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Catalogação na Fonte
1. INTRODUÇÃO
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O fenomeno histórico das Missões Jesuítico-Guaranis é um exemplo típi-
co inserido neste contexto, a nos ensinar ainda hoje como a integração é possí-
vel, mesmo quando existem disparidades culturais muito grandes entre as popu-
lações. Não podemos ignorar que a fronteira cultural que separava na época
colonial os guaranis (emergindo da Pré-História) e os jesuítas (em pleno Barro-
co) era bem maior do que as diferenças que nos separam das demais populações
platinas. Atualmente, a revalorização dos episódios comuns desta história de
longa duração apenas nos faz compreender melhor a importância de episódios
como o das Missões Jesuítico-Guaranis. Sua valorização como património his-
tórico e cultural comum a todos os povos da região se impõe com toda a impor-
tância histórica que merecem. Mais do que uma referência histórica para as
atuais populações missioneiras, esses "pueblos de índios" coloniais são um sím-
bolo para a integração cultural de toda a região.
O presente trabalho tem como finalidade examinar essa problemática da
fronteira cultural e de como ela pode ser compreendida a partir de documentos
iconográficos originais do século XVIII. Uma série de mapas, gravuras e dese-
nhos em cores encontrados em arquivos europeus nos evidencia importantes
informações sobre os espaços missioneiros, constituindo verdadeiros planos ur-
banísticos. A observação e a análise desses documentos nos permite desvelar as
sínteses culturais ocorridas entre o mundo ibérico e o indígena, bem corno a
complexidade das integrações que ali ocorreram. Três desses documentos
iconográficos têm como temática a Redução de São João Batista, na fronteira
entre às áreas coloniais dos impérios ibéricos no Rio da Prata. São semelhantes
e provavelmente da mesma autoria, mas apresentam algumas diferenças impor-
tantes. O primeiro deles, uma gravura em metal, vem sendo publicado regular-
mente em preto e branco desde os anos 60, nas obras sobre a temática missioneira.
Os outros dois são desenhos em cores e se encontram respectivamente no Ar-
quivo de Simancas (Espanha) e na Biblioteca Nacional em Paris (França). O
documento espanhol em cores é relativamente pouco explorado. Neste trabalho
pretendemos analisar muitos de seus detalhes. O documento francês é inédito,
está sendo publicado pela primeira vez em nosso mei03e encontra-se ainda em
processo de reprodução e análise nos quadros do projeto "Arqueologia Históri-
ca Missioneira". São obras de arte elaboradas com um desenho preciso e objeti-
vo, ornados com maravilhosas cores. Sua riqueza iconográfica é excepcional à
medida que nos dão precisas informações históricas sobre o cotidiano nesses
"pueblos de índios", bem como os processos de transculturação ali ocorridos.
Os documentos citados serão aqui examinados como exemplificação da temática
proposta e apresentados como evidências que justificam as interpretações
sugeridas. Através deles podemos constatar a importância dos documentos
iconográficos como fonte de informações, e não apenas como mera ilustração
dos textos com base em documentos escritos.
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2. O PLANO URBANÍSTICO DAS MISSÕES
JESUÍTICO-GUARANIS: FONTES HISTÓRICAS 4
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tem uma origem histórica bastante complexa e muito anterior à própria fundação
da Companhia de Jesus. Em primeiro lugar é necessário destacar a origem mc-
dieval de parte desse plano urbano. Os beneditinos elaboraram plantas-tipo para
seus mosteiros, nos quais a igreja era flanqueada pelo cemitério, por um lado, e
pelo claustro e a residência dos monges, pelo outro. O claustro era um espaço
retangular fechado, em torno do qual os monges tinham possibilidade de levar
uma vida reclusa. Havia uma clausura dentro da qual se localizavam as células
individuais (dos monges) e os dormitórios coletivos (dos noviços), o refeitório,
a cozinha, a biblioteca, uma capela etc. Havia ainda um setor de atividades
artesanais, uma padaria, um hospital ou uma enfermaria, um pomar e uma horta,
um setor para acolher os hóspedes, viajantes ou peregrinos ("tambo"). Nesse
conjunto a localização da igreja, com o claustro e o cemitério se estendendo
paralelamente à nave da igreja, é uma constante. Esses monastérios eram quase
sempre localizados sobre as alturas das encostas de um vale ou de uma monta-
nha, mas sempre servidos de água fornecida por vertentes ou riachos. Mais para
o final da Idade Média franciscanos e dominicanos seguiram esse traçado geral
dos monastérios beneditinos. Quando no século XVI, na América recentemente
descoberta, se iniciou a implantação de povoados indígenas separados das cida-
des dos espanhóis, é natural que o plano urbanístico desses "pueblos de índios
"levassem em conta a disposição das edificações relacionadas com a vida dos
missionários, a partir dos modelos europeus já consagrados depois de séculos.
O Renascimento provocou uma retomada do antigo projeto grego de ci-
dade planejada. Desde a fase helenística, as cidades que Alexandre fundou em
seu império seguiam um padrão: ruas perpendiculares que se cortam em ângulos
retos, como se formassem uma grade ou grelha, demarcando quadras ou quartei-
rões,7 nas quais se instalam conjuntos de casas. Esse mesmo plano foi retomado
nas "bastides" francesas do final da Idade Média e principalmente nas cidades
planejadas dos inícios da Idade Moderna. Foi esse plano em "damero" (tabulei-
ro de damas) o adotado por espanhóis para a fundação das suas novas cidades no
novo mundo ibero-americano. Nessas o quarteirão (denominado de "manzana")
é um espaço quadrado de terreno com casas ou sem elas, mas sempre circunscri-
to por ruas nos seus quatro lados. Um dos quarteirões, entretanto, seria substitu-
ído por uma grande praça, a "plaza mayoB', em torno da qual se distribuiriam os
edifícios principais: igreja, cabildo, residência das autoridades (governadores
ou bispos, padres ou caciques). As calçadas eram protegidas pelo avanço do
primeiro andar dos edifícios e por arcos redondos que compunham uma decora-
ção para o conjunto da praça, como na Espanha renascentista. Nas "Leyes de Ín-
dias", importante legislação colonial espanhola, foram estabelecidosrigorosamen-
te esse plano urbanístico e a distribuição das estruturas arquitetônicas bem como
os detalhes da localização da cidade ou do povoado na paisagem. O "pueblo"
deveria estar, por exemplo, longe das baixadas inundadas onde o ameaçam as
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doenças, cm árcag ventiladas c com "buenos aire/' , Em conumhn-
e os estavam já gcndo fundadag povoaçócs rniggíoncíras fran-
essas normas
cia cogn dominicanos, mcrccdáriog c do Ordem dc Santo António, em pleno L
ciscanas, da chegada dog primeiros jesuítas na América.
XVI, muito antes podonto,
colo
Índios" amcricanog, entretanto , uma concessão foi feita
Nos "pueblos de
padrões de habitação indígena: ag ruas não gcparavam quarteirões dc cacas e
aos comunais igoladag.Conhecemos hoje muito bern o pa-
solares,mas sim casas
das aldcias indígenas amazónicas c cm especial o das aldeias
(Irãoconstrutivo
Tupiguaranis. As aldeias ou tabas (do tupi "tawa"), nada mais são do que um
dos
cm tupi) quase sempre elípticas. As ocas
conjuntode grandes casas ("okas", al-
parcntcg próximos muito unidos, formadas por
abrigamfamílias cxtcnsas dc
geralmente por pai, mác e dois
gumas pequenas famílias nuclcarcs compostas
um grandc espaço central circular ( a
filhos. As ocas sc distribuem cm torno dc
cerimoniais e aos encontros
"okara", em tupi) de uso colctivo c destinado aos
povoados indígenas missioneiros
sociais dos componentes da taba ou aldeia. Nos
ou tabuleiro de
as ruas que se organizam segundo o plano cm grade (grelha
isoladas e não quar-
damas) do Renascimento separam grandes casas indígenas
conquistadores,
teirões de casas, como nos povoados dos brancos europeus
conseqúên-
A resultante dessa tríplice influência cultural é portanto uma
um plano saído já
cia da História e de seus complexos processos culturais, e não
a funda-
pronto da cabeça dc algum jesuíta. Roque Gonzales descreve em 1613
distribuição
ção de um "pueblo de índios", onde sc caracteriza muito bem essa
grandes qua-
espacial com as grandes casas de índios isoladas, distribuídas em
dras quadradas, do tamanho da praça maior: "Está, pues, el pueblo en nueve
cuadras: Ia una sirve de plaza, cada cuadra seis casas de cien pies y cada casa
tiene cinco lances de a viente pies y en cada lance de estos vive un índio con su
chusma 8"
265
266 Figura
一
-'Pueblo
de
San
Juan
Bautista"
Arquivo
de
Simancas
冖
Espanha)•
3. O PLANO URBANÍSTICO DE SÃO JOÃO BATISTA:
DOCUMENTAÇÃO ICONOGRÁFICA
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um aposento da casa, Uma parcialidade indígena, oriundo de uma aldeioorigi.
nal, ocupa diversas dessas casas, lideradas por seu cacique, Uma dcggagcagasdo
povoado, não especificadas nesse desenho, deveria ser a pongada, destinado aos
visitantes ou simplesmente aos viajantes de passagem, pouso ou albergue
era denominado de "tambo" (do quíchua 'Tompu"), uma cxprcgnnomuito utili-
zada no espanhol do Rio da Prata. Deveria igualmente haver uma enfermaria ou
um hospital, mas que não é indicado no plano.
Na parte inferior do desenho encontra-se a entrada do povoado, assinala.
da pelos caminhos que chegam e por uma larga rua, que tem início cm uma
imensa cruz de pedra trabalhada, e se dirige em direçáo à praça maior c à igreja,
Pomares e um curral completam os detalhes da cena, Em volta do conjunto do
povoado podem ser observados currais, casas isoladas que parecem depósitos,
alguns açudes de água e áreas de plantio (pomares e hortas), Algumas vertentcg
de água em torno do povoado foram mclhoradas com a construção de pequcnag
cisternas quadradas, definidas por muros de pedras, e nas quais sc pode obter
água de ótima qualidade. Um pouco mais abaixo da fonte, espaços retangularcs
foram delimitados para conter as águas dos riachos, de maneira a favorecer o
banho das comunidades indígenasdo povoado.
Uma outra fonte iconográfica importante é o desenho colorido da Missão
de São João Batista que tive a oportunidade de manusear c estudar recentemente
na Biblioteca Nacional de Paris. Muito semelhante à iconografia de Simancas,
esse desenho apresenta algumas características muito especiais, que deverão ainda
ser fruto de análises mais intensas e profundas.10Dentre elas podemos destacar
em primeiro lugar a importânciadada ao entorno. Em nenhum outro documento
se percebe com tantos detalhes a importânciado meio geográfico e a série dc
rios e arroios que envolve o povoado missioneiro e a sua utilização para as ativi-
dades do cotidiano.
A vegetação em torno dos cursos de água está mais sugerida do que retra-
tada, em sua exuberância natural. Duas pontes facilitam a passagem dos rios, no
caminho para São Miguel (canto superior direito) e no para Santo Ângelo (canto
inferior esquerdo). As vertentes, transformadas em fontes dc água, estão todas
assinaladas. À leste do povoado, duas índias parecem vir de uma dessas fontes,
transportandorecipientes cerâmicos na cabeça, possivelmente com água. À sua
frente caminha um indiozinho com duas moringas, uma em cada mão. Junto à
fonte outras índias aparecem, em posições diversas. Bosques plantados com ár-
vores frutíferas, tanto na quinta como no entorno do povoado, complementam
esse cenário ambiental.
As atividades de pesca, coleta e caça estão perfeitamente caracterizadas
na cena que se encontra à esquerda, na qual se vê dois índios pescando em uma
canoa monóxila, enquanto dois jacarés nadam pelo rio. Pássaros, possivelmente
tucanos,voam em meio à vegetação.
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Etn meio à praça, um desfile
ras e artnns de fogo. Grupos militar se desloca, com cavaleiros, bandei-
a cavalo e à pé aguardam a sua vez para participar
do desfile. Alguns são
tropas uniformizadas, outros parecem indígenas. Pelo
espaço existente entre o
cemitério e o "cotiguaçu", onde se inicia o caminho para
a Missão de Sao Miguel, um grupo
aprox ima, através da entrada de cavaleiros penetra na praça. Outro se
principal, ponto de chegada do caminho para Santo
Ângelo.
Utn pequeno conjunto
musical toca em frente ao pórtico do claustro. Um
grupo de coroinhas e um padre,
a igreja. vestidos de branco e vermelho, dirigem-se para
269
h vâilll :
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hrrrnvrn
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iiTirn-rrn•
fi
I!
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missioneiro, junto aos indígenas conversos.
Em
ao aspecto formal ou externo, relacionado à primeiro lugar, européia, quanto
instalação na paisagem, à
ção dos edifícios públicos e ao traçado das disposi-
ruas. Em segundo
indígena, sobretudo na organização social das lugar, é igualmente
grandes ("okas"), agora não
mais elípticas mas retangulares, e que continuam
a abrigar as grandes famílias
tensas, gradualmente subdividida com mais ex-
intensidade em famílias nucleares.
Esse plano urbanístico não coincide
com o de nenhumadas utopias sem-
pre relacionadas aos jesuítas missioneiros. E isso
nem poderia acontecer, pois é
característico da imaginação utópica a busca de
soluções ideais alternativas. Essas
não poderiam ter produzido o plano urbanístico
das missões, como este de São
João, pois os planos urbanísticos utópicos não podem
evidentementeser os já
existentes, profundamente impregnados pelas culturas
das sociedadeseuropéia
e indígena no seio das quais se engendraram.
NOTAS
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