You are on page 1of 10

Como viver no meio do inferno?

Reflexões junguianas sobre a formação de um Brasil possível

Henrique de Carvalho Pereira

Recapitulemos alguns eventos culturais recentes. Em junho de 2013, um


corriqueiro aumento da tarifa dos ônibus foi o catalizador de uma onda de
manifestações populares nas principais cidades do país. Milhões de brasileiros foram às
ruas protestar contra problemas sociais diversos, como a péssima qualidade dos serviços
públicos, o alto custo de vida, a escandalosa corrupção no meio político nacional.
Tratava-se na sua maioria de pessoas desvinculadas de legendas partidárias ou
sindicatos, fato incomum nesse tipo de situação. No consultório analítico, pacientes que
nunca abordavam temas políticos passaram a discutir as questões nacionais nas sessões
e mesmo desmarcaram a terapia para participar dos protestos. Parecia que o brasileiro,
esse ser habitualmente passivo, havia finalmente despertado de sua modorra histórica
para a alarmante realidade social e política ao seu redor. Será que os governantes
naqueles dias, em Brasília, por um instante, se lembraram de Maria Antonieta?
Mais de um ano se passou desde então. As multidões daqueles protestos iniciais
foram aos poucos se encolhendo. Dois fatores, sobretudo, parecem ter contribuído para
isto. De um lado, os atos violentos de uma minoria organizada e motivada por
“ideologias” extremistas afugentaram o cidadão comum das marchas. De outro, a falta
de foco. Protestar contra “tudo isto que aí está” é praticamente o mesmo que protestar
contra nada. E assim, gradativamente, as manifestações foram tornando-se
reivindicações de caráter mais setorial, partidário, corporativo. Contudo, suspeito que
havia ali, nas marchas de junho, um fenômeno psicossocial importante, rico de sentidos,
e portanto merecedor de nossa reflexão.
Apesar da dispersão das queixas havia na onda de protestos alguns temas que se
sobressaíam. Resumindo, gritava-se contra os serviços públicos deploráveis, o elevado
custo de vida e a corrupção política. Nada disto era exatamente uma novidade. Talvez o
acúmulo escandaloso de falcatruas e rapinas envolvendo aqueles que detêm o poder, nos
últimos anos especialmente, somado ao momento particularmente ruim da economia,
tenha acabado com a paciência da população. Se examinarmos este quadro com
cuidado, se buscarmos “ver através1” (seeing through) do fenômeno, como propôs
James Hillman (1992), constataremos que estamos possivelmente diante de um
complexo cultural brasileiro. Este complexo, que em outro lugar chamei de “complexo
de cordialidade” (Pereira, 2010b), gravita essencialmente em torno do par de opostos
arquetípico que é a lei do Estado vs. a lei da família (Holanda, 1995)2. No Brasil, os
valores familiares decorrentes dos laços pessoais ou de sangue, dos vínculos afetivos,
dominam a esfera do impessoal, a “coisa pública”, a República. Assim, onde deveria
prevalecer a abstração da Lei vigora a atitude pessoal, autoritária ou benevolente,
dependendo do contexto, do “você sabe com está falando?”, da pessoa “com contatos”.
Num artigo de jornal, intitulado “Estão querendo enganar quem?”, a propósito dos
atrasos nas obras de responsabilidade pública para a Copa do Mundo, o escritor João
Ubaldo Ribeiro (2011) descreveu os múltiplos tentáculos deste complexo de
cordialidade, mostrando como o que é público torna-se perversamente privatizado pelos
políticos, servidores públicos e governantes brasileiros:

“É difícil assistir a um noticiário de televisão em que não seja mostrado o desbaratamento e prisão (e
imediata soltura, em questão de segundos) de pelo menos uma quadrilha que fraudava algum órgão
público. Difícil, não, impossível. (...) E os parlamentares, se não são todos ladrões em sentido amplo, são
beneficiários impudentes de uma abundância obscena de privilégios, a começar pelo imoralíssimo foro
especial, que os põe numa acintosa classe acima dos governados, a quem não prestam satisfações e cuja
vontade ignoram, se não coincidem com seus interesses. Há sentido nas miríades de ‘ajudas’, nos
fantásticos seguros de saúde, nas generosíssimas viagens e em tudo que desfrutam para mal e pouco
trabalhar, isto quando trabalham? Não acho de todo descabida a semelhança que vejo entre esses
privilégios e os da corte de Luís XIV, na França do século 18. (...) No serviço público, a falta de
compostura e nepotismo, embora hoje disfarçado pelos intricados laços familiares, são a regra. O que é
público não é de ninguém, começando pelo material de escritório levado para casa e terminando nos
cartões corporativos. (...) E ninguém, afinal, é punido por nada” (p.2).

Creio que os protestos de junho estejam profundamente conectados com esse


crônico sintoma de nossa psique coletiva, resumido por João Ubaldo. Teria a extrema
tolerância da população para com os abusos de governantes e políticos chegado a um
limite? Ora, se não é este país que queremos, em qual Brasil desejamos viver? Dito de
outro modo, e dando prosseguimento ao processo de ver através da imagem, a questão
suscitada pelos manifestantes de junho seria: qual a nossa fantasia de cidade ou
Estado? Não desejo, aqui, de forma alguma ser conclusivo, nem o poderia, é claro.

2
Gostaria apenas de chamar a atenção para alguns aspectos que envolvem o problema
necessariamente espinhoso que é imaginar um lugar melhor para viver, neste caso, o
Brasil.

É possível um mundo melhor?


Quando estamos insatisfeitos com a cidade ou país em que vivemos,
costumamos ansiar por um lugar melhor para habitar. O desejo de um lugar “melhor” é
o que motivou pensadores ilustres do passado, como Platão, Thomas Morus, Francis
Bacon, Tommaso Campanella, a imaginar cidades ou países utópicos, isto é, lugares
inexistentes. A palavra “utopia” vem do grego, significando literalmente “não lugar” –
do grego ou, que expressa negação, e topos, “lugar”. Como tais lugares imaginários são
sempre concebidos como “bons” lugares, talvez fosse mais correto denominá-los
“eutópicos” (do grego eu, “bom”), conforme assinalou o historiador Jacques Barzun
(2001). Mas por ser “utopia” um termo já consagrado, decidi mantê-lo no presente
trabalho. As utopias normalmente se situam num lugar outro, como uma ilha ou
continente longínquo. Às vezes situam-se deslocadas para adiante no tempo, isto é, no
futuro. Assim, se formos flexíveis com esta noção, podemos também considerar a
concepção de Marx acerca da sociedade sem divisões de classes como utópica.
As utopias assumem vários formatos, mas são essencialmente imagens da
comunidade ideal. Num sentido estrito, expressam a vontade moderna de emancipação
do ser humano das mazelas e dos abusos que o afligem. Quando não são tomadas
literalmente e, sim, assumidas pelo que efetivamente são, isto é, sonhos, revelam-nos
uma fantasia de aprimoramento, um horizonte a seguir. Uma aspiração, enfim, que o
futuro, em determinados casos, tornou realidade. Por exemplo, as utopias do início da
modernidade anteciparam a ideia de instituições factíveis, como o programa de bem-
estar social. Nos deixaram ainda outros legados tais como: a valorização da igualdade
social sobre a hierarquia, a ideia de que todos devem trabalhar para ganhar o sustento ou
as honras e a eleição dos governantes pelo povo. No início do século XVII, Campanella
imaginou que as mulheres da Cidade do Sol podiam exercer as mesmas tarefas que os
homens (Barzun, 2001). As utopias nos ensinam o valor da fantasia como potência de
transformação da vida comunal. Parece que as cidades são planejadas, traçadas e
erigidas também – ou talvez antes de tudo – nos terrenos da imaginação.
Mas qual o problema com as utopias? Por que, salvo certos avanços particulares
(como, por exemplo, os supracitados), todas fracassaram? Primeiro, o projeto utópico

3
supõe uma sociedade perfeita, uma ordem harmônica imutável, no qual cada indivíduo
sabe o seu papel sem fugir do script. O absolutismo utópico é, assim, uma forma de
totalitarismo. Quem suportaria viver num mundo completamente regrado e previsível?
A utopia sugere a imagem de Cronos devorando seus filhos. Sem novas gerações não
pode existir conflito, mudança, devir. E sem devir não há história, mas uma eternidade
que espelha a morte. É curioso constatar, neste aspecto, que a ilha de Utopia (More,
1999) e a Cidade do Sol (Campanella, 1978), enquanto projeto político, exibiam uma
“paixão de unidade” e uma “uniformidade do comportamento” aparentemente mais
rígidas do que as das sociedades que buscavam superar. Outro problema é a idealização
da figura humana. Provavelmente, a pior falha dos escritores utópicos foi conceber um
ser humano essencialmente bom que, pela “força dos bons hábitos”, manteria a
sociedade harmoniosa, justa e próspera (Barzun, 2001).
Mais recentemente, no século XX, tivemos, com a experiência socialista da
União Soviética, uma tentativa exemplar de implantação, por meio da força, da fantasia
utópica de um “mundo melhor”. Tratava-se, neste caso, de um lugar concreto,
empiricamente real, diferentemente dos sítios fantásticos, como as referidas ilha de
Utopia e Cidade do Sol. Na busca de superar as injustiças de uma sociedade altamente
hierarquizada e, em parte, ainda feudal, edificou-se ali, na velha Rússia, um Estado
totalitário. A revolução bolchevique que pretendia fazer o “bem”, produzir um lugar
melhor para se viver, gerou, em vez disto, um regime baseado no terror, além de um dos
maiores assassinos da História.
Teria então o fracasso da experiência comunista no século XX, como todas as
tentativas de “viver de maneira diferente” antes dela (Paquot, 1999, p. 67), enterrado de
vez qualquer projeto coletivo de um mundo melhor? Deveríamos, pois,
nitzschianamente, amar o fado, dizer-sim ao mundo tal como é, na alegria e no
sofrimento, em vez de desejar quimeras? Em outras palavras, não deveríamos
estoicamente “esperar um pouco menos e amar um pouco mais” o mundo em que
habitamos? Seria mais sensato, finalmente, acatar o triunfo da lógica capitalista – com
os problemas que isto implica – admitir a vitória do deus Mercado e prestar-lhe
reverência?
Com efeito, o fracasso mundial do comunismo não enterrou o sonho utópico de
um mundo sem mal. A prova disto é que o pensamento marxista que o embasa, com
maiores ou menores variações e vulgarizações, continua a seduzir grande parte da
intelectualidade nacional. Nas universidades, assim como em muitas agremiações

4
partidárias e sindicais, ser de “esquerda” significa automaticamente estar do lado do
Bem. Já o capitalismo e o livre mercado representam o inimigo, o mal a ser combatido e
fatalmente ultrapassado. E os trabalhadores – os oprimidos em geral – são tratados
como moralmente superiores. Por quê? Provavelmente porque estamos diante de uma
fantasia poderosíssima: a recapitulação contemporânea de arcaicos mitos escatológicos
da cultura asiático-mediterrânica (Eliade, 1992). Tais mitos revelam o íntimo parentesco
do pensamento marxista com o cristianismo (Parquot, 1999): ambos são narrativas que
prometem a redenção absoluta, a vitória final do Bem sobre o Mal3. Graças ao seu
caráter mítico, ao seu fascínio arquetípico, tais ideias utópicas exercem um magnífico
poder de persuasão sobre nossas psiques. Talvez por isso seja tão difícil o diálogo
sóbrio, desapaixonado, sobre política no Brasil contemporâneo.

A “guerra civil mitigada”


As questões ética, social e política atreladas ao desejo de um mundo melhor
podem ser consideradas extensão do problema ontológico que envolve a possibilidade
de aperfeiçoamento ou evolução do próprio ser humano. Não deveríamos dissociar o
problema coletivo do individual. Nesse sentido, a perspectiva de Jung (1969) revela-se
algo trágica e, portanto, crítica das ideias utópicas cristãs e marxistas. Para ele, o Mal
não é acidental na psique humana: a Sombra é parte intrínseca, irredutível, do si-mesmo.
Por isso, Cristo, como símbolo, não satisfaz adequadamente à totalidade da
personalidade, porque está inteiramente identificado com a luz e o Bem; falta-lhe a
dimensão telúrica e sombria do Mal que nos torna humanos. O marxismo-leninismo,
por sua vez, sacrifica o indivíduo em nome da coletividade, o que não é bom nem para o
indivíduo nem para a coletividade (Jung, 1999). A massificação é uma espécie de
avesso da individuação.
A psicologia de Jung, como sabemos, foi fundada sobre a observação da psique
viva, na forma de delírios e alucinações de psicóticos, sobre o exame de sonhos, visões
e trabalho da imaginação ativa. Sabemos que sua própria vivência com o inconsciente
foi determinante para o desenvolvimento de suas teorias. As experiências relatadas no
Livro vermelho descrevem sua descida ao inferno da psique. Ali ele se deu conta da
“sombra de Deus” (Jung, 2009, p. 120) e de que a matéria de nosso ser é feita de uma
mistura de sentido e absurdo. Parece que, paradoxalmente, quanto mais nos
aprofundamos em nossa subjetividade mais ela se revela coletiva. Nossa psique se

5
assemelha a um teatro fantástico cujos atores são figuras a um só tempo pessoais e
impessoais. No meu âmago mais íntimo, eu me revelo plural e outro.
Jung tentou então traduzir esta radical experiência com a psique em noções
palatáveis à mentalidade cientifica da época. Daí as concepções de inconsciente
coletivo, processo de individuação e si-mesmo, que buscam exprimir dinamismos e
padrões de comportamento impessoais atuantes na psique. Com efeito, elas tornam
incertas as fronteiras da subjetividade. Levam-nos precisamente a discutir a relação com
o outro dentro e fora de mim, tão necessárias numa sociedade democrática. Creio que
nesta visão complexa acerca do psiquismo repousa uma das maiores contribuições do
pensamento junguiano para o debate político contemporâneo. Segundo Jung (2002), o
cerne de nossa interioridade, o si-mesmo, não é uma unidade, mas um “conglomerado”,
um coletivo de imagens, figuras e intencionalidades4. Nesse sentido, a análise
junguiana, enquanto opus ético-político, favoreceria o diálogo do eu com estas vozes
heterogêneas interiores, o que, por sua vez, promoveria o diálogo com o outro exterior.
A este devir psíquico, este trabalho de vínculo com o outro sem que haja domínio, Jung
chamou de “individuação” (Pereira, 2010a).
Assim, qualquer projeto ou fantasia de sociedade ou país deve ter em conta uma
visão mais multifacetada e logo menos idealizada de sujeito. Isto evitaria, de início,
reproduzirmos o erro dos pensadores utópicos que, como dito, imaginaram o homem
como fundamentalmente bom. Numa carta, Jung (2002) resumiu o problema com as
seguintes palavras:

“Acho que alguma coisa como paz não existe, pois mesmo uma democracia pacífica como a Suíça
não passa de uma guerra civil mitigada que somos sábios o suficiente ou pequenos o suficiente
para entreter cronicamente, a fim de escapar de coisas piores. Visto globalmente, o homem é um
tolo e continuará sendo tolo. Mas parece indispensável crer num futuro. Mas ele nunca foi melhor,
apenas foi novo e aparentemente incomparável, de modo que as pessoas nunca estiveram bem
certas se poderia existir o futuro melhor e tão sonhado”. (p. 30)

A passagem revela um saudável desencanto com a figura humana. Afinal, “o


neurótico é aquele que se torna vítima de suas próprias ilusões” (Jung, 1991, p. 112).
Enfim, nós humanos somos tolos, patéticos. Não bastasse isso, vivemos numa espécie
de “guerra civil mitigada”. Menos soberba só nos faria bem. Jung ainda questiona a
ideia se de fato existiria qualquer coisa como um “futuro melhor”. Por outro lado,
reconhece uma positividade em “crer num futuro”. Haveria embutida nesta crença, para

6
além de uma esperança passiva, uma margem de manobra para a ação humana a favor
de um futuro melhor, ainda que este não chegue nunca? Em caso afirmativo, o
reconhecimento da tolice, da Sombra e da condição trágica do ser humano não
significaria necessariamente resignação diante das injustiças do presente. O escritor
Italo Calvino (1990) propôs uma ideia similar no trecho final de As cidades invisíveis:

“O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual
vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A
primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de
deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar
saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço”.
(p. 150)

Assim como Jung, Calvino nos convida assumir a dimensão infernal,


irremediavelmente conflituosa, da vida em comunidade. Por outro lado, sugere a
existência de um espaço a ser ampliado neste mesmo inferno. Não obstante o horror que
é o mundo, há alguma margem de manobra. Seguindo Calvino, devemos abdicar da
esperança de um mundo pacificado e desprovido de Mal e, ao mesmo tempo,
reconhecer que algo pode ser feito na busca do “bem” individual e coletivo.

“Uma sábia limitação e sobriedade”


Façamos uma síntese do que foi apresentado. Os protestos de junho de 2013 nos
fizeram indagar acerca de qual Brasil quereremos viver. Esta questão levou-nos, por sua
vez, a uma discussão ontológica mais profunda, que foi refletir se é possível um mundo
melhor. Com isso, examinamos os limites das fantasias utópicas. Depois, com Jung e
Calvino, chegamos a uma concepção mais modesta e menos idealizada de indivíduo, a
qual reconhece o lado trágico da condição humana.
Que tem a ver o encontro analítico com tudo isso? A proposta de uma análise
junguiana é levar o eu a tomar consciência da totalidade da psique. Uma totalidade
sempre inacabada, em devir. Como sugeri anteriormente, trata-se de um exercício
democrático de abertura ao estranho, ao diferente, ao outro. Isto não tem nada a ver com
a perfeição utópica. Totalidade não é o mesmo que totalitarismo. O potencial político da
psicoterapia reside então em explorar as múltiplas articulações do conglomerado que me
constitui com o conglomerado que é a polis. A análise como o difícil exercício da
democracia intrassubjetiva e intersubjetiva. Como ouvir o outro em mim e fora de mim,
7
respeitá-lo na sua radical diferença? Como formar de uma multiplicidade de figuras,
vozes e desejos interiores, um consenso provisório e suficiente para que a República da
psique possa funcionar de modo que se faça justiça às suas diversas partes? Com isso, a
análise, disse Jung (1989), “contenta-se com uma integridade aproximada e possível,
em vez de tender para o ideal da perfeição. O progresso possibilitado dessa maneira não
conduz de modo algum ao estado elevado da espiritualização, mas apenas a uma sábia
limitação e sobriedade” [itálicos meus] (p. 183-184).
Talvez seja pouco, mas o trabalho analítico, lento, focado e interpessoal, ao
cultivar o diálogo entre o eu e as diversas partes componentes da sociedade psíquica que
nos constitui – principalmente seus aspectos patologizados e suas figuras sombrias –
pode tornar-se uma forma de sutil aprendizado. Aprendizado sobre como fazer do
inferno um lugar mais justo para se viver.

Notas

1. Hillman (1992) resumiu o ato de “ver através” ou “psicologizar” como “(...) a reflexão [que]
acontece em termos outros do que aqueles apresentados. Ele suspeita uma intenção interior, não
evidente; procura por um mecanismo escondido, um fantasma na máquina, uma raiz etimológica,
algo mais do que o olho vê; ou vê com outro olho. Ocorre sempre que nos movemos para um
nível mais profundo” (p.135). O psicologizar pode ser entendido também como uma ação de
“mitologizar”, isto é, a busca pelos dominantes arquetípicos que estruturam eventos ou
experiências. Todas as traduções do inglês são de minha autoria.
2. Holanda (1995) aponta o conflito entre Antígona e Creonte como simbolizador da oposição lei
da família vs. lei do Estado: trata-se, segundo ele, de um conflito “de todas as épocas e preserva-
se sua veemência ainda nos dias de hoje” (p.141).
3. “Marx retoma e prolonga um dos grandes mitos escatológicos do mundo asiático-mediterrânico,
a saber, o papel redentor do Justo (o ‘eleito’, o ‘ungido’, o ‘inocente’, o ‘mensageiro’; nos
nossos dias, o proletariado), cujos sofrimentos são chamados a mudar o estatuto ontológico do
mundo. Com efeito, a sociedade sem classes de Marx e a consequente desaparição das tensões
históricas encontram seu precedente mais exato no mito da Idade de Ouro, que, segundo
múltiplas tradições, caracteriza o começo e o fim da História. (...) É até significativo que Marx
resgate, por sua conta, a esperança escatológica judaico-cristã de um fim absoluto da História;
distingue-se nisso dos outros filósofos historicistas (por exemplo Croce e Ortega y Gasset), para
quem as tensões da história são consubstanciais à condição humana e, portanto, jamais poderão
ser completamente abolidas.” (Eliade, 1992, p.166-167)
4. “(...) uma relação positiva entre o indivíduo e a sociedade, ou um grupo, é essencial, pois
nenhum indivíduo subsiste por si mesmo, mas depende da simbiose com o grupo. O si-mesmo, o

8
verdadeiro centro de um indivíduo, é de natureza conglomerativa. Ele é por assim dizer um
grupo. Ele é uma coletividade em si e, por isso, quando atua de modo mais positivo, sempre cria
um grupo”. (Jung, 2002, pp.112-113)

Referências bibliográficas

Calvino, I. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.


Campanella, T. A cidade do sol. In: Sobre o infinito, o universo e os mundos. O
ensaiador. A cidade do sol (Bruno, G.; Galileu, G., Campanella, T). São Paulo: Abril
Cultural, 1978.
Barzun, J. From Dawn to Decadence: 500 Years of Western Cultural Life. Harper
Perennial, 2001.
Eliade, M. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes,
1992.
Hillman, J. Re-Visioning Psychology. New York: HarperPerennial, 1992.
__________. City and Soul. Putnam, Connecticut: Spring Publications, 2006.
Holanda, S. B. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Jung, C. G. Aion: Researches into the Phenomenology of the Self. Princeton, N.J.:
Princeton University Press, 1969.
__________. Mysterium coniunctionis: pesquisas sobre a composição e separação
dos opostos psíquicos na Alquimia – vol. XIV/2. Petrópolis: Vozes, 1989.
__________. Presente e futuro. Petrópolis: Vozes, 1999.
__________. The Red Book: A Reader’s Edition. New York/London: W.W. &
Company.
__________. Cartas de C.G. Jung – Volume II: 1946-1955. Petrópolis: Vozes, 2002
More, T. Utopia. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
Paquot, T. A utopia: ensaio acerca do ideal. Rio de Janeiro: DIFEL, 1999.
Pereira, H. Jung e o laboratório da alma: a psicologia analítica examinada pela teoria
do ator-rede : Juruá, 2010a.
__________. Considerações sobre a teoria dos complexos culturais. In: Nascif, R. M.
A.; Lage, V. L. C. (orgs.). Literatura, crítica e cultura IV: Interdisciplinaridade.
Juiz de Fora: Ed.: UFJF, 2010b.
Ribeiro, J. U. (2011). Estão querendo enganar quem? Disponível em:

9
http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,estao-querendo-enganar-quem-imp-
,745912. Acesso em 11/9/2014.

10

You might also like