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Daniel Braga Lourenço 1

e Fábio Corrêa Souza de Oliveira2


12
Sustentabilidade insustentável?

1. Introdução 12

Sustentabilidade está na moda. Ingressou de forma avassaladora no


vocabulário. Virou lugar-comum. Mais a palavra, é certo, do que o concei-
to. E muito menos ainda a prática. Ora, qual compromisso com qual con-
teúdo? Repete-se a pergunta inúmeras vezes: as pessoas estão (ou estarão)
dispostas a pagar o preço da sustentabilidade? Quem poder pagar? O que,
afinal, significa pagar o preço? O custo ambiental? Há certo mistério aqui
ou uma sensação de dúvida, um receio que, diante de algo que, apesar
de todos (aparentemente) estarem de acordo, se afigura medianamente
(ou, ao menos, relativamente) nebuloso – o que perfaz um paradoxo –, o
que se traduz em uma posição conservadora. A postura conservadora da

1 Doutorando em Direito na Universidade Estácio de Sá (UNESA). Professor de Direito


da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), da Pós-Graduação em Direito
Ambiental da PUC-Rio, do Programa de Direito Ambiental (BAILE) da Pace Law School
(Estados Unidos) e membro da Comissão Permanente de Direito Ambiental da OAB/
RJ.
2 Coordenador do Mestrado/Doutorado em Direito da Universidade Estácio de Sá
(UNESA). Professor de Direito Administrativo da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) e de Direito Constitucional da Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro (UNIRIO). Mestre e Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ). Pesquisador Visitante e Pós-Graduação Lato Sensu na Faculdade
de Direito de Coimbra (2004, CAPES). Pós-Doutorado na Faculdade de Direito da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC - CNPQ). Pesquisador do CNPQ.
Coordenador do Centro de Direito dos Animais, Ecologia Profunda, da Faculdade de
Direito da UFRJ.
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sustentabilidade, nesta quadra, implica em investir na oratória, discursos


verdes, adotar alguma atitude pontual, inclusive em razão da publicida-
de, perceber os ganhos financeiros da sustentabilidade, ela própria é um
negócio (apta a gerar lucro, dividendos), uma commodity. Na sua versão
progressista, vanguardista, a sustentabilidade é, via de regra amplamente
majoritária, antropocêntrica. E, nestes termos, quem não se compromete
com a sustentabilidade? Quem não tem uma atitude sustentável afirma
querer ter. Caso contrário, além de politicamente incorreto, démodé.
A complicação (ou diremos complexidade na linha de Edgar Morin)
pode ocasionar atos falhos ou mal compreendidos. Recentemente, An-
tonio Patriota, ministro das relações exteriores, afirmou: “A Rio + 20 não
será uma conferência ambiental, mas de desenvolvimento.”3 E a indagação
inevitável: o que se entende por desenvolvimento? A concepção de de-
senvolvimento, na matriz do Direito dos Animais, da Ecologia Profunda,
quando se proclama um progresso qualitativo e não (apenas) quantitativo,
a integração com outros seres, a natureza, ao invés da dominação, a con-
traposição ao consumismo, pautar-se pelo necessário (noção que, embora
computada a variação, indica um sentido), o reconhecimento de que seres
não-humanos ostentam valor intrínseco, da titularidade de direitos fora da
espécie humana, enfim, a postulação de outro paradigma, ruptura com o
antropocentrismo, é conciliável com a acepção predominante de susten-
tabilidade? Que desenvolvimento sustentável?
Veja-se a reportagem: “Ser sustentável com rentabilidade também é
desafio para micro e pequenas empresas brasileiras. Pesquisa do Sebrae,
com 3.058 empresários, aponta que 58% não têm conhecimento sobre os
temas ‘sustentabilidade’ e ‘meio ambiente’. Contudo, 72% entendem que
as micro e pequenas companhias devem dar importância à questão do
meio ambiente. Entre os entrevistados, 79% acham que a preservação é
um fator de atração de clientes e 47% que a questão ambiental pode repre-
sentar ganhos.”4 Em uma economia baseada na competição, exploração,
no individualismo, no aumento da produção, o desenvolvimento susten-
tável é factível? Capitalismo verde? Contradictio in terminis?
Ricardo Abramovay, Professor do Departamento de Economia da FEA/
USP e Coordenador do Núcleo de Economia Socioambiental, perguntado

3 Jornal O Globo, 20 de abril de 2012, p. 29, Economia.


4 Idem. Em outra: “A corrida pelo ecologicamente correto: captação de aplicações
compostas por ações de empresas social e ambientalmente responsáveis cresce 57%
no ano.” O Globo, 16 de agosto de 2010, p. 21, Economia. Mais uma: “McDonald´s
se pinta de verde. Empresa troca cor da logomarca na Europa para criar identidade
ambiental.” O Globo, 24 de novembro de 2009.
Sustentabilidade insustentável? 299

se qualificaria o governo federal como desenvolvimentista, respondeu


que melhor seria chamá-lo de crescimentista. Acrescente-se que este adje-
tivo não é singularidade do atual governo e sim o padrão de gestão mais
difundido pelo mundo, o padrão do mercado. Ora, o noticiário diário
carrega nos índices de crescimento da economia, PIB, uma ostensiva e es-
timulada corrida entre países. O mantra repetido exaustivamente: crescer
é preciso e, de preferência, aceleradamente. Todavia, é flagrante que não
se pode defender um crescimento indefinido perante um planeta finito.
Aliás, tal receituário é autofágico, suicida. As condições são esgotáveis e,
em diversas vezes, já foram localmente ou mesmo globalmente esgotadas
(espécies extintas, por ex.).5 E é, para dizer o mínimo, ingenuidade apos-
tar na tecnologia (no seu avanço) como fator bastante a solucionar (saídas
artificiais) os problemas (naturais).
Ilustrativamente, o livro Uma verdade inconveniente, de Al Gore,
juntamente com o correspondente documentário cinematográfico, se-
guem pelo senso comum acerca da sustentabilidade: nada de Direito dos
Animais, nada de Ecologia Profunda. Expressões como civilizar a na-
tureza ou domesticar a natureza compõem o vocabulário humano, re-
velam uma cultura tradicional e arraigada. A natureza a ser conquistada
(instrumentalizada).6 Daí que se prossegue empregando nomenclaturas
insuspeitas, bem manifestas conquanto disfarçadas.7 Ativos ecológicos é
uma destas expressões. Mercado de carbono é outra. Veja-se a manchete:
“‘Verdes’ com discurso sustentável. Membros da Comissão de Agricultu-
ra ligados ao agronegócio pregam o desenvolvimentismo.”8 Outra notícia

5 Consulte-se, para um inventário, DIAMOND, Jared. Colapso: como as sociedades


escolhem o fracasso ou o sucesso. 7ª ed. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 2010.
6 A agricultura é expressão da natureza enquanto cultura, denota adiantamento
civilizacional. Europeus quando chegaram na América afirmaram a incivilidade de
povos nativos pelo desconhecimento da agricultura, ao menos segundo os padrões
da Europa. Para uma análise historiográfica: THOMAS, Keith. O homem e o mundo
natural. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
7 Em evento recente no Rio de Janeiro, voltado para a sustentabilidade, promovido
por um dos maiores bancos do mundo, um executivo/consultor da área corporativa,
proclamou: “A natureza é uma parceira fantástica.” Parceira para qual propósito? Sem
dúvida pode ser considerada parceira para as entidades que produzem/engarrafam
água mineral. A natureza concede o produto. Há quem complemente: e (a natureza)
não pede nada em troca. A respeito da privatização da água/serviços hídricos,
lembre-se a crise na Bolívia, em 2000, com conflitos e mortes, a qual se somou a crise
do gás, em 2003, ensejando a queda do Presidente Gonzalo Sánchez de Lozada, que
foi abrigar-se nos Estados Unidos.
8 Jornal do Brasil, 26 de abril de 2009, A12. Continua a reportagem: “As reclamações
dos ambientalistas de que a presença maciça do agronegócio enfraquece o discurso
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jornalística: “Amazônia em perigo: avanço da agropecuária e abertura de


rodovias podem reduzir até 21% de mata até 2030.”9 O que é progresso?
Abrir estradas? O elenco de hecatombes é enorme e sinaliza um apocalip-
se ou uma barbárie. Proliferação de zonas mortas no mar, efeito estufa,
número recorde de plantas e animais extintos ou ameaçados de extinção,
contínua supressão da mata, desertificação, derretimento de calotas po-
lares, o problema da destinação do lixo. Surge, neste contexto, um novo
tipo de refugiado, um contingente em elevação: o refugiado ambiental.10
Está no noticiário cotidiano. Não se poderá dizer que não se foi alertado.
“Amazônia: 45% das espécies ameaçadas.”11
É frequente ouvir, do lado da indústria do agronegócio, da pecuária,
entre outros setores (mineração, petróleo), bem como de ambientalistas
(verdadeiros ou travestidos), voz uníssona a alardear que a contradição
entre progresso econômico e sustentabilidade é uma falsa dicotomia. Será
mesmo? Depende, obviamente, das definições empregadas. Outra man-
chete de jornal: “Desenvolvimento insustentável. Desmatamento e pecu-
ária não trazem riquezas para a Amazônia, comprova estudo.”12 A reforma

da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos


Deputados não abalam os integrantes da comissão ligados ao setor. Tampouco os
constrange a acusação de que defendem os interesses de seus financiadores. – Não
vejo conflito de interesse nenhum. Estou a serviço do setor produtivo – escancara o
deputado Gervásio Silva (PSDB-SC), que recebeu mais de R$ 300 mil de empresas do
setor. (...) Para o tucano, o agronegócio não pode ficar ‘a mercê dos ambientalistas’
porque senão o desenvolvimento ‘empaca’. O deputado acredita que a falha está na lei
ambiental brasileira, feita, segundo ele, ‘de forma unilateral’. O deputado Paulo Piau
(PMDB-MG), que já foi secretário municipal de agricultura, pecuária e abastecimento
de Uberaba, faz coro com o colega de comissão: – Ao Brasil interessa o desenvolvimento
sustentável – afirma. – Nossa lei ambiental é a pior do mundo porque não pode ser
cumprida. Esse discurso ambientalista é bonito, mas não enche barriga.”
9 O Globo, 3 de fevereiro de 2008, p. 3.
10 Acerca da problemática dos refugiados, sem atenção específica aos refugiados
ambientais, e.g., BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
Marque-se, outrossim, que não só humanos são refugiados ambientais; também
animais não-humanos. A degradação do habitat afeta a todos.
11 Jornal do Brasil, 30 de outubro de 2008, A12.
12 O Globo, 12 de junho de 2009, p. 24, Ciência. Mais uma: “Lula anistia desmatadores
do passado. Ao lançar programa de regularização de terras na Amazônia, presidente
também critica ONGs.” Segue: “Ao lançar o programa Terra Legal e Mutirão Arco Verde,
que prevê a regularização de 296 mil imóveis rurais na região da Amazônia Legal,
o presidente Luiz Inácio Lula da Silva defendeu ontem quem desmatou a Floresta
Amazônica do passado, referindo-se aos desbravadores que colonizaram a região. (...)
Lula, que chamou os usineiros de heróis, esta semana saiu em defesa do presidente
do Senado, José Sarney (PMDB-AP), dizendo que ele ‘não pode ser tratado como
uma pessoa comum’ (...) As declarações foram feitas no palanque em que estavam o
Sustentabilidade insustentável? 301

do Código Florestal não polarizou visões contraditórias, inconciliáveis?


Sem dúvida, sim.
Blairo Maggi, ex-governador, por dois mandatos, do Mato Grosso,
empresário biliardário, apontado como o maior produtor individual de
soja do mundo, ganhador do troféu Motosserra de ouro, conferido pelo
Greenpeace, atualmente senador, protagonista de desentendimentos com
o Ministério do Meio Ambiente, ocupou a imprensa que noticiou ter ele
sido convidado pela Presidente Dilma (o Grupo Amaggi aparece como
um dos principais doadores da sua campanha) a assumir o Ministério dos
Transportes, recusado o chamado, novamente convidado, recusado de
novo, quando então a mídia passou a divulgar que ele poderia via a ser o
líder do Governo no Senado e ministro do desenvolvimento.13
Qual a opinião pública (ou publicada) a respeito da sustentabilida-
de? Manchete de primeira página de O Globo: “Entraves ambientais redu-
zem em 20% geração de energia.”14 A argumentação de que não existe coli-
são entre desenvolvimento e preservação dos ecossistemas pode encobrir
uma profunda fissura com a facticidade, onde todos podemos cair. Como
situar nesta dinâmica o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)? A
construção da usina hidroelétrica de Belo Monte, na Bacia do Rio Xingú,
é outro exemplo. Não há dicotomia? Não há embate de teses divergentes?
A rigor, somente é cabível asseverar que não há conflito se conside-
rarmos duas hipóteses: 1ª) alteração da compreensão mais corrente de
progresso, rompendo com a arrogância antropocêntrica, egocentrada (ao
invés de ecocentrada ou biocentrada), no que já foi chamado de período
antropoceno ou Era do homem; 2ª) a adoção do que podemos denomi-
nar, inspirado em Bauman, de sustentabilidade líquida, adaptável a recla-
mes outros, fluida, maleável.
Em uma época onde está presente o mito de que todos (ou quase
todos) estão preocupados com o meio ambiente, com os animais (não-hu-
manos), quando todos preconizam a sustentabilidade, forja-se a ecologia
simbólica ou o animalismo simbólico. Algo como, sem qualquer menção

governador Blairo Maggi, um dos maiores produtores de soja do país (...)”O Globo, 20
de junho de 2009, p. 3.
13 Em uma destas reportagens: “Dilma chama Blairo, mas PR, ‘magoado’, faz suspense.”
14 O Globo, 14 de junho de 2009, p. 1. “A expansão do sistema elétrico, essencial para
garantir o crescimento do país nos próximos anos, esbarra em entraves ambientais e
questões indígenas.” Na mesma página, a notícia, suprema dialética, agudo dilema:
“Crimes contra meio ambiente têm baixa punição no Brasil. Pesquisa do Imazon revela
que ficam impunes pelo menos 86% dos crimes de desmatamento ou extração de
minério em áreas protegidas da Amazônia Legal.”
302 A Sustentabilidade Ambiental em Suas Múltiplas Faces – Nilton Cesar Flores

ideológica, a apropriação da figura de Che Guevara pelo imaginário e pelo


comércio. Camisas, bandeiras, botons, souvenirs, e muito palavrório va-
zio.
Em agosto 2010, enquanto acontecia a II World Conference on Bio-
ethics and Animal Rights na Universidade Federal da Bahia, ocorria tam-
bém o 1º Congresso Internacional de Produção Pecuária, apoiado, por
exemplo, pelo SEBRAE, Governo da Bahia, Banco do Nordeste e Banco do
Brasil. No cartaz do evento da pecuária, o registro que não poderia faltar:
“Congresso Internacional de Produção Pecuária: integração, oportunida-
de e sustentabilidade.” A pecuária é a maior responsável pela devastação
da Amazônia, conforme dados oficiais. Com passivos ambientais severos.
E, vale realçar, nem se está, por ora, levando em consideração os animais,
enquanto indivíduos, não diluídos em um todo sem rosto, na categoria
fauna. O boi verde (a tecnologia a resolver/minimizar a produção de gás
metano, e.g.). A carne orgânica. O bem-estarismo (a [in]sustentabilidade
animal). Proliferam os selos verdes. Pronto! Consciência aplacada. Alcan-
çou-se a sustentabilidade! Ou pelo menos se está no caminho. Certo? E o
boi? Bem, ele não aparece no cartaz do congresso da pecuária; no cartaz,
só dois homens apertando as mãos, contentes, com um campo ao fundo.
Paisagem. Esta é a sustentabilidade? Depende. Vejamos a seguir.

2. As origens das concepções de desenvolvimento sustentável e


sustentabilidade

O movimento ambientalista contemporâneo é herdeiro das concep-


ções preservacionistas e conservacionistas surgidas no século XIX, nos
Estados Unidos da América. Até o século XIX os norte-americanos ainda
contavam com vastas áreas selvagens e o mito do não esgotamento fez
com que a necessidade de preservação do meio ambiente parecesse algo
desnecessário ou mesmo supérfluo. A ênfase era com a conquista e cor-
respondente consolidação dos direitos civis. A escravidão, neste sentido,
parece ter colaborado para obliterar outras discussões, afinal, para a maior
parte dos cidadãos, seria incongruente o Congresso optar por proteger a
natureza e, paralelamente, manter a instrumentalização humana15.
Quando Gifford Pinchot, primeiro chefe do Serviço Florestal estadu-
nidense, em 1907, delimitou o que denominou de conservacionismo, o

15 Na Inglaterra, no século XVIII, este espaço já estava aberto, razão talvez pela qual os
primeiros textos animalistas serem ingleses e datarem deste período.
Sustentabilidade insustentável? 303

paradigma utilitarista e antropocêntrico do meio ambiente já deitava raí-


zes profundas na sociedade ocidental. Daí a razão pela qual o significado
e os desdobramentos práticos do termo não estarem relacionados pro-
priamente com a efetiva proteção ou preservação do meio ambiente como
titular de valoração moral inerente. A concepção conservacionista, pelo
contrário, é marcada, desde seus primórdios, pela tentativa de controle
da natureza por meio da utilização racional e eficiente dos recursos natu-
rais16, a fim de servir às necessidades humanas17. A vida selvagem ameaça-
da pela sociedade urbano-industrial deveria, portanto, ser preservada por
traduzir-se como um recurso finito de interesse comum18.
É neste cenário conservacionista que, na segunda metade do século
XIX a maior parte dos estados norte-americanos começou a proteger a
natureza por meio da instituição dos parques e reservas florestais19, todos
atados a uma perspectiva eminentemente antropocêntrica.
Esse conceito eminentemente protecionista coincide com o início da
rápida industrialização ocorrida a partir do final do século XIX. O pós II
Guerra Mundial foi marcado pela pujança econômica, alimentada pelos
enormes gastos militares, pela explosão de novas tecnologias e pelo surgi-
mento de uma cultura urbana centrada na utilização do automóvel20. To-

16 A própria terminologia de recursos naturais revela a mentalidade utilitária do período.


A preservação do meio ambiente era vista somente como um meio de aumentar a
produtividade.
17 Uma breve passagem da carta de James Wilson, Secretário da Agricultura no período
de 1897 a 1913 deixa clara a ideia embrionária de desenvolvimento sustentável
dentro desta visão instrumental: “na administração das reservas florestais, deve restar
induvidoso que toda a terra é destinada a seu uso mais produtivo possível com o
fim de proporcionar o bem-estar da população (...). Todos os recursos das reservas
destina-se ao uso, e este uso deve ser feito racionalmente de modo a garantir a sua
permanência” WILSON apud FINKMOORE, Richard J. Environmental law and the
value of nature. Durham, NC: California Academic Press, 2010, p. 88.
18 A natureza, numa perspectiva conservadora, representa um bem coletivo, difuso,
comum a todos os cidadãos. O individualismo egoísta que busca a maximização da
satisfação pessoal (teoria clássica de Adam Smith) através dos mecanismos liberais de
mercado revela-se insuficiente para lidar com a gestão dos recursos que são comuns
a todos. Garret Hardin, em 1968, escreve um artigo intitulado A tragédia dos comuns
onde procura demonstrar que a maximização do consumo conjunto de um bem
comum pode gerar a depreciação acelerada deste mesmo bem. Como se costuma
dizer, o risco: o que é de todos pode parecer que não é de ninguém.
19 Yellowstone é criado em 1872, seguido de Adirondacks, em 1885 e Yosemite, em
1890. Todos criados, inicialmente, com propósitos relacionados à recreação e caça.
20 Já neste período inicial três incidentes relacionados aos novos padrões de consumo
foram notícia. O primeiro deles foi o Black monday em Los Angeles, em 1943, causado
pela poluição do ar (smog – junção de fog com smoke); o Donora episode, na cidade
304 A Sustentabilidade Ambiental em Suas Múltiplas Faces – Nilton Cesar Flores

dos esses fatores trouxeram modificações drásticas na esfera da produção


e consumo, bem como impactos ambientais relevantes, já que a relação
entre abundância e acesso a recursos naturais é direta.
Reflexo disto é que, na década de 5021, vinte e um estados estadu-
nidenses já possuíam legislação de combate à poluição das águas22 e um
número expressivo de organizações não-governamentais com um olhar
específico sobre os dilemas ambientais23.
As décadas de 70 e 80 são especialmente férteis em termos de pro-
dução legislativa sobre meio ambiente. A Declaração da Conferência da
ONU sobre o Ambiente Humano de 1972, conhecida como Conferência de
Estocolmo,24 representou um marco na internacionalização das preocu-

de mesmo nome, na Pennsylvania, em 1948; e o London fog, de 1952. Todos com


origem em fontes de poluição produzidas pelo homem. Além da poluição aérea, na
década de sessenta surgem questões relacionadas à água, fruto da falta de tratamento
do esgoto doméstico e do despejo direto de contaminantes industriais. Exemplo disto
é o caso das sucessivas combustões “espontâneas” do rio Cuyahoga. Outros acidentes
ambientais também fizeram história como os casos Seveso (1976), Amoco Cadiz
(1978), Bophal (1984), Chernobyl (1986) e Exxon Valdez (1989).
21 Neste contexto, segundo menciona Rômulo Silveira da Rocha Sampaio, o confronto
entre os índices de desenvolvimento e o nível de degradação ambiental gerou a tese
da curva de Kuznets, publicada em 1955, que demonstrava que, quanto maior o PIB
per capita, menores eram as taxas de degradação ambiental. “Sugeria-se que, para
que um determinado país pudesse incluir a preservação ambiental como um tópico
em sua pauta de prioridades, era preciso consentir que a essa mesma nação fosse
permitido utilizar ou impactar seu ambiente natural.” SAMPAIO, Rômulo Silveira da
Rocha. Direito Ambiental: doutrina e casos práticos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, p.
164. A mesma visão orientou o relatório do Banco Mundial sobre Desenvolvimento e
Meio Ambiente de 1992.
22 O início da proteção contra a poluição do ar demorou um pouco mais em virtude de
a indústria e as estradas de ferro terem feito um lobby poderoso durante muito tempo.
Apenas a partir da década de setenta esse cenário começa a se modificar. O Clean
Air Act, de 1970, e o Clean Water Act, de 1972, são exemplos claros do fenômeno de
intervenção estatal regulatória por meio da Environmental Protection Agency.
23 O Sierra Club foi criado em 1892 por John Muir para proteger o Yosemite Valley
da especulação imobiliária. Em 1905, a National Audubon Society foi fundada para
combater a matança de pássaros para a indústria da moda feminina. Interessante notar
que talvez tenha sido a primeira sociedade protetora ligada estritamente à proteção de
animais selvagens. As suas antecessoras (iniciadas em 1824, na Inglaterra, com a SPCA)
estavam mais ligadas à proteção dos animais domésticos contra maus-tratos ou abusos.
24 Anteriormente à Conferência de Estocolmo, o Clube de Roma, criado em 1968,
já havia elaborado o relatório Limites do crescimento, também conhecido como
Relatório Meadows. As conclusões deste estudo apontaram para o colapso do sistema
econômico global, em menos de cem anos, em virtude da acelerada depleção dos
recursos naturais.
Sustentabilidade insustentável? 305

pações ambientais, tendo conferido ênfase à relação entre o crescimento/


desenvolvimento econômico e a degradação do meio ambiente25.
No começo dos anos 80 a noção de sustentabilidade entra no discur-
so acadêmico com as obras de Robert Allen (How to save the world, 1980)
e Lester Brown (Building a susteinable society, 1981). Em 1983, o ONU
cria a Comissão Mundial para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, então
presidida por Harlem Brundtland, ex-primeira ministra da Noruega. Da
atuação desta comissão surge, em 1987, o relatório Nosso futuro comum,
que apresentou uma definição de desenvolvimento sustentável como sen-
do “o desenvolvimento que atende as necessidades do presente sem com-
prometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem a suas próprias
necessidades”26. Afirma ainda o mesmo relatório que “satisfazer as neces-
sidades e aspirações humanas é o principal objetivo do desenvolvimento”.
Apesar de o termo desenvolvimento sustentável não aparecer na
Constituição brasileira, a delimitação conceitual trazida pelo Relatório
Nosso Futuro Comum orientou a redação do texto constitucional, incluin-
do a defesa ambiental como parte do desenvolvimento nacional (art. 170,
VI; art. 225), tido como objetivo fundamental da República (art. 3º, II).
A Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, Lei n.º 6.938/81, por sua
vez, incorpora essa concepção ao estabelecer no art. 4º, I, que “a Política
Nacional do Meio Ambiente visará à compatibilização do desenvolvimento
econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do
equilíbrio ecológico”.
Cinco anos após a elaboração do relatório Nosso futuro comum, a
ONU realizou, no Brasil, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento, conhecida como Cúpula da Terra, Rio 92
ou Eco 92. Na ocasião, foram elaborados importantes documentos, des-
tacando-se entre eles a Declaração do Rio, a Convenção Quadro sobre
Mudanças Climáticas e a Agenda 21. O conjunto dessas declarações des-
de Estocolmo consolidou formal e substancialmente o conceito de desen-

25 O viés instrumental permanece o mesmo. Neste sentido, vejam-se alguns trechos do


que se proclamou nos itens 1, 3, 5 e 6 da referida Declaração: “(...) Os dois aspectos
do meio ambiente humano, o natural e o artificial, são essenciais para o bem-estar
do homem e para o gozo dos direitos humanos (...) a destruição e esgotamento de
recursos insubstituíveis são nocivos para a saúde física, mental e social do homem (...)
podemos conseguir para nós mesmos e para nossa posteridade condições melhores
de vida, em um meio ambiente mais de acordo com as necessidades e aspirações do
homem (...) De todas as coisas do mundo, os seres humanos são a mais valiosa (...)”.
26 Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Nosso futuro comum.
Rio de Janeiro: FGV, 1988.
306 A Sustentabilidade Ambiental em Suas Múltiplas Faces – Nilton Cesar Flores

volvimento sustentável no cenário jurídico internacional27 dentro de um


paradigma nitidamente utilitário28 e antropocêntrico29.

3. As várias sustentabilidades possíveis


Como se viu, a noção corrente de sustentabilidade deriva justamente
da necessidade de preservação dos ecossistemas diante do processo pro-
dutivo com o fim último de se alcançar um desenvolvimento compatível
com a capacidade de sustentação e resiliência dos sistemas naturais tendo
em vista os seus benefícios agregados para o bem-estar humano.
O problema de fundo é que a noção de sustentabilidade, e mesmo
a de preservação ou conservação do meio ambiente, parte de represen-
tações simbólicas e culturais que os seres humanos fazem do mundo na-
tural, ou seja, o conteúdo material do conceito pode variar conforme as
visões de mundo que informam a relação homem-natureza.
Neste sentido, há linhas de pensamento críticas que afirmam a inefi-
cácia da concepção tradicional de sustentabilidade. Somos consumidores
e as nossas respostas às dificuldades, baseadas no paradigma utilitário,

27 Em 1993 o então Presidente Bill Clinton estabelece o President’s Council on


Sustainable Development (PSCD) com o intuito de realizar uma agenda doméstica
sobre o tema. Em 1999, surgiu o primeiro índice global que acompanha o desempenho
financeiro das companhias líderes em sustentabilidade em todo o mundo com papéis
negociados na Bolsa de Nova York (índice Dow Jones de sustentabilidade), seguido
em 2005 pelo índice de sustentabilidade empresarial da BOVESPA e outras medidas
de revisão constante dos padrões adotados pelas conferências realizadas (Rio+5,
Rio+10 e Rio+20).
28 O princípio 1 da Declaração do Rio estabelece expressamente que: “Os seres humanos
estão no centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável. Todos têm
direito a uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a natureza”.
29 Os movimentos eco-desenvolvimentistas, em especial os surgidos a partir da década
de 70, correspondem à abordagem econômica da questão ambiental, reconhecendo
o valor econômico dos recursos naturais dentro da estrutura do sistema de mercado.
Segundo Jefferson Marçal da Rocha, na economia ambiental, o meio ambiente exerce
três funções, a saber: (a) serviços diretos: o ar que se respira, o lazer, paisagem,
etc.; (b) insumos para a produção: combustíveis, matéria-prima, água e outros; (c)
recepção de resíduos: tanto do consumo como da produção. A questão, segundo o
referido autor é “como alocar mais eficientemente estes recursos”. Ronald Coase e
Arthur Cecil Pigou resgatam a teoria econômica neoclássica e postulam que os dilemas
ambientais só existem diante da escassez dos bens e, nessa situação, será o mercado
que, em última análise, saberá escolher a melhor maneira de preservar estes recursos
ROCHA, Jefferson Marçal da. Sustentabilidade em questão: economia, sociedade e
meio ambiente. Jundiaí: Paco Editorial, 2011, p. 83.
Sustentabilidade insustentável? 307

geralmente envolvem novas modalidades de consumo. Como pensar em


menos (menos poluição, menos carbono, menos desmatamento, menos
lixo, menos morte de animais, etc.) quando estamos culturalmente e eco-
nomicamente condicionados para o mais? Conforme provocativamente
aponta Zygmunt Bauman, a ética é possível num mundo de consumido-
res30? Esse é o grande paradoxo a ser enfrentado e que forçará um novo
olhar sobre a natureza, seres não-humanos, ecossistemas.
A ecologia, como ciência natural, tem suas origens no século XIX31,
mas consolidou-se apenas no século XX. Todavia, embora as vertentes eco-
cêntricas somente tenham obtido impulso e reconhecimento acadêmico
tardiamente, conforme assinala Donald Worster, já havia ecologistas antes
da ecologia. Henry David Thoureau (1817-1862) era um deles. Seguindo
em parte a linha animista/organicista, Thoureau escolhe simbolicamente a
data de 4 de julho de 1845 para partir para o lago Walden em busca de um
novo ponto de partida para sua reflexões sobre a natureza. Com proprie-
dade percebia que a não-exaustão da natureza era nada mais que um mito.
Como transcendentalista, o holismo de Thoureau derivava de sua crença
na existência de uma entidade sobrenatural a que chamava de oversoul
que permeava tudo aquilo que existia. Para o pensador, a intuição, mais
do que a razão, permitiria que obtivéssemos acesso essa dimensão espi-
ritual, que se coloca acima das aparências meramente físicas: “(...) a terra
sobre a qual caminho não é uma massa inerte, morta; é um corpo, possui
um espírito, é orgânica e sofre a ingerência desse espírito”32.
De acordo com Nash, em Thoureau há como que uma manifestação
de uma ecologia de cunho espiritual ou teológico. O pensador refere-se
à natureza e aos animais como seus semelhantes, como sua sociedade.
Nesta sociedade não havia uma demarcação hierárquica33: “as matas não
eram vazias, mas sim repletas de espíritos generosos, tão bons como eu

30 BAUMAN, Zygmunt. A ética é possível num mundo de consumidores? Rio de Janeiro:


Zahar, 2011.
31 Ernst Haeckel (1834-1919) cunhou inicialmente o termo em 1866. A expressão meio
ambiente, por sua vez, é de origem ainda mais remota, tendo como pai o dinamarquês
Jens Baggensen e foi introduzida no discurso biológico por Jakob von Uexkül
(1864-1944).
32 THOUREAU apud NASH, Roderick Frazier. The rights of nature: a history of
environmental ethics. Madison: University of Wisconsin Press, 1989, p. 37.
33 Neste sentido se distancia de pensadores como George Perkins Marsh (Man and nature;
or, physical geography as modified by human action – 1864) que embora refletissem
sobre a destruição do meio ambiente, o faziam sob o prisma antropocêntrico. Marsh,
por exemplo, advogava a tese do controle tecnológico para possibilitar a regeneração
ecológica.
308 A Sustentabilidade Ambiental em Suas Múltiplas Faces – Nilton Cesar Flores

em qualquer outro dia (...) aquilo que chamamos de natureza, na verdade


representa uma outra civilização, além da nossa.”34 Embora evitasse falar
em direitos, afirmava que, por coerência, “se alguns são processados e pu-
nidos por maltratar crianças, outros deveriam merecer o mesmo destino
por maltratar a natureza”35.
O naturalista escocês John Muir (1838-1914), erradicado nos EUA,
utilizou o termo direito para além dos animais36. Esse seu despertar se deu
em razão do alistamento militar quando, em campanha no Lago Huron,
no Canadá seguiu um trilha isolada e se deparou com uma paisagem idí-
lica, repleto de raras orquídeas brancas. Ao refletir posteriormente sobre
a experiência, Muir constata que sua emoção em ver as orquídeas, além
da sua beleza, se deu em razão de seu desprendimento em relação à hu-
manidade. Existiam por si próprias. Neste sentido, tudo tinha um valor37
independente do homem. Não só os animais, como também as plantas e
as rochas possuíam a centelha divina38.
Na aurora do século XX estavam lançadas as bases para o alargamento
da comunidade moral para além da animalidade, humana ou não-huma-
na. Em 1914 o biólogo escocês J. Arthur Thompson descreve os laços de
interdependência entre os sistemas vitais como a teia da vida, anteci-
pando em algumas décadas Fritjof Capra. No ano seguinte, em Ithaca,
na Universidade de Cornell, Liberty Hyde Bailey publica The Holy Earth,
obra na qual sustenta a valoração inerente do planeta como um todo39,
também colocando-se como legítimo antecessor de Lovelock com sua hi-

34 NASH, op.cit., p. 37.


35 Ibid., p. 37. Nash aponta que, em certa ocasião, Thoureau teria apontado a
inconsistência de um presidente de uma sociedade anti-escravagista trajar um casado
de peles.
36 “How narrow we selfish, conceited creatures are in our sympathies! How blind to the
rights of all the rest of creation!” MUIR, John. A thousand-mile to the Gulf. New York:
Houghton Mifflin Company, 1916, p. IX.
37 Em várias passagens faz referência abertamente aos direitos dos animais, inclusive
daqueles mais estigmatizados pelo homem, como os répteis. A esse respeito
MIGHETTO, Lisa (ed.). John Muir and the rights of animals. In: Muir among the
animals. San Francisco: Sierra Club Books, 1989.
38 WOLFE, Linnie Marsh (ed.). John of the mountains: the unpublished journals of John
Muir. Wisconsin: University of Wisconsin Press, 1979, p. 138.
39 O período era de formação de novos conceitos. Em 1927 Charles Elton cunho ou
termo cadeia alimentar com a metáfora da pirâmide alimentar. Na realidade Elton
sustentava a vulnerabilidade do sistema pois a base teria mais importância que o
topo, já que estabilizador para todo o sistema. Esta lógica valorativa parece ter sido
equivocadamente subvertida. Em 1930, Frederic Clements utiliza o termo comunidade
biótica ou bioma em sua obra Bio-Ecology.
Sustentabilidade insustentável? 309

pótese Gaia40. No mesmo caminho, William Morton Wheeler (1865-1937)


e Alfred North Whitehead (1861-1947) juntam-se em Harvard para estudar
as relações de interdependência entre os organismos naturais, propug-
nando pela valoração inerente de todos os elos desta corrente.
Aldo Leopold (1887-1948) é tido como uma das figuras centrais do
pensamento ecológico, embora a sua proclamada ética da Terra (land
ethic) tenha sido alvo de um curto trecho da sua obra principal A sand
county almanac, publicada em 1949. O impacto das ideias de Leopold le-
vou Donald Fleming a classificá-lo como o Moisés da natureza, algo como
o pai do ambientalismo moderno.
A famosa frase Thinking like a mountain41 (que representa a trans-
cendência do antropocentrismo) surge num ensaio que realiza em 1944
onde descreveu uma fase anterior de sua vida quando abateu a tiros um
lobo que cruzava um rio. O lobo morreu, mas Leopold ainda teria tido
tempo de ver “uma chama verde morrendo em seus olhos”. Essa chama
cintilante dos olhos do animal assombrou o pensador por cerca de trinta
anos. Este episódio faz com que ele adotasse uma postura conservacio-
nista (inspiração em Pinchot), mas com uma conclusão de efeitos morais
diversa da posição tradicional. Para Leopold, a Terra era muito mais que
a provedora da humanidade. Ela própria estaria viva, tal como um grande
organismo.
No artigo The conservation ethic, publicado em 193342, Leopold traça
um paralelo entre a escravidão humana e a propriedade da Terra fazendo
alusão ao mito de Odisseu43. A divindade grega, ao retornar para casa,

40 A hipótese Gaia, originalmente proposta por James E. Lovelock, também denominada


como hipótese biogeoquímica, propõe que a biosfera e os componentes físicos da
Terra (atmosfera, criosfera, hidrosfera e litosfera) são intimamente integrados de
modo a formar um complexo sistema interagente que mantêm as condições climáticas
em homeostase (Terra como um grande organismo vivo).
41 O filósofo russo Peter D. Ouspensky (1878-1947), contemporâneo de Leopold, em
Tertium organum, publicado em 1912, antecipava esta tese ao afirmar que nada
havia de mecânico ou inerte na natureza; a vida e o sentimento habitam tudo o que
existe, orgânico ou inorgânico: “uma montanha, uma árvore, um rio, o peixe deste
rio, gotas d’água, a chuva, uma planta, o fogo – cada qual possui uma mente própria”
OUSPENSKY, Peter D. Tertium organum: the third canon of thought, a key to the
enigmas of the world. New York: Kessinger Publishing, 1981, p. 166. Ouspensky fala
da mente de uma montanha e é provável que Leopold tenha tirado daí a sua famosa
frase.
42 LEOPOLD, Aldo. The conservation ethic. Jounal of forestry, n. 31, out. 1933.
43 Em 1947, no livro A sand county almanac, Leopold retoma o mesmo mito na parte
relativa à Ética da Terra. LEOPOLD, Aldo. The sand county almanac. New York:
Ballantine Books, 1966.
310 A Sustentabilidade Ambiental em Suas Múltiplas Faces – Nilton Cesar Flores

determinou o enforcamento de doze escravas por mau comportamento.


Ocorre que Odisseu não era um assassino. O problema era o de que, como
propriedade, as escravas não faziam parte da comunidade moral, estavam
fora do seu alcance ético. O mesmo ocorreria com a natureza, que ainda
encontra-se oprimida. Em A sand county almanac, Leopold ressalta que
o homem é simplesmente mais um membro da comunidade biótica e que
o problema central era o de que consideramos o planeta uma commodity,
tal qual Odisseu com suas escravas.
A ideia decorrente dessas considerações é a de que as formas de vida
não-humanas e o próprio ecossistema também deveriam, como entes mo-
rais, possuir direitos fundamentais, ou, como prefere, direitos bióticos
(biotic rights). Em Ética da Terra afirma que “o direito à existência conti-
nuada” se aplica aos animais, plantas e até mesmo ao solo: “há obrigações
para com a Terra acima daquelas ditadas pelo mero interesse individu-
al”, obrigações baseadas no reconhecimento que humanos e os demais
componentes da natureza são iguais ecologicamente (igualitarismo eco-
lógico). O uso desses elementos naturais seria correto “quando tende a
preservar a integridade, a estabilidade e a beleza da comunidade biótica,
que inclui o solo, as águas, a fauna, a flora, e também as pessoas” (axioma
da integridade).
As ideias de Leopold não foram bem assimiladas de plano, seja pela
sua radicalidade em relação à necessidade de reestruturação do sistema da
propriedade privada e da própria noção de progresso, seja também pelo
momento histórico de privações da Grande Depressão de 1929 e depois
da II Guerra Mundial.
Outros seguiram a trilha aberta por Leopold, como é o caso de Jose-
ph Wood Krutch (1893-1970), René Dubos (1901-1982), Rachel Carson
(1907-1964), Edward O. Wilson, David Ehrenfeld, J. Baird Callicott, Hol-
mes Holston III, entre outros, chegando-se, por fim, à sistematização da
denominada Ecologia Profunda (Deep Ecology). Ao contrário da Ética da
Terra proposta originalmente por Leopold, não há uma fonte única ou
mesmo uma formulação rígida sobre o conteúdo da Ecologia Profunda. O
termo foi utilizado em vários contextos e de formas distintas ao longo do
tempo, variando desde uma descrição geral de teorias não-antropocêntri-
cas até o sentido mais estrito que foi empregado pelo filósofo norueguês
Arne Naess (1912-2009), criador da terminologia, e de seus seguidores
como Bill Devall e George Sessions.
Naess introduziu, em 1972, uma distinção entre o que denominou de
Ecologia Rasa (Shallow Ecology) e a Ecologia Profunda (Deep Ecology). A
Sustentabilidade insustentável? 311

Ecologia Rasa estaria inserida primariamente no paradigma antropocêntri-


co e teria por objetivo proteger o meio ambiente como meio para assegu-
rar o fim de bem-estar humano. Quebrando o paradigma antropocêntrico,
a Ecologia Profunda, por sua vez, compromete-se com a ideia de que a
relação entre homem e natureza é holística. A melhoria da qualidade do
meio ambiente está diretamente associada a uma mudança de postura,
de atitude do homem frente aos problemas naturais e envolve o cultivo
da consciência ecológica que reconhece a unidade de humanos, plantas,
animais e a própria Terra.
A plataforma de princípios básicos sobre os quais se apoia a teoria
ecológica profunda foi desenvolvida por Naess e Sessions em Deep Eco-
logy: living as if nature mattered e tem como norte as ideias de auto-
-realização e igualdade biocêntrica ou ecológica. Tais princípios são: (1)
O bem-estar e o desenvolvimento da vida humana e não-humana na Terra
possuem valor inerente. Esses valores são independentes da utilidade dos
elementos não-humanos para os propósitos humanos. (2) A riqueza e a
diversidade das formas de vida contribui para a realização desses valores e
são, em si mesmas, também valores autônomos. (3) Os humanos não têm
direito de reduzir essa riqueza e diversidade, exceção feita para o fim de
satisfazerem necessidades vitais. (4) O desenvolvimento da cultura e da
vida humana é compatível com uma substancial redução populacional. O
desenvolvimento da vida não humana demanda essa redução. (5) A atual
interferência humana no mundo não-humano é excessiva e essa situação
piora rapidamente. (6) As políticas públicas devem ser rapidamente revis-
tas e modificadas. O resultado das mudanças nas áreas econômica, tecno-
lógica e ideológica promoverá uma situação muito diversa da atual. (7) A
mudança ideológica consiste basicamente em uma nova percepção sobre
a qualidade de vida e não na promoção de padrões de vida cada vez mais
altos. Haverá uma profunda alteração na compreensão da diferença entre
o que é grande e o que é bom. (8) Aqueles que subscreverem estes prin-
cípios têm uma obrigação direta ou indireta com a implementação prática
destas mudanças44.
A partir deste período45, o reconhecimento acadêmico da ciência eco-
lógica fez nascer a necessidade da revisão do conceito de comunidade

44 DEVALL, Bill; SESSIONS, George. Deep Ecology: living as if nature mattered. Layton,
Utah: Gibbs Simith, 1985, p. 70.
45 Confrontado com as pressões da indústria e dos defensores do meio ambiente, o
serviço florestal dos EUA solicita ao Congresso, em 1960, um esclarecimento sobre
sua missão institucional. É editado então o Multiple-Use Sustained-Yeld Act - MUSY (16
U.S.C. §§ 528 to 531) que afirma que o objetivo da entidade era o de proporcionar
312 A Sustentabilidade Ambiental em Suas Múltiplas Faces – Nilton Cesar Flores

biológica, ou seja, o respeito ao meio ambiente passa a ser analisada sob


o ponto de vista ético e não mais meramente econômico. Duas linhas
opostas de pensamento: 1ª) uma primeira que condena o abuso do ponto
de vista do prejuízo que traz ao equilíbrio ecológico e à própria dignidade
do homem (direito humano ao meio ambiente ecologicamente equili-
brado); 2ª) e outra que afirma o valor inerente da natureza e de seus ele-
mentos, num nítido contraponto à tradicional posição antropocêntrica,
(postulação dos direitos da natureza).
Embora utilizassem o arcabouço ideológico do liberalismo, esta últi-
ma posição sempre foi associada, de uma forma ou de outra, a um supos-
to radicalismo. O historiador Theodore Roszak já afirmava que o novo
ambientalismo era profundamente subversivo, pois rumavam contra os
valores da sociedade e da cultura norte-americana do período46. Todavia,
conforme mencionado, essa característica apontada por Roszak deve ser
temperada com o reconhecimento de que as metas do novo movimento
nada mais são do que a aplicação do velho ideal da liberdade desta feita
aplicada à natureza, ou seja, uma modelagem revisada e ampliada da tra-
dição liberal.

4. Considerações finais
O relatório Rumo a uma economia verde: caminhos para o desen-
volvimento sustentável e a erradicação da pobreza, elaborado pelo Pro-
grama das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUMA), conceitua
economia verde como uma economia que resulta em melhoria do bem-es-
tar da humanidade e igualdade social, ao mesmo tempo em que reduz
significativamente riscos ambientais e escassez ecológica. A ONU critica
a tomada do PIB como indicador do desempenho econômico ao mesmo
tempo em que afirma que, em uma economia verde, o PIB tende a crescer
ainda mais do que na economia marrom. Fica evidente que a concepção
de sustentabilidade, neste viés, significa manter/conservar para utilizar, ex-

a preservação das florestas em função de necessidades humanas como é o caso dos


interesses relativos à recreação e extração de recursos naturais, como também em
função dos interesses da manutenção do próprio ecossistema de que são exemplos
a fiscalização sobre as nascentes e cursos d’água e de preservação da vida selvagem.
Demandas importantes foram manejadas em relação à extração de madeira: Sierra
Club v. Hardin – U.S. District Court 325 F. Supp. 99 (D. Alaska, 1971) e Sierra Club v.
Butz – U.S. Court of Appeals 3 Envtl. L. Rptr. 20292 (9th Cir. 1973).
46 ROSZAK, Theodore. Person/planet: the creative disintegration of industrial society.
Lincoln, NE: Universe, 2003.
Sustentabilidade insustentável? 313

plorar prudentemente para não drenar os recursos naturais. Para evitar a


escassez ecológica.47
O ponto de referência, único fim em si mesmo, é o ser humano. Eco-
logia Rasa, induvidosamente. Confira-se no trecho adiante: “A biodiversi-
dade, estrutura viva deste planeta, inclui vida em todos os níveis: genes,
espécies e ecossistemas. Em cada um desses níveis, a biodiversidade con-
tribui para o bem-estar humano e proporciona economias com contribui-
ções de recursos valiosas, assim como regula serviços em direção a um am-
biente operativo seguro.”48 Em outro trecho: “Assim, uma transição para
economia verde não apenas reconhece e demonstra o valor do capital
natural – como provedor de bem-estar para a humanidade, como prove-
dor de sustento para famílias carentes, e como fonte de empregos novos e
decentes – mas também investe neste capital natural e o desenvolve para
um progresso econômico sustentável.”49 Indagado se algum país já pratica
a economia verde, Yvo de Boer, que esteve à frente da Convenção de Mu-
danças Climáticas da ONU de 2006 a 2010, respondeu: “Não, nenhum.”50
Com efeito, como anotou Bill Devall, nem mesmo a Ecologia Rasa se con-
solidou como o paradigma efetivamente adotado.51

47 “Por exemplo: atualmente, apenas 20% das reservas populacionais de peixes comerciais,
em sua maioria de espécies de baixo preço, são subexploradas; 52% são totalmente
exploradas sem mais espaço para expansão; cerca de 20% são sobreexploradas e 8%
estão esgotadas. A água está se tornando escassa e há previsão de que o estresse hídrico
aumente quando a distribuição de água satisfizer apenas 60% da demanda mundial
em 20 anos. A agricultura teve um aumento de colheitas devido, essencialmente, ao
uso de fertilizantes químicos, que reduziram a qualidade do solo14 e não refrearam
a tendência crescente de desmatamento (que continua a 13 milhões de hectares
de floresta por ano de 1990-2005). A escassez ecológica está, portanto, afetando
seriamente a gama inteira de setores econômicos, que são o alicerce do fornecimento
alimentar humano (pesca, agricultura, água doce, silvicultura) e uma fonte crítica de
sustento para a população carente. A escassez ecológica e a desigualdade social são
marcas registradas de uma economia que está longe de se tornar ‘verde’.” Rumo a
uma economia verde: caminhos para o desenvolvimento sustentável e a erradicação
da pobreza, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUMA), 2011.
48 Rumo a uma economia verde, cit., p. 5.
49 Idem, p. 6.
50 O Globo, 29 de março de 2012, p. 24, Rio + 20.
51 “The deep, long-range ecology movement has developed over the past four decades
on a variety of fronts. However, in the context of global conferences on development,
population, and environment held during the 1990s, even shallow environmentalism
seems to have less priority than demands for worldwide economic growth based
on trade liberalization and a free market global economy.” DEVALL, Bill. The Deep,
Long-Range Ecology Movement 1960-2000: a review. In: Ethics & the environment,
6.1, p. 18-41. Indiana University Press, 2001.
314 A Sustentabilidade Ambiental em Suas Múltiplas Faces – Nilton Cesar Flores

Repare-se: Juan Carlos, rei da Espanha, presidente de honra da WWF,


passa atualmente (abril de 2012) por um inferno astral, severamente con-
testado, para além dos seus súditos, por um consenso que se alarga por
todo o mundo. O rei foi caçar elefantes em Botsuana. Caçar elefantes? Em
pleno terceiro milênio? Pois é. Elefantes que há pouco tempo estiveram
sob ameaça de extinção (comércio de marfim, e.g.). Elefantes que têm a
sorte de gozar da simpatia popular. E logo começaram a circular fotos e in-
formações de outras caçadas do monarca. Foto ao lado de dois cadáveres
de búfalos, onde ele satisfeito, vitorioso, posa com um rifle; foto na frente
de um elefante abatido. Caçadas recreativas, isto é, pelo prazer. A WWF se
apressou em retirá-lo da presidência de honra da organização.52 Parte da
repercussão negativa, anote-se, se deveu à caçada se dar em momento de
acentuada crise na Espanha, menos pela caça em si.53 Gritos pela abdica-
ção foram ouvidos.
Contudo, poder-se-ia interrogar: mas, o rei espanhol não é favorável
à sustentabilidade, à economia verde? Certamente ele responderia que
sim. A caçada dos elefantes nada tem que ver com esta questão. Tal respos-
ta demonstra que a noção tradicional de sustentabilidade é insuficiente,
está maculada pela decrepitude.54 Demonstra que a sustentabilidade deve

52 “A caça esportiva – um dos hobbies do rei – é controversa, mas pode até mesmo ser um
recurso válido para a preservação ambiental, segundo o WWF. E, em Botsuana, onde
os elefantes não estão em extinção, a prática é autorizada e regulamentada.” O Globo,
17 de abril de 2012, p. 25. A posição da WWF, que nada tem que ver com Direito dos
Animais, muito pelo contrário, é bem sintomática. Como os elefantes não estão em
extinção, naquele país, então tudo bem. Ou seja: a caçada a elefantes em Botsuana
é sustentável. No site da WWF, Espanha, consta o seguinte comunicado. Note-se a
referência à ilegalidade. “WWF viene trabajando por la conservación de los elefantes
desde hace 50 años, luchando contra sus principales amenazas, como la destrucción
del hábitat, la caza furtiva, el tráfico ilegal de marfil y el aumento de conflictos
con la población local. La organización trabaja en la conservación de elefantes
africanos a través de proyectos orientados a mejorar la gestión y protección de los
elefantes, capacitar a los países del área de distribución de la especie, mitigar los
conflictos entre humanos y elefantes y luchar contra el comercio ilegal.” Isto é: o que
importa é se a matança, o tráfico, o comércio são legais ou ilegais? Este é o parâmetro?
Repita-se: nada que ver com Direito dos Animais.
53 Após um pedido de desculpas lacônico por parte do rei, sem mencionar a caçada, o
presidente do Parlamento, Jesús Posada, considerou o pedido de desculpas excelente,
o Partido Popular declarou seu “respeito a uma monarquia que está em sintonia com
o que o povo espanhol espera e necessita dela”, o chefe de governo, Mariano Rajoy,
afirmou em relação ao rei: “Ele é o melhor embaixador da Espanha (...)”.

54 Tão carcomida como a caçada de elefantes é a monarquia. Um rei que tem por lazer
caçar elefantes (ursos, búfalos) soa hoje como surreal, uma anedota de péssimo gosto,
Sustentabilidade insustentável? 315

se assumir como manifestação da Ecologia Profunda (a substituição da


sustentabilidade rasa pela sustentabilidade profunda). E esta perspecti-
va estará completa com o aporte do Direito dos Animais.
Com efeito, a sustentabilidade antropocêntrica é egoísta, continua
instrumentalizando a vida não-humana; a sustentabilidade focada exclu-
sivamente nos ecossistemas é confortável porque esfumaça o indivíduo no
todo e, desta feita, fica esvanecido o dever perante cada um, obnubilado
o valor intrínseco de cada ser, independente do valor das relações estabe-
lecidas (holisticamente). Nesta esteira, sustentabilidade pode traduzir a
estratégia de preservar para coisificar.
Sem embargo, há uma mudança em curso, a erosão do antropocen-
trismo é cada vez mais sentida. É patente que a sustentabilidade não é ex-
clusivamente humana, que outros seres possuem direito ao meio ambien-
te ecologicamente equilibrado. A previsão da Constituição da Bolívia, de
2009, é pioneira, sinaliza a mudança de referencial. A redação do art. 33:
“Las personas tienen derecho a un medio ambiente saludable, protegido
y equilibrado. El ejercicio de este derecho debe permitir a los individu-
os y colectividades de las presentes y futuras generaciones, además de
otros seres vivos, desarrollarse de manera normal y permanente.”55 Se
diante do caput do art. 225 da Carta de 1988 pode haver dúvida acerca
da titularidade do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado
(quem são Todos?),56 e a doutrina majoritária e tradicional advoga que
os titulares são exclusivamente os seres humanos, frente à Carta bolivia-
na não subsiste divergência: também outros seres vivos têm direito a un
medio ambiente saludable, protegido y equilibrado, fator indispensável
do seu próprio desenvolvimento, bem viver. Não é difícil concluir que
daí decorre um conjunto de direitos de seres não pertencentes à espécie
humana.
Ademais, a Constituição do Equador, de 2008, pela primeira vez no
mundo, prevê, expressamente, direitos para além da espécie humana. A
natureza como titular de direitos. Art. 71: “La naturaleza o Pacha Mama,
donde se reproduce y realiza la vida, tiene derecho a que se respete inte-
gralmente su existencia y el mantenimiento y regeneración de sus ciclos

algo anacrônico, inacreditável. Deveras. Porém, está aí, acontecendo diante de rostos
estarrecidos, pasmos, mas também indignados, coléricos.
55 Negrito acrescentado.
56 “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem
de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder
Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras
gerações.”
316 A Sustentabilidade Ambiental em Suas Múltiplas Faces – Nilton Cesar Flores

vitales, estructura, funciones y procesos evolutivos.”57 Conquanto haja


um embate com a concepção antropocêntrica, arraigada e não superada,
e, nesta medida, alguma aparente tensão com outro(s) dispositivo(s) da
Carta,58 não é possível afirmar, como alguns se apressaram, que os manda-
mentos constitucionais que assumem direitos da natureza são retóricos.
Ora, esta leitura ignora – e aqui a ignorância é proposital – toda uma li-
teratura que por décadas veio solidificando o caráter normativo de todos
os preceitos integrantes da Constituição. Constituição é norma! Ou não?
Alguém diria que não ainda hoje? Que as disposições constitucionais são
(todas, sem exceção) normas é matéria pacificada. Defender que a nor-
matividade constitucional que enuncia direitos da natureza é de cunho
retórico esvazia a sua força jurídica e é postura que desqualifica a juridi-
cidade pelo estranhamento ou pela oposição ao que tal comando revela
(pré-compreensão contrária). Não há na Lei Fundamental dispositivo des-
provido de eficácia jurídica.59
Em 2010 foi publicada, na Bolívia, a Ley Madre Tierra, que igualmente
incorpora direitos à natureza e, nesta esteira, deveres (humanos) perante
ela. E define no art. 3º: “La Madre Tierra es el sistema viviente dinámico
conformado por la comunidad indivisible de todos los sistemas de vida y
los seres vivos, interrelacionados, interdependientes y complementarios,
que comparten un destino común.” Ecologia não-antropocêntrica.60 No
mesmo ano, o Presidente Evo Morales, em discurso na ONU, conclamou
à adoção de uma Declaración Universal de Derechos de la Madre Tierra.
O Direito dos Animais deve ser assimilado como filtro para se chegar
ao juízo de sustentabilidade. Isto é: a pecuária viola direito dos animais,

57 O art. 71 inaugura o capítulo sétimo, do Título II, capítulo nomeado “Derechos de la


naturaleza”. Antes, no art. 10: “La naturaleza será sujeto de aquellos derechos que le
reconozca la Constitución.” O art. 10 faz parte também do Título II e, além da redação
transcrita, prevê direitos humanos. Ou seja, em uma perspectiva de integração,
contempla a um só tempo direitos humanos e direitos não-humanos.
58 Art. 74: “Las personas, comunidades, pueblos y nacionalidades tendrán derecho a
beneficiarse del ambiente y de las riquezas naturales que les permitan el buen vivir.”
59 Como assenta Luís Roberto Barroso, “nenhuma lei, qualquer que seja sua hierarquia,
é editada para não ser cumprida.” BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional
e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira.
3.ed. atual. ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 1996, p. 58.
60 Como dito, não se empreende aqui aprofundamento doutrinário acerca da matéria.
Contudo, cumpre anotar que se deve ter cuidado com nomenclaturas que costumam
circular indistintamente. Biocentrismo, ecocentrismo, geocentrismo são expressões
que traduzem teses diferentes. Bem como importa compreender a relação entre o
Direito dos Animais e a Ecologia Profunda, aspectos de concordância e que suscitam
tensão, conforme as variadas elaborações que se põem.
Sustentabilidade insustentável? 317

logo não há que se perguntar pela sua sustentabilidade; caçar animais por
diversão (não interessando se conduta legalizada ou não) agride direi-
to dos animais, portanto não cabe questionar sobre a sua sustentabilida-
de. A sustentabilidade profunda só existe em ruptura com o paradigma
antropocêntrico, tendo em conta todos os direitos envolvidos, ou seja,
também os sujeitos de direitos não-humanos. Em outras palavras: a capa-
cidade de um ecossistema se regenerar, da reprodução da vida acontecer,
não diminui em nada as vidas ceifadas ou os sofrimentos impostos. Uma
sustentabilidade que não leve isto em consideração é verdadeiramente
insustentável.

5. Referência bibliográficas
BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas
normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. 3.ed. atual.
ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 1996.
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