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João Luiz Vieira


Doutor em Estudos Cinematográficos pela
New York University. Crítico, pesquisador e professor do
Departamento de Cinema e Vídeo e do programa de pós-graduação em
Comunicação, Imagem e Informação da Universidade Federal Fluminense.

O Corpo Popular,
a Chanchada Revisitada, ou a
Comédia Carioca por Excelência

D
écada de 50, lá por ou pegava um ônibus, lotação
volta de 1956. A tele- ou bonde e, em dez, quinze mi-
visão ainda não toma- nutos no máximo, estava “num
va conta dos lares brasileiros e o cinema cinema perto de você”. O meu encontro
reinava quase absoluto (não podemos semanal com a fruição das imagens e
esquecer do poder do rádio) como diver- sons em movimento acontecia, provavel-
são e arte para um público imenso espa- mente como com todo mundo, no cine-
lhado pelos centros urbanos e pelo inte- ma de bairro – o meu Cine Irajá, ou aque-
rior do país. Uma época em que só exis- les que se situavam nas vizinhanças ao
tia o que hoje é chamado de “cinema de longo da Leopoldina: os cines Mello-Penha
rua” – termo que prefiro substituir por e Mello-Bonsucesso, o São Pedro, o Pa-
“cinema” apenas, em contraste com os lácio-Higienópolis, o Rosário e o Mauá,
“cinemas de shopping”, que pipocam nos em Ramos, o gigantesco Rio-Palace e o
multiplexes mundo afora. Tanto no cen- Paraíso, também em Bonsucesso, ou, na
tro das cidades quanto nas periferias linha da Central, os cinemas de Madu-
suburbanas, a ida ao cinema era um pro- reira, como o velho Alfa ou o luxuoso
grama obrigatório, barato e, por isso Coliseu. Ainda titubeando na leitura, a
mesmo, democrático. Pelos subúrbios do ida ao cinema ganhava emoção especial
Rio de Janeiro, ou você ia a pé, de casa, quando não era preciso correr os olhos

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para seguir as legendas que passavam


rápidas nos filmes americanos. Levados
por nossa mãe, eu e meu irmão aguar-
dávamos com certa ansiedade e nervo-
sismo as confusões que brotavam das cor-
rerias e brigas entre os bandidos inter-
pretados por José Lewgoy, Renato Restier
ou Wilson Grey. O riso sincero rompia
das falas, do jeito de caminhar, das caras
e trejeitos de Oscarito, Grande Otelo,
Zezé Macedo, Violeta Ferraz, Zé Trindade,
enquanto uma emoção diferente e a be-
leza vinham sempre dos rostos de Eliana,
Anselmo Duarte, Fada Santoro, Cyll Farney,
John Herbert. As filas para esses filmes
eram imensas e, como o cinema era “de
rua”, literalmente dobravam quarteirões,
A heroína ou mocinha encontrou sua melhor
com famílias inteiras lotando cada espa- personificação no corpo de Eliana. Aviso aos
navegantes, de Watson Macedo, 1950.
ço possível das salas de exibição. Cine- Atlântida Cinematográfica. Cinemateca do
mas grandes, espaçosos, nem sempre MAM-RJ.

confortáveis, mas sempre maravilhosos Diante de um mercado cinematográfico


para nós. Uma dessas comédias mistu- completamente dominado pela produção
rava tudo isso com o faroeste america- estrangeira de origem norte-americana,
no, gênero já descoberto e apreciado por o desenvolvimento do gênero de comé-
mim e meu irmão em nossas idas sema- dia que ficou conhecido como chanchada
nais ao cinema de bairro. O filme cha- – termo pejorativo utilizado por vários
mava-se Matar ou correr e, nada inco- críticos de cinema e que possui origem
mum naquela época, chegou até a inau- etimológica no italiano cianciata , signifi-
gurar, em novembro de 1954, um cine- cando um discurso sem sentido, uma espé-
ma perto de casa, o Leopoldina. Paródia cie de arremedo vulgar, argumento falso –
de um filme americano clássico, o auste- vincula-se diretamente ao advento do ci-
ro drama Matar ou morrer ( High Noon , nema sonoro, vez que a música popular,
de Fred Zinneman, 1952), Matar ou cor- em grande parte de natureza carnavales-
rer era apenas uma das formas que ca- ca, é uma característica essencial desse
racterizaram esse cinema brasileiro ver- conjunto de filmes, talvez seu traço ge-
dadeiramente popular que formou gera- nérico mais forte. 1 Um filme de 1908,
ções de espectadores ao longo das déca- Nhô Anastácio chegou de viagem, de Júlio
das de 1930, 1940 e 1950. Ferrez, traz uma matriz de comédia po-

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pular que desemboca, mais tarde, na época do cinema brasileiro, com mais de
chanchada. Seu ator principal, o cantor novecentas apresentações apenas em
e acrobata José Gonçalves Leonardo, faz alguns cinemas do Rio de Janeiro. 4 En-
um caipira que visita o Rio e, entre os tre outras personalidades influentes e
monumentos e prédios famosos da cida- conhecidas da época, o próprio presiden-
de, apaixona-se por uma cantora. Com a te Nilo Peçanha surge no filme travestido
inesperada chegada de sua esposa, ins- de um rei imaginário cujo nome Olin I é
talam-se os qüiproquós envolvendo se- um anagrama. A crítica da época exaltou
qüências cômicas de perseguição que essa produção afirmando que o filme inau-
terminam num final feliz. Tal narrativa já gurava no cinema o gênero “revista”, an-
era bastante conhecida do público, numa teriormente limitado ao teatro. O Careta ,
tradição que remontava aos primeiros por exemplo, o considerou marco inau-
anos do cinema. 2
Nesse filme, tanto o gural de um gênero que misturava músi-
personagem quanto seu ator já antecipa- ca e dança a personagens cômicos tira-
vam duas encarnações futuras no desen- dos de situações familiares do cotidiano.5
volvimento da chanchada. Temporalmen-
te mais próximo estava Genésio Arruda Temas ligados ao carnaval também apa-
na década de 1930 e, mais à frente, nas recem cedo no cinema brasileiro. Há re-
décadas de 1950 e 1960, Mazzaropi, gistros documentais do carnaval a partir
espécie de desdobramento paulista de de 1908 e séries cantantes intituladas O
alguns conteúdos e formas típicas da carnaval cantado a partir de 1919. Mais
chanchada. Além de Nhô Anastácio , ou- que uma forte presença cultural, o dis-
tra produção desse período, Paz e amor curso carnavalesco informa, define, es-
(1910), de Alberto Botelho, deve seu trutura e nomeia chanchadas no período
sucesso, em boa parte, à sua canção-tí- sonoro em exemplos diversos, como Alô
tulo, antecipando também o lado musi- alô carnaval (de Ademar Gonzaga, 1936),
cal, paródico e carnavalesco da chancha- Carnaval no fogo (de Watson Macedo,
da, nos parecendo mais influente no que 1949), Carnaval Atlântida (de José Carlos
diz respeito ao tom e à definição de algu- Burle, 1952), Carnaval em Caxias (de
mas características posteriores do gêne- Paulo Wanderley, 1953), Carnaval em lá
ro. Esse filme-cantante apresentava uma maior (de Ademar Gonzaga, 1955), Car-
crítica aos políticos nacionais e aos cos- naval em Marte (de Watson Macedo,
tumes sociais do Rio de Janeiro. A co-
3
1954), Depois do carnaval (de Wilson
média, repleta de trocadilhos, referências Silva, 1959), chegando até o Cinema
diretas a instituições como os Correios, a Novo com Quando o carnaval chegar (de
Igreja e a Presidência da República – na Carlos Diegues, 1972). No período sono-
época, ocupada por Nilo Peçanha – foi um ro, traços inaugurais da chanchada po-
dos maiores sucessos da chamada Bela dem ser vistos naquele que é considera-

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do o primeiro filme falado brasileiro, estar bem próximo de um palco de tea-


Acabaram-se os otários (1929), de Luís tro de revista. De certa maneira, nos anos
de Barros. O cartaz desse filme não dei- seguintes, a chanchada desenvolveu-se
xa dúvidas ao indicar a fórmula básica em conseqüência do sucesso do rádio, no
do gênero emergente, prometendo uma auge da Rádio Nacional, dos programas
sucessão de “canções, modinhas, piadas de auditório, das novelas, da Revista do
e trocadilhos”. Rádio. Ela trouxe o rádio até o cinema,
reproduzindo, numa primeira fase, uma
Numa primeira fase, que compreende a estética consagrada em programas de
década de 1930 e vai até meados dos auditório ao colocar o espectador, numa
anos de 1940 – tipificada pela produção posição privilegiada e mais democrática
da Cinédia ou da Sonofilmes –, esse gê- – na medida em que chegava aos subúr-
nero de comédia musical desenvolveu bios e ao interior do país –, no “auditó-
roteiros esquemáticos e elementares com rio”, onde seus cantores prediletos esta-
esquetes e piadas do teatro de revista, vam mais próximos, com o mesmo mi-
do circo e do rádio alternados por núme- crofone, as familiares cortinas, apresen-
ros musicais mais ou menos autônomos. tadores e orquestras que compunham os
A impressão geral era a de que, de olhos elencos exclusivos de rádios como a Na-
fechados, o espectador poderia perfeita- cional ou a Tupi do Rio de Janeiro. Mais
mente estar sentado à frente de um rá- tarde, esse cenário do rádio dá lugar ao
dio. De olhos abertos, diante da tela de espaço da boîte como o locus diegético
cinema, a sensação era semelhante, a de que permitirá uma naturalização narrativa

Grande Otelo, Oscarito e Cyll Farney em Os três vagabundos, de José Carlos Burle, 1952. Foto de still
do acervo da Atlântida Cinematográfica. Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

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das músicas inseridas nos filmes. Mas a diversos números musicais. Duas das
relação espectatorial não sofrerá insta- maiores bilheterias da década de 1930
bilidades, até porque o cenário da boîte repetem o esquema geral apresentado
já posicionava, narrativamente, uma pla- em Coisas nossas . Produzidos pela Ciné-
téia dentro do filme, em consonância com dia, tanto Alô alô Brasil (de Wallace Dow-
a platéia do lado de cá, na sala de cinema. ney, João de Barro e Alberto Ribeiro,
Dessa forma, a chanchada – e o gênero 1935) quanto o seguinte Alô alô carnaval
musical, em sua maioria – potencializava referem-se diretamente ao rádio no títu-
os dois tipos de identificação, primária e lo dos filmes e, mais importante, no elen-
secundária, entre o espectador e o uni- co, composto pelas principais estrelas
verso narrativo do filme. Primeiramente radiofônicas da época, incluindo Aurora
materializando na projeção fílmica a e Carmem Miranda, Francisco Alves, La-
identificação que o espectador tem com martine Babo, Almirante, Mário Reis, Dir-
o próprio olhar da câmera, ao lhe pro- cinha Batista, o Bando da Lua, entre
porcionar uma visão totalitária e trans- muitos outros. Numa segunda fase, mar-
parente do que está sendo encenado em cada pela consolidação da Atlântida Ci-
sua frente. Simultaneamente, dispara-se nematográfica, as narrativas tornam-se
a identificação secundária, ou seja, aque- mais complexas, com a introdução de
la que o espectador tem com uma deter- novas situações dramáticas, tipos e per-
minada personagem na narrativa, seja sonagens, que acabaram por liberar as
ela uma cantora ou um ator, e que res- narrativas dos limites de uma encenação
ponde pelo seu coeficiente afetivo, o grau marcadamente teatral e/ou radiofônica.
de simpatia (ou rejeição) do espectador
em relação a essa personagem, situação, No início dos anos de 1940, apesar de
momento narrativo. 6
intenções e projetos de natureza mais
séria, a Atlântida fará da chanchada,
O filme Coisas nossas (1931), dirigido por durante duas décadas ininterruptas
Wallace Downey, um norte-americano (1942-1962), uma espécie de marca
então vivendo no Brasil a serviço da identitária da empresa. Os títulos da se-
Columbia Records, dá o tom da primeira gunda e terceira produções da empresa
fase da chanchada, seguindo, de perto, o não deixam quaisquer dúvidas quanto ao
modelo dos musicais transmitidos pelas seu futuro: É proibido sonhar (de Moacyr
rádios americanas do período e também Fenelon, 1943) e Tristezas não pagam
pelo filme musical de Hollywood. Sua dívidas (de José Carlos Burle e Ruy Costa,
estrutura também é simples, ao interromper 1944), este alardeado como “o filme car-
o prosseguimento de uma tênue trama, navalesco de 1944” que, além de intro-
em geral ambientada em bastidores do duzir as principais canções que fariam
teatro ou do rádio, pela justaposição de sucesso no carnaval daquele ano, colo-

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cava, lado a lado, Grande Otelo e Osca- te filme que encontramos a célebre se-
rito. Seu título, ironicamente, acaba sen- qüência em que a dupla Otelo-Oscarito
do emblemático dos destinos da empre- traveste-se no par romântico shakespea-
sa, ao redirecionar as tais intenções mais riano Romeu e Julieta, momento emble-
ambiciosas de produção de filmes dra- mático da chanchada em sua vertente pa-
máticos, socialmente engajados, para ródica, muitas e muitas vezes utilizado
comédias musicais carnavalescas. O fil- como ilustração em documentários retros-
me seguinte da Atlântida, Não adianta pectivos sobre o cinema brasileiro, des-
chorar (de Watson Macedo, 1945), refor- de a antologia Assim era a Atlântida (de
ça essas intenções não apenas em seu Carlos Manga, 1975), aos mais recentes
título, como na repetição da dupla Otelo Retratos brasileiros e especiais produzi-
e Oscarito encabeçando o elenco e mar- dos para o Canal Brasil. A permanente
cando, também, a estréia na direção de surpresa dessa seqüência continua a sus-
Watson Macedo, realizador que dará a citar releituras contemporâneas que res-
forma final da chanchada nos anos se- saltam seu caráter ambíguo e multicultu-
guintes. Seu filme de 1949, Carnaval no ral. Otelo, nas tranças louras de Julieta,
fogo , aperfeiçoa o elenco, tipifica atores “foi o mais transgressivo deslocamento
e personagens, introduz novos elemen- cômico de Carnaval no fogo: representou
tos narrativos de outros gêneros como o outros casais possíveis através da mítica
policial e o suspense, mesclados ao ro- metáfora de Romeu e Julieta como a com-
mance sentimental. Em meio a inúmeras binação perfeita que operava um deslo-
piadas típicas do rádio e do teatro de camento nas relações de etnia e gênero”.7
revista, junto com a paródia, Macedo te-
cia uma trama de tons folhetinescos e Com sua constelação típica de persona-
diálogos radiofônicos, recheada de ro- gens, Carnaval no fogo introduziu na chan-
mance, perseguições, troca de identida- chada as primeiras estrelas genuinamen-
des, pastelão, briga e confusão. Mas o te cinematográficas no Brasil, em contra-
sucesso desse clássico instantâneo devia- ponto às estrelas do rádio da primeira
se também ao ritmo ágil de sua monta- fase. Com isso, a chanchada foi bem-su-
gem, à qualidade de seu acabamento fo- cedida ao reproduzir aqui o esquema com-
tográfico sob a responsabilidade de Ed- petente do estrelismo ( star-system ) de
gar Brasil e, sobretudo, ao elenco, no qual Hollywood, consagrando uma plêiade de
se distinguiam Oscarito e Grande Otelo, novos atores e atrizes. Possibilitando tam-
o par romântico Eliana e Anselmo Duar- bém a formação de realizadores que dei-
te, além dos malfeitores, com destaque xaram suas marcas e contribuições, como
absoluto para o vilão interpretado por um Carlos Manga, que, no início da década
estreante José Lewgoy, num tipo que o de 1950, se iniciava na literal carpintaria
imortalizaria no cinema brasileiro. É nes- proporcionada pela formação técnica do

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estúdio, como um dos assistentes de José como Eliana, Anselmo Duarte, Lewgoy,
Carlos Burle em Carnaval Atlântida . Restier, Cyll Farney ou John Herbert, uma
vez que a maioria dos outros astros fa-
A importância desse filme deve ser salien-
mosos da chanchada era proveniente do
tada exatamente por haver instaurado o
teatro, do circo, como Oscarito, ou en-
triângulo “galã-mocinha-vilão” associado a
tão do rádio, origem da quase totalidade
atores que formariam o núcleo central da
dos cantores e cantoras.
maioria das chanchadas posteriores,
numa relação de redundância necessária Fora da Atlântida, porém com algumas
a um esquema de produção contínuo, passagens marcantes por lá, deparamos
visando ao maior lucro possível, obje- com os tipos que consideramos caricatu-
tivo ao qual a Atlântida havia se lançado rais, na medida em que se trata de re-
a partir de 1947, depois da entrada do presentações em que são arremedados
forte grupo exibidor capitaneado por Luiz comicamente os próprios tipos, como a
Severiano Ribeiro. Tal triângulo criou os “empregada”, na caracterização eter-
primeiros atores exclusivamente cinema- na de Zezé Macedo, ou a “patroa” e/ou
tográficos com os quais o público pôde “sogra”, encontrando possivelmente em
ter uma identificação secundária maior, Violeta Ferraz sua encarnação mais elo-

Oscarito e Grande Otelo em E o mundo se diverte , de Watson Macedo, 1949. Foto de still do acervo
da Atlântida Cinematográfica. Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

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Cyll Farney e Maria Petar em Pintando o sete , de Carlos Manga, 1961. Foto de still do acervo da
Atlântida Cinematográfica. Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

qüente, ou, ainda, o “cafajeste maduro”, o rádio, suportes midiáticos essenciais na


na pele de um Zé Trindade. Todos estes construção e sustentação do estrelismo
atores conseguiram marcar bem, junto cinematográfico brasileiro. É dessa épo-
ao público, esses determinados tipos que ca, por exemplo, o lançamento da revis-
ganharam poucas nuances de filme para ta mensal Cinelândia , que passou a ser
filme e que exatamente pela repetição editada quinzenalmente já a partir de
de suas principais características, busca- seu primeiro ano. A revista foi o veículo
vam a segurança do sucesso já testado. em que o estrelismo nacional da Atlânti-
da encontrou o seu melhor canal, apesar
Na medida em que a redundância pas- da publicação dedicar-se, em sua maior
sou a ser a mola propulsora das chan- parte, à divulgação de matérias ligadas
chadas, é nesta tipificação personagem/ ao cinema norte-americano durante todo
ator que a publicidade dos filmes tam- o período em que circulou, de maio de
bém encontrou os elementos principais 1952 até agosto de 1967. 8
sobre os quais trabalhar. Seja na infor-
mação direta ao espectador, através de O sucesso crescente dos filmes da Atlân-
fotos de cena disponibilizadas na porta tida, agora administrada por Luiz Seve-
dos cinemas, ou então por meio de outros riano Ribeiro, seu maior acionista, as-
veículos informativos como a imprensa e segurou a distribuição e exibição dos fil-

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mes da empresa pelo país afora. Numa espectadores. Essa presença encontrava
situação poucas vezes alcançada pelo ci- eco num enorme público marcadamente
nema brasileiro, os filmes da Atlântida urbano que se reconhecia nos persona-
conseguiram chegar a um público real- gens e temas da chanchada, muitas ve-
mente imenso, habituando os espectado- zes ultrapassando o viés meramente car-
res a ver em nossas telas atores e atri- navalesco. Embora a linguagem do car-
zes com cujos corpos, comportamentos, naval sempre permanecesse como uma
atitudes, expressões e fisionomias con- espécie de substrato estético e ponto de
seguiam se identificar. A fusão rádio e referência culturalmente codificado, as
cinema materializou-se de maneira inse- chanchadas desenvolviam um espectro
parável graças aos nomes já célebres do mais amplo de conteúdos. Tal empatia se
rádio, que possuíam, por sua vez, fãs- apoiava, entre outros elementos, em per-
clubes espalhados por toda a cidade, com sonagens que mantinham traços de uma
filiais também em outros estados, como sociedade que ainda prezava valores de
os de Emilinha Borba, Ângela Maria ou amizade, camaradagem, vizinhança, cos-
Marlene, arrastando multidões aos cine- tumes comunitários típicos do interior ou
mas. Numa época ainda distante da difu- do subúrbio carioca. Exemplos desses
são da televisão como veículo de massa personagens são encontrados nas perso-
no país, o cinema reinava absoluto como nificações de Violeta Ferraz em filmes
a única forma de corporificar as vozes como Minha sogra é da polícia (de Aloísio
famosas do rádio através das imagens Carvalho, 1958), ou no funcionário pú-
das chanchadas. blico encarnado por Oscarito em Esse
milhão é meu (de Carlos Manga, 1959),
Rapidamente o gênero torna-se o produ- ou, ainda, no personagem Aparício, in-
to de maior garantia de bilheteria da terpretado pelo mesmo Oscarito, habitan-
empresa. Produções baratas, filmadas te simplório de uma então distante zona
rapidamente, com equipes e elenco man- rural carioca conforme mostrada em O
tidos a baixos salários, aliados à popula- homem do Sputnik (1959), do mesmo
ridade dos filmes, fizeram das chancha- Manga. O típico herói da grande maioria
das um empreendimento ideal devido ao dos filmes pode ser definido como uma
seu retorno seguro. A exibição ditava, pessoa simples, habitante da capital fe-
dessa forma, a “solução” ideal para o ci- deral ou o recém-chegado matuto do in-
nema brasileiro, celebrando a repetição terior, recuperando certas origens rurais
contínua de um gênero de inquestionável diante de uma realidade urbana repleta
resposta de público que, por isso mes- de entraves burocráticos, corrupção po-
mo, num mercado inundado de filmes lítica e hipocrisia associadas às classes
estrangeiros, garantia a visibilidade do dominantes. Tais personagens geralmen-
produto fílmico brasileiro a seus naturais te reagiam com perplexidade e confusão.

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Através do cinema, a cultura popular bra- Essas caracterizações eram reconhecidas


sileira, diante de processos moderniza- pelo público numa combinação ambígua
dores de industrialização e urbanização, que incorporava algum preconceito – de
expressava um tipo de lamento elegíaco classe, em especial – à exaltação de virtu-
pelo desaparecimento iminente dos tra- des tais como o “jeitinho” e a “esperteza”
ços mais visíveis que caracterizavam um populares, celebrando a então eterna
passado recente, rural e interiorano. A “cidade maravilhosa” numa geografia de
segunda metade dos anos de 1950, como inclusão que misturava o Centro e a Zona
sabemos, foi de concretização de políti- Sul com o subúrbio e a Zona Norte.
cas desenvolvimentistas que deslancha- Apoiada muitas vezes pela música, a afir-
riam, nas décadas seguintes, a consoli- mação da “esperteza” localizava esse
dação de uma cultura do consumo, avan- corpo popular com precisão em números
çando sobre segmentos populares, o sub- como a marchinha “Toureiro de Casca-
proletariado e o campesinato. dura” (de Armando Cavalcanti e David
Nasser), de Aviso aos navegantes . Osca-
O típico herói da chanchada é um perso- rito descasca batatas na cozinha do na-
nagem liminar que geralmente recusa-se vio e descreve um passado imaginário
a ocupar uma posição fixa na hierarquia para seus companheiros. Apesar de suas
social, espécie de instância subversiva, origens espanholas, encontra-se desajei-
corpo popular que parecia reagir à pos- tado nas roupas de um toureiro, trope-
sibilidade de integração à modernidade çando na própria capa e reconhecendo
desenvolvimentista. Muitas vezes desem- sua falsa identidade ao afirmar que “soy
pregado, ou vivendo de pequenos traba- um toureiro avacalhado, soy natural de
lhos subalternos, é trapaceiro, “virador”, Cascadura... se a tourada é marmelada,
“malandro”, preocupado unicamente com o chifre pega, mas não fura”. Essa ver-
seu sustento imediato, transitando por nar- dade exposta pela fantasia será retoma-
rativas que, com poucas exceções, envol- da em diversos momentos pelo discurso
viam sempre uma busca obsessiva por di- carnavalizado da chanchada – seja na
nheiro, em geral ligada mais ao acaso do inadequação das vestimentas gregas en-
que a um esforço especial ou competên- vergadas pelos afro-descendentes Blecau-
cia por parte do herói. Características que te e Grande Otelo no clássico número
podem ser tipificadas na dupla de malan- “Dona Cegonha” (de Armando Cavalcanti
dros interpretada por Grande Otelo e Colé e Klecius Caldas) de Carnaval Atlântida ,
em Carnaval Atlântida (de José Carlos seja num adereço, como a peruca de
Burle, 1952) ou, mais genericamente, em Sansão/Oscarito, portadora real do po-
filmes como O camelô da rua Larga (de der transitório que escapa de mão em
Eurídes Ramos, 1959) ou O batedor de mão na paródia Nem Sansão nem Dalila
carteiras (de Aloísio de Carvalho, 1958). (de Carlos Manga, 1954).9

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É com Watson Macedo que será criado ce do século XIX, no melodrama teatral
pela primeira vez, na Atlântida, o modelo ou no cinema hegemônico de Hollywood,
de par romântico de sucesso, corporifica- o galã parceiro de Eliana confirmaria uma
do no filme por Eliana e Anselmo Duarte. tradição narrativa e iconográfica de bon-
A dupla realizaria três filmes na Atlânti- dade, firmeza de propósitos e caráter, em
da e, mais tarde, já com Macedo inde- oposição maniqueísta ao “vilão”. Nessa
pendente , mais dois. 10
Depois de Ansel- tradição em que, sem nuances, o bem
mo Duarte, Cyll Farney é o galã da vez, sempre prevalecia sobre o mal, tais ca-
participando de vinte e um filmes na pro- racterísticas necessitavam de suportes
dutora, sendo oito ao lado de Eliana. Fi- físicos que materializassem ideais de
nalmente, John Herbert, que, como beleza, pureza de sentimentos, intenções
Duarte, contracena com Eliana na Atlân- positivas, honestidade, segurança, deter-
tida em apenas três filmes e, fora da pro- minação, liderança. Sobre o corpo do
dutora, mas também sob a direção de ator, em especial sobre o rosto, privile-
Macedo, a dupla voltaria a se encontrar giado em planos médios e close-ups, será
em Rio fantasia (1957) e Alegria de vi- efetuado, também, à maneira dos fotó-
ver (1958). Ao lado de Eliana, cada um grafos de Hollywood, todo um trabalho
deles comporia o ideal de par romântico de construção tipificada dos atributos fí-
normativo – jovem, branco, classe mé- sicos de beleza e juventude, com ênfase
dia, urbano – sobre o qual a comédia na maquiagem, iluminação e enquadra-
musical carioca construía projeções e mentos que buscavam a almejada foto-
identificações sentimentais para as pla- genia. 1 1 É um determinado tipo de luz,
téias brasileiras. E, tal como no roman- desenvolvido tecnicamente em conjunto

“O vilão interpretado por José Lewgoy possuía olhos esbugalhados que quase saltavam de seu rosto
longo e magro”. Aviso aos navegantes , 1950. Atlântida Cinematográfica. Cinemateca do MAM-RJ.

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com um suporte fotográfico, por sua vez gunda metade dos anos de 1950. Um
também voltado para o corpo normativo crescente processo de americanização
branco, que acentuará o caráter muito que acontece nos anos 50 pode ser ob-
especial de limpeza , perfeição e vigor fí- servado através da trajetória dos perso-
sico exigido na tipificação do herói. 12
O nagens de Eliana que, no início da déca-
mesmo serve para a heroína, ou melhor, da, ainda estão mais próximos de uma
mocinha , que encontrou sua melhor per- cultura musical brasileira, como em Avi-
sonificação no corpo da atriz Eliana Ma- so aos navegantes , ou, ainda, Carnaval
cedo. Talvez ela tenha sido a atriz que Atlântida e, mais para o final da década,
mais se aproximou do ideal construído já pertencem a grupos mais organizados
pelo cinema clássico de Hollywood, prin- em torno de lambretas e rock, como em
cipalmente em seu período posterior à Alegria de viver . 13
Atlântida, quando seu tio, Watson Mace-
do, realizou uma série de filmes nos Num processo de tipificação com origens
quais ela interpretava personagens que diretas no melodrama do século XIX e tra-
encarnavam, nitidamente, versões mais zendo ecos do projeto de antropologia
simplificadas para o que se entendia por criminal do italiano Cesare Lombroso –
“american way of life”. O gestual, com- que, tal como o francês Alphonse Bertillon,
portamento, atitudes, cabelo, roupas, acreditava que a criminalidade possuía
maquiagem, nos fazem lembrar algumas raízes biológicas e usava a fotografia
vezes de uma Debbie Reynolds carioca – para identificar traços físicos que indicas-
a atriz americana então no auge nos anos sem o criminoso –, o vilão interpretado
50, sobretudo depois do sucesso de Can- por José Lewgoy possuía olhos esbuga-
tando na chuva (1952). Os espaços por lhados que quase saltavam de seu rosto
onde circulavam as personagens de Elia- longo e magro. 1 4 Com corpo também
na eram, em geral, casas luxuosas ou magro, esguio, grandes orelhas, bigode e
apartamentos, dotados de “american” cavanhaque, tudo isso ainda recebia o re-
bar, boates, terraços urbanos que per- forço redundante do figurino, em geral
mitiam a visão noturna de arranha-céus preto, também acentuado por óculos es-
iluminados, como em ...E o espetáculo curos. Essa função do “vilão” nos filmes
continua (de José Cajado Filho, 1958). da Atlântida ainda encontrou outros in-
Sua juventude e vigor físico expressavam térpretes além de Lewgoy, como Renato
a saúde desenvolvida em atividades es- Restier e Wilson Grey, que acrescentaram
portivas, também copiando determinados algumas nuances ao tipo já definido.
traços de comportamento da juventude Restier, de olhar duro, era um produtor
norte-americana cinematográfica , emba- autoritário, pai tirano em Carnaval
lada pelo rock’n’roll , ritmo que vai sur- Atlântida, ou um vigarista de classe, fuman-
gindo aos poucos nas chanchadas da se- do charutos cubanos em Treze cadeiras

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(de Franz Eichhorn, 1957). Grey, sempre magreza de Zezé Macedo. Nesse quadro,
magro, usando bigodinho, era o imediato Oscarito se destacou ao desenvolver um
ideal na comparsaria com o vilão. estilo de performance cheio de malaba-
rismos e trejeitos. Seu corpo é um signi-
Geralmente do lado dos heróis, os tipos
ficante total do riso provocado pela re-
cômicos a estes se relacionam nos tra-
petição e variação no movimento de al-
ços físicos por contraste, acentuando a
gumas ações mínimas e básicas, como
perfeição e a beleza do “galã” e da “mo-
andar ou saltar, muitas vezes também
cinha”. O que vemos em tais tipos, prin-
construído em cima de incongruências de
cipalmente se tomarmos como referên-
idade – como o “bebê” indecente, de fral-
cia o padrão normativo dos heróis, são
dão, interpretando a “Marcha do neném”
as diferenças de tamanho, idade, cor e
(de Armando Cavalcanti e Klecius Caldas)
volume, articuladas sempre num bem
na boate de um transatlântico ancorado
definido esquema de oposições binárias
em Buenos Aires, com destino ao Rio,
que destaca a estatura mediana de Os-
logo no início de Aviso aos navegantes –
carito, a idade avançada de Zé Trindade,
ou no viés da paródia, não só da alta
a negritude afro-brasileira de Grande
cultura – o falso (sic) pintor Picanssô, de
Otelo, a gordura de Violeta Ferraz e a
Pintando o sete (de Carlos Manga, 1960)
– como também da cultura popular, o
Melvis Prestes , de De vento em popa (de
Carlos Manga, 1957). Típico da chancha-
da são as inversões de gênero, e Oscari-
to também se destacou nos exuberantes
travestis de rumbeira – a paródia de Cu-
quita Carballo de Aviso aos navegantes ,
a Helena de Tróia de Carnaval Atlântida
ou, ainda, a sátira da socialite Mme.
Gaby em Dois ladrões (de Carlos Manga,
1960). Os diretores com os quais traba-
lhou deveriam ter hesitado muito ao en-
quadrá-lo, de acordo com as exigências
dos roteiros, em plano americano ou pri-
meiro plano , já que ele era, simultanea-
mente, um cômico do corpo, do gesto,
da expressão facial e também da pala-

Zé Trindade em Treze cadeiras, de Franz vra. 15 É no seu rosto que vamos encon-
Eichhorn, 1957. Foto de still do acervo da trar os traços físicos que nos remetem
Atlântida Cinematográfica. Cinemateca do
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. à máscara do palhaço de circo, cujo sor-

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riso acentua duas grandes curvas natu- Carla em Mulheres à vista (de J.B. Tanko,
rais, formando as linhas da tradicional 1959). Seu rosto não escondia as mar-
boca de palhaço. Em dupla com Otelo, cas da idade nem das espinhas, criando
os dois são responsáveis por vários dos um tipo de feições rudes. O caráter cô-
melhores momentos cômicos do cinema mico de Violeta Ferraz era construído
brasileiro. Otelo, igualmente, era um pelo excesso reiterado nos penteados e
cômico do corpo e da palavra, com seu acessórios como chapéus, laçarotes no
rosto bem marcado por grandes olhos, o cabelo, brincos, lenços amarrados e flo-
sorriso largo e de um branco acentuado, res exageradamente grandes na lapela.
em contraste com a negritude de sua Zezé Macedo tinha sua magreza ainda
pele, os lábios grossos que sempre amea- mais realçada por um figurino escuro e
çavam um beijo, efeito cômico sustenta- uniformes de empregada em linhas ver-
do por uma improvável promessa de mis- ticais. Seus grandes e expressivos olhos
cigenação. também combinavam com a boca, de
lábios finos e enormes, criando uma fi-
Nesse esquema desenvolvido pela Atlân- sionomia exótica que os grandes brin-
tida, outros três tipos também funciona- cos tornavam ainda mais engraçada.
ram na busca de identificação com os Para além do visual, todos esses tipos
espectadores, como o “coroa”, a “patroa” possuíam uma sonoridade também tra-
e a “empregada”. O primeiro, em geral, balhada de acordo, seja num sotaque
era um personagem oprimido em casa carregado, no próprio linguajar utiliza-
pela “patroa” dominadora e liberado na do, ou, por exemplo, no timbre estriden-
vida pública, supostamente confiante em te e esganiçado de uma Zezé Macedo.

A
si mesmo e obtendo “sucesso” com as
lém da Atlântida, outra produ-
mulheres. São os tipos caricaturais que
tora carioca notabilizar-se-á
encontraram suas melhores corporifica-
pela produção de chanchadas,
ções no ator Zé Trindade e nas atrizes
a Herbert Richers S.A. que, associada a
Violeta Ferraz e Zezé Macedo. Na pele
Sino, ou à paulista Cinedistri, consolida-
de Zé Trindade, o “coroa” era a quintes-
rá a carreira de realizador de J.B. Tanko
sência do cafajeste maduro, esperta-
em filmes como Sai de baixo (1956),
lhão, veículo de muita sabedoria popu-
Com água na boca (1956) ou Metido a
lar num tipo idealizado. Seu olhar e sor-
bacana (1957), com Grande Otelo ao
riso variavam da apreensão ao desapon-
lado de Ankito, ator que substituirá Os-
tamento para a satisfação e malícia,
carito em uma nova dupla.
dependendo ou não da presença contro-
ladora da “patroa” ou da “mulher boa” – Para um olhar de “primeiro mundo” a
uma Renata Fronzi em Massagista de chanchada sempre foi pobre, baixa e
madame (de Victor Lima, 1958) ou Wilza vulgar nos seus títulos e narrativas, se-

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gundo uma crítica que também condena- expressões idiomáticas de duplo sentido
va a picardia sexual, em geral sustenta- são alguns entre os inúmeros traços que
da por diálogos e comportamentos que hoje, entre caras e bocas, povoam algu-
revelavam preconceitos raciais e de clas- mas das atrações mais populares de nos-
se. A chanchada era condenada, entre sas telas eletrônicas, da comicidade nem
outros argumentos, porque seus enredos sempre ingênua de um “trapalhão” como
“não tinham pé nem cabeça”, crítica que Dedé Santana, passando pelo humor
assumia, como paradigma, o ideal de cáustico, demolidor e quase sempre anár-
coerência narrativa e plausibilidade do quico de um Casseta e Planeta . Traços
cinema dominante, descartando assim da chanchada, após o seu declínio, po-
uma atitude irreverente em relação ao dem também ser recuperados em filmes
modelo americano. O poder potencial- do Cinema Novo, como Macunaíma
mente subversivo inerente à dimensão (1969), de Joaquim Pedro de Andrade;
carnavalizada da chanchada só foi com- do chamado cinema marginal , como em
preendido bem mais tarde. O texto mais O bandido da luz vermelha (1968), de
influente dedicado à revisão afirmativa do Rogério Sganzerla; ou em O rei do bara-
gênero continua sendo o ensaio seminal lho (1973), de Júlio Bressane, e, ainda,
de Paulo Emílio Salles Gomes (1975), na filmografia de diretores tão diferen-
intitulado Cinema brasileiro: uma traje- tes quanto Ivan Cardoso ou Hugo Carva-
tória no subdesenvolvimento , que enfati- na. Na década de 1990, Carlota Joaqui-
zou a importância cultural da chanchada na, princesa do Brasil (1994), de Carla
como sendo a única ligação, por mais de Camurati, For all – o trampolim da vitó-
três décadas, entre o cinema brasileiro ria (1997), de Luiz Carlos Lacerda e Buza
e o seu público. Paulo Emílio abriu o ca- Ferraz, O casamento de Louise (2000) e
minho definitivo para a recuperação da Celeste e Estrela (2003), ambos de Betse
chanchada como assunto digno de aten- de Paula, recuperam um certo clima da-
ção crítica. Paralelamente, a crescente quelas comédias cariocas. Nos últimos
popularidade da televisão transformou-a quinze anos, após a publicação de impor-
num veículo “natural” para onde migra- tantes livros dedicados, direta ou indire-
ram astros, estrelas, formas e conteúdos tamente, à chanchada, tanto pelo viés
da chanchada. Aspectos da comicidade mais histórico quanto sociológico, novas
popular do rádio, do circo, do teatro de pesquisas e ensaios continuam a reava-
revista aperfeiçoados nas chanchadas liar sua importância para a cultura bra-
transferiram-se para a televisão. A fre- sileira, como as de Sérgio Augusto, Ro-
qüência com que erros de português são sângela de Oliveira Dias e Fatimarlei Lu-
cometidos, a dificuldade em pronunciar nardelli. 16 Mais recentemente ainda, a ên-
palavras difíceis, estrangeiras ou não, a fase tem recaído menos nos aspectos for-
exploração do manancial de gírias e de mais e de linguagem do gênero e mais

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na riqueza de suas representações mul- Stuart Hall, qualquer cultura nacional


ticulturais e nas relações com o contexto será sempre um discurso, “um modo de
maior da história brasileira do período. construir sentidos que influencia e orga-
niza tanto as nossas ações quanto a con-
A partir da crise instaurada pelo despejo cepção que temos de nós mesmos. As
de matrizes fílmicas levado a cabo pelo culturas nacionais, ao produzirem senti-
Museu de Arte Moderna do Rio em 2002, dos sobre a nação , sentidos com os
com a conseqüente transferência de ne- quais podemos nos identificar, constroem
gativos para o Arquivo Nacional no Rio identidades”. 1 7 Tentar compreender da
de Janeiro e para a Cinemateca Brasilei- forma mais ampla o papel da chancha-
ra em São Paulo, uma nova oportunida- da no cinema brasileiro implica buscar
de surge para a recuperação do que ain- o entendimento sobre os próprios pa-
da existe do precioso acervo da Atlântida drões de comportamento, crenças e sis-
Cinematográfica. Não há mais tempo a temas de valores integrantes da constru-
perder no sentido de se tentar salvar esse ção de modos de ser, sentir e pensar que
material e possibilitar nosso reencontro constituem, no espectro mais amplo,
com essas imagens e sons tão caros à marcas significativas de nossas identida-
nossa identidade. Conforme nos ensina des culturais.

Wilson Grey, Jece Valadão, Cyll Farney e Grande Otelo em Amei um bicheiro , de Jorge Ileli e Paulo
Vanderley, 1952. Foto de still do acervo da Atlântida Cinematográfica. Cinemateca do Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro.

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N O T A S
1 Cianciata , “ discorso vano, prolisso, senza costrutto; burla, scherzo, cosa da nulla,
bezzecola” . Em Salvatore Battaglia, Grande Dizionario della Língua Italiana , Turim, Unione
Tipográfico-Editrice Torinese, 1964, p. 108-109. Em espanhol o termo chanza significa
“burla, broma, mentira, embuste”, conforme nos ensina J. Corominas em seu Diccionario
Critico Etimológico da la Lengua Castellana , Berna, Editorial Franeke, 1954, p. 19. A
palavra foi introduzida no catalão através do italiano no século XVII, significando bur-
las , ou seja, mentiras, palavras increibles , numa tradução do Decamerão. Na língua
italiana ela é tão antiga quanto a própria língua e aparece com freqüência em Dante,
Petrarca e Boccaccio.
2. São comuns no cinema dos primeiros tempos narrativas em torno de personagens sim-
plórios do interior passando por atribulações na grande cidade. Ver, por exemplo, Rube
and Mandy at Coney Island , produção de Edwin S. Porter, 1903, com cerca de dez
minutos de duração, provavelmente exibido no Rio naquela época. No final dos anos de
1980, esse filme de dez minutos fazia parte de um dos programas da mostra Antes de
Hollywood: filmes da virada do século apresentada na Cinemateca do MAM-RJ.
3. O termo refere-se a uma série de filmes produzidos nessa época onde a conjugação
música-cinema se dava numa espécie de espetáculo híbrido, com atores-cantores situa-
dos atrás da tela, sincronizando ao vivo as canções apresentadas no filme, igualmente
executadas ao vivo durante as projeções. Para maiores detalhes, ver o ainda insuperável
Vicente de Paula Araújo, A bela época do cinema brasileiro , São Paulo, Perspectiva,
1976.
4. Ibidem, p. 317-356.
5. Ibidem, p. 333-334.
6. Ver Jacques Aumont, A estética do filme , Campinas, Papirus, 1995, p. 259.
7. Hilda Machado, Oscarito, Grande Otelo e la negazionne dell’amore, em Gian Luigi de
Rosa, Alle radici del cinema brasiliano , Salerno/Pagani, Università degli Studi di Salerno/
Istituto di Studi Latinoamericani, 2003, p. 73-83.
8. A primeira capa de Cinelândia dedicada ao cinema brasileiro saiu em seu número 8, de
dezembro de 1952, com a atriz Josette Bertal, de Amei um bicheiro (de Jorge Ileli,
1952). A partir daí, a revista passou a dar mais espaço às produções da Atlântida, sendo
que alguns filmes como Carnaval Atlântida e Nem Sansão nem Dalila chegaram a ganhar
três matérias consecutivas cada um, indicando uma espécie de “reserva de espaço”
regular para as produções do estúdio.
9. Para uma interpretação mais nuançada, ver João Luiz Vieira, Este é meu, é seu, é nosso:
introdução à paródia no cinema brasileiro, em Filme Cultura , Rio de Janeiro, Embrafilme,
n. 41-42, maio de 1983.
10. Pela ordem: Carnaval no fogo (1949), A sombra da outra (1950) e Aviso aos navegantes
(1950) para a Atlântida. Sinfonia carioca (1955) e Depois eu conto (1956) para a sua
própria produtora.
11. Sobre o conceito de fotogenia utilizado aqui, ver a seleção de textos de Bela Balázs em
Ismail Xavier (org.), A experiência do cinema , Rio de Janeiro, Graal/Embrafilme, 1983, p.
77-99.
12. Mais detalhes em João Luiz Vieira, Foto de cena e chanchada: a eficácia do star-system
no Brasil, dissertação de mestrado apresentada na Escola de Comunicação, UFRJ, 1977.
Sobre a relação entre corpo e tecnologias de iluminação, fotografia, ideologia e a cons-
trução da nor matividade branca, ver Richard Dyer, White , Londres, Routledge, 1997.
13. Há, entretanto, instabilidades na persona de Eliana. O padrão mais americanizado, sur-
gido no final dos anos de 1950, pode ser alterado, por exemplo, em filmes como Três
colegas de batina (dir. Darcy Evangelista, 1962), onde, ao lado do Trio Irakitan, ela faz
uma moça simplória do interior que vem tentar a sorte na cidade grande.
14. Ver Tom Gunning, O retrato do corpo humano: a fotografia, os detetives e os primórdios
do cinema, em Leo Charney & Vanessa Schwartz, O cinema e a invenção da vida moder-
na , São Paulo, Cosac & Naify, 2001, p. 58-64.
15. Plano americano é um tipo de enquadramento em que o corte se dá na altura do joelho.
O primeiro plano é aquele que emoldura a pessoa a partir da altura dos ombros.

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16. Sérgio Augusto, Este mundo é um pandeiro , São Paulo, Companhia das Letras, 1989;
Rosângela de Oliveira Dias, O mundo como chanchada : cinema e imaginário das classes
populares na década de 50, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1993; Fatimarlei Lunardelli,
Ô psit : o cinema popular dos Trapalhões, Porto Alegre, Artes e Ofícios, 1996. Na área
mais ensaística, destaco as recentes contribuições de Ber nadete Lyra que, numa linha
teórica que privilegia a materialidade de comunicação, vem estudando a emergência do
efeito humorístico nas chanchadas a partir de um duplo movimento – do próprio aparato
tecnológico do cinema em conjunto com o inconsciente tecnológico do espectador – e
do movimento e performance dos atores dentro do enquadramento, em geral, estático.
Ver: Visibilidade e invisibilidade nas chanchadas , trabalho apresentado no VI Encontro
da Socine – Sociedade Brasileira de Estudos Cinematográficos, realizado entre os dias 4
e 7 de dezembro de 2002 na Universidade Federal Fluminense, Niterói (RJ). No campo da
pesquisa histórica, além do já citado texto de Hilda Machado, destaco o trabalho de
Mônica Kornis, Samba em Brasília : uma utopia conservadora dos anos 50, apresentado
no simpósio temático Imagem e história , no XXII Simpósio Nacional de História da ANPUH
(Associação Nacional de História), realizado entre os dias 27 de julho e 1o de agosto de
2003 na Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa (PB). No exterior a chanchada
também encontra eco no trabalho de pesquisadores da cultura brasileira como Robert
Stam, da New York University ou Lisa Shaw, da Universidade de Leeds, Inglaterra.
17. Stuart Hall, A identidade cultural na pós-modernidade , Rio de Janeiro, PD&A, 2002,
p. 50-51.

R E S U M O
Este artigo faz uma revisão da importância e do significado da chanchada carioca na construção
de um cinema verdadeiramente popular brasileiro. Enfoca os estilos, fases e a consolidação
de um star-system (estrelismo) pioneiro no Brasil a partir da tipificação de um grupo de atores
e atrizes, e a construção de um corpo popular e a identificação com o público.

A B S T R A C T
This article reviews the importance and the meaning of the movie-picture trend in the city of
Rio de Janeiro called chanchada in the construction of a truly popular movie industry in
Brazil. It focuses the styles, the different phases and the consolidation of a pioneer star-
system in Brazil based on a particular kind of actors’ group and actresses, and their
identification with the public.

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