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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

JULIANA MARQUES DO NASCIMENTO

“Amante, amásia, transeira e subversiva”: as representações de Iara Iavelberg na


grande imprensa durante a ditadura civil-militar

Guarulhos
2016
JULIANA MARQUES DO NASCIMENTO

“Amante, amásia, transeira e subversiva”: as representações de Iara Iavelberg na


grande imprensa durante a ditadura civil-militar

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à


Universidade Federal de São Paulo como
requisito parcial para obtenção do grau em
Bacharel e Licenciado em História.
Orientador: Prof. Dr. Clifford Andrew Welch

Guarulhos
2016
Nascimento, Juliana Marques do
“Amante, amásia, transeira e subversiva”: as representações de Iara
Iavelberg na grande imprensa durante a ditadura civil-militar / Juliana Marques do
Nascimento. – Guarulhos, 2016.
61 f.
Trabalho de Conclusão de Curso (graduação em História) – Universidade
Federal de São Paulo, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2016.

Orientador: Clifford Andrew Welch.


“Mistress, lover and subversive”: Iara Iavelberg’s representations in the
press during the civil-military dictatorship

1. História das mulheres 2. História do Brasil Contemporâneo 3. Ditadura


Civil-Militar I. Welch, Clifford. II.”Amante, amásia, transeira e subversiva”: as
representações de Iara Iavelberg na grande imprensa durante a ditadura civil-miliar
JULIANA MARQUES DO NASCIMENTO

“Amante, amásia, transeira e subversiva”: as representações de Iara Iavelberg na


grande imprensa durante a ditadura civil-militar

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à


Universidade Federal de São Paulo como
requisito parcial para obtenção do grau em
Bacharel e Licenciado em História.

Orientador: Prof. Dr. Clifford Andrew Welch

Aprovada em: de 2016.

___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Clifford Welch
Universidade Federal de São Paulo

___________________________________________________________________________
Profª. Drª. Edilene Toledo
Universidade Federal de São Paulo

___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Janes Jorge
Universidade Federal de São Paulo
À Angela, que me ensinou que
lugar de mulher é na luta e onde mais ela quiser.
Aqui os companheiros te consideram muito
como a companheira que me deu condições
políticas para deslanchar — e acho que esta é a
visão nacional e internacional sobre você.
Também no Chile e em Cuba seu nome foi
lançado. Acho que — como representante da
mulher brasileira — escolheram bem.
Carlos Lamarca sobre Iara Iavelberg
(JOSË; OLDACK, 1989, p. 141)
Agradecimentos

Qualquer aluno da UNIFESP – Guarulhos sabe que não é fácil chegar ao fim da
graduação. Vivemos todas as dificuldades possíveis e imagináveis – e até as não imagináveis.
Só consegui passar por todo esse processo graças a inúmeras pessoas que me deram forças
durante essa trajetória exaustiva de quase 6 anos e não me deixaram desistir em nenhum
momento.
A primeira delas é minha mãe, Angela Marques, que me incentivou em todos os
momentos possíveis: a escolha do curso, a aprovação no vestibular, a matrícula, as greves, os
momentos de desespero, as conquistas, leu e releu esta pesquisa e todas as outras. Agradeço
infinitamente por todo o apoio, mãe. Sem você, não consigo imaginar como seria.
Agradeço ao meu pai, Milton Andrade, que vem me doutrinando desde pequena, com
contos sobre Egito, pinturas rupestres, Luzia e todas essas histórias que me fizeram querer fazer
História hoje.
À vovó, vovô e Tia Bia, que foram meus maiores incentivadores de todos os momentos.
Agradeço também à Tia Zizi, Tio Dudu, Tia Alexsandra, Lucas e Matheus pelo apoio e amor
de sempre.
Não posso deixar de agradecer àqueles que viveram tudo junto comigo, que entendiam
mais do que ninguém todas as dificuldades. Gabriel Perez, meu companheiro e amigo maior,
de todos os trabalhos, de todas as caronas, de todas as brigas (que foram muitas), de todas as
madrugadas. Vencemos! Quem diria, né? Ao Carlos Veloso, meu amigo dentro e fora da
faculdade, que me entendeu como ninguém e foi quase minha alma gêmea durante esses anos
todos. Obrigada, amigo! Ao amigão André Ed, que me encorajou a não desistir tantas vezes,
que sempre me lembrou que tudo ia dar certo – e sempre deu, né? Porque sempre fizemos
juntos! À Olívia Yumi, amiga de seminários, trabalhos, higienizações e almoços maravilhosos.
Ao Felipe José, uma das pessoas que mais admiro, que me ensinou tanta coisa e me ajudou a
ser quem eu sou hoje. Obrigada, Fefe! Agradeço a todos os companheiros da turma de 2011 e
calouros que se tornaram amigos, como Bruna, Michele, Juliana, Raíssa, Rafaela, Maurício,
Giovanna, Izabela, Amanda Louise e todos os outros.
Obrigada aos amigos de toda a vida. Juliana Rodrigues, minha melhor amiga do mundo,
apoiadora de todas as fases. Obrigada por ler tanto essa pesquisa, obrigada por estar sempre
comigo! Obrigada Rafael Ficho que, mesmo sem entender nada, está sempre ao meu lado, me
apoiando e incentivando.
Agradeço imensamente aos professores de toda essa trajetória. Vocês me inspiraram e
me ajudaram a construir a historiadora que, a partir de agora, me torno oficialmente. Agradeço
ao Prof. Dr. José Carlos Vilardaga, meu orientador de Iniciação Científica, que, com suas
orientações, contribuiu e muito para minha formação enquanto pesquisadora. Muito obrigada,
Zeca!
Por fim, e mais importante, agradeço ao orientador deste trabalho, Prof. Dr. Clifford
Welch, que compreendeu meus anseios, meus objetivos e me ajudou a conceber e realizar essa
pesquisa exatamente da maneira que eu imaginava. Suas contribuições e críticas foram muito
valiosas para não só a formação deste trabalho, mas para a minha compreensão do que é o ofício
do historiador. Espero que possamos trabalhar juntos novamente em breve! Muito obrigada!
Resumo

Esta monografia objetiva analisar as representações da guerrilheira paulistana Iara


Iavelberg na grande imprensa, durante a ditadura civil-militar, de 1964 a 1985. A escolha se
deu por Iavelberg receber mais atenção por ser percebida como amante do expoente guerrilheiro
Carlos Lamarca. Busca-se compreender como foi construído o sujeito “mulher militante” nos
jornais numa época de conflito intenso. Os resultados apoiam outra literatura que anota como
o fato da oposicionista ser uma mulher agravou bastante sua imagem, pois, segundo as
concepções de moral e bons costumes, as mulheres eram relegadas ao espaço privado – cuidado
do lar, dos filhos e do marido –, sendo o espaço público ocupado por homens.

Palavras-chave: História das mulheres, História de jornalismo, luta armada, Ditadura civil-
militar
Abstract

This Senior Thesis analyzes corporate media representations of the São Paulo-based
urban guerrilla Iara Iavelberg during the civil-military dictatorship that controlled the Brazilian
government from 1964 to 1985. The case of Iavelberg was selected because of the relatively
high level of attention she received for being her relatively prominent representation in
mainstream newspapers as the mistress of Carlos Lamarca, one of the dictatorship’s more
notorious opponents. The main objective is to understand how the press constructed the image
of the “female militant” during a time of intense conflict. The research concurs with other
literature in demonstrating how being a woman contributed to extremely disparaging
representations since, especially at that time, the conventions of morality and good manners
demanded that woman stay within the private sphere – caring for children, husband and home
–leaving the public sphere to men.

Keywords: Women's History, Journalism, Urban guerrilla organizations, civil-military


dictatorship
SUMÁRIO

1 Introdução.......................................................................................................................... 10

2 Apresentando os sujeitos: Iara, JB e Estadão ................................................................... 14

2.1 Referenciais teórico-metodológicos .......................................................................... 14

2.2 Iara Iavelberg ............................................................................................................. 16

2.3 Jornal do Brasil ......................................................................................................... 23

2.4 O Estado de S. Paulo ................................................................................................. 27

3 As representações de Iara Iavelberg na grande mídia: análise documental ...................... 31

4 Considerações finais .......................................................................................................... 53

Referências ............................................................................................................................... 56

Fontes ................................................................................................................................... 56

Bibliografia ........................................................................................................................... 57

Anexos ...................................................................................................................................... 59
1 Introdução

“(...) poderíamos nos perguntar: para que serve a história


das mulheres? E a resposta viria, simples: para fazê-las
existir, viver e ser.”
Mary Del Priore (2006, p. 9)

Em 26 de abril de 1992, o Jornal do Brasil publicou, em seu Caderno B, uma reportagem


com a seguinte manchete: “Iara à semelhança de Olga”. A matéria, com texto chamada na capa
do jornal, trata do lançamento do livro “Iara: reportagem biográfica”, uma biografia da
guerrilheira brasileira, de autoria da jornalista Judith Patarra. Descrita pelo jornal como “valente
e revolucionária como Olga Benário1”, foram dedicadas duas páginas à vida e militância da Iara
Iavelberg nesta edição, contando com uma grande fotografia sua e uma pequena de seu
companheiro, Carlos Lamarca (anexo 1). Já na Revista São Paulo – integrante da Folha de São
Paulo – de 30 de março de 2014, em reportagem2 sobre o lançamento do documentário Em
Busca de Iara, a militante foi descrita como “muito bonita, engajada, bem-humorada, vaidosa
e querida”, além de ser tratada como “guerrilheira” em diversos pontos da matéria. Também há
uma grande imagem de Iara ilustrando o texto, dessa vez sem a representação de Lamarca
(anexo 2).
É possível notar que, apesar da constante associação da guerrilheira ao companheiro
Carlos Lamarca, ambas as reportagens retratam Iara Iavelberg de maneira positiva, ressaltando
não apenas seus atributos físicos, mas também sua militância política. As matérias são
posteriores à redemocratização no Brasil, portanto, correspondem a um período relativamente
recente da história do país. É evidente que, durante a época de atuação efetiva de Iara Iavelberg,
sua representação na grande imprensa não era feita de maneira tão favorável.
Os casos acima foram apresentados tomando como base a ideia do historiador Marc
Bloch, em sua Apologia da História, de que “o presente [ou passado recente] bem referenciado
e definido dá início ao processo fundamental do ofício de historiador: ‘compreender o presente
pelo passado’ e, correlativamente, ‘compreender o passado pelo presente’” (LE GOFF apud
BLOCH, 2002, p. 25). O objetivo, portanto, deste trabalho é identificar e analisar as

1
B. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 abril 1992. Capa.
2
FARIA, Ana Elisa. A ditadura escancarada. Revista São Paulo, São Paulo, 30 mar. 2014. Cinema, p. 76.
10
representações feitas pela grande imprensa sobre mulheres que participaram da luta armada
durante a ditadura civil-militar. Por ser um trabalho de conclusão de curso e, consequentemente,
não tão extenso, foi selecionada uma militante da resistência, Iara Iavelberg, conhecida por ter
sido companheira de Carlos Lamarca. Os periódicos escolhidos foram Jornal do Brasil e O
Estado de S. Paulo, ambos com grande circulação nos dois principais estados do país – Rio de
Janeiro e São Paulo – e, para além disso, locais de maior expressão da guerrilha urbana.
A ditadura civil-militar brasileira – iniciada com o golpe de Estado em 1964 – é
amplamente discutida no debate historiográfico. As circunstâncias que levaram ao golpe, as
características políticas e econômicas da época, formação de grupos de resistência (a Frente
Ampla, as organizações da luta armada, a Igreja, a resistência artística, o Novo Sindicalismo e
etc.), entre outros, são tópicos largamente estudados pelos historiadores, principalmente a partir
da década de 1980 (DELGADO & FERREIRA, 2007, pp. 7-11).
Porém, ao pensar no referido período, os personagens de maior destaque possuem um
fator em comum: quase todos são homens. Líderes do golpe/regime, generais, torturadores:
Castello Branco, Artur Costa e Silva, Emílio Médici, Ernesto Geisel, Sérgio Paranhos Fleury,
Carlos Alberto Brilhante Ustra, entre muitos outros (REIS, 2000). Da parte da resistência e/ou
da esquerda, os expoentes também são, em sua maioria, do sexo masculino: Carlos Marighella,
Carlos Lamarca, Vladimir Herzog (ROLLEMBERG, 2007), Caetano Veloso, Chico Buarque e
etc. (RIDENTI, 2007).
Mesmo com a efervescência cultural e política – exemplificada no avanço do
movimento feminista e na luta pela emancipação feminina – observada nas décadas de 1960 e
1970 na Europa e nos EUA, essas questões não provocaram rupturas tão impactantes no Brasil.
Pelo contrário, segue-se pelo caminho inverso: os papéis cabíveis a cada gênero são reforçados
– no imaginário social, a “mulher ideal” é aquela submissa ao marido, dedicada às atividades
do lar e criação dos filhos; o “homem ideal” é o trabalhador e, portanto, provedor, chefe da
família. Na literatura, são poucas as obras que não relegaram às mulheres os papéis secundários
de esposas, filhas, irmãs, auxiliares todas.
Entre os poucos estudos de mulheres no contexto da ditadura, destaca-se a relevância de
um livro recente sobre mulheres militantes, pelas psicólogas sociais Ingrid Faria Gianordoli-
Nascimento, Zeidi Araujo Trindade e Maria de Fátima de Souza Santos (2012). De acordo com
as autoras, “apesar dos avanços ocorridos, por exemplo, na valorização e independência da
mulher, os novos caminhos indicam de forma muito tímida uma alteração profunda nos papéis
de gênero e na estrutura tradicional da família” (GIANORDOLI-NASCIMENTO, et al., 2012,

11
p. 41). Essa onda conservadora, segundo o historiador Daniel Aarão Reis Filho, é explicada
pela “ameaça” que as reformas propostas no governo de João Goulart representavam para as
elites:
Todos sentiam obscuramente que um processo radical de redistribuição de riqueza e
poder na sociedade brasileira, em cuja direção apontava o movimento reformista, iria
atingir suas posições, rebaixando-as. E nutriam um grande Medo de que viria um
tempo de desordem e de caos, marcado pela subversão dos princípios e dos valores,
inclusive os religiosos. A ideia de que a civilização ocidental e cristã estava ameaçada
no Brasil pelo espectro do comunismo ateu invadiu o processo político, assombrando
as consciências (REIS, 2000, p. 33).
É possível notar, contudo, que, apesar desse medo apontado por Reis e do esforço
conservador, algumas mulheres sentiram necessidade de romper com o papel naturalizado e
ocuparem também o espaço público. O Projeto Brasil: Nunca Mais (BNM) analisou 695
processos movidos pelo regime contra seus adversários e concluiu que, entre os grupos armados
urbanos, “o percentual de mulheres denunciadas ficou entre 15 a 20% do total” (RIDENTI,
1990, p. 114). Levando em consideração o contexto histórico e social em questão, esse número
é bem significativo, já que, como aponta a historiadora Ana Maria Colling, a divisão entre
público e privado está diretamente relacionada com a divisão dos sexos – masculino e feminino.
Colling afirma que
adentrar o espaço público, político e masculino por excelência foi o que fizeram essas
mulheres ao se engajarem nas diversas organizações clandestinas existentes no país,
durante a ditadura militar. A mulher lutando para ser cidadã, não somente como
profissional, trabalhadora, mas como participante da política, espaço que marca a
diferença e a exclusão (COLLING, 1997, p. 10).
Portanto, se houve participação ativa feminina na resistência durante os “anos de
chumbo”, por que essas mulheres não receberam mais atenção na memória coletiva e nas
pesquisas sobre o período?
Os últimos trabalhos historiográficos que vem tratando sobre a participação da mulher
na resistência ao governo ditatorial tem utilizado, principalmente, fontes orais e processos
judiciais militares. Analisar as reportagens da época traz um novo ponto de vista sobre esta
atuação pois, como o jornal impresso é, até os dias de hoje, um veículo midiático de grande
circulação entre as mais diversas classes sociais brasileiras, torna-se um dos maiores
contribuintes para a formação de opinião. A partir disso, refletir sobre seus discursos e narrativa
pode ajudar a compreender o pensamento da sociedade brasileira em geral

12
O trabalho se propõe analisar, então, notícias que vão desde as recordações do início da
atuação política de Iara nos meados de 1968 até a consolidação do processo de abertura e
redemocratização do país nos meados dos anos 1980, visando investigar como era construída,
pela imprensa e pela sociedade, a imagem da mulher que participava ativamente no espaço
público, especialmente na política radical.
A inquietação causada pela quase unanimidade de personagens masculinos na história
da ditadura civil-militar serviu de impulso para a definição do tema deste trabalho e, mais do
que isso, tornou-o fundamental: as reflexões sobre a participação de mulheres enquanto sujeitos
políticos durante a ditadura – e todos os outros períodos da história, diga-se de passagem – são
essenciais para, finalmente, inclui-las no rol de protagonistas. O esforço das instituições
governamentais e dos próprios veículos de imprensa em ocultar e diminuir a adesão de mulheres
fez com que estas fossem silenciadas na narrativa histórica brasileira. Além de terem sido
torturadas e, muitas vezes, brutalmente assassinadas, não tiveram papel de tão grande destaque
nos estudos historiográficos quanto os homens3. É preciso que, cada vez mais, sejam movidos
esforços por parte dos estudiosos para que a militância feminina seja colocada à luz, e em nível
de equidade com a militância masculina.
A monografia é dividida em 4 tópicos, sendo o primeiro esta introdução. O segundo
tópico tratará da apresentação dos sujeitos da pesquisa, baseando-se nas referências teórico-
metodológicas, também apresentadas neste item. Uma breve biografia histórica da militante
Iara Iavelberg faz-se necessária pois sua formação e atuação política são fundamentais para
uma melhor compreensão de como foi representada pela imprensa, para além da
contextualização dos aspectos geracionais que podem ter norteados suas ações. As segunda e
terceira subdivisões também apresentam os periódicos estudados, incluindo análise de seus
dirigentes, para considerar a percepção do discurso jornalístico como intencional e ideológico.
O terceiro tópico analisa as fontes. As notícias são examinadas, uma por uma, de forma
cronológica, com observação detalhada da colocação da notícia no jornal, sua manchete,
imagens ilustrativas e o emprego das palavras para tratar sobre a militante.
No quarto e último tópico têm as considerações finais, abordando os principais pontos
de discussão e conclusões.

3
Porém, é importante citar os trabalhos historiográficos que analisam a militância feminina durante o período
ditatorial: CARVALHO (1998), FERREIRA (1996), RIDENTI (1990), TELES (2003) e etc.
13
2 Apresentando os sujeitos: Iara, JB e Estadão

Neste tópico do trabalho serão apresentados os sujeitos da pesquisa: Iara Iavelberg, o


Jornal do Brasil e O Estado de S. Paulo. Antes disso, porém, serão discutidos alguns
referenciais teórico-metodológicos utilizados para a análise das fontes, os quais justificam a
decisão por esta apresentação preliminar.

2.1 Referenciais teórico-metodológicos

Antes de mais nada, é importante frisar que esta pesquisa consiste, para além de uma
pesquisa sobre gênero, em um estudo de história das mulheres, buscando inclui-las como
objetos e sujeitos da historiografia e dos processos históricos, com a intenção de romper com a
“norma universal” de que apenas homens brancos são sujeitos ativos por natureza (SCOTT
apud BURKE, 1992, p. 77). Segundo a historiadora Joan Scott,
Enquanto o termo ‘história das mulheres’ revela a sua posição política ao afirmar
(contrariamente às práticas habituais), que as mulheres são sujeitos históricos
legítimos, o “gênero” inclui as mulheres sem as nomear, e parece assim não se
constituir em uma ameaça crítica (SCOTT, 1989, p. 6).
Gênero seria, segundo a definição de Scott em seu texto icônico “Gênero: uma categoria
de análise histórica”, “uma maneira de indicar as ‘construções sociais’ – a criação inteiramente
social das ideias sobre os papéis próprios aos homens e às mulheres. É uma maneira de se referir
às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas dos homens e das mulheres”
(SCOTT, 1989, p. 6).
Maria Izilda Santos de Matos, historiadora brasileira, em seu livro “Por uma história da
mulher”, faz considerações de cunho metodológico muito pertinentes para este trabalho.
Segundo a historiadora, a inclusão das mulheres nos estudos históricos se deve à crise dos
paradigmas tradicionais da história, a qual ocasionou uma procura por “outras histórias”, ou
seja, por dar voz aos antes excluídos, silenciados. Revisitar, portanto, narrativas do passado
buscando entender como estes sujeitos foram representados, é uma tarefa do estudo do gênero
e, assim sendo, da história da mulher. Conforme aponta Maria Izilda Santos,
com a incorporação do gênero como categoria de análise, tem-se procurado
demonstrar que o comportamento ou os valores que são aceitos em uma sociedade,
num certo momento histórico, podem ser rejeitados em outras formas de organização
social ou em outros períodos (MATOS, 2000, p. 25).

14
Nesse sentido, a análise de notícias de jornal da época ditatorial pode revelar valores e padrões
comportamentais associados às mulheres, mas que podem ser rejeitados e contraditos na
sociedade atual.
Importante consideração da autora para esta pesquisa consiste no fato de que as
“categorias” homem e mulher não são únicas e generalizantes. É necessário analisar também as
especificidades como classe social, etnia, geração, cultura, religião e etc. A historiadora Natália
Bastos afirma que “o interesse por estas categorias assinala não apenas o compromisso do
historiador com uma história que inclua a fala dos oprimidos, mas também que se considere
que as desigualdades de poder se organizam conforme estes eixos” (BASTOS, 2004, p. 48). As
psicólogas Ingrid Faria, Zeidi Araujo e Maria de Fátima de Souza alertam para importância de
se contextualizar a “vertente geracional” do grupo que se pretende estudar. Os sujeitos
históricos estariam, segundo as mesmas, sob influência de dois níveis: a dos grupos mais
imediatos – família, amigos, colegas de escola/trabalho/faculdade e etc. – e a de um conjunto
maior, denominado “geração” (GIANORDOLI-NASCIMENTO, et al., 2012, p. 43). Torna-se
fundamental, por conseguinte, a apresentação de uma biografia histórica de Iara Iavelberg,
inserindo-a no contexto histórico, social e político do período, para que a análise das fontes não
incorra em premissas generalizantes e/ou determinismo biológico.
O mesmo princípio deve ser aplicado aos jornais. De acordo com Tania Regina de Luca,
para entender o discurso empregado nas notícias, é necessário compreender uma série de fatores
prévios, como identificar o grupo responsável pela direção e linha editorial do jornal e o público
alvo; compreender características de ordem material (periodicidade, impressão; papel,
uso/ausência de iconografia e de publicidade) e etc. (LUCA in PINSKY, 2008, p. 142). Para
contemplar estas questões, torna-se fundamental uma apresentação dos veículos midiáticos e
uma contextualização de sua história, inserindo-os no período estudado. Esses apontamentos
contribuem para o entendimento da autoria do discurso, que é permeado por ideologias e
valores. De acordo com o jornalista João Batista de Abreu, “não há discurso sem sujeito, nem
sujeito sem ideologia, donde se pode concluir que não há discurso jornalístico sem ideologia”
(ABREU, 2000, p. 21). Abreu, em seu livro “As manobras da informação: análise da cobertura
jornalística da luta armada no Brasil (1965-1979)”, examina minuciosamente o discurso
jornalístico sobre a guerrilha urbana e rural, com observação da escolha, segundo o autor
totalmente intencional, do vocabulário. O autor será aporte teórico fundamental para a análise
das notícias sobre Iara, na parte 3 desta pesquisa.

15
Ainda neste sentido, Julia Insuela ressalta que o estudo da linguagem jornalística –
composta de signos e significados únicos –, é fundamental para a compreensão da mentalidade
e da opinião do veículo midiático sobre determinado tema (INSUELA, 2011, p. 73). A
historiadora aponta certa ambiguidade na atuação jornalística4. No período ditatorial, apesar
dos jornais estarem sob total influência da censura imposta pelos órgãos estatais – fato que
gerou resistência por parte dos jornalistas, motivo pelo qual alguns sofreram perseguição,
tortura e morte –, há também certa confluência de valores entre os periódicos e o Estado,
compartilhados também com a sociedade civil. Insuela afirma que “a imprensa foi um
significativo campo para a formação e expressão de visões e opiniões, registrando (suas)
‘manifestações’ de apoio ou não ao regime instituído. Assim, colabora-se para a construção de
um consenso em torno da ditadura” (INSUELA, 2011, p. 71).
Partindo desses pressupostos, pode-se elaborar alguns pontos de observação e algumas
questões primordiais a serem feitas às fontes deste trabalho para uma melhor problematização
e obtenção de resultados na parte 3, entre eles:
a) As manchetes: a militante possui notícias que se referem exclusivamente a ela ou é
mencionada apenas em notícias sobre terceiros? Quantas vezes seu nome é mencionado
em cada notícia?
b) Os adjetivos e modos de descrição empregados: são priorizados os atributos físicos? A
militância política? A militante é relacionada com as organizações as quais pertence?
De qual forma, como lideranças ou auxiliares?
c) A relação com os homens: é retratado algum tipo de relação de Iara com os homens
militantes? De que maneira? Há distinção entre o tratamento dado aos homens e as
mulheres?
d) Representação imagética.

2.2 Iara Iavelberg5


Iara Iavelberg nasceu em 07 de maio de 1944, em São Paulo, no bairro do Ipiranga. Seus
familiares eram judeus imigrantes – húngaros na parte materna e romenos na paterna. Conforme
aponta Sônia Brandão (2014), integrar a comunidade judaica que, durante fins do Estado Novo,

4
Consultar também KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988.
Rio de Janeiro: Boitempo, 2012.
5
Para a escrita deste tópico, foi usado como fonte principal o livro de Judith Patarra, lançado em 1993, intitulado
“Iara: reportagem biográfica”. Como fontes complementares, foram utilizados os depoimentos de familiares e
amigos de Iara dados à jornalista Gabriela Moncau e à Mariana Pamplona, sobrinha de Iara, para a produção do
documentário Em Busca de Iara de 2013.
16
ascendia econômica e socialmente são características essenciais para a análise da trajetória de
Iara. Primeira filha de David e Eva Iavelberg, teve outros 3 irmãos: Samuel, Raul e Rosa
Iavelberg. Os pais eram comerciantes de roupas e a família morou por muito tempo num
sobrado nos fundos da loja.
Em 1951 começou a cursar o primário da Escola Israelita do Cambuci. A escola, que
realizava cerimônias religiosas judaicas e ensinava hebraico, de acordo com Judith Patarra,
“representava uma afirmativa de identidade num momento político de dúvidas: Getúlio Vargas,
fama de simpatizante do nazi-fascismo na década de 30 e nos primeiros anos da guerra, acabara
de ser empossado presidente da República” (PATARRA, 1993, p. 43). A formação básica
influenciada diretamente pela religião na vida das militantes de esquerda é analisada pelas
psicólogas Ingrid Faria, Zeidi Araujo e Maria de Fátima. As autoras observam “(...) o
importante papel que a religião, associada à educação formal em colégios religiosos, em regime
de internato ou semi-internato (...), desempenhava na manutenção dos valores destinados às
‘moças de família’ das classes abastadas” (GIANORDOLI-NASCIMENTO, et al., 2012, p.
232).
A boa condição econômica da família proporcionou a Iara o contato com locais
associados à classe média e elite paulistana, tais como os clubes Rotary e Hebraica. Este último
viabilizou os primeiros contatos entre Iara e seu primeiro namorado e futuro marido, o médico
Samuel Haberkorn. De família tradicional judia no bairro do Ipiranga, na época do casamento
ele tinha 22 anos, enquanto sua noiva 16. O relacionamento não foi bem visto pela família
Haberkorn, mas os Iavelberg aprovavam. Em depoimento para Judith Patarra, David Iavelberg
afirma: “vi o rapaz crescer. Médico... A gente quer ver os filhos encaminhados” (PATARRA,
1993, p. 63). Eva Iavelberg, de acordo com Patarra, “oscilava, contraditória. De um lado, torcia
por ver Iara numa faculdade – exatamente aquilo que seus pais em vão lhe pediram. De outro
orgulhava-se da filha, à frente de todas na corrida matrimonial”.
O casamento de 1959 fez Iara desistir do Científico6, no qual estava recém-matriculada
no Colégio de Alexandre de Gusmão7, no alto da Rua Silva Bueno. Ingrid Faria, Zeidi Araujo
e Maria de Fátima afirmam que
geralmente os pais da classe média viam o estudo e a profissionalização das filhas
como complementares ao casamento (...). Para Biasoli-Alves8, essa valorização ainda
não se vincula a uma percepção da mulher como um “sujeito de direitos (...), mas

6
Correspondente ao atual Ensino Médio.
7
Atual ETEC Getúlio Vargas.
8
BIASOLI-ALVES, Z. M. M. Continuidades e rupturas no papel da mulher brasileira no século XX. Psicologia:
Teoria e Pesquisa, Distrito Federal, v. 3, n. 3, 2000.
17
porque se espera dela [em meados do século XX] competências que melhor
promovam a educação dos filhos e a própria vida doméstica, que façam dela o suporte
adequado para o sucesso profissional de seu esposo” (GIANORDOLI-
NASCIMENTO, et al., 2012, p. 229).
De acordo com os familiares e amigos entrevistados por Patarra, a lua de mel frustrada
e uma mudança no comportamento de Iara fizeram-na retomar os estudos em 1961. Ao final do
mesmo ano, já começava a refletir sobre um curso superior. Cogitava Psicologia que, de acordo
com Patarra, era “de pouco prestígio e considerado espera-marido” (PATARRA, 1993, p. 69).
Mesmo assim, em 1962, matriculou-se no cursinho do Grêmio da Faculdade de Psicologia da
Maria Antônia, local de suas primeiras interações com temas como filosofia, liberação sexual
e política num geral. As psicólogas Ingrid Faria, Zeidi Araujo e Maria de Fátima apontam que
a participação de jovens em atividades extracurriculares e fora do circuito familiar, ou seja, a
socialização secundária “é destacada (...) pela possibilidade de novas interpretações da
realidade se colocarem como concorrentes aos valores, padrões de comportamentos e ações
familiares” (GIANORDOLI-NASCIMENTO, et al., 2012, p. 258).
Em 1963 foi aprovada no vestibular de Psicologia da USP. Passou a frequentar lugares
“intelectualizados”, como a Cinemateca Brasileira, os teatros e cinemas da Praça Roosevelt.
Patarra afirma que a entrada de Iara na faculdade abriu horizontes à família Iavelberg.
Converteu os irmãos menores à música erudita, Vivaldi primeiro. (...) Levou Raul ao
teatro pela primeira vez; assistiram Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo
Neto (...). Quando almoçava no Ipiranga escolhia temas polêmicos. ‘Por que não
dormir com o namorado? Por que tem de casar virgem?’ (PATARRA, 1993, p. 82).
Maria Lúcia Carvalho, amiga de Iara na época da faculdade, entrevistada pela jornalista
Gabriela Moncau (2013, p.63), afirma que “Simone de Beauvoir acho que foi quem despertou
Iara para essas questões. Também aquela estadunidense, Betty Friedan. Tudo que fosse
revolucionário, pode ter certeza que a Iara ia se interessar”. Neste sentido, Ingrid Faria, Zeidi
Araujo e Maria de Fátima apontam que
a elevação do capital cultural promoveu uma capacidade de reflexão crítica que levou
os jovens a questionarem o padrão desenvolvimentista, a falta de oportunidades iguais
e as ideologias cristãs [religiosas, num geral] que faziam com que as famílias pobres
permanecessem em estado de carência, sem acesso aos meios de mudança”
(GIANORDOLI-NASCIMENTO, et al., 2012, p. 268).
Em 1964, Samuel Iavelberg – Melo, como era chamado por Iara – ingressou na
faculdade de Química, também na Maria Antônia. Em entrevista concedida à Moncau (2013,
p.63), salienta que jogava futebol na faculdade e, por a Associação Atlética ser dentro do
grêmio, “comecei a descobrir as assembleias, a movimentação política dos estudantes”. Logo
18
passou a integrar a Organização Revolucionária Marxista Política Operária (POLOP) 9. Iara não
se engajou imediatamente após saber do envolvimento do irmão, mas sim somente após o golpe
militar. De acordo com companheiros entrevistados por Patarra, Iara nunca ocupou posição
significativa na organização. Apesar disso, participou de discussões e debates para formação
teórica e de ações10, como panfletagens e vendas para arrecadação de fundos. Ingrid Faria, Zeidi
Araujo e Maria de Fátima observam que
A presença das mulheres na luta armada e nos movimentos revolucionários
representou um avanço para a ruptura do estereótipo da mulher restrita ao espaço
privado, ainda que essa participação, em certa medida, também se desse vinculada ao
mundo masculino. Segundo Goldemberg, essas mulheres, com raríssimas exceções,
foram introduzidas no mundo da política por algum homem importante em suas vidas
(irmão, pai, marido etc.), o que contribuiu para a sua ‘invisibilidade’ no interior do
partido. Por estarem sendo ‘escondidas com o rótulo: ‘mulher de’, ‘companheira de’,
‘filha de’, elas apareciam como coadjuvantes (GIANORDOLI-NASCIMENTO, et al.,
2012, p. 268).
Em 1965, Iara e Samuel decidiram se separar. O casamento, segundo os que conviviam
com o casal, sempre fora cheio de discordâncias e instabilidade. “É, o casamento dela foi um...
tropeço”, aponta o irmão Samuel Iavelberg. Iara teve vários relacionamentos extraconjugais,
causadores de comentários entre os vizinhos e colegas da família. Seu comportamento em
relação aos companheiros foi muito criticado dentro da POLOP. “‘Mais por machismo do que
por moralismo’, interpreta Regina Sader, então estudante de Ciências Sociais que se casou com
Eder Sader, citada no livro de Judith” (MONCAU, 2013, p. 64).
Neste mesmo ano, tornou-se professora do cursinho do Grêmio da faculdade de
Psicologia, graças à participação na POLOP. Segundo Patarra, “queria fazer a cabeça dos
alunos. Discutiu anticoncepção e levantou o debate sobre dupla moral e virgindade”

9
Fundada por volta de 1961 e atuou até 1967, quando foi desmembrada e perdeu grande parte de seus membros.
Segundo Eurelino Coelho e Igor Gomes Santos, “a POLOP cresceu aglutinando setores politizados da juventude
e intelectuais que compartilhavam suas objeções à orientação dominante da esquerda nos anos 60, seja de linha
trabalhista ou comunista, mas cresceu bem menos que estes seus dois adversários no campo das esquerdas,
permanecendo todo o tempo como uma força minoritária. Sua crítica à política de alianças com a burguesia e sua
leitura da articulação entre a grande burguesia nacional e o imperialismo ganharam maior credibilidade por ocasião
do golpe civil-militar de 1964, que confirmava algumas de suas análises, o que facilitou a ampliação da base social
da organização inclusive com a incorporação de militares de baixa patente expulsos das corporações” (COELHO
& GOMES, 2011, pp. 4-5).
10
De acordo com Gabriela Moncau, “a primeira mobilização de que Iara participou foi no início de 1964, quando
João Pinheiro Neto, da Superintendência da Reforma Agrária do governo João Goulart, foi convidado a participar
das ‘Conferências pela Paz’ na Faculdade de Direito da USP. Alguns grupos conservadores o impediram de entrar,
enquanto os organizadores do evento bradavam pela reforma agrária. O dia terminou com porradas, tiros e fogo
no carro do convidado” (MONCAU, 2013, pp. 63-64).

19
(PATARRA, 1993, p. 110). Seu engajamento girava também muito em torno do movimento
estudantil, com ações voltadas para decisões sobre a estrutura do curso e a instituição, num
geral. Chegou a ser presidente do “Centrinho” – Associação Universitária dos Estudantes de
Psicologia. Um estágio obrigatório na Volkswagen, onde estudaria “as relações de trabalho e a
seleção profissional”, foi marcante para a formação política de Iara. De acordo com as colegas,
“testemunhava a exploração do homem pelo homem. Precisamente desses semblantes nasceria
o homem novo, a alavanca da mudança, o cerne da revolução: operários dotados de consciência
de classe” (PATARRA, 1993, p. 113). Mais tarde, em meados de 1967, conforme aponta a
colega Ecléa Bossi, “dona Anita11 (sic) a convidou para ser professora de Psicologia Social e
ela chegou a ser docente, mas logo partiu para a clandestinidade” (apud MOURA, 2014, p. 49).
Em 1968 há um racha12 na POLOP, causado por divergências entre seus integrantes e a
diretoria, originando a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR)13, junção dos dissidentes com
remanescentes do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR)14. A partir desse mesmo
ano, em virtude do Ato Institucional n° 515 e de fotos suas estarem estampando cartazes de

11
Annita de Castilho Cabral foi professora e chefe da cadeira de Psicologia do curso de Filosofia da FFCL – USP
entre 1947 e 1968. Disponível em: <http://200.144.182.66/memoria/por/pessoa/508-
Annita_de_Castilho_Cabral>. Acesso em 24 jun. 2016.
12
“Em 1967, nova crise interna surgiu entre os quadros de São Paulo, que acusavam a direção da Polop de inércia
e de inabilidade para capitalizar a crise deflagrada no PCB com a expulsão de Carlos Marighella, Mário Alves,
Manuel Jover Teles, Apolônio de Carvalho e outros. Considerando que a ocasião era propícia para a Polop disputar
um espaço alternativo na esquerda brasileira e defendendo a luta armada, esse grupo abriu uma dissidência e,
unindo-se a militares expurgados reunidos no Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), iria formar a
Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Na mesma ocasião o grupo mineiro, também divergindo da direção
nacional da Polop, desligou-se do movimento para formar o Comando de Libertação Nacional (Colina). Diante
dessas dissidências, a Polop perdeu praticamente a metade de seus quadros”. Disponível em:
<http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/organizacao-revolucionaria-marxista-politica-
operaria-polop>. Acesso em 24 jun. 2016.
13
“Organização político-militar criada em 1968 por dissidentes da Política Operária (Polop) e ex-integrantes do
Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), em sua maioria estudantes e ex-militares. Seu objetivo era lutar
contra o regime militar instalado no Brasil em abril de 1964, após a derrubada do governo constitucional de João
Goulart. Seu principal líder foi o capitão Carlos Lamarca. (...) A VPR praticamente desapareceu após 1973”.
Disponível em: <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/vanguarda-popular-
revolucionaria-vpr>. Acesso em 24 jun. 2016.
14
“Movimento organizado a partir de 1966 por intelectuais e militares que pretendiam, através da luta armada,
derrubar o regime militar instalado no país em abril de 1964. Liderado, segundo O Estado de S. Paulo, pelo escritor
e jornalista Otto Maria Carpeaux, por Bayard de Maria Boiteux e por Amadeu Rocha, e contando com o apoio de
Leonel Brizola, então no exílio, o movimento desenvolveu como ação principal a guerrilha de Caparaó e publicou
um único número do jornal O Levante, editado por Carpeaux. (...) Parte dos integrantes do MNR constituiu em
seguida a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR)”. Disponível em:
<http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/movimento-nacional-revolucionario>. Acesso em
24 jun. 2016.
15
“O Ato Institucional nº 5, AI-5, baixado em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do general Costa e
Silva, foi a expressão mais acabada da ditadura militar brasileira (1964-1985). Vigorou até dezembro de 1978 e
produziu um elenco de ações arbitrárias de efeitos duradouros. Definiu o momento mais duro do regime, dando
poder de exceção aos governantes para punir arbitrariamente os que fossem inimigos do regime ou como tal

20
“procura-se” (anexo 3), Iara foi para a clandestinidade, alugando um apartamento – os
chamados “aparelhos” – em Santo Amaro e, posteriormente, na rua Frei Caneca. Adotou nomes
de guerra e disfarces, com o uso de perucas e grandes óculos escuros. Ingrid Faria, Zeidi Araujo
e Maria de Fátima afirmam que
A mudança de nome implicava a criação de uma nova história de vida e a composição
de uma outra identidade social que deveria ser mantida. Se esse era um recurso que
garantia a sobrevivência e o trânsito de um local para outro, havia um grande risco de,
ao dar informações sobre si, cair em contradição (...). Outro problema era a dificuldade
para romper com o próprio passado, deixando laços familiares, na maior parte das
vezes, repentinamente, sem poder manter nenhum tipo de contato (...)
(GIANORDOLI-NASCIMENTO, et al., 2012, p. 302).
Ainda em 1968, Iara torna-se responsável pela assistência teórica ao círculo de estudos
que funcionava à noite em Quitaúna, Osasco. Carlos Lamarca16, também integrante da VPR
neste período, passou a frequentar as reuniões. Segundo os companheiros entrevistados por
Judith Patarra, Iara pensava que intelectualmente Lamarca precisava crescer bastante

considerados”. Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/AI5>. Acesso em 24 jun.


2016.
16
“Carlos Lamarca nasceu no Rio de Janeiro, então Distrito Federal, no dia 23 de outubro de 1937. Declarado
aspirante-a-oficial em dezembro de 1960, foi designado para o 4º Regimento de Infantaria, em Quitaúna, no
município de Osasco (SP). Em agosto do ano seguinte passou a segundo-tenente e em 1962 foi convocado para
servir no contingente brasileiro integrante das forças de paz da Organização das Nações Unidas (ONU), que
ocuparam a região de Gaza em consequência do conflito egípcio-israelense. Lá permaneceu 18 meses, retornando
em 1963. Em dezembro desse ano foi promovido a primeiro-tenente e incorporado à 6ª Companhia de Polícia do
Exército, em Porto Alegre. Servia nessa unidade quando o movimento político-militar de março de 1964 provocou
a deposição do presidente João Goulart. Em dezembro facilitou a fuga do capitão-aviador Alfredo Ribeiro Daudt,
preso sob a acusação de atividade subversiva, e por isso respondeu a inquérito administrativo, sem consequências.
Em 1965 pediu transferência para voltar ao 4º Regimento de Infantaria em Quitaúna, onde afirmou-se como
excelente atirador, chegando a ser campeão de tiro do II Exército. Em agosto de 1967 foi promovido a capitão.
Interessado desde 1957 por autores marxistas e responsável pela distribuição clandestina de panfletos políticos nos
quartéis onde servia, somente a partir de 1968 Lamarca fez contatos importantes com as facções de esquerda que
advogavam a luta armada contra o regime, como a de Carlos Marighella, egresso do Partido Comunista Brasileiro
(PCB) e principal dirigente da Ação Libertadora Nacional (ALN), e a de Onofre Pinto, principal dirigente da
Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). No fim de dezembro de 1968, logo após a edição do Ato Institucional
nº 5 (AI-5), foi incumbido de ensinar tiro ao alvo a funcionárias do Banco Brasileiro de Descontos (Bradesco), em
São Paulo, para que pudessem se defender dos assaltos a bancos que grupos armados de inspiração política
praticavam com crescente frequência naquela época. No dia 25 de janeiro de 1969, fugiu do 4º Regimento de
Infantaria, levando 63 fuzis FAL, dez metralhadoras INA e munição. Acompanharam-no o sargento Darci
Rodrigues, o cabo José Mariane e o soldado Carlos Roberto Zamirato, tendo todos se filiado à VPR. No mesmo
dia, sua esposa, Maria Pavan Lamarca, e seus dois filhos embarcaram para a Europa e depois para Cuba, onde
iriam residir até retornar ao Brasil em junho de 1979. Ainda no mesmo dia da fuga de Lamarca, um edital do
Exército deu ao capitão o prazo de oito dias para comparecer ao quartel de Quitaúna, sob pena de ser considerado
desertor. Setenta dias depois, o então presidente da República, Artur da Costa e Silva (1967-1969), desligou
Lamarca do Exército com base no AI-5, ‘por ter cometido atos de natureza desonrosa à dignidade militar, sem
prejuízo das sanções penais cabíveis’. (...) No dia 17 de setembro de 1971, Lamarca, doente, e seu companheiro
José Campos Barreto, de codinome Jessé, foram encontrados e mortos a tiros pela patrulha de busca, perto de
Pintada, no município de Ipupiara (BA), quando descansavam à sombra de uma árvore”. Disponível em
<http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/lamarca-carlos> Acesso em 26 jun. 2016.

21
(PATARRA, 1993, p. 274). Com o tempo, desenvolveram um relacionamento amoroso. Em
1969, Iara, além de continuar a dar aulas teóricas para os companheiros da organização,
participou de um treinamento para formação combatente no Vale do Ribeira.
Em um encontro em Mongaguá, em 1969, – no qual Iara ficou encarregada dos contatos
e circulação de documentos preparatórios (PATARRA, 1993, p. 294) – se deu origem à
Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares (VAR-Palmares)17, resultado da fusão da VPR e
do Comando de Libertação Nacional (COLINA)18. Porém, entre 1970 e 1971, o casal mudou-
se para o Rio de Janeiro, para integrar-se ao Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-
8)19. Em depoimento para o documentário Em Busca de Iara, Carlos Alberto Muniz, ex-
dirigente do MR-8, afirma que
Na época, a VPR tava com um cerco maior ainda, quer dizer, tava com uma
infraestrutura pior, quer dizer, ela não tinha a inserção que nós tínhamos aqui no Rio
de Janeiro. Aí eu expliquei mais sobre o que que era a nossa ideia do trabalho no
campo e cheguei a dizer, a contar um pouco que nós já tínhamos companheiros
deslocados para lá. Aí eles [Lamarca e Iavelberg] decidiram que viriam para o MR-
820.
Carlos e Iara, porém, já eram muito conhecidos e procurados pela repressão. Por motivos
de segurança, ambos foram enviados para a Bahia, o capitão para o sertão, próximo ao Rio São
Francisco, e Iara, para Feira de Santana e, posteriormente, para Salvador. Ingrid Faria, Zeidi
Araujo e Maria de Fátima apontam que “podemos perceber que a experiência pela qual o
militante de esquerda deveria passar era a da convivência com a morte. Aquele que optasse por
uma vida revolucionária passaria a conviver permanentemente com a ideia de que poderia ser

17
“Organização político-militar surgida por volta de 1969 em consequência da fusão entre o Comando da
Libertação Nacional (Colina), a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e outros grupos revolucionários do Sul
do país e da Bahia”. Disponível em: <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/vanguarda-
armada-revolucionaria-palmares-var-palmares>. Acesso em 24 jun. 2016.
18
“Organização política revolucionária criada em 1967 por dissidentes mineiros da Política Operária (Polop). Era
integrada majoritariamente por jovens estudantes universitários”. Disponível em:
<http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/comando-de-libertacao-nacional-colina>. Acesso
em 24 jun. 2016.
19
“Nome adotado sucessivamente por dois grupos revolucionários que pretendiam derrubar, através da luta
armada, o regime militar instaurado no Brasil em abril de 1964. O dia 8 de outubro corresponde à data da morte
de Ernesto “Che” Guevara, líder da Revolução Cubana assassinado na Bolívia em 1967 quando preparava núcleos
guerrilheiros para dar início à revolução socialista nesse país. O primeiro MR-8, formado por dissidentes do Partido
Comunista Brasileiro (PCB) no estado do Rio de Janeiro, atuou no centro-oeste do Paraná e foi praticamente
dizimado pela polícia em agosto de 1969. O segundo MR-8, criado nesse ano também por antigos membros do
PCB, integrantes da chamada Dissidência da Guanabara, persiste até os dias atuais”. Disponível em:
<http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/movimento-revolucionario-8-de-outubro-mr-8>.
Acesso em 24 jun. 2016.
20
EM busca de Iara. Direção: Flávio Frederico. Roteirista: Mariana Pamplona. São Paulo: Produtora Kinoscópio,
2014. Disponível em plataforma digital (90 min), son., colorido.

22
preso, torturado e morto” (GIANORDOLI-NASCIMENTO, et al., 2012, p. 309). A morte
precoce era uma certeza de Iara. Em entrevista ao documentário, João Salgado, ex-líder da
frente de campo do MR-8 afirma que “convicta também que... eu achava também que ela tinha
expressão que ia morrer, que nós íamos morrer mesmo, nós da liderança, mas que fazia parte e
tal21”.
Em 20 de agosto de 1971, policiais do DOI-Codi invadiram o “aparelho” onde Iara
estava abrigada em Salvador com outros companheiros. De acordo com o jornalista Elio
Gaspari, a operação fora considerada um sucesso, pois pegaram do apartamento três militantes
do MR-8, uma empregada e duas crianças (GASPARI, 2002, p. 354). No entanto, durante o
cerco, Iara fugiu para o apartamento vizinho e se escondeu no banheiro. “Iara Iavelberg pulara
um pequeno vão, passando de um apartamento para o outro, mas a polícia encurralou-a num
quarto infestado de gás lacrimogênio. Ouviu-se um tiro. A bala transfixou-lhe o coração e o
pulmão esquerdo” (GASPARI, 2002, p. 354). A tese apresentada por Gaspari foi a de que Iara
teria se suicidado. Durante muitos anos, porém, a família Iavelberg lutou para que o corpo fosse
exumado e essa teoria pudesse ser contestada. No documentário Em busca de Iara, a hipótese
de que o tiro teria vindo do outro lado da porta é apresentada como mais plausível por médicos
legistas. De qualquer forma, a morte de Iara se deu no dia 20 de agosto de 1971. Ela tinha 28
anos.

2.3 Jornal do Brasil

Fundado em 9 de abril de 1891 pelo ex-ministro da Justiça Rodolfo Dantas, primeiro


diretor do periódico, o Jornal do Brasil foi idealizado para defender a monarquia no período
republicano. Sua redação foi instalada na Rua Gonçalves Dias, n° 56, no centro da cidade do
Rio de Janeiro, a então capital do Brasil. De acordo com Letícia Pedruce, “a postura do Jornal
do Brasil era moderada em relação à sua luta ideológica, pois surgiu fortemente capitalizado e
com intenção de vida longa, não pretendia ser liquidado pelo governo como aconteceu com
vários pasquins monarquistas” (FONSECA, 2008, p. 25). Entre os colaboradores e funcionários
do jornal nesta época estavam diversos monarquistas moderados, entre eles José Veríssimo,
Said Ali e Rio Branco. Porém, em junho de 1891, as críticas ao modelo republicano foram
intensificadas com a chegada de Joaquim Nabuco na direção.

21
idem.
23
Desde então, as trocas de diretores influenciaram diretamente no posicionamento do
jornal, como por exemplo em 1893, com Ruy Barbosa diretor, o jornal se proclama republicano,
porém contrário à ditadura do marechal Floriano Peixoto. Após a declaração de estado de sítio
e suspensão da liberdade de imprensa, o jornal foi fechado, sendo reaberto apenas em novembro
de 1894, sob direção de novos proprietários, a firma Mendes e Cia. (FONSECA, 2008, p. 26).
A nova fase caracterizou o veículo como “voltado para as classes sociais mais baixas, criando
seções de reclamações, aumentando o noticiário policial e apostando nos anúncios
classificados” (RIBEIRO, 2015, posição 88522).
Em 1964, ano do golpe civil-militar, a proprietária do periódico era Maurina Dunshee
de Abranches Pereira Carneiro, a Condessa Pereira Carneiro23 – nascida em agosto de 1899,
em Niterói –, no controle do jornal desde 1954, quando se tornou viúva. Seu marido, o Conde
Ernesto Pereira Carneiro era dono do jornal desde 1940.
Ao assumir a direção do periódico, a condessa iniciou um processo de transformação
para acabar com a fama de “jornal das cozinheiras”, por conta da primeira página repleta de
anúncios: o primeiro passo foi convidar seu genro, Manuel Francisco do Nascimento Brito, para
ser, a princípio, consultor jurídico do jornal. Nascimento Brito, natural do Rio de Janeiro, era
piloto e oficial da Força Aérea Brasileira (FEB) e advogado, formado pela Faculdade de Direito
do Rio de Janeiro, em 1946. Foi assistente do secretário-geral de Serviços Públicos do Distrito
Federal entre 1945 e 194624. Em 1956, ao tornar-se diretor executivo, Nascimento Brito
contratou o jornalista Odylo Costa Filho para coordenar a reformulação do jornal. Este, por sua
vez,
organizou uma nova equipe, composta por jovens jornalistas (...). Com a equipe
renovada, o jornal passou a ampliar seu noticiário e o número de páginas de suas
edições (...). Essas mudanças e experimentações culminaram, no final da década, na
modificação estrutural e gráfica mais célebre na história dos jornais impressos
brasileiros. Em 1959, a primeira página foi radicalmente reestruturada e o noticiário
voltou a fazer parte da mesma (FONSECA, 2008, p. 58).
Em 1960, as mudanças gráficas mais radicais foram colocadas em prática: sob a
coordenação de Amílcar de Castro, houve a criação de um caderno específico para os
classificados – o Caderno C – e surgiu o Caderno B, maior inovação do jornal, no qual eram

22
A leitura deste livro foi feita em versão e-book, portanto as páginas podem não estar de acordo com a versão
física.
23
Por ser muito católico, o marido da condessa, Conde Ernesto Pereira Carneiro, recebeu o título que era papal e
não nobiliárquico (RIBEIRO, 2015, posição 371).
24
Fonte: Biografias do FGV-CPDOC. Disponível em:
<http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/JK/biografias/nascimento_brito>. Acesso em 26 jun. 2016.
24
publicadas as notícias sobre as artes em geral, especialmente sobre cinema e teatro (FONSECA,
2008, p. 59). Vale a pena ressaltar que, apesar de responsável pela grande transformação do
periódico e a seleção do diretor, os pesquisadores argumentam que a condessa não exerceu
influência sobre as decisões cotidianas da linha editorial (RIBEIRO, 2015, posição 377).
Nascimento Brito só se desligou do cargo de diretor executivo em 2002. Durante o
período ditatorial, houve dois editores-chefes abaixo de seu comando. O primeiro – e mais
influente – foi Alberto Dines. Judeu, nascido em fevereiro de 1932 no Rio de Janeiro, iniciou
sua carreira como crítico de cinema, mas enveredou para o jornalismo, tendo dirigido jornais
como o Última Hora e Diário da Noite. Em 1962 ingressou no Jornal do Brasil, já na posição
de editor-chefe. Foi demitido em 1973. Em 1972, em seu livro “Posso?”, Alberto Dines
publicou um conto sobre Iara Iavelberg e Carlos Lamarca – sob os pseudônimos de Moema
Iavenfeld e Mário L. –, intitulado “Um caso único de saudade à primeira vista”, no qual afirma
ter tomado conhecimento da existência de Iara apenas após sua morte25 (DINES, 1972, p. 89).
A história trata a militante como uma garota inocente, de classe média, e, como aponta a
historiadora Sônia Brandão, parte do “pressuposto de que Iara fora conduzida pelo experiente
terrorista como se não fosse dotada de vontade, condenação explícita ao voluntarismo daquela
geração” (BRANDÃO, 2014, p. 169). Dines escreveu também, em 1993, o prefácio do livro de
Judith Patarra, “Iara: uma reportagem biográfica”, revelando uma proximidade com a história
da militante.
Após a demissão de Alberto Dines, Walter Fontoura assumiu o cargo de editor-chefe do
periódico, na qual permaneceu até 1984. Advogado e jornalista, ativo no mundo empresarial,
foi vice-presidente da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp). Trabalhou nos periódicos
O Jornal e Última Hora.
Entre 1962 e 1973, o chefe da redação era Carlos Lemos. Nascido em 1929, no Rio de
Janeiro, estudou jornalismo e direito, sem concluir nenhum dos cursos. Começou sua trajetória
profissional na Tribuna da Imprensa. Ingressou no JB em 1958 como repórter de esporte. Em
1973, deixou o jornal. Segundo Roberto Quintaes – copidesque26 e diretor de pesquisas até 1974
–, “o chefe da redação era o gerente executivo, era o operador do jornal. O Dines não fazia o
jornal, o Dines conceituava o jornal. E o Lemos, ele... coordenava as diversas editorias e era ele

25
Apesar disso, há notícias que mencionam Iara Iavelberg – antes do anúncio de sua morte – no Jornal do Brasil,
durante a gestão de Dines, nas seguintes datas: 02 jul. 1968 (p. 7), 12 nov. 1970 (p. 16), 29 mai. 1971 (p. 14) e 09
set. 1971 (p. 17).
26
Revisor de texto.

25
quem fazia sempre o arremate do jornal27”. Carlos Lemos foi sucedido por Paulo Corrêa no
cargo de chefe da redação, em 1973.
Editorialmente, no período analisado, o Jornal do Brasil se organizava em quatro
cadernos: o 1° Caderno, com notícias gerais sobre política, economia, assuntos internacionais,
crimes e etc.; Caderno B, com notícias sobre arte e cultura; Caderno de Automóveis, com
novidades sobre os meios de transporte (veículos, embarcações, cavalos) e turismo; Caderno C,
com os classificados.
Apesar dessa divisão do jornal em si, a redação era dividida em editorias. A jornalista
Belisa Ribeiro aponta que
Só o departamento de pesquisa – o primeiro no Brasil – e o jornalismo da Rádio JB
eram separados por divisórias de madeira. Todas as demais editorias trabalhavam
juntas. Com uma divisão curiosa: a cor das máquinas de escrever era diferente. Uma
cor para as máquinas de editoria Brasil, outra para as da Internacional, outra para as
da Economia (RIBEIRO, 2015, posição 170).
As técnicas de impressão e organização do conteúdo também eram diferentes. Apesar
de, durante a reestruturação gráfica, o periódico ter adquirido equipamentos modernos, o
processo era predominantemente manual, tornando as decisões totalmente intencionais.
Conforme apresentado por Belisa Ribeiro:
Escrevia-se usando papel nem de longe parecido com o que se usa hoje para imprimir
em casa ou no escritório. A lauda, como se chamava o papel usado para se redigir as
matérias, era de um papel meio amarelado e mais fino. Batia-se (como se dizia) a
matéria em três vias, usando carbono: o original que o chefe de reportagem repassava
para o copidesque, uma via para a Agência JB e outra para a Rádio JB. Depois de
passar pelo copidesque e ser devidamente corrigida pelo redator, a matéria era
paginada, ou seja, definia-se a sua localização no corpo do jornal. E, então,
diagramada. À mão. Com régua, esquadro e muita matemática. Se tivesse relevância
para tal, a reportagem, a fotografia ou até mesmo um artigo poderiam ganhar uma
chamada na primeira página (RIBEIRO, 2015, posição 175).
Em 13 de dezembro de 1968, após o decreto do Ato Institucional n° 5, os representantes
da Censura chegaram à redação do JB. Apesar de terem conseguido burlar as solicitações dos
censores e terem publicado uma edição histórica do periódico no dia seguinte, avisando a
população sobre a nova dinâmica censória, a presença destes na redação tornou-se constante,
até o início da autocensura, em 29 de dezembro de 1969. A circular interna elaborada por José

27
UM time de cobras: entrevista com Roberto Quintaes. Diretor: Belisa Ribeiro. São Paulo, 2015. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=i2tfKq4Bs_U> (12min), son., colorido.

26
Sette Câmara Filho28, na época um dos diretores do Jornal do Brasil, intitulada “Instruções para
o controle de qualidade e problemas políticos”, foi criada com o objetivo de “instituir na equipe
um (...) Controle de Qualidade (...) sob o ponto de vista político”29. Afirmava ainda que
A posição do JB ao proferir que este não é a favor nem contra, (...) não é jornal de
situação, nem de oposição. O JB luta pela restauração da plenitude do regime
democrático no Brasil, pelo retorno do estado de direito. (...) Enquanto estiver em
vigor o regime de exceção, temos que usar todos os nossos recursos de inteligência
para defender a linha democrática sem correr os riscos inúteis do desafio quixotesco
ao Governo. (…) O JB teve uma parte importante na Revolução de 1964 e continua
fiel ao ideário que então pregou. Se alguém mudou foram os líderes da Revolução.
[Nesse sentido, o JB deverá] sempre optar pela suspensão de qualquer notícia que
possa representar um risco para o jornal. Para bem cumprirmos o nosso maior dever,
que é retratar a verdade, é preciso, antes de mais nada, sobreviver”. Sette Câmara
termina decretando que, “na dúvida, a decisão deve ser pelo lápis vermelho”30.
Portanto, é possível observar que, apesar de ter edições históricas de resistência e
questionamento ao governo militar, o JB, além de ter apoiado o movimento militar de 1964 e
ter realizado autocensura, tinha em sua direção e redação membros predominantemente do sexo
masculino. Durante o período, a proprietária do jornal era uma mulher, condessa católica, mas
que deixou as decisões diárias a respeito do que seria publicado nas mãos de seu genro, com
formação majoritariamente militar e outros.

2.4 O Estado de S. Paulo

Fundado em 4 de janeiro de 1875 com o nome A Província de São Paulo, o jornal mais
antigo do atual estado foi concebido por republicanos para questionar a monarquia e a
escravidão. Foram 16 idealizadores do jornal, entre eles Américo de Campos31 e Francisco

28
José Sette Câmara Filho nasceu em abril de 1920, em Alfenas, Minas Gerais. Envolvido com política durante
toda a sua vida, trabalhou com Juscelino Kubitschek e outros chefes de Estado, mesmo durante a ditadura. Em
1968 licenciou-se do Itamarati para assumir uma das diretorias do Jornal do Brasil até 1972. Disponível em:
<http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/JK/biografias/Sete_Camara>. Acesso em 26 jun. 2016.
29
KUSHNIR, Beatriz. A grande imprensa apoiou o golpe e a ditadura. Carta Capital, Rio de Janeiro, março/2014.
Disponível em <http://www.cartacapital.com.br/politica/a-grande-impressa-apoiou-o-golpe-e-a-ditadura-e-nao-
teve-papel-relevante-para-o-fim-do-regime-1979.html>. Acesso em 26 jun. 2016.
30
KUSHNIR, Beatriz, op. cit.
31
Nascido em agosto de 1835, foi advogado formado pela Faculdade de Direito de São Paulo, tornando-se
promotor público. Foi diretor e redator do Correio Paulistano entre 1865 e 1874. Além disso, fundou A Província
de São Paulo e o Diário Popular. Faleceu em janeiro de 1900.

27
Rangel Pestana32, também redatores e proprietários. A tiragem inicial era de 2.000 exemplares,
bastante significativa para a população da cidade à época, estimada em 31 mil33. Conforme
aponta o historiador Luiz Antonio Dias,
[como] nasceu com perspectivas e projetos liberais, o jornal sempre apresentou uma
visão elitista, criticando os movimentos sociais, nem tanto pela sua essência mas,
principalmente, por sua forma de ação. No entanto, o liberalismo do Estadão não era
tão inflexível, ao menos quando lhe interessava. As intervenções militares na vida
política do país raramente receberam críticas do jornal (DIAS, 2012, p. 7).
Em 1902, Júlio Mesquita, genro de José Alves de Cerqueira César34, um dos 16
fundadores, tornou-se o único proprietário do OESP. Júlio César de Ferreira Mesquita, nascido
em agosto de 1862, foi advogado formado na Faculdade de Direito de São Paulo, em 1883. Em
1885, passou a ser colaborador do então A Província de São Paulo, como comentarista e, em
1890 tornou-se diretor do periódico. No mesmo ano, já no contexto de uma república e uma
tiragem de 8.000 exemplares, o jornal passou a se chamar O Estado de S. Paulo35.
Com a morte de Júlio Mesquita, em 1927, seu filho, Júlio Mesquita Filho, assume o
cargo da diretoria do jornal. Também formado pela Faculdade de Direito da Universidade de
São Paulo, Mesquita Filho foi preso 17 vezes pela ditadura do Estado Novo e levado ao exílio,
em Portugal. Enquanto estava exilado, O Estado de S. Paulo foi dirigido por Francisco
Mesquita. Em 25 de março de 1940, porém, inicia-se o período de intervenção direta da ditadura
sob o jornal, sendo devolvido à família Mesquita apenas em 1945. O OESP não considera esse
período como parte da história do periódico36.
De acordo com o historiador Luiz Antonio Dias, o OESP foi um jornal muito
conservador. Afirma que,
nas páginas desse matutino, nacionalismo, populismo e comunismo tornaram-se
sinônimos. Figuras como Vargas e, posteriormente, João Goulart foram
responsabilizados pela propagação dessas ideias. Qualquer proposta de reforma social
ou mobilização dos movimentos sociais continuou a ser vista como obra dos
“comunistas”, só que dessa vez infiltrados no próprio governo (DIAS, 2012, p. 7).

32
Nascido em novembro de 1839, foi advogado formado pela Faculdade de Direito de São Paulo. Exerceu diversos
cargos políticos, como deputado da província e senador.
33
PONTES, José Alfredo Vidigal. Cronologia histórica do Grupo Estado. Disponível em:
<http://www.estadao.com.br/historico/print/cronologia.htm>. Acesso em 26 jun. 2016.
34
Nascido em maio de 1835, foi advogado formado pela Faculdade de Direito de São Paulo, seguindo pela carreira
política. Ocupou cargos como presidente interino de São Paulo e presidente do Senado Estadual de São Paulo. Foi
também presidente do Partido Republicano Paulista.
35
PONTES, José Alfredo Vidigal, op. cit.
36
Fonte: PONTES, José Alfredo Vidigal, op. cit.
28
Em 1964, ano do golpe civil-militar, o proprietário e diretor em exercício do periódico
era Júlio de Mesquita Filho, cargo que exerceu até sua morte, em 1969, quando foi sucedido
por seu filho, Júlio de Mesquita Neto, também formado na Faculdade de Direito do Largo São
Francisco. Quando a censura da ditadura foi imposta, Mesquita Neto foi o diretor responsável
pela publicação de trechos de Os Lusíadas, de Luís de Camões, no lugar das notícias
censuradas.
O diretor-redator chefe à época era Marcelino Ritter. Nascido em janeiro de 1903, em
Piracicaba, São Paulo, Ritter trabalhou em jornais como Gazeta de Piracicaba, Diário da Noite
e O Estado de S. Paulo. Tornou-se diretor-redator chefe em 1951, cargo no qual se aposentou
na década de 197037. Foi sucedido por Oliveiros da Silva Ferreira, nascido em maio de 1929,
em São José do Rio Pardo, interior de São Paulo. Oliveiros Ferreira formou-se em Ciências
Sociais pela Universidade de São Paulo em 1950. Sua trajetória no OESP se iniciou em 1953,
como repórter, mas já foi copidesque, editor da seção internacional, editor da seção de política
nacional, secretário de redação e diretor-redator chefe.
Apesar de ter declarado apoio à “Revolução de 1964”, de acordo com o jornalista João
Batista de Abreu, “de todos os diários de grande circulação da época, o que mais sofreu a ação
da censura foi O Estado de S. Paulo, que conviveu com a presença de agentes policiais na
redação entre 13 de dezembro de 1968 e 3 de janeiro de 1975, véspera do centenário do jornal”
(ABREU, 2000, p. 62). Na madrugada de véspera da decretação do AI-5, de acordo com
Oliveiros da Silva Ferreira, o general Sílvio Correa de Andrade comandou pessoalmente a
apreensão do jornal, por conta do editorial “Instituições em frangalhos” – texto que criticava o
presidente da República, marechal Costa e Silva, “por não cumprir a promessa de respeitar as
instituições do sistema democrático” (ABREU, 2000, p. 62).
A censura no OESP, de acordo com o jornalista Mino Carta, teria um caráter diferente
da dos outros periódicos. Ele afirma que
No caso do Estadão, o poder está agastado com alguém que deveria estar com ele e
no entanto escapa da regra e pretende ter uma autonomia que o poder fardado não
aceita facilmente. Mas isso na verdade começa com Castelo Branco, porque o Júlio
Mesquita Filho, que apoiou o golpe evidentemente, foi ao Rio encontrar-se com o
Castelo Branco com uma lista de ministros pronta no bolso. Deu pro Castelo Branco
e o marechal não ligou para ele. Isso foi imperdoável. Aí se criou uma fratura dentro
do sistema. E o Estadão acabou sendo punido mais tarde por isso (CARTA apud
ABREU, 2000, 65).

37
Fonte: verbete na página do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba. Disponível em:
<http://wiki.ihgp.org.br/RITTER,_Marcelino>. Acesso em 26 jun. 2016.
29
A própria utilização do termo “terroristas” para se referir aos militantes de esquerda
pode ter sido iniciativa dos editores/repórteres do jornal, já que Oliveiros “acha que não houve
interferência do regime militar na escolha da palavra” (ABREU, 2000, p. 64).

****

A apresentação dos jornais e seus dirigentes contribui para a compreensão das


particularidades ideológicas de cada periódico, as quais, inevitavelmente, se refletem no
discurso jornalístico publicado. Constatar que os funcionários são em sua maioria homens e que
as mulheres que compõem o quadro de empregados do jornal não possuem grande poder de
decisão no que é publicado, demonstra que concepções machistas permeavam as redações.
Além disso, a formação militar de alguns dirigentes e a proximidade ideológica com o regime
ditatorial explica o desejo da manutenção da ordem e da moral e dos bons costumes. A trajetória
de Iara Iavelberg é totalmente oposta a esses valores: a liberdade sexual, variação de parceiros,
além de sua formação acadêmica e autonomia política. Conhecer esses fatores é fundamental
para entender a narrativa empregada pelos veículos de mídia para a construção de sua imagem
para o público leitor.

30
3 As representações de Iara Iavelberg na grande mídia: análise documental

“Ela [Iara Iavelberg] foi uma combatente tão boa quanto


ele [Carlos Lamarca] e o auxiliou muito, fez bem a ele
naquela vida tão solitária, como companheira de batalha
e como mulher”.
Maria Pavan Lamarca38

Durante o levantamento documental nas bases online dos periódicos Jornal do Brasil e
O Estado de S. Paulo foram encontradas 14 notícias que fizessem uma ou mais menções à Iara
Iavelberg, entre os anos de 1968 e 198139, sendo 8 no JB e 6 no OESP. As notícias serão
analisadas, em ordem cronológica, neste tópico.
Iara Iavelberg é citada pela primeira vez na edição de 02 de julho de 1968 do JB.
Proveniente da sucursal de São Paulo, o título é “Paulistas protestarão contra novas prisões” e,
apesar de conter um texto extenso, a matéria não possui destaque no periódico: localizada no
centro da página, possui caracteres bem menores em relação às outras publicações. Todas as
notícias da folha tratam sobre assuntos relacionados à Reforma Universitária, concretizada
neste mesmo ano40, com pronunciamentos do Ministro da Educação Tarso Dutra, e notas sobre
a resistência do movimento estudantil. Não há ilustrações na notícia que cita Iara e nem em
qualquer outra específica da página, sendo a única imagem uma charge, no canto superior
esquerdo.
A notícia em análise traz toda a programação das faculdades ocupadas contra a reforma
e lista os nomes dos estudantes presos até tal data: total de 15 nomes, dos quais apenas 5 vem
acompanhados de informação sobre o local de estudo, entre eles o de Iara. “Iara Iavelberg,
professora [sic] assistente de Psicologia”. Importante ressaltar que os estudantes não são
tratados como “subversivos” ou “terroristas” em nenhuma parte do texto, sendo citados
inclusive como “líderes estudantis” e “líderes sindicais” – apesar de ser de 1968, esta edição é

38
BARDANACHVILI, Eliane. Família Lamarca prepara um livro. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 18 set. 1988,
1° caderno, p. 15.
39
Para a melhor obtenção de resultados, foram utilizadas várias possibilidades de escrita do nome de Iara nas bases
de dados, como Iara Iavelberg, Yara Yavelberg, Iara Yavelberg ou Yara Iavelberg.
40
Para mais informações sobre o assunto, consultar MARTINS, Carlos Benedito. A Reforma Universitária de
1968 e a abertura para o ensino superior privado no Brasil. Educ. Soc., Campinas, vol. 30, n. 106, p. 15-35,
jan./abr. 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/es/v30n106/v30n106a02>. Acesso em 06 jul. 2016.
31
anterior ao AI-5 e, portanto, anterior à chegada da censura na redação do JB, uma possível
resposta para o caráter mais neutro da escolha do vocabulário.

Paulistas protestarão contra novas prisões. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 02 jul. 1968, 1° Caderno, p. 7.

Demorou mais dois anos para a Iara merecer atenção da imprensa. Em 12 de novembro
de 1970, Iara volta a ser citada no JB, em uma notícia sobre Lamarca: “Motorista de Lamarca
confessa que ganhava sem limites na subversão”. A matéria está publicada no 1° caderno,
página 16, na seção Subversão. Constituída em grande parte por anúncios, há apenas mais duas
outras notícias na página: “PM metralhado pelo terror é sepultado” e “Segurança procura
terroristas”, esta última contando com fotografias e nomes/codinomes de 17 procurados.
Com maior destaque, a notícia que leva o nome de Lamarca no título trata de
informações fornecidas por seu motorista, Joaquim dos Santos, à 1ª Auditoria da II Região
Militar. A menção à Iara, por sua vez, é rápida a identifica como “terrorista” pela primeira vez:
Por determinação dêste [Carlos Lamarca], [Joaquim dos Santos] comprou outra área
nas proximidades, por Cr$ 40 mil, levando para lá o ex-capitão e mais José Lavecchia,

32
Yoshitane Fujimore, Iara Iavelberg, José Raimundo da Nóbrega e outros terroristas,
dos quais sabe apenas os apelidos, entre êles um médico.
É significativo notar que, diferentemente da notícia anterior, há o emprego frequente de termos
como “subversão”, “subversivos”, “terroristas” e “terror”. O jornalista João Batista de Abreu
aponta que a palavra “terrorista” busca homogeneizar todos os opositores do regime,
independentemente de sua filiação ou posicionamento político, “a fim de desqualifica-los junto
à população” (ABREU, 2000, p. 23).
É evidente também que a relação de Iara com Lamarca é crucial para que ela seja citada
durante a notícia: o sujeito mais relevante é o ex-capitão, todos os que o acompanham são meros
coadjuvantes. Não há menção à filiação política de Iavelberg – apesar de estar explícito que
Lamarca é associado à VPR/VAR-Palmares, com detalhes de sua participação em ações e
evidenciando sua posição de líder, conforme demonstra o trecho a seguir: “desde então,
[Joaquim dos Santos] passou a receber ordens diretas do ex-capitão Carlos Lamarca”.

Motorista de Lamarca confessa que ganhava sem limites na subversão. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 nov.
1970, 1° Caderno, Seção Subversão, p. 16.
Seis meses depois, em 29 de maio de 1971, o JB publicou a transcrição de documentos
elaborados por Lamarca, apreendidos pelos órgãos de segurança. A matéria, intitulada
“Aparelho estourado revela dois documentos de Lamarca” – com texto chamada na primeira
página do jornal –, ocupa uma página inteira do 1° caderno (p. 14), com apenas um anúncio.

33
Aponta-se que, com a queda deste aparelho, foram apreendidas duas fotos, uma de Carlos
Lamarca e outra “de sua atual amante, Iara Yavelberg”. Ainda assim, só a foto de Lamarca foi
publicada.
No canto superior direito, há uma parte da notícia dedicada à Iara, sob o título “Ficha
de Iara”, com o seguinte texto:
Segundo os dados liberados, Iara Yavelberg era casada em São Paulo com um médico,
que desquitou-se dela ao surpreendê-la, seis meses após o casamento, em uma
festinha com estudantes, entre os quais encontrava-se Carlos Alberto Soares de
Freitas, Breno, do Comando Nacional da VAR-Palmares (foragido), que foi seu
primeiro amante.
Informam que ela conheceu Lamarca nos quadros do terrorismo, através de Breno, e
após algum tempo passou a viver com êle. Tem participado de atividades terroristas e
estêve em Registro, tendo “abandonado a área por haver contraído doença grave em
órgão genital, segundo declarações de terroristas presos.” Adianta ainda que Iara tem
constantemente alugado apartamentos a serem usados pela organização terrorista 41.
A descrição de Iara como “amante” de Lamarca é predominante e permeia todo o texto.
A descrição de fatos relacionados à sua vida amorosa é feita com a intenção de desmoralizá-la.
O casamento rompido pelo marido supostamente após seis meses – apesar de, conforme
apresentado anteriormente, saber-se que durou em média seis anos –, traz uma ideia de
promiscuidade, pois, além de Iavelberg já ser “desquitada” – estado civil mal visto na época –
o motivo do rompimento teria sido uma “festinha” com seu primeiro amante. Ao afirmar, em
seguida, que a militante teve de abandonar “Registro” – termo que, apesar de não estar
explicitado na notícia, como se fosse de conhecimento prévio do leitor, se refere a um município
de São Paulo no Vale do Ribeira, local onde foi realizado treinamento militar organizado pela
VPR – por conta de “doença grave em órgão genital”, fica implícito que os encontros da
“subversão” eram repletos de atos de libertinagem e devassidão. Em concordância, a
historiadora Julia Insuela afirma que
A noção de moral e bons costumes é bem perceptível no conteúdo desses periódicos.
Ao fazerem uso de referências que remetem a “status comportamentais” e que pelo
senso comum são agregados a valores negativos, a grande imprensa revela uma
conotação de não aceitação das mulheres militantes. Mais ainda, realizam, mesmo que
não claramente nas reportagens, uma comparação com as mulheres que, para a
sociedade, correspondiam aos padrões sociais corretos da época.

41
Grifos originais da notícia.
34
Essa comparação, mesmo que velada, contribui para a formação no leitor de uma ideia
de “nós” em oposição aos “outros”, aumentando o distanciamento entre o “homem/mulher de
bem” e o “subversivo”. A historiadora Denise Rollemberg afirma que “a ausência de identidade
entre a sociedade e o projeto revolucionário, levando a seu isolamento” foi um dos principais
fatores para a rápida vitória da repressão (ROLLEMBERG, 2003, p. 66).

Ficha de Iara. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29 mai. 1971, 1° Caderno, p. 14.

Observa-se que o objetivo principal da matéria é a exposição das ações de Carlos


Lamarca e sua consequente deslegitimação. Iara Iavelberg não é apresentada por ser
considerada um risco para a segurança nacional – como Lamarca – ou uma ameaça para o
regime vigente; muito pelo contrário, as informações são utilizadas para desqualificar ainda
mais o ex-capitão: um desertor, subversivo, só poderia estar se relacionando com uma mulher
promíscua e que definitivamente não se encaixava nos valores morais pregados na época.
Fundamental frisar que, independentemente de ser apontado que Iara “tem participado
de atividades terroristas” e “tem constantemente alugado apartamentos a serem usados pela
organização terrorista”, não é diretamente classificada como “terrorista” e nem associada a uma
35
organização, como Carlos Alberto Soares de Freitas, por exemplo. Sua imagem é construída de
maneira próxima à de Eva, que provoca os pecados dos homens.
Esse quadro mudou na notícia publicada em 09 de setembro de 1971, também no JB, na
página 17 do 1° Caderno, seção Nacional. Localizada no canto superior à esquerda, de acordo
com João Batista de Abreu (2000, p. 30), local de maior destaque na página, era intitulada
“Garoto [sic] revela participação em assaltos e missões de terrorismo junto com o pai”. Trata-
se de Ivan Seixas, na época com 16 anos, filho de Joaquim Alencar de Seixas, ambos presos e
torturados juntos em abril de 1971. O pai faleceu e o filho, sob tortura, supostamente deu
informações para os órgãos de segurança, principalmente relacionadas aos assaltos realizados
pelo Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT)42 e os supostos planos de assassinar o
delegado Sérgio Fleury, informações estas publicadas pelo jornal cinco meses após sua
obtenção.
Relata que Ivan Seixas mencionou Iara ao contar que “em novembro de 1970 participou
da escolta que levou Carlos Lamarca ao Rio. No mesmo grupo seguiu a terrorista Iara
Iavelberg43”. Abreu destaca que o “terrorista costuma ser visto como uma pessoa com
distúrbios patológicos e imprópria para a convivência social” (ABREU, 2000, p. 30). Tal
significado pode ser confirmado na própria notícia, no trecho em que se afirma que “a Justiça
Militar pediu ontem mesmo a custódia prévia do menor, enquanto um seu procurador solicitava
que êle fôsse submetido a exame de sanidade mental”. Mais uma tentativa, assim sendo, de
colocar a resistência em descrédito com a população.

42
“Movimento político clandestino organizado em 1961 com o objetivo de preparar a revolução no Brasil. Era
vinculado às ligas camponesas. Foi desativado a partir de 1962”. Disponível em:
<http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/movimento-revolucionario-tiradentes-mrt>.
Acesso em 6 jul. 2016.
43
Grifos meus.
36
Garoto [sic] revela participação em assaltos e missões do terrorismo junto com o pai. Jornal do Brasil, Rio de
Janeiro, 09 set. 1971, 1° caderno, Seção Nacional, p. 17.

A lista de ações publicadas consiste em uma série de assaltos, mas não há, em momento
algum, qualquer referência a seu propósito, deixando a impressão de que não há motivação
política e de que são apenas roubos comuns. Nesse sentido, João Batista de Abreu afirma que
As ações, principalmente as armadas, eram vistas como atos isolados e desprovidos
de significado político. A ação política está associada à História como processo. O
terrorismo é visto como ato de desesperados, sem história. Na maioria das vezes, aos
olhos do leitor, a ação em si se sobrepõe às causas. Trata-se de pôr no mesmo rol
crimes de naturezas diferentes, privilegiando as consequências em vez da origem
(ABREU, 2000, p. 33).
Além disso, mais uma vez se constata que a menção à Iavelberg está diretamente condicionada
à menção a Lamarca.
Somente em 19 de setembro de 1971, em decorrência da morte de Carlos Lamarca – e
um mês após sua própria morte – Iara Iavelberg é citada pela primeira vez por O Estado de S.
Paulo. Notícia de maior destaque na primeira página do jornal, sob o título “Cai Lamarca no
sertão baiano”, ocupa mais da metade da página em questão, contando com duas ilustrações, –
uma foto da face de Lamarca ainda vivo e outra da porta do necrotério onde se encontrava seu

37
corpo –, detalha as circunstâncias de morte do guerrilheiro. Na reportagem do entretítulo
“Caçada começa em agosto [sic]”, a morte de Iara foi relatada:
A confissão de Rocha permitiu localizar um aparelho na rua Minas Gerais, 125, bairro
de Pituba, onde se encontrava a psicologa paulista Yara Iavelberg, apontada como
companheira de Lamarca, desde que sua mulher e filhos se exilaram em Cuba. Dois
subversivos foram presos nessa ocasião, mas Yara conseguiu fugir para o apartamento
vizinho, pulando o muro da area de serviço.
Segundo as informações ontem liberadas, a psicologa suicidou-se com um tiro de
revolver calibre 38, trancada no banheiro da empregada. Seu corpo ainda se encontra
no necroterio do Instituto Médico-Legal Nina Rodrigues, em Salvador.
A essa altura, 23 de agosto, as autoridades policiais estavam cientes da presença de
Lamarca no interior da Bahia. Em Salvador circularam rumores de que, ao saber da
morte de Yara, ele ameaçou resgatar o cadaver no necroterio.

Cai Lamarca no sertão baiano. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 19 set. 1971, capa.

38
Novamente, Iara é descrita primordialmente como companheira de Lamarca. O
diferencial nesta matéria é o caráter mais neutro. Iavelberg é referida como psicóloga, não foram
ressaltados aspectos de sua vida pessoal, como relacionamentos anteriores, e não são usados
adjetivos pejorativos para descrevê-la. Relata, sem avaliação ou destaque, a sua bravura, de
tentar fugir, pular um muro e se matar, em vez de ser presa, enfrentar tortura e talvez revelar
informações sobre seus aliados. Contudo, não há alusão alguma à sua militância ou sequer
envolvimento com a política. Observa-se também que a menção à família “oficial” do
guerrilheiro exilada em Cuba reforça o caráter clandestino de sua relação com Iara Iavelberg.
De acordo com Abreu (2000, pp. 16-17), “as mulheres não passavam de ‘companheiras’, o que
nos costumes predominantes na época era sinônimo de concubinas, cônjuges que não tinham a
situação regularizada perante a lei”.
Na página 34 desta mesma edição, há a continuação da reportagem de capa, sob o título
“As fichas comprovam: é Lamarca morto”, reforçando e dando mais detalhes sobre a vida e
morte do guerrilheiro. As supostas circunstâncias da morte de Iavelberg são reafirmadas neste
tópico e, fora desta temática, ela não é mais citada.
Neste mesmo dia, na edição do JB, Iara também é citada na capa. Com o título ocupando
toda a parte superior da página, “Lamarca morre em choque no interior da Bahia”, o texto da
notícia está em uma única coluna, no canto direito do periódico, com caracteres em negrito e
maior espaçamento entre as linhas, técnica utilizada para preencher espaço. Não há foto
acompanhando a matéria, apesar de haver uma única imagem na página, logo abaixo do título
sobre Lamarca: dois grandes ursos aparentemente se beijando. A pequena legenda trata da
chegada da primavera, “trazendo o cio nos animais”.
A citação do nome de Iara Iavelberg ocorre também ao ser tratada sua morte:
No dia 6 de agôsto último, quando as autoridades de segurança estouraram um
aparelho em Salvador, não rêstava mais dúvidas sôbre a presença de Lamarca na
Bahia. Durante esta operação a amante do ex-capitão, Iara Iavelberg suicidou-se com
um tiro no coração.

39
Lamarca morre em choque no interior da Bahia. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 19 set. 1971, capa.

Na continuação da cobertura da morte de Lamarca, na página 40 ainda no primeiro


caderno, o texto referente à Iara é exatamente o mesmo. Nota-se que a presença da militante na
Bahia é vista pelos militares e pela grande imprensa como indicativo e consequência da
presença de Lamarca na região, e não de uma possível estratégia ou participação de ação
política.
Mais uma vez, no dia 21 de setembro de 1971, a morte de Lamarca recebeu destaque
em ambos os periódicos. As fotos do cadáver do guerrilheiro já estavam disponíveis e foram
publicadas – pelo JB inclusive na capa. As páginas 14 e 16 do primeiro caderno do jornal são
totalmente dedicadas ao assunto. Na página 16 há um pequeno espaço dedicado à Iara, com três
fotos do rosto da mesma enquanto viva, intitulado “Família quer levar corpo de Iara”:

40
Família quer levar corpo de Iara. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 21 set. 1971, p. 16.

São Paulo (Sucursal): Até as últimas horas da noite de ontem, a família da terrorista
Iara Iavelberg ainda não havia encontrado uma (ilegível) para remover o corpo da
jovem de Salvador para São Paulo, pois o interesse dos pais é que ela seja sepultada
no Cemitério Israelita da capital paulista, no bairro do Butantã.
A família de Iara Iavelberg soube da sua morte no sábado através de um noticiário de
televisão. Sua irmã, Srta. Rosa Iavelberg, explicou que seus pais viram Iara pela
última vez em 1969, e que a notícia da morte não causou muita surpresa, pois ‘isso já
era esperado devido as suas ligações com terroristas’. Iara estava condenada a 13
meses de prisão no processo da VAR-Palmares.
É a primeira vez que foram publicadas fotos de Iara nos periódicos. No texto, a
apresentação de Iavelberg como “terrorista” se mantém. Interessante notar que a fala de sua
irmã Rosa, – apesar de não ser possível afirmar se foi transcrita de maneira fiel – reafirma uma
ideia de morte como única consequência para o envolvimento com o “terror”, o que aumenta
ainda mais o distanciamento entre os cidadãos “comuns” e os oposicionistas ao regime. O
depoimento de alguém da família para o jornal parece também ser uma tentativa de justificar o
caráter desviante do envolvimento de uma mulher com a militância política, já que, segundo

41
Ana Maria Colling, “os pais, de acordo com a concepção tradicional da família, deveriam criar
suas filhas mulheres para serem boas esposas e boas mães, jamais para sair às ruas como
militantes políticas” (COLLING, 1997, p. 85). A falta de contato, a falta de oportunidade para
orientá-la, pode ser interpretada como causa do desvio.
Na edição do OESP deste mesmo dia, foi dado grande destaque ao “assunto Lamarca”:
há uma nota na capa, reportagens nas páginas 10, 11, 12 e 13, além de comentário na página 3.
Iara foi mencionada nas páginas 11 e 12.
Na página 11, a matéria, intitulada “Órgãos de segurança condenam o sensacionalismo”
é, na verdade, a transcrição completa de um comunicado emitido pelos “órgãos de segurança”
– sem especificação de qual órgão exatamente. Iara Iavelberg é mencionada no subtítulo “Sob
o signo da traição”: “traiu sua espôsa e seus filhos, enganando-os com promessas de futura
reconciliação em Cuba, passando depois a viver com várias amantes terroristas, fixando-se em
Yara Yavelberg”. O relacionamento extraconjugal com Iara é utilizado para deslegitimar as
ações políticas de Lamarca e caracterizar uma “predisposição natural” do capitão à traição.
Sobre esta nota, João Batista de Abreu afirma que as características atribuídas a
Lamarca, independentemente de sua veracidade, têm a finalidade de estabelecer uma relação
entre o perfil de guerrilheiro e um comportamento desviante dos padrões da sociedade. Aponta
que “o desprezo pela família – na figura dos pais, da mulher (chamada de esposa para marcar a
diferença) e dos filhos – justificado pela entrada na clandestinidade, reforça o caráter antissocial
do guerrilheiro aos olhos da sociedade cristã brasileira” (ABREU, 2000, p. 182).
A página é em grande parte ocupada por um anúncio da empresa madeireira Klabin. A
transcrição da nota ocupa só o topo e a coluna do canto esquerdo.
O primeiro título da página 12 destaca Iavelberg: “Politicamente, Iara dominava”.
Apesar de levar o nome da psicóloga na manchete, a matéria trata primordialmente de Lamarca
e sua suposta deficiência em conhecimentos teóricos:

42
Órgãos de segurança condenam o sensacionalismo. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 21 set. 1971, p. 11.

Iara Iavelberg foi uma das principais razões do desgaste de Lamarca perante
seus companheiros da VPR. Os terroristas observavam o domínio a que o ex-capitão
estava submetido e achavam que a influência de Iara estava o fazendo fraquejar. Por
isso, quando, no início dêste, êle escreveu à organização pedindo seu afastamento, a
decisão não teve significado de grande perda para o grupo. Na carta, Lamarca pedia
desligamento da VPR, da qual era o chefe, informando que estaria à disposição de
outros grupos que concordassem com seu ponto de vista político.
Mau teórico
Lamarca era considerado dentro do terror como um bom elemento de ação,
mas nunca um teórico. Em documentos da VPR, apreendidos pela polícia, o ex-militar
era bastante criticado por sua falta de cultura política. Segundo um ex-terrorista, êle
não tomava nenhuma decisão de caráter político antes de consultar Iara. No congresso
da VPR realizado em Mongaguá, no litoral paulista, ainda de acôrdo com o ex-
terrorista, tôdas as decisões do líder da organização eram ditadas por Iara. Três meses
depois, quando ocorreu a cisão da VAR-Palmares, em setembro de 1969, Iara
continuou orientando-o politicamente. Tanto a formação quanto a cisão da VAR-
Palmares foram propostas por êle, seguindo os conselhos da amante.

43
A implantação de um campo de guerrilhas o Vale do Ribeira e a fuga de
Lamarca e seus companheiros não serviram para reabilitá-lo na organização. À época,
um dos elementos que posteriormente abandonou o terrorismo definiu Lamarca como
“um introvertido que fugia de discussões, mostrando falta de capacidade de
liderança”.
Quem era Iara
Em Salvador, pouco se sabe sobre Iara. Para as autoridades, ela deve ter
residido em outros locais antes de ser localizada no bairro da Pituba. Uma prova disso
é a correspondência enviada por Lamarca, sempre destinada a Salvador.
Professora, desquitada de um médico de São Paulo, Iara começou a envolver-
se na subversão durante as manifestações estudantis de 1968. Condenada a 15 meses
de prisão na semana passada pela 1ª Auditoria de Guerra, ela respondia a outros
processos, todos relacionados com crimes contra a segurança nacional. Várias pessoas
de sua família também estão implicadas em movimentos subversivos.

Politicamente, Iara dominava. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 21 de set. 1971, p. 12.

Ainda que nesta notícia sejam citados os crimes contra a segurança nacional pelos quais
Iara era processada, seu envolvimento e conhecimento político, principalmente teórico, é
44
apresentado de maneira pejorativa, ressaltando a incapacidade de Lamarca de tomar decisões
por conta própria. Sua posição de líder parece não ser considerada legítima por conta da
influência de sua amante: “os terroristas observavam o domínio a que o ex-capitão estava
submetido e achavam que a influência de Iara estava o fazendo fraquejar”. Mesmo que fique
implícito que a militante tinha aporte teórico para influir nas decisões do líder, sua apresentação
não deixa de mencionar o desquite, como fator de depravação.
Uma mulher intervir nas decisões políticas de um homem parecia fora da norma. Como
às mulheres era relegado o mundo privado e jamais o público – espaço masculino por excelência
–, ser “dominado politicamente” por uma mulher poderia ser visto como incapacidade e
inferioridade. Outra vez, há motivos para a falta de confiança em Lamarca, já que não parecia
ser um líder completo, que transmitia segurança em suas decisões. A construção da imagem de
Iavelberg remete muito à figura bíblica de Eva, responsável pela perversão e o pecado do
homem.
Após a morte de Iara, são publicadas mais notícias com seu nome no JB, talvez por
influência do novo interesse de Alberto Dines, conforme tratado no tópico anterior. No dia 22
de setembro de 1971, é publicada uma nota sobre o enterro da militante: “Pais de Iara Iavelberg
vão à Bahia”. Está localizada na parte superior, centro, com grande visibilidade, apesar de ser
uma nota curta, ocupando apenas uma coluna. As outras notícias da página tratam de assuntos
policiais num geral – assassinatos, roubos, atropelamentos. Além da nota sobre Iara nesta
página, há mais uma que trata de um incêndio causado por “terroristas”, sublinhando um caráter
despolitizado da ação. Julia Insuela afirma que as “reportagens políticas, ou que deveriam ser
de teor político – sobre a luta armada ou o regime vigente, por exemplo – foram colocadas nas
páginas policiais, com o intuito de associar estes temas – principalmente a luta armada e seus
participantes – a crimes comuns. A cobertura torna-se, então, policial” (INSUELA, 2011, p.
86).
Observando o texto da notícia, embora ainda se refira à Iara enquanto terrorista, não há
qualquer menção a Lamarca. Ademais, sua relação com a organização VAR-Palmares é
mencionada – mas não a última filiação ao MR-8.
Os pais de Iara Iavelberg viajaram ontem para a Bahia, a fim de tentarem trazer para
São Paulo o corpo da terrorista, que se suicidou em Salvador no dia 6 de agôsto,
quando o apartamento onde estava foi cercado pela polícia. A família de Iara soube
de sua morte sábado passado, através do noticiário de televisão. Seus pais não a viam
desde 1969, quando ela entrou para a clandestinidade. Iara foi condenada na 2 a

45
Auditoria Militar, à 15 meses de prisão, num processo contra membros da VAR-
Palmares.

Pais de Iara Iavelberg vão à Bahia. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 22 set. 1971, 1° caderno, p. 14.

No dia seguinte, 23 de setembro de 1971, é publicada a notícia “Iara baixa à sepultura


em S. Paulo”, localizada na coluna central da página 7 do 1° Caderno do Jornal do Brasil. As
demais notícias também são, em sua maioria, de caráter “policial”. Há duas outras notícias
tratando sobre casos de “subversivos”, na coluna ao lado, no canto direito do jornal.
A terrorista Iara Iavelberg, cujo corpo foi removido de Salvador para São
Paulo, foi sepultada ontem dentro da máxima discrição, no cemitério israelita do
Butantã, na presença de alguns familiares. O caixão lacrado desceu à sepultura 57, da
quadra 26, às 17h30m.
A purificação da alma, que consiste na lavagem do corpo e a colocação de uma
roupa branca, ritual tradicional no sepultamento de judeus, não foi realizado no caso
de Iara Iavelberg, limitando-se a família a no máximo colocar a camisola branca sôbre
o caixão lacrado. O corpo da jovem terrorista chegou a São Paulo, num Caravelle da
Cruzeiro do Sul, às 16h10m. Policiais do DOPS e da Polícia Federal mantiveram a
imprensa afastada.
46
Curioso observar que a notícia trata da cerimônia de enterro de Iara, já que,
possivelmente, Dines tenha participado. Ele relata em seu conto: “dela falaram muito pouco,
quase nada. Antes assim: menos gente no enterro, menos explicações, menos lágrimas até”
(DINES, 1972, p. 89). Outra vez Lamarca não é citado em momento algum e a matéria trata
exclusivamente de Iara, discorrendo sobre os rituais funerários judaicos – assunto
provavelmente caro a Dines, já que ele próprio era judeu. Mantém-se, porém, a classificação de
terrorista.

Iara baixa à sepultura em S. Paulo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 23 set. 1971, 1° Caderno, p. 7.

Somente em 1980, por ocasião dos 10 anos da morte de Carlos Lamarca, o OESP realiza
uma série de matérias especiais, intitulada “Assim morre Lamarca” e Iara Iavelberg é citada
novamente. Na primeira edição, em 15 de setembro de 1981, há um pequeno texto chamada na
capa, mas o texto principal ocupa toda a página 12, com o título principal “Morre Lamarca, é o
terror perto do fim”.

47
Morre Lamarca, é o terror perto do fim. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 15 set. 1981, p. 12.

A série de reportagens é de autoria de Ayrton Baffa, jornalista do OESP e da Agência


Estado44. Na parte superior da página há um texto introdutório, com o resumo da vida de Carlos
Lamarca, com três quadros pretos com algumas informações em destaque – a frase destaque do
segundo quadro é “um líder controlado pela amante”. O texto também fala de Iavelberg:
Como um burguês qualquer, apaixonou-se pela terrorista Iara Yavelberg, com quem
iniciou um romance em São Paulo. (...) A solidão, a amarga distância de Iara
Yavelberg – de quem se tornara dependente, emocional e politicamente –, fazia-o cair
em crises depressivas, que Lamarca procurava enfrentar escrevendo cartas e cartas –
apaixonadas e trágicas, – à companheira que vivia num “aparelho” no centro de
Salvador, a 700 quilômetros de sua base guerrilheira no sertão.
O jornalista faz questão de frisar que Lamarca, um revolucionário que prezava pela
implantação de um regime comunista no Brasil, cedeu à paixão, uma coisa tão “burguesa”. A
narrativa apresenta Iara mais como um objeto, uma extensão de Lamarca, do que um sujeito
dotado de história. Por isso, mesmo no tópico que, de acordo com o título, se propõe a discutir

44
Trabalhou 10 anos no OESP, como repórter da sucursal do RJ. Recebeu, em 1989, o Prêmio Vladimir Herzog
de Anistia e Direitos Humanos pela reportagem “Os arquivos secretos do SNI”.
48
aspectos de sua vida, o assunto mais tratado é, mais uma vez, Carlos Lamarca. Em uma matéria
com 16 parágrafos, apenas os trechos a seguir se referem diretamente à Iavelberg:
Iara, amante e condutora
Outros pesquisadores da atuação do ex-capitão asseguram que ele sofreu grande
influência da sensual Iara Yavelberg – a quem Lamarca conheceu, em abril de 1969,
em São Paulo, quando a psicóloga ainda era casada com um médico e já militava na
Polos (sic) (Política Operária). Lamarca apaixonou-se por Iara. (...)
Iara Yavelberg era uma mulher muito bonita, insinuante, “alta, olhos claros, um
sorriso aberto, via-se que cuidava bem do corpo, tinha vaidade – muito diferente das
outras militantes da organização”, disseram dois jornalistas que escreveram o livro “O
capitão da guerrilha”.
- Iara não se enquadrava exatamente no que chamavam de “moral proletária” – diz o
livro. Sexualmente continuava independente, não pedia licença a ninguém para amar.
Dentro da VPR era uma mulher “comentada”, vaidosa e transeira, segundo os
ortodoxos padrões morais predominantes. Foi o primeiro e único amor de Lamarca,
depois de Maria. Também Iara se amarrou, desapareceram as transas.
A descrição de Iara Iavelberg é feita primordialmente com enfoque sexual. Os aspectos
ressaltados são apenas os físicos, com uma hipersexualização da militante: “sensual”, “muito
bonita”, “insinuante”, “alta, olhos claros, um sorriso aberto, via-se que cuidava bem do corpo,
tinha vaidade”. A dita liberdade sexual não é apresentada como um avanço para o direito das
mulheres, mas sim de maneira pejorativa. O uso da palavra “transeira” reforça essa ideia. A
foto de Iavelberg publicada junto com a matéria é feita para ilustrar esse aspecto de militante
desejável, fisicamente palatável. Os outros parágrafos deste subtítulo trazem trechos das cartas
escritas por Lamarca para a guerrilheira – nunca entregues – e focam nas passagens em que ele
menciona assuntos relacionados a sexo ou sexualidade.
No dia seguinte, 16 de setembro de 1981, a reportagem especial continua, sob o título
“A morte de Lamarca em pleno sertão”, ocupando mais uma vez uma página inteira (p. 9), com
fotografia do cadáver de Lamarca e seu companheiro Zequinha, e uma entrevista com o coronel
Nilton Cerqueira, responsável pela operação que matou o guerrilheiro. A menção à Iara é breve,
porém significativa para a percepção da imagem da militante construída pela mídia:
Na véspera, sexta-feira, 20 de agosto, ocorria em Salvador, outro fato considerado da
maior importância pelos órgãos de inteligência: na Praia da Pituba, era estourado um
aparelho na rua Minas Gerais, 125, onde foram efetuadas algumas prisões de
militantes do MR-8. A polícia já ia embora, quando um morador correu para avisar
que uma moça havia pulado para um apartamento vizinho, escondendo-se no
banheiro. Foram lançadas bombas de gás lacrimogênio e a mulher, acuada, resolveu
dar um tiro no peito e entregar-se.
49
A morte de Lamarca em pleno sertão. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 16 set. 1981, p. 9.

Até aquele momento, a polícia não sabia de quem se tratava e sua identificação
datiloscópica foi feita fora de Salvador, em São Paulo (sua origem), registrando-se
alguns problemas. Os exames cadavéricos feitos na Bahia indicaram tratar-se de uma
virgem, mas as dúvidas foram desfeitas pelos legistas e com o reconhecimento feito
pelos seus pais, no necrotério de Salvador. Aquela mulher era Iara Yavelberg,
inspiradora da luta política de Lamarca.
Tratar Iara como “inspiradora” da luta política de Lamarca, novamente, a coloca em
posição de passividade: ela apenas teria inspirado a luta do “grande líder” e não efetivamente
participado dela. Não obstante a veracidade do fato, o jornalista fez questão de mencionar o
“erro” cometido pelos médicos-legistas ao identificarem que o corpo analisado seria de uma
“virgem”. Ao constatarem que seria Iara Iavelberg, a notícia deixa implícito que essa
característica fora descartada, uma vez que era óbvio que ela já tinha tido relações sexuais. Essa
questão é frisada novamente, e dessa vez explicitamente, na matéria seguinte do especial, datada
de 17 de setembro de 1981, “Começa o cerco ao guerrilheiro”. É a continuação da entrevista do
coronel Nilton Cerqueira:

50
(...) Após a necropsia verificamos a sua identidade: Iara Yavelberg participante de
organizações terroristas e conhecida como amante do ex-capitão Carlos Lamarca.
Essa identificação inclusive trouxe contestação local, porque, na época, o médico
legista da Bahia declarou ao nosso comandante, general Argus Lima, que o cadáver
era de uma virgem e, portanto, não poderia ser a amante de um terrorista. É bom
esclarecer que, depois, o médico legista disse que a mulher era possuidora de hímen
complacente45.

Começa o grande cerco ao guerrilheiro. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 17 set. 1981, p. 16.

Dessa maneira, de 14 notícias que mencionam seu nome, somente 3 não possuem
Lamarca como assunto principal. E mesmo essas últimas não são matérias de muito destaque
ou com muitos detalhes sobre a militante, são apenas notas, atraindo pouca ou quase nenhuma
atenção do leitor. De qualquer forma, é possível estabelecer uma imagem construída de maneira
comum por ambos os periódicos e repassada para o leitor da época sobre Iara: uma mulher

45
“Hímen Complacente é elástico e não se rompe com a relação sexual. Não é uma situação muito comum, mas
existe. Normalmente a ruptura do hímen, nesse caso, só acontece durante o parto normal, pois a pressão é maior
que a penetração”. Fonte: <www.saudenoclique.com.br/himen-complacente/>. Acesso em 20 jul. 2016.
51
duplamente imoral, por estar envolvida com o “terror” e com muitos homens, entre eles o maior
inimigo e traidor da pátria, Carlos Lamarca.

52
4 Considerações finais

Através de diversos meios, o objetivo do regime ditatorial era eliminar e deslegitimar


qualquer tipo de oposição. Portanto, as pessoas – homens e mulheres – que participavam de
organizações políticas clandestinas eram alvos certos dessa política. O modo como são
caracterizados os militantes de esquerda em alguns veículos de imprensa e pelos próprios
órgãos de repressão, sob um discurso de “legalidade”, a censura, as prisões, torturas,
desaparecimentos e mortes são provas cabais disso.
Porém, conforme aponta a historiadora Ana Maria Colling, há uma diferença crucial
entre o “crime” cometido por ambos: o homem transgredia ao questionar politicamente o
governo vigente, ousar negar sua legitimidade; a mulher, por sua vez, tinha um comportamento
duplamente desviante: “o de lutar juntamente com os homens e o de ousar sair do espaço
privado, a ela destinado historicamente, adentrando no espaço público, político e masculino”
(COLLING, 1997, p. 80). Numa sociedade patriarcal, pautada pelos valores cristãos e pela
constituição da família tradicional, o comunismo é grande inimigo, e, mais do que isso, o
abandono, em nome dele, do posto “naturalmente” destinado à mulher – o de mãe, esposa,
dona-de-casa e filha dedicada – consiste numa ruptura condenada moralmente.
Julia Insuela, que em sua dissertação de mestrado analisa as fichas relativas às militantes
do fundo de Polícias Políticas do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, observa que as
mulheres são descritas primordialmente como amantes de militantes homens e pelos seus
atributos físicos. Afirma que “suas qualidades intelectuais não apareciam nas fichas, haja vista
que a intenção delas não era notar os aspectos positivos e predicados das militantes e sim
enfatizar o lado desviante, cujo objetivo era o desprezo para com elas” (INSUELA, 2011, p.
61). Esse é o mesmo discurso constatado na imprensa por esta pesquisa. Apesar de existir a
diferença entre o público – os órgãos de repressão – e o privado – a imprensa –, ambos buscam
um objetivo comum: desmantelar a ala armada da oposição. Insuela afirma que
Os órgãos de repressão e a grande imprensa buscavam legitimar a violência do Estado
– e obter a adesão – na medida em que as esquerdas usavam de violência para alcançar
seus objetivos. As ações armadas uma vez trabalhadas pela imprensa, como por
exemplo através da ideia de terrorismo, repercutiram negativamente na sociedade
brasileira, posto que estava longe de se identificar com a revolução, muito menos a
revolução violenta armada (INSUELA, 2011, pp. 98-99).
Trata-se da ideia, apresentada anteriormente, de criar um distanciamento entre o público leitor
e o outro – o guerrilheiro, violento, comunista.

53
Observamos, contudo, uma diferença no caso da Iara. Tudo que Colling e Insuela
comentam aparece na representação dela, com os desvios de serem úteis suas capacidades
intelectuais e carismáticas – a conselheira, “professora”, a “psicóloga”, a “condutora”, a
“inspiradora” – que derrubou um capitão do exército. É outra linha de ataque que lembra a
história de Eva e Adão e a perda do paraíso. Isso tudo no contexto, levantado diversas vezes,
de ser judia.
Ainda assim, o principal meio de invalidar a militância feminina foi por intermédio de
sua caracterização indecorosa. Observa-se então a construção de um estereótipo: a “puta
comunista”, como define Colling, pois, para adentrar uma esfera exclusivamente ocupada por
pessoas do sexo masculino, elas só poderiam ser influenciadas ou estarem à procura de homens.
No caso de Iara Iavelberg, o ponto em comum da maioria das notícias analisadas é a
caracterização predominante enquanto amante, principalmente de Carlos Lamarca. Essa palavra
aparece nove vezes no total nas notícias analisadas (e em determinado momento é utilizada a
palavra companheira, mas com o mesmo sentido). Esse foi, em muitos dos casos, o único termo
utilizado para descrever quem era Iara Iavelberg, sempre em contraponto com o fim de seu
casamento, o desquite. É possível fazer a relação com o momento em que Iara deixa seu posto
natural para assumir uma posição ilegítima: deixa de ser filha e esposa, uma “boa mulher”, para
se tornar “terrorista” e amante de traidor; troca a legalidade da vida do espaço privado pela
clandestinidade da participação na política. Relações anteriores também são citadas, se não
diretamente, ao menos implicitamente, criando a figura de uma mulher extremamente
sexualizada.
Colling aponta duas premissas utilizadas na tentativa de desmoralizar as militantes: a
ideia de que “as mulheres estariam buscando homens e a de mulher-macho” (COLLING, 1997,
p. 84). Como Iara correspondia ao padrão de beleza da época e era “vaidosa”, não se enquadrava
muito bem na noção de “mulher-macho”, apesar de ser narrada também sua presença no campo
de treinamento militar em Registro, de ser a única capaz de escapar do cerco em Salvador, onde
teve a coragem, também, de, supostamente, se matar. Ela era descrita como muito bonita e
“transeira”, o que a transformava quase em um objeto sexual usado por Lamarca
principalmente, em oposição à estabilidade familiar de sua esposa – esta estava em Cuba,
cuidando de seus filhos – exercendo o papel de mulher por excelência – enquanto aquela estava
presente durante um período para satisfazer seus desejos imorais. Insuela aponta que o “apelo
sexual” implicado às mulheres militantes está diretamente relacionado com a concepção de
gênero daqueles que produziam os documentos (INSUELA, 2011, p. 81): como já observado

54
anteriormente, as redações dos jornais eram compostas exclusivamente por homens,
disseminando inevitavelmente noções influenciadas por machismo dominante.
O próprio surgimento da guerrilheira na imprensa está diretamente ligado ao início de
seu relacionamento com Lamarca. Há apenas uma notícia em que Iara é mencionada antes de
se tornar “a amante” e, mesmo assim, é apenas em decorrência de uma prisão. Sua militância
não possui relevância alguma para que mereça um espaço nas páginas dos jornais. Bem como
sua beleza, suas competências intelectuais – formação política, teórica – são utilizadas para
deslegitimar e inferiorizar as atitudes do capitão: o fato de Iavelberg ter participado ativamente
da formação teórica do ex-capitão não é exposto como um mérito dela, mas sim como uma
deficiência dele. Lamarca é sempre o protagonista, sendo Iara um mero acessório usado para
desprestigiá-lo ainda mais com o público leitor.
O jornal impresso era – e ainda é – um dos principais meios de informação da população
em geral. Portanto, tudo o que é publicado é significativo e passa para o leitor um caráter de
verdade absoluta. Há a ideia de que o que consta no jornal é tudo de mais importante que
aconteceu no dia, qualquer coisa que não esteja lá não é relevante. Porém, é preciso cautela ao
tomar essas informações como as únicas possíveis. Em concordância com o que já foi discutido
anteriormente, Julia Insuela afirma que “percebem-se determinados posicionamentos dos
periódicos em relação à ditadura brasileira e às mulheres militantes. Como podemos observar,
não possuíam discursos imparciais, influenciando na forma como as informações eram
transmitidas” (INSUELA, 2011, p. 73).
Enxergar o discurso jornalístico como ideológico e partidário de um posicionamento
político, permitiu notar que as mulheres não eram tratadas como sujeitos despolitizados e
submetidas a atuação de homens à toa. Há uma intencionalidade nesta narrativa e desconstruí-
la é fundamental para que as mulheres sejam ativas nos processos históricos dos quais
participam. A contextualização do período em que as notícias são publicadas é fundamental
para compreender a narrativa empregada: no período ditatorial, vimos que o discurso se alinha
com o da repressão e atende às demandas da sociedade conservadora; no período democrático,
após a ressignificação da memória da ditadura como um período obscuro, os “anos de chumbo”,
Iara é retratada como militante, heroína e não mais terrorista. As maiores rupturas consistem no
modo de se representar seu engajamento, que agora é visto como ativismo político de fato, e
não mais como crime, subversão da ordem. Há continuidades, no entanto, no destaque dado ao
relacionamento com Lamarca, sempre mencionado, mesmo que de forma mais branda, não
necessariamente imoral.

55
Referências

Fontes

Filme

EM busca de Iara. Direção: Flávio Frederico. Roteirista: Mariana Pamplona. São Paulo:
Produtora Kinoscópio, 2014. Disponível em plataforma digital (90 min), son., colorido.

Imprensa – em ordem cronológica


Paulistas protestarão contra novas prisões. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 02 jul. 1968, 1°
Caderno, p. 7.

Motorista de Lamarca confessa que ganhava sem limites na subversão. Jornal do Brasil, Rio
de Janeiro, 12 nov. 1970, 1° Caderno, Seção Subversão, p. 16.

Ficha de Iara. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29 mai. 1971, 1° Caderno, p. 14.

Garoto [sic] revela participação em assaltos e missões do terrorismo junto com o pai. Jornal
do Brasil, Rio de Janeiro, 09 set. 1971, 1° caderno, Seção Nacional, p. 17.

Cai Lamarca no sertão baiano. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 19 set. 1971, capa.

Lamarca morre em choque no interior da Bahia. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 19 set. 1971,
capa.

Família quer levar corpo de Iara. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 21 set. 1971, p. 16.

Órgãos de segurança condenam o sensacionalismo. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 21 set.


1971, p. 11.

Politicamente, Iara dominava. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 21 de set. 1971, p. 12.

Pais de Iara Iavelberg vão à Bahia. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 22 set. 1971, 1° caderno,
p. 14.

Iara baixa à sepultura em S. Paulo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 23 set. 1971, 1° Caderno,
p. 7.

Morre Lamarca, é o terror perto do fim. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 15 set. 1981, p. 12.

A morte de Lamarca em pleno sertão. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 16 set. 1981, p. 9.

Começa o grande cerco ao guerrilheiro. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 17 set. 1981, p. 16.

56
Bibliografia

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58
Anexos

Anexo 1

Iara à semelhança de Olga. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 abril 1992, Caderno B, p. 1.

59
Anexo 2

FARIA, Ana Elisa. A ditadura escancarada. Revista São Paulo, São Paulo, 30 mar. 2014.
Cinema, p. 76.

60
Anexo 3

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