, em uma abordagem em que o
indivíduo goza de maior autonomia, embora limitada, pois sua ação
pode resultar em algo diferente do esperado. Os modelos do que
chamamos “sociologia clássica”, como você pôde conhecer nas
aulas anteriores, privilegiam as noções de sociedade, comunidade,
capitalismo, religião, racionalidade, secularização e mercado.

O que você vai descobrir agora é que a “sociologia clássica”,


embora tivesse tido vida longa na Europa e mesmo na América Latina,
sustentou-se com ressalvas no contexto norte-americano. A sociologia
que se fundou nos Estados Unidos, em finais do século XIX e princípios
do XX, estava voltada para um conjunto de preocupações, problemas
e interesses distintos da “sociologia clássica”. Aos norte-americanos,
socializados em um ambiente intelectual distinto do europeu, e diante
de problemas inexistentes na Europa – como a segregação e as
tensões raciais, a imigração e o problema da integração étnica etc. –,
a “sociologia clássica” parecia uma grande abstração, fundada em
princípios gerais e normativos pouco afeitos à realidade social dos
Estados Unidos.

129
História e Sociologia

Epistemologia Os sociólogos de Chicago, portanto, buscaram desenvolver


A origem da palavra uma sociologia adequada ao que entendiam ser as necessidades
epistemologia é grega.
americanas, a partir de uma tradição intelectual que, embora inspirada
Episteme quer dizer
ciência, ao passo que em pensadores europeus, trazia também a marca americana.
Logia significa estudo. Ao fazê-lo, acabaram construindo uma escola sociológica.
Portanto, epistemologia
é o estudo da ciência,
dos limites e possibilida- A sociologia de Chicago como escola
des do conhecimento.
É possível conhecer
algo? Se a resposta Você deve estar estranhando o uso do termo escola para
for afirmativa, qual a designar os sociólogos de Chicago. Afinal, o que constitui uma
melhor forma de Escola, no sentido aqui empregado?
conhecê-lo? Existem
métodos mais apro- Uma escola sociológica possui uma marca, algo que a
priados para se chegar caracteriza e a distingue de outras escolas, e que agrega diversos
ao conhecimento do
sociólogos individuais. A “sociologia clássica” não se configurou
real? O campo da
epistemologia é um como uma escola, ou seja, não existe uma escola clássica de
dos mais fecundos sociologia. Ela é a expressão da reflexão sociológica de indivíduos
nas ciências sociais,
pioneiros, Marx, Durkheim e Weber, que buscaram estabelecer
resultando em
infindáveis debates
critérios teóricos e metodológicos próprios. É por isso que,
sobre a natureza do quando estudamos a “sociologia clássica”, estudamos pensadores
conhecimento. individuais. No entanto, a partir deles, e principalmente de Marx e
Weber, pode-se falar em escolas: escola marxista, para gerações
Escola de
Frankfurt de sociólogos, historiadores, economistas etc., que pensaram as
Reunia um grupo de filó- sociedade humanas a partir das categorias marxistas, ou a escola
sofos e cientistas sociais
weberiana, principalmente para sociólogos da religião, da política
de orientação marxista.
Seus membros mais
e do fenômeno burocrático.
conhecidos foram Max
Uma escola sociológica, portanto, é uma espécie de guarda-
Horkheimer, Theodor
Adorno e Walter Benja-
-chuva metodológico e epistemológico que orienta o estudo dos que
min, que centraram suas dela fazem parte. Não que pertencer a uma escola signifique abrir
reflexões nas questões da mão de algumas especificidades como autor individual. A escola é
cultura, como a cultura
um círculo que demarca um campo de influências e debates que tende
de massas e a indústria
cultural. Mais recente- a orientar as abordagens desses autores. Nos anos de 1920, por
mente, Jürgen Habermas exemplo, inaugurou-se, na Alemanha, uma escola muito importante,
é muitas vezes associado
a Escola de Frankfurt, que expressava uma filosofia crítica de
a tal escola.
base marxista.

130
Aula 6 – Escola de Chicago: a inovação da prática sociológica no contexto norte-americano Módulo 1

A Escola de Chicago, portanto, era um guarda-chuva que Pragmatismo


orientava a produção de diversos autores. Ao contrário da “sociologia Doutrina filosófica
americana, contem-
clássica”, ela não enfatizava grandes teorias explicativas. Para os
porânea da Escola de
sociólogos de Chicago, influenciados pela filosofia pragmática, Chicago na Universi-
o importante era o contato com as questões e problemas da vida dade de Chicago, que
confere às ideias um
“como ela é”, isto é, com a descrição da vida social de indivíduos
valor instrumental.
e grupos, e seu impacto na ordem social. À abstração do que O pragmatismo rejeita
entendiam ser a sociologia europeia, os americanos enfatizavam toda a visão filosófica

a empiria, o apego às mensurações ao que poderia, na prática, metafísica e, portanto,


uma afirmativa só
ser demonstrado. Assim, a Escola de Chicago propunha novos
adquire validade se
métodos de investigação sociológica. pode ser compro-
vada empiricamente.
Dentre os principais métodos de pesquisa da Escola de
Entre seus fundadores
Chicago, que se disseminaram com rapidez para vários estudos destacavam-se Charles
sociológicos, inclusive no Brasil, estavam as pesquisas por meio da Sanders Pierce, William
James e John Dewey.
observação direta de fenômenos sociais, o que chamamos também
Mais recentemente,
estudo de campo ou estudo de caso. Richard Rorty tem
se destacado como
Por outro lado, a Escola de Chicago não estava apenas
pensador pragmático.
interessada na compreensão da sociedade, mas também em como
melhorá-la. Ou seja, seus temas preferenciais, como você verá adiante Empiria
– a cidade, a criminalidade, os imigrantes – não eram entendidos O conhecimento
baseado na empiria é
como objetos de pura reflexão. De forma pioneira, eles criaram
aquele que valoriza a
instrumentos metodológicos não só para identificar tais problemas experiência. O acesso
como também para oferecer soluções para superá-los. É por isso à verdade se dá,
portanto, pela via da
também que a sociologia da Escola de Chicago é considerada
experiência, não pela
pragmática. Ela seria, nesse sentido – tal qual a tradição marxista, via da razão ou de
mas diferentemente da weberiana – uma sociologia engajada, e teorias abstratas.
seus membros seriam, muitos deles, militantes da reforma social.
Estudo de campo
Mas, justiça seja feita, se a Escola de Chicago nasceu ame- ou estudo de caso
É uma investigação que
ricana, ela também devia parte de sua concepção de sociologia
tem por objetivo analisar
a sociólogos europeus. Na virada do século XIX para o XX, havia fenômenos concretos,
já um intenso intercâmbio universitário entre os Estados Unidos e a casos particulares ou
específicos, procurando
Europa, e as ideias circulavam com grande velocidade entre Chicago
compreendê-los em seus
e Nova York, Paris, Londres e Berlim. Assim, não só muitos sociólogos variados aspectos, ou
americanos – e também historiadores, psicólogos e economistas – de seja, em sua totalidade.

então passaram longos períodos de sua formação em universidades

131
História e Sociologia

alemãs, como as universidades americanas recebiam com frequência


professores universitários europeus. A universidade americana seria,
aliás, muito beneficiada pelo quase constante fluxo de intelectuais
europeus, asiáticos e mesmo latino-americanos para os Estados
Unidos, fluxo esse que se aprofundaria com a Segunda Guerra
Mundial e se manteria até os dias de hoje.

Robert Park era um desses sociólogos americanos que,


em finais do século XIX, foi estudar na Alemanha, onde foi
aluno de Georg Simmel na Universidade de Heidelberg.
Simmel desenvolvia pesquisas sobre temas então considerados
marginais, que não faziam parte do repertório clássico da
sociologia. Enquanto os clássicos da sociologia preocupavam-
se com aspectos macrossociais – a luta de classes em Marx, o fato
social em Durkheim, as formas de dominação e a secularização do
Ocidente, como Weber –, Simmel olhava os pequenos fenômenos, os
aspectos microssociais. Ele queria entender, por exemplo, como os
indivíduos exerciam influência uns sobre os outros, por meio do que
chamava “relações de reciprocidade”. Para ele, tais relações eram
orientadas por várias motivações: interesses, religiosidade, amor,
sexo, trabalho, conflito etc. Assim, para entender os interesses que
moviam as relações de mercado, ele estudava o tema do dinheiro;
para compreender as relações familiares, estudava o amor; para
compreender os impulsos eróticos, estudava a prostituição, para
entender os imperativos da agressão e da sobrevivência, estudava
o estrangeiro. Surgindo como a soma das várias relações de
reciprocidade, estava a cidade.

Ter sido aluno de Simmel foi muito importante para a formação


de Park, influenciando seu olhar para os pequenos fenômenos, assim
como a utilização de instrumentos metodológicos pouco usuais na
época, como métodos quantitativos, pesquisas estatísticas, censos
urbanos e comunitários.

Agora que você já conhece um pouco sobre a Escola de


Chicago, deve estar se perguntando: Mas, afinal, sobre quais
fenômenos sociais ela se debruçava?

132
Aula 6 – Escola de Chicago: a inovação da prática sociológica no contexto norte-americano Módulo 1

Os Estados Unidos na virada do século


XIX para o XX

Na virada do século XIX para o XX, os Estados Unidos


passavam por transformações profundas. Se até então muitos
americanos estavam convencidos da excepcionalidade histórica
dos Estados Unidos, que os teria livrado dos conflitos sociais
característicos da Europa em sua entrada na modernidade – e que
foram o pano de fundo das reflexões de Marx e Durkheim –, tais
norte-americanos se perguntavam o que estaria acontecendo com
seu país. A sociedade, até então percebida como aberta ao talento
individual e ao desenvolvimento da economia de mercado, dado
que livre das amarras do feudalismo, da concentração fundiária
e de classes sociais “parasitárias” como a nobreza, parecia, por
assim dizer, europeizar-se.

Excepcionalidade histórica dos Estados Unidos


A ideia do excepcionalismo americano, construída a partir
da Revolução Americana, está associada à visão de que os
Estados Unidos conheceram uma experiência histórica única, e
superior, à dos demais países, o que lhes emprestaria uma missão
civilizatória para o mundo. Nascido de um ideal de liberdade e
igualdade, expresso na Declaração de Independência, contando com
uma fronteira, tanto física quanto social, aberta ao talento individual,
destituído das diferenças de classe, status social e riqueza característicos
dos países europeus, e ainda, nas versões alimentadas pela tradição
evangélica, percebido como dotado da bênção divina, os Estados
Unidos surgem nesta visão como um país único, destinado a realizar
um projeto de liberdade, individualismo, igualdade e abundância.
A tradição do excepcionalismo está na base, inclusive, da ideia de um
American way of life, um modo próprio de viver dos americanos.

133
História e Sociologia

De fato, nesse momento, os Estados Unidos eram sacudidos


por violentos movimentos operários, como a grande greve ferroviária
de 1877, que resultou em 100 mortos, ou a greve da Pullman
Car Company, de 1894, em que 13 pessoas morreram em razão
da repressão realizada por forças federais. O coração da greve
da Pullman foi Chicago, palco também do célebre Massacre de
Haymarket, de 1886 – origem do Primeiro de Maio –, que resultou
em 14 trabalhadores, em luta pela jornada de trabalho de oito
horas, mortos.

Tais movimentos inseriam-se em um contexto de profundas


transformações. Os Estados Unidos deixavam para trás a base
agrária da sua economia para transformarem-se em uma sociedade
urbana, profundamente heterogênea em termos étnicos, marcada
por relações de trabalho assalariadas e crescentes desigualdades
de renda e riqueza. Em 1910, quase 15% dos residentes nos
Estados Unidos haviam nascido no estrangeiro, contribuindo para
que a população urbana passasse de 40% para 56% do total entre
1900 e 1930. Em decorrência, as grandes cidades, como Detroit,
Nova York ou Chicago, viviam às voltas com graves problemas
sanitários e habitacionais nos novos bairros operários. Era como se,
em um espaço de apenas 40 anos, entre o fim da Guerra Civil e o
início do século XX, a República abandonasse os seus fundamentos
agrários, de pequenos proprietários empreendedores, igualitários e
democráticos, para dar lugar a um mundo novo e desconhecido, da
fábrica e da cidade, da grande corporação e do cortiço, do sindicato
e de associações de ajuda mútua com nomes impronunciáveis em
Iídiche
iídiche, húngaro, italiano e línguas eslavas.
Idioma da família
indo-europeia que Tendo como berço Chicago – tipo ideal, na terminologia
pertence ao subgrupo
weberiana, da nova cidade industrial americana –, e como objetivo
germânico, adotado
pelos judeus na Europa autoimposto o de servir como instrumento de aperfeiçoamento da
central e na Europa realidade, a cidade, fenômeno urbano como um somatório de
oriental, mais ou menos relações sociais, na tradição de Simmel, foi um dos temas centrais
no século X. Esse
da Escola de Chicago.
idioma é escrito com
caracteres hebraicos.

134
Aula 6 – Escola de Chicago: a inovação da prática sociológica no contexto norte-americano Módulo 1

A cidade como objeto de reflexão Gueto


Geralmente um
sociológica bairro, ou conjunto
de quarteirões, em
que vivem pessoas de
A cidade de Chicago, com seus imigrantes europeus e
uma minoria nacional,
migrantes negros do Sul, seus guetos e cortiços, conflitos raciais religiosa ou étnica.
e étnicos, constituiu o grande objeto de reflexão da Escola de O conceito de gueto
encerra uma ideia
Chicago.
de discriminação do
Você já deve ter ouvido falar em guetos, não? Louis Wirth, grupo majoritário em
relação ao minoritário.
um dos expoentes da Escola de Chicago, definiu gueto como um
Nos dias de hoje,
lugar no qual as pessoas que dele fazem parte (em geral grupos
lugares frequentados
imigrantes, étnicos ou raciais) encontram algum tipo de proteção e por pessoas que
solidariedade, uma espécie de refúgio contra os preconceitos e a se identificam
com minorias
violência do grupo majoritário. Mas o gueto pressupõe, também,
comportamentais são
exclusão e preconceito dos que dele não fazem parte. designados como
guetos. Por exemplo,
bairros, quarteirões
ou ruas com bares
gays, darks, góticos
etc. podem ser
chamados de guetos.
Nesse caso, como no
anterior, o princípio da
discriminação também
está presente.

Atende aos Objetivos 3 e 4

1. A leitura do texto a seguir indica um significado para gueto que realça mais a violência
coletiva do que uma ideia romântica e pacificada de gueto, encontrada em Louis Wirth.
“O gueto não é uma área natural, produto da história da migração (como Louis Wirth
defendia), mas sim uma forma especial de violência coletiva concretizada no espaço
urbano” (WACQUANT, Löic. Que é gueto: construindo um conceito sociológico.
Revista Sociologia Política, 23 nov. 2004).
Comente alguma experiência no Brasil que possa ser identificada com uma experiência
de gueto.

135
História e Sociologia

Comentário
Você pode identificar várias experiências, nas cidades brasileiras, relacionadas à ideia de
gueto: minorias comportamentais que buscam frequentar certos bairros das cidades (como
darks, góticos etc.), assim como grupos com orientações sexuais também minoritários (gays,
lésbicas, transexuais etc.). Em todas essas experiências, pode-se perceber uma experiência
de violência e defesa na demarcação dos espaços urbanos.

Mas, mais uma vez, é importante lembrar que o tema das


cidades e de seus problemas como objeto de reflexão sociológica
não nasceu com a Escola de Chicago. Durkheim, por exemplo, já
pensava o suicídio como um desvio moral socialmente produzido
nos grandes centros urbanos, ao passo que Simmel, de maneira mais
viva, desenvolveu estudos sobre Berlim e Roma. Mas foi com a Escola
de Chicago que o tema das cidades ganhou sua expressão mais
bem acabada, guardando muitas diferenças com as abordagens da
“sociologia clássica”, como o Quadro 6.1 evidencia.

Quadro 6.1: A cidade na “sociologia clássica”, em Simmel e na Escola de Chicago

• A cidade é definida por suas funções econômicas, simbólicas, militares e políticoadministrativas.


Para melhor caracterizá-las, Weber construiu tipos ideais de cidades: cidades de produtores,
de consumidores, de administradores, de comerciantes, cidades-fortaleza, cidade ocidental,
Weber
cidade oriental...
• A cidade moderna, ocidental, caracterizada pela superação das relações tradicionais, produz
indiferença entre os indivíduos e ausência de laços de solidariedade.

• A cidade é produto do modo-de-produção dominante na sociedade que a construiu.


• No capitalismo, a cidade industrial é o local próprio da luta de classes entre os detentores
Marx
dos meios de produção, os capitalistas, e aqueles que vendem sua força de trabalho,
a classe trabalhadora.

136
Aula 6 – Escola de Chicago: a inovação da prática sociológica no contexto norte-americano Módulo 1

• A cidade moderna, com sua diferenciação social e sua profunda divisão social do trabalho,
surge como o espaço da passagem da comunidade mecânica para a comunidade orgânica.
Émile Durkheim
Enquanto esta passagem não está consolidada, gerando novos elementos de coesão social, a
cidade surge como o espaço da anomia, de patologias sociais como o conflito de classes.

• Preocupado com as relações recíprocas, Simmel esteve atento à influência do meio urbano,
das grandes cidades como Berlim e Roma, na personalidade e na vida interior dos seus
habitantes.
Georg Simmel • A cidade, marcada pela economia do dinheiro, pelas trocas comerciais, ensejaria
personalidades reservadas, desconfiadas, apáticas e não-solidárias, ao contrário do campo,
onde o costume, a tradição e a lentidão da vida diária permitiriam uma vida com mais
sentimento e emotividade.

• A cidade é entendida por meio de uma analogia com a ecologia. Assim, conceitos da ecologia,
como os de competição, dominação, sucessão, são utilizados para pensar o fenômeno urbano.
Daí que a Escola de Chicago é frequentemente identificada como Escola Ecológica.
• Ao contrário do que queria Weber, a Escola de Chicago buscava politizar suas análises. Assim,
seus estudos sobre as cidades visavam buscar soluções concretas para os problemas urbanos,
oriundos da industrialização, da imigração, do inchamento dos cortiços dos bairros operários,

Escola de Chicago para os problemas sanitários e comportamentais. Assim, longe de ser apenas um objeto de uma
disciplina acadêmica, a Escola de Chicago queria transformar a cidade em um “laboratório
social”. Dito de outra forma, a Escola de Chicago não queria apenas buscar compreender
o fenômeno urbano, mas contribuir para o seu aperfeiçoamento. Consequentemente, muitos
sociólogos de Chicago tornaram-se militantes da reforma social.
• A importância da cidade vai para além de seu espaço físico. A cidade produz uma cultura
urbana e um estilo de vida que transcende seus limites.

É possível observar no Quadro 6.1 que a abordagem


sobre as cidades construída pela Escola de Chicago guarda mais
proximidade com a visão de Simmel do que com os clássicos da
sociologia. Em Weber, há uma excessiva abstração sobre o fenômeno
urbano, pensado em termos de tipos ideais; em Marx, a submissão do
fenômeno urbano aos ditames do modo-de-produção; em Durkheim,
a cidade como espaço da anomia, no momento em que a comunidade
mecânica ainda não morreu e em que a solidariedade orgânica
ainda não se consolidou. Em Simmel e na Escola de Chicago,
há a preocupação maior com a análise concreta das cidades
realmente existentes e como elas influem na vida das pessoas.

Agora que você já conhece um pouco as diferenças de como o


fenômeno urbano foi tratado pelas diferentes tradições sociológicas,
vai conhecer um pouco mais o caso concreto de Chicago.

137
História e Sociologia

A cidade de Chicago vista pela Escola de


Chicago

A cidade de Chicago nas primeiras décadas do século XX,


com seu crescimento rápido e desmesurado, a chegada contínua
de (i)migrantes de todas as nacionalidades, etnias e religiões, os
negros como um grupo racial numericamente relevante, constituía
um riquíssimo “laboratório natural” de investigação.

Dois importantes sociólogos de Chicago, Robert Park e Ernest


Burgess, estudaram a expansão de Chicago em círculos concêntricos.
Um primeiro círculo, correspondente ao centro, era a região mais
valorizada, com seus edifícios de negócios, prédios governamentais,
comércio e lazer. Depois havia uma zona de transição, com edifícios
deteriorados e moradores em permanente mudança. No círculo
seguinte, habitações da classe trabalhadora e da classe média e,
finalmente, os subúrbios. Esse mapeamento da cidade de Chicago
era acompanhado de informações qualitativas e quantitativas sobre
cada um de suas partes, evidenciando interesse na espacialidade
urbana e em seus padrões de desenvolvimento. Assim, a distribuição
dos imigrantes por origem em bairros diferenciados, bem como dos
negros, o desenvolvimento e os investimentos desiguais em cada
um dos bairros, distintos padrões de habitação urbana e serviços
públicos etc. A cidade não surgia, pois, como uma abstração, fruto
de uma teoria sociológica, mas como realidade concreta, mensurável,
verificável, em permanente transformação e, portanto, possível de
ser melhorada, aperfeiçoada, por meio do saber sociológico.

Hoje você possui muitas informações sobre a sua cidade, sobre


cidades no Brasil e no mundo, com seus problemas habitacionais,
de pobreza e criminalidade, pela imprensa, pela televisão, pelo
cinema, pela literatura e pela internet. Você pode imaginar, contudo,
o que significava, no início do século XX, o crescimento desordenado
das cidades e suas consequências para a vida das pessoas? Esses
fenômenos eram novos. Claro que antes havia pobreza, mas ela
era espalhada por pequenas cidades no interior e, portanto, não

138
Aula 6 – Escola de Chicago: a inovação da prática sociológica no contexto norte-americano Módulo 1

tinha a visibilidade que passou a ter então; tampouco significava


um real desafio à ordem, daquele momento em diante, como passou
a ser. Por outro lado, naquela época a ciência não dispunha de
instrumentos adequados para identificar claramente esses problemas,
diagnosticá-los e sugerir soluções. A Escola de Chicago tentaria
suprir tudo isso.

Agora, procure imaginar a cidade do Rio de Janeiro entre


os anos de 1920 e 1930. O Rio de Janeiro já era então uma
cidade bastante complexa, apresentando algumas similaridades
com Chicago, mas também muitas diferenças. O Rio possuía, por
exemplo, um centro altamente valorizado. Por ser então a Capital
Federal, abrigava um importante centro administrativo, político e
financeiro. Possuía também uma área de transição, próxima ao
centro, na qual se concentravam ex-escravos e seus descendentes,
prostitutas, desempregados, imigrantes vindos de regiões pobres
da Europa, que habitavam casas precárias e viviam de biscates e
de pequeno comércio e algumas vilas operárias (olhe um mapa da
cidade do Rio de Janeiro e visualize a região da Praça Onze, da
Gamboa e a que hoje é a Cidade Nova). Na Zona Norte, ou seja,
na Tijuca e nos bairros do subúrbio, localizavam-se as moradias
de classe média e também da classe trabalhadora. A Zona Sul,
Flamengo, Botafogo e Copacabana, era área de moradia das
elites e da classe média. Essa espacialização do Rio de Janeiro em
muito lembra as zonas concêntricas de Chicago, identificadas pelos
sociólogos, não é?

No entanto, o Rio de Janeiro iria assistir ao crescimento de algo


que se tornou específico, alterando a espacialização já apresentada:
as favelas. Em princípio, elas se formaram como uma espécie de
receptáculo de populações expulsas do centro da cidade por ocasião
dos grandes projetos de reforma urbana do prefeito Pereira Passos
(1902-1906) e de demolição de moradias populares e precárias.
Hoje, as favelas encontram-se encravadas na natureza e em todos
os cantos, nas Zonas Norte e Sul, no centro e nos subúrbios, como
partes ao mesmo tempo constitutiva e marginal da cidade. E as

139
História e Sociologia

favelas expressam problemas como a desigualdade social crescente,


passando pela criminalidade e a pobreza, até a ausência de políticas
públicas de habitação e transporte para populações de baixa renda.
Para compreender esses problemas, caso fôssemos adeptos da
Escola de Chicago, não bastaria apenas identificá-los a olho nu.
Teríamos de produzir uma estatística para quantificar o tamanho
dos problemas, a quem eles mais afetariam e o impacto que eles
promoveriam na cidade como um todo. Nesse sentido, a Escola de
Chicago foi de fundamental importância para que se consolidasse
não só uma sociologia do espaço, da cidade, a chamada sociologia
urbana, mas também para a elaboração e o aperfeiçoamento de
métodos quantitativos de pesquisa, utilizando estatísticas e séries
históricas, assim como qualitativos, como pesquisas de opinião.
Assim, a sociologia inspirada na Escola de Chicago transformou-se
em um poderoso instrumento capaz de produzir diagnósticos e de
orientar governos sobre diversos temas, problemas e políticas de
planejamento urbano.

Atende aos Objetivos 3 e 4

2. Durante muito tempo, cidades foram sinônimo de segurança. Desde o final da


Idade Média, cidades muradas e densamente ocupadas ofereceram proteção e status
aos que tinham o privilégio de ser seus cidadãos. O medo estava na natureza, com
seus demônios, nos caminhos vazios e sujeitos à ação de bandos de salteadores, no
isolamento da vida rural. As cidades passaram ainda a representar sofisticação e
civilização em contraste com a rusticidade da vida rural.

140
Aula 6 – Escola de Chicago: a inovação da prática sociológica no contexto norte-americano Módulo 1

O medo da cidade e a elaboração de sentimentos antiurbanos são coisas relativamente


recentes. Começaram a tomar forma com a expansão das grandes cidades industriais
a partir do fim do século XIX e arraigaram-se mais em algumas partes do mundo
ocidental do que em outras. Até recentemente, sentimentos antiurbanos foram mais
fortes nos Estados Unidos do que na Europa ou na América Latina (para ficar restrito
apenas a esta parte do mundo, já que as cidades na Ásia e no Oriente Médio têm toda
uma outra história). Hoje em dia, os medos associados ao espaço urbano cresceram
tanto que algumas cidades vêm perdendo sua conotação de proteção e segurança,
para adquirir apenas a de perigo.

A violência e o crime são atualmente o cerne do sentimento antiurbano e dos ataques


ao tipo de espaço público corporificado nas cidades ocidentais. Mas embora o crime
sirva de emblema aos perigos urbanos, o medo da cidade não diz respeito apenas à
violência: ele indica mudanças profundas em algumas noções constituintes do mundo
moderno. A ideia da cidade protetora dos cidadãos se firmou junto com outras noções
fundamentais: as de democracia, de liberdade, e de igualdade dos cidadãos. Na
era das revoluções, as cidades ocidentais transformaram-se basicamente em cidades
abertas. Perderam muros, destruíram privilégios, rasgaram avenidas e consolidaram a
noção de que o espaço público é aberto à circulação de todos os cidadãos a despeito
de suas diferenças sociais (CALDEIRA, 2008).

1. Leia com atenção o texto e procure identificar na sua cidade quais são os “medos” que
mais preocupam os moradores e os governantes.

2. Compare a sua cidade com cidades maiores e discorra sobre quais são as características
que as diferenciam.

3. Você seria capaz de comparar a sua cidade, ou seja, como ela se estrutura hoje e quais
os seus principais problemas três décadas atrás?
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História e Sociologia

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Comentário
É grande a possibilidade de respostas para estas três perguntas. É possível que, entre os medos
da sua cidade, encontrem-se problemas tão diferentes quanto a criminalidade e a solidão.
É possível, também, que entre as diferenças entre a sua cidade e cidades maiores, você
localize políticas públicas menos desenvolvidas e, de outra parte, sentimentos comunitários
mais fortes, que suprem a carência destas políticas. É possível, por fim, que você perceba
que, há três décadas, esses mesmos laços comunitários eram ainda mais fortes do que
são hoje. Quaisquer que forem as suas respostas, elas se inserem no campo de estudos
da sociologia urbana.

Agora que você já viu a importância da Escola de Chicago


para a sociologia urbana, vai ver como ela lidou com outras
questões, também ligadas às cidades.

Imigração

Você pode imaginar o que significava para um sociólogo


urbano estar diante de uma variedade cultural imensa em uma
cidade como a de Chicago, que desde o final do século XIX vinha
recebendo sistematicamente imigrantes de várias regiões da Europa

142
Aula 6 – Escola de Chicago: a inovação da prática sociológica no contexto norte-americano Módulo 1

e migrantes internos, especialmente os negros do Sul? Não à toa, os


estudos sobre imigração ocuparam parte do interesse dos sociólogos
da Escola de Chicago.

Eles estavam interessados, sobretudo, em compreender a


capacidade de grupos de imigrantes tão diferenciados se justaporem
em alguns contextos urbanos e, até mesmo, de experimentarem
formas de interação e de solidariedade. Se na Polônia católicos
e judeus frequentemente tinham conflitos, no contexto americano
eles se juntavam em muitas ocasiões. Por outro lado, se em seus
países de origem muitos imigrantes identificavam-se mais com suas
regiões do que com a identidade nacional – por exemplo, sicilianos,
piemonteses, calabreses etc.–, nos Estados Unidos muitos passavam
a se identificar com o seu Estado-Nação, a Itália, como notou Robert
Park. Outro exemplo: na virada do século XIX para o XX, os judeus de
origem polonesa mantinham-se unidos, assim como aqueles de origem
alemã, húngara ou russa. Eram judeus poloneses, alemãos, húngaros
ou russos. Muitas vezes tinham sinagogas, instituições de ajuda
mútua, cemitérios e escolas separados. Possuíam landmanschafts,
associações de conterrâneos. No ambiente americano, no entanto,
a dimensão religiosa acabou por se sobrepor à origem nacional,
criando a identidade do judeu americano. Em suma, os imigrantes
não apenas traziam, para os Estados Unidos, suas identidades de
origem. Estas identidades eram redefinidas nos Estados Unidos
e, em interação com outras identidades, redefinidas mais e mais
vezes. Os sociólogos de Chicago notaram que havia padrões gerais,
sociológicos, de redefinição de identidades entre os imigrantes,
fenômeno que até então era percebido como relativo à psicologia
de cada indivíduo ou à sua origem nacional, religiosa ou étnica.

Durante a Primeira Guerra Mundial, os sociólogos de Chicago,


cidade repleta de alemães e italianos, foram estimulados a estudar
esses grupos para identificar o grau de americanização em que se
encontravam. O problema da capacidade de integração à sociedade
americana desses imigrantes colocava em foco o problema da
suspeita sobre a existência de inimigos internos. Isso contribuiu para

143
História e Sociologia

aumentar o interesse sobre o tema da imigração e para expandir


os estudos nessa área. Seja como for, nos Estados Unidos, graças
à Escola de Chicago, a questão dos imigrantes tornou-se um dos
principais focos da sociologia urbana.

Crime e delinquência

Um desdobramento sobre os estudos da cidade realizados


pela Escola de Chicago foi a problematização sociológica da
criminalidade e da delinquência. Até então, era muito comum
associar-se a violência à herança genética de algum indivíduo,
à sua origem nacional ou étnica, ou a fatores psicológicos. Essa
foi a época, é bom lembrar, do pensamento eugênico, que você
viu na Aula 2, que pensava a evolução da espécie passo a passo
com a evolução moral. Para a eugenia, filhos de criminosos teriam
maior propensão à criminalidade. Por outro lado, muitas vezes a
criminalidade era associada a certos grupos de origem nacional,
como os italianos, que teriam trazido para os Estados Unidos
suas práticas mafiosas. A Escola de Chicago rompeu com tais
perspectivas, analisando a criminalidade e a delinquência como
fenômenos originários de uma série de condicionantes sociais.

No início do século XX, o crescimento desordenado das


grandes cidades atingia mais diretamente a população dos migrantes
e imigrantes. Então, era fácil associá-los imediatamente à desordem,
à negação dos valores americanos, à bebida, à arruaça...

Como tratar sociologicamente tais problemas? Associando-os


às questões da sociologia urbana. Por exemplo, à questão dos
guetos. Nas grandes cidades americanas, Chicago em particular, os
cortiços proliferavam, na medida em que ondas de imigrantes vindos
da Europa e migrantes vindos de pequenas cidades americanas,
como os negros vindos do Sul, iam se aglomerando. Tais imigrantes
e migrantes, além de morarem em habitações precárias, viviam
também em guetos, discriminados pelos moradores mais antigos,

144
Aula 6 – Escola de Chicago: a inovação da prática sociológica no contexto norte-americano Módulo 1

sobretudo os brancos em relação aos negros, mas também os anglo-


-saxões em relação aos italianos e eslavos, ou os cristãos em relação
aos judeus. Nos guetos havia, portanto, uma sensação de proteção,
de lealdade e de solidariedade mas, ao mesmo tempo, de exclusão e
falta de perspectivas de inclusão. Nas grandes cidades americanas,
ainda hoje, é muito comum encontrarmos bairros italianos, judeus,
chineses, mexicanos, alemães, poloneses, húngaros, russos, porto-
-riquenhos etc., que foram historicamente se constituindo para abrigar
essas populações.

Então, a Sociologia articulou o problema da guetização, os


problemas de integração social, ao problema da delinquência,
como, por exemplo, as gangues. No caso da cidade de Chicago,
nas primeiras décadas do século XX, observava-se ao lado de uma
fortíssima expansão da industrialização e da guetização, o aumento
da criminalidade. O combate a essa criminalidade, identificada em
detalhes pelas pesquisas da Escola de Chicago, foi empreendido
por meio da repressão policial e pelo aumento dos índices de
encarceramento. Isso resolveria o problema? Mas, afinal, o que
é uma gangue, quais as razões de seu surgimento e como melhor
combatê-la?

A gangue pode ser definida como um agrupamento de jovens


que se coloca à margem das regras sociais. De modo geral, esses
jovens pertencem aos segmentos menos favorecidos da sociedade,
principalmente de imigrantes e negros, que viveram experiências
de exclusão e preconceito, tanto simbólicas quanto físicas e profis-
sionais. Assim, eles fecham-se em gangues, tanto para se proteger
mutuamente quanto para ameaçar a ordem que os exclui ou,
mesmo, a outras gangues. Nesse sentido, a violência das gangues
surge contextualizada em uma ampla rede de relações sociais, que
inclui questões relativas ao espaço urbano, às políticas públicas,
às oportunidades de trabalho e ascensão social, à integração de
grupos de imigrantes etc.

Ademais, as gangues constituem um interessante estudo de


caso para os sociólogos porque, ao mesmo tempo em que expressam

145
História e Sociologia

os problemas acima referidos, não estão submetidas a formas


tradicionais de controle social, como a família, a igreja e a escola.
Estão submetidas, ou são objetos – ou esse é o objetivo – de controle
do Estado, através de leis e da polícia. O controle exercido pelo
Estado é qualitativamente diferente do exercido pelas famílias, pela
igreja e pela escola. Enquanto estas lidam com valores, princípios
morais e éticos, elementos de afetividade, coesão e integração, a
polícia lida com a repressão e a manutenção da ordem. Daí que o
tratamento sociológico da questão da violência, da delinquência e
da criminalidade resulta em uma visão muito mais complexa do que
era tratado anteriormente.

CONCLUSÃO

A Escola de Chicago, ao rejeitar as grandes visões macros-


-sociais da “sociologia clássica”, tidas como excessivamente teóricas,
enfatizou a observação direta de fenômenos sociais através de
estudos de caso ou estudos de campo. Os fenômenos sociais em foco
em tais estudos – o fenômeno urbano, a imigração, a criminalidade
– deveriam ser mensurados, quantificados, diagnosticados e o
resultado das análises sociológicas não deveriam se restringir à
compreensão, mas também à oferta de soluções, sobretudo aos
governantes, para os problemas encontrados. Nesse sentido, a
Escola de Chicago pode produzir um a sociologia que se diz mais
engajada e pragmática.

146
Aula 6 – Escola de Chicago: a inovação da prática sociológica no contexto norte-americano Módulo 1

Atividade Final
Atende ao Objetivo 4

Elabore uma redação na qual você discorra sobre suas experiências com imigrantes ou
sobre alguma experiência histórica com imigrantes sobre a qual você tenha ouvido falar,
ou lido, e que tenha de alguma maneira te chamado a atenção. Caso haja grupos de
imigrantes na sua cidade ou indivíduos estrangeiros, procure descrever em detalhes o que
há de específico no comportamento deles se comparado ao hábitos dos brasileiros.

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Comentário
O objetivo é que você não apenas identifique um grupo de imigrantes, ou imigrantes
individuais, mas descreva aspectos que lhe chamem a atenção. Pretende-se aqui
observar em que medida essas descrições estão repletas de juízos de valor, estigmas,
manifestações de preconceito ou até de reverência e admiração
em relação a esse outro, o estrangeiro.

147
História e Sociologia

RESUMO

Você agora deve consolidar alguns pontos relevantes para


compreender as questões e os temas pesquisados pelos sociólogos
da Escola de Chicago: 1) o uso do conceito de ecologia urbana;
2) o trabalho de campo e o estudo empírico; 3) o estudo da cidade e
seus maiores problemas: imigração, delinquência, crime e problemas
sociais; 4) a ideia da cidade como laboratório social (com o objetivo
de atuar politicamente sobre os problemas da cidade). Estes, enfim,
os pontos centrais da Escola de Chicago.

Informações sobre a próxima aula

Depois de conhecer o surgimento da sociologia no contexto


europeu e no norte-americano, você deslocará a sua atenção
para um novo contexto: o Brasil. Quais são as origens das
primeiras reflexões de tipo sociológico no Brasil? Quem são os
expoentes dessa reflexão? Quais são os temas e as questões
que caracterizam essa sociologia incipiente? Em que medida ela
produz questões e diagnósticos específicos se comparados ao
que observamos nas aulas anteriores?

148
Aula 7
O ensaísmo
como precursor
da Sociologia
no Brasil
História e Sociologia

Metas da aula

Apresentar o contexto de emergência e de produção intelectual do que ficou


conhecido como o ensaísmo sociológico dos anos de 1930 e 40;
identificar nessa sociologia interpretativa e incipiente, as formas pelas quais seus
autores buscam transpor os dilemas entre a tradição e a modernidade no Brasil.

Objetivos

Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de:
1. identificar os temas mais recorrentes do ensaísmo brasileiro e seus principais autores;
2. reconhecer quais eram os dilemas brasileiros naquele contexto entre os anos 1920
e 1940 e como eles foram diferencialmente tratados por três autores exemplares:
Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior;
3. reconhecer nesses autores os fundadores e intérpretes de um Brasil cuja história
é dotada por cada um deles de um sentido que está dado fundamentalmente
na origem do país.

Pré-requisitos

Você compreenderá melhor esta aula se a articular com as Aulas 4, 5 e 6. Marx,


Weber e a Escola de Chicago tiveram influência direta sobre o
ensaísmo sociológico brasileiro.

150
Aula 7 – O ensaísmo como precursor da Sociologia no Brasil Módulo

INTRODUÇÃO

Se você está com a memória em dia, lembrará que a


Sociologia surge como uma disciplina científica no contexto europeu
entre os séculos XIX e XX em sintonia com um complexo processo de
enormes transformações sociais. A industrialização, o surgimento
de grandes centros urbanos, a emergência de novos atores sociais
– os trabalhadores urbanos e industriais, os segmentos médios da
sociedade; o surgimento de novos fenômenos políticos e sociais – a
Revolução Francesa, o sufrágio universal, a burocratização crescente
do Estado, a secularização, a emergência das massas urbanas;
enfim, uma miríade de grandes mudanças e novos fenômenos que
serviram como uma espécie de “laboratório” de observação para
essa nova ciência, a Sociologia. Você também teve a oportunidade
de observar que, nos Estados Unidos, a Sociologia surge tanto
no âmbito das universidades quanto nas formulações de políticas
públicas, com base em observações de fenômenos que emergem
nas grandes cidades, inaugurando um novo olhar (a um só tempo
científico e político) sobre os fenômenos sociais presentes no
chamado novo mundo. Além dos atores sociais clássicos do mundo
industrial – burguesia e trabalhadores –, essa sociologia do “novo
mundo” buscaria identificar novos atores, específicos ao contexto
americano, especialmente grupos imigrantes, étnicos e raciais,
contribuindo com diferentes desafios e questões para o entendimento
da dinâmica social, da interação social, do conflito, da acomodação
e da adaptação nas cidades e no mundo rural.

E no Brasil, como identificar o surgimento da Sociologia?


Até que ponto aquelas transformações que mobilizaram o surgimento
da Sociologia no contexto europeu e norte-americano estavam
presentes no contexto brasileiro? Quais são as especificidades da
reflexão de tipo sociológica que se pratica no Brasil? Qual é o seu
impacto na sociedade brasileira?

151
História e Sociologia

Com esta aula, você terá a oportunidade de construir na sua


imaginação um quadro mais amplo das formas como a Sociologia
se estrutura em diferentes contextos nacionais. O Brasil, por certo,
não está fora desse quadro. A experiência de constituição da
Sociologia no contexto brasileiro apresenta diferentes etapas que
merecem ser exploradas. Na aula de hoje, você terá a oportunidade
de conhecer uma modalidade da Sociologia – o ensaísmo dos anos
1930 e 40 – cujas finalidades não são completamente científicas,
mas que não obstante funcionou como um sólido fundamento para
a constituição, já nos anos de 1950, da Sociologia como disciplina
científica, institucionalizada e de matriz universitária no Brasil. Foram
selecionados para esta aula três grandes ensaístas que, cada
um ao seu modo, buscariam explorar os dilemas da sociedade
brasileira. E eles realizaram essa exploração por meio de uma
compreensão criativa e de grande apelo simbólico, especialmente
em um país que nos anos de 1930 ainda tentava consolidar uma
imagem republicana, moderna e nacional, nascida com a abolição
da escravidão e com o fim do Império. Tal como na Sociologia
produzida no contexto europeu e norte-americano, o ensaísmo
sociológico brasileiro irá se dedicar também a compreender como
se processou a passagem da tradição para a modernidade no
Brasil. Buscará identificar até que ponto a nossa trajetória histórica
apresenta as mesmas condições e características da trajetória da
passagem da tradição para a modernidade observada no contexto
histórico europeu. Em comparação com os Estados Unidos, o
nosso ensaísmo sociológico buscará pontos de articulação e de
diferenciação quanto à experiência da escravidão e quanto ao tema
do negro no pós-abolição.

Ensaísmo sociológico e História

De imediato, é bom que você saiba que a reflexão sociológica


nasce no Brasil com uma preocupação nitidamente histórica. Para melhor
compreender o Brasil nos anos de 1930 e 1940, momento de maior

152
Aula 7 – O ensaísmo como precursor da Sociologia no Brasil Módulo

produção do ensaísmo sociológico brasileiro, é necessário identificar


a maneira pela qual esse ensaísmo busca interpretar a dinâmica
histórica de formação do país, o tipo de colonizador português que
aqui chegou, as populações que aqui viviam, especialmente escravos
africanos, crioulos e indígenas, as características dessas populações,
as formas de poder senhorial, de dominação colonial, de instituições
políticas, de trabalho e produção que aqui foram sendo constituídos e
o tipo de economia que aqui se praticava. Todas essas preocupações,
de natureza nitidamente histórica, fazem parte da reflexão ensaísta
que se consolida no Brasil, sobretudo entre os anos de 1930 e 1940.
A busca da passado seria o melhor caminho para a compreensão e
os diagnósticos do presente.

Movimento
O contexto dos anos 1930-40 Integralista
Movimento que se
desenvolveu no Brasil
O Brasil dessas décadas exibe enormes transformações e
nos anos de 1930 e que
apresenta, de uma perspectiva regional, enormes contradições. reunia em suas fileiras
O mundo do trabalho começa a demandar maior atenção, setores da classe média,
militares, Igreja, setores
especialmente porque o mercado experimenta uma inédita
oligárquicos e negros.
diversificação, tornando mais complexo o mundo urbano. De Sua representação
um país basicamente rural, despontam nesse contexto atores institucional se dá
nitidamente urbanos, a classe operária, por exemplo, acirrando com a criação da
chamada Ação Inte-
ainda mais as contradições entre o trabalhador do mundo urbano
gralista Brasileira (AIB),
e rural: os imigrantes em busca de integração e acomodação cujos ideólogos mais
eram, em alguns casos, vistos como ameaça, especialmente pelo conhecidos são Plínio
Salgado e Gustavo
governo; um campesinato ainda aprisionado ao mandonismo e ao
Barroso. Esse movimento
coronelismo rural; o fim da escravidão que legaria à República buscava resgatar
uma massa de ex-escravos em busca de oportunidades de trabalho e resguardar uma
e sobrevivência. Em 1930, esses ex-escravos e descendentes de identidade nacional
genuinamente brasileira
escravos lutam pela integração à nação, organizando-se em
por meio de um discurso
movimentos negros ou em movimentos nacionalistas como, por fortemente nacionalista
exemplo, o Movimento Integralista. Entre os anos de 1930 e autocongratulatório e
também de um discurso
e 1940, observa-se, ademais, o crescimento de movimentos de
fundamentalmente anti-
esquerda. A reação é imediata. Instaura-se em 1937 um governo, imigrantista.

153
História e Sociologia

mais do que nacionalista, autoritário. Inicia-se o chamado Estado-


Novo com o fim das liberdades políticas. Os intelectuais nesse
período dividem-se em várias vertentes da direita à esquerda. Muitos
destes eram ligados ao movimento modernista dos anos 1920.
É nesse contexto autoritário e nacionalista que eles iriam buscar uma
interpretação do Brasil, especialmente seu passado e suas raízes,
para compreender o presente em que eles viviam e para vislumbrar
um futuro viável ou não. O ensaísmo que nasce nesse contexto fará
perguntas ao passado a fim de propor inéditas interpretações sobre
nossa origem, nossa autonomia como nação, sobre o caráter do
povo brasileiro, sobre a identidade nacional, afastando-se de versões
canônicas da História, típicas do século XIX. Essas, de modo geral,
caracterizavam-se fundamentalmente pela utilização de registros
históricos oficiais, fontes documentais do Estado e mesmo em uma
concepção científica da História. Contrariando essa tendência, o
ensaísmo histórico-sociológico irá valorizar e utilizar um conjunto
de fontes, antes não valorizado: folclore, anúncios de jornais,
cultura material, costumes populares, arquitetura, arte, vestuário
e alimentação, hábitos, comportamentos, enfim, diferentes formas
de manifestações históricas que não se resumem aos grandes
monumentos, grandes personalidades e grandes acontecimentos.

No estudo da sua história íntima despreza-se tudo que a


história política e militar nos oferece de empolgante por
uma quase rotina de vida: mas dentro dessa rotina é que
melhor se sente o caráter de um povo. Estudando a vida
doméstica dos antepassados, sentimo-nos aos poucos nos
completar: é outro meio de procurar-se o "tempo perdido".
Outro meio de nos sentirmos nos outros – nos que viveram
antes de nós; e em cuja vida se antecipou a nossa. É um
passado que se estuda tocando em nervos; um passado
que emenda com a vida de cada um; uma aventura de
sensibilidade, não apenas um esforço de pesquisa pelos
arquivos (FREYRE, 2000, p. 219-220).

154
Aula 7 – O ensaísmo como precursor da Sociologia no Brasil Módulo

Os males do Brasil?

Ainda na segunda metade do século XIX, cientistas e intelectuais


brasileiros, ou estrangeiros de passagem pelo Brasil, acreditavam
que um país cuja mistura de raças era bastante disseminada estava
fadado à “degeneração”, conforme prognósticos elaborados pelo
conde de Gobineau e por Agassiz, dois adeptos do racialismo, um
representante do governo francês e o outro um naturalista, que se
encontravam no Brasil na década de 1860. O Brasil, mesmo vivendo
sob o regime de escravidão, era um país, já no século XIX, altamente
miscigenado. O intercurso entre brancos, índios e negros (escravos
ou libertos) já havia transformado o Brasil em uma sociedade
visivelmente misturada, a ponto de produzir um enorme desconforto
e estranhamento aos olhos dos estrangeiros que, por viverem na
Europa e nos Estados Unidos, estavam pouco familiarizados com
tamanha mistura de “raças”. Para esses visitantes, uma nação que
se prestava à desordem da mistura racial dificilmente seria capaz
de alcançar o estágio de civilização já atingido pelos países de
população “racialmente pura” da Europa.

Em resposta a esse prognóstico, duas teses são formuladas


por intelectuais brasileiros: 1) a primeira nasceu ainda no Império
e perdura até o início dos anos de 1930 e revelava-se simpática
à sentença de que o Brasil estava em vias de degenerar-se, caso
persistisse na “desordem racial”; contudo, não viam esse prognóstico
como uma sentença inevitável. Acreditavam, nesse caso, em uma
longínqua saída: se a “raça” branca era superior às demais, após
várias gerações de mistura inter-racial e com a crescente chegada em
nossos portos de imigrantes europeus brancos, muito provavelmente o
Brasil encontraria o rumo do “branqueamento”, igualando-se, então,
às nações puras e desenvolvidas, ou seja, a presença da “raça”
branca em maior número, dotada de características superiores,
necessariamente se sobreporia à “raça” negra e à indígena. Essa
vertente racial ficou conhecida como a que formulou a “ideologia
do branqueamento”, e seus principais representantes, com nítidas
pretensões científicas, eram: Nina Rodrigues, Sílvio Romero e

155
História e Sociologia

Culturalismo Oliveira Vianna; 2) a segunda tese, nascida já na República,


Abordagem que vê na por volta dos anos de 1930, buscaria, como desafio, encontrar
cultura o principal fun-
uma outra interpretação para o “problema racial” brasileiro.
damento para a expli-
cação de fenômenos O principal argumento dessa corrente era a de que a miscigenação
sociais. Nesses termos, racial, ao contrário de ser algo que condenaria e inviabilizaria
a cultura é vista como
a sociedade brasileira, seria, ao contrário, uma rara qualidade,
autônoma e indepen-
dente das determina- um diferencial positivo do povo brasileiro em relação aos povos
ções biológicas e/ou europeus e ao norte-americano. A mestiçagem transformar-se-ia, para
da natureza. O cultu- os adeptos dessa corrente, em uma característica própria da nação
ralismo é a mais clara
brasileira, um elemento poderoso para sua formação nacional e
expressão da separa-
ção entre raça e cultura. uma clara evidência de que os brasileiros eram mais flexíveis e mais
Uma raça não é porta- democráticos, pois efetivamente se misturavam. Essa vertente ficou
dora de uma cultura
conhecida como “culturalista”, em oposição à outra, conhecida
que está a ela irreme-
diavelmente associada. como “racialista”, e perdurou até os anos de 1950, quando a
Brancos, negros e índios Sociologia, ao transformar-se em uma ciência institucionalizada e
podem partilhar uma ensinada nos bancos universitários, redefine como uma ciência social
mesma cultura.
o problema do negro, da miscigenação e do racismo no Brasil, como
você verá em aula futura.

Racialismo
Definição que se pretende científica sobre as diferenças entre as raças, também chamado raciologia.
O racialismo acredita na existência das raças, ou seja, supõe que a espécie humana se encontra dividida
em raças distintas (negra, branca, asiática etc.). O racialismo realça a natureza biológica do homem.
O que é inato ao homem deve prevalecer sobre o que lhe é cultural. Para os racialistas, as várias raças
possuem valores morais próprios que diferem de raça para raça (austeridade asiática, relaxamento africano,
impulsividade europeia) e por vezes até de etnia para etnia (portugueses, russos e suecos reagem de modo
diferente a situações iguais, para dar um exemplo). O racialismo considera o indivíduo um mero reflexo do
grupo racial a que pertence. Muitas vezes o racialismo é visto como sinônimo de racismo. Pode-se afirmar
que todo racista é racialista, pois acredita por princípio na diferença entre as raças, mas nem todo racialista
é racista (ele não necessariamente julga as raças por sua superioridade ou inferioridade).

Um dos desafios dessa corrente “culturalista” seria a busca


das raízes de nossa formação, ou seja, pretendia-se reinterpretar
a História do Brasil desde a sua colonização, dando maior ênfase
aos aspectos culturais da história, buscando identificar os males
da nação não por meio de uma biologia ou de uma natureza que
não pode mudar, mas sim por meio das instituições, dos costumes

156
Aula 7 – O ensaísmo como precursor da Sociologia no Brasil Módulo

e do poder. Pare estes os males dos Brasil encontravam-se muito


mais no tipo de sociedade escravista desigual e autoritária do que
nas diferenças “raciais”. Essa corrente de pensamento promoveu
uma enorme transformação na maneira como o Brasil passa a se
perceber como nação. De uma condição inferiorizada pela tese da
degeneração do país miscigenado, o Brasil passa a ser interpretado
como um país de grande futuro, pacificado, sem conflitos de raças,
tolerante e cordial.

Ora, você talvez estranhe essa mudança de mentalidade dos


intelectuais e cientistas, mas o fato é que a tese culturalista teve um
impacto tão positivo e duradouro na mentalidade dos brasileiros
que até hoje muitos se vangloriam e se autodefinem como um povo
pacífico, amigo de todos os povos, racialmente tolerante e com
uma cultura altamente miscigenada. Provavelmente você cultiva
essa mesma impressão sobre o Brasil e os brasileiros. Por exemplo,
ainda hoje os brasileiros consideram o Brasil o país do futuro, com
uma natureza exuberante e um povo cordial. O brasileiro imagina
também que vive em uma democracia racial, na qual todas as
“raças” convivem pacificamente. Não faz muito tempo, era comum
escutar que o Brasil e os brasileiros não eram racistas e que o
problema do empobrecimento da população negra se devia às
desigualdades de classe social e não ao racismo. Entretanto, o dia-
a-dia mostra que o brasileiro, de muitas maneiras, comporta-se e
age com preconceito.

Atende aos Objetivos 1 e 3

1. Você já deve ter lido José de Alencar ou ouvido falar da união das três raças (branco, negro,
índio) como o mito fundador da identidade nacional brasileira. Como você interpretaria esse
mito? O Brasil hoje pode ser interpretado por mito? Produza uma narrativa sobre como você

157
História e Sociologia

definiria hoje esse mito, ativando exemplos que, por um lado, corroborem a atualidade do
mito e, por outro, demonstrem a sua pouca eficácia simbólica hoje no Brasil.

Comentário
Esta atividade pretende identificar em que medida o mito das três raças ainda opera de
maneira naturalizada entre os brasileiros. Trata-se de verificar até que ponto você é capaz de
formular uma argumentação crítica ao mito e relativizá-lo tendo em vista as transformações em
curso no Brasil e as denúncias cada vez maiores de racismo na sociedade brasileira.

Você verá agora como os autores de Casa-grande & senzala,


Raízes do Brasil e Formação do Brasil contemporâneo, buscam
conhecer o mundo patriarcal, o passado escravista, a estrutura social
e política por meio de tipos contrários e o sentido da colonização,
na verdade bases criativas para se pensar as especificidades da
passagem da tradição para a modernidade no Brasil.

158
Aula 7 – O ensaísmo como precursor da Sociologia no Brasil Módulo

Gilberto Freyre

O nosso primeiro ensaísta, Gilberto Freyre (1900-1987),


atento a um rico repertório de fontes alternativas às oficiais, busca
reinterpretar positivamente o Brasil por meio do patriarcalismo e do
papel decisivo do escravo na formação das nossas características
culturais mais íntimas. Hábitos, manifestações culturais, folclore,
modos de fala, sexualidade etc. são temas que povoam o universo
ensaístico de Freyre. Inspirado na antropologia cultural norte-
americana, Freyre irá produzir, com rara criatividade, uma história
da cultura que é também uma história social dos encontros de
culturas, uma história da cultura material.

[...]arquivos de família, livros de assento, atas de Câmaras,


livros de correspondência da corte, teses médicas, coleções
de jornais, de figurinos, de revistas, estatutos de colégios,
almanaques, álbuns de retratos, daguerreótipos, gravuras.
Sem desprezar, é claro, diários e livros de viajantes
estrangeiros (FREYRE, 2000, p. 748).

A sua sociologia se fundamenta mais na cultura do que na


ciência. Tal procedimento é metodologicamente inovador. Ainda
no seu tempo, a Sociologia encontra-se profundamente ocupada

159
História e Sociologia

com os temas da ciência biológica, da raça, da eugenia, e com o


darwinismo social. Gilberto Freyre irá divorciar a sua pesquisa e
reflexão sociológica das versões biológicas sobre raça. Para ele,
o que torna o Brasil interessante do ponto de vista sociológico é
que ele é um laboratório não de “raças” puras, mas de “raças
misturadas”. O português já teria trazido de Portugal a mistura, a
miscigenação (o português já era uma mistura de europeu, mouro
e judeu), e dissemina aqui esse hábito. Desde a formação histórica
do Brasil, essa predisposição à mistura teria viabilizado e facilitado
formas culturais de interação, mas que se expressavam ao mesmo
tempo por meio da violência e do afeto.

...devemos atender às circunstâncias especialíssimas que


entre nós modificaram ou atenuaram os males do sistema.
Desde logo salientamos a doçura nas relações de senhores
com escravos domésticos, talvez maior no Brasil do que em
qualquer outra parte na América (FREYRE,1987, p. 352).

Costuma dizer-se [sic] que a civilização e a sifilização


andam juntas. O Brasil, entretanto, parece ter-se sifilizado
antes de se haver civilizado. A contaminação da sífilis
em massa ocorreria nas senzalas, mas não que o negro
já viesse contaminado. Foram os senhores das casas-
grandes que contaminaram as negras das senzalas. Por
muito tempo dominou no Brasil a crença de que para
um sifilítico não há melhor depurativo que uma negrinha
virgem (FREYRE, 1987, p. 317).

Esses antagonismos culturais, ou seja, o senhor patriarcal tratar


de maneira violenta e autoritária seus escravos e agregados e ao
mesmo tempo permitir intimidades sexuais com mulheres escravas,
ou criar o filho nascido de sua relação com uma escrava, eram vistos
por Freyre como antagonismos em equilíbrio, o que resguardava,
conforme esse autor, aquela sociedade escravista de maiores
conflitos. O escravo no ensaísmo de Freyre é um ator histórico

160
Aula 7 – O ensaísmo como precursor da Sociologia no Brasil Módulo

importantíssimo para se pensar o Brasil durante a escravidão


e no período pós-escravista. A contribuição do negro para as
particularidades da cultura brasileira é, não raro, mais enfatizada
na obra de Freyre do que aquela trazida pelo português ou aquela
observada no indígena. Esta será a marca interpretativa do ensaio
histórico-sociológico que Gilberto Freyre desenvolve em seu principal
trabalho: Casa-grande & senzala, de 1933. Casa-grande é um livro
sobre os engenhos e os tipos sociais que os compunham. É uma
análise da sociedade escravocrata e das mentalidades de seus atores
históricos fundamentais: o indígena, o português e o escravo.

Há muito de otimismo na obra de Freyre, particularmente


porque ele enxergou na experiência da escravidão no Brasil um
aspecto que demarcaria a sua sociologia definitivamente no Brasil:
o fenômeno da miscigenação. Se décadas antes a miscigenação
ou mistura entre as raças era vista como o principal mal do Brasil,
uma vez que inviabilizava a civilização nos trópicos, a partir da
obra de Freyre, a mistura, a mestiçagem, transforma-se em bálsamo
para a autoestima do brasileiro. A miscigenação apontava para
a possibilidade de um novo homem, não racialmente enfermo,
mas vigoroso, portador de uma nova cultura. Para Freyre, mesmo
tendo sido violentíssima a sociedade escravista patriarcal, ainda
assim era possível celebrar o passado pelo que ele havia legado
na passagem da tradição para a modernidade: a positividade da
mistura, a relativização dos racialismos científicos e a aposta em um
futuro muito distinto da visão pessimista sobre o Brasil e os brasileiros
que, de modo geral, estava irremediavelmente ligada ao chamado
legado ou herança da escravidão.

Gilberto Freyre e uma nova interpretação


do Brasil

Não foi só de alegria a vida dos negros escravos dos


ioiôs e das iaiás brancas. Houve os que se suicidaram
comendo terra, enforcando-se, envenenando-se com ervas

161
História e Sociologia

e potagens dos mandingueiros. O banzo deu cabo de


muitos. O banzo – a saudade da África. Houve os que de
tão banzeiros ficaram lesos, idiotas. Não morreram, mas
ficaram penando (FREYRE, 1987, p. 464).

Casa-grande & senzala é na verdade um livro que representa


um grande esforço de síntese da formação da sociedade e do povo
Franz Boas brasileiro, através do português branco colonizador, do índio nativo
Antropólogo nascido
da terra e do negro escravo trazido da África. A síntese dessas três
em 1858 na Alemanha.
Doutorou-se em Física “raças” é tratada não de uma maneira apenas harmônica, como
ainda na Alemanha. se uma raça complementasse a outra. É mais complexo do que
Parte para o Canadá,
isso. Trata-se de uma interpretação das três raças pela chave ora
onde estuda os
esquimós e se encanta do conflito, ora do equilíbrio, do contraste, da exploração e da
com a antropologia. submissão. O livro representa um ponto de inflexão no pensamento
Em 1899, ingressa social brasileiro e é até hoje considerado uma obra clássica, quase
como professor na
insuperável. Você que talvez não tenha ouvido falar ou que já tenha
Universidade de
Colúmbia, em Nova ouvido falar um pouco de Gilberto Freyre deve estar se perguntando
York, e desenvolve sobre a razão de tanta importância dada à obra desse autor. Vamos
pesquisas sobre
então conhecê-lo um pouco mais.
antropologia física e
depois sobre linguís-
tica. Realizou pesquisa
etnológica sobre os Uma breve biografia
índios americanos,
sobre sua arte e
Gilberto Freyre nasceu em 15 de
folclore. Entre seus
principais trabalhos março de 1900 em Recife em uma família da
destacam-se: The Mind elite intelectual e econômica de Pernambuco.
of Primitive Man (1911) Foi criado na cidade, mas frequentava,
e General Anthropology
desde pequeno, engenhos e casas-grandes
(1942). Morre em
Nova York em 1942. de parentes e amigos. Seu pai era educador
Gilberto Freyre torna-se e juiz de Direito. Em 1917, Gilberto Freyre
seu aluno e orientando
concluiria o curso de bacharel em Ciências e Letras. Foi para os
quando desenvolve
seus estudos de Estados Unidos em 1920 e se diplomou bacharel em Artes. Concluiu
doutoramento na dois anos depois seu mestrado em Ciências Sociais na Columbia
Universidade de University, em Nova York. Nessa universidade teve como professor
Colúmbia nos anos
o antropólogo Franz Boas que lhe ensinou a distinção entre raça
de 1920.

162
Aula 7 – O ensaísmo como precursor da Sociologia no Brasil Módulo

e cultura, cuja aplicação pode ser claramente observada em sua


obra Casa-grande & senzala. Nessa obra, Freyre exercita uma
notável capacidade de comparação com outros contextos culturais,
talvez porque tenha tido a oportunidade de visitar Paris, Berlim,
Munique, Nurembergue, Londres e Oxford, alargando seu horizonte
de reflexão sociológica, histórica e antropológica. Também através
dessas viagens aperfeiçoava o foco sobre os problemas brasileiros.
Uma das questões que mais inquietavam e encantavam Freyre, era
a miscigenação. A essa questão ele praticamente dedica o conjunto
de sua obra.

A sua principal obra, Casa-grande & senzala, começa a


ser elaborada no início de 1931, e é concluída e publicada em
1933. Dando continuidade às suas investigações sobre a sociedade
patriarcal no Brasil, publica, em 1936, Sobrados e mocambos
(Tomos I e II), onde mostra a decadência do patriarcado rural
e a emergência da vida urbana através das transformações na
arquitetura, nos hábitos, nos costumes, na mentalidade e nas relações
sociais. O tema da modernidade brasileira é desdobrado em sua
obra não tão conhecida Ordem e Progresso, editada em 1959.
É na verdade uma coleção de depoimentos de brasileiros que viveram
a passagem do Império para a República e especialmente viveram
a abolição. Seu objetivo era compreender como o Brasil se fez
moderno. Essa trilogia é a melhor expressão de como Gilberto Freyre
compreendeu a passagem da tradição à modernidade; a passagem
de uma sociedade patriarcal para uma sociedade burguesa, do
trabalho escravo para o trabalho livre. A recepção da sua obra
pela crítica brasileira foi notável, e a crítica estrangeira recebeu com
entusiasmo sua obra, especialmente Casa-grande & senzala, livro
que foi traduzido para diversos idiomas. Poucos sabem, contudo,
que Gilberto Freyre não se aventurou apenas à pesquisa histórica
e sociológica e aos ensaios, mas se envolveu com a política. Em
1946 foi eleito deputado federal constituinte, bem como se elegeu
para a primeira legislatura que se inicia em 1950. Seus principais
livros são: Casa-grande & senzala (1933), Sobrados e mocambos
e Ordem e progresso (1959).

163
História e Sociologia

Atende ao Objetivo 2

2. A obra de Gilberto Freyre enfatiza fundamentalmente a miscigenação racial e seus


efeitos mais benéficos do que maléficos nas relações entre negros e brancos na sociedade
brasileira. Hoje o Brasil tem sido alvo de críticas contundentes à miscigenação, que na
verdade não teria resolvido o problema da desigualdade entre brancos e negros aqui.
Nesses termos, a crítica tem considerado as representações positivas em torno da questão
da miscigenação como um obstáculo político para a consciência política dos negros no
Brasil. Diante da valorização da miscigenação observada em Freyre e das críticas mais
recentes sobre as razões do racismo no Brasil, perguntamos: você considera que os
brasileiros são racistas? Essa é uma questão que tem confrontado o brasileiro com o seu
próprio racismo, que muitas vezes ele mesmo desconhece. Você já deve ter se perguntado
sobre onde você guarda o seu preconceito e sobre onde seus vizinhos, familiares e co-
cidadãos também guardam. Produza uma lista de situações que você vem observando no
Brasil, ou mesmo na sua cidade, por meio das quais seja possível identificar manifestações
diretas de racismo, manifestações sutis ou indiretas, e manifestações de solidariedade e
mistura raciais.
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Aula 7 – O ensaísmo como precursor da Sociologia no Brasil Módulo

Comentário
O objetivo desta atividade é levar você a pensar sobre a questão do racismo não apenas
em tese, mas por meio de observações ou situações que o confrontem com o problema. Ele
mesmo determinará, através da seleção de casos, o que ele define como racismo. O foco
sobre essa questão será importante para aulas futuras.

Sérgio Buarque de Holanda

Você provavelmente já ouviu falar de Chico Buarque de


Holanda e é capaz de cantarolar várias de suas músicas. Do pai
dele, contudo, você, um jovem dos dias de hoje, talvez nunca
tenha ouvido falar. Se isso é verdade, trataremos de apresentá-lo.
Nosso segundo ensaísta, Sérgio Buarque de Holanda, o pai do
Chico, é um dos mais relevantes sociólogos brasileiros, e escreveu
uma obra seminal, já aludida aqui, Raízes do Brasil. A novidade
da sua abordagem ensaística é que, com uma narrativa elegante e
econômica, ele irá propor um olhar histórico diferente do de Freyre,
mais pessimista em relação ao legado histórico e simbólico do

165
História e Sociologia

processo de colonização do Brasil. Em Raízes do Brasil encontramos


uma sociedade marcada por fortes contrastes, expostos em seu
livro de maneira contrastiva: trabalho e aventura; rural e urbano;
semeador e ladrilhador; iberismo e americanismo; escravidão e
capitalismo; mundo novo e velha civilização; rotina e razão abstrata;
burocracia e caudilhismo; norma impessoal e homem cordial.
É assim que ele interpreta o Brasil e os brasileiros:pela adoção de
conceitos contrários e em oposição, bem como pela maneira como
eles aparecem e interagem no processo histórico. É assim que Sérgio
Buarque de Holanda construirá a sua versão histórica do Brasil. Em
seu mais conhecido trabalho, Raízes do Brasil, de 1936, Sérgio
Buarque de Holanda constrói os “tipos ideais” (ele sofre grande
influência da sociologia de Max Weber, que você já conheceu
na Aula 5) por meio dos quais identifica criticamente no “tipo de
colonizador português” características que teriam promovido as
condições do atraso brasileiro. Para construir o tipo de colonizador
português, ele desenha também um tipo de colonizador espanhol
como mais uma expressão do seu método histórico compreensivo
baseado nos tipos ideais de Max Weber, mas aqui colocados em
contraste. Ao contrário de Freyre, ele não exibe otimismo em relação
ao Brasil que ele desvenda no passado.

Com esse método ele então identificará no processo histó-


rico brasileiro, desde a colônia, mais vícios do que virtudes, mais
problemas que soluções. Por meio da sua viva abordagem e fiel
ao método dos contrastes, Sérgio Buarque de Holanda identificará
problemas que você ainda hoje é capaz de reconhecer na sociedade
brasileira e no funcionamento das suas instituições, tanto quanto no
comportamento e nos hábitos dos brasileiros. Sérgio Buarque de
Holanda buscará comparar e distinguir a colonização portuguesa
da colonização espanhola, o tipo de colonizador português e o
colonizador espanhol. Ao contrário do nosso primeiro ensaísta,
Gilberto Freyre, será extremamente crítico quanto ao resultado
da colonização portuguesa no Brasil. Para ele, o personalismo
tradicional teria dado origem à frouxidão das instituições, à falta
de coesão social (tema de que anteriormente tratamos em Durkheim,

166
Aula 7 – O ensaísmo como precursor da Sociologia no Brasil Módulo

especificamente na Aula 4); à exaltação do prestígio pessoal; à


repulsa pelo trabalho regular; teria também dado origem a um
curioso paradoxo: à vontade de mandar e à disposição para cumprir
ordens. Outro aspecto salientado por Sérgio Buarque de Holanda
é a sua ênfase na escravidão como um agravante para a aventura,
o ócio e ausência de espírito de trabalho entre os homens livres.
Também a oposição rural e urbana ganha em seu livro um lugar de
destaque. Ele observa em sua investigação que a cidade brasileira,
cópia de outras nações, não possuiria capital humana compatível.
A população, de modo geral, era rural e exibia e era impregnada
da mentalidade do mundo rural.

O homem cordial

Sérgio Buarque de Holanda foi talvez quem melhor definiu


um termo até hoje muito usado para se referir ao brasileiro: homem
cordial. Contudo, não pelas razões que o seu significado literal
sugere. Ao contrário do que possa parecer, “homem cordial”, não
sugere bondade, educação, afeto ou generosidade. Homem cordial
em Raízes do Brasil significa alguém inadequado ao trato impessoal,
ou seja, indivíduo que sempre aciona sua marca familiar ou íntima
em relação ao seu grupo primário. O chamado “jeitinho brasileiro”
cunhado pelo antropólogo Roberto Da Matta, de que você muito
provavelmente já deve ter ouvido falar, é uma espécie de versão
de um mundo em que as pessoas se valem de seus parentescos, de
amigos influentes, de benefícios pessoais, que relutam em face da lei
para alcançar fins que deveriam ser atingidos por mérito, capacidade,
merecimento, procedimentos formais, impessoais etc.

Para ele, o português e a tradição ibérica deixaram o Brasil por


três séculos mergulhado na ignorância, na falta de empreendimentos
urbanos e educacionais e mantendo-se com uma mentalidade
basicamente rural e tradicional, evidência do atraso social existente
no Brasil, longe dos apelos típicos da modernidade.

167
História e Sociologia

Atende aos Objetivos 1, 2 e 3

3. Procure interpretar com exemplos mais recentes essa passagem de Sérgio Buarque de
Holanda em Raízes do Brasil.

Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização


será de cordialidade – daremos ao mundo o homem cordial. A lhaneza no trato,
a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos
visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida,
ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões
de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal... No "homem cordial",
a vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que
ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as
circunstâncias da existência (HOLANDA, 1988, p. 107 -108).

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Aula 7 – O ensaísmo como precursor da Sociologia no Brasil Módulo

Comentário
O objetivo dessa atividade é confrontar você com o significado mais sociológico e histórico
da categoria “homem cordial”. É muito comum que se traduza esse termo ao pé da letra,
quando para o autor o significado por trás desse termo pode revelar muito do familismo
patriarcal tão presente no Brasil até hoje, sobretudo no Nordeste.

Breve biografia

Sérgio Buarque de Holanda nasceu em São Paulo em 11 de


julho de 1902, filho de Cristóvão Buarque de Holanda e de Heloísa
Buarque de Holanda. Em 1921, mudou-se com a família para o Rio
de Janeiro e participou do movimento Modernista de 1922. Torna-se
bacharel em Direito em 1925. Foi colunista do Jornal do Brasil. Em
1929 viaja para a Europa, fixando-se em Berlim, ocasião em que
conhece a obra de Max Weber. Viajou para a Europa em 1929, como
correspondente dos Diários Associados. De volta ao Brasil, torna-se
professor-assistente na Universidade do Distrito Federal na cadeira
de História Moderna e Contemporânea em 1936. Neste mesmo
ano, Sérgio Buarque de Holanda lança sua mais importante obra,
Raízes do Brasil, considerada por muitos um dos maiores clássicos do
ensaísmo sociológico brasileiro. Em 1946 volta a São Paulo e assume
a vaga de professor de História Econômica do Brasil, na Escola de
Sociologia e Política, em substituição a Roberto Simonsen. Filia-se
em 1947 ao Partido Socialista. Muda-se para a Itália em 1952 a
convite da Universidade de Roma. Foi membro fundador do Partido
dos Trabalhadores, em 1980. Sérgio Buarque de Holanda morreu em
São Paulo, em 24 de abril de 1982. Entre suas obras mais conhecidas
estão: Raízes do Brasil (1936), Cobra de vidro (1944), Caminhos e
fronteiras (1957) e Visão do paraíso (1959).

169
História e Sociologia

Caio Prado Júnior

Paralelamente aos trabalhos de tipo mais culturalista e


sociológico, essa mesma geração de ensaístas produziria análises
econômicas relevantes. Este é o caso de nosso terceiro ensaísta,
Caio Prado Jr., autor de Formação do Brasil contemporâneo, de
1942, que busca compreender o Brasil através do materialismo
histórico, aplicando pioneiramente a teoria marxista à História do
Brasil, o que o leva a explorar as determinações econômicas da
colonização (um país escravista, de latifúndios e de monocultura,
altamente dependente das flutuações no contexto do antigo regime
colonial). Essa preocupação em compreender o Brasil por meio da
suas configurações econômicas, ou da infraestrutura, para usar uma
terminologia marxista, é claramente uma influência do materialismo
histórico de Marx, pensador que foi tratado na Aula 4. Conceitos e
categorias típicas de teoria marxista são identificadas na obra de
Caio Prado como, por exemplo: luta de classes, meios de produção,
força de trabalho, etc.

170
Aula 7 – O ensaísmo como precursor da Sociologia no Brasil Módulo

A ênfase de Caio Prado recai sobre alguns importantes aspectos


da colonização e o seu sentido, o que ora o diferencia ora o aproxima
dos outros dois ensaístas. Este autor interpreta a História do Brasil
considerando sua natureza comercial, sua dependência dos mercados
internacionais, a expansão da exportação e o papel da escravidão
como importante suporte econômico. Ao contrário de Sérgio Buarque
de Holanda e de Gilberto Freyre, Caio Prado Jr. adota a concepção
marxista da História para melhor mergulhar no universo colonial
brasileiro e compreender a interdependência do Brasil relativa a
Portugal. Entretanto, tal como Sérgio Buarque, e diferentemente de
Freyre, Caio Prado enxerga na História do Brasil sérios problemas que
irão corroborar a sua versão pessimista do legado colonial.

[...] incoerência e instabilidade no povoamento; pobreza


e miséria na economia; dissolução dos costumes; inépcia
e corrupção nos dirigentes leigos e eclesiásticos. Neste
verdadeiro descalabro, ruína em que chafurdava a colônia e
sua variegada população, o que encontramos de vitalidade,
de capacidade renovadora? (PRADO, 1942, p. 355).

Caio Prado está interessado em compreender os problemas do


atraso nacional no contexto dos anos 1930 e 1940, identificando
as continuidades estruturais desde o período colonial. É no processo
de colonização que este autor irá desvendar o sentido histórico que
pode explicar a sociedade de seu tempo. É a empresa comercial que
dará sentido à colonização do Brasil e marcará toda a trajetória
brasileira, mantendo a nação dependente dos interesses das nações
imperiais, presa ao sistema agroexportador e à economia escravista,
fornecedora de mão-de-obra para a monocultura em grandes latifúndios.
A família patriarcal configuraria uma organização social fundamental
do domínio rural que se perpetuará por muito tempo, mesmo depois da
independência do Brasil de Portugal e da abolição da escravidão. Para
Caio Prado, as estruturas do antigo regime colonial se perpetuariam
mesmo na República, expressando um deletério continuísmo sem clara
ruptura entre a tradição e a modernidade.

171
História e Sociologia

Breve biografia

Caio Prado Júnior nasceu em São Paulo em 1907. Era


historiador, escritor e editor. Era bacharel em Direito, e sua livre-
docência foi em Economia Política. Em 1933 publicou sua primeira
obra, Evolução política do Brasil, e em 1942 seu extraordinário
trabalho Formação do Brasil contemporâneo, no qual se observa
uma clara identificação com o marxismo. Tal aproximação ao
método marxista permitiria uma abordagem original à época
para as origens do Brasil e o sentido da sua colonização. Como
Freyre, a sua trajetória o encaminhou à vida política. Em 1945 é
eleito deputado estadual pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) e
deputado constituinte em 1947, tendo seu mandato cassado quando
é decretada a ilegalidade do Partido Comunista. Morre em São
Paulo em 1990. Escreveu uma extensa obra. Seus trabalhos mais
conhecidos são: Evolução política do Brasil (1933); Formação do
Brasil contemporâneo (1942) e A revolução brasileira (1966).

Atende aos Objetivos 2 e 3

4. Você deve ler diariamente nos jornais matérias sobre economia brasileira e sobre o
estágio no qual a economia brasileira hoje se encontra no cenário mundial. O setor agro-
-exportador, ou de agronegócios, a exploração de petróleo e de minério, a industrialização,
o mercado de trabalho e seus índices de empregabilidade, a valorização do real frente ao
dólar, o mercado de ações e sua valorização crescente, a desigualdade econômica e social.
Enfim, o Brasil é, hoje, do ponto de vista econômico, extremamente complexo. Produza
uma narrativa na qual você tente interpretar o Brasil considerando fundamentalmente seus
determinantes econômicos no presente para compará-los com o Brasil que você já conhece
do passado, ao menos desde o primeiro governo Vargas. Tal como Caio Prado, que retrato
do Brasil você seria capaz de desvendar priorizando as determinações econômicas?

172
Aula 7 – O ensaísmo como precursor da Sociologia no Brasil Módulo

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Comentário
Pretende-se que você possa manipular dados do cenário econômico nacional e internacional
e trazê-los à sua interpretação sobre o Brasil. Seria como se você adotasse “a mesma”
perspectiva marxista que Caio Prado adotou na sua análise sobre a colonização do Brasil
e seu sentido.

CONCLUSÃO

O objetivo de apresentar o ensaísmo sociológico brasileiro


como uma importante vertente da sociologia que se produziu no
Brasil deve-se à sua indiscutível relevância e pioneirismo no resgate
das origens da sociedade brasileira, por meio de fontes históricas
altamente inovadoras para época; de teorias e metodologias
sociológicas e filosóficas que permitiram buscar uma explicação,
um sentido, uma linha de compreensão entre o passado colonial e o
presente republicano. Com a compreensão da obra dos autores aqui
tratados, podemos agora legitimamente incluir a sociologia brasileira
no rol das sociologias do contexto europeu e norte-americano.

173
História e Sociologia

Como na sociologia desses contextos, a Sociologia que se inicia


nos anos de 1930 e 1940 no Brasil apresenta preocupações muito
semelhantes às outras sociologias, embora a trajetória histórica
que aqui se desenvolveu apresente fenômenos específicos não
identificáveis nos outros contextos. As formas de entendimento
da passagem da tradição para a modernidade, a identificação
de atores sociais do mundo tradicional e do mundo moderno; as
formas de conflito e de coesão; a escravidão, o problema racial etc.
são questões comuns às sociologias do Velho e do Novo Mundo.
Os sociólogos clássicos vistos nas Aulas 4 e 5 (Marx, Durkheim e
Weber) e a Escola de Chicago aparecem no ensaísmo brasileiro
como interlocutores fundamentais para as interpretações sobre Brasil,
sejam elas otimistas ou pessimistas, que nos foi legada por Gilberto
Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior.

Atividade Final
Atende aos Objetivos 1, 2 e 3

Ao observar cada uma das interpretações do Brasil elaboradas por nossos três ensaístas,
você mesmo poderá fazer um esforço de aproximação e de diferenciação das teses deles.
Então, como você pode explicar que autores que viveram o mesmo contexto histórico e
buscaram compreender o Brasil legaram-nos interpretações sobre os mesmos fenômenos,
mas com diagnósticos tão diferentes?

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Aula 7 – O ensaísmo como precursor da Sociologia no Brasil Módulo

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RESUMO

Você talvez tenha se dado conta, agora que chegamos ao final


desta aula, de que o ensaísmo sociológico brasileiro, representado
fundamentalmente pelos três autores aqui tratados, pôde desvendar
de maneiras criativas as características relevantes da sociedade
brasileira na sua origem e os diferentes legados deixados na
passagem da tradição para a modernidade no Brasil. Todos os
ensaístas, como você viu, dotaram a História do Brasil de alguma
característica que garantiria ao país uma especificidade, um caráter
único em relação a outros contextos e culturas.

Informações sobre a próxima aula

Na próxima aula, você vai conhecer uma outra vertente do


ensaísmo brasileiro: a dos pensadores autoritários. Assim
como os autores que você conheceu nesta aula, os autoritários
como Oliveira Viana e Azevedo Amaral estavam preocupados
com a passagem da tradição para a modernidade no Brasil
e percebiam no Estado autoritário o principal condutor de tal
passagem. Os pensadores autoritários brasileiros, como você
verá, tiveram grande importância no desenho e na legitimação do
Estado Novo de Getúlio Vargas.

175
Aula 8
O pensamento
social brasileiro II:
os pensadores
autoritários
História e Sociologia

Meta da aula

Apresentar o pensamento de dois dos principais proponentes do Estado autoritário


brasileiro nos anos 1920 e 1930, Azevedo Amaral e Oliveira Viana.

Objetivos

Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de:
1. reconhecer a proposta do Estado autoritário de Azevedo Amaral e Oliveira Viana;
2. reconhecer a proposta de organização corporativa da sociedade brasileira por eles
apresentada;
3. distinguir a diferença entre o fascismo e o autoritarismo corporativista.

Pré-requisitos

Para melhor compreender esta aula, você deve estar atento aos conteúdos da Aula 4
relativos às diferentes formas de compreensão da dinâmica social – como conflito ou
como solidariedade –, e da Aula 7, sobre outros autores do pensamento social brasileiro.

178
Aula 8 – O pensamento social brasileiro II: os pensadores autoritários Módulo 1

INTRODUÇÃO Oliveira Viana


Nascido em Saquarema,
em 1883, Oliveira
Viana estudou Ciências
Como você viu na aula passada, o Brasil viveu, nas primeiras
Sociais e Jurídicas na
décadas do século XX, um intenso debate acerca de sua natureza Faculdade de Direito
profunda, de seus dilemas e de suas potencialidades. Após um século do Rio de Janeiro.
Participou ativamente
de independência, autores como Caio Prado Jr., Sérgio Buarque
da vida política do país,
de Holanda e Gilberto Freyre tornaram-se três dos principais atuando como consultor
“intérpretes” do Brasil, buscando identificar as características da jurídico do Ministério do

formação histórica brasileira e os remédios para a superação dos Trabalho na formulação


da legislação trabalhista
males desta. Nesta aula, você vai entrar em contato com dois outros
e sindical de Getúlio
importantes “intérpretes” do Brasil, ainda que menos incensados que Vargas e foi nomeado
os três anteriores: Oliveira Viana e Azevedo Amaral. Ministro do Tribunal de
Contas da República
As razões que levaram Oliveira Viana e Azevedo Amaral a um em 1940. Membro da
quase ostracismo intelectual e político podem ser referidas à defesa que Academia Brasileira de
Letras, faleceu em 1951.
ambos fizeram do Estado autoritário como agente civilizador, construtor
da nação e indutor da modernização sócio-econômica brasileira.
Azevedo Amaral
Em um país que viveu dois longos períodos autoritários no século XX (1881-1942)
– o Estado Novo (1937-1945) e o regime militar (1964-1984) –, Médico, exerceu
marcados por violências e arbitrariedades, é compreensível que as o jornalismo por
muitos anos, sendo
ideias de pensadores autoritários tenham perdido muito da sedução
colaborador do Jornal
que, a seu tempo, tiveram. do Comércio e do
Correio da Manhã. Foi
um dos fundadores de
O Dia. Traduziu para o
Você pode ter uma ideia da vida e obra de Oliveira Viana português um dos mais
importantes pensadores
visitando o site da Casa de Oliveira Viana, hoje transfor-
corporativistas do
mada em museu: http://www.funarj.rj.gov.br/museus/ entre-guerras, o romeno
cov_01.html Manoil Manoilesco,
autor de O século
do corporativismo
Por outro lado, é importante lembrar que, no momento em que e escreveu um
dos clássicos do
Oliveira Viana e Azevedo Amaral escreviam suas obras, as ideias
pensamento autoritário
liberais – do indivíduo como matriz de organização da sociedade, de brasileiro: O Estado
mercados autorreguláveis e representação partidária dos interesses autoritário e a
realidade nacional.
– estavam sendo criticadas em diversos lugares do mundo, tanto por

179
História e Sociologia

pensadores, partidos políticos e movimentos sociais de esquerda


quanto de direita. Da União Soviética comunista à Itália fascista e
à Alemanha nazista, da Ação Francesa ao pensamento social da
Igreja Católica, do Movimento Progressista norte-americano de
princípios do século XX ao New Deal de Franklin D. Roosevelt dos
anos 1930, o liberalismo vinha sendo questionado sistematicamente
como sendo incapaz de dar respostas eficazes aos problemas de
coesão social e de instabilidade política e econômica então vividos.
A Grande Depressão que, iniciada em 1929, iria se arrastar nos
Estados Unidos até a entrada deste país na Segunda Guerra Mundial,
só vinha confirmar a crítica então feita ao liberalismo. O solo sobre
o qual os pensadores autoritários brasileiros lançaram suas idéias
revelava-se, na ocasião, propício a recebê-las.

O Estado autoritário brasileiro

Oliveira Viana e Azevedo Amaral foram dois, dentre vários


pensadores, que, durante a Primeira República (1889-1930), fizeram
críticas ao liberalismo e propuseram a construção de um regime
autoritário para solucionar os problemas do país.

Oliveira Viana identificava, na formação histórica brasileira,


as bases do atraso nacional: o passado colonial brasileiro, marcado
pela grande propriedade rural autárquica, isolada e escravista, teria
sido responsável pela construção de um padrão de sociabilidade
centrado na família e na autoridade privada do proprietário de terras,
inibidor das atividades comerciais e industriais e de associativismos
que escapassem à família e às relações de dependência pessoal
face ao patriarca. Ademais, o espírito de clã e a autoridade do
chefe proprietário de terras teriam protegido o homem rural de qual-
quer autoridade externa, originando o fenômeno do caudilhismo,
do personalismo e da fragmentação das autoridades. Em suma, o
ruralismo brasileiro teria produzido um excesso de autoridade privada
e uma profunda fragilidade da autoridade pública, colocando em
xeque, inclusive, a unidade territorial.

180
Aula 8 – O pensamento social brasileiro II: os pensadores autoritários Módulo 1

A Constituição republicana de 1891 revelava-se inadequada


para lidar com a realidade brasileira. Inspirada em modelos estran-
geiros – nas experiências inglesa e norte-americana –, a Constituição,
com seu federalismo, seus partidos políticos e órgãos representativos,
representava uma ficção legal, em profundo desacordo com o país real
e suas oligarquias reprodutoras dos velhos padrões de sociabilidade.
A dicotomia entre o país legal e o país real seria tema corrente do
pensamento autoritário, por enfatizar o divórcio entre uma sociedade
marcada pelo poder privado e as instituições liberais. Em outras pala-
vras, ao invés de expressar o interesse público, as instituições repre-
sentativas liberais, como os partidos e o Congresso, nada mais
fariam do que representar interesses particularistas das oligarquias,
em detrimento do bem comum.

Azevedo Amaral, ao criticar as instituições políticas da Primeira


República, reafirmava o divórcio entre estas e a realidade nacional.
Para ele, tais instituições teriam adulterado permanentemente a re-
presentação dos interesses da sociedade brasileira, excluindo os
representantes das forças econômicas e os elementos ligados ao mun-
do do trabalho e privilegiando os interesses ligados à lavoura.

Diante da incapacidade da Primeira República em romper


com o privatismo oligárquico, em construir a nação e modernizar
o país, o Estado autoritário surgia como o elemento externo à ló-
gica institucional representativa, capaz de romper as estruturas tra-
dicionais e alavancar o novo, o urbano-industrial. Portanto, o Estado
autoritário surgia não para oprimir a sociedade, mas para libertá-la
do jugo do caudilhismo e do artificialismo jurídico do liberalismo e
para conduzi-la à modernidade.

Nas condições brasileiras, portanto, a modernização só pode-


ria ser construída de cima para baixo, do Estado para a sociedade.
Oliveira Viana era muito claro a esse respeito: o poder deveria
se concentrar nas mãos do presidente, representante de um Poder
Executivo forte, identificado com a nação, abandonando assim
a ficção legal do legislativo como órgão de representação dos
interesses. O Estado Novo (1937-1945) seria percebido, por ambos,

181
História e Sociologia

como a grande oportunidade de consolidação do poder central e,


não por acaso, Oliveira Viana seria não só defensor de tal regime,
como também um funcionário seu.

Por outro lado, sendo a modernização entendida como cons-


trução de uma sociedade urbano-industrial, a necessidade do Estado
autoritário derivava também da necessidade de novas formas de
representação dos interesses e de controle social das massas. Você já
viu, na Aula 4, que Marx e Durkheim propuseram duas formas básicas
de compreender a dinâmica social, a primeira centrada na ideia de
conflito, a segunda, nas ideias de solidariedade e integração. Os pen-
sadores autoritários brasileiros associavam-se claramente à segunda
visão e, diante do surgimento da classe trabalhadora industrial ori-
unda do processo de construção de uma ordem urbano-industrial,
sua preocupação básica era a de construir formas modernas de
solidariedade social que, incorporando as massas, evitasse a luta
de classes. A forma básica de representação dos interesses e de
integração e solidariedade social que os pensadores autoritários
propunham era a organização corporativa.

O corporativismo brasileiro

A ideia corporativa não era nova, remontando aos primeiros


tempos da Revolução Industrial. Diante do espetáculo de conflitos
sociais que acompanhou o processo de industrialização e urbani-
zação, a solução corporativa de uma sociedade harmônica e
não-conflituosa seduziu alguns dos primeiros sociólogos, inclusive
Durkheim, e a Igreja Católica. Na Encíclica Rerum Novarum, de
1892, o Papa Leão XIII defendia abertamente a organização da
economia em corporações, de modo a aproximar as classes e, segun-
do o espírito cristão, criar um clima de harmonia entre elas.

Na implantação mesma do projeto corporativo, os órgãos


do Estado Novo, como a revista Cultura Política e os Boletins do
Ministério do Trabalho, associavam, continuamente, o corporativismo
brasileiro ao cristianismo e à Encíclica Rerum Novarum. A proposta

182
Aula 8 – O pensamento social brasileiro II: os pensadores autoritários Módulo 1

corporativa de organização dos interesses afirmava que a sociedade


deveria ser organizada tendo por base as funções do mundo do
trabalho. O Estado corporativo deveria agrupar os indivíduos
em categorias profissionais por sindicatos e, a seguir, reunir os
sindicatos em uma ordem social hierárquica e harmoniosa. Através
da estrutura sindical corporativa, os trabalhadores, até então de
fato excluídos da falsa democracia liberal, seriam incorporados à
verdadeira democracia, de cunho social. No Quadro 8.1, você
terá uma ideia dos elementos constitutivos básicos da ordem sindical
corporativa proposta pelos pensadores autoritários.

Quadro 8.1: Elementos da organização sindical corporativa


Característica Finalidade
Sindicatos reconhecidos pelo Estado O sindicato deveria exercer funções
delegadas do poder público, como
promover a harmonia social e, para
tal, deveria ser reconhecido e con-
trolado pelo Estado.
Imposto sindical Para ter condições de exercer suas
funções, os sindicatos deveriam ter
estrutura e recursos próprios.
Monopólio da representação e unici- De modo a exercer suas funções,
dade sindical apenas um sindicato por categoria
deveria existir em uma determinada
base territorial, representando todos
os trabalhadores daquela categoria.

Atende ao Objetivo 2

1. Faça uma pesquisa na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e identifique os elementos
que podem ser associados à estrutura sindical corporativa. Enumere pelo menos três
artigos e diga por que, na sua opinião, eles podem ser associados à estrutura sindical
corporativa.

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História e Sociologia

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Comentário
Você pode ter enumerado os seguintes artigos.

Art. 514. – São deveres dos Sindicatos:

a. colaborar com os poderes públicos no desenvolvimento da solidariedade social.

Justificativa: o sindicato como promotor da harmonia social.

Art. 516 – Não será reconhecido mais de um Sindicato representativo da mesma categoria
econômica ou profissional, ou profissão liberal, em uma dada base territorial.

Justificativa: unicidadade sindical e monopólio da representação da categoria.

Art. 517 § 1º – O Ministro do Trabalho outorgará e delimitará a base territorial do


Sindicato.

Justificativa: é o Estado quem determina a jurisdição do sindicato.

No entanto, a obra estado-novista deixaria muito a desejar


aos pensadores autoritários brasileiros. Muito embora os aspectos
referidos à centralização política tenham sido implementados com o
Estado Novo, a organização corporativa dos interesses, consolidada
pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) só foi implementada,
como aponta Ângela de Castro Gomes, na fase de liberalização

184
Aula 8 – O pensamento social brasileiro II: os pensadores autoritários Módulo 1

do regime, a partir de 1942, como instrumento de mobilização de


apoio político a Vargas. Assim, a estrutura sindical corporativa, ainda
hoje existente, passou a conviver com regimes políticos de diferentes
naturezas: a Constituição de 1946, que liberalizou o sistema político,
com o retorno dos partidos e a divisão de poderes entre Legislativo,
Executivo e Judiciário; o regime militar de 1964 –1984, com seus
Atos Institucionais e a imposição do bipartidarismo; a Constituição de
1988, que inaugurou um novo período de liberdades públicas e civis.
Portanto, aquilo que era central para os pensadores autoritários, a
articulação entre Estado autoritário e organização corporativa dos
interesses, não chegou a se consolidar durante o Estado Novo.

Atende ao Objetivo 1

2. Leia a seguinte passagem de Oliveira Viana:

O que o nosso povo-massa pede aos governos – eleitos ou não eleitos, pouco importa
– é que eles não o inquietem no seu viver particular. Equivale a dizer: o que interessa
ao nosso povo-massa é a liberdade civil e individual. (...)

Garantir a liberdade civil ao povo massa: eis o problema central da organização


democrática no Brasil. Temo-nos, entretanto, descurado disso, temos relegado este
problema para o segundo plano, preocupados, como vivemos – à maneira dos ingleses
– como a liberdade política (VIANA, 1987, p. 149-150).

Elabore um texto de 10 linhas refletindo sobre:


1. distinção entre liberdade civil e liberdade política;
2. o artificialismo das instituições brasileiras.

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História e Sociologia

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Comentário
Neste trecho, pode ser percebida a distinção que Oliveira Viana faz entre o seu autoritário,
que preserva as liberdades civis, e o totalitarismo europeu, que incorpora a esfera privada
ao domínio do Estado. Por outro lado, o artificialismo das instituições políticas brasileiras pode
ser percebido na associação entre a liberdade política e a experiência inglesa.

CONCLUSÃO

Um problema historiográfico se impõe ao final desta aula.


Desde que, no fim do Estado Novo, o jornal Correio da Manhã
publicou uma série de artigos denunciando que a Carta de 1937
teria sido inspirada pela Carta del Lavoro de Benito Mussolini, a
associação entre a legislação sindical do Estado Novo e o fascismo
italiano tem sido uma constante na literatura. Mais ainda: dada a
longevidade da estrutura corporativa, ainda hoje vigente, ela teria
se tornado um elemento impeditivo à construção de uma ordem
efetivamente democrática no Brasil. Mas seria o corporativismo bra-
sileiro inspirado, diretamente, pelos fascismos europeus do entre-
guerras? Na visão de seus próprios proponentes, não.

Como você já viu, o corporativismo brasileiro reclamava suas


raízes na doutrina social da Igreja Católica, e não no fascismo
italiano. Azevedo Amaral é bastante claro quanto à sua rejeição

186
Aula 8 – O pensamento social brasileiro II: os pensadores autoritários Módulo 1

ao fascismo como modelo inspirador de suas ideias corporativas,


afirmando que o fascismo representava uma perversão das ideias
corporativas. E aí está a chave para a distinção entre os pensadores
autoritários brasileiros e os fascismos de Mussolini e Hitler. Enquanto
estes propunham um Estado totalitário, Oliveira Viana e Azevedo
Amaral propunham um estado autoritário: ao passo que o Estado
totalitário invadiria a esfera privada, anulando as individualidades
e submetendo os indivíduos à lógica da esfera pública dominada
pelo Estado, o Estado autoritário deixaria espaço à vida privada
dos indivíduos, respeitaria suas individualidades e, mesmo, seus
direitos civis, apenas atuando na esfera pública. No fascismo, as
corporações serviriam como instrumento do Estado totalitário; no
Estado autoritário, como formas de incorporação social, respeitadas
as liberdades civis dos indivíduos.

Ainda assim, o corporativismo brasileiro, associado que foi


ao autoritarismo de Vargas, no momento dos fascismos europeus,
acabou por associar o corporativismo ao fascismo.

Em recente trabalho, Arion Romita afirma que a Justiça


do Trabalho seria um elemento constitutivo da longa manus do
Estado autoritário/corporativo, de inspiração mussoliniana, sobre
a administração do conflito distributivo. Para Arion Romita, a
matriz ideológica da Justiça do Trabalho seria o corporativismo
fascista italiano, no qual o Poder Executivo usurpa prerrogativas do
Legislativo e passa a produzir, ele próprio, as normas de regulação
dos conflitos sociais. No entanto, a defesa por Oliveira Vianna do
poder normativo da Justiça do Trabalho, quando das discussões
a respeito da implementação desta, tinha por base não a Carta
del Lavoro de Mussolini, tampouco os escritos teóricos do fascismo
italiano, mas a doutrina anglo-americana de delegação de poderes,
em que o Poder Legislativo delega, ao Executivo, soberania para
criar normas. Por outro lado, a alocação da Justiça do Trabalho no
Poder Executivo, e não como um ramo da justiça comum, não estava
prevista na Constituição de 1937, fascista no dizer de Romita, mas
no artigo 122 da Constituição de 1934, que propunha sua criação,
inclusive com representação classista.

187
História e Sociologia

Como visto, Ângela de Castro Gomes afirma que a estrutura


sindical corporativa brasileira só começou a ser efetivamente implantada
a partir de 1942, quando o regime buscava ampliar sua base de apoio
junto aos trabalhadores. Nesse momento, o país já havia se alinhado
efetivamente com os Aliados e, portanto, não poderia justificar sua
base de apoio no fascismo. Por outro lado, vários elementos caros ao
corporativismo fascista, como a Câmara Corporativa, com funções
legislativas, jamais foram aventados no Brasil.

Portanto, a estrutura sindical corporativa brasileira, tanto anos


após sua criação, continua a ser alvo de debates que, longe de
simplesmente acadêmicos, encerram uma dimensão política.

Atividade Final

Atende ao Objetivo 3

Em seu prefácio à obra de Mihail Manoilescu, O século do corporativismo, Azevedo Amaral


afirma que o fascismo pervertia as instituições corporativas, tornando-as instrumentos de um
Estado absorvente e onipotente. Em sua visão, qual a razão de tal colocação de Azevedo
Amaral? Escreva um texto de 10 linhas a respeito.
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188
Aula 8 – O pensamento social brasileiro II: os pensadores autoritários Módulo 1

Comentário
Na aula, você viu que Azevedo Amaral defendia um Estado autoritário, e não um Estado
totalitário. Portanto, na visão do autor, o corporativismo deveria ser o corolário de um
Estado autoritário, que permitisse liberdades civis aos seus cidadãos, sendo, portanto,
pervertido por um Estado totalitário, que elimina a esfera privada, tornando-se portanto
absorvente e onipotente.

RESUMO

O pensamento autoritário brasileiro das primeiras décadas


do século XX identificava, na trajetória histórica brasileira, algumas
características da sociedade brasileira: a insolidariedade, a frag-
mentação das autoridades, o privatismo, o caudilhismo... Associados
às instituições políticas da Primeira República, que opunham um
país legal ao pais real, tais elementos acabavam por se tornar
impeditivos para a modernização do país. De modo a romper
com tal impasse, os pensadores autoritários propunham um duplo
receituário: a constituição de um Estado autoritário e a organização
corporativa dos interesses, de modo a construir as bases de uma
nova solidariedade social.

Informação sobre a próxima aula

Na próxima aula, você verá a institucionalização do pensamento


sociológico brasileiro, com a criação da Escola Paulista de Sociologia.

189
Aula 9
A Sociologia in no
Brasil dos anos de
1950
História e Sociologia

Meta da aula

Apresentar a diferença entre a sociologia produzida nos anos 1950 do ensaísmo


sociológico dos anos 1930-40, através das obras de três importantes sociólogos:
Guerreiro Ramos, Costa Pinto e Florestan Fernandes. Trata-se de apresentar as contribuições
desses autores para a institucionalização da Sociologia como ciência da realidade.

Objetivos

Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de:
1. identificar os temas mais recorrentes da Sociologia dos anos 1950 e seus
principais autores;
2. reconhecer quais eram os desafios da Sociologia para a compreensão dos
problemas sociais brasileiros e de que forma ela propõe novas interpretações sobre
a causa desses problemas e as possibilidades de intervenção política para a sua
superação;
3. compreender os dilemas entre a ciência e a militância política: o sociólogo como
cientista e o sociólogo como reformador social e político.

Pré-requisitos

Você compreenderá melhor essa aula se articulá-la com as Aulas 4, 6, 7 e 8. Marx,


a Escola de Chicago e o ensaísmo sociológico, e os autoritários colaboram para a
compreensão da Sociologia em sua versão mais científica e institucionalizada no Brasil
dos anos 1950.

192
Aula 9 – A Sociologia in no Brasil dos anos de 1950 Módulo 2

INTRODUÇÃO

Você agora está um pouco mais familiarizado com as


questões que desafiaram Gilberto Freyre, Sérgio Buarque, Caio
Prado Júnior, Oliveira Vianna e Azevedo Amaral a produzirem obras
interpretativas sobre o Brasil em diálogo direto com a pesquisa
sociológica que se praticava no velho mundo. Compreendeu que o
ensaísmo sociológico, tal como visto na aula passada, postulava que
a melhor maneira de conhecer o Brasil era através da interpretação
do passado e da forma como este iluminava e dava sentido tanto
ao presente quanto ao futuro. A história, desde a colonização,
como palco de interpretações dos eventos no tempo e como lugar
de formação das características culturais brasileiras, sejam elas
positivas ou negativas, revelava-se ora plena de ambiguidades, ora
de contradições, ora de continuidades. Você já viu que os temas
da escravidão, da influência da cultura e do ethos ibérico, da Ethos
colonização, do patriarcalismo, da raça e das instituições políticas Palavra de origem
grega, significa:
brasileiras constituíam-se em temáticas relevantes para esses autores.
“acostumado ao lugar”.
Esse foi um primeiro passo para que o Brasil fosse efetivamente Costume, hábito,
tratado nos termos de uma sociologia, embora ainda não fosse caráter, manifestação
de caráter moral;
ela institucionalizada, sequer completamente integrada às poucas
espírito característico,
universidades e institutos universitários do país. sentimento de um povo
ou comunidade.
Nesta aula, você verá que a “sociologia pioneira” de que
falávamos seria, uma década depois, objeto de críticas contundentes
por parte da “nova sociologia” que emerge nos anos 1950, e passa
a se definir como ciência, ciência da realidade, com pressupostos
conceituais, teóricos e metodológicos próprios. Ela, a nova
Sociologia, buscará se afirmar como uma disciplina científica não
Pesquisa
mais confundida com outras disciplinas. Ou seja, uma disciplina com
empírica
fronteiras bem delimitadas. Era de seu interesse possuir um estatuto Pesquisa experi-
científico próprio demarcando aqueles fenômenos que deveriam mental, baseada na
experiência sensível do
ser objeto de investigação sociológica e de pesquisa empírica.
mundo real e em fatos
Nesses termos, a crítica ao ensaísmo sociológico e ao pensamento e eventos produzidos
autoritário do anos 1930 e 40 dirigia-se especialmente aos temas nesse mundo.

193
História e Sociologia

das relações raciais, da colonização, das instituições brasileiras,


do corporativismo, do Estado autoritário, do liberalismo e assuntos
correlatos, e a forma como eles foram abordados. Tratava-se
de realçar, então, uma já percebida divisão entre estudos cujo
interesse sociológico dissolvia-se em conclusões de natureza
ensaística, culturalista, ou “proto-científicas”, e estudos que se
apresentavam com a marca dos “rigorosamente” sociológicos.
O rigor, explicavam seus adeptos, resultava basicamente das seguintes
exigências: institucionalização da disciplina sociológica (inclusão
dessa disciplina nos currículos acadêmicos), profissionalização do
trabalho do sociólogo (oportunidade de desenvolver pesquisas
com métodos e técnicas específicas para melhor orientar, por
exemplo, os setores médios e populares da nova ordem urbano-
industrial) e direcionamento dos sociólogos para estudos de
natureza monográfica, ou seja, estudo sobre temas cada vez mais
delimitados e específicos. Gilberto Freyre, no prefácio de 1954
ao livro de René Ribeiro, Religião e Relações Raciais, ressente-se
claramente dessa nova geração cujos estudos, com raras exceções,
não levariam em conta, ou se recusariam a reconhecer, o ineditismo,
a originalidade e as contribuições que as gerações precedentes,
através de seus estudos de interesse sociológico, teriam legado aos
“novos sociólogos”.

Mesmo se consideramos uma ruptura, um ponto de inflexão,


entre a sociologia “pioneira” – aquela de Freyre, Buarque de
Holanda e Caio Prado Jr., também de Oliveira Vianna e Azevedo
Amaral – e a “nova sociologia”, de Florestan Fernandes, Guerreiro
Ramos, Costa Pinto, Oracy Nogueira e René Ribeiro, veremos que
a última abriga diferenças bastante significativas quando se trata
de comparar seus autores. Nem todos os sociólogos presentes nessa
nova fase partilham as mesmas preocupações. Como a Sociologia
é uma ciência do social em busca de legitimidade científica e
acadêmica, você verá que dentro da “nova sociologia” co-habitam,
de maneira não raro tensa, sociólogos de várias tendências que,
de modo geral, lecionavam em universidades e institutos. Em São
Paulo, a Sociologia inicia a sua trajetória acadêmica na Escola

194
Aula 9 – A Sociologia in no Brasil dos anos de 1950 Módulo 2

Livre de Sociologia e Política, criada em 1933, e também na


Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras da Universidade de São
Paulo, criada em 1934. No Rio, a nova Sociologia se desenvolve
na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil e no
Instituto Superior de Estudos Brasileiros. Entretanto, há diferenças
entre o papel da Sociologia em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Em São Paulo a Sociologia se institucionaliza na universidade
orientada pelos desafios da modernização em curso naquele
estado, ou seja, na consolidação de um mercado cujos principais
atores sociais são: o empresariado e o operariado. O mundo do
trabalho seria o laboratório por excelência dessa sociologia. No Rio
de Janeiro, à época capital federal, observa-se uma preocupação
mais enfática com o tema do dualismo entre o atrasado e o moderno,
pelo qual se elege o Estado como protagonista das mudanças
sociais e como importante agente para implementar as diretrizes
da modernização no país. Essa cultura política associada ao Estado
inicia-se com o Estado Novo, a exemplo da sociologia produzida
por Oliveira Vianna, nessa fase longe das universidades, e depois
através de intelectuais que ocupavam cargos no Estado. Contudo,
tanto no Rio, quanto em São Paulo, essa nova sociologia se dedicará
a compreender cientificamente o Brasil, país em franco processo de
modernização e industrialização.

A “nova sociologia” seria, nesse sentido, uma observadora


privilegiada de um “país-laboratório” que, ao final do Estado Novo,
experimentava uma grande transformação. Um parque industrial
em pleno crescimento, desenvolvimento urbano, democratização e
novos atores sociais atuando no processo de modernização. Diante
desse cenário, em pleno processo de transformação, observa-se a
afirmação da Sociologia como uma importante ciência, localizada
cada vez mais nas universidades, e pronta a desvendar esse Brasil,
seja em suas fragilidades e desigualdades, seja no reconhecimento
de suas potencialidades, elaborando estudos de fenômenos
específicos, para compor grandes sínteses compreensivas capazes
de apontar o verdadeiro alvo para o qual a sociedade brasileira
deveria se dirigir.

195
História e Sociologia

“A verdadeira vocação da sociologia encontra-se no seu pa-


pel preditivo e de direção dos rumos da mudança social, pois ela
deve estudar a transição para o futuro da ordem social que a gerou”
(COSTA PINTO, 1973, p. 37).

A pesquisa da Unesco e a sociologia


brasileira

No início dos anos 1950, o programa de pesquisas sobre


relações raciais no Brasil patrocinado pela Organização das Nações
Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) estimulou
sociólogos e antropólogos brasileiros a produzirem diagnósticos
sobre as relações raciais no Brasil. Havia uma expectativa
internacional de que o Brasil seria um excelente laboratório de
relações raciais harmônicas, ou seja, relações não-racistas, diferente
de outros contextos que haviam sido (a Alemanha nazista) ou eram
palco de vigoroso racismo (Estados Unidos, África do Sul, etc.).
A surpresa é que várias das pesquisas, especialmente a de Florestan
Fernandes & Roger Bastide, sobre o negro em São Paulo, e a de
Costa Pinto, sobre o negro no Rio de Janeiro, mostraram que o
Brasil não era nem um paraíso racial, tampouco uma democracia
racial. Para Fernandes, as relações raciais no Brasil resultavam
de uma história de escravidão que teria prejudicado os negros
em sua integração à sociedade no período após a abolição; e,
para Costa Pinto, a ideologia da “democracia racial”, reflexo de
uma sociedade tradicional e patriarcal, deveria ser substituída
por uma análise sociológica cujo enfoque era a correlação entre
raça e classe social. As pesquisas patrocinadas pela Unesco sobre
relações raciais no Brasil, revelaram-se um precioso laboratório
para a afirmação científica e empírica da “nova sociologia”,
agora preocupada com os critérios internacionais de rigor científico.
O programa de pesquisa da Unesco sobre relações raciais no Brasil
reuniu uma geração de sociólogos brasileiros que, não obstante suas
diferenciações regionais e conclusões sobre o problema do negro
no Brasil, pareciam partilhar alguns pressupostos metodológicos,

196
Aula 9 – A Sociologia in no Brasil dos anos de 1950 Módulo 2

em maior grau, com os estudos da sociologia norte-americana.


É visível a sedução que a produção sociológica norte-americana das
décadas de 1940-50 exerce sobre os novos sociólogos brasileiros,
especialmente quanto aos temas do preconceito, do estigma e das
relações raciais. A Escola de Chicago (Aula 6) também influenciaria
as pesquisas desenvolvidas no Brasil, dando origem a um tipo de
produção que enfatizaria a observação sistemática das mesmas
questões em diferentes contextos regionais. O problema do negro,
por exemplo, seria observado em diferentes cidades brasileiras
para que, ao final, algumas comparações pudessem ser realizadas.
A teoria da modernização, que você verá em futura aula, teve também
notável impacto sobre essa geração, sobretudo nas questões relativas
aos contrastes entre arcaísmos agrários e modernização urbana
e industrial, aos aspectos duais da sociedade brasileira, à ênfase
sobre a ideia de reforma social e de transição para o moderno.
Se a pretensão inicial da pesquisa da Unesco era identificar no Brasil
uma possível convivência harmônica entre diferentes raças, bem ao
espírito da Declaração dos Direitos Humanos, especialmente após
a Segunda Guerra Mundial, seu resultado reservaria um cenário
menos otimista. Ao contrário de encontrar no exemplo brasileiro
os fundamentos da tão idealizada democracia racial, essa nova
sociologia nos fez ver a roupagem enganosa e acomodada com que
se revestia a desigual experiência das relações raciais no Brasil.

Atende ao Objetivo 2

1. Com base no parágrafo anterior, como você definiria a chamada “democracia racial”?
Você acha que o Brasil é uma democracia racial? Por quê? Como você observa o problema
do racismo no Brasil?

197
História e Sociologia

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Comentário
A democracia racial tem sido um tema evocado no Brasil desde 1930. Hoje ela é vista, por
um lado, como uma ideologia que tenta escamotear o problema da desigualdade racial no
país e do preconceito e, por outro, como uma saudável crença, um desejo, um alvo que todo
brasileiro almeja atingir.

A influência da sociologia norte-


americana

Você já deve estar consciente de que o rigor científico


é objetivo fundamental de afirmação desta “nova sociologia”.
A influência da metodologia norte-americana teria sido crucial para
fundamentar essa nova fase dos estudos sociológicos brasileiros.
As contribuições de Donald Pierson, com a marca da Escola
de Chicago, que você já conhece, de Melville Herskovits e
Charles Wagley, estudiosos da cultura africana, para citar apenas
alguns, teriam enorme importância na promoção e socialização das
ciências sociais no Brasil. Particularmente em relação ao estudo
sobre relações raciais, a nova geração de sociólogos brasileiros
orientaria suas análises utilizando-se recorrentemente de Robert
Park, Franklin Frasier, Gunnar Myrdal, entre outros. Os temas
anteriormente tornados dignos por gerações precedentes, como,
por exemplo, estudos de escravidão ou estudos raciais, seriam pela

198
Aula 9 – A Sociologia in no Brasil dos anos de 1950 Módulo 2

nova sociologia amplamente reconsiderados à luz de fenômenos


como modernização, urbanização, estratificação social, com
considerações morais típicas da sociologia do pós-guerra.

Donald Pierson
Nasceu em 1900 em Indianápolis nos Estado Unidos. Era Ph.D em
Antropologia pela Universidade de Chicago, foi professor convidado, entre os
anos de 1939 e 1959, da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo.
Estudou fundamentalmente o tema do preconceito de raça no Brasil. Morreu
em 1995.

Melville Herskovits
Nasceu em 1895 em Ohio, nos EUA, e morreu em Illinois em 1963.
Antropólogo Americano formado na Universidade de Columbia em Nova
York, onde foi aluno de Franz Boas (o mesmo que orientou Gilberto Freyre,
como você viu na aula 7). Introduziu na academia norte-americana os
estudos sobre a cultura africana e sua influência sobre os afro-americanos.
Esteve no Brasil em 1941 fazendo pesquisa de campo sobre a cultura
africana no Brasil.

Charles Wagley
Nasceu em 1913 no Texas e morreu em 1991 na Flórida. Antropólogo, Doutor
pela Universidade de Columbia, aluno de Franz Boas. Fez pesquisa de campo
no Brasil nos anos 1940 sobre os índios Tapirape e sobre a Amazônia.

Franklin Frasier
Nasceu em 1894 em Maryland, nos EUA, e morreu em 1962 em
Washington D.C. Sociólogo negro, dedicou-se nos anos de 1940 a estudar
a família negra desde os tempos da escravidão. No início dos anos 1940,
Frasier veio ao Brasil para realizar estudos comparados entre os negros
brasileiros e norte-americanos. Em 1957 escreveu sua grande obra Black
Bourgeoise (Burguesia Negra).

Gunnar Myrdal
Nasceu em 1898 na Suécia e morreu em 1987. Doutor em Economia,
foi convidado pela Carnegie Corporation para estudar os problemas do
negros nos Estados Unidos. Desse estudo resultou seu importante trabalho,
An American dilemma: the negro problem and the modern democracy
(O dilema americano: o problema negro e a moderna democracia).

199
História e Sociologia

Voltando às influências da sociologia norte-americana,


pode-se dizer que a “americanização” em pauta na sociologia
brasileira representaria, ao final da década de 1940 e início de
1950, um ponto de inflexão entre uma já criticada tradição de
estudos ensaísticos que, segundo os sociólogos rigoristas, seria
de orientação culturalista, marcada por ambiguidades e mistu-
ras de várias disciplinas (filosofia, história, literatura, política), e
uma nova sociologia, cujos estudos apresentariam outros objetivos:
utilização de novas técnicas e métodos de pesquisa, conhecimento
mais delimitado e, portanto, mais aprofundado dos problemas
brasileiros e uma clara associação entre ciência e modernização.
Os expoentes dessa nova sociologia seriam: Florestan Fernandes,
Costa Pinto e Guerreiro Ramos.

Os temas da nova sociologia

Você já deve ter se dado conta que a “nova sociologia” do


contexto dos anos 1950, nasce sob o signo da crítica. Ela busca
afirmar o seu valor, como disciplina acadêmica, em contraposição ao
ensaísmo sociológico dos anos 1930 e 40, visto como culturalista e
híbrido. Essa geração de novos sociólogos brasileiros, não obstante
as diferenças do contexto regional a partir do qual e sobre o qual
eles falam (alguns do Rio de Janeiro, outros de São Paulo, Bahia
e Recife), buscava dar um caráter universal às suas pesquisas
regionais. Os temas tratados no Brasil deveriam ser comunicados
em uma linguagem própria à Sociologia como ciência. Os diálogos
sobre as pesquisas e suas conclusões não deveriam se limitar
apenas aos brasileiros, mas deveriam ser de interesse universal.
Nesse aspecto, a nova sociologia se aproximaria, por exemplo,
dos pressupostos metodológicos da sociologia norte-americana.
Alguns temas valorizados aqui foram desenvolvidos sob influência
da Escola de Chicago (temas como relações raciais, pesquisas de
comunidade, urbanização e industrialização, conflito social, moderni-
dade, desenvolvimento, planejamento, mudança social, nacionalismo,
imigração, estratificação social, universalismo, papel do sociólogo).

200
Aula 9 – A Sociologia in no Brasil dos anos de 1950 Módulo 2

A teoria da modernização, que você verá na próxima aula, teve


também notável impacto sobre essa geração de sociólogos,
especialmente por abordar os contrastes entre o atraso do mundo
agrário e a modernidade do mundo urbano e o seu impacto na
correlação de forças entre diferentes regiões do mundo.

Atende ao Objetivo 1

2. Você viu na Aula 6, sobre a Escola de Chicago, que uma nova sociologia no contexto
da América abrigou uma série de temas próprios ao contexto norte-americano: grandes
cidades, imigrantes, negros, guetos, criminalidade etc. A sociologia no Brasil dos anos 1950
também se envolveria com temas próximos aos tratados na Escola de Chicago. Compare
esta aula com a aula sobre a Escola de Chicago e arrisque algumas hipóteses sobre o
que há de comum e o que há de diferente entre os Estados Unidos e o Brasil. Você pode
assinalar aspectos históricos, culturais, políticos e sociais, do passado e do presente.
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Comentário
Essa atividade tem o objetivo de estimular a sua capacidade e criatividade para comparações entre
diferentes contextos nacionais e culturais. É uma boa maneira de você identificar tanto no passado
(comparando por exemplo a escravidão lá e aqui), quanto no presente (o problema da violência,
ou mesmo a música ou o futebol), o que nos une e o que nos separa dos Estados Unidos.

201
História e Sociologia

Cientista ou cidadão? O debate sobre o


papel do sociólogo no Brasil

(...) o sociólogo, como homem da sociedade de seu tempo,


não pode omitir-se diante do dever de pôr os conhecimentos
sociológicos a serviço das tendências de reconstrução
social. Numa fase de desintegração e mudança, não
nos compete, apenas, produzir conhecimentos sobre a
situação histórico-social. Impõe-se que digamos também
como utilizaríamos tais conhecimentos, se nos fosse
dado tomar parte ativa na construção do nosso mundo
de amanhã (FERNANDES, F. A sociologia numa era de
revolução social. Rio de Janeiro, Zahar, 1976).

Se você voltar sua atenção para as aulas passadas, verá


que a produção da Sociologia clássica associada a Karl Marx não
se realizou nos bancos escolares das universidades (Marx não conse-
guiu entrar na universidade alemã sob administração prussiana). Marx
não era um professor ou pesquisador universitário que do “escritório”
da universidade desenvolvia brilhantes teses sobre revolução, classe
operária, luta de classes, socialismo etc. Através de seu engajamento
político nas questões sociais do seu tempo e utilizando-se da im-
prensa, brinda-nos com uma produção também sociológica sobre
a modernidade, as injustiças do mundo do trabalho, os limites do
estado liberal e os caminhos para a revolução socialista. Em Durkheim
e Weber, observa-se outra trajetória. Ambos são formados pelo ethos da
universidade, e isso está de certa maneira refletido em suas produções
sociológicas e em suas pesquisas empíricas com critérios metodológicos.
No Brasil podemos observar na geração de Costa Pinto, Florestan
Fernandes e Guerreiro Ramos, uma evidente preocupação quanto
ao papel do sociólogo. Perguntava-se à época: Qual é o papel do
cientista social? Seria ele apenas um estudioso neutro e distanciado de
qualquer envolvimento com os problemas de seu tempo, ou teria ele
um papel muito mais atuante e de intervenção sobre a realidade que
ele estudava? Quais eram os limites entre o sociólogo acadêmico e o
sociólogo militante? Essa era uma questão que, como você verá, teve
enorme importância nos debates sobre o “fazer” do sociólogo.

202
Aula 9 – A Sociologia in no Brasil dos anos de 1950 Módulo 2

A institucionalização da Sociologia no Brasil, como disciplina


acadêmica que enfaticamente buscava se afirmar como tal, idealizaria
um papel para o sociólogo que, ao contrário de aproximá-lo da
sociedade civil, ou seja, dos atores sociais emergentes (operários,
empresariado), dotava-o com técnicas racionais para a compreensão
dos problemas sociais e dilemas da sociedade brasileira, a fim
de propor ao Estado, ou às elites dirigentes, possíveis soluções.
A geração anterior de ensaístas, sem tradição na universidade,
buscava informar e formar o Estado, pela chave da construção da
nação, da identidade nacional, da identidade cultural e de suas
instituições. Estava, nesse sentido, integrada a um projeto de Estado
nacional. A geração de nossos novos sociólogos se beneficia de
um projeto de universidade que pensa as ciências sociais de uma
perspectiva universal e como “dotadas de técnicas racionais capazes
de permitir a solução dos problemas sociais brasileiros sem pressão
social nem conflitos (FERNANDES, 1978, p. 86).

Contudo, não parecia possível aos sociólogos brasileiros


apenas demarcar uma autonomia intelectual portadora de um
conhecimento sobre os atores sociais e políticos, ou sobre os
problemas da sociedade, propondo formas de ação racional para
os atores sociais adequadas a uma eventual solução dos problemas
identificados (WERNECK, 1998, p. 186). Havia uma questão mais
complexa. Essa Sociologia que nasce em outros países, baseada
Intelligentsia
em critérios modernos de cientificidade e praticada em outros
É um segmento social
contextos mais competitivos e democráticos, enfrentaria aqui um de pessoas engaja-
difícil desafio: dialogar com setores tradicionais, patrimoniais e das na elaboração
de um trabalho
arcaicos da sociedade brasileira. Nesse sentido, essa Sociologia
criativo e complexo
institucionalizada deveria ser complementada com clara preocupação orientado para o
de encontrar “... meios através dos quais se pudesse intervir direta desenvolvimento,

e conscientemente na vida social” (FLORESTAN, 1964, p. 266). a reforma social,


a disseminação de
A Sociologia deve propor à sociedade uma orientação, fundamen-
cultura, convergindo
tada na ciência, quanto ao caminho que deve ser trilhado para intelectuais e grupos
que se superem os problemas sociais brasileiros. Entretanto, “essa sociais a eles ligados.
O termo tem origem
intelligentsia não se move no terreno da revolução, e sim no da
na língua russa.
reforma” (WERNECK, p. 191).

203
História e Sociologia

No Rio de Janeiro, a Sociologia vai expressar outra vocação.


Com uma institucionalização menos acadêmica do que a observada
em São Paulo, estará mais próxima do Estado depois de 1946 e
se dedicará ao tema da modernização como superação do atraso
brasileiro, pela ação reformadora do Estado. Ela informaria, através
de grandes sínteses interpretativas, qual seria o melhor caminho
para a atuação do Estado a fim de realizar a reforma social e a
modernização. Mas essa intelligentsia se dirige também ao povo
visando conscientizá-lo dos problemas da sociedade e de seu papel
como o real sujeito da mudança social. O Centro Popular de Cultura
da União Nacional dos Estudantes – CPC-UNE, sob a influência do
ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), dirige-se ao povo,
indo aos seus locais de moradia e trabalho, para orientá-los em seu
papel histórico. No Rio de Janeiro, o programa fundamental dessa
nova sociologia seria o de viabilizar a aproximação entre o Estado,
agente da modernização, por meio da ação popular.

Você agora pode imaginar a linha tênue que separa o


sociólogo profissional, que estuda um fenômeno social através de
critérios de rigor científico, daquele sociólogo que vê a sua atividade
intelectual como algo que deva ser partilhado com os sujeitos sociais
em nome da consciência de uma mudança, uma reforma social ou
no limite de uma revolução.

CONCLUSÃO

O objetivo desta aula foi apresentar a institucionalização da


Sociologia que, embora baseada em critérios de rigor científico e
acadêmico, diferenciava-se regionalmente, ou seja, a sociologia
que se produzia em São Paulo não era necessariamente a
mesma que se produzia no Rio de Janeiro. Embora os temas ativados
na Sociologia dos anos 1950 variassem bastante (relações raciais,
pesquisas de comunidade, urbanização e industrialização, conflito
social, modernidade, desenvolvimento, planejamento, mudança

204
Aula 9 – A Sociologia in no Brasil dos anos de 1950 Módulo 2

social, nacionalismo, imigração, estratificação social, conflito social,


universalismo, papel do sociólogo), o tema das relações raciais,
da integração do negro na sociedade brasileira, frequentaram
efetivamente as pesquisas e as agendas políticas da década de
1950. Os sociólogos dessa geração não se furtaram a enfrentar
competentemente os temas que se tornaram verdadeiros desafios
no contexto do pós-guerra. As formas de engajamento dos novos
sociólogos muitas vezes iam além do escopo da ciência. Muitos
militavam por essas causas, muitos participaram de movimentos
políticos, muitos depois foram perseguidos e tiveram que se exilar
no período da ditadura militar. Desde os anos 1950, nunca mais a
Sociologia foi a mesma. Os alicerces acadêmicos dessa disciplina
foram construídos em 1950 e até hoje têm enorme influência sobre
as gerações de sociólogos que se seguiram àquela.

Atividade Final

Atende ao Objetivo 3

Você deve ter tido a oportunidade de conhecer vários professores ao longo de sua formação.
Alguns professores revelam às vezes, até em sala de aula, quais são suas preferências
políticas e emitem opiniões sobre como o mundo deveria ser. Há outros casos, em que
alguns professores exibem uma espécie de neutralidade, tentando não influenciar a turma
com as suas preferências políticas ou visões de mundo. A partir da passagem a seguir,
exponha como você avalia a questão da neutralidade e/ou do engajamento do cientista,
no caso, do cientista social.

O conhecimento científico não se orienta, pois, de modo exclusivo e relativamente


autônomo, segundo valores próprios, mas está sujeito aos valores de um projeto
histórico-político. No projeto de Guerreiro Ramos, a esfera da ciência se entrelaça
não só com o “fazer história”, mas também com a esfera de ação prática e política.
Esta característica da proposição do autor a diferencia muito daquelas dos seus con-
temporâneos Costa Pinto e Florestan Fernandes, mais cautelosos quanto às mediações
entre o conhecimento sociológico e a ação política” (VILLAS BOAS, 2006, p. 69).

205
História e Sociologia

Comentário
Trata-se de explorar um dilema antigo (Weber no início do século XX já inaugurava
o debate entre a Ciência como vocação e a Política como vocação, sugerindo a
necessidade dessa divisão de terrenos de atuação) que no Brasil ganhou evidência
a partir dos anos de 1950. A Sociologia dos anos de 1950 debatia-se sobre esse
tema. Ainda hoje esse dilema está presente em salas de aulas, na pesquisa empírica,
nos engajamentos políticos e ideológicos de indivíduos que atuam como sociólogos.
Nesses termos é importante compreender como a Sociologia se vê diante do dilema
entre a ciência e a ação política como duas esferas que para alguns devem permanecer
separadas e para outros devem estar entrelaçadas.

RESUMO

A trajetória de institucionalização da sociologia no Brasil


no contexto dos anos 1950, pode ser compreendida como uma
produção crítica ao ensaísmo dos anos 1930 e 1940, julgados
pouco científicos e acadêmicos. Devem ser consideradas, também,
questões e temas que mobilizavam os novos sociólogos e suas
contribuições, especialmente as de Costa Pinto, Florestan Fernandes e
Guerreiro Ramos, para a afirmação de uma sociologia mais pulsante,
sobretudo em relação ao tema da integração do negro no Brasil.

Informação sobre a próxima aula

Na próxima aula, você vai ver como os problemas relativos aos temas
da desigualdade racial no Brasil, do racismo, da integração dos
negros na sociedade brasileira foram abordados com rigor científico
e com alguma dose de engajamento político por três importantes
sociólogos dos anos 1950: Costa Pinto, Florestan Fernandes
e Guerreiro Ramos.

206
Aula 10
Grandes temas da
Sociologia brasileira I:
preconceito, tensão
racial e a integração
do negro no Brasil
História e Sociologia

Meta da aula

Identificar na Sociologia produzida por três dos nossos mais importantes


sociólogos da nova Sociologia dos anos 1950 – Guerreiro Ramos,
Costa Pinto e Florestan Fernandes –, o problema do racismo,
das tensões raciais e da integração do negro na sociedade brasileira.

Objetivos

Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de:
1. reconhecer quais eram os desafios da Sociologia para a compreensão dos
problemas raciais brasileiros e como ela propõe novas interpretações sobre a causa
desses problemas e as possibilidades de intervenção política para a sua superação;
2. reconhecer a complexidade do problema da integração do negro na sociedade
brasileira como tema atual, que ainda hoje merece muitos estudos e pesquisas com
critérios sociológicos e responsabilidade.

Pré-requisitos

Você compreenderá melhor essa aula se articulá-la com as Aulas 6, 7, 8 e 9.


A Escola de Chicago e o ensaísmo sociológico, e os autoritários colaboram
para a compreensão da Sociologia em sua versão mais científica
e institucionalizada no Brasil dos anos 1950.

208
Aula 10 – Grandes temas da Sociologia brasileira I: preconceito, tensão racial e a integração do negro no Brasil Módulo 2

INTRODUÇÃO

Esta aula, como você verá, é um desdobramento da aula


anterior, cujos tópicos mais relevantes relacionavam-se às lições do
pós-guerra. Alguns importantes temas como estrutura social, classe
social, conflito social e desigualdade social ocupavam as agendas
dos nossos sociólogos dos anos 1950. Um tema, entretanto, desde
que o projeto Unesco escolheu o Brasil como laboratório para
pesquisas sobre raça – supondo que o Brasil era um paraíso racial
–, nossos sociólogos mergulharam profundamente na pesquisa sobre
relações raciais em várias regiões do Brasil. Esse tema, então, torna-
se um dos mais importantes objetos de estudo da Sociologia até os
dias de hoje. Antes dos anos 1950 os estudos sobre raça, negro,
relações raciais eram pautados pela abordagem culturalista, como
você viu na Aula 7. Depois, o que você viu na última aula, foi uma
reviravolta nas abordagens sobre esses temas. Tratava-se, então, de
retomar o problema do negro, a herança da escravidão, em uma
nova roupagem: com rigor científico, metodologia, com releituras da
história e em diálogo com o que se produzia nos Estados Unidos,
especialmente a Escola de Chicago. Cabe agora perguntar: Como
essa questão foi tratada pelos sociólogos dos anos 1950? Havia
diferenciações nas abordagens desses sociólogos sobre o tema
racial? Para que você conheça um pouco mais a maneira como
esse tema foi tratado nos anos 1950, elegemos três sociólogos
como os mais representativos dessa geração: Costa Pinto, Florestan
Fernandes e Guerreiro Ramos.

209
História e Sociologia

A Sociologia de Costa Pinto

Uma breve biografia:


Luis de Aguiar Costa Pinto, nascido em 1920, em Salvador, era
originário de uma família proprietária de engenhos no Recôncavo
baiano. Seu avô foi senador da República e seu pai, médico. Formou-
se na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil,
hoje UFRJ, na primeira turma de Ciências Sociais. Tornou-se, em
1943, professor dessa mesma faculdade. Foi signatário da primeira
Declaração sobre Raça da Unesco em Paris, em 1949. É autor de
diversos livros, entre os quais: Lutas de famílias no Brasil, de 1949;
O Negro no Rio de Janeiro, de 1953; e Sociologia e Desenvolvimento:
temas e problemas do nosso tempo, de 1963. Lecionou em várias
universidades e faleceu no Canadá em 2002.

Costa Pinto e O Negro no Rio de Janeiro

Desde Gilberto Freyre (Aula 7), os estudos sobre os negros


no Brasil trazem a marca do que a historiografia chama “a herança
da escravidão”. Mesmo abolida, os negros libertos ainda eram
considerados pela historiografia como seres que padeciam dos
prejuízos que a escravidão os havia infligido, e o desafio da
sociedade moderna no Brasil já republicano seria, nesses termos,
garantir a integração cada vez maior do negro na sociedade
brasileira. Nesse sentido, o negro já iniciava, a sua trajetória de
liberdade, em desvantagem se comparado ao branco que nunca
teria vivido os horrores da escravidão. Costa Pinto dará um passo
adiante nesse debate, uma vez que pretende não mais considerar
o negro pela herança da escravidão, mas considerá-lo através
de outra chave analítica: ele compreende o negro-proletário e os
seus percalços no mundo capitalista, na sociedade de classes e
nas condições da modernidade. Isso não significa que esse negro
não seja sujeito ao racismo; ao contrário, quanto mais ele se quer
igualitário ou acredita viver em um mundo de igualdade, mais

210
Aula 10 – Grandes temas da Sociologia brasileira I: preconceito, tensão racial e a integração do negro no Brasil Módulo 2

ele sofre o preconceito racial. Analisar as condições do conflito ou


tensão racial e não as formas de acomodação ou harmonia entre as
raças é uma das grandes contribuições de Costa Pinto aos estudos
sobre negros no Brasil. Outra contribuição de Costa Pinto foi a sua
crítica aos estudos afro-brasileiros. É dele a crítica ao “negro como
espetáculo”. Ele considerava que a valorização da cultura e das
sobrevivências africanas, comum nos estudos antropológicos, e a
ausência de estudos sociológicos mais rigorosos sobre os negros e seus
problemas, indicavam o atraso do Brasil no tratamento desse tema. Para
Costa Pinto, “... à abordagem culturalista falta o esquema conceitual e
o rigor metodológico necessários para realizar o estudo científico dos
novos aspectos assumidos pelas relações interétnicas no interior de
uma sociedade em mudança” (COSTA PINTO, 1963, p. 78).

Em seu estudo sobre “O negro no Rio de Janeiro”, observa-se


a sua preocupação em estudar esse tema sob a ótica da transição
do tradicional para o moderno e nesse processo a forma pela qual
o negro transforma-se de escravo em proletário. É a competição
que se inaugura no mercado de trabalho através da estrutura de
classes sociais que tornará as relações entre brancos e negros
mais competitivas e mais tensas; geradora, nesses termos, de um
preconceito racial acentuado. As tensões raciais resultavam não da
herança da escravidão, mas das condições mesmas da sociedade
moderna, capitalista, competitiva que só tenderiam a aumentar tanto
mais competitiva se torna a sociedade brasileira.

Costa Pinto trás ainda uma visão bastante interessante sobre


os dilemas vividos no interior do próprio movimento negro. Ele
dividia os negros entre negro-massa e elite negra. A elite negra,
ou melhor, uma classe média negra, teria experimentado alguma
mobilidade social e tornava-se cada vez mais diferenciada da
maioria da população negra. Costa Pinto, ao fixar sua atenção na
constituição da classe média negra no Rio de Janeiro, está atento à
forma pela qual ela crescentemente se diferencia do que ele chama
negro-massa. Na sua percepção, quanto mais o negro ascende mais
encontra barreiras sociais que têm por base preconceitos raciais.

211
História e Sociologia

O ressentimento desse grupo emergente diante de tais impedimentos


e barreiras raciais promove, segundo Costa Pinto, uma fertilização
e mesmo um fortalecimento da autoidentidade baseada igualmente
em critério raciais. Talvez você encontre alguma dificuldade em
compreender por que o preconceito racial acaba mobilizando a
identidade racial. Vamos tentar um exemplo. Imagine um negro
advogado, que tenha estudado com grande esforço para se formar
e se transformar em um profissional no mercado de trabalho de
advogados. Quando ele busca um emprego, ele se depara com
outros advogados que tal como ele estudaram e se formaram a fim
de exercerem a sua profissão. Imagine agora ele disputando um
lugar no mercado com um advogado branco e sendo preterido na
competição. Ele pode pensar por um lado que o advogado branco
ganhou a competição talvez por ser melhor formado, ou ele pode,
por outro lado, pensar que perdeu a vaga para o advogado branco
pois o preconceito racial vigente na sociedade brasileira acabaria
sempre preterindo o negro. A pergunta que ele se faz é: se na
disputa com um branco eu levo sempre a pior, a melhor maneira
de lutar contra isso é através da afirmação da minha identidade
racial, denunciando o racismo lá onde eu acredito que ele vigora
(no mercado de trabalho, na escola, na universidade, nas relações
afetivas etc.). A elite negra, nos termos de Costa Pinto, é a que
carrega a missão de ser portadora da consciência racial. Ela sofre
mais, pois tende a se ver como preterida pela classe média branca
(que seria o seu grupo de referência) e não se identifica com o
negro-massa, pois acredita que ele é portador da má consciência,
ou seja, é um alienado, pois não consegue perceber mais claramente
o problema da discriminação racial. Para Costa Pinto:

A supervalorização da raça que a torna a medida de


todas as coisas, a entidade de onde emana toda uma
filosofia de vida, toda uma concepção de mundo (...) é
em verdade um mecanismo de defesa manejado por uma
elite agressiva, uma racionalização das tensões sociais
concretas, nas quais grupos dominantes e etnicamente

212
Aula 10 – Grandes temas da Sociologia brasileira I: preconceito, tensão racial e a integração do negro no Brasil Módulo 2

diferentes, usando a raça como critério de discriminação


contra alguns, levam os discriminados a fazer da causa
de seu problema a bandeira mística de sua redenção
(COSTA PINTO, 1953, p. 333-34).

Por fim, podemos resumir a leitura das relações raciais realizada


pelo sociólogo Costa Pinto, através do seguinte esquema:

Abolição Proletarização do negro-massa

Elitização dos negros

Constituição e fortalecimento identitário de uma emergente


classe média negra

Tensões raciais

Florestan Fernandes

213
História e Sociologia

A Sociologia de Florestan Fernandes

Uma breve biografia:


Florestan Fernandes nasceu em São Paulo, em 1920, de
família muito humilde. Sua mãe era lavadeira. Ingressou aos 18 anos
na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de São Paulo.
Terminou a sua licenciatura em 1943. Obteve o título de mestre em
1947 com a dissertação: “A Organização Social dos Tupinambá”.
Concluiu o doutorado em 1951, com a tese: “A função social da
guerra na sociedade Tupinambá”. Desenvolve uma pesquisa para a
Unesco com o antropólogo Roger Bastide sobre Brancos e Negros em
São Paulo. Escreve em 1964 A Integração do negro na sociedade
de classes, e em 1975 escreve A Revolução Burguesa no Brasil. Foi
cassado pela ditadura militar, exilando-se no Canadá. Elegeu-se duas
vezes deputado federal pelo PT. Morre em 1995, em São Paulo.

Florestan Fernandes e a integração do negro na sociedade


de classes
Florestan Fernandes é sem dúvida um dos mais importantes
sociólogos brasileiros. Seu interesse pelo estudo dos negros no Brasil,
inicia-se com o Projeto da Unesco que motivou a pesquisa que ele
desenvolveu com o antropólogo Roger Bastide, intitulada Brancos
e Negros em São Paulo. Trata-se de uma pesquisa que se ocupa
de indagar sobre as raízes históricas do preconceito racial. Investe
na documentação sobre escravidão desde o século XVI em São
Paulo e, através de uma linha causal e, enfatiza a desagregação
do regime escravista para pensar a transição para o trabalho livre
com a abolição. Para ele, se o problema do escravo desaparece
com a escravidão, com a abolição inicia-se o problema do negro
na sociedade brasileira. Mas esse negro começa o seu percurso
de liberdade com todas as deformações oriundas da escravidão.
A herança da escravidão era o que tornava o negro livre, pouco
preparado para competir no mercado capitalista, para se adequar
às exigências da modernidade. O desafio que Florestan Fernandes se

214
Aula 10 – Grandes temas da Sociologia brasileira I: preconceito, tensão racial e a integração do negro no Brasil Módulo 2

impõe, e que vai ser mais desenvolvido em seu livro a A Integração


do Negro na sociedade de Classes, é justamente pensar em por
que a integração do negro na sociedade no pós-abolição é tão
dramática, tão difícil. Para tanto, ele irá buscar na história, nas
determinações econômicas e sociais as razões que poderiam explicar
essa dificuldade de integração. Sendo a escravidão um regime
extremamente cruel e violento, suas vítimas muito provavelmente
carregariam por muito tempo os prejuízos e desvantagens
dessa experiência de desumanização. A escravidão produziu
homens dependentes, “coisificados” que depois da escravidão
permaneceriam uma espécie de anomalia social. Entretanto, ao
contrário de Costa Pinto, Florestan Fernandes goza de certo otimismo
quanto à direção que o problema do negro tomará no Brasil.
A sua ideia de modernidade, herdeira do marxismo e da teoria
da modernização, depositará tanto na estrutura de classes sociais,
quanto na formação do proletariado, a crença na diluição de toda
e qualquer identidade baseada em raça, cor ou em etnicidade.
Nesses termos, as possibilidades de conflito repousariam mais na
estrutura de classe do que em tensões raciais. Esta última, tenderia
a se diluir no processo de modernização da sociedade brasileira.
A tendência à proletarização dos negros na nova estrutura
social, legal e moral brasileira seria previsível e mesmo inevitável,
ainda que uma espécie de anomalia associada à persistência de
padrões arcaicos de interação social – baseados em reminiscência
de preconceitos raciais típicos da ordem escravocrata – fosse
expressiva no processo de modernização da sociedade brasileira.
A interpretação marxista representava uma aposta no fim necessário
do problema racial frente à modernidade das relações sociais. Seria
incompatível a manutenção do preconceito racial na modernidade
e em cenário democrático. Sua sobrevivência é apenas residual,
transitória e extemporânea.

215
História e Sociologia

Para Florestan Fernandes, a abolição da escravidão é o marco


zero da modernidade. Em seu trabalho Brancos e Negros em São
Paulo, ele revela o seu otimismo:

... tanto os ‘brancos’ quanto os ‘negros’ precisam ser


reeducados para conviverem de modo construtivo no
mundo que está surgindo da nova ordem igualitária,
implantada com a abolição e a república (FERNANDES,
1959, p. xi).

O esquema causal que podemos associar às teses de Florestan


Fernandes, desde a escravidão seria o seguinte:

Escravidão →]trabalhadores livres → marginalização de negros


e mulatos → proletarização (diluição da raça na estrutura de classes e
integração do negro na sociedade de classe) → democracia racial.

Você já deve ter percebido as diferenças entre Costa Pinto e


Florestan Fernandes quanto ao problema do negro na sociedade
brasileira. Enquanto Florestan Fernandes acredita que a estrutura de
classes sociais tornará o conflito racial secundário, pois a consciência
de classe será mais decisiva para os indivíduos do que suas
identidades raciais, Costa Pinto enxerga a radicalização das tensões
raciais sobretudos entre negros e brancos de classe média. Você já
deve ter percebido igualmente, as semelhanças desses sociólogos.
Trata-se de sociólogos mobilizados pela Sociologia como ciência
da realidade que lhes garante a possibilidade de compreender os
problemas sociais e de apontar a direção da mudança social de uma
ordem tradicional para uma ordem social moderna e democrática.
Esse seria o papel do sociólogo como cientista e cidadão.

216
Aula 10 – Grandes temas da Sociologia brasileira I: preconceito, tensão racial e a integração do negro no Brasil Módulo 2

Atende aos Objetivos 1 e 2

1. Considerando as teses de Costa Pinto e Florestan Fernandes sobre o problema do negro


na sociedade brasileira, como você interpretaria o estágio atual de desigualdade racial,
de persistência de desigualdades raciais no Brasil e a forma como o movimento negro vem
lutando, através da demanda por cotas raciais nas universidades públicas, para garantir
uma sociedade menos desigual entre negros e brancos?
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___________________________________________________________________________
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Comentário
Esta atividade é importante, pois garante uma compreensão do presente histórico e das formas
atuais das relações raciais no Brasil à luz dos relevantes debates travados na década de
1950 pela Sociologia que se consolidava nas instituições universitárias brasileiras.

217
História e Sociologia

O sociólogo Guerreiro
Ramos

Uma breve biografia:


Nasceu em Santo Amaro da
Purificação em 1915. De família pobre,
aos 17 anos já participava da vida cultural
da classe média baiana escrevendo em
revistas literárias. Militou no Movimento
Movimento Integralista e em 1933 vem para o Rio
Integralista
de Janeiro com uma bolsa de estudos para cursar a Faculdade
Movimento criado em
1933 de inspiração Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, onde se forma
nacionalista, fascista em 1942. Preterido como potencial professor da Universidade
e católica. Dedicou-
do Brasil, torna-se técnico de administração do Departamento do
se à valorização dos
símbolos da nação em Serviço Público (DASP), órgão da burocracia do Estado. Escreve
contraposição a toda vários artigos para a Revista do Serviço Público. Em 1949 inicia a
e qualquer ideologia sua atuação política no Teatro Experimental Negro (TEN), criado no
que divulgasse forma
final do Estado Novo por Abdias do Nascimento. Em 1952, torna-
de universalismo. Era
antissocialista, antiliberal se professor da Escola Brasileira de Administração Pública (EBAP).
e possuía alguns líderes É autor de Cartilha Brasileira do Aprendiz de Sociologia, 1955;
antissemitas. Foi fundado
Introdução Crítica à Sociologia Brasileira, de 1957; e Redução
por Plínio Salgado, seu
maior ideólogo junto Sociológica: Introdução ao Estudo da Razão Sociológica, de 1965.
com Gustavo Barroso. Morre nos Estados Unidos em 1982.
Getúlio Vargas apoiou
inicialmente o movimento
para logo em seguida
Guerreiro Ramos e a patologia social do
colocá-lo na ilegalidade.
Em 1938 os integralistas
branco brasileiro
tentam derrubar o
governo de Vargas, mas A trajetória do sociólogo Guerreiro Ramos é atípica se
são derrotados. Nas
comparada às trajetórias dos demais autores tratados nesta aula.
fileiras desse movimento
ingressaram também Primeiro, você deve compreender que Guerreiro Ramos não se tornou,
muitos negros. tal como os outros sociólogos tratados, professor de Sociologia na
Universidade, especialmente na Faculdade Nacional de Filosofia da
Universidade do Brasil onde ele havia desenvolvido seus estudos em
Ciências Sociais. Fora da Universidade, Guerreiro Ramos produziria

218
Aula 10 – Grandes temas da Sociologia brasileira I: preconceito, tensão racial e a integração do negro no Brasil Módulo 2

uma obra crítica que teria como alvo o ensaísmo sociológico dos
anos de 1930 e também os modelos estrangeiros que eram copiados
no Brasil sem qualquer filtro crítico. Ele se referia a essa Sociologia
transplantada de outros contextos, como “Sociologia enlatada”.
O aspecto que os biógrafos de Guerreiro Ramos mais chamam
atenção é o tom fortemente polêmico das suas ideias, inclusive sua
crítica ácida dirigida à importação de ideias da Europa e dos Estados
Unidos. Defendia o engajamento do sociólogo nas questões sociais
e nas propostas de reforma. Ele acreditava no caráter universal da
Sociologia, embora enfatizasse a sua diferenciação nacional. Para
ele, os problemas brasileiros deveriam estimular a elaboração de
idéias, teorias e conceitos próprios à nação que deveria se conhecer
a si mesma. Nesses termos, o conhecimento sociológico deveria estar
comprometido com a realização de um projeto histórico-nacional
(VILLAS BOAS, 2006, p. 66-67).

Talvez você se interesse em saber que Guerreiro Ramos era


mulato e diretamente engajado na militância negra, através de sua
participação no Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado por
Abdias do Nascimento em 1944, que buscava resgatar através
do gênero teatral a autoestima dos negros em uma sociedade
racista. Guerreiro Ramos também mostraria o seu engajamento
à causa do negro utilizando-se da sua reflexão sociológica para
criticar os intelectuais brancos (entre eles Costa Pinto e Florestan
Fernandes) que faziam uma Sociologia sempre tratando o tema
do negro e sua integração como um “problema”. Sem lugar na
universidade e preterido do projeto da Unesco, Guerreiro Ramos
apontará sua metralhadora giratória crítica contra Costa Pinto que,
ao tratar o negro no Rio de Janeiro para o programa de pesquisa
da Unesco, acaba estudando o Teatro Experimental do Negro
como uma evidência do que ele chama associação de novo tipo,
na qual se incluía como objeto de estudo de Costa Pinto, o próprio
Guerreiro Ramos. No seu livro A introdução crítica à sociologia
brasileira, Ramos acusa os estudos sobre relações de raça
patrocinados pela Unesco de serem “frutos de uma visão alienada
ou consular do Brasil” e acrescenta:

219
História e Sociologia

com exceção do que se refere ao negro no Rio de Janeiro,


que confiado a Luiz de Aguiar Costa Pinto, cidadão sem
qualificações morais e científicas. Este carreirista, doublé
de sociólogo... (GUERREIRO RAMOS, 1957, p. 154,
apud MAUÊS, 1999, p. 173).

Mas qual era a visão que Guerreiro Ramos tinha do racismo


e da integração do negro à sociedade brasileira?

Guerreiro Ramos defendia a tese de que o problema do


preconceito no Brasil não era de raça, mas sim um preconceito de
cor, um preconceito sócio-econômico. Para ele, o problema do negro
deveria ser enfrentado a partir das diferenças regionais, de classe
e de clivagem rural/urbana. Ele criticava os estudos sociológicos
que valorizavam a sobrevivência africana, postulando que os negros
queriam mais do que valorizar as sobrevivências africanas, queriam
ascender social e culturalmente. Acreditava que a formação de
uma elite negra de classe média poderia ter um papel pedagógico
importante no sentido de viabilizar o valor da cidadania entre os
negro-massa.

A agenda política de Guerreiro Ramos era a seguinte: “afirma-


ção da singularidade dos negros com a eliminação dos recalques
advindos do passado; ascensão social e econômica; constituição de
uma intelligentsia, ou seja, de uma espiritualidade e de uma missão.
Só assim haveria a redução de enorme distância entre o negro legal
e o negro real” (Guerreiro Ramos apud Maio, 1997).

É evidente na obra de Guerreiro Ramos a tensão entre o


sociólogo com vocação acadêmica e o funcionário técnico do
Estado, engajado na luta pela mudança social. Sua originalidade
e o tom polêmico tornam notável a sua Sociologia, que ele mesmo
chamava “Sociologia em mangas de camisa”.

220
Aula 10 – Grandes temas da Sociologia brasileira I: preconceito, tensão racial e a integração do negro no Brasil Módulo 2

CONCLUSÃO

Você pôde conhecer na aula de hoje questões e temas


que mobilizavam os novos sociólogos mais expressivos da nova
Sociologia dos anos de 1950 e suas contribuições. Costa Pinto, de
Florestan Fernandes e de Guerreiro Ramos, ao tratarem criticamente o
racismo no Brasil, colaboraram para a afirmação de uma Sociologia
científica mais pulsante, sobretudo em relação às preocupações
intelectuais e políticas com o tema da integração do negro.

Atividades Finais
Atendem aos Objetivos 1 e 2

1. Compare as abordagens dos três sociólogos aqui tratados realçando as diferenças e


semelhanças que os caracterizam.

2. Se você tivesse que fazer uma pesquisa hoje sobre racismo ou sobre a integração do
negro na sociedade brasileira, como você atualizaria as teses desses autores, ou seja, como
você imagina que esses autores interpretariam o debate hoje em curso no Brasil sobre cotas,
estatuto racial, desigualdade racial e miscigenação?

Comentário
O objetivo dessas atividades é estimular a sua atenção para as possibilidades de
interpretar a questão racial nos dias de hoje, à luz das teses dos nossos três sociólogos:
Costa Pinto, Florestan Fernandes e Guerreiro Ramos.

221
História e Sociologia

RESUMO

O contexto era do pós-guerra e, a exemplo das atrocidades


do holocausto, observava-se a valorização científica e política
de questões relacionadas à tolerância, aos direitos humanos, ao
antirracismo, à negritude, à independência nacional das colônias
africanas. O Brasil, nesse contexto, parecia o mais próximo de uma
democracia racial. Entretanto, as pesquisas realizadas por essa nova
Sociologia para o projeto Unesco, revelaram que o Brasil também
exibia formas, se não direta, ao menos sutis, de racismo e que a
população negra encontrava enormes dificuldades de integração
às exigências da modernidade presentes na sociedade brasileira
daquele período. O papel da história para essa Sociologia era,
não raro, fundamental. Através da história, buscava-se compreender
em que medida a herança da escravidão afetava a performance do
negro em uma sociedade de classes. Era também uma Sociologia
que tentava apontar direções reformistas a fim de superar as questões
do passado e do presente pela aposta no futuro.

Informações sobre a próxima aula

Na próxima aula, você vai ver como os problemas relativos


à modernização, à urbanização e à industrialização foram
pensadas pelos sociólogos brasileiros, com ênfase para o
conceito de populismo, largamente utilizado pela
Sociologia brasileira.

222
História e Sociedade

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