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“É difícil assistir a um noticiário de televisão em que não seja mostrado o desbaratamento e prisão (e
imediata soltura, em questão de segundos) de pelo menos uma quadrilha que fraudava algum órgão
público. Difícil, não, impossível. (...) E os parlamentares, se não são todos ladrões em sentido amplo, são
beneficiários impudentes de uma abundância obscena de privilégios, a começar pelo imoralíssimo foro
especial, que os põe numa acintosa classe acima dos governados, a quem não prestam satisfações e cuja
vontade ignoram, se não coincidem com seus interesses. Há sentido nas miríades de ‘ajudas’, nos
fantásticos seguros de saúde, nas generosíssimas viagens e em tudo que desfrutam para mal e pouco
trabalhar, isto quando trabalham? Não acho de todo descabida a semelhança que vejo entre esses
privilégios e os da corte de Luís XIV, na França do século 18. (...) No serviço público, a falta de
compostura e nepotismo, embora hoje disfarçado pelos intricados laços familiares, são a regra. O que é
público não é de ninguém, começando pelo material de escritório levado para casa e terminando nos
cartões corporativos. (...) E ninguém, afinal, é punido por nada” (p.2).
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Gostaria apenas de chamar a atenção para alguns aspectos que envolvem o problema
necessariamente espinhoso que é imaginar um lugar melhor para viver, neste caso, o
Brasil.
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supõe uma sociedade perfeita, uma ordem harmônica imutável, no qual cada indivíduo
sabe o seu papel sem fugir do script. O absolutismo utópico é, assim, uma forma de
totalitarismo. Quem suportaria viver num mundo completamente regrado e previsível?
A utopia sugere a imagem de Cronos devorando seus filhos. Sem novas gerações não
pode existir conflito, mudança, devir. E sem devir não há história, mas uma eternidade
que espelha a morte. É curioso constatar, neste aspecto, que a ilha de Utopia (More,
1999) e a Cidade do Sol (Campanella, 1978), enquanto projeto político, exibiam uma
“paixão de unidade” e uma “uniformidade do comportamento” aparentemente mais
rígidas do que as das sociedades que buscavam superar. Outro problema é a idealização
da figura humana. Provavelmente, a pior falha dos escritores utópicos foi conceber um
ser humano essencialmente bom que, pela “força dos bons hábitos”, manteria a
sociedade harmoniosa, justa e próspera (Barzun, 2001).
Mais recentemente, no século XX, tivemos, com a experiência socialista da
União Soviética, uma tentativa exemplar de implantação, por meio da força, da fantasia
utópica de um “mundo melhor”. Tratava-se, neste caso, de um lugar concreto,
empiricamente real, diferentemente dos sítios fantásticos, como as referidas ilha de
Utopia e Cidade do Sol. Na busca de superar as injustiças de uma sociedade altamente
hierarquizada e, em parte, ainda feudal, edificou-se ali, na velha Rússia, um Estado
totalitário. A revolução bolchevique que pretendia fazer o “bem”, produzir um lugar
melhor para se viver, gerou, em vez disto, um regime baseado no terror, além de um dos
maiores assassinos da História.
Teria então o fracasso da experiência comunista no século XX, como todas as
tentativas de “viver de maneira diferente” antes dela (Paquot, 1999, p. 67), enterrado de
vez qualquer projeto coletivo de um mundo melhor? Deveríamos, pois,
nitzschianamente, amar o fado, dizer-sim ao mundo tal como é, na alegria e no
sofrimento, em vez de desejar quimeras? Em outras palavras, não deveríamos
estoicamente “esperar um pouco menos e amar um pouco mais” o mundo em que
habitamos? Seria mais sensato, finalmente, acatar o triunfo da lógica capitalista – com
os problemas que isto implica – admitir a vitória do deus Mercado e prestar-lhe
reverência?
Com efeito, o fracasso mundial do comunismo não enterrou o sonho utópico de
um mundo sem mal. A prova disto é que o pensamento marxista que o embasa, com
maiores ou menores variações e vulgarizações, continua a seduzir grande parte da
intelectualidade nacional. Nas universidades, assim como em muitas agremiações
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partidárias e sindicais, ser de “esquerda” significa automaticamente estar do lado do
Bem. Já o capitalismo e o livre mercado representam o inimigo, o mal a ser combatido e
fatalmente ultrapassado. E os trabalhadores – os oprimidos em geral – são tratados
como moralmente superiores. Por quê? Provavelmente porque estamos diante de uma
fantasia poderosíssima: a recapitulação contemporânea de arcaicos mitos escatológicos
da cultura asiático-mediterrânica (Eliade, 1992). Tais mitos revelam o íntimo parentesco
do pensamento marxista com o cristianismo (Parquot, 1999): ambos são narrativas que
prometem a redenção absoluta, a vitória final do Bem sobre o Mal3. Graças ao seu
caráter mítico, ao seu fascínio arquetípico, tais ideias utópicas exercem um magnífico
poder de persuasão sobre nossas psiques. Talvez por isso seja tão difícil o diálogo
sóbrio, desapaixonado, sobre política no Brasil contemporâneo.
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assemelha a um teatro fantástico cujos atores são figuras a um só tempo pessoais e
impessoais. No meu âmago mais íntimo, eu me revelo plural e outro.
Jung tentou então traduzir esta radical experiência com a psique em noções
palatáveis à mentalidade cientifica da época. Daí as concepções de inconsciente
coletivo, processo de individuação e si-mesmo, que buscam exprimir dinamismos e
padrões de comportamento impessoais atuantes na psique. Com efeito, elas tornam
incertas as fronteiras da subjetividade. Levam-nos precisamente a discutir a relação com
o outro dentro e fora de mim, tão necessárias numa sociedade democrática. Creio que
nesta visão complexa acerca do psiquismo repousa uma das maiores contribuições do
pensamento junguiano para o debate político contemporâneo. Segundo Jung (2002), o
cerne de nossa interioridade, o si-mesmo, não é uma unidade, mas um “conglomerado”,
um coletivo de imagens, figuras e intencionalidades4. Nesse sentido, a análise
junguiana, enquanto opus ético-político, favoreceria o diálogo do eu com estas vozes
heterogêneas interiores, o que, por sua vez, promoveria o diálogo com o outro exterior.
A este devir psíquico, este trabalho de vínculo com o outro sem que haja domínio, Jung
chamou de “individuação” (Pereira, 2010a).
Assim, qualquer projeto ou fantasia de sociedade ou país deve ter em conta uma
visão mais multifacetada e logo menos idealizada de sujeito. Isto evitaria, de início,
reproduzirmos o erro dos pensadores utópicos que, como dito, imaginaram o homem
como fundamentalmente bom. Numa carta, Jung (2002) resumiu o problema com as
seguintes palavras:
“Acho que alguma coisa como paz não existe, pois mesmo uma democracia pacífica como a Suíça
não passa de uma guerra civil mitigada que somos sábios o suficiente ou pequenos o suficiente
para entreter cronicamente, a fim de escapar de coisas piores. Visto globalmente, o homem é um
tolo e continuará sendo tolo. Mas parece indispensável crer num futuro. Mas ele nunca foi melhor,
apenas foi novo e aparentemente incomparável, de modo que as pessoas nunca estiveram bem
certas se poderia existir o futuro melhor e tão sonhado”. (p. 30)
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além de uma esperança passiva, uma margem de manobra para a ação humana a favor
de um futuro melhor, ainda que este não chegue nunca? Em caso afirmativo, o
reconhecimento da tolice, da Sombra e da condição trágica do ser humano não
significaria necessariamente resignação diante das injustiças do presente. O escritor
Italo Calvino (1990) propôs uma ideia similar no trecho final de As cidades invisíveis:
“O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual
vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A
primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de
deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar
saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço”.
(p. 150)
Notas
1. Hillman (1992) resumiu o ato de “ver através” ou “psicologizar” como “(...) a reflexão [que]
acontece em termos outros do que aqueles apresentados. Ele suspeita uma intenção interior, não
evidente; procura por um mecanismo escondido, um fantasma na máquina, uma raiz etimológica,
algo mais do que o olho vê; ou vê com outro olho. Ocorre sempre que nos movemos para um
nível mais profundo” (p.135). O psicologizar pode ser entendido também como uma ação de
“mitologizar”, isto é, a busca pelos dominantes arquetípicos que estruturam eventos ou
experiências. Todas as traduções do inglês são de minha autoria.
2. Holanda (1995) aponta o conflito entre Antígona e Creonte como simbolizador da oposição lei
da família vs. lei do Estado: trata-se, segundo ele, de um conflito “de todas as épocas e preserva-
se sua veemência ainda nos dias de hoje” (p.141).
3. “Marx retoma e prolonga um dos grandes mitos escatológicos do mundo asiático-mediterrânico,
a saber, o papel redentor do Justo (o ‘eleito’, o ‘ungido’, o ‘inocente’, o ‘mensageiro’; nos
nossos dias, o proletariado), cujos sofrimentos são chamados a mudar o estatuto ontológico do
mundo. Com efeito, a sociedade sem classes de Marx e a consequente desaparição das tensões
históricas encontram seu precedente mais exato no mito da Idade de Ouro, que, segundo
múltiplas tradições, caracteriza o começo e o fim da História. (...) É até significativo que Marx
resgate, por sua conta, a esperança escatológica judaico-cristã de um fim absoluto da História;
distingue-se nisso dos outros filósofos historicistas (por exemplo Croce e Ortega y Gasset), para
quem as tensões da história são consubstanciais à condição humana e, portanto, jamais poderão
ser completamente abolidas.” (Eliade, 1992, p.166-167)
4. “(...) uma relação positiva entre o indivíduo e a sociedade, ou um grupo, é essencial, pois
nenhum indivíduo subsiste por si mesmo, mas depende da simbiose com o grupo. O si-mesmo, o
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verdadeiro centro de um indivíduo, é de natureza conglomerativa. Ele é por assim dizer um
grupo. Ele é uma coletividade em si e, por isso, quando atua de modo mais positivo, sempre cria
um grupo”. (Jung, 2002, pp.112-113)
Referências bibliográficas
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http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,estao-querendo-enganar-quem-imp-
,745912. Acesso em 11/9/2014.
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