DOS

· COLECTANEA DE ARTIGOS, CONFEReNCIAS E TRABALHOS INIIDITOS DO

ALMIRANTE GAGO COUTINHO

organizada e prefaciada pelo

COMANDANTE MOURA BRAZ

EDIÇÃO COMEMORATIVA DO PRIMEIRO CENTENÁRIO

DO NASCIMENTO DE GAGO COUTINHO
 A NÁUTICA
DOS
DESCOBRIMENTOS

a
 A NÁUTICA
DOS

La edição: 1951 DESCOBRIMENTOS

OS DESCOBRIMENTOS MARÍTIMOS VISTOS POR UM NAVEGADOR

COLECTÂNEA
DE
ARTIGOS, CONFER1?.NCIAS E TRABALHOS INÉDITOS DO
ALMIRANTE GAGO COUTINHO

ORGANIZADA E PREFACIADA
PELO
COMANDANTE MOURA BRAZ

EDIÇÃO COMEMORATIVA DO PRIMEIRO CENTENARIO

DO NASCIMENTO DE GAGO COUTINHO

AG~NCIA-GERAL DO ULTRAMAR
L ISBO A I MCMLXIX
-

O almirante Gago Coutinho observando com o astrolábio

 VOLUME I

a
 PREFÁCIO

a
 Carlos Viegas Gago Coutinho é oficial de marinha
e, no pleno vigor dos seus oitenta e dois anos, lídimo
representante das gerações que ainda viveram o verdor
da juventude e a pujança da idade viril naquele
ambiente de transição que marcou a passagem dos
tempos da vela e dos navios de sistema misto - casco
composto de ferro e madeira, máquina de vapor com
a hélice, por vezes, de içar e aparelho e manobra à moda
antiga - para o que, na gíria naval da época, se cha-
mava o «metálico moderno». Ainda andavam no mar
ou exerciam autoridade e davam exemplo em terra
oficiais do saber e da têmpera de Costa Carapinha,
Baptista de Andrade, Tomás Andrea e outros de m enos
nomeada mas de nítida proficiência náutica, acompa-
nhada de prestígio militar e profissional. O ambiente
naval era o de um passado então muito próximo, dada
a lentidão do progresso no material e na técnica,
característica dos tempos que imediatamente precede-
ram o evolucionar vertiginoso das épocas mais recen-
tes: os tempos do Marquês de N isa e da cooperação
com unidades de Nelson em manobras e em acções
navais no Mediterrâneo. O espírito e os hábitos pouco
ou nada se diferençavam dos de então e a arte de
 A NÁUTICA DOS DESCOBRI ME NTOS
12
navegar seguia ainda os mesmos processos primitivos
e elementares, mas complicados, que a técnica e os
recursos modernos não tinham tido tempo ainda de
melhorar. O ponto no mar firmava-se nas velhas
fórmulas do horário e da meridiana pelo Sol e a regu-
lação da marcha dos cronómetros, de que dependia
o chegar com segurança ao porto de destino, era
preocupação aflitiva para quem tinha a seu cargo o
serviço da pilotagem comparado com a simplicidade
e a certeza que actualmente oferece a radiotelegrafia.
Daí resultava uma aplicação . sôfrega ao estudo da
navegação, dos roteiros e da astronomia náutica, em
que a necessidade desenvolvia uma espécie de sexto
sentido que caracterizava e distinguia os bons pilotos
da época. Ao mesmo tempo a v1da a bordo de um
grande número de navios e a maneira como o serviço
se fazia nas estações navais não diferiam essencial-
mente das que desfrutavam os homens das naus e
das caravelas das velhas navegações de outrora.
Aparte o modernismo do salmão e da ervilha em lata,
a carne salgada - agora chamada pomposamente
corned beef - , e a bolacha com bicho eram sensivel-
mente as mesmas e, se os navios mais algum conforto
davam, era em lanchas a remos ou à vela, tal-qualmente
como no tempo de então, que se faziam os cruzeiros
contra os negreiros na costa, angras e estuários de
Moçambique, que se demandavam barras difíceis, que
s e realizavam desembarques em terra, que se fazia
hidrografia. Mas esse ambiente do passado, hoje em
dia remoto, mas então de tal forma vincado e vivo
que só a reflexão fazia sentir a distdncia em tempo,
tornava-se mais sensível quando, no mtramar, o ofi-
cial travava as primeiras relações com a terra. A cares-
PREFÁCIO
I3
tia, ao tempo, de relações frequentes e directas com
o mundo europeu mantinha as populações indíge-
nas -para não falar nos próprios colonos-, no
mesmo primitivismo, sensivelmente, em que aqueles
foram encontrados pelos primeiros navegadores e
estes se foram por lá deixando ficar como degreda-
dos, aventureiros ou empregados do Governo. Quem
chegasse, por exemplo, à Guiné aqui à volta de qua-
renta ou cinquenta anos atrás, e, depois, mais tarde,
lesse o manuscrito da Biblioteca Pública de Munique
dado à estampa por Valentim Fernandes - um de-
poimento que há quem, com bons argumentos, atribua
ao autor do «Diário da Primeira Viagem de Vasco da
Gama à l ndia» -, julgar-se-ia ter lá estado também
na sua companhia, de tal forma nele se nota a identi-
dade do meio e dos costumes. Quem entrasse pelo antigo
Reino de Benguela dentro ou pela Zambézia acima ia
lá dar com um ambiente que não era essencialmente
diferente daquele com que deparavam os primitivos. Na
costa de Moçambique encontrava os mesmos pangaios,
nas bocas dos rios as mesmas almadias, por toda a
parte os mesmos pilotos mouros, cabindas ou man-
jacos; em Gabo V erde aprendia com os lugres ame-
ricanos comandados por pilotos da terra como se
navegava entre o arquipélago e o continente ociden-
tal, sem cronómetros, apenas à feição dos ventos
gerais, correndo no fim, na altura ou latitude em que
a estima e as conhecenças davam terra próxima. sobre
o paralelo do porto de destino, tal-qual como faziam
os pilotos da balestilha e do astrolábio quando o pro-
blema da longitude não tinha ainda encontrado solu-
ção possfveZ.
-------------------~-------
A NÁUTI C A D OS D ESCOBRIM ENTOS
O oficial de marinha vulgar vivia esse ambiente
com mais ou menos entusiasmo ou interesse, mas guar-
dava apenas dele a recordação de tempos difíceis, o
ressaibo de aventuras acres, ou o tédio de uma esta-
ção monótona, ou de uma viagem longa e sempre igual
nos trópicos. Gago Coutinho, porem, espírito infatigà-
velmente curioso e activo, embebeu-se nele e viveu
intensamente esse meio, primeiro no mar, depois no
mato, e essa escola explica a lucidez quase divinató-
ria das suas deduções luminosas sobre a náutica dos
Descobrimentos. Recebeu desde novo aquela espécie
de cultura que é necessária a quem se propõe inter-
pretar actos ou circunstâncias que envolvam deter-
minada técnica especializada. Foi piloto, navegou à
vela em navios que não tinham T. 8. F., sentiu à flor
da pele e no íntimo da alma momentos semelhantes
àqueles cujo estudo e interpretação, à falta de documen-
tos, que não existem, por motivos de sigilo que a polí-
tica do Estado ou o interesse individual mandavam,
ou da ignorância do narrador coevo, mais literato do
que sabedor de factos -obriga à conjectura, que só
tem lógica quando se alicerce em ciência certa e pro-
fissional.
Basta ler a «No ta de Assentos» do almirante para
reconhecer como a prática do mar e do mtramar lhe
deu especial competência para se dedicar como mestre
à interpretação e ao estudo crítico da Náutica dos
Descobrimentos.
• oficial que lhe sucedeu .
Carlos Viegas Gago Coutinho, socw efectivo da
Academia das Ciências de Lisboa, vogal da Academia
•
,
PREFÁCIO
I5
das Ciências de Portugal, vogal da Academia Portu-
guesa da História e do Instituto Histórico e Geográ-
fico do Brasil, nasceu em 17 de Fevereiro de 1869,
alistou-se na Armada, como aspirante de marinha,
em 15 de Novembro de 1886 e seguiu para a Estação
Naval de Moçambique, na «Afonso de Albuquerque»,
em 13 de Dezembro de 1889; foi promovido a guarda-
-marinha em 21 de Janeiro de 1890 e a segundo-tenente
em 7 de Março de 1891, depois do que seguiu normal-
mente a sua carreira profissional, cumprindo todos
os tirocínios e deveres próprios da arma até atingir
o posto de capitão-de-mar-e-guerra. Foi promovido
por distinção ao posto de almirante em 30 de Março
de 1922. Fez todo o serviço de embarque e de estação
no Ultramar segundo as normas ao tempo em vigor,
intercalado porém de várias comissões fora da arma
que lhe absorveram 18 anos de actividade geográfica
intensa com uma boa dezena de vida no mato, de que
resultaram a demarcação de cerca de 2000 km de
fronteiras no mtramar) o levantamento expedito de
milhares de quilómetros quadrados de território ultra-
marino, itinerários de longas travessias do continente
tanto em Angola como em Moçambique, uns 800 km
de triangulação geodésica nesta última província, a
da ilha de S. Tomé, vários pontos geográficos por
observações astronómicas, instruções várias de campo
para trabalhos geodésicos e, na Comissão de Carto-
grafia, de que foi presidente, uma tradição e uma
escola de que vive e continuará a viver o organismo
Como todos os oficiais do seu tempo e da sua
escola, embarcou em vários navios da Armada como
aspirante e guarda-marinha, na qualidade de oficial
 A NÁUTiCA DOS DESCOBR I ME NTOS
16
de guarnição, de imediato e de comandante, tanto
no serviço da Metrópole, com nas estações navais do
Ultramar, ou em viagem por portos estrangeiros.
A bordo do navio-escola de aspirantes «Duque da
Terceira» e do navio-escola de marinhagem «Pero
à'Alenquer», foi oficial instrutor.
De toda essa actividade, porém, e no sentido de
acentuar a sua sólida, extensa e profunda preparação
para a critica fundamentada da técnica da náutica
dos Descobrimentos, destacaremos aquela que decor-
reu a bordo de navios exclusivamente de vela ou daque-
les que ao tempo, na classe de mistos, utilizavam de
preferência, por economia ou por gosto profissional
dos comandantes, este último sistema de navegação.
Esta actividade e experiência verificaram-se em
embarque e serviço no mar a bordo das canhoneiras
«Zaire» «Zambeze» e «Douro», das corvetas «Min-
'
delo», «Duque da Terceira» e «Rainha de Portugal»,
do transporte navio-escola de marinhagem «Pero
d' Alenquer», galera afamada do tempo dos «Clippers»
que até no seu naufrágio, de novo ao serviço da mari-
nha mercante, manteve com garbo e com eficiência
as suas lídimas características de bom veleiro.
Na «Zaire», por exemplo, fez parte da travessia
à vela da ilha de Santa Helena para Santiago de
Cabo Verde; na «Zambeze» vele jou pelo golfo da Guiné
entre S. João Baptista de Ajudá e a ilha do Príncipe;
na «Douro» e na «Rainha de Portugal» correu à vela
parte ·do Atlântico Sul; a bordo da «Duque da Ter-
ceira», onde fizera a sua aprendizagem náutica de
aspirante de marinha, serviu como oficial de guarni-
ção e encarregado do aparelho do navio sob o comando
do grande oficial e marinheiro excelso que foi Augusto
PREFÁCIO
17
de Castilho, com quem igualmente fez, em grande parte
à vela, na «Mindelo», a travessia do Atlântico Sul de
Luanda ao Rio de Janeiro, quando dos históricos
acontecimentos de 1893 (1) ; como encarregado da
pilotagem, na «Pero d' Alenquer:., comandante José
Maria da Silva, imediato o grande mestre de nave-
gação à vela Eduardo Macieira, fez depois, sem auxí-
lio nem esperanças de recurso a qualquer espécie de
força motriz que não fosse a do vento, a grande tra-
vessia de Lisboa a Lourenço Marques pela clássica
Volta de Oeste, inaugurada e ensinada ao mundo por
Vasco da Gama na sua primeira viagem à lndia, que
foi também a de toda a históiia...
Isto sem contar com um longo tempo de embar-
que nos mares da Metrópole e do Ultramar , como
comandante da lancha-canhoneira «Loge» no Congo,
como oficial de guarnição da canhoneira «Limpopo:.
em Angola e da «Liberal» na costa portuguesa, no
comando da «Pátria» em Timor, etc. E por fim, em
viagem de estudo por conta própria, nova travessia
do Atlântico, em sentido contrário à feita anterior-
mente na «Pero d' Alenquer», a bordo da barca de
quatro mastros «Foz do Douro», ainda sem motor
auxiliar ...
Nesta viagem, feita em condições id~ticas àque-
las em que se navegava há séculos, teve ocasião, num
período de tempo de 105 dias, de avaliar a precisão
que o astrolábio permitia nos navios de vela. Havia
(1) Regressou do Rio em paquete, escapo da febre ama-
rela, de que foram atacados seis oficiais, três dos quais lá
morreram.
I8 A NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS

uma dezena de anos que o vinha experimentando mas

a bordo de navios de vapor, em que as condições de
observação não são precisamente as mesmas.

•
e na prática da navegação à vela que se adquire
o sexto sentido do mar, que o espírito se integra na
complexidade dos elementos que caracterizam o am-
biente em que o navio procura o seu caminho utili-
zando, ao mesmo tempo, as forças que lhe servem de
impulso ou se opõem à sua marcha.
Na prática da vela aprende-se o regime normal
dos ventos reinantes nas diversas zonas marítimas
para as diferentes épocas do ano e, simultâneamente,
os fenómenos meteóricos que o perturbam e o alte-
ram. O traçado da derrota não é nela uma simples
operação geométrica na carta, tendo em atenção apenas
os escolhos que barram o caminho ou as correntes
marítimas que ajudam ou prejudicam a economia da
viagem.
Salvo casos peculiares, como é o da navegação dos
pangaios no Indico à feição das monções, as rotas de
vela são, em regra, indirectas, não já prõpriamente
.
em bordadas de bolina para vencer ventos contrários
em tiradas curtas ou dentro de mares apertados, mas
em volta larga, a tornear, quando se trata de nave-
gação . oceânica, em cujas zonas específicas reinam os
ventos gerais que lhes são próprios. Isso, que na
actualidade se regula pelo exame das cartas de ventos
e correntes, que para cada mês do ano fornecem os
elementos nect.ssários ao traçaao da derrota, era
outrora governadn mais que tudo pela ciência de expe-

Capa do «Livro de De rrotas» ( «Diário de Navegação») do primeiro-tenente

de marinha . Carl os Viegas Gago Coutinh o, da guarni ção do transporte
à vela «Pero de Alenquer», em viagem de Lisboa para Louren ço Marques
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24

Rosto de uma das folhóls


Q) ~€~"-,eY~lAOJ~IA(") J ~~yM" ~
~~ ~ q~~~ 'r"''t--t -~'·
Verso da mesma folha
PREFÁCIO 19
nencw feita. A quem a tem, ou a quem sabe inter-
pretar aquelas cartas, não surpreende que os pilotos
primitivos, depois de se aproximarem do equador,
costeando, e de terem regressado de bolina penosa nas
suas caravelas de latino embolsando por fora da enxár-
cia, descobrissem a Volta da Mina e a do Sargaço (2)
própria mesmo até para as naus redondas e que, atin-
gido o Cabo, e reconhecidos os gerais do hemisfério
sul, concluíssem como coisa óbvia que o processo de
lá chegar mais depressa e em naus redondas era cin-
girem-se à feição dos ventos reinantes, rodando
segundo a grande volta de oeste, que nunca mais dei-
xou de ser rota batida para o cabo de Boa Esperança
nem deixará de o ser, enquanto no Atlântico Sul se
navegar à vela (S). Ora isto, que é intuitivo para quem
algum dia cultivou a arte, foi o que serviu de base
certa para as interpretações e conjecturas náuticas do
almirante quanto aos Descobrimentos e às navegações
atlânticas dos pioneiros do século de 500 e foi preci-
samente no mar e na prática rude da vela, e não no
remanso, para ele muito confortável, da sua cadeira
de convés de lona às riscas e da sua biblioteca da Rua
da Esperança, que ele o aprendeu e sublimou em ter-
mos positivamente geniais.
O exame desta fase da vida do almirante, impor-
tantíssimo para o da sua vida e da sua personalidade,
('2) A Volta da Mina e a Volta do Sargaço são pràtica-
mente a mesma volta; simplesmente a primeira é mais longa do
que a segunda.
(B) É a Volta do Brasil, a viagem larga das ilhas de
Cabo Verde ao cabo de Boa Esperança, a contornar por oeste
o Geral do Sueste.
20 A NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS
porque foi nela que recebeu a preparação necessária
e essencial para a realização da obra como geógrafo,
como navegador aéreo e como criador de uma dou-
trina tecnicamente segura quanto à náutica dos des-
cobrimentos marítimos e respectiva historiografia,
torna-se fácil porque ele, com o cuidado meticuloso e
paciente que empresta a todos os assuntos que toca,
e em que afinal se cimenta a sua vasta reserva de
noções adquiridas pela experiência e de invocações
criteriosamente coordenadas, conserva, em miniatura
que abrange três volumes em 1,.0 , a cópia integral dos
diários náuticos de todas as suas viagens em navios
de guerra, substituindo apenas no verso de cada folha
de derrota o registo individual dos quartos de cada
oficial por um resumo com o título de «Novidades»,
em que condensa os incidentes meteorológicos e de
navegação que neles é de uso registar (4 ) .
Desses quatro volumes interessam-nos particular-
mente, para o fim que nos propomos, os três primei-
ros, respectivamente de 241, 253 e 51 folhas preen-
chidas, visto que os restantes já se referem à fase
da sua vida ao serviço vivido em navios mais recen-
tes de moção exclusivamente mecânica e de contacto
íntimo com o mar, consequentemente mais limitado
e menos sugestivo, se bem que as costas visitadas e
os mares percorridos não tenham, evidentemente, dei-
xado de ser fontes imensamente ricas de noções e
suge.stões utilíssimas.
(4) Eram quatro os livros de derrotas do almirante, mas
o primeiro, correspondente aos tempos de aspirante e guarda-
-marinha, perdeu-se no incêndio da Escola Naval.
PREFÁCIO 21
A primeira derrota registada tem a data de 16/11
de Janeiro de 1891 e é feita a bordo da canhoneira
cZaire», do comando do capitão-tenente Álvaro Ferreira,
em viagem de Lourenço Marques para Table Bay, de
cuja guarnição jazia parte, como oficial mais mo-
derno, o guarda-marinha Gago Coutinho, encarregado
da bateria e embarcações. O navio largou do porto
às 22.30 h (tempo astronómico) com o pano ferrado
e seguiu viagem a vapor sob as ordens do comandante.
No verso Zê-se o registo típico que dá ideia do estilo
dos subsequentes: - «Bom tempo. Preparou-se o navio
para viagem, ferrando-se toldos, atracando-se embar-
cações. Suspendeu às 10.30 h da manhã, seguindo a
sair da baía de Lourenço Marques. Vivas na enxárcia.
Segue nas nossas águas o vapor cMac-Mahon:., que
vai limpar e consertar as hélices ao Natal.~
A viagem até ao Cabo (8 dias), dali a Santa
Helena (9 dias) e até doze horas e meia após a lar-
gada deste porto, foi feita a vapor, mas a seguir, por
espaço de oito singraduras a caminho de Santiago
de Cabo Verde, de caldeiras apagadas e à vela. Ao
oitavo dia de viagem as caldeiras foram novamente
acesas para destilar água para a guarnição e depois
o navio continuou a vapor até ao porto da cidade da
Praia, aonde chegou com 16 dias de mar.
Durante a primeira parte da viagem feita à vela
o diário regista os ventos normais entre E e SE e
depois ESE, diz que foi largo o pano todo, incluindo
cutelos e varredouras, mas que ao quinto dia se ferra-
ram as velas auxiliares cpor se temer salto de vento
em consequência do movimento de algumas nuvens
(talvez o contra-alisado do NW ):.. Ao oitavo dia o
vento começou a divagar pelo SW e S até que por
22 A NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS
fim, por E, se fez N fraco com algumas calmas de
princípio. A latitude era 2° .S, acenderam-se as cal-
deiras e no resto da viagem até .Santiago navegou-se
em franco regime de alisado do NE. Na derrota
correspondente à lat. obs. 10° 46',9 regista-se ter-se
distinguido a estrela polar. Foram 916 milhas corri-
das na barca patente, correspondentes a 975 de cami-
nho verdadeiro no geral de .SE com a passagem para
o do NE, tenteando o regime de ventos no Atlântico
.Sul e em contacto à flor da pele com esse regime
naquela primeira experiência, que jamais esquece.
Regressado o navio a Lisboa, em Março de 91,
encontramos, em Março de 92, o segundo-tenente Carlos
Coutinho a comandar a lancha-canhoneira cLoge», no
rio Chiloango; depois como imediato na cLimpopo»
(comandante primeiro-tenente A. Pinto Bastos) e, mais
tarde, oficial de guarnição e encarregado da pilotagem
da canhoneira «Zambeze», comandante capitão-tenente
Antas Ribeiro, em que teve ocasião de percorrer demo-
radamente o golfo da Guiné, entre .S. Tomé e .S. João
Baptista de Ajudá. A viagem deste porto para a ilha
do Príncipe foi feita à vela, sob tempo tempestuoso tro-
pical, tornados e calmas do golfo da Guiné até ao quinto
dia, com 166 milhas na barca e 197 de caminho ver-
dadeiro.
Ainda nessa mesma estação de Angola desembar-
cou da «Zambeze» em Julho de 93 para a corveta
cMindelo», comandante capitão-de-fragata Augusto
de Castilho, em que seguiu para o Rio de Janeiro
naquela comissão de serviço que passou à história como
momento dignificante para um país que soube honrar-se
e dignificar-se honrando e dignificando o direito de
asilo, sem que pela cabeça de alguém a bordo passasse
PREFÁCIO 23
a mais leve ideia de qualquer espécie de cobardia
subserviente e menos própria de quem se preza.
O navio, após a largada de I..tuanda, soltou rumo
ao Rio, navegando a vapor com ajuda de latinos e
velas de proa, com ventos fracos de entre .SW e .S,
até que, três singraduras passadas, o fogo foi reche-
gado e o pano largo, havendo que arribar a .Santa
Helena por avaria no destilador, que o balanço não
permitiu reparar no mar. A entrada em James Bay no
dia 24/25 de Julho fez-se com o auxílio da máquina,
após sete dias de navegação à vela entre a costa da
Ãfrica e .Santa Helena, à feição do geral de .SE com
cerca de 606,5 milhas contadas pela barca e 685 de
caminho verdadeiro. No dia 21/28 largou o navio de
James Bay sob fogo, que rechegou horas depois para
apagar ao terceiro dia, passando a navegar à vela na
travessia do Atlântico .Sul para a costa do Brasil até
ao dia 4/5 de Agosto em lat. obs. 16° 22' .S, long. 24°
1' W Gr., em que acendeu de novo, depois de ter per-
corrido um total de 910 milhas à vela em 111 h , não
longe da ilha da Trindade, de que passou depois à
vista. Dali até ao Rio, onde fundeou no dia 11/12 de
Agosto, o navio nqvegou a vapor e vela, largando pano
conforme a feição do vento.
Depois de um largo período de embarque em
mares da Metrópole, na canhoneira «Liberal», coman-
dante capitão-tenente João Miguel Rosa, que em todas
as viagens, como era da tabela, largou pano em ajuda
à máquina, encontramos no dia 1/2 de Maio de 1895
o segundo-tenente Gago Coutinho encarregado do apare-
lho do navio e da respectiva instrução aos aspirantes,
que acompanhava na faina de borda acima, a bordo
da corveta eDuque da Terceira», navio-escola, coman-
 A NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS
dante capitão-de-mar-e-guerra Guilherme Brito Capelo,
em manobra de largar da bóia no Tejo para cru-
zeiro de imtrução de Lisboa para a ilha de 8. Mi-
guel. 24 horas após o navio passou a trazer o fogo
rechegado ou encostado, navegando exclusivamente à
vela para só voltar a pôr as máquinas em funciona-
mento ao demandar o fundeadouro em Ponta Del-
gada, passados nove dias e meio, sob vela, com cerca
de 852 milhas andadas nas águas entre a costa por-
tuguesa e os Açores. O resto da navegação foi feita
a vapor e à vela.
A passagem do regime de vela para o de vapor,
quatro dias antes da chegada a 8. Miguel, foi moti-
vada por no dia 9I 10 o registo da respectiva sin-
gradura dizer assim:
«Tempo com mau aspecto. Alguns aguaceiros de SW,
um dos quais de arco, dando vento e muita chuva. Almas-de-
-mestre ( ~) na esteira do navio. Algum balanço. Céu for-
rado. Envergaram-se a polaca e a mezena de tempo. Cor~
diaram-se a gata e a seca. PassaréNTI-se contrabraços às
v.ergas dos ppff.' As 3 horas virou-se em roda pondo na
amura de E.B., mais vantajosa no caso de se tratar de
um ciclone ou tempestade. A tarde clareou o céu, mas ao
pôr do Sol estava outra vez forrado. De noite continuaram
os aguaceiros, limpando o céu por vezes. De manhã mais
aguaceiros do SW, não alcançando o navio. Vaga de
( 1) Na gíria dos navios de vela d'enominavam-se almaa-
-de-mestre as andorinhas, que, nas suas migrações, os tomam
como apoio, acompanhando-os. Constituem, por outro lado, uma
cconhecença» náutica.
PREFÁCIO 25
vento cruzada com ondulação larga do NW que faz arfaJC
muito o navio. Às 21 h virei de bordo em roda. Durante
toda a singradura capeou~se com o navio. Caminho total
percorrido pelo vento aparente, 1:80 milhas.» '
Contudo só no dia seguinte as caldeiras se acen-
deram para destilar, a destilar continuou em parte do
outro, até que com vento de força 8, impróprio em
qualquer das amuras, o navio meteu de capa com polaca
e rebeca e, auxiliado pela máquina, foi demandar o
porto de Ponta Delgada com «mar largo e cavado de
arrebentação. Vento de rajadas e salseiras cantando
no aparelho», largando ferro para o fundo no dia 15/16.
Após a experiência sob vela dos gerais sem
tempestades do Atlântico Bul, a do regime ciclónico
do mar dos Açores.
No dia 26/ 27 o navio iniciou uma série ininterrupta
de cruzeiros por entre as ilhas e de ilha para ilha entre
Santa Maria e o Corvo que se prolongou até ao
dia 12/15 de Agosto, em que voltou a fundear em
Ponta Delgada, cruzeiros que se destinavam à imt~
ção dos aspirantes, abrangendo portanto todos os
ramos da marinharia e da arte de navegar, parti-
cularmente à vela.
Nestes cruzeiros foram navegadas 1913 milhas
com pano largo. Foram 1913 milhas sob vela em
regime de imtrução de manobra e náutica, no fulcro
principal da meteorologia atlântica com bom tempo,
calmas e aguaceirada.
De regresso a Lisboa a viagem de 8. Miguel à
Gran Canaria foi feita sob vapor, de princípio, mas
depois do primeiro dia o fogo foi encostado e mais
tarde apagado e o resto da viagem feito sob vela até
26 A NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS

fundear em Puerto de la Cruz com mais 696 milhas

contadas pela barca patente exclusivamente à vela,
em regime de alisado no NE que chegou a jazer dar
à eDuque da Terceira» oito nós em gáveas e joanetes.
Estamos agora na zona oceânica das navegações
dos primitivos.
De Puerto de la Cruz à Madeira e do Funchal
a Lisboa as viagens foram feitas sob máquina.
No dia 26/21 de Janeiro de 1896 encontramos o
primeiro-tenente Gago Coutinho encarregado do apare-
lho do navio e da instrução de pano, manobra e marinha-
ria, largando do Tejo na mesma corveta eDuque da Ter-
ceira», comandante capitão-de-mar-e-guerra Augusto
de Castilho, mas agora de caldeiras apagadas, tirando
voltas ao virador do arganéu da bóia a seguir sob
vela até à barra e dali, depois, com todo o pano largo
numa exibição de mestria profissional que jaz recor-
dar com saudade esses belos tempos da marinha em
que ao panache próprio do ofício se aliavam o saber,
a . competência e o prestígio que a superioridade ver-
dadeira, e não a imposta com estupidez, com cupidez
e com maldade, desperta e mantém.
O navio acendeu para demandar o porto do Fun-
chal, aonde chegou com 431,5 milhas na barca sob vela.
Do Funchal à ilha de Tenerife, trabalhando a má-
quina apenas na saída e entrada dos portos, foram
contadas sob vela 606,5 milhas na barca patente. De
Santa Cruz de Tenerife o navio seguiu a vapor
para Puerto de la úuz, na Gran Canaria, donde largou
de novo em 22/23 de Fevereiro para Santiago de
Cabo Verde, indo fundear no porto da Praia em 28/29.
Acendeu apenas para a saída e entrada dos portos.
Foram 164,5 milhas navegadas pela estima à feição
 PREFÁCIO

do geral do NE que a corrente de feição aumentou

para 918,5 de caminho verdadeiro. Seguiu-se depois
um cruzeiro entre as ilhas do arquipélago em que o
navio navegou sob vela e pela estima cerca de
556 milhas.
No dia 22/23 de Abril fez-se novamente de vela
para S. Miguel, acendendo apenas para entrar no porto
artificial de Ponta Delgada no dia 415 de Maio com
1551 milhas na barca.
Foi nesta viagem de S. Vicente de Cabo Verde para
8. Miguel que houve oportunidade de fazer a Volta
do Sargaço em 13 dias de navegação (um record), na
qual para não faltar matadouro algum lá aparece o
do «cutelo do velacho fora», como era de preceito em
bolina folgada.
Após duas semanas de um cruzeiro a vapor entre
ilhas, o navio largou de S. Miguel no dia 30/31 de
Maio e, navegados dois dias à vela e vapor, apagou
as caldeiras, chegando ao Funchal no dia 5/6 de Junho
com 506 milhas pela barca.
No dia 10/11 seguiu dali para o porto de Cádis,
aonde chegou a 16/ 17, com cinco dias à vela em que
navegou pela barca 407 milhas. O resto do cruzeiro
completou-se por Cartagena, Marselha e Gibraltar, a
clássica volta em viagens de instrução que deu, ao
tempo, a preparação náutica aos oficiais de marinha das
gerações passadas antes de completarem a sua forma-
ção profissional na estação de guarda-marinha, que, em
regra, se prolongava por mais dos dois anos da tabela.
Esta parte da viagem, que já não oferecia oportuni-
dade para a manobra larga de um navio de vela e além
disso se prestava à prática, então a tornar-se mais
corrente, da navegação exclusivamente a vapor, foi feita
28 A NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS

sempre sob máquina até ao Tejo, onde o navio amarrou

à bóia em 15/16 de Julho, depois de ter feito pràti-
camente sob vela a volta primitiva de Santiago pelos
Açores.
A «Duque da Terceira», já de há muito desapa-
recida da Lista dos Navios da Armada, foi o navio
em que recebeu o baptismo do mar e a primeira pre-
paração profissional, ainda na rude escola que fez
grande a Marinha" uma série de gerações de oficiais
que agora igualmente se vão sumindo da respectiva
lista mas que viveram um dos períodos mais intensos
e de mais lustro para ela.
O esquema (fig. 1) mostra a viagem prõpriamente
dita, excluindo o cruzeiro entre ilhas dos Açores, via-
gem que pràticamente abrange o triângulo fundamen-
tal da actividade dos nossos primeiros navegadores,
que tem como vértices Lisboa" Canárias, nas alturas
do cabo Bojador, e as ilhas dos Açores .

•
No dia 7/ 8 de Outubro de 1896 está em faina
geral de largada da bóia no Tejo o transporte «Pero
d'Alenquer»" comandante capitão-de-fragata José Maria
da Silva" imediato primeiro-tenente Henrique Eduardo
Macieira" encarregado de pilotagem primeiro-tenente
Gago Coutinho.
A «Pero d' Alenquer », ex-galera inglesa de casco de
ferro, 1528 toneladas de arqueação e 263' X 38',2 X 23',
«Thomas Stephens», antigo «Clipper» da carreira da
Austrália para carga geral e passageiros, cuja imagem
ainda hoje figura em todas as obras que se referem
àquela classe de navios em que se sublimou a nobre

A «Duqu e da T erceira» e m 18911

 PREFÁCIO 29

e subtil arte da con8trução naval e da navegação do

mar alto nos tempos em que a vela era ainda o seu
motor exclusivo e suficiente, embandeirara havia pouco
tempo em português para a Marinha de Guerra, jun-
tamente com outro navio da mesma classe, mas de
casco de madeira, o c.Termopilae », aqui baptizado
c.Pero Nunes ». Este, que pouco serviu, por trazer o
casco já minado de taredo, não tardou a armar em
pontão e acabou em 1901, na baía de Cascais, com um
tiro de torpedo Whitehead lançado pelo «Torpedeiro
n.o ~1», em fogos reais de exercício, numa explosão
perfeita e espectaculosa. A c.Pero d' Alenquer», abatida
em 1911 ao serviço da Armada e incluída no da Mari-
nha Mercante, desapareceu no Atlântico Norte, sem
deixar vestígios, quando, durante a primeira Grande
Guerra, vinha em viagem da América para Lisboa com
um carregamento de gasolina. Como a eDuque da Ter-
ceira», a «Pero d'Alenquer», que foi o símbolo de uma
época na vida do mar, não sai do sentido daquelas
gerações de oficiais que na primeira aprenderam a
profissão e nesta se tomaram de paixão por ela.
No diário náutico do almirante aparece agora,
pela primeira vez, na casa que tem a rubrica: «Má-
quina», e atravessando pomposamente as suas colu-
nas miudinhas, a nota:- Não hã.
O navio largou da Mia a reboque, na manhã de
1/8 de Outubro de 1896, em viagem para Lourenço
Marques, principiando a largar pano às ! h de 8/9,
marcando o ponto de partida pela Guia e Bugio
às 4.45 h. No dia 12/ 13, às 24 h, marcou a Ponta do
Rabaçal, na ilha da Madeira, por 15° SW a 50' de dis-
tância, no dia 18/ 19 de Outubro, por 28° 9' N e 19° 41'
W Gr., meteu de capa rigorosa debaixo de mar grosso

A NÁ UTICA DOS DESCOBRIMENTOS
e mau tempo que pela noite amainou. No dia 20/21
declarou-se o alisado de NE por 25° 16' N e 21° 46'
W Gr. e pelas 5.15 h, «tendo-se desfeito a mão de arame
da ostaga da gávea, a verga alta caiu em peso sobre o
peão da baixa, partindo-o, ficando esta verga aguen-
tada sobre o estai grande, pelas testas da gávea alta,
que são de arame, e talha de lais e escotas do joanete
f~
grande. Logo subiu gente que abraçou a gávea alta
com a ostaga, passou cosedura da gávea baixa para
o mastro real, passou uma talha ao terço da gávea
baixa e desenvergou as duas velas».
A «gente» que subiu «logo» foi o imediato Ma-
cieira, o primeiro-tenente da pilotagem Gago Coutinho, o
primeiro-tenente do destacamento Albano Morais de Car-
valho, o guarda-marinha Jaime de Sousa e o gajeiro
grande.
O comandante, em conselho de oficiais, resolveu
orçar para S. Vicente de Cabo V erde, enquanto, com
os recursos de bordo, se ia reparando a avaria. O tempo
porém abonançou e a avaria reparou-se no mar, sem
necessidade de arribada. Em 22/ 23 fez-se a nova ostaga
de arame «Com a costura como deve ser, isto é, com
os cordões engaiados em torno de um mesmo cordão».
Avistaram-se vários navios de vela que a cPero» ultra-
passou quando no mesmo caminho e no dia 28/ 29,
por 17° 46' N e 23° 50' W Gr., o diário nota que todos
nessa altura à vista governavam ao S. No dia 29 I ~O
de Outubro avistaram-se as ilhas de Cabo Verde, mar-
cando-se depois o ponto pela de Santo Antão a 8'.
No dia seguinte perdia-se a ilha de vista pela popa.
O caminho que o navio agora seguia era o da volta
da costa do Brasil, em demanda do cabo de Boa Espe-
rança, contornando os gerais contrários do Atldntico
PREFÁCIO
31
Sul, segundo a mesma rota que os nossos navegadores
primitivos inventaram no século de 500 e por onde
navegaram, com as variantes próprias da estação do
ano e não fazendo ou fazendo escala em cporto seguro»
na costa a oeste conforme as conveniências da política
do tempo, V asco da Gama na sua primeira viagem
à lndia e Pedro Alvares Cabral naquela em que oficial-
mente descobriu o Brasil. Desta vez, como nos tempos
posteriores mais modernos era de uso para os navios
de vela da volta do Cabo, a escala foi o porto da Baía.
No dia 5/ 6 de Novembro, por 6° 23' N e 21° 14' W Gr.,
tomou o navio o primeiro contacto com o alisado
de SE. N o dia 11/ 12 de Novembro, por 4° 42' N e
35° 28' W Gr., passava em 21 bb., sobre o parcel de
S. Roque, no dia 15/ 16 marcava o Cabo, seguindo depois
à vista de terra brasileira com mar chão e ventos
bonançosos ou fracos até que no dia 20/21 foi fun-
dear, debaixo de tempo de aguaceiros, no porto da
Baía, em arribada decidida, ouvido o conselho de ofi-
ciais, «por falta de medicamentos e para melhorar as
condições de vários doentes, um dos quais perdeu um
dedo quando rebentou a ostaga da gávea».
S que naquele tempo visitar um porto estrangeiro,
com subsídio em ouro, era obra!
Foram navegadas até aqui 4609 milhas, corres-
pondentes a 4386 de caminho verdadeiro em 45 dias
contados de viagem.
Preparado o navio para sair no dia 25, s6 o faz
em 29/ 30 porque surgiu mau tempo de aguaceiros
pesados e vento duro com que o navio, no entanto,
se aguentou com um s6 ferro e 60 bb. de amarra em
10 de fundo.
-
32 A NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS
No dia 29/30 de Novembro largou do porto da
Baia para ir fundear no de Lourenço Marques, com
35 dias contados de viagem, no dia 2/ 3 de Janeiro
de 1897, depois de ter velejado pela barca 5565 milhas
em 5272 de caminho verdadeiro. Em 2/3 de Dezem-
bro entrava em franco regime dos alisados com sin-
graduras seguidas quase sempre ao mesmo rumo e
em regra pano todo largo, em que o caminho nave-
gado se confunde com o estimado entre cada dois
pontos sucessivos ao meio-dia com uma singradura
de 257 milhas e o máximo de 13 n6s apenas com peque-
nos interregnos de calmarias ou ventos fracos e variá-
veis, até à longitude do Cabo, que cortou no dia 20/21
cerca de 80 milhas ao sul.
No dia 21/22 e já por 24° 59' E Gr. e 41° 53'S,
mas ainda no caminho entre E 4 1/ 2 SE e E 1 / 2 SE,
nasceu a bordo uma criança «que vinha clara», a
quem deram o nome de Tétis. O navio levava, entre
outros um carregamento de degredados de ambos os
sexos, 'a quem o diário chama modestamente «colonos».
O tempo que até então estivera, em regra, bom,
tornou-se' sujo chuvoso, de vento de rajadas, aguacei-
radas saltos de vento à proa, com mar grosso, corrido,
de rebentação, e o navio a 12 n6s. No dia 23/24,. já
no caminho do E 4 NE, a entrar francamente no lndwo,
com bom tempo entremeado de algumas rajadas de
vento e aguaceiros pesados, o navio chegou a deitar,
com joanetes largos, mais de 15 n6s. A maior singra-
dura regista-se no dia 14/15 de Dezembro de 1896
com 262 milhas.
Depois, com tempo variável, calma, nordestes
fracos , aguaceirada, o navio foi-se fazendo leste ao
máximo de 39° 14' E Gr., até que o vento rondou, per-
PREFÁCIO 33
mitindo ganhar norte e marcar finalmente o ponto
de chegada pelo farol da Inhaca e Monte Colato no
dia 1/2 de Janeiro de 1891 com 5565 milhas no udóme-
tro e 5212 de caminho verdadeiro em 35 dias de
viagem.
Ap6s uma passagem de poucas semanas pela
canhoneira cZaire:., fundeada no porto de Lourenço
Marques, comandante J. G. Xavier de Matos, o almi-
rante embarcou na corveta «Rainha de Portugal», o
mesmo comandante e imediato o primeiro-tenente Gago
Coutinho, navio que encontramos em faina de largada
para Table Bay no dia 13/14 de Março de 1891. Esta
viagem, bem como parte da do porto de Cape Town
para o de Moçrimedes, foi feita a vapor, apenas com
o pano como auxiliar, mas ao quinto dia de viagem
para este último o fogo foi rechegado e depois encos-
tado, s6 voltando a funcionar as máquinas para deman-
dar o fundeadouro no dia 14/15 de Abril. Neste per-
curso foram carteadas em navegação à vela 511 milhas
oorrespo'IÍdentes a 591 de caminho verdadeiro. Dali
para Luanda a viagem foi a vapor.
Neste porto passaram para a canhoneira «Douro"
o mesmo comandante e o mesmo imediato. Este navio
largou de Luanda para as ilhas de Cabo Verde a vapor,
com pano auxiliar, mas no 5.0 dia de viagem , 415 de
Junho de 1891, apagou as caldeiras e até ao porto da
Praia, esta fot feita exclusivamente 80b vela, com
ventos largos do8 quadrantes do sul, no fio da corrente
da costa ocidental de Africa até cerca do equador.
Foram 1468,5 milhas carteadas para um caminho
de 1123. No dia 19/20 acendeu de novo para de8tilar
e voltaram as máquinas a trabalhar no dia 23/24,
entrado que foi na zona de vento8 fracoa variávei8,
s

34 A NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS
calmiços e depois nortes. No dia 28/29 de Junho fun-
deou no porto da Praia. Dali para a Gran Canaria
e depois até à Madeira e, por fim, a Lisboa a viagem
foi concluída sob máquina.
Depois, em 1912, com o seu embarque de comandante
na canhoneira c Pátria», em serviço em Timor, a nave-
gação à vela passou a ser para o almirante uma recor-
dação saudosa, prenhe de ensinamentos úteis e de
invocações sempre oportunas nos seus trabalhos
posteriores.
Este comando da cPátria» foi exercido no decor-
rer de uma daquelas guerras com o gentio que ao
tempo ainda eram o pão nosso de cada dia nas Esta-
ções Navais e em que a Marinha tomava, em regra,
um bom quinhão. Se bem que não venha muito a pro-
pósito para o objectivo específico que nos propusemos,
mas porque também ilustra como exemplo a formação
integral do pessoal da Marinha da época e a sua pre-
disposição ao esforço em qualquer campo físico ou
mental, transcrevemos o que se lê no verso da folha 48
do último volume do «Livro das Derrotas-., corres-
pondente à do dia 1/2 de Junho de 1912, em viagem
de Costa Manufãe para Bétano:
c Bom tempo. Calema cavada do sul. Vento SE3,
que à tarde acalmou. Tendo de Marmunera vindo sinal
de que seguiu esta manhã carta para Bétano, provAvel-
mente' resultado da viagem do tenente Mesquita ao acam-
pamento do governador, tocou-se à ~aina às 2.06 h e seguiu
o navio para E com algum balanço e vaga do vento, fun-
deando em Bétano às 4.16 h em 5 bb. de fundo e 15 d e
amarra de B.B.
PREFÁCIO 35
A arrebentação está cavada, mas como já por várias
vezes se tem ido à praia em más condições, vai lá a
baleeira salva-vidas buscar a carta que mostram, como de
costume, na ponta de um pau, acompanhada da ban-
deira nacional. A ida partiu-se o remo de esparrela, o
patrão foi ao mar, mas tudo chegou à praia. A volta,
a meio da rebentação deixaram voar a carta; têm que a
apanhar; o mar pega na baleeira e leva-a, sem a virar.
para a praia, em um sítio não manejável, tentam de novo
vir ao mar, mas rebentam-lhe mares sucessivos, já estão
cansados e de novo são atirados à praia. Como estamos
a menos de duas amarras, tenta-se dar a sondareza acres-
centada para. os arrancar para bordo à força' mas não se
consegue, por causa da corrente, que um homem nadando
leve uma linha à costa. Escurece, e como a calema está
muito cavada, o navio suspende às 6.25 h e vai fundear
duas :amarras mais fora às 6.33 h em 6 bb. de fundo e
30 de amarra de B.B., que o ferro de E. B . veio encepado.
De noite funcionou o projector para animar a guarnição da
baleeira, que ficou em terra sem comer e sem beber e receo-
sos dos Manufays, que estão por aqui, tendo os moradores
conado duas cabeças e, de manhã, à vista do navio, mais
outra. De noite chove por vezes: a guarnição da baleeira
tentou lançá-la na preia-mar sem o conseguir. A calema
está altíssima, tendo o n'a.vio dado balanços de 28° para E .B.
e 22° para B.B., principalmente à meia-noite. Terra!. De
manhã a calema está abatendo. Mudou-se o fundeadouro,
indo fundear às 6.46 h em 5 braças de fundo e 15 de
amarra, em boa posição para se poder alar a embarc&-
ção para bordo, em 3 braças de fundo na popa. Com a
outra baleeira e um timor nadando consegue-se finalmente
dar uma linha para a terra, eles alam a embarcação de
cerca de uma amarra ab longo da costa e por fim saem
.
 A NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS
fora da arrebentação, alados de bordo. Chegam fracos
e com fome, mas sem lhes ter acontecido outro mal além
de se molharem ... ~
11 com pena que cerrámos na fol. 51. 4 o 3. 0 volume do
«Livro de Derrotas» do almirante. Nela termina pràti-
camente uma vida dada às actividades profissionais no
mar, para depois, com o mesmo fervor, a continuar
no mato e no ar, sempre no mesmo ritmo de bem
servir, como aliás foi timbre de uma geração que não
conheceu a forma reflexa da conjugação do verbo.
Be algum ganho extra havia era pago, e bem
repago, em esforço físico e mental, em sacrifício pró-
prio e em devoção pelo dever cumprido.
Por entre as folhas do «Livro das Derrotas-.
encontram-se dispersas, mas intercalas na devida
altura, várias recordações de viagem, como recortes
de jornais, cartões de visita com nomes exóticos de
oficiais estrangeiros, gráficos da máquina ou da regu-
lação da agulha, etc. Numa certa altura aparece o
recorte de um jornal de Lisboa com um conto de Gago
Coutinho. Por ele revelar o espírito da época, do navio
e da pessoa, aqui se intercala também.
cUMA REGATA NO ALTO MAR
No dia 6 de Novembro de 1896 navegava a
«Pero d' Alenquer» com o seu pano todo largo,
por 7 graus de la'titude norte e 27 graus de lon-
gitude oeste de Greenwich. Havia vinte e nove dias
que largármnos de Lisboa embalados na esperança de
PREFÁCIO 37
sempre fazeT a projectada viagem à volta do Mundo,
paTa timcínio de guaroas-marinhas e confoTto moral de
16 000 colonos poTtugueses das ilhas de Sandwich. A vi~
gem tinha-se atTasado bastante: faltaram-nos os alisados
do nordeste, e só duzentas milhas ao norte de S. Vicente
de Cabo Verde se declararam as brisas, separando-nos
então de uma conseTva de cinco ou seis galeras que nos
tinham acompanhado desde as Canári<tS. trazendo todos
na vela umas leves aragens de entre sudoeste e noroeste.
Neste dia, já o serviço de bordo. tinha entrado na sua
rotina monótona. Na véspera. o meu quarto das 4 às 8 da
tarde passara-se em calma completa, estando à vista. tam-
bém desgovernado. um pequeno lugre-patacho.
Como íamos a três quartos de alva, às 8 horas, pois,
da manhã de 6 de Novembro, recebia eu o quarto do
imediato Macieira, que me entregou o navio mareado de
bolina. levando tudo largo. com aragens de lesnordeste;
eram os primeiros sintomas do geral de sueste que nós
começávamos a cortar. Pela nossa popa. muito perto. a
uma ou duas amarras, navegava ao nosso rumo e mareava
como nós o mesmo lugre da véspera, que agora já se
via ser um pequeno navio de umas 300 toneladas. A vista
da «Pero d'Alenquer» era quase um bote; e a meia dúzia
de homens que o tripulava não mostrava dar importân-
cia a esta espécie de regata no. alto mar. Não tinha içada
bandeira, talvez para a não coçar, mas pelo casco e apa-
relho parecia sueco ou norueguês. N ad~ mais se avistava.
e neste canto do oceano reinava aquele sossego que só
se encontra no mar.
Aí pelas 8 e meia apareceu em cima o comandante.
Deram-se-lhe os bons dias, e ele deixou-se ficar, a passear a
barlavento, no tombadilho, onde era necessário dar segu-
ramente umas trinta voltas para andar um quilómetro.
 A NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS

Parecia enfadado por o navio não andar; e, depois de

olhar demoradamente para as nuvens e para, o lugre, per-
guntou-me:
- ó seu Coitinho. quanto tem andado?
- Deitou, às oito, duas milhas, comandante/
Perto das 9 horas entreguei o quarto ao guarda-
. . marinha, e fui dar corda aos cronómetros. Depois agsrei
no sextante, e maquinalmente. como um empregado que
vai para a repartição, subi ao tombadilho, li a barca, e do
canto de barlavento dei os cinco foras usuais. descendo
logo a verificar a hora do cronómetro, a que tinha con-
tado um outro guarda-marinha, talvez o Brandão ou o
A co rveta «Mindel o» no Rio A galera «Pera de Alenquer»
Peixoto. Ecoaram ainda muitos outros foras, das alturas
de Janeiro, em 1893 em Lourenço Marques, em 1893
dos guardas-marinhas, e eu, depois de me ter demorado
a reparar no vento, no pano, na agulha, no lugre, e nos
colonos que na tolda se entregavam a serviços de ménage,
com mulheres a coser e crianças a brincar, desci à câmara
logo que tocou a sineta para o almoço.
Perto de uma hora levámos a almoçar. Falava-se
de tudo: das toneladas de manteiga e queijo que ainda
nos faltava devorar para dar cabo do imenso rancho
que tínhamos levado de Lisboa, e em que avultava o porco,
em todas as suas formas: em metros cúbicos de banha, em
hectares de toucinho, em toneladas de presunto, em quiló-
metros de chouriço ... e até vivo, em rebanhos/ Também se
discutiu se a Aida era mais agradável que a Verbena de
la Paloma, havendo quem se pronunciasse por Breton e
mesmo por V erdi. Comparou-se Camões a Dante, lendo-se
trechos de um e de outro, para confronto. Rememoraram-se
os bons tempos da viagem de instrução da «Terceira~.
com os temporais de levante em Cádis. que tantas vezes
nos não deixaram recolher a bordo, o que a outros des-
pertava reminiscências de fome que na mesma «Terceira~

A can honeira «Douro»

 PREFÁCIO 39

Ânham passado na longa viagem de Cabo Verde para o

cabo de Boa Esperança.
E enquanto alguns. aparentando indiferença pela
vida do mar, conversavam de cenas de vindima e lavoura.
com emprego inconsciente de termos do vocabulário mari~
timo, ao fundo da mesa o imediato Macieira, mais con~
centrado, recordava~se talvez com saudade do tempo em
que cornaJndava a barca «Cabinda», na costa de Angola,
em luta com os terrais e viração.
Todos ·levávamos, pois, a viagem a rir; encarávamos
filosoficamente as calmas e ventos contrários. que desde
Lisboa nos vinham demorando a viagem, e. no fundo,
comparávamos favoràvelmente a nossa vida a bordo deste
navio de vela com a dos cam!Bt'ada:s que viviam aborreci~
dos na estação, fundeados em Luanda ou mesmo em Lou~
renço Marques.
E depois de muito discutir levantámo~nos da mesa sem
ter concluído n·ada .

.Mal o tenente Newton tinha tomado conta do quarto

que eu lhe entregara, aí ao mei~di~ e meia hora, quando
muito, ouvimos~lhe, cá de baixo do tombadilho, gritar:
- Obras de sobres e giba!
Qua:se todos corremos à tolda para ver o que era que.
indo o navio a andar tão pouco. nos obrigava a diminuir
de pano. E vimos, pela amura de barlavento, formado um
aguaceiro muito escuro. que prometia dar vento.
A aragem de leste, que ainda estava correndo, tinha
agora abonançado um pouco. E . pela nossa popa. talvez
à mesma distância que às 8 horas. se não mais perto, con~
tinuava o lugre mostrando-nos, com a caturrada. algumas
carreiras do forro de cobre, muito limpo e brilhante. E lá
 A NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS
a bordo não pareciam ter notado o arco que o aguaceiro
já formara , nem a mancha escura que no mar já vinha
perto.
Mal os sobres e giba foram carregados, o comandante,
que também largara o roteiro em que estava estudando os
temporais do cabo Hom, e viera acima, disse para o ofi~
cial de quarto:
- Ande, seu Newton, meta~ me também os joanetes na
gaxetal
E imediatamente se ouviram as vozes:
- Obras de joanetes, bujarrona de [oral
-Ala a barlavento, arria, carrega/
- Arria o estai de joanete/ Carrega a vela ré/
- ó do leme/ Chega~te ao vento/ ... Não arribar/
No meio da aparente confusão~ a que o apitar do
contra-mestre dava um ar de desordem, cada um estava
contudo no seu posto e as velas foram carregadas, ao passo
que os marinheiros que tinham partido, correndo, pela
enxárcia acima estavam agora a uma altura de mais de
40 metros (a do telhado de uma casa de 10 andares}
procedendo à faina de ferrar os joanetes, imensas velas
de 150 metros quadrados. envergadas em vergas de 15 me-
tros de comprimento.
O aguaceiro continuara no entanto a correr para nós:
o céu já estava completamente forrado, e a escuridão tinha
portanto aumentado. O vento começou a refresclft' do
sueste ·com grossas gotas de água, ao passo que o mar se
cobria de carneirada; e ainda a gente dos joanetes estava
na mastreação a ajeitar o pano, quando nos caiu em cima a
pancada do vento. Vinha mais fresco do que parecera e
fizera a alguns mais esturrados julgar excesso de pru~
dência o ter carregado joanetes.
PREFÁCIO 41
A «Pero d' Alenqueu, debaixo daquele esforço, llfHV'
renremente insignificante, de talvez só um grama por
centímetro quadrado das suas velas, deitou~se a sotavento
e começou a correr inclinada como um bote catraio em dia
de nortada. Maravilhados pela cena empolgante que está-
vamos presenciando, muitos nos deixámos ficar em cima,
à chuva, vendo correr o navio deitado e quase sem dar
balanço, como se fosse a navegéJII' em um lago.
E, enquanto a chuva nos não cerrou completamente
o horizonte, ainda pudemos ver o lugre, que finalmente
tinha tomado a regata a sério, e também lá vinha cor-
tando a água, ajoujado debaixo de todo o seu pano, não
tendo arriado uma única vela.
A pequena distância a que estávamos via-se-lhe ao
leme, de sueste e casaco de oleado, um velho marinheiro,
talvez o contra-mestre, que se divertia a coar pelas testas
do pano este aguaceiro. E os companheiros, que de manhã
aplfl'entavam indiferença, agora não aproveitavam a ines-
perada distribuição de água doce, pat1a lavar roupa, como
os nossos, e mostravam as cabeças por cima da borda de
barlavento, donde estavam gozando este extraordinário
espectáculo gratuito em meio do oceano, esta luta entre
a força do vento e a tensão da lona e dos cabos e mastros
e vergas de ferro, a bordo desta galera, para eles decerto
misteriosa, porque carregava os seus três joanetes à uma,
e ao meio4ia precisara apontar para o Sol, de cima do
seu tombadilho, uns trinta sextantes, para poder saber e<Ssa
coisa tão simples: a la·t itude meridiana/
Mas em breve os perdemos de vista. O nosso navio
continuava a correr, no meio de um lago branco de espuma,
ouvindo-se só o grosso sussurro que fazia o cachão vindo
bàter de encontro ao costado. E não parecia sentir falta
 A NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS
do pano que se lhe tinha cortado, pcKque deitava '$egu~
ramente mais de 12 milhas/
Passada a chuva, clareou o horizonte. O lugre, que,
evidentemente, tinha perdido a regata, por falta de rabono,
era agora um ponto escuro pela nossa popa, a umas duas
milhas de d<
istância. Continuava com o seu pano todo em
cima, mas, como o vento tinha ficado mais fresco, nós,
já ~ambém com tudo largo, íamos andando muito mais, e,
antes de o Sol se pôr, quando as velas e o convés secaram
da chuva, já ele tinha desaparecido no horizonte.
E nunca mais o tornámos a ver.
Lisboa, Março de 1903
Gago Couti.nlho.»
Mas não contente com a experiência adquirida no
serviço e no mar, o almirante aplicou os métodos pri-
mitivos que estudava e praticou-os no mar em condições
idênticas ou semelhantes, pelo menos. Observou como
qualquer Pero de Alenquer com o astrolábio em singra-
duras sucessivas durante meses e fê-lo em navio à vela,
não seguindo exactamente as mesmas rotas, mas nat,'e-
gando nas mesmas regiões atld.nticas por onde vele-
jaram o Gama e Alvares Cabral. Para isso aproveitou,
no regresso de uma das suas habituais visitas ao Brasil,
embarcar na barca sem motor cFoz do Douro», recen-
temente adquirida para a marinha mercante portuguesa.
Falta-nos o registo das derrotas desta viagem da
barca e portanto não é possivel dar uma nota do
número de milhas realmente percorridas no mar pela
PREFÁCIO 43
quilha do navio, mas o das navegadas foi de 811,0 em
105 dias de navegação exclusivamente à vela, segundo
o clássico duplo arco com reversão nas alturas do equa-
dor à feição dos gerais em cada hemisfério como os
nossos pilotos de Quinhentos ensinavam que se fizesse.
•
Resumindo: Além de extensas e demoradas via-
gens em navios de motor ou em navios mistos navegando
a vapor com auxílio de pano, em navegação exclusiva-
mente à vela nos mesmos navios mistos ou em navios
puramente de vela, o almirante percorreu no mar, ao
serviço da arma, abrangendo todo o Atld.ntico Sul de
costa a costa e mais o Indico Sul ocidental até ao norte
da costa do Natal, 22 091 milhas correspondentes a
22 251 contadas na barca patente, ou, juntando àquelas
as navegadas em viagem de estudo e prática do astro-
lábio a bordo da «Foz do Douro», cerca de ~O 8~7
milhas em 314 dias de navegação exclusivamente à
vela pelo Atlantico Sul e volta do cabo de Boa Espe-
rança.
Perdeu, por consequência, uma bela, uma mara-
vilhosa ocasião de estar calado o escritor americano
que falou em poltrona e biblioteca referindo-se a um
confrade que, além de uma vasta cultura servida por
uma vivacidade mental pouco vulgar, dispõe, s6 ele,
de mais experiência náutica em condições idênticas
àquelas em que agiram os primitivos navegadores
oced.nicos, e pelos mesmos caminhos que eles singravam
depois de os terem inventado a poder de tentativas e
de ciência igualmente de experiência feita, do que talvez
 -

44 A NÁUTICA DOS DESCOBRI MENTOS

todos os historiadores náuticos em conjunto, incluindo

nesse me81n0 número o referido autor, claro está.
No esboço (fig. 2), o mesmo de que Gago Couti-
nho se serviu para traçar a rota mais provável da
primeira viagem de Vasco da Gama à lndia, junta-
.
~I-

mente com as rotas conjecturadas de Pedro Alvares

Cabral e Bartolomeu Dias e da Volta da Mina ou do
Sargaço, estão lançadas as viagens pelos mares em que
tais rotas se desenvolveram, viagens por ele feitas
como oficial de . guarnição ou imediato nas corvetas
eDuque da Terceira:. e cRainha de Portugal», nas
canhoneiras cMindelo », «Zambeze» e «Douro:. e na
galera cPero d'Alenquen , bem como a de turismo, que
realizou ultimamente na barca sem motor cFoz do
Douro», cuja navegação acompanhou com a prática
diária do astrolábio e a recapitulação do que já sabia
sobre o regime de ventos e correntes no Atlântico,
sempre o me81n0 desde que o mundo é mundo e que,
por consequência, ditou a arte de navegar à vela, que
uma demorada e paciente experiência ensinou aos
Portugueses da era de Quinhentos.
Mas não foi só a prática do mar que lhe preparou
o subconsciente para a lógica que marca as suas con-
jecturas e as suas deduções quanto à Náutica dos Des-
cobrimentos. A 'Vida de aventuras, regrada e racioci-
nada, que levou no mato e no ar, deu ao seu espírito, já
de si predisposto para uma actividade febril mas de
características essencialmente práticas, uma formação
mental muito peculiar e própria para, espontânea ou . 11
~r-
deliberadamente, personalizar em si as situações e acti-
vidades que, dadas determinadas circunstâncias de f'.
problemas profissionais e de aventura a resolver,
assumiriam aqueles a quem era dada a responsabilidade ..
~ :,..

... ~

l
 PREFÁC IO 45

de lhes achar a solução mais própria e conveniente.

Embarca-se, em espírito, na mesma situação de
e8008sos recursos mas 861"Ve-se da8 cPilots-Oharts»
para ver os ventos e as correntes marítimas que enqua-
dravam tais situações e actividades.
E assim consegue, com o ar mais natural deste
mundo, esclarecer pontos obscuros ou omissos na nossa
História dos Descobrimentos Marítimos, tão rica de
tradições e de realizações vi8ivei8 mas tão pobre de
documentação ou de fontes autênticas originais e, ao
mesmo tempo, tão abundante de erros de palmatória
e de fantasias por vezes delirantes em que a literatura
e o estro, temperados por uma lamentável imprepa-
ração técnica, se sobrepõem prodigiosamente ao natural
e ao racional desde que, por assim dizer, os primeiros
cronistas principiaram a traçar no papel a epopeia
marítima nacional em prosa própria ou de propaganda
e dirigida.

•
Fora do serviço da arma o almirante aplicou-se,
a partir de 1898 até 1918, a trabalhos geodé8icos, geo-
gráficos e de demarcação de fronteiras do território
português no mtramar.
Em 1898 trabalhou na fronteira de Timor e no
levantamento geográfico parcial da ilha; em 1900 fez
a de Moçambique com a British Central Africa; em
1901 a do Norte de Angola para leste de Noqui; em
1904 e 1905 as de Tete; de 1907 a 1910 chefiou a
Missão Geodésica da Ãfrica Oriental; em 1913-1914 fez
a demarcação da fronteira do Barotze, e finalmente
em 1917 e 1918 a triangulação e levantamento da ilha
 A NÁUTICA DOS D ESCOBRIME NTOS
de 8. Tomé. De caminho para o Barotze fez o reconhe-
cimento do caminho por onde depois seguiria o caminho
de ferro do Lobito à Catanga~ então na primeira fase
da sua construção, com determinação de numerosas
latitudes e longitudes por estrelas~ e durante a inter-
rupção forçada dos respectivos trabalhos concluiu ·uma
dupla travessia da A/rica (5200 quilómetros a pé),
fazendo no entretanto a determinação da longitude da
Beira e de Quelimane~ esta de colaboração com Saca-
dura Cabral e o Dr. Manuel Peres~ ao tempo director
do Observatório Campos Rodrigues.
Mais tarde a camaradagem com Bacadura Cabral~
seu adjunto na M. G. A. O. e no Barotze e então em
serviço na Aviação Naval, e o seu infatigável espírito
de investigação e aventura levaram-no a ensaiar no
ar a sua prática de homem do mar e de astrónomo no
mato. Adaptou o sextante às novas condições de obser-
var~ provendo-o de um nível de raio de curvatura próprio
para respeitar o princípio fundamental de dngulo
medido independente da posição do sextante na mão,
construiu tabelas de pré-calculação de uma rota aérea
de costa a costa do Atldntico Sul e, após uma viagem de
ensaio à ilha da Madeira, que resultou positiva~ realizou,
como navegador, a célebre primeira rota aérea atldn-
tica de longo curso navegada ponto a ponto~ como se
faz no mar.
Por direito próprio foi, por último, presidente da
Comissão de Cartografia, onde desde o início da sua
carreira geográfica marcou indelevelmente~ cargo que
acabou por abandonar, deixando lá porém bem firmados
os alicerces de que se aproveitou a instituição que lhe
sucedeu. Agora~ sem fadigas, sem desdnimo~ continua
incansàvelmente a aplicar a sua larga experiência de
PREFÁCIO 47
navegador à solução dos problemas que interessam à
actividade marítima nacional na época dos Descobri-
mentos.
Nunca foi governador no Ultramar, nem deputado
da Nação, nem director de companhias.
No mato, como demarcador de fronteiras e como
geógrafo, compôs regimentos para lhe facilitarem deter-
minações de coordenadas por observações astron6micas
e~ quando se propôs navegar -ele o primeiro-, pelo
ar, de uma costa à outra do Atldntico~ adaptou o seu
sextante~ como os primitivos fizeram ao astrolábio~ às
novas condiÇões de observar e compôs seu regimento
também para novas condições em que ia determinar o
ponto no ar.
De resto o seu entusiasmo pelas coisas da profissão
foi sempre exclusivo e apaixonado. Ainda conserva um
caderno em que nos vagares das divisões no Tejo~ ao
domingo, se entretinha a desenhar mastreação~ velame
e aparelho dos navios que na época ainda eram a
expressão orgulhosa do domínio dos mares, em que
traçava projectos de aparelho para embarcações de
vários tipos e fazia o risco de cascos destinados a rece-
berem determinado tipo de aparelho. A bordo da cPero
d~ Alenquer» ~ onde pontificava o último abencerragem
da arte da vela~ o comandante Macieira, autêntico
representante, no carácter, no saber e nos modos~ desse
tal passado~ ao tempo ainda bem próximo no espírito
e na mente do pessoal da marinha, entrou logo de estu-
dar-lhe o aparelho e de discutir a vantagem ou a des-
vantagem do buraco a meio do painel das velas redon-
das da época preconizado por qualquer te6rico da arte
para melhor aproveitamento da acção do vento sobre
o pano.
 A NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS
• veio preencher de maneira lógica e perfeita, tanto
Todas estas coisas se referem aqui, não para e:ml-
tar a pessoa em si, mas única e simplesmente para
justificar a compeMncia do crítico numa especialidade
em que se aprimorou por tendência natural e amor
da profissão e, consequentemente, para ptrr em des-
taque a rara competência do autor dos trabalhos de
investigação e crítica em relação à8 navegações portu-
guesas no tempo dos Descobrimentos, neste volume
coligidos, e a genuinidade indiscutível da sua doutrina
sobre a Náutica dos Descobrimentos.
Outros camaradas de marinha se dedicaram, com
rara competência também, e inestimável proveito para
a história da acção portuguesa no mtramar, ao estudo
dos Descobrimentos Marítimos, entre os quais se des-
tacam os nomes inesquecíveis de Fontoura da Costa,
que, por assim dizer, esgotou o assunto interessantf8-
simo da marinharia dos Descobrimentos no que se
refere ao instrumental náutico e aos processos de
navegar neles seguidos, e Quirino da Fonseca, mais
dedicado ao estudo da arquitectura naval da época,
sem esquecer Morais e Sousa, que já bosquejara, magis-
tralmente, aquela doutrina.
Quanto à náutica, prõpriamente dita, ao traçado
das derrotas seguidas pelos navegadores de antanho
e à crítica, igualmente conjectural, dos conhecimentos
dos ventos e correntes ao tempo em Portugal e ao apro-
veitamento prático daquele instrumental de navegação
e desses conhecimentos, mantinha-se uma lamentável
lacuna, envolta, por vezes, em concepções erradas e
absurdas, arquitectadas por pessoas eruditas mas não
. versadas em navegação à vela, lacuna que o almirante
PREFÁCIO 49
quanto o pode entender um profissional do mar criado
e educado no mesmo ambiente naval.
E essa lacuna era de facto bem difícil de preencher
por falta absoluta de documentação directa e pelos
vícios de origem das informações indirectas. Os cro-
nistas, de uma forma geral, eram excelentes literatos,
homens de saber e de experiência da corte ou da admi-
nistração, mas escreviam por encargo do soberano, a
quem interessava particularmente o segredo dos cami-
nhos seguidos no mar, no sentido da vanglória pessoal
e dos interesses da política nacional, para as novas
terras donde vinham pingues rendimentos para a coroa
e a propaganda adrede orientada e que, por outro lado,
em regra, não percebiam nada de náutica, além das
noções que têm, ou presumem ter, os letrados sobre
todas as artes e sobre todas as ciências, de modo que,
nos seus escritos, nada se encontra, em geral, sobre
as rotas seguidas, a não ser aquele estigma, que foi
sempre característica da mentalidade nacional, do exa-
gero e do absurdo romântico e ingénuo em que as tor-
mentas, a «sola de molho» e outras fantasias do mesmo
género predominam. Aqueles mesmo que participaram
nas primeiras viagens, ou nas que se seguiram imedia-
tamente, fizeram-nas naquela santa ignorância dos
passageiros de todos os tempos, sem ao menos gozarem
já a vantagem do mapa emoldurado numa antepara do
spardeck dos paquetes modernos com a rota riscada a
vermelho e o ponto de cada dia marcado com alfinete
de cabeça preta. Suportavam, com maior ou menor
fortaleza de ânimo, os incómodos e os perigos da via-
gem, admiravam em arroubos de poesia amaneirada
e convencional as belezas do céu e do mar, mas era em
•
50 A NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS
perfeita ignorância, natural ou superiormente deter-
minada, da rota seguida que iam desembarcar e
curar-se do enjoo e da monotonia dos alisados certos ou
dos mares banzeiros dentre os trópicos no porto do
destino. Documentação original não existe. Não há
«diários de navegação», nem livros de derrotas, nem
relatórios autênticos das viagens realizadas que sobre
tal ou tal ponto elucidem. Esses relatórios e diários
desapareceram, consumidos no incêndio da Casa da
India e Mina, ou nunca mesmo foram conservados por
virtude da rigorosa censura que mantinha imperiosa-
mente o segredo contra a concorrência do vizinho, e
eterno rival, que era Castela, e contra as indiscrições
prejudiciais aos interesses da Nação da parte de outros
países marítimos da Europa, alguns dos quais, logo
de princípio, se pretenderam imiscuir no descobrimento
e exploração da rota da Guiné. E que essa defesa se
impunha depreende-se logo do facto de se ter redigido
e subscrito um tratado, precedente para o de Tordesi-
lhas, em que se definiam as «esferas de influência»
entre os dois países dominantes da Península, destinado
a pôr termo à disputa que de longe vinha, a prOpósito
da posse das ilhas Canárias, aonde o próprio Infante
chegou a mandar, por sua conta e risco, navios armados
numa expedição propositadamente organizada para
garantir a sua posse. E para além da Guiné era a India,
a conquista do comércio que enriquecia Veneza e
Génova e uma caterva de mercadores levantinos para
não falar dos Mouros, súbditos do Turco odiento, que
traficavam em exclusivo próprio e do seu soberano,
para além do Mar Vermelho e Golfo Pérsico, como era
bem sabido e notório. Mas o problema estava em lá
chegar por mar, que era o meio mais económico, mais
PREFÁCIO 51
prático e mais afastado do alcance da acção eficaz do
mesmo Turco, de carrear para Lisboa esse comércio
precioso e apetecido, e a sua solução dependia essen-
cialmente dos dados meteorológicos, do conhecimento
dos regimes dos ventos e correntes nas regiões a
transpor, do registo dos perigos de natureza hidrográ-
fica a evitar, do tipo de navios e respectivo aparelho a
adaptar, dos processos de navegação e pilotagem a pôr
em prática que permitissem atingir, de facto, esse
objectivo e fazê-lo pelo caminho mais favorável. Evi-
dentemente, por isso, se tornava legítima a Razão de
Estado que levou à destruição ou guarda a bom recato
de tais diários náuticos ou documentos idênticos e,
no último caso, a sua concentração em arquivo único
sujeito a destruição integral provocada por incêndio
ou terramoto.
Havia ainda a considerar o ciúme e reserva indi-
vidual. Qualquer piloto, como hoje em dia se pode veri-
ficar, reservaria ciosamente para si os conhecimentos
adquiridos na prática, registaria as suas conhecenças
em apontamentos de existência e duração precária, ou
nem mesmo isso faria, guardando-as na memória, então
mais intensa, naqueles tempos da infância da palavra
escrita ou impressa ( 8 ) . O interesse na divulgação de
conhecimentos técnicos pessoais é muito moderno para
que se admita numa época de ética boçal, em que o
privilégio dominava a vida social e profissional. Era
necessário, para vencer nela, tornar-se indispensável,
8
( ) Esta ccaixinha>, como se lhe chama na gíria pro-
fissional nota-se nos roteiros da carreira da índia que mal se
referem 'aos ventos gera.i.s e às r otas de bordada Íarga a con-
torná-los.
52 A NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS
e daí o guardar cioso dos conhecimentos e dos registos
de carácter pessoal. Só mais tarde, quando já não havia
o perigo da concorrência individual entre os pilotos por
virtude da publicação impressa de regimentos, outras
tabelas úteis à navegação, roteiros, cartas marítimas
e compêndios de náutica é que se começaram a divulgar
pela escrita e pela imprensa as derrotas seguidas e os
processos adaptados na navegação.
Esta circunstância torna-se particularmente notá-
vel no único documento de genuinidade comprovada que
nos instrui, por via de uma informação directa, sobre a
primeira viagem de Vasco da Gama à lndia, facto
crucial na senda dos Descobrimentos Marítimos de que,
até ao seu aparecimento, nada ficara que não fossem a
tradição e as narrativas fantasiadas, romanceadas ou
de encomenda dos cronistas. Alvaro Velho, natural do
Barreiro, terra que foi sempre de barqueiros e pesca-
dores do alto, se de facto foi ele o seu autor, descreve
a viagem como o faria o comissário de bordo, o médico
ou capelão dado à curiosidade e às letras, marujo
apenas de embarque e mais nada. Transpõe o oceano
no que pareceria a santa ignorância de um passageiro
bisonho se não fosse aquela indicação das «800 legoas
em mar» que por acaso lhe escapou, e que levou vários
escritores modernos à conjectura e à dúvida mas que
serviu de base, pela sua interpretação luminosa, à
certeza da derrota em duplo arco pelo ocidente, tal-
-qual~ente se pratica hoje em dia. O interesse do
narrador concent·rava-se exclusivamente nos portos
visitados, nas gentes das terras descobertas, na política
específica local. Nem mesmo depois de serem embar-
cados pilotos mouros no Indico ficamos sabendo a
forma como esse oceano foi atravessado, facto que,
PREFÁCIO 53
como todos os outros do mesmo género, esteve sujeito
a conjecturas mais ou menos fantasistas ou indife-
rentes, até que o almirante agora acabou por concluir
que o caminho estava intuitivamente indicado pelo
canal «dos nove graus», tanto mais que sabido é que
os pilotos do Indico de há séculos navegavam pelo
largo com determinações de latitude, elemento que
observavam com a suficiente exactidão e que lhes servia
mesmo até para acertar os portos de destino e traçar
a derrota a seguir para os alcançar. O «diário» nunca
fala em rumos ou sondas, nem por sombras se refere
às estações de astrolábio para determinação da lati-
tude em Santa Helena, nos Bons Sinais, na ilha de Goa
e em Angediva.
Foi para a realização plausível e lógica de tais
conjecturas que ao almirante serviu, além dos seus
talentos e predisposições próprias, a preparação técnica
profissional, no decorrer da qual teve ocasião de cul-
tivar o capítulo da navegação em condições ainda bem
próximas das dominantes na época dos Descobrimentos.
A actividade de investigação histórica do almi-
rante, sob o ponto de vista náutico, em relação aos
Descobrimentos Marítimos no século de Quinhentos
vem de há mais de vinte anos, desde que deixou de se
aplicar aos serviços da sua profissão e aos trabalhos
de geografia e de astronomia no mato, em que fez
escola. Esta fase da sua vida culminou com a aplicação
da competência adquirida, à navegação aeronáutica,
em que realizou qualquer coisa espectacular e brilhante,
além de particularmente utilitária, no período que pre-
cedeu o recurso prático à radiogoniometria. Foi a apli-
cação, no ar, da prática da navegação no mar, bem
diferente do ooo em foguete de Lindbergh, apenas
54 A NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS
ba.~eado na audácia e na reserva de combu..~tível eficaz
para cobrir determinada distância em linha recta a
velocidade capaz de vencer o efeito dos deslocamentos
atmosféricos. Mas essa investigação, no que diz res-
peito à valorização patriótica da prioridade nacional
na descoberta da Terra, teve sempre um objectivo espe-
cífico e determinado de carácter científico: o objectivo
de desfaze?· erros prejudiciais, esclarecer pontos histó-
ricos duvidosos, sem entrar pelo exagero ou por minú-
cias que por vezes prejudicam a te~e e nada acrescentam
à cultura e menos ainda ao prestígio do passado. Com
outros trabalhos contemporâneos, é este o complemento
necessário do que se fez por necessidade premente da
defesa dos interesses nacionais na época da Conferência
de Berlim, na qual, quanto a determinados pormenores,
se deveria ter ficado, deixando na alma nacional o que
nos factos ocorridos houve de heróico mas genuíno,
com prejuízo daqueles que divulgam os aspectos por
vezes lamentáveis que o acompanharam e lhe suce-
deram.
Por isso estes seus trabalhos de investigação e
crítica revestem um carácter de pureza e superioridade
científica, académica e educativa, que mais os valo-
rizam e justificam a sua coordenação e vulgarização
por intermédio do presente estudo e colecta em conjunto
com o fim de organizar e sistematizar uma doutrina
com bases de natureza técnica e formação de carácter
científico.
• aplicado à fama desvirtuada de Colombo, que não se
Revista a biografia do almirante reconhece-se
irrefutàvelmente que, dedicando-se ao estudo dos Des-
PREFÁCIO 55
cobrimentos· e à interpretação náutica das viagens
portuguesas de descobrimento, o faz não apenas com
a autoridade de uma vasta cultura e o vigor que lhe
emprestam as suas excepcionalíssimas faculdades de
trabalho e o sentimento patriótico definido pela signa
do Infante, que o anima, mas também, e principalmente,
sob o ponto de vista concreto e positivo, com o saber
profissional que uma tal interpretação, para ser certa,
exige e impõe. Navegador e antigo oficial de catavento
ele próprio, pioneiro no ar como aqueles que estuda e
cuja actividade pretende pôr a claro o foram no mar,
não merece portanto senão o respeito pelo estudioso e
o acatamento pela sua doutrina náutica da parte de
todos os «navegadores de poltrona e biblioteca» nacio-
nais e estrangeiros, daquém e dalém-mar.
•
Alguém, nos Estados Unidos da América do Norte
-em face das conjecturas formuladas por um prático
da vela e do mar como é indiscutivelmente o almi-
' J
rante, provàvelmente, ou, antes, certamente, movido
pela ignorância própria dessas artes, que não se apren-
dem a conhecer em travessias atlânticas confortáveis
e divertidas a bordo de paquetes modernos a motor,
nem mesmo naquele sport actualmente muito em voga
do romântico navegador solitário, tão apreciado na
página desportiva dos periódicos, ou então pelo despeito
causado pelos golpes justos e certeiros que ele tem
contenta com o encontro por engano dessa maravilha
que se tornou o continente americano, mas usurpa uma
competência náutica original que lhe não pertence de
 A NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS
forma alguma, pois que a recebeu dos navegadores por-
tugueses com quem privou e aprendeu tudo o que sabia
de náutica atlântica-, classificou-o de navegador de
poltrona e biblioteca. :e imbecil tal apreciação e, além
disso, provadamente infundamentada em face do record
naval do autor em navegação à vela, do «clima de água
salgada», em que passou grande parte da sua vida, e
da sua experiência final de uma viagem de cento e cinco
dias pelas zonas das rotas que estudou, de «astrolábio
na mão», em que não fez mais do que honestamente
confirmar a doutrina formulada na sua longa e extensa
experiência profissional.
S de esperar que, prestada mais cuidada atenção ao
homem e à sua obra, agora aqui posta em forma integral
e mais compreensível para os estranhos à vida do mar
e à navegação à vela, justiça lhe seja feita pelos seus
detractores mal humorados, a cegueira columbiana se
desvaneça e o acto do seu herói, inquestionàvelmente
valiosíssimo, se integre no verdadeiro ambiente histó-
rico que lhe pertence, confessando o quanto deveu, para
a sua realização e preparação, à ciência náutica orga-
nizada em termos práticos para as navegações da época
pelos Portugueses, que tão bom e útil gasalho lhe deram
nos tempos que precederam a sua gloriosa viagem, cujo
paralelo com as do Gama e Cabral apenas a faz sobres-
sair pela audácia intimorata e a sorte sem precedentes,
mas não pela ciência própria ou arte de navegar ori-
ginal,, nem mesmo, talvez, pela originalidade da con-
cepção primitiva.
• desgraçadamente não abundam, como seja aquela de
De um passado assim tão rico de actividades no
mar e do seu aproveitamento para o estudo sistemático
PREFÁCIO 57
das navegações de outrora resultou, no espírito do almi-
rante, um Corpo de Doutrina Náutica, baseada em
determinados pontos de vista fundamentais sobre a
navegação antiga e a prática dos Descobrimentos Marí-
timos na era de Quinhentos de que nos parece interes-
sante e útil arquitectar uma súmula geral. Esta foi
revista, em rascunho, pelo próprio almirante, e dos seus
comentários, que não foram utilizados para uma ou
outra correcção ou esclarecimento da matéria, juntam-se
como notas aqueles que seria imperdoável não trans-
crever na íntegra, tal é o seu vigor incisivo e luminoso,
ainda que por vezes se refiram a pormenores que
adiante aparecerão num ou noutro ponto do corpo
da obra.
A história dos Descobrimentos Marítimos tem sido
feita, em regra, ou, antes, conjecturada no que diz
respeito à navegação, por pessoas não versadas na arte
de navegar nem possuídas da ideia da importância que
tal conhecimento assume no sentido de emprestar lógica
e verosimilhança a tais conjecturas.
São exemplos bem frisantes de tal deficiência e
dos seus efeitos prejudiciais, quanto à crítica e apre-
ciação da obra realizada pelos navegadores dos Desco-
brimentos, a interpretação até há pouco corrente da
rota do Gama na sua primeira viagem à lndia, o desco-
brimento dos Açores, a viagem de Cabral, quanto à
escala que fez na costa do Brasil na sua rota batida
para a lndia, e até, em coisas mínimas de acção
essencial na interpretação de textos históricos, que
ingenuamente tomar no sentido de «amainar» o termo
.. «escassear», referindo-se ao vento.
 A NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS

Se o crítico histórico de factos de natureza náu-

tica tivesse alguma vez passado pelo catavento de um
navio de vela7 jamais basearia as suas deduções no dis-
parate, jamais poria a frota da 1ndia7 a seguir a rota
dos paquetes da Companhia Nacional de Navegação (1)
e melhor compreenderia a razão por que Cabral aportou
ao Brasil depois de a hábil diplomacia do tratado de
TorQ,esilhas ter produzido o extraordinário acaso (II)
de o meridiano de pólo a pólo nele fixado cortar a costa
sul-americana em grossa talhada a favor dos navega-
dores da 1ndia7 então mais do que dos interesses impe-
rialistas da coroa portuguesa, dando-lhe a necessária
escala na rota do Cabo, que então7 como agora7 os ventos Lancha ca nh oneira «Loge» (no Congo)
impõem sem remédio nem outro recurso desde a cria-
ção do mar oceano7 e cujo regime não é lícito a quem
saiba qualquer coisa de navegação à vela duvidar que
já fosse conhecido dos Portugueses antes de qualquer
daquelas viagens, após décadas e décadas de prática
de andar no mar na volta da Mina, na volta do
Sargaço ... (III ).

(I) Trata-se do mapa com rota costeira que acompanha

a edição nacional d'«Os Lusíadas», publicada pela Imprensa
N acionai. - G. C.
(II) Depois do tratado de Tordesilhas até os Espanhóis
ficaram desconfiados de que D. João II queria alguma coisa sem
ser água salgada. É de crer que o nosso r ei estava mais que des-
confiado.- G. C.
(III) A viagem de regresso da Guiné pelo largo já era
conhecida em 1446, quando o cescrivam» Tinoco passou dois
meses sem ver terra. O que prova que até os leigos, como ele, já
sabiam que a volta da Mina era rota de regresso, segura e
menos trabalhosa.- G. C.
Canhoneira «Pátria» (em Timor)

O primeiro e o último nav io que o almirante co mando u

 PREFÁCIO 59
Da mesma forma se evitaria o dar crédito às lendas
à sensation dos literatos históricos da época, na sua
maioria artistas das letras cõmodamente instalados em
terra ou meros passageiros mal adaptados ao mar dos
transatlânticos de então, que nos falam, e com efeitos
determinantes, de tempestades nos trópicos, como por
exemplo foi deturpada a «cerraçam» (Cantanhede) na
viagem do Gama, o temporal sofrido por Cabral no
mar de Cabo Verde ... onde nunca os há, a nortada de
Bartolomeu Dias no hemisfério sul, etc., sem contar
aquela história fantástica da tormenta sofrida pela
esquadra do Gama, na sua primeira viagem à lndia, na
volta do Cabo, onde até admite que tivesse chegado a
ter dias de seis horas ( 1V) e do dramático lançamento
ao mar de cartas e astrolábios ...
Exageros literários do género daqueles rque sempre
a literatura explorou para deleite da curiosidade mór-
bida do leitor e que o eterno romance da vida do mar,
estranha e ignorada do vulgo apegado à terra, justifica
e ilustra como o são as fantasias do mar tenebroso,
das trevas para além do Bojador, da água quente, dos
baixios e golfões, das calmarias eternas, dos monstros,
da terra em forma de disco e do abismo que lhe servia
de borda, que nunca ninguém viu mas que se imaginava
haver e que os escritores coevos davam à estampa ou
por convicção ou para explorar o gosto do público.
Evidentemente é de presumir que essas histórias, à

(IV) Trata-se de uma fantasia das «Lendas da índia»,

que alguns historiadores, como Sophus Ruge, aceitaram, apesar
de no Roteiro de V. da Gama se ler claramente que o Cabo
foi passado com bom tempo, embora bordejando uma semana
contra o vento de sueste, ali dominante. - G. C.
 6o . A NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS
parte as que se consubstanciavam na massa confusa de
lendas vindas do crepúsculo da humanidade e criadas
pela imaginação exacerbada nos terrores da ignorância
e da luta com a natureza hostil fossem espalhadas
pelos próprios navegadores das primeiras viagens pela
C08ta da Ãfrica, que numa certa altura a que chegavam
não viam forma de voltarem para trás por os ventos
nessa direcção lhes passarem a ser contrários e não
disporem de recursos para manobrarem os navios de
forma a fazê-los avançar para barlavento (V). O marujo,
como o caçador de feras e o aventureiro em geral cul-
tiva com agrado o palão que lhe engrandece o pre;tígio
e lhe justifica os falhanços. Calcule-se a grandeza
olímpica a que, no meio familiar, na roda de amigos
e no parlatório da Ribeira, não subiria todo aquele que,
sem poder ser contraditado, contava os perigos teme-
rosos a que escapara, as trevas, os abismos, os mons-
tros de que se livrara! (VI).
(V) As velas usadas pelas galés e caravelas, triangulares,
eram como as dos pangaios e como as de outros barcos do Medi-
terrâneo. Permitiam bolinar e ganhar barlavento. Mas contra a
vaga cavada e correntes dominantes na costa africana como
contra as nortadas da costa de Portugal, seria muitas' vezes
impraticável ir ganhando norte, a bordejar. Daqui a necessidade
de verificar se, ao largo, haveria outros ventos. Isso se verificava
na costa de Portugal, onde as nortadas, em geral, não vão a
mais de 100 léguas ao mar. O que aconteceu nas viagens aos
Açores iniciadas em 1431. De resto a possibilidade geral de
ganhar barlavento era, com certeza, conhecida dos nossos pes-
cadores da costa, descendentes dos mareantes mouros e não dos
judeus. - G. C.
(VI) Foi o que aconteceu a Vespúcio, que, nas suas cartas,
mostra acreditar nas lendas que lhe contaram os pilotos, por
ele ser lá nova.to; embora se intitule astrónomo.- G. C.
PREFÁCIO 61
E, ao mesmo tempo, que bela justificação, perante
quem o mandara, do insucesso da jornada, sem refe-
rência talvez à impossibilidade técnica, que seria des-
primoroso confessar. Mas a técnica, maravilhoso sexto
sentido da humanidade, ia ruminando no subconsciente
e a vela latina da caravela acabou por afastar tudo o
que era tenebroso, abrindo à acção dos navegadores
insipientes campo largo para bordejar e para ganhar
barlavento em largas e contínuas singraduras de bolina,
permitindo assim o regresso ao porto de armamento de
qualquer ponto da costa pelo mar largo e, o que é mais
para o interesse do crítico histórico das navegações de
antanho, campo ainda mais largo de experiências de
rotas mais favoráveis e do regime de ventos e correntes
nas diversas partes de mar largo para o navio redondo.
Aprendeu-se tudo isso na navegação a costear o conti-
nente africano e no regresso pelo largo, aprendeu-se
finalmente por um processo que não foi revelação
alguma mas simplesmente o resultado de uma incomen-
surável massa de experiências mínimas e daquele
género de intuição que o marujo adquire na prática da
faina do mar. Ao alcançar o Cabo o regime diferente
de ventos no Atlântico Sul sugeriu a rota intuitiva em
arco pelo ocidente, de modo a aproveitar primeiro 08
gerais do norte e depois os do sul de feição favorável
para o ir dobrar. E esse recurso que Bartolomeu Dias
poosivelmente indicou (VII) e que foi logo aproveitado
(VII) Bartolomeu Dias não sabia se pelo largo da costa
de Africa ·s eria possível ir contornar o vento sueste do Atlântico
Sul. Só veio informar que a rota costeira seria impraticável para
n~us, e sugerir a necessidade de se explorar a possibilidade de
62 A NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS
pelo Gama e por Cabral, nunca mais dei:rou de ser
seguido desde então precisamente à letra e sem desvio
ou correcção sensível até aos tempos áureos nossos
contemporâneos ainda da navegação à vela, sistema-
tizado nos tempos modernos pelas Cartas de Ventos
e Correntes, de Maury, que pràticamente nada vieram
acrescentar ao sentido marítimo dos navegadores de
outrora mas oferecem elementos preciosos de consulta
a quem as saiba ler na crítica das rotas atlânticas dos
navios portugueses dos Descobrimentos. Porque os
ventos e as correntes não mudaram desde então nem
tão-pouco mudaram os princípios fundamentais da arte
de manobrar e de navegar um navio de pano redondo
ou latino.
Nem também aquelas patranhas da terra em disco,
das trevas, do buraco para o inferno eram de acreditar
na mentalidade, por mais tacanha, dos navegadores
da época que se aventuravam para além dos pesqueiros
mais próximos da costa portuguesa. A esfericidade da
Terra não era já ao tempo nenhum mistério e ao
marujo mais boçal certamente impressionava a
maneira como a terra ou outro navio lhe ia surgindo
à vista ou desaparecendo na linha do horizonte, o que
certamente lhe dava mais ideia de uma superfície
côncava, que dificilmente seria de admitir como zim-
o contornar pelo sudoeste, em arco análogo àquele que se pra-
ticava no Atlântico Norte. É natural supor que foi da sequente
exploração, em que talvez Dias ou Dalenquer colaborassem, que
se reconheceu aquela possibilidade. Mas era preciso montar a
terra a sotavento - o Sargaço do Atlântico Sul - , tema que o
tratado de Tordesilhas nos :revela. - G. C.
PREFÁCIO
bório porque em toda a parte o aspecto era o mesmo
mas que de forma alguma daria a ideia de um disco
com um abismo na borda (VIII). Eles não saberiam
aonde ia ter o mar, mas que não acabava em cascata
para as profundas do inferno é que não teriam certa-
mente dúvida alguma. Não haveria uma ideia- bem
definida sobre a existência dos antípodas, mas Afonso,
o Sábio, no seu livro de Astronomia, já se referia à
esfericidade da Terra.
E, quanto ao que se ia buscar, como de resto já
nas primeiras décadas após 1500 António Galvão nos
conta no seu «Tratado dos Descobrimentos», o que se
sabia era muito, o que se sabia entre as classes cultas
e o que certamente corria na lenda e nos contos das
ignaras. O contacto entre o Ocidente e o Oriente e a
lndia jamais se perdera desde tempos recuados da
história e, modernamente em relação à época, além
de missões diplomáticas enviadas a potentados asiá-
ticos que constituíam uma ameaça ou um risco para
(VIII) Isto já fora verificado até no Mediterrâneo. E como
se observara em todas as direcções, concluía-se que a Terra não
era cilíndrica, mas esférica, como aliás o provava a sombra que
a Terra projectava sobre a Lua, nos eclipses. Também se notara
que a vertical continuava normal à superfície terrestre, desapa-
recendo assim o receio de, nos antipodas, a gente ter de andar
de pés para o ar ... Da sua prolongada experiência de navegação
em latitude, já os Portugueses, combinando o caminho norte-sul
navegado com o estimado, tinham conhecido que o grau terrestre
varia entre 17 e 18 léguas marítimas. Colombo não apresenta
base alguma para supor que o grau tivesse s6 1:1 léguas. Trata-se
de uma desculpa com a qual pretendia justificar a sua afirmação
de que a Terr-a era pequena e que a índia ficava perto pelo
ocidente. - G.c.
 A NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS
a Europa, vários viageiros aventurosos, levados pela
curiosidade do desconhecido mas também pela ganância
comercial, percorreram e noticiaram sobre essas terras
longínquas donde as preciosidades vinham caríssimas
'
através dos rapaces intermediários levantinos , e até'
o Cristianismo lá chegara ao tempo com S. Tomé, sob
a forma de uma nova seita oriental, a dos cristãos
nestorianos. E também de várias expedições havia notí-
cia, todas encarreiradas para a lndia. Como nós em
face do negócio pingue de Génova e Veneza, os Fenícios
não viam certamente com bons olhos os lucros adua-
neiros que encheram na época bt'blica a abarrotar os
cofres de Salomão pela passagem através da terra dos
Hebreus das preciosidades vindas dos portos do Oriente
pelo Golfo Pérsico. O célebre périplo não é verosímil,
mas foi provàvelmente tentado e viveu sempre na
memória das gentes (IX). A viagem dramática dos
irmãos Vivaldos ainda bem mais escaldava as imagi-
nações da época, e a do catalão Ferrer também não caíra
no esquecimento. Todos eles iam em busca do caminho
marítimo para a lndia, mas o propósito era tecnica-
mente irrealizável. Com galés de marcha lenta e uma
chusma de remadores a comer e a beber a aventura não
poderia, certamente, acabar em bem (X). '
(IX) A viagem dos Vivaldos, que não puderam voltar, é
que é autêntica. Uma viagem do Mar Vermelho para 0 Mediterrâ-
neo, a contornar a África pelo Sul, é inverosímil. Mas, enquanto
se supôs que a África se não estendia muito para o sul do equador,
era fácil acreditar nela. Hoje não. - G. C.
(X) Nem o almirante Pessanha, contratado s6 para ser-
vir em galés, para combate, pensou em ir aos Açores. S6 lá
fomos à vela, e no tempo do Infante. Hoje é que lá se vai a motor,
até mesmo pelo ar .. . - G. C.
PREFÁCIO
Porque na crítica histórica das navegações de
antanho é imperativo atender, não somente ao regime
dominante dos ventos na zona navegada e na quadra
do ano em que a navegação se fez, mas também aos
recursos materiais de que ao tempo se dispunha para
as levar a cabo.
Quanto aos navios, de princípio, eram as galés. Se
bem que mal pareça, sendo como foi desde as épocas
históricas mais recuadas a vida mediterrânea essen-
cialmente marítima por virtude da forma a dar às suas
comunicações mais fáceis e económicas, da expansão
para outras terras onde se formaram colónias que nunca
perderam o contacto directo por mar com a mãe Pátria,
da actividade militar também fatalmente a desenvol-
ver-se em parte apreciável sobre o teatro de operações
marítimas, pela circunstância geofísica do profundo e
largo recorte e parcelamento das terras banhadas pelo
mar e precisamente onde o progresso e a civilização
humana nunca mais foram excedidas em determinados
aspectos, a galé manteve-se até ao alvorecer dos tempos
modernos com a vela apenas como elemento auxiliar
insipiente. e que o Mediterrdneo é um mar estreito e
fechado e é precisamente mais estreito e fechado quanto
mais penetramos nos seus recessos levantinos. As dis-
tdncias entre as costas recortadas da Grécia e das suas
inúmeras ilhas e as da Asia Menor são curtas e a nave-
gação, costeando em grande parte e com abundantes
surqidouros onde enxurrar os barcos durante o extenso
período que mediou até à invenção da dncora (XI), não
era proibitiva feita a remos, tanto mais que os caprichos
(XI) No Mediterrâneo não havia receio de se perderem!
Havia escalas que os corsários e mercadores conheciam. - G. C.
66 A NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS
meteorológicos momentâneos daquele mar, em regra
ameno, mas que de uma forma geral, então como na
actualidade, fogem ao mais elementar sistema de pre-
visão de tempo, não tornava realmente de apetecer o
uso e o aperfeiçoamento da vela. Foram cgalees» os
barcos que nos trouxe o genovês Pessanha, que nos veio
ensinar, por contrato, a combater no mar mas não a
navegar. No entanto a infiltração da vela no Mediter-
râneo, e, dali para cá do estreito, ao longo da nossa
costa, ia-se dando e, curioso é notar, trazida do próprio
Oriente, que por intermédio dela e do seu mais sábio
aproveitamento se foi buscar. O comércio da lndia e
do Extremo Oriente, incluindo a China e as ilhas do
Indonésia , vinha-se fazendo desde tempos imemoriais
pelo Golfo Pérsico, costa da Arábia pela região do
Aderamaute, donde partiam as estradas do incenso e
do Extremo Oriente , incluindo a China e as ilhas da
«Mohit», colectânea de roteiros seculares no Indico
e nos mares da China e Indonésia, séculos ante-
riores à passagem do Cabo por Vasco da Gama,
e essa navegação, em regra em cascos construí-
dos na lndia, onde a madeira própria abunda, de
que ainda nos resta o pangaio em serviço corrente
trans-índico ao sabor das monções, era feita, em regra,
por pilotos e capitães persas, turcos ou mouros (XII).
Ora sabido é, ou de presunção bem certa, que enquanto
para o mundo ocidental o comunicar com o Oriente e
(XII) Os desenhos antigos, como um que vi e foi publicado
pela primeira vez nos anais do Clube Militar Naval, todos pro-
vam que as velas usadas pelos barcos latinos antigos eram exac-
tamente como aquelas que vemos n os pangaios, embolsadas por
fora das enxárcias e mastros. As betas das suas ostagas ficavam
por entre a ré dos mastros.- G. C.
PREFÁCIO
a lndia directamente era de difícil solução, essas rela-
ções pelo mundo árabe e muçulmano eram correntes e
constantes. Foram eles que trouxeram para o Mediter-
râneo a navegação à vela usada no Indico, e, com ela,
a vela latina, que se tornou de uso clássico no decorrer
dos tempos (Xlll ). Foi dela, segundo o padrão usado
pelos marítimos mouros, que derivaram as das cara-
velas.
As naus redondas usadas ao tempo das primeiras
viagens ultramarinas não eram próprias para velejarem
com ventos que não fossem largos ou, quando de bolina,
muitíssimo próximos do través. Não eram próprias
para bordejar, se bem que, apesar de tudo, conse-
guissem ganhar 10 % de caminho para barlavento e
que se verifique o caso de Vasco da Gama ter bordejado
com elas durante três dias até Santa Helena (XIV).
Mas não eram navios para isso nem para reconheci-
mento costeando, por virtude também do seu calado
excessivo.
As caravelas com aparelho de origem oriental e
adaptação moura- aos olhos sagazes do almirante não
(XIII) Há que distinguir entre a vela chamada latina,
usada antigamente pelos barcos do Mediterrâneo, triangular,
e a vela moderna latina, que é quadrangular, result2do da
amputação da vela triangular, usada agora nos caíques e canoas,
que anda por dentro das enxárcias e que tem a beta da ostaga
por entre avante do mastro.- G. C.
(XIV) As antigas velas quadrangulares permitiam boli-
nar a seis quartas do vento; o abatimento dos cascos curtos
e de formas cheias era de quarta e meia. Total: sete qua1tas
e meia. Aproveitavam, pois o vento, meia quarta, ou seja, um
décimo do caminho. Os navios redondos de hoje braceiam mais e
abatem menos. De modo que os clippers - como eu via a bordo
da cPero d'Alenquer>- aproveitavam 20 por cento.- G. c.
68 A NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS
escapou o pormenor, visível ao profissional em gravuras
coevas, de a ostaga dizer e laborar para vante de forma
a permitir o cambar do lais da amura da verga por
entre a ré do mastro, ao mesmo tempo que o latino
caça por fora da enxárcia, o que mais se apropria à
navegação mais corrente com ventos para ré do tra-
vés -, podiam aproveitar 20 % do caminho andado de
bolina (XV). Eram barcos maneiros, de menor calado
de água, mais manobreiros, próprios portanto para
andar contra o vento em bordadas mais ou menos largas
e para reconhecimentos costeiros ou entre parcéis e
ilhas. As naus o que tinham era maior capacidade de
carga, de armamento e de acomodação para passageiros
e guarnição. O velame da época, influenciado certa-
mente pela moda do Indico, pois que na China ele foi
direito e bem esticado por virtude do seu fabrico em
esteira (XVI) , era enfunado e não plano, como o são as
velas de hoje em dia. Por todos os motivos e porque as
naus constituíam afinal a base utilitária da navegação
de longo curso, não era prático bordejar em viagens
longas. Descobertos os ventos gerais e o seu regime,
primeiro no hemisfério norte, depois no hemisfério sul,
(XV) Eu vi em Moçambique os p angaios, apesar de qun.se
sempre virarem em roda, facilitando assim o cambar da verga,
bordejarem e ganharem barlavento. Até vi eles fazerem cami-
nho bordejando pelo canal rle Dar-es-Salwm, que é bastante
apertado.- G. C.
(XVI) Não esquecer que as velas chinas das lorchas são
esticadas pelos bambus, de modo que se aproximam muito das
velas planas, que são as latinas modernas. Tais barcos frequen-
tavam os portos indianos do Malabar, como aqueles em que se
retirou Marco Polo da China. Mas os mareantes indianOS' nunca
copiaram essas velas, como afinal não copiaram as latinas dos
nossos dias. - G. C.
PREFÁCIO
em viagens sucessivas e sucessivamente mais alongadas
pelo mar dentro e em diferentes épocas do ano, contor-
navam-se esses ventos gerais procurando-se-lhes a feição
favorável e ajustada para mais possivelmente atingir o
ponto de destino em navegação indirecta traçada em
grande arco sobre o mar.
Isso foi-se conseguindo por tentativas sucessivas,
depois do Infante, em cujo tempo a navegação se fazia
toda ao longo da costa, se bem que não fosse ignorada
então a arte de bolinar (xvu ). A necessidade do regresso
fora da vista da costa em conquista de barlavento foi
grande mestra que ensinou a aproveitar e a aper fei-
çoar não só essa arte mas também, em tentativas labo-
riosas e sucessivas, que se prolongaram por um largo
período de tempo, suficientemente largo para ser adqui-
rida a necessária experiência, a prática das voltas
indispensáveis para aproveitar ou contornar os ventos
gerais e os de carácter permanente e regular em cada
época do ano para cada região do mar. Essa experiência
foi-se adquirindo sucessivamente com uma prudência
digna de registo:- o cabo Bojador, em 1434, o de
Boa Esperança, em 1487, com 53 anos (meio século)
de intervalo, até ao encontro da Volta do Cabo, cuja
aproximação escreveu o último capítulo da sabedoria
do regime de ventos do Atlântico no que dizia respeito
à banda de cá do continente africano. Quanto ao Indico
e ao seu regime metódico e pendular das monções, as
(XVII) É certo que, quando o Infante começou, a navegação
era toda costeira. Mas desde que, em 1431, fomos aos Açores,
começou-se a r econhecer que a viagem larga, em arco, ou indi-
recta, era praticável e, sempre, sem o penoso e demorado tra-
balho de bordejar, cambando as vergas. - G. C.
70 A NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS
rotas de muito longe trabalhadas pelos pilotos persas,
turcos, indiarws e árabes} desde o Mar Vermelho e o
Golfo Pérsico até Sofala e Madagáscar até Ceilão a
Samatra} às Molucas} às costas da I:UWchina e J da
China (XVIII)} era tudo já bem do conhecimento dos
responsáveis portugueses pelas navegações por inter-
médio dos enviados especiais que foram, por terra} até
Calecute.
E, quanto às voltas a que o regime de ventos
no Atlântico obrigava para romper caminho nas
viagens de regresso e nas de ida de rota batida para a
zona do cabo de Boa Esperança} no decorrer das quais
fora"': encontradas as ilhas de Cabo Verde} os Açores
e ma'I.S tarde as ilhas de Tristão da Cunha e povoados
os Açores logo de seguida} por que não ad~itir o conhe-
cimento da costa do Brasil antes de 1500 cuidadosa-
mente guardado o necessário sigilo até à ho~a favorável
da sua revelaçãoY Por que não admitir que a rota tão
sàbiamente traçada da primeira viagem do Gama com
um repiquete à Serra Leoa, de maneira} que muito
parece intencional, a não se deixar ensacar na costa ao
norte do cabo de S. Roque, o que fatalmente sucederia
se deitasse para lá directamente de Santiago de Cabo
Verde, não sugere, além do conhecimento do regime de
ventos no Atlântico Sul, o da existência de uma terra
em pro jecção para o mar sobre o Oriente a interpor-se
no caminho dessa rota Y A última redacção do tratado
( XVIII) N- . .
ao esqueçamos que os Chmeses eram antiquís-
simos homens do mar. O barco é para eles o seu «Home~. Lá se
geram, lá nascem, casam e morrem. O que ainda agora vemos
nos barcos de catraiar das tancareiras de Macau. Foi em barcos
chinas que Marco Polo contornou a índia, indo a Calecute e a
Ormuz.-G. C.
PREFÁCIO 71
de Tordesilhas não sugere a salvaguarda dessas terras,
não pelo que valiam em si} mas como escala necessária
para o prosseguimento económico e seguro na rota da
lndia} para a qual oferecia o necessário porto de escala
e reaprovisionamento de mantimentos e de aguada}
sendo como era a lndia a preocupação dominante} e a
vontade de distrair o concorrente espanhol, evidente-
mente obcecante Y
Não será também defensável a hipótese de que
Colombo, quando se deitou à cega aventura de navegar
para oeste, em busca da lndia} fosse levado pelo conhe-
cimento da existência de terras próximas que acaso
tivesse surpreendido aos Portugueses durante o largo
tempo que aqui serviu? (XIX). Os rumos seguidos na
sua segunda viagem assim levam a crer e a certeza
em que dizem ter morrido de haver encontrado a
índia nas Antilhas bem podia ser fingida para
não confessar o fracasso da sua expedição quanto
ao objectivo oficialmente prescrito. De resto o
exame, mesmo superficial, do mapa de Tosca-
nelli (XX) J então de conhecimento geral entre os
(XIX) Colombo sabia, tão bem como os aventureiros por-
tugueses que talvez já tivessem ido às terras ocidentais antes
dele,, que de lá iam dar aos Açores r estos de vegetais que não
eram conhecidos dos Europeus.- G. C.
(XX) Há que distinguir entre o m apa de Toscanelli,
reconstituído segundo o Globo de Behaim e, portanto, tão falso
como o globo, e o mapa autêntico do mesmo T oscanelli, encon-
trado há poucos anos em Itália pelo professor Crinó. Neste
último mapa, Portugal dista da costa da China pelo oriente,
dois quintos da volta completa e, é claro, uns três quintos pelo
ocidente. Ver o que a este respeito escrevi, h á alguns anos,
no semanário «Arquivo Nacional>. - G. C.
72 A NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS
técnicos da política e da navegação coevos, bem mos-
trava, medido à mão travessa, que a lndia, buscada pelo
ocidente, não podia de forma alguma estar da Penín-
sula à distância percorrida por ele na travessia a
direito do Atlântico.
Ora o que é facto é que, com o Infante, se iniciou
uma preparação sistemática para a viagem do mar
largo, quer criando a caravela segundo modelo dos
barcos de pesca dos Mouros, quer adaptando o astrolábio
ao uso do mar, simplificando-o. Do astrolábio havia a
experiência em terra para observações com o Sol e a
estrela do Norte, mas chegara-se à conclusão de que o
Sol era preferível para o mar, ficando as estrelas para
o uso em terra e para orientação geral. De princípio o
astrolábio no mar só foi empregado com o Sol. A Polar
servia mais particularmente para determinar a variação
da agulha magnética (XXI).
Entretanto, o grupo de cientistas reunidos em
Sagres pelo Infante realizava trabalhos de gabinete,
(XXI) Notemos que, do Diário de Colombo, só se conclui
que os seus pilotos, tendo marcado a estrela Norte, apenas
repararam que as agulhas já não nordestavam, como na Penín-
sula, mas tinham passado a noroestar, meia quarta, quando cem
léguas para além do meridiano dos Açores. Não há notícia de
eles se terem servido do astrolábio no mar. Nem mesmo em terra.
Tanto do Diário de Colombo, como do mapa do piloto La Cosa,
datado de 1500, conclui-se que supunham Cuba situada na
mesma latitude da P enínsula Ibérica - com cel Norte tan alto
como en Castilla» - , declaração esta que prova que as suas
latitudes não resultavam de observações astronómicas, mas só de
estimarem o caminho como se as agulhas sempre tivessem
nOTdestado. Assim, erravam umas duzentas léguas em lati-
tude.-G. C.
PRE FÁCIO 73
de alta importância. Ali se efectuavam trocas de
impressões com os mareantes experientes, no seu
regresso do mar, se estudava a navegação em latitude
pelo largo, se organizavam os necessários Regimentos
da Polar e do Sol (XXII). O manual de Mestre Jácome
de Maiorca ensinava a construir os instrumentos e expli-
cava o seu uso, ao mesmo tempo que se construíam
cartas com o norte verdadeiro, que é o que joga com
a latitude.
Ao mesmo tempo os caravelistas do Infante, depois
de adaptado e melhorado o aparelho mouro já empre-
gado à bolina, mas agora em cascos de maior porte,
navegando em várias estações do ano, iam estudando os
ventos gerais nas suas várias modalidades e dando
forma definitiva à caravela portuguesa, elemento a que
o mundo deve em grande parte que lhe pudessem ser
dados novos mundos.
No entanto, quanto à navegação astronómica, e à
medida que as bordadas pelo largo, as voltas, se iam
desenvolvendo em amplitude e em penetração para o
sul, ao Regimento da Polar e do Sol acrescentava-se
o do Cruzeiro.
Restava o problema das longitudes, que havia de
le'Var séculos a resolver, mas que não era tão estranho
na prática corrente que a implantação de limites de
esferas de influência no tratado de Tordesilhas não
tivesse como base um meridiano que haveria até que
(XXII) í: assim mesmo. Não existiu uma Escola Náutica
de Sagres, mas apenas reunião de cientistas com homens do mar.
Naturalmente, estes últimos lá teriam aprendido o fácil uso do
astrolábio com o Sol. E teriam reconhecido a contingência das
observações da estrela do Norte, mesmo sem balanço. - G. c.
74 A NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS
assinalar nas terras por sobre as quais passasse por meio
de marcos, como se faz modernamente em qualquer
fronteira e segundo a mesma base geográfica. Para
essas havia o recurso primitivo da estima pelo rumo e
distância navegada, ou, mais correctamente, depois de
dispor do astrolábio e do Regimento do Sol e da Polar,
pela latitude e rumo verdadeiro. São processos intui-
tivos e adequados ao instrumental e aos conhecimentos
astronómicos e geográficos da época.
Contudo, o grande auxílio veio do astrolábio, que
tanto podia ser de latão como de pau, como era um dos
que levou F. de Magalhães, muito apropriado para as
observações em terra destinadas a determinar a posição
das terras encontradas (XXIII).
A primeira viagem «engolfando pelo pego do mar»
foi aquela que levou aos Açores em 1431, com mares
tempestuosos. Na passagem do Bojador, em 1434, já se
navegou pela certa, apesar dos ventos e correntes. Passa-
ram a ser rotina normal os regressos pelo mar largo
por virtude do conhecimento sucessivo dos ventos
gerais, dos ventos dominantes do Nordeste e as viagens
«direitamente» de Zurara (XXIV). As ilhas de Cabo
(XXIII) Dos documentos publicados conclui-se que Magar
lhães levava, <além de vários quadrantes, seis astrolábios de
metal e um <astrolábio de palo», só para uso em terra, como
aquele de que se serviam os Portugueses. - G. C.
(XXIV) É possível que algumas vezes o regresso da Guiné
tivesse sido feito pela costa, aproveitando terrais, viração, reves-
sas da corrente, e fundeando por vezes junto à costa. Mas isto
era por demais trabalhoso, como é fácil de compreender a quem
tenha navegado por própria conta e não em paquete. De modo
que o caso geral seria a vinda, descansada e segura, pelo largo,
volta que, segundo o cronista Resende, D. João li pretendia
conservar em grande segredo.- G. C.
PREFÁCIO 75
Verde, a 100 léguas da costa~ foram descobertas por
Diogo Gomes~ em viagem de regresso. A volta larga da
Mina com navios de pano quadrangular~ muito menos
chegado ao vento do que o latino, foi uma revelação e
com ela surge de jacto o conhecimento dos gerais no
Atlântico Sul. Não foi Colombo de forma alguma o
primeiro navegador cau long cours:., como há quem
pretenda afirmar.
E~ ao ponto de vista do almirante~ acrescentaremos,
como comentário favorável, que Colombo deve apenas
a sua aura ao facto de ter revelado ao mundo, tomado
de espanto~ terras completamente desconhecidas, cuja
existência nem por sombras era sonhada pelo homem-da-
-rua europeu e que mais tarde se revelaram fascinantes
de pitoresco e riqueza, terras cujo conhecimento os
Portugueses possivelmente já tinham pelas suas siste-
máticas e progressivas navegações «au long cours» e
descobrimentos atlânticos no sentido do ocidente em
locais onde indícios vulgares na água e no céu estavam
mesmo a dizer a qualquer marítimo insipiente que ali
perto, mais para o ocidente, havia terra mas que manho-
samente ocultavam na sua obcecação de guardar bem
para si a verdadeira lndia e os caminhos «direitos» que
lá haviam de levar (XXV). Porque (permita-se-nos alon-
gar um pouco mais este interlúdio) o que caracteriza
o mérito das expedições marítimas dos Portugueses é
a sua preparação sistemática e preconcebida, sem a
preocupação do espalhafato mas apenas a do seu apro-
(XXV) Desde 1453, vanos aventureiros portugueses pre-
tendiam lá ir, o que é comprovado pelos alvarás ainda exis-
tentes.- G. C.
 A NÁ UTICA DOS DESCOBRIMENTOS
ueitamento prático, depois de levadas a bom êxito, o
feitio mais de reconhecimento de terras e de caminhos
cuja existência era já mais que conhecida do que pro-
priamente de descobrimento, regulado pelo acaso e
pela sorte que tanto fere e exalta as imaginações do
vulgo, sempre à espera do maravilhoso e desdenhoso
da realidade prosaica. Descobriram os Portugueses, de
facto, no seu velejar pelo mar alto em busca de caminhos
que melhor se'T"VÍ8sem o seu propósito, os arquipélagos
dos Açores e Cabo Verde, mas o que lhes interessava
era fazer o reconhecimento das Guinés, de que o Infante,
além de outras fontes de informação, ouvira falar em
Marrocos, quando lá esteve, donde já desde séculos,
como ainda hoje, faziam para lá as suas viagens de
catequização maometana e negócio através do deserto,
e -principalmente - da lndia, aonde se dizia que os
Fenícios tinham querido ir, pela volta do cabo de Africa,
em cujo caminho os irmãos Vivaldo pereceram tràgica-
mente, de que os Marco Polo contavam maravilhas
pormenorizadas e onde se sabia que 8. Tomé fora pregar
e catequizar, a lndia, que depois de ter alimentado o
fausto do Salomão das escrituras enriquecia as cidades
maritimas da península italiana e, com elas, uma horda
inumerável de intermediários levantinos. Colombo, de
facto, descobriu, os Portugueses reconheceram, reve-
laram os meios de alcançar econômicamente o que já
era conhecido, como igualmente aconteceu com Maga-
lhães, que em busca de uma réplica a esse caminho
pelo sudoeste não fez mais do que ir ao encontro do
seu. amigo Ferrão, ao tempo e de há muito estabelecido
t1a8 Molucas, que ali o esperava por via de um caminho
PREFÁCIO 77
possivelmente mais curto mas na certeza certa de que
a Terra é redonda (XXVI).
•
Feita esta distinção, que nos parece essencial e
característica do aspecto nacional dos Descobrimentos,
prossigamos na análise e comentário da doutrina náutica
que sobre eles o almirante professa.
Nessas viagens sistemáticas a contornar os gerais
do nordeste, o alisado do nordeste, à feição das cara-
velas e também das naus que representavam a parte
utilitária do armamento marítimo da época, foi encon-
trado em 1436 o mar do Sargaço cxxvn), rota que de
todo o sempre e desde então se tem seguido e que
ainda hoje é a que segue quem navega à vela no
Atldntico com o mesmo destino. São 400 léguas da
costa de Africa até lá, a meia largura do Atldntico
( 40 graus W Gr.). Não foi preciso realmente para isso
(XXVI) Não é fácil saber-se verdadeiramente o que pre-
tendia F. de Magalhães. Ele não ignorava que as Molucas esta-
vam perto do equador, mas é certo que, ao aproximar-se delas,
cortara para noroeste, buscando uma latitude cerca de 13 graus
norte. Assim, foi dar às Filipinas. Se a partir de meados de
Fevereiro de 1521, ainda a um milhar de léguas das Molucas.
não tivesse rumado deliberadamente para noroeste, teria ido
descobrir a Nova Guiné. Pelo seu contrato ele t inha direito à
participação nas ilhas que descobrisse. Tal era o seu interesse,
de preferência a chegar às Molucas ou a dar a volta ao
Mundo.- G. c.
O Mar do Sargaço já aparece no mapa de
Bianco, datado de 1436, que eu vi em Veneza, e está publi-
cado: é o chamado cMar de baga». - G. C.
 A NÁUTICA DOS D ESCOBRJMENTOS
recorrer à8 caravelas e ficou em plena e:ristência a
e:x;pressão simbólica de Volta da Mina ou Volta do
Sargaço (xxvrrr).
O conhecimento final do regime de ventos no
Atlântico Sul veio com a viagem de Bartolomeu Dias
ao dobrar pela primeira vez o Cabo. Segundo a norma
seguida nas viagens de reconhecimento ao longo da
costa e no prosseguimento do trabalho realizado por
Diogo Cão até 22 graus de latitude sul, para além dos
quais se viu que a Terra continuava ainda, largou em
1486 apenas com duas caravelas e uma naveta que
deixou em Angra. Pequena, continuou a costear só com
as caravelas até 30 graus de latitude sul, e o vento
persistente do SSE obriga-o a meter na volta do mar.
Assim, foi provàvelmente pelo sudoeste dentro até onde
começam a sentir-se os gerais do oeste. Deitou-se então
na bordada da terra e depois em direcção ao norte, para
concluir que a A/rica acabara ali. Estava-lhe aberto o
caminho da lndia do Rio do Infante para NE, mas o
cansaço das tripulações e as correntes contrárias, cuja
violência ainda é a preocupação, naquelas paragens, dos
navegadores da actualidade, os de navios a motor pelos
atrasos e consumo de combustível resultante, os de
navios de vela, que acaso ainda andam no mar, pela
dificuldade de romper caminho para o norte em certas
zonas do percurso perto da costa como Bartolomeu
Dias naturalmente pretendia navegar, certamente o
(XXVIII) Volta do Sargaço é a expressão que se lê n a
c:Etiópia Oriental>. Nas c:Sendas da índia», escritas cerca
de 1520, lê-se que V. da Gama, em 1499, encontra, antes de
chegar aos Açores, c:huns limos ruivos>, tendo a c:folha como
çaragaço:..- G. C.
PREFÁCIO 79
obrigaram a retirar, tanto mais que levava de regresso
à Pátria a notícia mais importante - que era a da pos-
sibilidade de ir à lndia por mar. Do Cabo a Sofala eram
apenas umas centenas de léguas e depois dali os prá-
ticos do Indico levariam qualquer frota a Calecute.
Voltou depois de ter sentido as águas quentes, vindas
de entre os trópicos, na rota da lndia, mas trazendo
consigo a noção precisa da e:ristência de ventos favo-
ráveis para ganhar Leste desde umas trezentas léguas
a oeste do Cabo até São Brás e a informação de que pelo
seu caminho não passariam fàcilmente as naus. Daí,
naturalmente, a sugestão da volta de Oeste seguida pelo
Gama. que consigo levou Pêro de Alenquer como piloto.
Da prudência com que se caminhou para sul-
Bojador em 1434, Cabo em 1487, 53 anos (meio sé-
culo) -resulta o objectivo de investigar a possibi-
lidade de passar por SW, apesar de ventos e terras
(estas pelo menos suspeitadas desde 1494).
Na viagem do Gama seria mais praticável ir na
volta do mar partindo da Mina, em cuja volta se conhe-
cia o regime dos ventos, mas isso não se fez porque
havia melhor. Ter-se-ia feito se se seguisse à aventura,
ou então rumaria ao S ao largar de Santiago e ia parar
ao Amazonas. A viagem foi precedida de um reconhe-
cimento que concorreu para a demorar de 10 anos e só
depois dele concluído é que se construíram as duas naus ·.
adequadas- a «Gabriel» e a «Rafael».
A viagem do Gama foi planeada em rota especial:
- bordada a leste. acompanhando Bartolomeu Dias até
à Mina, ir com su1l (vento), rumando para sudoeste.
Levou naus e não caravelas, que se impunham se fosse
em viagem de reconhecimento.
8o A NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS

A viagem do Gama não foi de aventura. Foi defini-

tiva e acabou por levar à lndia, após décadas e décadas
de preparação técnica e experiências pelo mar. Colombo
nunca lá chegou. Foi à aventura, menos quanto à
técnica náutica aprendida na mesma escola.
H ouve tentativas de viagens particulares às terras
suspeitadas do Ocidente, mas com resultados precários,
como foram as viagens dos Corte-Reais, que nunca
pretenderam ir à lndia. Teriam como sequência a des-
coberta da Terra Nova, da Groenlândia, da Florida.
No mapa de Cantino aparece nomenclatura portuguesa.
Do que fizeram os Corte-Reais só se sabe o que foi para
a Itália. Não se pensava então que fosse fácil ir por
aquele lado à lndia. O mapa de Cantina considera a
Groenlândia «parte da Asia», passando por cima do
pÓlo (XXIX) •
Quando foi do descobrimento do Brasil, Cabral
conhecia uma rota diferente da seguida pelo Gama,
porque ia no Inverno e não no Verão, como aquele fora.
Navegou direito a sul até ao equador; quando o vento
se tornou escasso e ao mesmo tempo fraco, guinou para

(XXIX) O mapa de Cantino (1502) apresenta claramente

a Gro~nlândia como descobrimento português. Na sua parte sul
lê-se na carta a nota: c:se crê ser esta a ponta dasia~. A terra
viria do Norte, ligada à Sibéria conhecida, por sobre o pólo.
Mas não há a mínima indicação de que os Portugueses jul-
gassem que a outra terra situada mais a oeste fosse também
Ásia. É a nascente da Groenlândia, onde de facto existe Ásia,
A bordo do «Serpa Pinto» (1950)
que se lê a inscrição: c:parte de Asia~.- G. C.
Comparando as observ ações do Sol por meio do astrolábio
com as do sextante moderno
 PREFÁCIO 81

BW e não para BE, conforme as tnstruções. Montou a

parte mai8 perigosa da costa do Brasil sem a ver (xxx ).
Da viagem de circum-navegação dos navios de F. de
Magalhães não resultou a medida da Terra. Essa via-
gem, além de única, fot irregular. Também não fot
Colombo nem ninguém que mediu o meridiano. Foram
muitos mareantes portugueses, que, pela repetição das
viagens sucessivas, concluíram que o grau tinha 11,5
léguas marítimas, sendo o raio da Terra equivalente a
um milhar delas. (Grau equivalente a 11,46 léguas).
A primeira viagem de que possuímos um diário
náutico regular fot a de D. João de Castro (1538)~
Refere-se aos processos antigos e aos modernos em uso.
Faz uma minuciosa determinação da variação da agu-
lha, mas é difícil traçar a sua rota numa carta moderna.
Colombo, como se di8se, deveu, a nosso ver, a fama
que o seu nome desfruta ao facto de ter esbarrado,
num hipotético caminho para a lndia por ocidente,
com terras de cuja exi8tência ninguém no Mundo sus-
peitava sequer, facto que encheu a Espanha, ao tt rtpo,
de orgulho e sati8fação e, nos tempos modernos, mo-
cionou o velho mundo em progressão crescente por
virtude da importdncia que esses territórios assumiram
no conjunto social, político e econ6mic0, precedida da
vibração que ainda perdura nos espíritos, provocada
em épocas sucessivas pelo romance dos Portugueses no

(XXX) O mesmo fez v. da Gama em 1497: mas como sabia

que entre a ilha de Santiago e o equador iria encontrar o vento
do sul da monção do Verão, ele foi tomar barlavento à Serra Leoa
para ficar seguro de montar, também, a parte da costa do Brasil
que ia mais a leste, ou, contra o vento a costa entre os cabos
São Roque e Santo Agostinho. Este é qu: era o Sargaço do Atlân-
tico Sul... - G. C.
6
82 . A NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS
Brasil, a tragédia brutal dos Espanhóis no Centro e
no Sul do novo continente e o drama pungente e gran-
dioso da colonização e metamorfose do Norte em nações
modernas.
O almirante tem igualmente, a respeito de
Colombo, a sua doutrina em oposição a muitas afir-
mações correntes absolutamente injustificadas e, em
regra, resultantes de um quase fetichismo pelo nome
do herói (XXXI).
A doutrina náutica dos Descobrimentos, que serve
de base a todos os estudos do almirante sobre a maté-
ria, assenta, afinal, no seguinte princípio elementar:
« •.• as viagens de descobrimento, seja das ilhas, do con-
tinente americano, ou do caminho marítimo para a
lndia, foram realizadas em navios de vela, dependentes
das rotas oceânicas que aos navios impõem os ventos
gerais, tanto no passado como actualmente aos nossos
veleiros.» ('G aspar Corte-Real, Julho 33) « ... para
estt lar as viagens de descobrimento temos que nos
imc 1inar dentro delas, dispondo apenas dos recursos
da Jpoca.» (Idem).
(XXXI) Nada justifica a sério a crença dos «colombianos ~
em que Colombo foi o primeiro navegador c:au long cours». Logo
em urna única viagem ele não poderia, de golpe, ter descoberto
os ventos gerais do Atlântico. Até já li que Colombo descobriu
c:el fenómeno no menos importante dei movirniento diurno della
estrella Polan! Como tão-pouco é crível que ele ao atingir, com
um milhar de léguas de navegação para ocidente, umas ilhas- as
Antilhas, a que chamou lndias- se julgasse de facto em terras
asiáticas.- G. C.
PREFÁCIO
•
A obra do almirante encontra-se dispersa por um
grande número de artigos de revistas e diários da
imprensa portuguesa e brasileira e, bem assim, por
conferências proferidas em diferentes agremiações
culturais ou alocuções em solenidades destinadas a
comemorar ·feitos da nossa história marítima, além de
outros trabalhos ou simples notas inéditas que é dever
aproveitar pelos ensinamentos e pontos de vista origi-
nais que encerram. Desta forma de publicidade resulta,
como é natural, o defeito inevitável da repetição ou da
maneira por vezes demasiado subjectiva, talvez menos
adequadas a uma obra de tomo em que, para compreen-
são da doutrina que envolve, indispensável se torna a
unidade e sequência lógica e natural. Por isso a sua
colecta se torna operação particularmente espinhosa e
cheia de riscos, entre os quais avulta como fundamental
o de desvirtuar uma ideia ou opinião essencial ou o de
truncar ou deixar incompleta determinada teoria.
Uma e outra coisa procurará evitar a todo o custo
o coordenador, cuja única vantagem é compreender e
estimar o trabalho, as ideias e doutrina a que vai dar
corpo e forma e, além disso, o seu autor, o que, para o
caso, tem feição de vantagem de maior valia.
Por uma questão de método e sistematização
começamos por dividir o quadro da exposição em partes
definidas, nas quais cada um dos elementos se integre
como capítulo específico e elo necessário para a conso-
lidação da estrutura total.
De entrada apresentam-se plaquettes concisas e
lapidares pronunciadas pelo almirante em determina-
das ocasiões, as quais sintetizam uma ideia específica
 A NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS PREFÁCIO

e ao mesmo tempo ilustram o espírito de entusiasmo pertence a um modesto discípulo, com a consciência
e devoção patriótica que a animam. Tais são aquelas plena das suas limitações, que apenas aceita a função
que se referem, uma ao Infante D. Henrique, o grande amiga de coordenar, deixando aquela ao cuidado dum
espírito que acendeu e manteve acesa por tempos além mestre, par do autor.
o fogo sagrado de combustão profunda e lenta que levou A arrumação do texto põe completamente de lado
à progressão metódica e prudente de uma expansão a ordem cronológica da publicação anterior das suas
oceânica baseada no estudo da Arte Náutica e da obser- partes, ordem que se ignora por completo para haver
vação e experiência do ambiente dos ventos e correntes apenas a preocupação da sequência lógica e natural das
marítimas em que teria que pôr em prática a.<~ suas noções a coordenar em corpo de doutrina. Primeiro a
regras escolásticas, e outra que define o significado forma de localização dos mareantes no mar alto -
patriótico da palavra equador, como fronteira entre determinação do ponto no mar-, depois o estudo do
dois hemisférios, pela primeira vez cortada por velas regime dos ventos e dos processos de navegação seguidos
e asas portuguesas em rotas dirigidas pelas normas em conformidade e, por fim, os resultados da aplicação
da Astronomia Náutica. de uma e de outra coisa nas viagens levadas a cabo,
traçadas agora as rotas respectivas à luz de uma dou-
Segue-se o texto da obra, com o título «A Náutica trina sistemática e de alicerces firmes.
dos Descobrimentos», que compreende oito capítulos,
a saber: I - A técnica na Náutica dos Descobrimentos,·
11- A escola do Mar Largo- Atlântico e Costa CoMANDANTE MOURA BRAZ
de África,· Il i - América,· IV -lndia,· V- Brasil,·
VI- América do Norte,· V l i - Passagem do BW,·
Vlll- Austrália. O texto é completado com uma série
de notas, em número de Xlll, destinadas ao esclare-
cimento ou desenvolvimento de determinados pontos.
Como apêndice, não porque caibam propriamente
dentro do título da obra, mas porque ajudam a definir
a personalidade descrita a traços largos no prefácio
- e seria pena perderem-se por virtude dos ensinamen-
tos que encerram - , incluem-se ainda dois artigos
isolados, um sobre a viagem de Lacerda de Almeida,
outro contendo notas de travessias da Africa.
Têm estes trabalhos do almirante jus à discussão,
à crítica e ao comentário erudito, mas tal função não
ABERTURA

Infante Dom Henrique

O Monumento do nhéu àa8 Rola8
 INFANTE DOM HENRIQUE
(1394-1460)

Depms de, em 1415, apenas com 21 anos de idade,

ter oombatido na conquista de Ceuta, D. Henrique
passou a preocupar-se com o descobrimento de cami-
nhos para a Guiné e India, só por mar, obra esta que,
quer pelo lado cristão, como pelo comercial, tanto inte-
ressava a Portugal e a todos os povos.
Naquela época a navegação não passava para o
sul das Canárias nem ia ao mar largo, chamado Mar
Tenebroso.
Para criar a nova navegação, teve o Infante de
convocar homens práticos, com quem foi estudada a
adaptação de navios, de instrumentos e de mapas, a
fim de, no alto mar, se poderem orientar por observa-
ções astronômicas. Foi com estes elementos que, nave-
gando ao largo, se foram descobrir os ventos gerais do
Atlântico, reconhecendo-se que eles permitiam tanto as
viagens de ida para o sudoeste, como a volta pelo
largo, contornando-se a região daqueles ventos, então
contrários. O mar _precedeu as terras.
 ABE RT U R A INF ANTE DOM H ENRIQUE 9I

Como se vê, as viagens portuguesas de descobri- brimento dos caminhos marítimos para a Guiné, para
mento não foram tentadas ao acaso - a acertar- pois a lndia, para a América e , enfim, pelo oceano Pacífico,
tiveram, a par da inevitável audácia dos mareantes, para a Asia.
uma prévia preparação científica.
Mercê da intervenção do Infante, sucessivamente
os Portugueses foram devassando o alto mar: chegaram Lisboa - MCMXL - Agosto
à Madeira em 1418, aos Açores em 1431, passaram além
do Bojador em 1434 e descc>briram a Guiné em 1444.
Cortámos o equador em 1470, enrtrlámos no grande rio
Zaire em 1484, dobrámos o cabo de Boa E sperança em GAGO COUTINHO
Presidente da Comissão Infante D. Henrique, da Sociedade de Geografia de Lisboa
1488, tendo Vasco da Gama chegado à lndia em 1498
e Pedro Alvares Cabral ao Brasil em 1500. Já antes, em
1492, Colombo -que com os Portugueses aprendera
a navegar- tinha atingido as Antilhas, e também
Corte-Real chegara ao continente norte-americano
muito antes de 1500. Finalmente, em 1521, Fernão de
Magalhães, navegando para ocidente, atingira as Fili-
pinas, na Asia.
Tudo isto resultou do esforço do Infante, cuja inter-
venção pernritira inventar a navegação de a~to mar.

Esta actuação nacional, iniciada pelo Infante

D. Henrique, será vulgarizada no futuro monumento a
erig,i r na ponta de Portugal, que é a península de
Sagres, constituindo um registo simbólico da inter-
venção portuguesa na abertura de todos os oceanos à
Navegação e Expansão Europeias. Ali, um mapa esque-
mático de toda a Terra traduzirá a evolução do Desco-
 O MONUMENTO DO ILHSU DAS ROLAS (1)

Este pequeno monumento não regista apenas a

passagem do equador por aqui. Eile, concretamente,
significa que nesta ilha se procedeu a uma sequência
de operações geométricas de precisão. Porque a defi-
nição deste ponto representa trabalho mais complexo
do que aquilo que alguns poderão supor.
Certo, à primeira vista, julgar-se-á que bastaria
observar a latitude de um ponto destas proximidades
- digamos neste ilhéu das Rolas - , reduzi-la a metros,
marcá-los no terreno para norte ou para sul, e esta-
riamos na latitude zero, isto é, no equador, conforme
1

ele se deduzia dessas observações astronómicas locais.

Mas um tal equador diferiria quase um quilómetro do
equador rea:l, ou seja daquele circulo único segundo o
qual a Terra é cortada pelo plano que a divide nos seus
dois hemisférios: o norte e o sul.

(1) Discurso que o Sr. Almirante Gago Coutinho devia

pronun~iar n a cerimónia do lançamento da primeira pedra do
«P adrão de Gago Coutinho», cerimónia que não se chegou a
realizar, por motivos de força maior. O original-autógrafo deste
discurso será depositado na Torre do Tombo.
~----------------------------------~----------------------~--------------------------------------~~--~~--------- ----------
94 AB E RTURA
Para conhecermos, com mais propriedade, quais os
pontos destas ilhas cortados por esse círculo máximo,
não bastaria a operação simplista a que me referi, a
observação astronômica local. Porque as observações
astronômicas dependem dos níveis dos instrumentos,
os quais obedecem à vertical local. Ora esta direcção
do fio do prumo, devido à irregularidade das monta-
nhas, está geralmente muito errada: aqui pende muito
para o norte, noutros lugares para o sut
Assim, é preciso proceder a uma série de determi-
nações de latitude, em vários pontos das ilhas, ligados
entre si, para se conhecer por onde passa aquele plano
geral do equador, que ·c orta toda a África, como o
Atlântico e a América, vindo completar a sua volta à
esfera terrestre pelo oceano Pacífico e pelo Indico.
Essas determinações geométricas das quais resul-
tou o conhecimento aproximado dos pontos segundo os
quais aquele equador geodésico, ou abs01luto, corta esta
dependência da ilha de S. Tomé, passando por este
marco -exigiram, portanto, determinações da latitude
astronômica em cerca de uma dezena de estações, exigi-
ram a medição de duas bases de precisão, a flios de
invar, e, enfim, várias outras operações geodésicas
em ~cerca de meio ·c ento de vértices. Foi trabalho que
aqui consumiu 14 meses no campo, e que, em Portugal,
me ocupou ainda. mais dois anos.
Tudo foi relatado em um volume, que tornou essas
operaç~s perduráveis e, portanto, definitivas.
Mas equador não quer dizer apenas este cfrculo
imaginário que, geometricamente, envolve a Terra.
O equador não é, tão-pouco, aquela linha vulga-
rizada a bordo dos paquetes que navegam na região
bonançosa do Atlântico Central, e que se traduz nas
O MONUMENTO DO ILHÉU DAS ROLAS 95
festas de passagem da linha, pretexto para interessan·
tes diversões dos passageiros, com baptismo, banquetes
e bailes, tudo mais ou menos acompanhado do jazz-band,
quero dizer, de uma adequada música tropical.
Não! Equador é muito mais que tudo isso!
Para os Europeus -ou, pelo menos, para os Por-
tugueses- o equador tem alta significação. Porque
essa fronteira entre os dois hemisférios foi, indiscuti-
damente, primeiro cortada no mar Atlântico -como,
já neste século, pelo ar- por navegadores portugueses.
E não se trata apenas de bater records desportivos, mas
da primazia de um acontecimento que foi de grande
alcance prático para a descoberta das grandes rotas
marítimas. Por essa razão, o equador simboliza a aber-
tura do oceano Atlântico e, portanto, da América do
Sul à navegação mundia!l. Foi obra que exigiu um século
de navegação de alto mar, para, desde que se dobrou
o cabo Bojador, se completar aquela abertura- ain'd a
por portugueses- com a passagem de Bartolomeu
Dias, pelo sul da África, para o oceano Indico, e com
a de Fernão de Magalhães, pelo sul da América, para
o Pacífico. E não deixemos de notar que foi desta ilha
de S. Tomé que, em 1740, partiram aqueles mareantes,
os quais, ·c ortando o equador, foram, em 1 de Janeiro
de 1471, descobrir a pequena Hha de Ano Bom, aqui
a uma centena de milhas ao ·s udoeste, já no hemis-
fério sul.
Da importância e dificuldade de todas estas via-
gens podemos ajuizar, reflectindo que o mar foi tão
apertadamente sulcado que àqueles navegadores portu-
gueses •lhes não escapou ilha alguma do Atlântico Sul,
no triângulo formado pela ilha de Fernando Pó com a
de Fernão de Noronha e as de Tristão da Cunha. Eis
 AB E RTURA

as divagações históricas que nos sugere este marco,

erigido neste ponto do ilhéu das Rolas, ligado à ilha
de S. Tomé, ilha que, descoberta pelos nossos antepas-
sados, vem também sendo, durante mais de quatro
séculos, colonizada por portugueses. Estas terras, estas CAP1TULO I
gratas, estes cava letes têm, assim, sido teatro fecundo
do labutar de colonos, cujo espírito progressivo quis
completar essa obra de civilização, conhecendo cienti-
ficamente qual a forma rea:l destas ilhas e quai a sua A TÉCNICA NA
posição a respeito dos continentes.
Mas, com esta ocupação geométrica, que tanto NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS
honra os habitantes do arquipélago, e que, simbólica-
mente, aqm fica registada neste mar co, cuja importante
significação procurei acentuar, não cessará aquele
paciente esforço secular.
Essa obra tenaz continuará, e eu termino fazendo
votos por que o vosso espírito, inteligente e empreen-
dedor, meus bons amigos, aqui encontre a tão merecida
compensação! SUMÁRIO:

São Tomé -1933- Julho- 5

I - A técnica náutica e a história dos
Descobrimentos
11 - A Astrologia m Península

m- O início da navegação astronómica

IV- Astrolábios e quadrantes

V - Oartas rectangulares

VI- As caravelas
 l - A TBCNICA NAUTICA E A HIBTORIA
DOS DEBCOBRIMENTOB

1!: sabido que os diários das navegações pioneiras

desapareceram. De modo que, para analisar e recons-
tituir as ·s uas rotas, tornou-se preciso conjecturar. O que
nem sempre se fez obedecendo à técnica marítima.
Acontece que essa reconstituição foi apresentada,
de inicio, por estranhos às ccoisas do man, como eram
quase sempre cronistas e historiadores. Incapazes de
se imaginarem navegando dentro dos navios antigos,
eles fiaram-se nas versões que corriam, contadas por
mareantes românticos, que acrescentavam um «ponto»
ao seu «Conto». Tal é o exemplo flagrante das Lendas
da lndia, onde a nossa primeira passagem além do
Cabo está romantizada de maneira absolutamente
oposta à possfvel realidade, pois foi feita em 1487 e não
em 1497 como lá se lê.
Assim, os cronistas, sem elementos para criar con-
jecturas verosfmeis, recorrem a fantasias, como cal-
marias ou tempestades, correntes, revoltas, etc., que
não aconteceram.
E, lamentàvelmente, alimentaram na op1mao
comum insistentes falsidades, que se tornaram tabos
sagrados, dos quais ninguém se atreve a duvidar.
I OO A TÉCNICA NA NÁUTICA DOS D ESCOBRIMENTOS [ CA P.
Enfim, vítimas da sua insuficiência técni·ca, foram
levados a atribuir a arrojo aquilo que tinha explicação
na evolução metódica de uma Arte Náutica, só criada,
e por nós, no tempo do Infante D. Henrique.
Eis o que, apoiando-me na experiência, minha e de
outros, vou tentar elucidar com alguns exemplos.
• notícia, porquanto, entre trópicos, as cartas :q1odernas
Alguns desses historiadores, quando, por carência
de técnica náutica, não encontram explicação para as
rotas seguidas nas viagens de descobrimento, feitas à
vela, vêm-se apoiando em uma bóia de salvação, a tem-
pestade. E com tanta firmeza que chegam a duvidar
das informações prestadas por aqueles que foram nas
viagens e só viram bom tempo.
Tal é o caso flagrante da tempestade que teria
levado Ca,bral ao Brasil, a qual, apesar de única naque-
las viagens, fez carreira contra as informações con-
cretas de uma testemunha de bordo, Vaz de Caminha,
que escreveu: «Sem hy a ver tempo forte ne contairo»
«seguimos nosso caminho per este mar delomgo». Foi
certo que Cabral, muito depois, «perdeu de uma vez
quatro navios», já ao largo das ilhas de Tristão da
Cunha, mas isso nem foi devido a tempestade, e só
a um brusco «peganho de vento», tão «furioso que não
deu tempo para amainar». Assim o conta Castanheda.
Do Roteiro de Vasco da Gama, escrito por quem
ia nos barcos, só consta em toda a viagem uma «tor-
menta», que apenas durou um dia, já muito para além
do Cabo. Contudo, Castanheda. apesar de ter seguido
o Roteiro, cria-lhe outras. Para explicar a separação
dos navios da esquadra do Gama antes de Cabo Verde
I, r] A TÉCNICA NÁ UTICA E A HIST. DOS D ESCOB. IOI
não lhe bastou a «çarraçam» apontada no Roteiro, e
acrescenta-lhe uma «tormenta:. «atravez do rio do
ouro», da qual não há noticia, e que até é inverosímil.
Depois da partida de Santiago, ainda sem apoio no
Roteiro, o mesmo cronista cria «muytas tormêtas de
vêtos, chuvas e çarrações», das quais tão-pouco há
só prevêem, e em casos raros, apenas um dia de tem-
pestade em cada cem!
Nem vale a pena tomarmos a sério - como alguns
fizeram- o que se lê nas Lendas da India sobre uma
fantástica passagem do Cabo, que de facto só custou
a Vasco da Gama nove dias com bom tempo, o que as
Lendas transformaram em mais de seis meses de luta
contra tempestades que ali ocorrem, em média, durante
o máximo de uma dúzia de dias em cada cem, e, em
geral, com ventos de oeste, favoráveis à passagem para
além do Cabo como Gama pretendia!
Pois de tão pouco prováveis contrariedades- cujo
fim foi justificar uma duvidosa e precoce partida de
Lisboa em Março, ao passo que Gama realmente só
partiu em Julho-, dessa invenção fez-se eco o histo-
riador moderno Sophus Ruge, que até cita o romântico
episódio da «conspiração», a que Gama teria respondido
atirando ao mar artigos essenciais à navegação, para
não poderem voltar atrás!
Outro historiador, recente, explica a rota larga,
em arco, que Gama traçou no Atlântico Sul, a contor-
nar ventos contrários, como empreendida «talvez para
escapar às calmarias e correntes do golfo da Guiné»;
navegando «em pleno mar», «todos se viram em assaz
de perigo», e «já desanimavam os menos corajosos
quando avistaram terra», etc. Outra invenção, porque
102 A TÉCNICA NA NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS [ CAP.
o que aconteceu foi que Vasco da Gama, não tendo ido
tanto ao sul como Bartolomeu Dias, ao cortar para
leste encontrou ainda o vento alisado de sueste, e só
pôde ir demandar costa de África cerca de meio cento
de léguas ao norte do Cabo. Mas eles conheciam as
latitudes, sabiam que existia terra de África pela proa,
e não havia portanto razão para irem desanimados ...
E, de resto, como teria Gama sabido que, ao largo de
África, haveria menos ccalmarias e correntes» do que
na Guiné se alguém não tivesse lá ido ao largo antes
dele?
Ainda no regresso desta mesma viagem, em 1499,
alguns historiadores inventaram outra tempestade-
daquelas que não há em Maio perto das ilhas de Cabo
Verde-, tentando com ela explicar o facto de Nicolau
Coelho se ter separado do Gama, indo chegar a Lisboa
dois meses antes dele.
Põem assim de parte a explicação mais natural, e
que se impõe, qual é a de que o próprio capitão-mor,
tendo fechado em Santiago a parte original da viagem,
tivesse mandado para Lisboa Nicolau Coelho na sua
caravela, mais rápida do que a nau cSão Gabrieb-
onde, para mais, a doença de seu irmão Paulo, de que
veio a falecer, o impedia de seguir sem escalas. Gama
fez assim aquilo tão natural, e que os recursos moder-
nos melhor nos permitiriam fazer, como seria telegrafar
a D. Manuel a extraordinária e feliz noticia do Desco-
brimento do Caminho da lndia.
Ademais, aquelas tempestades tropicais, tão gratas
aos historiadores, e que provocariam conjurações e
separações dos navios, nunca mais ninguém viu. As
actuais cartas de ventos as desacreditam.
I, I] A TÉCNICA NÁUTICA 8 A JUST. DOS DESCOR. 103
Seja-me ainda permitido notar que, pela minha
experiência pessoal de viagens pelo mar, sou levado a
duvidar de certas tempestades históricas, que documen-
tos ou fontes não confirmam.
Já passei o cabo das Tormentas uma dezena de
vezes, sempre com bom tempo, sem conjurações das
tripulações. Daquela vez em que fomos mais ao sul a
'
43 graus, em 1896, as passageiras iam passando a nossa
roupa a ferro no convés, sobre as capoeiras de galinhas.
Sem poesia ... Só uma ou outra vez, em todo aquele mar
do. sul, apanhámos trovoadas, aguaceiros, vento fresco,
coisas de pouca duração, que se não podiam notar no
Livro dos Quartos como tempo tormentoso, à maneira
do que se lê nas «Lendas da India». E o que conta a
«História Trágico~Marítima» é tudo para além do Cabo.
Em bem mais de meia centena de vezes que cortei
os trópicos não vi por lá nem uma única tempestade.
Apelo para o testemunho dos que têm repetido viagens
ao Brasil. Ah! As cartas de ventos, que ali marcam
menos de um dia de tempestade em cada cem, estão
certas ... De resto, o mesmo se verifica na primeira
travessia atlântica da qual temos Diário regular a de
D. João de Castro, feita na nau cGrifo», em 153S.
E agora, na barca cFoz do Douro», que veio tra-
çando uma longa rota de mais de 2500 léguas em 15
semanas, tão-pouco vimos um único dia de tempestade.
É certo que isto foi pouco romântico ... Porque, de
facto, apesar da grande demora da viagem- mais
devida a calmarias do que a tempestades- não houve
incidentes marítimos que valha a pena ·c ontar.
Ah! Vão longe os tempos heróicos das regatas
oceânicas dos clipperB de vela com passageiros, cujos
104 A TÉCNICA NA NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS ( CAP.
capitães podiam indicar pitorescamente aos novatos
qual a rota a seguir:
- Olha! Onde, pelo mar fora, fores encontrando
rasto de vergas e paus partidos, por ai é o caminho para
o Mar da lndia!
Porém, esta anedota não indica tempestades, mas
só traduz o facto de os clippers navegarem sempre a
puxar, a fim de verem quem chegava primeiro.
Para confirmar a importância que a prática da
navegação à vela- mesmo restringindo-a ao uso de
bússola e astrolábio -tem na formação das conjectu-
ras acerca da origem e evolução dos Descobrimentos
Marítimos, seja-me permitido analisar algumas das
versões que correm, eriadas por historiadores que puse-
ram de parte aquela prática do mar. E, como se vai ver,
essa prática pode explicar, nàuticamente e sem necessi-
dade de criar tempestades aà hoc, ou inspirações
geniais, a evolução dos Descobrimentos Marítimos, rea-
lizados com navios de vela.
• mos que só três anos depois se começou a navegar
Descobrimento dos Açores. :m corrente ler-se- até
na obra de Prestage - que os Açores, incluindo Flores
e Corvo, foram apenas redescobertos pelos Portugue-
ses, porque já vinham apontados em mapas do século
de 1300, nos quais aparece um grupo de oito ilhas, ali-
nhadas de norte a sul e arrumadas a cem léguas da
costa de Portugal. Como os autênticos Açores ficam
entre duzentas e trezentas léguas ao largo da nossa
costa, e orientados E- O, há tão grande divergência
na posição dos dois grupos que, para náuticos, as
coisas se passaram como se de facto ainda ninguém
I, r] A TÉCNICA NÁUTICA E A HlST. DOS DESCOB.
lá tivesse estado e as ilhas continuassem cobertas. De
resto, navegadores que tivessem avistado os verda-
deiros Açores viriam antes exagerar a distância do
que reduzi-la a menos de metade. Tal é o caso do globo
construído por Behaim, porque ele, tendo vivido na
ilha do Faial, contudo exagerou a distância a Lisboa,
afastando a ilha para poente mais de quinhentas léguas,
dobro da distância real.
A versão náutica mais natural não é que os Açores
tivessem sido buscados pela carta- e para quê?- mas
que foram encontrados, por acaso, pelos caravelistas
do Infante em alguma viagem larga de regresso da
Madeira ou das Canárias, como aquela citada por Diogo
Gomes.
•
Apesar de já em 1431 se ter ido aos Açores- em
mar reconhecidamente aberto e tormentoso - sabe-
naquele mar, sem dúvida mais bonançoso, que se esten-
dia para além das Canárias. Foi em 1434 que se passou
o cabo Bojador, tendo-se, nos anos seguintes, <Conti-
nuado a exploração para o sul.
Esse mar não tinha sido correntemente navegado
até então. Parece que lhe chamavam o Mar Tenebroso.
Há quem explique tal relutância em lá ~r pelo receio
que aos mareantes causavam certos perigos imaginários
- que «ninguém não vira» ___,. e que, parece, só depois
do Infante mereceram citações dos historiadores.
Insiste-se em que havia receio de dobrar ou con-
tornar uma restinga de cmais de seis léguas:. . . . Mas
Io6 A TÉCNICA NA NÁUTJ CA DOS DESCOB RIMENTOS [ CAP.
tal restinga só se estende uma légua ao mar do cabo
Bojador.
Para mostrar o absurdo daquela crença por parte
dos mareantes do século de 1400 basta citar que se
conta que- •a pesar do céu claro que se avistav>a para
o sul das Canárias- se acreditava haver por lá contf-
nuos temporais que escureciam o céu; e daí as trevas.
As águas seriam tão quentes que coziam os peixes e,
evaporando-se, deixavam a descoberto o fundo do mar
irregular, em baixios. Esse mar não terminaria em
costas, mas em um abismo, por onde as águas se despe-
nhavam, arrastando os navios. E acreditar-se-ia ainda
na fábula do buraco onde os mareantes, perdidos no
alto mar por falta de recursos que só Colombo veio a
conhecer, seriam atraídos por sereias e entregues a um
piloto que era Satanás. Este os pilotaria a um porto, que
era afinal aquele buraco, isto é, a caverna de entrada
para o Inferno! Ora, se ninguém voltara do abismo ou
do buraco, para o contar, como teriam sido .r evelados
tais perigos?
Tão pueris lendas só são citadas pelos historiado-
res para realçar a intervenção, não dos Portugueses,
mas de Colombo, que teria sido ele vainqueur de la Mer
Ténébreuse:.. Teriam sido os Mouros quem as espa-
lhava para assustar os Cristãos.
Ora o que de facto haVlia era um receio, definido
na sentença popular, a respeito de quem passasse além
das Canárias, que cou tornaria ou não:.. Esta sentença
traduzia uma razão náutica: a dificuldade estava no
regresso contra ventos e correntes - de que já fala
Zurara -, os quais, indo para o sul, dificultavam a
volta para norte. Fora isto o que acontecera tanto ao
I, I] A TÉCN ICA NÁUTICA E A H!ST. DOS DESCOB. 107
genovês Vivaldo como ao catalão Ferrer: nenhum
deles voltou.
Tão-pouco tem apoio marítimo a versão de que foi
só no tempo do Infante que se descobriu, mas em Por-
tugal, que os navios de vela podiam ganhar contra o
vento, bolinando. Ficara assim garantida a volta da
Guiné, ainda mesmo que persistissem correntes e ventos
contrários.
Para isso, o velame da caravela portuguesa teria
de ser plano, como o dos actuais caiques e barcos de
recreio.
Ora, ao contrário, as velas das caravelas embol-
savam, exactamente como as dos barcos mouros do
oceano Indico, dos quais tinham sido copiados os navios
do Mediterrâneo. E visto que no Mar da tn:dia nunca
se navegava contra ventos dominantes, como eram as
monções, deduz-se que não se podia confiar em que as
caravelas regressassem da costa de África bordejando
em ziguezague, contra vento e corrente.
Por outro lado, surge uma explicação náutica. :m
sabido que as viagens de regresso da Guiné, à vela, se
tornaram práticas e seguras, não tentando acompanhar
a costa de África, mas metendo na volta do largo, visto
que, por lá, o vento se faz de leste e permite ganhar
norte até que, na altura dos Açores, outros ventos favo-
recem a bordada para Portugal. Esta rota, que era
praticada mesmo pelos finos clippera do século passado,
era segura; foi o descobrimento deste recurso que per-
mitiu às caravelas a navegação para além das Canárias.
Porque, quando vento ou vaga não lhes permitiam a
viagem costeira, regressavam pelo largo.
E para terem a garantia de lá se não perderem, no
alto mar, interveio outro descobrimento, qual foi a

ro8 A TÉCNICA NA NÁUTICA DOS DESCOBRIMENT OS [cAP.
utilização das observações de astros, a bordo dos navios,
apesar do balanço no mar.
O que deve ter sido descoberto em viagens de
exploração anteriores a 1434 e que parece terem atin-
gido cdoze annos continuados:., nos quais se passou
pelos Açores.
Não pode haver dúvida de que tais viagens de
regresso, em arco, pelo ocidente- ou seja na chamada
Volta do Sargaço- se praticaram winda muito em
tempo do Infante, e mesmo antes de 1446.
Enfim, está aceite que foi numa dessas viagens
largas, de regresso da Guiné, que se descobriram, a cem
léguas da ,c osta, as ilhas de Cabo Verde.
Em resumo, apesar de os Mouros conhecerem a
navegação por altura praticada na India, e apesar de
os seus barcos serem capazes de bolinar, é certo que no
Atlântico, onde não havia as monções, eles não nave-
gavam para além do cabo Bojador, contentando-se em
comerciar entre Marrocos e Guiné por meio de cara-
vanas, por terra.
Certo, havia trevas, romantizadas por alguns lite-
ratos, dominados pelo preconceito de que fora necessá-
ria a intervenção do génio de Colombo para as dissipar.
Ora tais trevas só consistiam, porém, na ignorância
dos mareantes acerca da possibilidade de «tornar» das
terras além das Canárias. E foi ainda antes de Colombo
nascer que se descobriu o truque de contornar, pelo
mar largo, as correntes e ventos contrários, da costa.
Assim, foi a criação de uma Nova Arte, apoiada
no estudo da Astrologia e no dos ventos gerais do
Atlântico, o recurso que permitiu ao Infante D. Henri-
que impulsionar, a cem por cento, os Descobrimentos
Marítimos.
I, •] A TÉCNlCA NÁUTICA E A HlST. DOS DESCOB. 109
Começou-se no Atlântico Norte, e análogo foi o
que se passou no Atlântico Sul. Como se vai ver.
•
Os historiadores concordam que Barto1lomeu Dias
conseguiu, com duas caravelas, dobrar a ponta sudoeste
da África, o cabo das Tormentas. Seria em 1487. Mas
Dias reconheceu que, a bordejar ao longo da costa, as
VJiagens eram ali como no Atlântico Norte, também
muito contingentes. Restava averiguar se haveria pas-
sagem pelo quadrante sudoeste do Atlântico.
Já, em viagens largas de regresso da Mina, fora
reconhecido que para além do equador dominava vento
sueste, o qual só daria bordada para sudoeste, a afas-
tar-se indefinidamente de Ãfrica.
Felizmente, entre 1487 e 1497, um reconhecimento,
demorado porque tinha de ser repetido em várias épocas
do ano, mostrou não só que, mais ao sul, aquele
vento de sueste ia rondando para leste, permitindo
ganhar-se sul, como também que bas,t aria ir cortar o
equador cerca da longitude das ilhas de Cabo Verde,
para ficar garantida a passagem para sul, apesar de
existir a sotavento uma terra- já prevista em 1494
no Tratado de Tordesilhas - , a qual se esten<lia para
nascente.
Se Vasco da Gama, de Santiago, tivesse adoptado
rota cpelo sub, idêntica à seguida por Cabral, como ele
ia no Verão, teria encontrado, cem léguas ao sul o
vento contrário da monção. Foi o que, no Verão
seguinte, impediu Colombo de ir ao equador. Então
Gama, na cvolta do mar», iria esbarrar na costa norte
do Brasil. A sua viagem à India estaria comprometida.
IIO A T ECNICA NA NÁUTICA DOS D ESCO BRJMENTOS ( CAP.
O que não lhe aconteceu, porque Gama ia informado de
que, no Verão, era preciso ir tomar barlavento à costa
de África, bastando fazê-lo na Serra Leoa.
O facto concreto de, tanto Gama como Cabral,
não terem ido em caravelas de reconhecimento, mas em
naus, como o facto de as suas rotas terem sido dife-
rentes- Gama foi no Verão e Cabral no Inverno-
tudo prova que eles iam prevenidos acerca dos ventos
que iriam encontrar no Atlântico. Estas foram pois
viagens definitivas. ' '
Donde, para náuticos, ressalta incontestável que,
antes de 1497 e talvez mesmo antes de 1494, já era
conhecida a existência do Brasil. Torna-se, assim, ane-
dótica a versão paradoxal de que o Brasil já tinha
fronteira antes mesmo do seu descobrimento.
Mesmo a leigos, a complicada rota atlântica em
duplo arco, seguida por Vasco da Gama, dá uma suges-
tiva impressão de que ele não fora à toa. Porém , os
primitivos comentadores, suprimindo a bordada cem
leste», do Roteiro, imaginaram que, como Cabral, Gama
teria, de Santiago, rumado «para o sul directamente».
Assim o lêmos na «História de Ruge»!
Não! Ainda ninguém considerou a viagem do Gama
tão simples como pôr um ovo em pé, esmagando a
casca na ponta. Porque, tendo que contornar ventos
contrários, não se pode dizer que foi o vento que
o levou.
Enfim, no entender dos marftimos, estã transpa-
rente que só uma detalhada exploração do mar- no
Atlântico, de norte a sul- poderia ter permitido aos
Portugueses a sua criação da navegação larga, oceânica.
Nem Gama nem Cabral partiram de Lisboa ignorantes
da possibilidade de dobrarem o cabo de Boa Esperança.
I, I] A T ÉC NICA N Á UTICA E A HIST . DOS DESCOB. II I
Assim, só um estudo preparatório dessas duas rotas
pode explicar a demora de uma dezena de anos entre as
viagens de Dias e Gama, apesar de o êxito de Colombo
nos dever apressar.
•
Quanto a Colombo, são raros os historiadores
que acentuam que ele se aproveitou de uma Arte de
Navegar desconhecida em Génova, e que sagazmente
copiara dos Portugueses, levando-a para Espanha. E,
assim, ao notarem que Colombo traçou as suas rotas
de 1492 e 1493 sempre com ventos a favor- indo pelo
sul e voltando pelo norte -, talvez par a dissimularem
a simplicidade das travessias, alguns comentadores são
levados a atribuir a Colombo, de golpe, descobrimentos
extraordinários. Tais seriam: uma medida do meri-
diano, os ventos gerais, a variação das agulhas, o Mar
do Sargaço e, quase, uma confirmação definitiva da
redondeza da Terra. Isto tudo, além de «novas estrellas».
Outros lhe atribuem o ter sido informado por um
teórico, Toscanelli, o qual, ignorando a posição das
terras ocidentais, e quais os ventos dominantes no
Atlântico, nada poderia adiantar a um homem prãtico
do mar, como julgam Colombo.
Nem, ao contrãrio do que escrevem alguns fanã-
ticos, a sua viagem de 1492 foi a primeira cau long
cours». Porque de longo curso era a Volta da Mina, que
passava a meio Atlântico; e foi a sua prática a bordo
de navios portugueses que sugeriu a Colombo e a seus
precursores a generalização, para oeste, do regime de
ventos, do qual ele se aproveitou, e que já era conhecido
antes de Colombo nascer. E « O vento o levou».
 II2 A TÉCNICA NA NÁUTJCA DOS DESCOBRIMENTOS ( CAP.
Enfim, no fundo, Colombo só deveu o seu êxito a
uma novidade, não técnica, que foi o ter navegado por
conta de Reis. Aqueles que antes dele - desde Teive,
em 1452, até Corte-Real, em 1500- projectaram ir,
à vela, às terras ocidentais nada poderiam ter lá encon-
trado de interessante para os particulares que finan-
ciaram essas expedições.
• se atribui uma chegada ao Brasil em Janeiro de 1500 -
Veio depois América Vespúcio, o favorito do des-
cobrimento da América. Só o conhecemos pelas suas
cartas, que, para navegadores, são pura literatura de
ficção. Começou por inventar uma grande viagem pelo
. golfo do México, da qual não ficou o menor vestigio
nos arquivos de Espanha.
Nas suas outras viagens reais, à América do Sul,
com Hojeda, em 1499, e com os Portugueses, em 1501 e,
talvez , em 1503' Vespúcio nunca foi o chefe. Mas inti-
tula-se descobridor. Para quem conheça as rotas de
vela as suas cartas denunciam a invenção de um
igndrante das coisas marítimas. Duvidou da necessi-
dade de, no Verão, se ir à costa de Ãfrica tomar bar-
lavento, para poder montar a costa brasileira, como fez
Vasco da Gama. Tão-pouco compreendeu a rota em arco
que impõe o regresso do Sul do Brasil para a Europa.
Conclui-·se que Vespúcio foi burl<ado com informações
ficticias pelos pilotos, como eles costumavam fazer aos
leigos:
Apesar dos seus transparentes dislates náuticos,
que o desclassificam como mareante, há quem declare
Vespúcio cum dos primeiros cosm6grafos do seu
tempo:., tendo dado lições de navegação astronômica
I, I] A TÉCNICA NÁUriCA E A lUST. DOS DESCOB. 1!3
aos pilotos portugueses da expedição de 1501, em que
de facto foi, não como chefe, nem como capitão ou
piloto, mas como explorador comercial. Enfim, depois
de o terem a ceitado como descobridor do Brasil apro-
veitaram-lhe o nome, dando ao Novo Mundo o nome
de América. Diz-se que foi por ser uma palavra sonora,
fonogénica ...
Quanto a Vicente Pinzon, a quem correntemente
portanto anterior à de Cabral-, só sabemos o que
consta de declarações não documentadas. Como delas
se conclui que, das ilhas de Cabo Verde, rumaram pelo
sudoeste da agulha e este rumo, contando com varia-
ção, abatimento e corrente para oeste, vai dar muito
para além do cabo de São Roque, há que inferir que
Pinzon não esteve, em 1500, no cabo Santo Agostinho,
como declarou, mas em um ponto vago, na costa nor-
deste da América do Sul.
•
Como se vê, são correntes os equfvocos náuticos
dos que escrevem a História dos Descobrimentos Marf-
timos, erros cometidos porque, faltos de documentação
- como seriam mapas ou diários-, aceitaram explica-
ções conjecturais teóricas que, aos navegadores práticos
de vela, não podem deixar de fazer sorrir.
•
Com estas minhas divagações sobre os erros náu-
ticos com que se tem tentado explicar, ou deduzir, a
evolução dos Descobrimentos Marítimos só pretendi
8
114 A 'ffiCNICA NA NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS [cAP.
fazer ressalrbar que algumas das ·c onjecturas a que a
carência de documentação levou os ·c ronistas - não
navegadores- são, por vezes, fantasias de espiri:tos
pouco técnicos. E com essa falsif~cação da Hi·s t6ria dos
Descobrimentos- repito- tem-se afinal deprimido a
orientação prática e científica com que neles interveio
Portugal.
Demorei-me, nas minhas reflexões marftimas, a
desfazer o grande equívoco de que s6 nos últimos anos
do século XV e, talvez, na época de Colombo é que os
cDoutores acharão» a maneira de se determinar a
posição dos navios no mar por meio das observações
do Sol.
Também, entre outros erros históricos capitais,
tem avultado o descobrimento do Brasil- ao qua:l eu
não podia deixar de me referir. Insiste-se nas escolas
em o explicar pelo a!caso, sem se reparar que uma esqua-
dra de treze navios, quase todos naus, não podia ter
sido mandada autoritàriamente para a tndia sem baver
segurança de que havia mar livre, isto é, de que a terra
a ocidente não impediria a passagem. Porquanto Cabral
ia seguir rota diferente daquela que Gama abrira. Tal
aventura seria inverosímil Sabiam da existência daquela
terra ocidental! ; e, quando ela surgiu, tanto ao sul, o
facto de logo arribarem para lá prova que não havia
receio de que ela impedisse o caminho para o cabo de
Boa Esperança.
· De resto, qualquer navegador de vela afirmará
que as rotas adoptadas por Gama e por Cabral - dife-
rentes, como •se sabe -denotam firme certeza de que
os ventos dominantes, em várias estações do ano,
sempre permitiriam montar a terra saliente entre os
actuais cabos São Roque e Santo Agostinho, da costa
I, I] A 'ffiCNICA NÁUTICA E A JnST. DOS DESCOB. 115
ocidental, já prevista em 1494, no Tratado de Torde-
silhas. Donde se conclm que, tanto a Terra como o vento,
já ambos haviam sido estudados, e em várias épocas
do ano, antes de 1497.
•
Se esses escritores, em lugar de seguirem versões
literárias, como as de Vespúcio ou Gaspar Correia, pru-
dentemente consultarem técnicos de vela, logo se con-
vencerão de que os Descobrimentos Portugueses não
resultaram de felizes golpes de génio de chefes autori-
tários mas ignorantes, capazes de mandar os navios
para o mar, por 'Cima de toda a folha, com ordens de
fugir às calmarias ...
Não. Os nossos dirigentes obedeceram à norma
.r acional de começar pelo estudo de navios e mares, para,
com tais principias básicos, se reconhecerem as possi-
bilidades que ventos e terras concediam para as suas
rotas. Se, ao contrário, os navios tivessem largado
para o ma;r arrojadamente, às cegas -'Como por vezes
se conta de Colombo -, ou se perderiam, ·como o geno-
vês Vivaldo, ou pouco adiantariam. Vasco da Gama teria
ido esbarrar, ao sudoeste de Santiago, na costa norte
do Brasil. Etc. Porque tudo dependeu de uma inteli-
gente orientação, derivada daquela cooperação de cien-
tistas e caravelistas a que ·se deu o nome simbólico
de Escola de Sagres. A qual também aproveitou ao
próprio Colombo. Fazem-nos essa justiça.
Desprezando tão lógicas conjecturas, é certo que
vários autores modernos têm divagado. Mas não devem
eles por isso afligir-se, porque erraram em boa compa-
nhia, na de Barros, como na de Humboldt, Varnhagen,
II6 A TÉCNICA NA NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS ( CAP.
Herculano, Ruge, Vignaud, e outros ingénuos admira-
dores do cvanglorioso» Vespúcio, o falso cosmógrafo.
Ah! Não me cega o nacionalismo. Mas entriste-
ce-me a falta geral de compreensão a respeito da natu-
reza do esforço inteligente dos nossos antepassados
que, com tão escassos recursos, laboriosamente desbra-
varam oceanos revelando aos outros povos as suas
complicadas rotas, nem sempre costeiras, nem direc-
tas, apesar do que alguns críticos afirmam. Repare-se
que os Portugueses não lindbergharam o Atlântico à
maneira simplista atribuida a Colombo, porquanto só
a exploração do mar entre os cabos Bojador e Tor-
mentoso nos levou mais de medo século! Foi precisa
ainda uma dezena de anos para se atingir Moçambique,
apenas 500 léguas além. Um século se levou para ir da
Madeira ao oceano Pacífico!
• às Antilhas, jã levavam o astrolábio ao oceano Indico?
Aqueles que classificam de inspira~ão genial a
travessia colombiana do Atlântico, na qual Colombo
teria tido que descobrir, de golpe, ventos e correntes,
a esses crentes ocorre-me perguntar:
- Que adjectivos teriamos de inventar para clas-
sificar a viagem de Vasco da Gama, se ele tivesse atra-
vessado o Atlântico Sul também ao acaso de ventos e
correntes- o que não fez- em uma bordada directa
de cinco semanas, 'Como Colombo, mas indirectamente,
em quatro bordadas, com as quais evitou as terra8 a
sotavento, passando treze semanas sem ver terra?
Só há a responder que tanto Gama como Colombo
I, I] A TÉCNICA NÁUTICA E A IDST. DOS DESCOB. II7
ambos se aproveitaram de um anterior reconhecimento
português dos mares que os seus navios de velas qua-
drangulares iam atravessar. Não é, pois, lícito escre-
ver-se que navegaram ao acaso. Eles não eram santos,
capazes de milagres. Ambos eram, como nós, apenas
criaturas humanas!
Enfim, quando for seguido o alvitre de um velho
corredor de mares- alvitre que é, apenas, romper com
tabos e ouvir praticantes da navegação à vela -, aqueles
que assim fizerem logo reconhecerão, em princípio, cris-
talinamente, que os Portugueses, com o «feito magnífico
de V. da Gama:., não se limitaram a «personalizar a
audãcia dos Europeus», inspirados pelo canimador
Colombo». Estas palavras de Licinio Cardoso são refor-
çadas em enciclopédias, onde se lê que, sem Colombo,
Gama não teria ido à índia! Ora, que poderia Colombo
ter ensinado àqueles que, cinco anos antes de ele chegar
Pois assim fez, em 1487, o nosso hãbil piloto Pero
Dalanquer, representante histórico da Arte Portuguesa
de Navegar no 'Século xv. Ah! Se deste, como de muitos
outros mareantes, nos não ficaram diários, ou roteiros,
foi porque eles sabiam mais de navegar que de escrever.
Não! Os Portugueses fizeram alguma coisa mais
que navegar à aventura, cindo a acertar». Se assim
tivesse sido, se os Descobrimentos só dependessem de
arrojo, então outros navegadores jã teriam ido à Guiné,
ao Cabo, ao Mar da tndia, mesmo à Austrália. Nem se
teria esperado até 1492 para consumar a fácil travessia
do Atlântico: aqueles mesmos misteriosos aventureiros
- árabes, cartagineses ou outros- que alguns julgam
capazes de ter ido ao Açores cdans la premiêre moitié
u8 A TÉCNICA NA N ÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS ( CAP.
du xrvême siêcle», esses mesmos já tedam ·com certeza
ido às Antilhas, à Terra Nova, ao Brasil, e até antes
de terminar o século de 1300.
Enfim, indicações náuticas convincentes denunciam
a marcha metódica seguida pelos Portugueses no «Des-
cobrimento do Mar:.. Eles dissiparam as trevas dos
oceanos passo a passo, a pulso, à medida que criavam
e aproveitavam, como outros ainda não tinham feito,
uma Nova Arte de Navegar, fruto do labor de uma
geração que soube tornar grande um pais que mal
contava um milhão de almas.
E, embora isto arrepie os fanáticos admiradores
de Colombo e Vespúcio, resumirei estas divagações, em
que me limitei a seguir o critério dos rudes homens do
mar, insistindo em que a análise conscienciosa dos
Descobrimentos Marítimos- portugueses ou outros-
impõe prévio conhecimento das travessias de mar largo,
feitas em barcos de vela puros, sem motor. Porque o
navegador de vela- como o nio pode fazer o simples
escritor de História, mesmo que seja grande viajador
terrestre - o navegador de vela, dizia eu, sente que,
por detrás dos acontecimentos marítimos definitivos,
houve uma essencial preparação marítima. A qual pode-
mos concretizar em duas expressões simbólicas - indis-
cutíveis, embora por vezes esquecidas: o astrolábio
náutico e a Volta do Sargaço.
Foram estas as chaves com que se abriu o Mar
Tenebroso. Mas, para que a neblina do tempo não acabe
de encobrir esta verdade, deveremos- enquanto a não
registamos em monumento- divulgã,-la em um quadro
decorativo nas nossas Escolas Náuticas, que agora reali-
zam a ideia da chamada Escola de Sagres.
I, n] A ASTROLOGIA NA PENíNSULA Il9
ll-A ABTROWGIA NA PENINBULA
A versão de que foi Colombo, a bordo de navios
espanhóis, quem violou o Mar Tenebroso, sendo ele o
primeiro navegadÇ>r que se atreveu a fazer viagem de
dongo curso:. - porque até então todos teriam charto
cuidado en no perder de vista la costa» - , tal lenda
ainda não morreu. Tudo teria sido pura cabotagem até
que, «como consecuencia al primer viaje de Colón y los
Pinzones, le entró a Europa la comezon de descubir
nuevas tierras». Assim o escreveu há. pouco, no sema-
nário cEl Espaíiob, um publicista hispano-colombiano,
Fernando de Cambra.
Este estranho conceito apoia-se em manifestos
erros náuticos, só próprios de quem conhece muito por
alto a História e a Evolução da Arte de Navegar.
•
Foram, é certo, os Mouros quem «popularizou:. na
Península os estudos de Astrologia. Já em meados do
século de 1200 Alfonso el Sábio os deixou consignados
em um conhecido manuscrito, que se ocupa de alguns
astros, como Sol e estrelas, e descreve o instrumento de
observação então usado - o astrolábio - , de que apre-
senta desenhos. Entre os astros estudados avultava a
Estrela Pol•a r, estrela que naquela época descrevia
em torno do pólo uma circunferência com amplitude
azimutal de uma dezena de graus. Por isso lhe chama-
vam a Estrela do Norte, embora não se ignorasse que
ela não apontava ao norte direito.
120 Afi'ttCNICA NA NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS [cAP.
Ora, logo no tempo do Infante D. Henrique se reco-
nheceu que a navegação da Guiné, costeira à ida para
o sul, impunha navegação larga na viagem de regresso,
a contornar conhecidos ventos e correntes, que iam de
norte para sul. Sabemos que, já em 1431, os carave-
listas do Infante chegaram aos Açores, tendo, ainda
antes de cColón y los Pinzones::. serem nascidos, des-
coberto a ilha das Flores, trezentas léguas ao largo da
costa de Portugal. Também é sabido que o próprio
Colombo, cerca de 1483, praticou com os pilotos portu-
gueses, a bordo dos nossos navios, a viagem de volta
da Guiné, pelo Mar do Sargaço - a que se •começou por
chamar de chaga:.. Colombo conheceu assim o vento
alisado do nordeste, que o impedia de ctrazer rumbos
directos::.. Este principio, claro para os náuticos de vela,
tem sido posto de parte por alguns historiadores ...
A navegação indirecta, pelo Atlântico Central só
foi praticada quando os mareantes passaram a ter a
certeza de se não perderem fora da vista de terras. O
que se conseguiu recorrendo à única coisa que se via
no alto mar -os astros -, especialmente o Sol e a
Estrela do Norte. :m sabido que a posição, no céu, destes
dois astros principais já era conhecida em Lisboa no
tempo do Infante, por cá haver cuma Academia:., ou
seja um cCurso de Astronomia:., onde se estudavam
astrolábios e regimentos.
~go se compreendeu a necessidade de recorrer, no
mar, a um astrolábio mais simples do que os já conhe-
cidos, desde pelo menos dois séculos, pelos astrólogos
peninsulares. Mas seria impossível usá-lo da maneira
fantástica descrita por Cambra, que era cenfilar un
astro con su alidada::., tendo tido previamente o cui-
I, n] A ASTROLOGIA NA PENÍNSULA 121
dado de ccolgan o astrolábio cdel paio mesana::.. Seria
absurdo.
Não. Usavam o instrumento suspenso da mão
pelo seu anel, e esperavam a posição instantânea de
equilíbrio, no ponto do navio mais próprio, que não era
csobre alcázares», mas junto do mastro grande. Assim
o sabemos pela leitura do «Roteiro da Viagem de
D. João de Castro», em 1538, livro que, publicado há
pouco pela nossa Agência-Geral das Colónias, não é
decerto desconhecido em Espanha.
Nem sempre Cambra está em erro. Ele tem razão
quando acredita que, com o astrolábio, se erravam
ccuatro grados» nas alturas de estrelas. Mesmo sem
o pendurarem no mastro da mezena. Já Mestre João,
na sua carta de 1500 a D. Manuel, declarou, depois de
o ter tentado muito, que considerava impossível tomar
alturas de qualquer estrela no mar - mesmo as estre-
las brilhantes do Sul- porque, por pouco que o navio
balance, «·se yerran quatro, o cinco grados». E recorria
à caltura dei sob.
Além disto, a minha experiência pessoal, por mar,
à vela, com astrolábio, provou-me que, usando-o sus-
penso na mão e observando, não estrelas mas o Sol
-que se cenfila», não a olho, mas pela sua sombra ao
longo da alidade-, poucas vezes se atingirá erro supe-
rior a meio grau. Isto mesmo se conclui do já citado
Roteiro de D. João de Castro. Nunca observavam a
Estrela do Norte nem o Cruzeiro. Estes astros teriam
servido algumas vezes para indicar o norte verdadeiro,
porque tal observação não dependia de alturas a astro~
lábio. De resto, o próprio Sol servia para indicar a
direcção norte-sul.
122 A TÉCNICA N A NÁUTICA D OS DESCOBRIMENTOS (CAP.
Desta sorte, falta base para se afirmar, com
Cambra, que foi só no tempo de cFelipe ll» que cun
espaiíob encontrou cun instrumento que servia para
medir alturas de astros y se llamava balestilla:., capaz
de evitar os grandes erros do astrolábio. Não se espe-
rou .t anto na marinharia de Portugal, nem há razão para
se escrever que, ·a inda na última metade do século XVI,
os mareantes espanhóis confiavam mais em csu fino
instinto» que nas latitudes determinadas pela altura
do Sol, «con errares de uno e dos grados, y mayores
con mar de fondo ». O Roteiro citado prova que já
em 1538 era possível obter do astrolábio muito mais
precisão.
:1!: certo que no Diário da travessia Colombo-Pin-
zon-Lacosa, em 1492, não se fala em astrolábios :
rumavam cal Oueste», apesar de julgarem que as
agulhas, que em Espanha declinavam meia quarta
parte leste do Norte do Mundo, já, no meridiano
passando cem léguas além dos Açores, elas noroes-
teavam cuna cuarta de viento todo entero:.. Tudo
somava uma oscilação total de 17 graus, a qual, apesar
de tão apreciável, não foi atendida. Continuaram
rumando para oeste.
Quanto às latitudes deste mesmo Diário, é bem
certo que todos as ignoravam, porquanto, nas Anti-
lhas, supõem o cNorte tan alto como en Castilla:.,
errando . assim uma dúzia de graus, sinal este de que
só navegavam pela estima, e não por Astronomia nem
pelas cartas impressas em Sevilha.
Donde concluo que Colón se fiou mais na sua
agulha que em um recurso tão vago como seria csu
instinto:..
I, u] A ASTROLOGlA NA PENíNSULA 123
Pessoalmente conjecturo que os mareantes por-
tugueses do século xv recorriam à Estre·l a Po·l ar para
obter o norte verdadeiro e que, quanto à:s latitudes,
só confiavam no Sol. Nos dois casos usavam regi-
mentos, indicando a posição destes dois astros no céu.
Por outro lado, Cambra está mal informado
acerca da criação das cartas de navegar.
Se, no tempo do Infante, cen Sevilla imprlDllan
las primeras cartas de navegar verdaderamente úti-
les», elas não seriam desconhecidas em Portugal.
Usá-las-iam, e não é licito afirmar-se, a respeito dos
nossos mareantes, que ctodos tenian harto cuidado en
no perder de vista la costa». Porque é incontestável
que os Portugueses já então iam ao mar largo, onde
colhiam elementos cartográficos desconhecidos em
Sevilha.
Não é lenda o facto de, em 1431, os nossos
mareantes terem ido aos Açores, havendo depois com-
pletado o descobrimento do arquipélago até à ilha das
Flores, 300 léguas, ou 22 graus em longitude, ao mar
de Lisboa. E há notícia clara de, ainda antes - em
1445, pelo menos-, ser comum a viagem de regresso
da Guiné em volta larga, visto que então a praticou,
não um piloto, mas o «escrivam Tinoco», tendo levado
cdous meses continuados» em que cnunca ouveram
nhüa vista de terra», até que chegaram a Portugal.
Ora é claro que tais viagens largas se apoiavam
em cartas de navegar, desenhadas segundo latitudes
e rumos verdadeiros, e não da agulha, cartas que não
fomos copiar a Sevilha, se é que lá as construíam.
Assim, engana-se Cambra quando afirma que foi
«Fernando de Magallanes, al servicio de Espaiía:., cel
innovador de este sistema, tan esencial y revolucio-
 124 A TÉCNICA NA NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS [ CAP.
nario:., de mapas sem «meridianos curvos:., visto as
latitudes serem indicadas em paralelos traçados per-
pendicularmente aos meridianos.
De resto, nem mesmo a carta de Mercator cfué
producto exclusivo de su ingenio:.: porquanto já, em
1437, Pedro Nunes, ao analisar as cartas quadradas,
então usadas }lelos mareantes portugueses, sugere a
mesma ideia que teve Mercator em 1460, propondo
que se passasse a usar cartas rectangulares, onde fosse
respeitada a proporção real entre graus de meridiano
e os graus, diferentes, dos paralelos.
• ideias da época sobre a longitude de Molucas eram
Quanto ao famoso csecreto de la Longitud»,
também correm bastantes equívocos. É certo que a
solução absoluta só se pôde atingir quando, em mea-
dos do século de 1700, o sextante permitiu medir
distâncias lunares com aproximação suficiente para a
navegação. Outra solução mais aproximada foi atin-
gida meio século depois, logo que o cronómetro se
tornou de uso corrente. Definitiva é aquela que hoje
temos, pelos horários da T. S. F.
Contudo os navegadores do século de 1500 não
estavam tão grosseiramente informados sobre as lon-
gitudes como Cambra supõe. Certo, eles bem sabiam
que a caltura máxima de sol dei lugar:. por astrolábio
só daria ideia por demais grosseira da hora local.
Mas recorriam a processo mais aproximado que a
estima, combinando o rumo verdadeiro- ou da agu-
lha, correcto da variação - com a diferença entre
latitudes observadas; e, assim, depois de reiteradas
viagens, faziam ideia da longitude com a aproxima-
I, n] A ASTROLOGIA NA PENfNSULA 125
ção suficiente para as necessidades da sua navegação.
Já no citado Roteiro de D. João de Castro se refere,
entre outras, a passagem além do «meridiano de
Lisboa».
Nem a longitude das Molucas ficara mais bem
conhecida depois da viagem de drcum-navegação de
cDelcano y Magallanes», porque, na parte da travessia
para o sul das Filipinas, uma navegação errática
tornou muito vagas as indicações tiradas da estima.
De resto, esta foi apenas uma viagem única, ao passo
que os Portugueses já tinham praticado várias viagens
pelo Cabo até à Insulíndia. E tanto assim era que as
suficientemente aproximadas, pois em Lisboa a supu-
nham para oeste do meridiano-raia combinado em
Tordesilhas em 1494. Ora, de facto, aquelas ilhas estão
uns cinco graus ainda dentro do hemisfério português.
Não f<i, pois, tão-pouco nas longitudes que os navega-
dores portugueses receberam a cLección espafiola del
Arte de Navegar:..
Tão-pouco é de crer que o espanhol Medina tivesse,
em 1545, base para negar da existencia:. da variação
da agulha, que já os pilotos de Colombo haviam veri-
ficado em 1492. Só podemo3 crer que essa variação
fosse tão bem conhecida em Espanha como o era em
Portugal, de modo a não errar a navegação. As pala-
vras nordestear e noroestear são anteriores a 1492.
Enfim, os pilotos práticos bem sabiam que a
variação da agulha não podia fornecer indicação
alguma sobre longitudes: porque lhes faltava um pro-
cesso absoluto para a ter determinado previamente
nos lugares de variação da agulha conhecida.
126 A TÉCNICA N A NÁUTICA DOS D ESCOBRIMENTOS ( CAP. I, m] O INÍCIO DA NAVEGAÇÃO ASTRONÓMICA 127

Assim, a distância leste-oeste, pela agulha de Colombo não foi aprender a sua Arte Náutica em
marear, não passa de uma fantasia em que só acredi- Espanha, mas a levou de Portugal. ~ certo que ainda
tariam aqueles que, navegando em teoria, acreditavam não se rompeu com alguns tabos ...
em segredos do mar e na navegação por instinto. Não. Não há razão para, no pais vizinho, se
escrever que c:En tanto que las carabelas espaiiolas
• no se lanzaron a través dei Océano Incógnito, la nave-
gación discurrió en mares interiores o a longo de
Em resumo, ainda se continua a escrever que, no costa». Ah! Se assim fosse, tudo teria sido iniciado
século de 1500, os «otr os mar inos europeos» - excep-
em Espanha, onde seria corrente uma Arte de Nave-
tuados os Espanhóis e incluidos os Portugueses -
gar suficiente para as necessidades dos mareantes do
«anda'ban reducidos al cabotaje. E speraron varios
século de 1400, sem ter sido necessário confiar no
lustros, y cuando nuestras gentes trazaron el camino,
génio super-humano de Colombo.
se lanzaron a seguirlos, con más ansias de botin que
deseos de ensanchar los limites dei mundo». ~verdade
que Colón só falava de «Oro y perlas:..
Ora não é bem essa a verdade. Os que cortaram o
equador em 1470, passaram o Cabo em 1487 e foram
i l l - 0 INICIO DA NAVEGAÇAO ABTRONOMICA
à autêntica lndia em 1498 não «seguiram» os marean-
tes espanhóis, para quem o Atlântico Sul era comple-
tamente desconhecido.
A data em que os Portugueses começaram a
Embora possa parecer ocioso insistirmos na afir-
praticar Navegação Astronômica é desconhecida. E
mação de que o Mar Tenebroso já não tinha trevas
quando os Pinzones, COm Colón, o a travessaram para
1
faltam-nos elementos para definir quando se teriam
poente .. ., embora já t ecnicamente t enha sido demons- iniciado as determinações de latitude, em terra, para
trado que os Portugueses, no século XV, dispunham rectificação das cartas de marear.
de recursos astronômicos suficientes para se não De modo que, a par daqueles que crêem que esse
perderem no alto mar - demonstração feita por recurso data do tempo do Infante - ·como o Prof. An-
autores. como Peretira da Silva, Bensaúde, Morais de tônio Barbosa - , outros, como o Doutor Duarte Leite,
Sousa, Prof. Duarte Leite, e outros, incluindo o espa-- opinam que só começou no século XV. Uns e outros
nhol Ga.r los Pereyra - , contudo há que reconhecer apoiam-se em indicações, como aquela que se lê nas
que o estado de adiantamento da Arte Náutica em «Décadas», de que foi só «em tempo delRey dom João
Portugal antes de Colombo ainda não foi suficiente- o segundo» que «professores:. de Astronomia cacharão
mente vulgarizado. Esquece-se quase sempre que esta maneira de navegar per altura do sob.
 I, m] O INICIO DA NAVEGAÇÃO ASTRON0MICA 129
! 28 A TÉCNICA NA NÁUTICA DOS D ESCOBRIMENTOS [ cAP.
de acordo com o que se lê em Barros, procuraram
• desfazer «quantos enganos recebião na estimativa:.,
recorrendo à única coisa que se via no alto mar os
Há quem pretenda que a abertura dos oceanos
astros. E assim iam seguros de pela altura 'não
só pôde ser realizada desde que os caravelistas portu-
falharem os pontos da costa q~e, do largo: iam
gueses reconheceram que era possível, à vela, ganhar
demandar.
caminho contra o vento. De facto, assim se faz, embora
Por outro lado, a determinação da latitude -ou
à escassa. Mas é absurdo supor que foi só nos tempos
seja a distância do equador- não era coisa nova no
de Sagres que, de golpe, se teria revelado essa extraor-
século XV. Porque já emm conhecidos, e muito ante-
dinária faculdade. Seria então a bordejar em zigue-
r~ormente, os dois elementos necessários para tal
zague, contra as correntes e ventos do norte que se
. podido fazer as viagens de regresso das' costas
teriam
calc_ulo, como eram o astrolábio- ou a sua simplif4-
caçao, o quadrante- e as tabelas de declinação do
de África. Ora é muito duvidoso que as caravelas o
Sul, para os diferentes dias do ano. Alguns desses
pudessem sempre fazer; e é certo que nem mesmo os
instrumentos até a traziam gravada.
finos veleiros modernos, como os lugres de vela's só
Natural é, portanto, supormos que, logo que se
latinas, o tentam sequer. Quando há ventos gerais
alongaram as navegações pam o sul se pensou em
contrários limitam-se a ~contorná-los.
aproveitar a astrologia conhecida na éÍ>oca, para poder
Como a explicação do bolinar me não satisfez,
arrumar em cartas as novas terras, com uma distância
procurei conjecturar qual teria sido a razão pela qual,
a Portugal menos grosseira do que aquela que resul-
durante tantos séculos, tinha permanecido vedado aos
tava da simples estima a olho do caminho andado
audaciosos navegadores da Europa o alto mar. E con-
pelos navios, tanto de dia como de noite. De resto,
venci-me de que só não passavam além das Caná-
foram as próprias observações de latitude que permi-
rias por ignorarem que, ao largo da Europa e da
tiram criar uma légua marftima tal que, 18 ou 17 e
Mrica, dominam ventos diferentes dos que sopram
meia, perfaziam um grau.
nas costas. E é, pois, com esses ventos do largo que
Eu creio que logo que se fizeram tais observações
sempre é possível aos veleiros, sem bolinar em zigue-
em terra- digamos no Rio do Ouro - intuitivo era
zague, o seu regresso da Guiné. Foi só no tempo do
experimentá-las no mar, onde é sabido, pelo menos
Infante que se descobriu esse útil regime de ventos.
pelos Roteiros de D. João de Castro, que tal tentativa
Mas não o foi de golpe, em uma viagem, mas só depois
daria bom resultado. Também, da minha experiência
de sucessivas viagens de exploração, cada vez mais
pessoal no mar, conclui que o astrolábio permite ao
largas.
navegador uma precisão suficiente e tal que, em
Para melhor justificar esta conjectura fui levado
metade das suas observações, os caravelistas não
a imaginar que esses novos navegadores só se teriam
deveriam errar mais que a quarta parte de um grau.
acostumado a «engolfar-se no pego do mar:. quando,
 A TÉCNICA NA NÁ UTICA DOS DESCOBRIMENTOS ( c AP.
130
Atingida esta tão útil noção ter-se-ia depois imposto
o cálculo de tábuas, ou Regimento do Sol, já detalhadas
para os quatro anos do ciclo, em que se conta um ano
bissexto. O que teria sido feito em Portugal, talvez,
antes do reinado de D. João TI, embora só se impri-
misse depois.
De modo que a navegação pela latitude, a qual se
não impunha no Mediterrâneo - onde as viagens
norte-sul eram pouco extensas e balizadas por ilhas e
terras conhecidas-, passaria, no Atlântico, a impor
novas cartas de navegar pela altura. O que, como é
reconhecido, já era praticado no oceano Indico pelos
Mouros, muito antes de, em 1498, lá ir Vasco da Gama.
• apesar de podermos garantir que foram feitas, tanto
Visto não se tratar da aplicação de um principio
novo - -como no caso dos espelhos, que permitiram
passar da balestilha para o sextante - não vejo razão
para que uma tão intuitiva aplicação da Astrologia à
Navegação não tivesse sido tentada logo que ·se sus-
peitou da sua vantagem prática no alto mar. Assim,
a meu ver, a chave da criação de navegação de longo
curso pode ser simbolizada por aquilo que se chamou
«a volta do Sargaço:., com «astrolábio na mão:.. Não
encontro melhor explicação.
~rto, não temos documentos sobre esta tão natu-
ral conjectura, a respeito da época em que, de facto,
a Astronomia começou a ser utilizada no mar. Nem
sequer nos ficaram quadrantes ou astrolábios náuticos
do século XVI, como tão"'{>Ouco os primitivos regi-
mentos manuscritos, tanto da Polar como do Sol. Mas,
I, m] O INICIO DA NAVEGAÇÃO ASTRON0MICA 131
com certeza, eles existiram até no século xv, como
existiram as cartas, quadriculadas ou não, por onde
se navegou.
Enfim, o facto, notado pelo Dr. Duarte Leite, de
não h a ver na relação das viagens de Cadamosto refe-
rência a observações astronômicas não me parece
prova definitiva de os pilotos as não praticarem. Cada-
mosto não era piloto. A sua corrida, com «temporal
do sudoeste», pava oés-noroeste do cabo Branco até
descobrir «duas grandes ilhas:. - que lhe fic~vam
mais de cem léguas a sudoeste, exactamente contra o
vento -assim o prova, porque é uma absurda inven-
ção. Também, por não ser piloto o autor do Roteiro
de Vasco da Gama, da mesma maneira se explica o
facto de lá não virem citadas observações de latitude,
no mar como em terra.
Quanto ao «quadrante», que «tinha:. Diogo Gomes
na sua caravela, em viagem de regresso da Guiné, e
tão larga que foram descobrir Santiago, quer ele de
facto o usasse, quer tenha sido só fruto da coordena-
ção de Martin Behaim, a conclusão a tirar é a mesma
em ambos os casos: o autor do globo, tendo navegado
com Portugueses para a Guiné, tinha razões práticas
para acreditar que já, em 1462, eles se serviam de
quadrantes a bordo. Assim o conjecturou o saudoso
Prof. Luciano Pereira da Silva.
•
Terminando, em contrário com a opinião geral
-sugestionada pela aparente facilidade de apontar
instrumentos à Estrela do Norte, para obter a altura
--------------------------~-------~----~-------.----------------------------------------~~~~~- - ~

132 A TÉCNICA NA NÁUTICA DOS D ESCOBRIMENTOS ( CAP.

I, rv] ASTROLÁBIOS E QUADRANTES 133

do pólo -, acrescentarei que não creio que fosse pre-
ciso esperar pela aproximação do equador para se O astrolábio fora introduzido na Península pelos
recorrer a observações do Sol. Qualquer experimen- Mouros, de modo que já era utilizado antes de o
tado marítimo concluirá que a pontaria à Estrela Infante D. Henrique iniciar os seus trabalhos prepa-
Polar com astrolábio é muito mais contingente que a ratórios da grande navegação. E tanto assim é que
do Sol, porque este astro, com a sombra que faz, se
aponta, por assim dizer, a si mesmo. A estrela, que é
só de segunda grandeza, raro se vê nas latitudes
baixas, e seria preferida para correcção das agulhas,
visto que as cartas de alturas impunham meridianos
verdadeiros.
Assim, continuando a admirar o minucioso cri-
tério de rigidez geométrica com que o Prof. Duarte
Leite procede aos seus interessantes estudos da Histó-
ria dos Descobrimentos, não encontro justificação
para, nos meus cesforços:. ou tentativas de vulgari-
zação - e até que seja feita prova em contrário -,
deixar de me enfileirar ao lado dos que estão persua-
didos de que foi ainda em vida do Infante D. Henrique
que os seus cfisicos:. habilitaram os mareantes a
recorrer aos processos rudimentares de Astronomia
Náutica, tão úteis no alto mar.

IV- ABTROLABIOB E QUADRANTES

o· astrolábio é um instrumento antiquissimo, que

servia para estudar a geometria da esfera celeste. Foi
imaginado ainda antes de Cristo, tendo-se começado
por criar um astrolábio esférico, do qual depois derivou
o astrolábio plano, muito conhecido. Astr olábio árabe do século x
Biblwteca N acional de P~
 I, IV] ASTROLÁBIOS E QUADRANTES 135
134 A TÉCNICA NA NÁ UTICA DOS DESCOBRIMENTOS [ CAP.

centro, destinado a marcar na graduação a altura

no século de 200, nos cLibros dei Saber de Astrono-
observada do astro e duas pínulas sobre o lado corres-
mia:., no capítulo:- «Libro del Astrolabio Plano:.-
pondente aos noventa graus do limbo, ambas furadas
ele aparece descrito.
e das quais constitui a ocular a que está montada do
Este astrolábio plano é constituído por uma roda
lado da graduação. No caso do Sol era o feixe de raios
de metal, graduada e suspensa por um anel, percorrida
solares que, passando pelo furo da pínula superior,
pela declina~ alidade de pontaria ·a os astros. Na roda
ia bater na inferior.
encaixavam-se, não só vários discos cheios, graduados
Era fácil com ele apontar a uma estrela. Não se
e tracejados -cada um dos quais servia para dar
via o fio de prumo mas sentia-se com o dedo. No
latitude- , como também um outro disco recortado,
caso do Sol era preciso atender simultâneamente à
chamado aranha.
pontaria e ao fio de prumo, ao passo que no astro-
Os apêndices referidos, tendo, bem como a ali-
lábio é o próprio peso do instrumento que substitui
dade centro comum com o eixo da roda, permitiam
o prumo e basta seguir com os olhos a oscilação da
resol~er gràficamente vários problemas de Astrologia,
sombra da mira. 1!:: claro que isto permite maior apro-
problemas que não interessavam ao navegador que
ximação do que com o quadrante, com o qual só seria
apenas pretendia conhecer a altura do pólo ou seja
possível medir alturas em graus.
a latitude. Para este fim prático bastava observar
O quadrante era de madeira, por consequência
a altura sobre o horizonte de certos astros, geralmente
leve e de mais fácil construção, mas não permitia as
a Estrela do Norte e o Sol. Mais tarde pensou-se em
mesmas verificações que o astrolábio de que descendia,
utilizar o Cruzeiro do Sul. Era da simples observação
como eram a leitura da alidade em pontos opostos da
do ângulo que o astro fazia com o horizonte que se
divisão circular completa, como também a verifica-
deduzia a latitude do lugar, independentemente dos
ção da coincidência entre a graduação e a direcção
citados apêndices : aranha e discos.
da vertical. Esta operação fazia-se com o astrolábio
Era portanto intuitivo simplificar o CJ8trolábio
reiterando a pontaria aos dois lados do diâmetro ver-
para os usos marítimos. ·
tical da graduação.
Uma primeira simplificação, cuja data desconhe-
O quadrante só bastaria aos navegantes enquanto
cemos, estava realizada já no conhecido quadrante~
eles se contentaram com a aproximação do grau na
descrito no cLibro del Quadrante:., um dos capítulos
latitude.
dos ~itados cLibros del Saber:. de Afonso o Sábio,
A primeira referência ao uso náutico do qua-
cujos princípios não são de supor desconhecidos em
drante - se a bordo ou em terra é de pôr em dúVJida
Portugal, no tempo do Infante, por aqueles que pro-
- regista-se em 1462. A não ser a de Cadamosto e
fessavam a Astrologia.
depois a de Vespúcio, não há relação de viagem que
Este instrumento compõe-se de um quarto de
se lhe refira, naturalmente por ser de uso tão corrente
círculo graduado com um fio de prumo pendente ao

A TÉCNICA NA NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS
como a bússola e não merecer por isso menção espe-
cia'L Nem no Roteiro da primeira viagem de Vasco
da Gama à lndia se faz referência a observações astro-
nômicas, que sabemos terem sido feitas pelo menos
uma vez na baia de Santa Helena, com toda a proba-
I, IV] ASTROLÁBIOS E QUADRANTES 137
[cAP.
:m licito conjecturar que a chamada a Portugal,
pelo Infante, de Mestre J ácome de Mallorca - c perito
em instrumentos e cartas» - teria tido por fim, entre
outros, a construção de astrolábios para uso dos
mareantes, mais simples, como disse, que os astrolá-
bios da época. Possivelmente, > talvez de início só
houvesse ideia de os utilizar nas novas :terras.
Poderíamos hesitar se se tratasse de passar de um
astrolábio elementar para o astrolábio completo; mas
a operação inversa, uma simplificação, era elementar,
e não se compreende que fosse só depois de se chegar
à Guiné que essa ideia simplista tivesse ocorrido a
sagazes cdoutores:., como aqueles que o Infante- tão
interessado em tornar prática a navegação pelos astros
- consultava, em colaboração com os seus ccarave-
listas:., homens práticos do mar.
Não é, pois, de admirar que nem tivessem ficado
os nomes daqueles que se lembraram de uma tão intui-
tiva adaptação, visto· não se tratar de inventores de
instrumento novo, como o sextante. Assim nasceu o
astrolábio náutico.

Astrolábio
bilidade em terra, e na ilha Angediva, na costa da
lndia.
Pelos motivos acima referidos o uso do astrolábio
suplantou o do quadrante nos usos da navegação. Foi
importante o papel que lhe pertenceu na prossecução
dos descobrimentos marítimos.
Conheceriam os mareantes mouros a navegação
astronômica? Se a conheciam, porque a não trouxeram
para o Atlântico?
:m sabido, tanto pelo Roteiro de Vasco da Gama,
como por outras fontes, que no oceano Indico eram
usados instrumentos- talvez como o quadrante ou a
balestilha - assim como cartas quadriculadas, com
que se navegava até pelo Mar Vermelho.
 A TÉCNICA NA NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS ( CAP.
I, IV] ASTROL ÁBIOS E QUADRANTES 139
~ conhecida a perícia com que o piloto de Melinde
levou as naus do Gama a Calecute, depois de cerca de São dois os astrolábios (de latão) de que me
r
três semanas de viagem, em que passou no canal entre tenho servido. Um deles, o astrolábio puramente náu-
dois grupos de ilhas, as Laquedivas e as Maldinas, sem tico - segundo creio, o único para serviço de mar
nunca avistar terra. Ora uma tal navegação de 700 existente em Portugal-, não é da época dos Descobri-
léguas, para destino certo, nunca poderia ter sido feita
só à bússola. Foi pelos astros que o piloto indiano se
guiou, demandando o chamado c:canal dos nove graus
e meio:.. I
,,'
' *
Porém, no oceano Indico navegava-se sempre a ,' '
favor das monções, ao passo que, no Atlã.ntico, os ,,
I

ventos do norte, da costa de África, só davam nave-

gação de norte para sul, não ignorando os Mouros
que não era seguro, à vela, o regresso para o norte, a
bordejar contra tais ventos dominantes. Assim , neste
caso, as observações astronômicas nada lhes poderiam ,
I
adiantar. · I
I

I
Contudo, é de crer que, por tradição, os doutores
da Península estariam informados de que aqueles que
,
cá tinham trazido o astrolábio -os Mouros- o apro- I
I
veitariam na navegação do oceano Indico. I
I
Esta possibilidade da prática de observar astros ,I
,,
I
no alto mar não teria sido esquecida, repetimos, em
Sagres, quando se reconheceu a necessidade de nave- ll~: ______ -----------
gar fora das vistas da costa.
Esquema do uso do quadrante na observação astronómica
•
Pá.ra me pronunciar a tal respeito, com melhor mentos: tem um palmo de diâmetro e foi construído
conhecimento de causa, tenho recorrido a observa- pelos hábeis operários do Instituto Superior Técnico.
ções feitas com astrolábios, em viagens por mar, com- Foi reduzido, simplificando-o, de um outro astrolábio
parando-as com as observações a sextante praticadas -este do século XVI - que está completo, com seus
pelos oficiais de bordo. discos e aranha. Os outros astrolábios conhecidos em
Portugal, ou são completos, como o meu primitivo,
 A TECN LCA NA NÁUT!CA DOS DESCOBRiMENTOS [ cAP. o o o

DII PTHOLOMEl
que me foi oferecido pelo meu antigo amigo Dr.
Augusto Prestes, residente no Rio de Janeiro, ou são l1DRII1t CO.St'\0
de dimensões só próprias para experiências em obser-
vatório, não podendo ser usados a bordo.
:6: claro que o astrolábio era destinado a observar
qualquer astro. Mas um ensaio em terra teria indicado,
logo às primeiras experiências, que mesmo usando-o
- como indica Barros -suspenso de cuma cabrea de
tres paos», a operação de observar uma estrela era bem
mais precária que a observação do Sol. Porque, com
este astro, basta ajustar-lhe a pontaria de modo a
ver-se que o feixe de raios solares, que passa pelo furo
da mira superior, vá bater na outra mira da declina:
em poucas palavras, o Sol aponta-se a si mesmo.
Se esta operação for feita a bordo, não haverá o
apoio da cábrea, e o astrolábio terá de ser suspenso
com uma das mãos, enquanto a outra mão tenta parar
as oscilações que o carfar» do navio imprime ao
instrumento, a fim de mantermos o seu plano de
graduação no plano vertical do astro.
Neste caso a observação do Sol permite-nos sus-
pender o instrumento baixo, em posição suficiente-
mente firme; e a sombra sobre ,a mira inferior da
declina será fàcilmente vigiada, esperando-se o ins-
tante em que o instrumento deixe de oscilar, para então
rectificarmos a pontaria da .alidade ao astro.
No caso da observação de uma estrela não há
sombra, e teremos de suspender o instrumento pelo
seu anel, à altura dos olhos - como se faz com o sex-
tante -, em posição pouco firme. A esta instabilidade
juntar-se-á a acção do balanço do navio; então, em
lugar de a pontaria ao astro ser - como no caso do Sol
-definida automàticamente pela projecção da mira
Ptolomeu empunhando o quadrante. Estampa reprodu zida
do mapa-mundi de W aldseemüller, de 1507
I, IV] ASTROLÁBIOS E QUADRANTES I 4I

superior, já será preciso tentar manter a aüdade cons-

tantemente apontada a olho à estrela, esperando um
momento de repouso. Esta delicada operação é muito
pouco praticável a bordo, mesmo que o observador
tivesse três mãos, uma no anel, outra na alidade, e a
outra a travar as oscilações do instrumento. E, afinal,
a observação ainda resultaria grosseira, por não ser
possivel, ao mesmo tempo, visar o astro e vigiar as
oscilações do instrumento. Ora isto é praticável com
o Sol.
Porém, nem é preciso tentar observações com a
Estrela do Norte: basta ensaiar com o astrolábio uma
pontaria directa ao Sol, quando o céu enevoado evita
que o astro nos fira a vista. E logo neste caso, apesar
das facilidades que nos dá a luz do dia, concluir-se-á
imediatamente como são proibitivas as condições que
apresentará a observação de qualquer estrela, por bri-
lhante que ela seja.
Tais são as razões práticas que me levaram a
conjecturar que, reconhecida pelo Infante a necessi-
dade absoluta de os navios se «engolfarem no alto-
-mar» - o que arrastava a navegação pela caltura do
Polo» - , logo às primeiras tentativas de determmação
da latitude teriam os mareantes previsto que tal ope-
ração a bordo dos navios, no mar, s6 seria utilizável
pelo Sol.
E isto, ainda mesmo que a Estrela do Norte não
fosse, como é, de segunda grandeza, e se visse tão
distintamente como os brilhantes astros Vénus ou
Júpiter.
Por outro lado, é sabido que a Estrela do Norte
não coincide com o pólo norte do céu, pois descreve
14.2 A TÉCNICA NA NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS [ CAP.
em torno dele uma circunferência que, no século XV,
atingia sete graus de diâmetro.
Assim, a sua altura oscilava dentro dos sete graus
e, no cálculo da latitude, havia que se aplicar à altura
observada uma correcção dependente da posição da
estrela no céu, a qual era indicada em um regimento.
A estrela passava, pois, metade do seu tempo mais
baixa que o pólo. Além disso, ·s endo ela de segunda
grandeza, era difícil de observar em alturas baixas,
por causa da nebulosidade do horizonte. Nem era fácil
distingui-la mesmo em noites de luar.
Tais são as reflexões que me levam a crer que,
logo de principio, foram preferidas as fáceis observa-
ções solares. ~ certo que estas observações também
dependiam de um regimento que indicava, por assim
dizer, a latitude dos lugares sobre os quais passava o
Sol em cada um dos dias do ano.
Este regimento já era conhecido no tempo do
Infante, pois o encontramos nos «Livros dél Saber»,
coligidos no século de 1200. E, além disso, a decli-
nação do Sol vinha indicada em alguns astrolábios e
quadrantes.
Assim, conhecida a latitude do ponto sobre o qual
estava o Sol na ocasião da observação, o astrolábio
indicava-nos o quanto estávamos para norte ou para
sul desse ponto e, portanto, qual a nossa latitude.
Trata-se de uma geometria do céu, tão rudimentar
que, para calcular a latitude , bastava saber ler, somar
e subtrair. E tanto assim era que, segundo o «Roteiro
da Viagem de D. João de Castro», sabemos que ta1 astro-
nomia era praticada em 1538, não só por ele e pelo
d)outor::. , como também pelos pilotos, pelo Mestre,
I, IV] ASTROLÁBIOS E QUADRANTES 143
pelo Calafate, por marinheiros e por outras «pessoas»
que ccarteavam::..
Nos antigos roteiros nota-se que, quando não
havia sol aberto ao meio-dia, não se pensava em
recorrer a estrelas nem mesmo às de primeira gran-
deza, como Sírios ou Canopo, que se distinguem logo
ao crepúsculo, e cuja posição era definida pela sua
distância ao pólo, fixa. Na falta do Sol esperava-se
para o dia seguinte.
•
Aquele falso prestígio da Estrela do Norte deriva
do que J. de Barros escreveu nas Décadas, onde conta
que foi só no tempo de D. João II que uns seus dois
«médicos», com Behaim, cacharão esta maneira. de
navegar por altura do Sol». O que teria sido imposto
pela necessidade de se perder ca vista da costa», nave-
gando pelo «pego do mar», e não - como alguns
julgam- só por se ter passado, em 1470, para sul
do equador.
Para tal efeito eles teriam criado o «astrolábio
.ie pao de tres palmos de diametro», que suspendiam
de uma ccabrea de tres paos».
Barros não se refere ao recurso anterior à Estrela
Polar, nem ao seu uso exclusivo ao norte do equador.
Resta concluir, com Barros, que o Sol foi usado
logo que se navegou fora da vi,s ta da terra, o que é
certo ter sido ainda em tempo do Infante, pois já desde
1431 se ia aos Açores sem recear «perder a vista da
costa».
Assim, é lícito só deduzir das Décadas que foi no
tempo de D. João II e, portanto, depois de 1481 que
 I, IV] ASTROLÁBIOS E QUADRANTES 145
144 A TÉCNICA NA NÁUTICA DOS D ESCOBRJ MENTOS ( C AP·

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cTabula declinationis:. e cTabula equationis:., do cAlmanach

Página da «Tabula tertia Solis:., do cAlmanach Perpetuum:., Perpetuum:., de Zacuto, edição de Leiria de 1496
de Zacuto, edição de Leiria de 1496 10
 A rtcN!:CA N A NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS ( cAP.
se apuraram as observações de latitude, usando-se as
tabelas da declli.nação do Sol mais correcta:s, e apro-
veitando, em lugar dos conhe·cidos astrolábios cde
latão mais pequenos:., um astrolábio grande. Como
neste instrumento cada grau atingia 12 milímetros,
ou meia polegada, era praticável em terra observar as
latitudes com a aproximação do décimo de grau, ou
sejam duas léguas.
Uma opinião semelhante, a respeito do Sol, mani-
festa «O bacherel mestre Johan fisico:., na sua carta
a D. Manuel, datada de 1500, onde declara que lhe
parece impossivel observar no mar a «altura de nin-
guna estrella:., sendo preferivel observar o Sol, e com
cestrolabio:..
Ainda, para se fazer ideia da precisão atingida no
século XV nas observações de latitude, citarei que, no
Roteiro de Vasco da Gama, se lê que Pero Dalanquer
depois de, em 1487, ter passado o Cabo com Barto-
lomeu Dias, ao observar, em 1497, alturas do Sol na
bafa de Santa Helena, afirmou que não poderiam estar
a mais de ctrinta legoas a rree do Cabo». Ora, segundo
os mapas modernos, Pero Dalanquer s6 errou cerca
de uma légua! E não se via lá a Estrela do Norte .. .
• e balestHha. E , entre outras conclusões, acentua que
Desde que, em Portugal e no tempo do Infante
D. Henrique, já havia astrolábios e tabuadas com a
declinação do Sol, é intuitivo que, nas navegações da
Guiné, se pretendia saber quanto se tinha avançado
para sul.
As experiências em terra teriam, como disse, indi-
cado ser mais prático recorrer ao Sol do que à Polar.
I, IV] ASTROLÁBIOS E QUADRANTES 147
E era intuitivo o tentar as observações a bordo, onde
seriam bastante úteis para a navegação. A experiência,
aconselhada pelos cdoutores», teria revelado o facto
de a bordo, com o «arfar:. dos navios, só ser praticável
a observação do Sol.
~ certo que desses tempos primitivos nos não
resta documento algum - como seriam regimentos
manuscritos do Sol- para prova da minha conjectura.
Mas tão-pouco os há da Estrela do Norte, como não há
cartas ou diários das navegações reais do século xv,
documentos estes que com certeza existiram. Tudo se
perdeu. E, assim, faltam também elementos para se
justificar a conjectura sugestiva de que a altura do
pólo seda, de preferência, inclicada pela Estrela Polar,
e tão fielmente que só a teriam abandonado quando, à
aproximação do equador, ela se sumiu no horizonte.
•
O Prof. Ant6nio Barbosa, no seu arti~:ro de «0 Ins-
tituto», intitulado História da Ciência Náutica. relata
os resultados das suas interessa!ltes experiências em
Coimbra, tanto com o astrolábio como com o quadrante
a Estrela Polar dá erro dobrado do erro obtido pelas
o'b servações do Sol, apenas um décimo do grau. Há
a notar que, como a estrela se via dara, por estar
muito ,a lta, a sua observação era em Coimbra mais
fácil que na Guiné. E , como indiquei, se contarmos
eom o balanço a bordo, o erro na latitude pela estrela
seria mais exagerado.
No caso das observações de astros a bordo, no
mar, são de esperar erros maiores do que os atingidos
 A TÉCNICA NA NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS [CAP.

pelo Prof. Antônio Barbosa em terra. Mas é certo que,

nos navios de vela, as velas amparam o navio quando
há vento, atenuando-lhe o balanço. Assim, citarei que
a bordo da barca «Foz do Douro:., no total de 72 obser-
vações do Sol, o meu erro máximo foi de dois terços
do grau. Donde se conclui que o erro provável foi
apenas de um sexto do grau. E, de facto, verifiquei
que metade das minhas observações não diferiam da
verdade mais de dez minutos, umas três léguas.

•
Resumindo:
Foi partindo da prática com instrumentos no
campo, tendo observado astros, tanto em terra com
o «astrolábio grande», do Museu da Marinha, como
ainda praticando no mar com outros astrolábios- com
os quais já naveguei, tanto à vela como a vapor, mais
de quarenta mil milhas, ou cerca de duas vezes o meri-
diano terrestre - foi, não teõricamente, mas só depois
de prolongada experiência, que cheguei a uma conjec-
tura, que documento algum contraria e que se concre-
tiza nos seguintes pontos: . ·,
-Os resultados que a Estrela do Noite poderia
ter fornecido no mar seriam raros e, por demais,
grosseiros para a navegação.
-Apesar do balancear dos navios, é praticável
lfZratabot\CI.I2fpberarbelar
observar alturas do Sol a bordo com astrolábio. As te.txlJnarear:conel rc~ínliêrooc
latitudes assim obtidas, embora menos precisas que
em terra, raro terão erro superior a meio grau, ao
lasalruras:cõalgú~e rcgh1s nuc
qual corresponde o erro provável de -+- 1 I 6 de grau, o
que equivale a dizer-se que há tanta probabilidade de
uamêreefcríra~ tnu~ ncccffilnas.
JCon ~">illllcgio Jmpeti~l.
d
~ -. ~)
se errar mMs como menos de dez minutos de arco.
~~Z}f~:-g-~!;..co~. ~
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' . .'· •
- - . - ~.Jli).rn:~. -=-::2.c.ci:'-2.~::]\~~~K:.L-;:~(
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· · ~ ...-t.:!;;;;;_rl --
~
.. .~_,
\.j .......... .

Rosto do «Tratado da Esfera», de Francisco Faleiro ( 1535)

I, v] CARTAS RECTANOULARES 149

-Enfim, desde que pelos nossos mareantes foi

compreendida a cnecessidade da determinação da
altura do pólo» no alto mar- elemento essencial já
nas viagens de volta da costa de África -logo teria
sido reconhecido que, de preferência às observações
de estrelas, só seria aproveitável a observação da
altura - ou distância zenital- do Sol, cuja posição
no céu já nem era desconhecida quando, em 1431, os
caravelistas do Infante foram aos Açores.
Em conclusão, concordando com aquilo que se lê
na carta de Mestre João, e discordando em absoluto
do critério corrente, mal apoiado em Barros, conjec-
turo que datam de tempo muito anterior ao reinado
de D. João ll as determinações de latitude no mar,
por meio de observações do Sol com astrolábio.

V- OARTAB REOTANGULAREB

A evolução da carta de latitudes reduzidas, hoje

usada na navegação marítima, é atribuída ao holandês
Mercator, desde 1569. Mas nem sempre a sua origem
tem sido bem interpretada.
Não se acentua que tal ideia se encontra origi-
nalmente sugerida no cTratado da Sphera::., publi-
cado em 1537 por Pedro Nunes.
Em principio, representar a superfície da Terra,
que é esférica, sobre o plano de papel é absurdo.
Teremos que aceitar uma convenção. Mas a deforma-
ção das terras é inevitável.
Logo que as calturas» ou latitudes, intervieram
na navegação, impôs-se a criação de mapas adequados,
150 A TÉCNICA NA NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS (cAP.
cujos meridianos teriam de ser linhas rectas repre-
sentando a lmha norte-sul da Terra, que passa peios
pólos. Us rumos teriam que ser os verdadeiros, e não
os da agulha, dos mapas anteriores, porque estes não
jogavam com os caminhos ao longo da mesma latitude,
ou seja ao rumo leste-oeste verdadeiro.
Daqui surgiu - e ainda muito em tempo do
Infante D. Henrique - a c carta portugueza» chamada
quadrada~ porque ela era quadriculada segundo meri-
dianos e paralelos, de modo que as duas naturezas de
graus eram iguais. Não se ignorava, porém, .q ue na
esfera terrestre os graus de longitude, no equador
iguais aos de latitude, iam decrescendo até aos pólos,
onde se anulavam. Assim, aceitando, como era corrente
no século xv, que o grau de latitude tinha 17 e meia
léguas marítimas, já na latitude de Lisboa o grau de
longitude media apenas 13 léguas e dois terços.
Daqui resultava que a medição de distâncias sobre
a carta quadrada tinha de contar com a latitude em
que eram medidas (o mesmo acontece na cCarta de
Mercaton). E havia também apreciável divergência
entre os rumos verdadeiros, e os ângulos com os meri-
dianos, medidos na carta.
Consideremos, por exemplo, o que se passa entre
Lisboa e a Madeira. A distância directa, ao rumo ver-
dadeiro 225 graus- rumo sudoeste da época- , era
de 150 léguas. Isto correspondia a 106 léguas em
latitudeJ e a outras tantas em longitude. Assim, o
caminho do navio teria de ser de seis graus em lati-
tude, e de uns sete e meio em longitude, ao que, na
carta quadrada, corresponderia o rumo, não de 45
graus sudoeste real, mas de 51 graus, rumo este
errado, portanto, de meia quarta.
I, v] CARTAS RECTANGULARES 151
A distância a navegar, se a medíssemos sobre o
meridiano, tornar-se-ia 161 léguas, em lugar das 150
reais. Este erro geométrico desapareceri·a se a dis-
tância fosse obtida pela operação de cálculo chamada
cartear, que era, afinal, aquela praticada pelos pilotos.
r
M
Trata-se da resolução de figuras de geometria plana,
a qual se praticava sem ter à vista uma carta. D. João
de Castro, no seu Roteiro, até por vezes se refere a
ctodos os marinheiros que carteavão:..
No seu cTratado da Sphera:., PeQ.ro Nunes
cestuda» a carta quadrada. Nota a diferença entre os
rumos, que lã se traçam, e os reais do cGlobo onde
tudo he certo e sem falencia» (pãg. 129), assim como
compara gràficamente, cho caminho que se faz per
hüa rota:. -ou rumo constante - o qual cnam he per
circulo mayor que he ho dereito e continuo:. (pãg. 124).
Este defeito também se nota na própria carta de
Mercator.
Apesar de Pedro Nunes- que não cpraticou no
mar:. {pãg. 126)- pretender que, por vezes, cenga-
nados andam logo os pilotos e hos que presumem que
ho sam:. {pãg. 130), não nos é licito supor que eles
 A TÉCNICA NA NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS (CAP.
desconhecessem aquelas rudimentares cregras de geo-
metria.-. (pág. 118).
De resto, a carta 8Ó lhes servia para indicar a
posição das terra8 e o ponto do navio, tudo definido
por latitudes e longitudes. Mas a navegação não era
lá traçada geometricamente, porque era feita car-
teando as léguas, ou seja calculando, trigonometrica-
mente, qual o caminho, em latitude . e em longitude,
correspondente à estimativa (pág. 131) da distância
navegada sobre a esfera, a um rumo reduzido a ver-
dadeiro pela variação da agulha, que sabiam deter-
minar. E havia gráficos simples- como o indicam
João de Lisboa (1514) e Pedro Nunes (1537) -por
onde se reduzia o caminho percorrido leste-oeste, para
diferença de longitudes.
Algumas cartas- e não todas- tinham, para
~ste mesmo efeito, cvários troncos ou petipés de
legoas.-., isto é, escalas em diferentes latitudes. O que
não era muito essencial, porque se não pretendia pre-
cisão comparável à dos navegadores modernos, visto
que estes navegam por graus, ao passo que os antigos
só consideravam quarta8, ou meias quartas, que são a
quarta parte do meio quadrante, 45 graus. Além disso,
o navio a motor conta com maiores 8ingradura8 que
at:J naus.
Reconhecendo os defeitos da carta quadrada,
Pedro Nunes, no capitulo da sua obra intitulado cEm
defensam de carta de marear.-. (pág. 138), foi assim
levado a propor uma nova solução:
«·M~ ho milhor seria pera escusarmos todos. estes t:ra-
balhOIS, que fizesemos a carta de muitos qua.rte'yl"ões, de
. bom comp81S0 grande, nos quaes guardemos ha proporção
I, v] CARTAS_RECTANGULARES I 53
do met1idiano ao pa.rello do meo, como f.az P tolomeu nas
l:iavOiéiiS eLas provincias, porque assim ficaruoa.m todas as
l.onguras a lturas e rotas no C'el'iLO , ao menos nam a Vielra .e rro
notiavel; e traz.ersea a ca:rta em livro.»
Como se vê, Pedro Nunes, reconhecendo em prin-
cípio os defeitos das carta8 de marear então usadas
- que aliás defende - , propõe a divisão do grande
pla.Diisfério em cquarteyrões» - como afinal hoje se
faz- mapas parciais que já não seriam mais divi-
didos em quadrtados, mas em rectângulos, nos quais
seria respeitada cha proporção» que há entre os graus
em que dividimos a esfera.
Assim, no exemplo apresentado da Madeira, à
distância de dez graus, entre os paralelos de 30 e 40 gr.
de latitude, corresponderia para os outros dez graus
de longitude, do quadrado, apenas uma distância igual
a 8,2 graus de latitude. E o rumo verdadeiro de
sudoeste iria bater cerca de 12,2 graus em longitude,
da mesma carta.
Contudo, na prática da navegação, tais erros-
bem conhecidos dos pilotos -não tinham importân-
cia: os rumos para grandes distâncias não se soltavam
pela carta, mas pelo cálculo.
E, quanto às direcções verdadeiras, afinal as rosa8
de ventos- que ainda se notam na carta Mercator de
1569 - só indicavam meias partidas, isto é, duas
quartas ou 22 graus e meio.
Naturalmente, na confecção dos cquarteyrões.-. de
grande compasso, ou folhas separadas, ter-se-ia que
escolher qual a escala mais conveniente para a prática
dos navegadores. Em cada folha seria indicada a escala
de ZégUa8, marcando-se 175 léguas em cada dez graus
 154 A T ÉC NICA NA NÁ UTICA DOS D ESCOBRIMENTOS [ cAP.
de latitude. Esta distância seria dividida em 3õ espa-
ços de 5 léguas.
Na concorrência das diferentes folhas da carta
haveria que discutir se conviria mais adoptar o cri-
tério de igualdade entre os graus de latitude, ou entre
os graus de longitude.
Como até ao cabo Verde- onde começava a ser
pràticamente indiferente usar carta quadrada (erro
1 %) ou rectangular- as nossas navegações se esten-
diam principalmente em latitude, seria lógico começar
por aceitar coincidência entre a dimensão dos graus
de longitude nos vários quarteirões, porque assim se
facilitava a sequência no traçado dos rumos, de umas
para outras folhas.
De resto, se logo de principio tivesse havido hesi-
tação na escolha da identidade na dimensão dos graus,
é incontestável que a vantagem de preferência pela
dos graus de longitude teria ressaltado, logo que os
navegantes começassem a praticar com a nova carta
rectangular. E a associação de diferentes quarteirões,
em folhas completas, teria saltado aos olhos como
passo intuitivo para o planisfério geral, conforme o
apresentou Mercator.
Vem ainda a propósito notar que, aceite o prin-
cípio da divisão da carta em cquarteyrões», se reco-
nhece como prático usar em cada um deles a projecção
cónica ou de trapézios, na qual também se nota pro-
porção correcta entre os graus de latitude e longitude.
Preferindo a carta cónica-secante, a um quinto, a
deformação não é m uit o apreciável. Como tais cartas
têm a vantagem da escala constante, e de os círculos
máximos serem sensivelmente rectas, elas têm, por
isso, sido utilizadas em viagens aéreas transoceânicas.
I, v] CARTAS RECTANG ULARES 155
Há ainda a notar que estas folhas só se podem
ligar no espaço, e não em plano.
•
:m
certo que o alvitre de Pedro Nunes não entu-
siasmou os nossos pilotos- nem mesmo o seu discí-
pulo D. João de Castro, que a tal se não refere no seu
«Roteiro» - provàvelmente porque a adopção da carta
rectangular não tinha para os antigos navegadores a
importância que, à simples vista, somos levados a
atribuir-lhe. Os erros em distâncias e rumos, notados
na carta quadrada, pouco influíam no traçado das
curtas singraduras dos navios, mesmo no século de
1700. Não eram então, como agora, frequentes os
rumos directos para grandes distâncias, os quais, de
resto, são sensivelmente diferentes da linha recta, e
isto tanto na carta quadrada como na rectangular.
Além disso, para os navegadores, era indiferente a
deformação das terras, bastante marcada nas altas
latitudes, em ambas as cartas.
Por estas razões, a concepção de Pedro Nunes
não foi desde logo preferida. Os pilotos, criados com
a primitiva carta, sem estarem «enganados», ou a
terem cmal entendida» - como Pedro Nunes preten-
dia (pág. 134) - , sabiam utilizá-la sem errar a nave-
gação, não operando sobre ela como o fariam sobre
uma carta rectangular.
Continuaram < a servir-se da carta quadrada,
mesmo muito depois de ser divulgado o uso da carta
de clatitudes crescidas», criada por Mercator- um
não navegador- em 1569. Assim o podemos concluir
do que se lê na cArte de Navegar», de Pimentel, mesmo
 A TÉCNICA NA NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS [cAP. I, v) CARTAS RECTANGULARES 157

nas edições do século de 1700 - e até na de 1819 - , esta novidade, ainda de acordo com aquilo que se lê
onde são descritas as duas qualidades de cartas: a no «Tratado da Sphera», tinha a vantagem de apre-
«carta portugueza:. de cgráos iguaes», e a ccarta redu- sentar longitudes, latitudes, rumos, sem cerro nota-
zida», de cgráos crecidos::.. De modo que apesar de esta veb. Por isso ela é usada agora exclusivamente na
última ser lá reconhecida como ca zwti.s certa:., con- navegação marítima, em especial desde que os navios
tudo, dois séculos depois de apresentada uma carta a vapor perm~tiram rumos directos entre os portos,
rectangular, ainda se não tinha- como agora- aban- sem a inconstância de rumo que, em geral, os ventos
donado completamente o uso das cartas ccommuns:. impunham aos antigos navios. Porém, não deixou de
de que o «Infante foi inventor». Não lhe ignorando' ser preciso estudar processo prático de, pelo cálculo,
as csuas culpas e erros:. (pág. 124), os pilotos conta-
vam com eles. Porque, como ficou dito atrás, só a -:-----+-----+--/, •.
utilizavam levando-lhe já o ponto do navio em latitude
e longitude, «carteado pelas taboadas dos 'rumos:..
Isto mesmo é, afinal, o que ainda hoje se pratica.
Os pilotos não operam sobre mapas, mas carteiam as +------1----+-•1!"
milhas pelas tábuas do ponto. Era por tais tabuadas
que antigamente se soltavam rumos largos, evitando
assim os erros das cartas, porquanto os pilotos não
navegavam geometricamente, como se pode fazer nos
aotua:is navios a motor. E, assim, para tal efeito, alguns
livros de Navegação, como a «Arte de Navegar:. e as l
velhas «Tábuas de Norie:., apresentavam desenvolvidas 6o·
~· 4" 10
listas das latitudes e longitudes, dos cportos, cabos e
ilhas principaes:..

• 59"

A carta reduzida, criada pelo holandês Gerardo

Mercator- possivelmente sem ter conhecimento do 51:
alvitre do português Pedro Nunes- era também divi- o•
fO 10
dida em rectângulos, em cada um dos quais se guar-
dava a «proporção do meridiano ao paralello do meo», Esquemas do traçado da quadrícula, aconselhado por Pedro
como Pedro Nunes propusera trinta anos antes. E Nunes para a Carta de Marear (1537)
 A 'ffiCNTCA NA NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS (CAP.

traçar na nova carta de marear os caminhos «mays

curtos», segundo círculos máximos, que lá não são
linhas rectas, como o não são na carta quadrada,
sendo-o só nos quarteirões da carta cónica.
Ignoramos quando seria que os pilotos portugue-
ses começaram de facto a navegar por cartas dese-
nhadas em Portugal, segundo a projecção das latitudes
crescidas. Não conheço a data da mais antiga carta
de marear portuguesa, rectangular. Deve ser muito
posterior a 1569, porquanto, na edição de 1699 da
«Arte de Navegar», ainda se lê: «este livro he princi-
palmente para os Portuguezes que estão acostumados
á carta plana de graos iguaes».

Em resumo, da necessidade de a ca:rta de marear

jogar «CÔ o regimêto da altura» {,p ág. 117) resultou
a criação da carta quadrada. Depois surgiu lõgica-
mente a ideia da carta rectangular. Mas quando, em
1569, Meroator apresentou as cartas reduzidas, o prin-
cipio nelas aproveitado, vulgarizado ou não, não era
original. Fora sugerido, estudado e publicado por Pedro
Nunes, na obra «Tratado da Sphera», impressa em
1,537. Tão interessante alvitre só não tivera sequência
entre nós, por não ser ainda considerado essencial, na
prática da navegação, pelos pilotos da época.
Enfim, embora isto não venha sendo acentuado,
há bem mais analogia entre as cartas rectangulares,
de Pedro Nunes e de Gerardo Mercator, do que entre
o nónio português e o vernier francês.

NOTA. -Todas as cartas de navegar do século XVI

eram desenhadas com as rosas de 32 ventos. Assim o
vemos nas cartas de La Cosa e de Cantina, e ainda na

«G lobo t errestr e loxodrómico», de M ercator,

em fusos de 30" ( 1541 )
 I, VI] AS C ARAV E LAS I 59

de Mercator (1569) e Hakluyt (1598), ambas redu-

zidas. Assim, tanto meridianos como paralelos tinham
de ser linha·s rectas, cruzando-se a ângulo recto.
Isto também foi aceite por Pedro Nunes. E tanto
Consultando Nordeuskiold, encontrámos lá cartas
de tais mapas. Enfim, quando propõe os cquarteyrões»
e cita as cartas de Ptolomeu- estas cónicas, isto é,
com meridianos convergentes - ele insiste em que nos
quarteirões ficariam cao ·c erto» ctodas as longuras,
alturas, e rotas». cE rotas» significa que os rumos
leste-oeste seriam traçados perpendicularmente aos
meridianos, sendo estes também rectas paralelas.
Trata-se, portanto, de cartas rectangulares, e não
cartas obedecendo ao principio cónico.
Consultando Nordeuskiold, encontrámos lá cartas
de projecção rectangular e, por vezes, com latitudes
de dimensão inferior à das longitudes. ~ rectangular e
ruma:da a carta de navegar de Berteli, 1565 (Periplus,
pág. 183). O mesmo se passa com a ccharta navigatoria»
de Nicolaus, 1560 (Periplus, mapa XXVII). A carta
marina de 1598, 1621, é rumada e rectangular, corres-
pondendo os seus 90 graus de latitude a 130 em longi-
tude. Não é Mercator. (Periplus, pág. 79). As cartas
de Diogo Ribera, 1529 (Periplus, XLVIII) e de
Ducelliers, 1546 (Periplus, LII) são ·a mbas rumadas
e quadradas.

VI- AS CARAVELAS

Com a reconhecida tenacidade e inexcedfvel com-

petência de que dispunha o comandante Quirino da
Fonseca, publicou este falecido oficial um volumoso
r6o A TÉCNTCA NA NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS (CAP.

livro· no qual está condensado tudo o que pôde averi-

guar sobre a misteriosa caravela portuguesa. Nestes
pequenos e interessantes barcos foram iniciadas, no
princípio do século xv, as navegações portuguesas
que abriram ao Mundo todos os mares.
Primitivamente apenas pouco mais que um grande
barco de pesca- como aquela caravela figurada com
uma vela grande e uma mesena no quadro do Con-
vento da Madre de Deus- , a caravela foi-se aperfei-
çoando, recebendo artilharia pesada e tornando-se
mais própria para o alto mar, até atingir o tipo de 180
tonéis, que descreve o «Livro Náutico», do século XVII,
com quatro mastros (além do goroupez), tendo no
mastro do traquete duas velas redondas, além da
sevadeira.
Foi a caravela primitiva, como navio simbólico
dos Descobrimentos, escolhida para distintivo, ou tim-
bre, da representação portuguesa na Exposição de
Sevilha. Mas o seu desenho, devido ao grande artista
português Roque Gameiro, repetia os desenhos do
mesmo autor feitos para a «História da Colonização
Portuguesa no Brasil», segundo os quais a caravela
usaria, como os actuais caíques, as velas entaladas
entre os mastros e as suas enxftrcias, e portanto impe-
didas de se levantarem embolsadas {ou enfunadas) ,
como se nota nos desenhos antigos, copiados pelo
artista que esculniu os baixos-relevos no monumento
a Afonso de Albuquerque. A caravela do qu a dro da Igrej a da Madre de Deus
Convencido de que estarfamos em presença de um
erro técnico inacreditável num pafs em que mais se
usou a caravela, e. à falta de outro protesto, pare-
ceu-me que o deveria apresentar em nome da Com~ssão
de Cartografia. Esta entidade não é tão terrestre e
I, VI] AS C ARAV E LAS r6r

leiga em marinha como se afirma na pág. 521 do 'livro

cA Caravela Portuguesa:. : ela era composta quase
exclusivamente de oficiais com prática de mar nos
antigos navios de guerra que usavam velas; ocupa-se,
além das cartas - onde antigamente eram desenhados
navios de vela- , também das cartas hidrográficas, e
da marinha mercante das ·colônias.
Certo, não seria a Comissão de Cartografia a enti-
dade mais competente para se ocupar de caravelas;
mas o seu protesto teve como resultado, pelo menos,
o chamar a atenção para o assunto e provocar o for-
midável trabalho de compila~ão e estudo que é incon-
testàvelmente cA Caravela Portuguesa:..
O meu alvitre sobre as formas das uelas latinas
antigas não foi aceite pelos ·arqueólogos, tendo-se
levantado, rontra o que chamam uma suposição, a auto-
rizada opinião de Henrique Lopes de Mendonça, que
apoiava Roque Gameiro. Como esta opinião, debaixo
de vários pontos de vista, se me afigurava pouco
náutica, propus-me, em uma conferência realizada em
1929, no salão da Sociedade Nacional de Belas-Artes,
explicar os meus pontos de vista, chamando a atenção
dos artistas portugueses para os desenhos feitos no
tempo em que havia caravelas no mar, dos quais dese-
nhos unânimemente se conclui que a caravela, com as
suas velas muito enfunadas, difere visivelmente do
desenho escolhido para o timbre de Sevilha.
O meu antigo companheiro das escolas e cama-
rada de marinha, Quirino da Fonseca, em vários actos
públicos, e depois no seu livro, mostra discordar fun-
damentalmente das ideias que expus por várias vezes,
pretendendo demonstrar que não só as caravelas não
usaram velas semelhantes às que ainda hoje usam
11
r62 A TÉCNICA NA NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS ( CA P.
os pangaios indianos (e alguns barcos de pesca), como
também que era pouco náutica a explicação que eu
apresentara do Descobrimento dos Açores, o qual teria
sido feito a cidentalmente pelos navios do Infante, em
viagem de voUa da costa de África, pelo ocidente. Ao
contrário, o comandante Quirino da Fonseca pretende
que as caravelas usavam velas tão planas como as dos
caíques do Algarve, velas que lhes permitiam cingir-se
ao vento, que lhes seria praticável voltar da costa de
África a Lisboa bordejando contr a ventos e corren-
tes par a sul, sem necessidade de ir ao mar dos Açores
em busca de ventos favoráveis.
Não tendo até agora publicado a minha confe-
rência de 1929, não só por falta de algumas fotografias
de pangaios, como ·por esperar o resultado da contro-
vérsia a que venho aludindo, procurarei concentrar as
minhas objecções e respostas às afirmações de Quirino
da Fonseca.
l!l este o intuito das Notas que seguem:
I - Penso, como Quirino da Fonseca, que pas
de documents, pas d'histoire (cA Caravela Portu-
guesa», pág. 221). Para estudarmos as navegações
portuguesas, tão pobres de documentação, teremos
pois que recorrer frequentemente a conjecturas,· mas
estas têm que ser tecnicamente verosfmeis. A simples
opini,4o não justificada não é argumento histórico,
nem mesmo arqueológico.
I I - Devo confessar, de início, que, por falta de
nitidez da fotografia do chaveco mouro que existia
na Escola Naval e se perdeu no incêndio, errei jul-
I, VI] AS C ARA VELAS
gando que as suas velas triangulares seriam já como
as dos cafques. Ora da inspecção dos modelos de autên-
ticos chebeks existentes no Museu do Louvre, e repro-
duzidos tanto nos cSouvenirs:., do almirante Paris,
como no livro moderno cNavires et Marins:., conclui-se
que as suas velas eram análogas às dos pangaios india-
nos. Naque'le erro, provàvelmente por minha culpa,
também caiu Quirino da Fonseca ( cA Caravela Por-
tuguesa», pág. 602).
m- Também errei afirmando que as caravelas
viravam sempre em roda; fá-lo-iam quase sempre;
mas, da mesma maneira que os pangaios, embora raras
vezes e com vento fraco, viram por davante, as cara-
velas podê-lo-iam fazer assim também. Contudo, tanto
para os pangaios, como para as caravelas, o cambar
das vergas e velas teria de ser sempre feito por
anteavante do mastro (por causa das betas das adri-
ças), operação esta que muitas vezes vi fazer aos
pangaios.
IV- Empreguei a palavra embolsar (as velas) ,
por formar grande bolso. Era uma formação análoga
à de outras palavras portuguesas: embandeirar,
embravecer, emagrecer, empolar, etc. Mas só me
prendo com ideias e não com palavras; adoptarei antes
a palavra enfunar, que Quirino da Fonseca propõe.
V - Só por equívoco eu poderia ter dito, na con-
ferência, que as velas embolsadas em balão se não
podiam aproximar do plano da mediana dos navios
(«A Caravela Portuguesa», pág. 89) , pois eu não igno-
rava que, por exemplo, os pangaios navegam assim de
 A TÉCNICA NA NÁUTICA DOS D ESCOBRIMENTOS [ CAP.
bolina, ganhando francamente barlavento. Há na tndia
até barcos de recreio com as mesmas velas, chamadas
as suas vergas prõximamente ao plano longitudinal
por meio das ostas (ou guardins), e amuradas as velas
a meio. Naturalmente, elas enfunam para sotavento,
e tanto mais quanto mais fresco for o vento, não impe-
dindo que o barco de regata se chegue ao vento.
VI- :m natural que as velas enfunadas, à maneira
das dos pangaios, não permitissem às caravelas o
chegar-se tanto ao vento, como fazem os actuais caí-
ques, e os barcos de recreio com fundas quilhas e vel.as
planas, à moderna. Com as suas velas de pangato,
D. João de Castro virava em cerca de dose quartas.
De resto, é sabido que para a navegação de mar largo
não está reconhecida vantagem em os navios aperta-
rem muito a bolina. Chegavam então a levar fora o
cutelo do velacho.
VII- Chamei caravelas transocednicas àquelas
que se destinavam, não prõpriamente à navegaç~o
costeira mas também a ir ao mar largo, às qua1s
atribui ~ traquete redondo. Quirino da Fonseca não
propõe expressão mais adequada.
VIII- A págs. 611 de cA Caravela Portuguesa»
afirma-se que no aparelho das caravelas não se com-
preendiam cabos especiais, destinados a fazer curvar
as vergas, para que o pano embolsasse. Estes cabos
ou ostas serviriam, pelo contrário, para amparar as
penas das vergas, limitando a sua curvatura com um
amantilho . Notar-se-ia que as vergas da caravela de
180 toneladas tinham a meio comprimento ( sic) 25, 17
I, Vl] AS CA R A V E L AS 165
e 15 centímetros de espessura, o que não admitiria o
propositado !orçamento da curvatura por meio duns
simples cabos.
Ora vergar é próprio das vergas~ devendo vergar
as compridas vergas latinas das caravelas; mais
grossas sê-lo-iam decerto as vergas dos panos redondos
das naus, e contudo, para não vergarem, tinham que
ser aguentadas para cima por amantilhos. As vergas
latinas não usavam amantilhos, como não usava a
caravela da Madre de Deus («A Caravela Portuguesa::.,
pág. 94, fig. 11) nem nenhuma das figuradas em mapas
antigos, com os de Pedro Reinei ( cA Caravela Portu-
guesa», pág. 408); tão-pouco os usam os caíques com
as velas içadas, como não estão figurados nos dese-
nhos de caravelas de Roque Gameiro ( cA Caravela
Portuguesa», pág. 493).
As vergas dos caíques são possantes, compridas
e flexíveis varas («A Caravela Portuguesa», pág. 477),
sujeitas, como as das caravelas, a vergar.
IX- Os pangaios. No oceano tndico, ·como no
Mar Vermelho, são, de há muito, usadas velas especiais
triangulares, as quais, prõpriamente, não merecem o
nome de redondos nem o de latinos modernos~ porque
andam mareadas constantemente por fora do mastro
e enxárcias, como o pano redondo. Do seu mastro pen-
dem duas driças que vêm à poupa («Lendas da tndia»,
pág. 122), as quais ajudão a soster o mastro, o qual
é muito inclinado para vante. Quando mudam de
amura tirão pola verga até que a imitão com o masto~
e a passão a outra banda. Como as ostagas vêm à popa
(c Lendas da tndia»), a verga só pode ser cambada
por antavante do mastro; assim, para facilitar esta
166 A TÉCNICA NA N Á UTICA DOS DESCOBRIMENTOS [ cAP.

passagem da vela, buscam ter o vento na popa, razão

pela qual em geral viram em roda, excepto em casos
de ventos muito bonançosos, nos quais, às vezes, viram
por davante. Aquela manobra, que ainda hoje vemos
praticar- na lndia continuam a não usar velas lati-
nas como as dos caíques-, era a mesma que Vasco
da Gama viu praticar às naos~ bogala8 e zambucos (da
palavra árabe zambuk) indianos, a que os Ingleses
dão o nome geral de dhows~ e os Portugueses chama-
ram pangaios, palavra esta que também se encontra
nos cronistas. Para Gil Vicente já são equivalentes as
palavras zambuco e caravela:

Hou lá~ não tombe o zambuco ...

E arrumar a caravella ... Pa ngaio

De acordo com o que se lê nas cLendas da lndia:.

(pág. 123), os pangaios têm uma entena lançada pela
proa, na qual às vezes amuram a vela. Assim, longe
de, como supõe Quirino da Fonseca, serem ronceiros~
grosseiramente rotundos~ bojudos, toscos~ primitivos
na fábrica e na serventia~ deficientes de qualidades
náuticas («A Caravela Portuguesa:., pág, 160), os pan-
gaios apontam muito pela bolina~ e correm muito à
vela ( cLendas da lndia»). Nos «Comentários», de
Afonso de Albuquerque, lê-se que um zambuco conse-
guiu fugir aos navios portugueses por andar mais do
que eles. Já o mesmo acontecera a Vasco da Gama em
Moçambique ( cLendas da lndia:., pâg. 32). Enfim,
Camões traduz a mesma ideia acerca das boas quali-
dades náuticas dos pangaios na est. 92.a do canto de
«Os Lusíadas» :

Outro aspec to do pangaio india no

f1IG. 2- Pangaio, visto por barlavento

FJG. 3- Pangaio, visto por sotavento

I, VI] AS C ARA V E LA S

Os pangaios sotis da bruta gente.

Notar-se-á que, na descrição da manobra dos pan-

gaios, que as cLendas da lndia» nos apresentam, se
não cita o facto de estes barcos virarem geralmente
em roda. Como o aspecto das velas, segundo os dese-
nhos de todos os barcos, tanto indianos como caravelas
e ga!lés, é o mesmo, concluiremos que também provà-
velmente todos eles viravam em roda, como os pan-
gaios. Tal é a explicação da falta de reparo de Gaspar
Correia.
De resto, os hábeis mareanteE! mouros do oceano
Indico ·c ontinuam tão satisfeitos experimentalmente
com as suas velas, que ainda não pensaram em as
passar para dentro das enxárcias, à maneira das lor-
chas da China, ou dos caíques. O que será, talvez, por
pensarem que seria navio mesturado aquele que empre-
gasse casco de pangaio - como o da caravela- com
velas de caíque, cujo casco raso é diferente dos que
vemos atribuídos às caravelas.
Não deixarei ainda de acentuar que as linhas de
água do pangaio são finas e ligeiramente convexas,
como só há meio século se usa na Europa; além disso
a casa-mestra fica bastante à ré da metade do compri-
mento, e o calado de água é a ré maior que a vante,
sendo a roda de proa lançada. Tudo isto, que vemos
agora nos modernos barcos de regata, teria feito sorrir
o carpinteiro mouro de Damão quando construiu, à
moda da Europa, a fragata cD. Fernando:. e a galera
«Viajante:..
De modo que, embora conheçamos os pangaios
por os vermos em Moçambique só depois de atraves-
sarem o Indico com a monção, não devemos esquecer
!68 A TÉCNICA NA NÁ UTICA DOS DESCOBRIMENTOS ( cAP.
que eles também iam a Suez, não remando, mas borde-
jando contra os ventos do noroeste, dominantes no
Mar Vermelho, talvez porque lá se não encontram as
correntes e o mar grosso da costa ocidental de África,
ao sul das Canárias, (figs. 2 e 3).
Adiante veremos surgir grande analogia entre o
velame das caravelas e galés e o velame mouro. Nota-
rei desde já que todas essas velas conhecidas têm as
vergas ostagadas mais ao meio do que os caíques,
sendo içadas por ostagas cujas betas ficam por antaré
dos mastros, e sendo aguentadas para barlavento e
para baixo pelas ostas, sem amantilhos a fazer de
retenida, evitando a curvatura das vergas que se vê
na caravela da Madre de Deus (cA Caravela Portu-
guesa», pág. 94).
X- Velas das Caravelas. Como se mareariam as
velas triangulares das caravelas? Só o podemos dedu-
zir dos desenhos antigos, nos quais, como é notório,
invariàvelmente todas as velas, tanto redondas como
latinas, estão muito enfunadas por fora dos mastros
e enxárcias- e isto tanto com vento largo como com
vento de bolina- exactamente como agora se vê nos
veleiros indianos. Tal aspecto é diferente do das velas
triangulares dos caíques e canoas, que hoje conhe-
cemos em Portugal.
Apesar de Quirino da Fonseca classüicar os dese-
nhos antigos como toscos, esboçados sem propósito,
ou de duvidosa fidelidade, bem característicos são,
entre out ros, aqueles que nos apresentam os cRotei-
ros» de D. João de Castro (figs. 4 e 5). De resto, os
artistas não poderiam ter sempre confundido a figura
da vela metida entre o mastro e as enxãrcias, o que
I, VI] AS C A RAV EL AS
seria inteiramente diferente das velas enfWladas por
fora das enxárcias.
No «Livro das Armadas» idênticamente se vê que
as caravelas usavam sempre as suas velas triangulares
à maneira dos pangaios. ~ certo que, como nota
Quirino da Fonseca, o cLivro» foi desenhado em mea-
dos do ~século XVI por quem nunca vira, nem talvez
pintadas, caravelas do Infante. Mas como, um século
depois, no tempo de Fernando Oliveira ainda a cara-
vela, de vela grande latina e redonda' avante, era a
mesma do «Livro», há daqui a deduzir que, no fim do
século XV, poderia ser que já houvesse caravelas
daquele mesmo tipo, como parece que eram as duas
de Colombo, antes de transformadas. E se no tempo
do Infante se usaram velas planas diferentes das dos
Mouros, como são as do caíque, temos que aceitar que
elas evolucionaram desse tempo para o das velas enfu-
nadas, que o cLivro:. nos apresenta. O que seria uma
conjectura bem pouco provável.
Mais antigo é o quadro do Convento da Madre de
Deus («A Caravela Povtuguesa», pág. 94, fig. 11), no
qual está pintada uma caravela semelhante, em casco
e vela, ao pangaio indiano. As suas velas, ambas por
sotavento do mastro e enxárcias, com as suas vergas
curvadas e ostagadas a meio, não são, absolutamente,
comparáveis a velas de · caíque. Deveriam ser assim
então as caravelas de cabotagem ou pescareza8.
Enfim, no capitulo 150.0 da cCrónica de D. João ll»
o Rei equipara as suas caravelas aos galeões de Roma;
ora estes, segundo a gravura da pág. 96, de «Navires
et Marins», ou como a da pág. 748, de Jal, usavam
velas mareadas em balão, como as dos pangaios
(figs. 8 e 12).
!70 A TÉCNICA A NÁ UTICA DOS DESCOBRIMENTOS ( CAP.

Como disse, eram tais barcos indianos os que

transportavam as mercadorias da lndia a Suez, pelo
Mar Vermelho. Por esta via, e pelos mareantes mouros,
que viviam no Norte de África e na Península, cá teria
vindo a sua arte de vela. Ela se te·r ia conservado no
Mediterrâneo, como o prova um mosaico do tecto de
S. Marcos, em Veneza (fig. 6), no qual se nota uma
pura vela de pangaio.
Mas não é só dos desenhos antigos que poderemos .E.S fRITO, .
' ....

inferir a diferença entre as velas latinas antigas e as

dos ·c aíques: os Espanhóis («A Caravela Portuguesa»,
pág. 37) consideravam a caravela um barco perigoso:
csi no se sabe manejar com destreza y prontitud al
cambiar las velas, porque si no van uniformes, se
vuelca fácilmente:.. Ora esta referência não se pode
aplicar aos caíques, cujo virar de bordo é manobra
sem perigo; porque as suas velas fazem porta para um
e outro bordo, ao passo que aqueles barcos que, como
os pangaios, usam as velas por fora das enxárcias,
quando dão sobre, fica a vela aplicada sobre os cabos,
sem ,se poder cambar para sotavento nem arriar.
Assim se explica, segundo o desenho do «Livro das
Armadas», a perda da caravela de Bartolomeu Dias;
o vento lhe deu de csupito:. «COm as velas sôbre os
mastros e enxarceas por davante, com que as vêrgas
nom poderão vir abaixo, posto que prestesmente lhe
largarão as driças; e foy o pé de vento tão forte que
logo sossobrou quatro naos ... » («Lendas da índia»,
pág. 153). Tal não aconteceria com velas de caíque.
Embora haja divergência sobre se Bartolomeu Dias ia
em uma nau, ou em um dos navios redondos, de Casta-
nheda (e não na caravela que lhe atribui o «Livro»),
é de supor que Bartolomeu Dias, antigo prático de \
.·-"'-:-;-...~. <I

. ~.--· -.. -
FIG . 4- Desenh o do «Roteiro do Mar Roxo», de O. João de Cas tro
I, VI] AS CA RA V ELAS

caravelas, nas quais fora ao Oabo, destinando~se em

1500 a explorar a costa de Sofala, tivesse natural-
mente escolhido uma caravela, embora não tão exígua
como aquela em que, em 1497, foi para a lndia, contra
o que supõe Quirino da Fonseca (c A Caravela Portu-
guesa», pág. 146). Porquanto a caravela era, pelo seu
reduzido deslocamento e calado, o navio próprio para
reconhecer terras novas. Magalhães levou uma cara-
vela.
De resto, desde que a caravela derivou dos caravos
mouros, que frequentavam o Mediterrâneo, é intui-
tivo supor- até uma prova em contrário- que ela
usava as mesmas velas preferidas sempre pelos
Mouros: as velas dos caravos seriam como as que
conhecemos do oceano índico, ou as dos chavecos de
Argel. Mouros, ou descendentes de Mouros, foram
também aqueles hábeis marinheiros algarvios que tão
importante papel desempenharam nos Descobrimentos
Portugueses.
E, de facto, a comparação entre o aparelho e o
velrune dos caíques e as velas dos pangaíos, ou dos
desenhos antigos, não nos deixa iludir:
Os mastros das caravelas inclinavam-se para
vante ( cA Caravela Portuguesa:., pág. 334), embora
não tanto ·como os dos pangaios; as vergas eram osta-
gadas mais próximo do meio que as dos cafques; estes
não têm as ostagas dos pangaios, galés e caravelas,
às quais se não opõem amantilhas; as ostagas eram
duas e ambas sempre por barlavento, por a beta da
ostaga, a ré, impor o cambar da vela 'Sempre por fora
e por sotavento das enxárci•a s (sobolomasto).
Ainda hoje vemos velas à indiana nos barcos de
pesca de Argel, no buque (beta da ostaga a ré, cA Cara-

A TÉCNICA NA NÁUTICA DOS DESCOBR IMENTOS [cAP.
vela Portuguesa:., pág. 442), nas muleta8, nos barcos
de pescadores da Madeira e de Vigo, nos barcos de
vela do Nilo, etc.
Eis as .r azões concretas em que apoiei a minha
conjectura, ou suposição («A Caravela Portuguesa:.,
pág. 80), pretendendo que os antigos panos latinos
eram concretamente diferentes dos latinos que usam
os caíques, modelo que se adoptou no timbre portu-
guês de Sevilha. Não se trata contudo apenas de uma
ideia nova, c tão credulamente sustentada:. (c A Cara-
vela Portuguesa:., pág. 80). Apoio-me nos vários mode-
los do Louvre, e também em desenhos antigos de galés
(figuras 1, 7, 8 e 12), como no desenho da pág. 744,
de Jal, e ainda nos cSouvenirs de Marine». Em todos
esses desenhos se verifica que as vergas não usavam
amantilhos, mas guardins, assim como que as beta8
das ostagas ficavam a ré a dos mastros, sendo as ver-
gas suspensas por antavante. Tudo como se encontra
no aparelho do pangaio.
Não me inclino a aceitar, como faz Quirino da
Fonseca ( «A Caravela Portuguesa», págs. 91 e 493),
que, no mar, as caravelas folgavam as enxárcias de
sotavento para, com vento largo, deixar enfunar as
velas à maneira do desenho de J. Brás de Oliveira
(«A Caravela Portuguesa:., pág. 479), o qual afinal
concorda com os desenhos antigos. Ao contrário, as
enxárcias eram folgadas só para deixar que a troça
da verga a apertasse ·c ontra o mastro - como no dese-
nho da pág. 749 de Jal-, ficando assim o mastro
aguentado tanto para barlavento como para sotavento,
não se correndo o risco de desarvorar com o balanço
(figura 8).
I, VI] AS CA RA VEL A S 173
Aceitando a conjectura natural de que as velas
das caravelas não diferiam das dos pangaios e galés,
não se deve contudo supor como Quirino da Fonseca
(pág. 90) que o seu velame embolsado se não podia
aproximar da mediana: os desenhos antigos mostram
as vergas na mesma posição que as dos calques, sujeito
o carro pela orça e a pena pelas osta8~ exactamente
como nas velas indianas. Assim, as velas das galés,
apesar de enfunadas, não impediam bolinar plus prés
du vent que o navio redondo (Jal, pág. 749). :m isto o
que ainda hoje se verifica com o pangaio.
Enfim, é certo que nos museus- como ainda no
modelo de chaveco que havia na Escola Naval- as
vergas estão içadas entre os mastros e as enxárcias:
assim as içavam e assim as usavam algumas vezes
nos portos, com as velas ferradas pelos moços~ caval-
gando as vergas. Mas os ovens terminavam em mãos
e ·eram fixados às betas de tezar por meio de cavirões,
o que tudo tinha por fim facilitar o passar a vela
para fora das enxárcias, quando a largavam para nave-
gar, de acordo com os antigos desenhos, tanto portu-
gueses como estrangeiros. Ao contrário, quando
arriavam as velas teriam de passar as vergas para
dentro das enxárcias.
XI- O cambar das vela8. Confirmando o que
sabemos pelos desenhos antigos, que apresentam
sempre as vergas pelo mesmo bordo (sotavento do
mastro), temos ainda as seguintes informações
históricas:
1.•- D. Jerônimo Osório conta que as caravelas
bolinavam em direitura e, para virar de bordo, muda-
vam o velame, sendo os Portugueses mUiito ligeiros
 174 A TÉCNICA NA NÁ UT ICA DOS DESCOBRIMENTOS [ C AP.
passando o couto (carro?) das vergas de um para
outro lado. Tudo o que Osório diz das caravelas se
pode aplicar à manobra de cambar a verga dos pan-
gaios, quando viram de bordo.
2. a - Fernando Oliveira, escrevendo em 1555,
conta que as vergas latinas eram trocadas de hum
bordo pero o outro sobolomastro; que os navios lati-
nos requerem a tolda mais recolhida para ré, porque
dê lugar ao carro de ir a ré quando virão («A Caravela
Portuguesa», pág. 134); que, de construção se previa
uma xareta, ou pavimento ligeiro, desde o chapiteu
até avante o mastro grande, por respeito de virar as
vergas; enfim, refere-se ao virar da verga, que he
latina. Todas estas referências se aplicam também
ao cambar das vergas dos pangaios, as quais vêm a ré
quando se vira, ficando pendentes sobolo mastro, por
causa da inclinação que ele tem para vante, como a
tinham as caravelas. Não tem aplicação aos caiques.
3.a- Enfim, o espanhol D. Escalante de Men-
donza, no «Itinerário », escrito em 1575, conta que os
navios latinos, ao virar de bordo, tienen necessidad
de traer al pié deZ arbol el car y pasarlo por de dentro
de la xarcia, como se hace en todas las caravelas. :m
este o argumento principal de Quirino da Fonseca
para defender a sua crença em que as caravelas portu-
guesas usavam as vergas sempre entre o mastro e as
enxárcias. Ma·s, segundo se conclui da leitura do mesmo
«<tinerário» de Escalante, ele 'só navegou em naos redon-
das e só· essas conhecia, sendo possível que nas naus,
visto elas virarem por davante, em 1575 já a mesma
vela sem importância, se cambasse por ante-a-ré do
mastro. Contudo, pelo menos em 1492, a nau de
Colombo, segundo um desenho da época, multo conhe-
I, VI] AS C ARA VELA S 175
cido (figura 9), mostra a mezena francamente por
sotavento do mastro e enxárcias, como as velas redon-
das e como as velas dos pangaios.
A única conclusão definitiva que há a tirar destas
informações é que as caravelas, de acordo com o que
diz Escalante, nunca podiam mudar de amura Bin virar
las vergas, ou sem far el carro (Jal). E, nesta imposi-
ção, as caravelas diferem dos caíques, que viram sem
cambar as vergas, não lhes permitindo mesmo o com-
primento do carro cambar a verga grande.
Se essa manobra de cambar as velas ao virar,
obrigatória para os navios latinos de então, tivesse
de se efectuar por ante-a-ré do mastro - o que a sua
inclinação, 10 a 15 graus para v·a nte («A Caravela
Portuguesa», pág. 443) , muito dificultaria- teriam as
betas das ostagas que andar por anteavante do mastro,
como nos caíques, podendo o mastro ser aguentado
para vante por um estai, cabo que não tem a caravela
(«A Caravela Portuguesa», pág. 335). Além disso, a
vela usada entre o mastro e a enxárcia, à maneira dos
caíques e canoas, não impõe a necessidad de cambar
a verga.
Por outro lado, examinando os modelos de galés
e chavecos que nos ficaram, e estão reproduzidos nos
«Souvenirs» do almirante Baris, como a galéasse La
Royale, os chebeks, o navio «Le Royab, a galé da
pág. 754 do «Gl.ossaire» de Jal, e os desenhos que re-
produzo (figs. 1 e 7) , conclui..se indiscutivelmente que os
antigos navios latinos tinham as betB~s das ostagas por
ante-a-ré dos mastros. Desta maneira, cambando a
verga por ante-a-ré do mastro ~a-se morder a ostaga,
e a verga não se poderia arriar nem içar em uma das
suas posições. Por este argumento decisivo, só pode-
 A TÉCNICA NA NÁUTICA DOS D ESCOBRIMENTOS [ CAP.

mos concluir que, pelo menos as velas latinas usadas

no século XVIII, eram exactamente como as das galés
de Roma (gravura da pág. 96 do livro cNavires et
Marins», fig. 8), de ·a cordo com o que afirmou
D. João ll a Pero de Alenquer, e com o que mostra a
reconstituição italiana da caravela cNiíia:., com a beta
da ostaga por ante-a-ré do mastro grande (c A Cara-
vela Portuguesa», pág. 365).
De resto essa disposição das betas chegou até
nós: vê-se nos barcos de pesca de Argel, nos buques
espanhóis (c A Caravela Portuguesa:., pág, 443) ; e,
quanto a ostagas içando de ré, assim as usam os
barcos de pesca de Vigo e da Madeira.
O autorizado Jal reconhece que as manobras das
velas das caravelas seriam idênticas às das galés; ora
como estas não podiam cambar as vergas por ante-a-ré
dos mastros, como mostrei, o que ·h á a concluir é que
J al ao dizer que as vergas eram cambadas derriere le
mât, sous le vent, ele se quererá referir a vento à popa,
posição esta do navio na qual atrás do mastro, ou a
sotavento dele, seria por anteavante.
Notarei ainda que a caravela (c A Caravela Por-
tuguesa:., pág. 334) que Quirino da Fonseca recons-
tituiu, segundo as indicações de F. Oliveira, não
poderia cambar a verga grande por ante-a-ré do mas-
tro, porque o mastro grande fica encostado ao pavi-
mento que dele corre ra té à popa.
Idênticamente, as caravelas latinas desenhadas
por Roque Gameiro ( cA Caravela Portuguesa:., pág.
493) admitem uma séria contestação: as suas velas,
inverosimilmente planas, estão, como de facto se
usava, todas por sotavento dos mastros; teriam pois
de as cambar ao virar de bordo; mas são tão compridas
FIG. 5 - Desenho reproduzido do «Roteiro de Goa a Oiu»,
de O. João de Castro
'

I, VI] AS CARAVELAS 177

que a verga grande, para ser cambada, teria de passar

por antavante não só do mastro, como também da roda
de proa. Apesar de a verga grande estar ostagada,
como a dos pangaios e as das caravelas do cLivro das
Armadas:., sensivelmente a meio, tal desenho não me
deu nunca a impressão de uma caravela, como as que
vejo nos desenhos antigos. Contudo, é esta, segundo
Quirino da Fonseca, uma «Crítica vaga que impressiona
o vulgo inconsciente:. ( cA Caravela Portuguesa:.,
pág. 494).

XII- A manobra de virar de bordo. :m sabido que

o cafque ao virar de bordo não camba as vergas (c A
Caravela Portuguesa», pág. 484), passando o vento
pela · proa, e ficando com as vergas, quando a barla-
vento, sobre os mastros, sem que a beta moa a vela,
por estar por anteavante do mastro. A rapidez com
que o caíque passa na linha do vento, não daria tempo,
sequer, a cambar o traquete. Quanto à verga grande,
ela não se poderia cambar porque a distância da ostaga
ao carro é maior do que o mastro acima da enora.
Quirino da Fonseca afirma que o cafque só acidental-
mente camba o traquete, para o pano preparar melhor
em bordadas longas; com vento fresco, ou mau tempo,
nunca o fazem («A Caravela Portuguesa:., pág. 167).
Ao contrário do cafque há, a respeito da caravela,
numerosas referências sobre a manobra de virar de
bordo (todas citadas por Quirino da Fonseca), de onde
se conclui que a caravela cambava as vergas sempre
que virava de bordo. Esta informação combina-se com
os desenhos antigos, que, como venho dizendo, mos-
tram sempre todas as velas por sotavento do mastro
e enxárcias.
11
 A TÉCNICA NA NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS [cAP.
Como tal impof!dção não existe para o caíque,
mas existe para o pangaio - visto que a sua driça vem
à popa- conclui-se materialmente que as velas trian-
gulares das caravela·s eram como as dos pangaios
indianos- ou como as das galés de Roma- , barcos
estes que, pela disposição das ostagas e pela inclina-
ção do mastro para vante, viravam quase sempre em
roda, aproveitando o vento à popa para impelir o
punho da escota para vante, facilitando o cambar da
verga por anteavante, quando a cimitão com o mastro:.
( cLendas da India», pág. 124). Eis explicado o equi-
voco de Quirino da Fonseca (pág. 140) quando julga
irrealizável a manobra da caravela virando em .r oda
para cambar a vela ·com vento na popa.
XIII- Caravelas latinas e caravelas redondas. O
que seria uma oaravel·a redonda? À falta de informa-
ções concretas- pois não há documentos a defini-la
- parece-me que se deveria seguir o critério moderno,
tão natural, chamando redonda à carave'la em que pre-
dominava o pano redondo e latina àquela em que o
velame principal fosse latino.
Esta versão está de acordo com a figura da pág.
69 da «Memória» em que Lopes de Mendonça, o cmais
abalizado conhecedor do assunto» (c A Caravela Por-
tuguesa», pág. 520), classifica como redonda uma cara-
vela cuja vela grande é redonda (fig. 10). Desta
suposta caravela redonda («A Caravela Portuguesa»,
pág. 692) Quirino da Fonseca discorda, sem argu-
mentos (pág. 608).
Sabemos que, para viagens largas, era corrente
as caravelas chamadas então latinas içarem no mastro
grande um pano redondo, em lugar da vela triangular.
r, vr] AS CARAVELAS 179
Idênticamente uma das caravelas de Colombo, que era
latina, foi feita redonda, trocando para redonda la vela
de en medio, ficando dois dos navios aparelhados como
as naus («A Caravela Portuguesa», pág. 257), com uma
vela grande redonda. Assim, apesar do traquete redondo
à proa- como na da figura 10- as caravelas espa-
nholas, que não tinham gávea,. eram chamadas latinas,
por causa de a vela grande ser latina. O mesmo acon-
teceu com as cinco caravelas latinas, que Vasco da
Gama levou consigo desde Lisboa, em 1502, as quais
levavam velas redondas armadas (c Lendas da lndia»,
pág. 270) , tornando, na índia, a meter velas latinas
(pág. 288).
Parece que Quirino da Fonseca crê que estas cara-
velas seriam primitivamente só de panos latinos, e que
a substituição seria da vela do mastro de proa - grande
ou traquete. Ora não há memória de caravelas com o
traquete latino; as caravelas de quatro mastros, das
«Lenda's da India» («A Caravela Portuguesa», pág. 409),
por causa do gurupés e do seu estai, teriam o traquete
redondo sem gávea. Além disso, contra a opinião de
Quirino da Fonseca, a caravela meã, de F. Oliveira
(c A Caravela Portuguesa», pág. 321) , tinha dois redon-
dos, o traquete e a cevadeira, não tendo gávea. Mas a
todas Quirino da Fonseca considera latinas (c A Cara-
vela Portuguesa», pág. 338). Não há memória de
caravelas puramente latinas com mais de três mastros
( cA Caravela Portuguesa», pág. 606).
Quanto à caravela de Armada, Fernando Oliveira
claramente a define, não como barco exclusivamente
redondo ou latino, mas como um barco mesturado e
neutro, tomando dos latinos a vela (·a vela grande) e
dos redondos o casco: ficava assim um modelo no género
180 A tiCNICA NA NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS [cAP.

das caravelas do «Livro das Armadas:. («A Caravela

Portuguesa», pág. 182) , cujo alteroso caste'lo lhes dá
casco semelhante ao das naus do mesmo cLivro».
A caravela de Armada seria pois diferente daquela
que Quirino da Fonseca reconstituiu («A Caravela Por-
tuguesa», pág. 334) cingindo-se fielmente aos aponta-
mentos do mesmo F. Oliveira para hua caravela de 150
a 180 toneis, a qual tem vela latina e casco de caravela,
e não de nau.
Não é a esta caravela nem à caravela de Armada
que F. Oliveira chama navio redondo, ao contrário do
que, insistentemente, mas sem argumentos, faz Quirino
da Fonseca; o que ele chama navio redondo (Lopes de
Mendonça, pãg. 164) é a caravela que, conservando a
sua forma própria do casco, toma do navio redondo a
forma da vela: «nunca me pareceu bem fazer da ca~a­
vela navio redondo . . . porque, mudando-se a forma da
vela cumpre mudar a fábrica do fundo». :m intuitivo que
ele se refere aqui, como no caso anterior, sempre à vela
grande. Assim a sua caravela de 150 a 180 tonéis, como
a caravela meã, apesar do traquete e cevadeira redon-
dos, seriam ambas consideradas barcos latinos. Caravela
redonda, para F. Oliveira, como para o arqueólogo, seria
a da pág. 69 de Lopes de Mendonça, já citada, a qual em
um casco de caravela, sem castelo, içava uma vela
grande redonda. Certo, com as suas palavras, F. Oli-
veira não pretenderia que a adopção do pequeno traquete
redondo significasse mudança na forma da vela que
impusesse uma alteração tão profunda na fábrica do
casco da caravela. De resto, como é sabido («A Caravela
Portuguesa», pág. 87) , tal vela levava-se por vezes
ferrada, desaparecendo o fútil pretexto para o pro-
testo contra a vela redonda. Portanto há a aceitar que

fiG . 6 - Mosaic o da Igreja de San Marco, em Veneza

I, VI] AS CARA VELAS 181

F. Oliveira se refere a uma caravela redonda por ter a

vela grande redonda.
Todas as caravelas desenhadas no cLivro das Arma-
das:. usam redondo no mastro do traquete: dificilmente
se poderá pois compreender que em meados do
século XVI, já tivesse sido esquecido que muitas das
caravelas das esquadras da lndia- às quais os cro-
nistas várias vezes chamam latina8- fossem de panos
só latinos, como aquelas caravelas exclusivamente lati-
nas que sabemos terem sido empregadas no século XV,
mesmo para ir à Guiné. De resto, é para duvidar que
tais barcos, destinados a montar o cabo de Boa Espe-
rança, passando-lhe cem ou mais léguas ao sul, usassem
na travessia desses mares tormentosos somente latinos,
no género das caravelas de três mastros, do Infante
D. Henrique. AB cinco caravelas da esquadra de 1502,
como as quatro de 1524 e as dez de 1533, todas cha-
I .
madas latina8, teriam sido, com toda a probabilidade,
navios de traquete redondo, como as caravelas de
Colombo- antes da modificação con la vela de en medio
redonda- ou como as duas de F. Oliveira, ou como as
que estão figuradas no cLivro das Armadas:.. Quem
poderá aceitar que as corenta caravelas latina8 que,
em 1539, partiram de Lisboa com socorros para Diu
eram todas de velas exclusivamente latinas?
Além disso se, no fim do século XV, Colombo e
os Espanhóis tinham reconhecido a utilidade de um
traquete redondo, como o das naus, nas caravelas tran-
soceânicas, não devemos conjecturar que tal progresso
só muito depois tivesse sido reconhecido pelos Portu-
gueses. O desenho conhecido da esquadra de Vasco da
Gama, em 1497, mostra a caravela de Nicolau Coelho
com três mastros, sem cesto de gávea, devendo içar à
 1
182 A TÉCNICA NA NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS (CAP.

proa um redondo, e no mastro grande, provàvelmente,

a vela grande latina. Seria, assim, o c..t:Sérrio», navio
análogo às caravelas .:Niõa» ou cPinta», de Colombo.
E de pres·ll.Ill.ir que, logo depois da viagem de Barto-
lomeu Dias, em 1487, se tivesse reconhecido que na
passagem do cabo de Boa Esperança eram preferíveis
os navios redondos, como a cS. Gabriel» e a cS. Rafael»,
construídos de propósito para a viagem de Vasco da
Gama («A Caravela Portuguesa», pág. 607).
Quanto às caravelas de Dias e Infante é aceitável
que já usassem, como as espanholas, um traquete
redondo: o que se induz das cDécadas» (1.0 vol.,
pág. 43), onde se lê que Bartolomeu Dias correu treze
dias com a vela a meio mastro, o que nàuticamente, se
não deve referir às grandes vergas das caravelas com
a vela grande latina a vante. Em todo o caso, desta
experiência de 1486 a 1487 resultou reconhecido que
a caravela seria imprópria para largas travessias por
mares tempestuosos (cA Caravela Portuguesa», pág.
607); donde resulta que as caravelas latinas, destinadas
à viagem da índia, não poderiam nunca ser puramente
lat:inas, como as do Infante, mas aquelas de redondo à
proa, que o «Livro das Armadas» nos apresenta.
Não há, nem os apresenta Quirino da Fonseca,
argumentos que nos indu~am a concluir ( «Repr. Artís-
tica», pág. 56) que se tivesse chamado latina só à cara-
vela de velas exclusivamente latinas, ou que tivessem
feito parte das Armadas da lndia- a não ser uma
desarmada em peças, a «Pomposa» -caravelas de panos
só latinos, às quais se teria dado o nome exclusivo de
caravelas latinas.
Eis as razões pelas quais, apesar de Quirino da
Fonseca repetir que as caravelas (assim como as galés

FIG . 7 - Figuração técnica de uma galé

I, VI] AS C ARA V E LAS

que usav•a m traquete redondo) eram só por isso consi-

deradas caravelas redondas, mantenho a conjectura de
que, no século XVI, como hoje, só era chamado latino
àquele barco em que predominava o pano latino de então
- anàlogamente aos chamados hoje navios latinos.
Assim não iríamos considerar redonda a galé de D. João
de Castro (fig. 5), que tinha traquete redondo, mas
só aqueles navios, como a caravela redonda de Lopes
de Mendonça, ou as de Colombo, cuja vela principal
era redonda: é o que fazemos com a barca de agora,
apesar de nela o pano latino ser tão importante que a
sua área se aproxima da área total das velas redondas.

XIV -A volta da Guiné pelo mar dos Açores. O

comandante Quirino da Fonseca admite que os navios
-ou pelo menos as caravelas- em viagem de volta a
Portugal da costa da Africa Ocidental pudessem vir
bolinando para o norte, contornando ·a costa; ao passo
que considera que as viagens em arco, pelo largo, seriam
viagens atribuladas em sacrifício inútil, as quais, se
as não praticavam, não era por falta de «conhecimento
do mar largo». Reconhece documentalmente (sic), na
pág. 615, que aquelas caravelas, de ordinário, vinham
directamente à ilha da Madeira e depois a Lisboa; e não
considera forçoso («A Caravela Portuguesa:., pág. 616)
que um caíque actua!l, vindo da costa ocidental de
Africa para o Algarve, prolongue a sua derrota até ao
mar dos Açores.
Apoiado nesta sua opinião, Quirino da Fonseca não
aceita a conjectura de que as ilhas de Cabo Verde, como
as dos Açores, foram descobertas acidentalmente por
caravelas- das que navegavam por toda a parte («A
 A TÉCNICA NA NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS (cAP.
Caravela Portuguesa», pág. 616) -no seu regresso a
Portugal por oeste.
Mas a resposta é simples: o facto da existência
das correntes e ventos gerais do norte era conhecido
já no princípio do século xv, impedindo a abertura do
caminho da Guiné; este mesmo factor impõe ainda hoje
a volta pelo largo, como caminho mais prático para
os navios de vela redondos ou latinos, de alto mar;
enfim, ainda no século XV, Diogo Gomes contava:
«E eu tinha um qwadrente ... »
«Eu e Antônio de Noli, do porto de Zaya, fomos dois
dias e uma noite caminho de Portugal, e Vlimos ilhas no
mar ... Chamamos Santiago à ilha ... »
«E depois vimos a .ilha de Palma, e em seguida fomos
à ilha Madeira. E querendo ir a POI'ltugal, com o v·emto
ccmtrário fui às ilhas dos Açores ... »
Já o P.e Antônio Cordeiro, na pág. 342, escreveu:
«Como as ilhas de Cabo V •e.rde se desoobm,ram em
1543 (?) ... é de crer que destas vindo navio para Portugal
.deu no Norbe da Terceira ... »
Quintela, na pág. 75, .c onfirma a idei·a das viagens
pelo mar largo quando escreve que, «pela posição geo-
gráfica das Canárias e a navegação que fazem os navios,
na sua volta à costa de Portugal, ou de França, é moral-
mente impossível que um deles não descobrisse a
Madeira:.. E mais adiante, na pág. 127, observa, ares-
peito de Cadamosto, ser indubitável que cna volta para
Portugal não podia ser a sua viagem de simples cabo-
tagem:..
I, VI] AS CA RA V ELAS
Não basta, portanto1 declarar sem documentos que
as viagens de retorno, ainda no tempo do Infante
D. Henrique, de ordinário se faziam àirectamente à ilha
àa Madeira e depois a Lisboa, bordejando contra a vaga
- por vezes tão cavada que já fez arribar vapores de
maior tonelagem que as caravelas- e ainda contra
fortes correntes -que já Zwara (pág. 51) julguva
«tamanhas, que navyo que l·a passe, jamais nunca
podera tornar» - , e isto em barcos de duas dezenas de
metros de comprimento e cujo calado era reduzido («A
Caravela Portuguesa», pág. 239). Porque, para os náu-
ticos, mesmo que as caravelas de guerra artilhadas
fossem navios idênticos aos actuais caíques (em velas
e casco) tais viagens directas só seriam possíveis aci-
dentalmente, indo-se, junto de uma costa então mal
conhecida, aproveitar revessas e terrais; ainda que
algum caíque tivesse pretendido voltar de Mossâmedes
a Portugal- ào que não há memória- o seu piloto
não correria a aventura da atribulada viagem costeira,
e teria certamente preferido ir ao mar dos Açores,
como há séculos praticam invariàvelmente todos os
navios, cujas derrotas deixaram rasto conhecido.
Por lá veio Colombo, por o ter aprendido em Por-
tugal, de onde partiu antes de Bartolomeu Dias voltar
do cabo de Boa EJsperança: é certo que, se tivesse
tentado bordejar em demanda da Espanha contra o
vento alisado favorável, que em 1492 o levou às Anti-
lhas, Colombo -como também os tripulantes do cafque
de Mossâmedes! -teria morrido de fome no caminho.
Foi também pelos Açores que Vasco da Gama
regressou em 1499; e quanto ao seu piloto Pero de
Alenquer, se é que morreu na viagem ( cA Caravela
Portuguesa», págs. 233 e 616), ele provara antes conhe-
186 A TÉCNICA NA NÁUTICA DOS DESCOBRlMENTOS [cAP.

cer bem essa volta da Mina pelo largo, quando, com a

larga experiência que lhe atribui Lopes de Mendonça,
na pág. 51, afirmou a D. João II que era praticável
trazer da Mina a Lisboa qualquer navio redondo ou nau,
por mau de vela que fosse. Mas o Rei apenas queria que
se acreditasse que só navios latinos, como as caravelas
de Portugal e do Algarve, ou «OS galeões de Roma» - e
não os navios redondos, entre os quais julgamos que
não incluía a caravela de pequeno traquete redondo
-poderiam voltar da Guiné, contra os conhecimentos
dos ventos e correntes dominantes.
Enfim, é conhecido que, em 1487, Bartolomeu Dias,
cansado de lutar contra os ventos contrários da costa
sudoeste de Ãfrica, se decidiu- apesar de levar cara-
velas! - a meter-se no bordo do mar, em um golfão,
desconhecido, até que dobrou o cabo de Boa Esperança
sem o ver. Praticou assim uma rota análoga àquela
que se deve atribuir aos caravelistas que voltavam da
Guiné a contornar o alisado de nordeste, como Barto-
lomeu Dias, em 1487, contornou o alisado de sueste, de
cuja existência tanto ao sul ele deve ter sido o revelador.
Tudo isto a história indica que o próprio D. João ll
firmemente o sabia, apesar de não ser navegador, pois
fazia crer que «navios redondos não podião tornar da
Mina por ca·SO das grandes correntes, somente navios
latinos».
Há ainda outra indicação de que os Portugueses
visitaram os mares dos Açores na primeira metade do
século xv: na carta de Andrea Bianco, datada de 1436,
e existente em Venem- na qual aparecem as ilhas
dos Açores na sua posição real ao noroeste da Madeira,
o que resultou de linformações portuguesas-, está, um
cento de léguas a oeste do arquipélago, a indicação

Fw. 9 - A caravela de Colombo, segundo gravura de 1493

I, VI] AS CARAVELAS

cMar de baga:. (ou sargaço). Contra o que Quirino da

Fonseca supõe (c A Caravela Portuguesa:., págs. 232 e
616), não foram, portanto, nem Colombo nem Vasco da
Gama os primeiros a frequentar esse mar de sargaço:
verosimilmente os primeiros navios a passar tanto ao
largo foram as caravelas de retorno da costa de África
pelo caminho mai8 breve, o qual era uma rota em arco,
a cortar a região do alisado do nordeste, a proveitando
depois os ventos variáveis para ganhar a latitude de
Lisboa, e vindo de lá em demanda da serra de Sintra,
embora o vento norte fresco reinasse na costa de Por-
tugal.
Como consequência do seu equívoco sobre a proba-
bilidade de as caravelas do Infante só fazerem de ordi-
nário viagens directas, da costa de Africa para Lisboa,
cbolinando com vento por bombordo:. ( cA Caravela
Portuguesa», pág. 219); e apesar de ser conhecido que
Diogo Gomes, em regresso -não da costa ou das
Canárias, mas mesmo da Madeira-, teve neeessidade
de passar pelos Açores, como já passara por Santiago,
em caminho de Portugal, Quirino da Fonseca põe de
parte a versão (que não 'Criei) de que as primeiras
ilhas dos Açores, descobertas pelos Portugueses cerca
de 1432, o foram por acaso, em uma dessas viagens
de regresso de África.
Contudo, por um lado, a busca de ilhas problemá-
ticas ao ocidente pouco deveria interessar o Infante
D. Henrique, preocupado na passagem além do cabo
Bojador, que lhe abriria o caminho do conhecido
comércio da Guiné, tão compensador que valia então a
pena i)azê-lo por terra com a's caravanas de Marrocos.
Por outro lado, certas ilhas fantásticas arrumadas
nos portulanos do século XIV, ao norte da Madeira e
I88
A TÉCNICA NA NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS (CAP.
na latitude de Portugal, poderiam excitar a curiosidade
dos aventureiros portugueses, a quem mais tarde tentou
a América; mas, logo que tivesse sido reconhecido que
nem às cem léguas da costa de Portugal, marcadas nos
portulanos - como nem cem léguas em torno - , não
havia terra alguma nova (por os Açores ficarem a mais
de 200 léguas de Portugal), tal pesquisa de ilhas, cuja
existência era ignorada, teria sido sem hesitar abando-
nada. Quirino da Fonseca- a quem reconheço não estar
iSolado nesta sua inverosímil versão da descoberta pro-
positada- argumenta ainda com a identidade do nome
corvo, «um tanto relacionado» ( cA Caravela Portu-
guesa», pág. 229). Ora a antiga ilha dei corvi é das
maiores e das mais próximas do arquipélago fantástico;
ao passo que, ao contrário, a ilha a que os Portugueses
deram o nome de Corvo está não a 100 mas a 300 léguas
da costa de Portugal, e é a mais pequena do arquipé-
lago. Onde está a relaçãof
Eis as razões pelas quais a conjectura de que os
Açores foram descobertos no decurso de uma viagem
de regresso a Portugal- com vento contrário, como
aconteceu a Diogo Gomes- é nàuticamente muito mais
aceitável do que aquela que admite que os navios do
Infante podiam voltar da costa de Mrica bordejando, e
que os Açores, apesar de estarem ao mar largo, e não
mais perto e à costa, como está o cabo Bojador, foram
buscados em viagens directas ao ocidente, anteriores
à passagem para o sul do mesmo cabo.
Não há documento algum que desfaça a conjectura
da descoberta acidental; o estudo dos ventos gerais do
Atlântico -hoje tão fácil nas cartas de ventos publi-
cadas mensalmente- plenamente a justifica.
I, vr] AS CARA VELAS
Esta conjectura explica ainda a hesitação, tantas
vezes secular, na passagem para o sul do cabo Bojador:
ignorando-se a possibilidade da volta da Guiné pelo
mar largo, receava-se que, contra vento e corrente,
nem as galés de Génova nem as caravelas portuguesas
pudessem voltar da Guiné à Europa bordejando ao
longo da costa de África. E aqueles mareantes que,
durante tantos séculos, a limentaram tal receio não
podiam deixar de ter razão!
CONCLUSÃO
:m conhecido que as velas dos calques, usadas sempre
entre o mastro e a enxárcia e indiferentemente pelos
dois bordos do mastro, nos apresentam aspecto muito
diferente daquele que notamos nos desenhos antigos
de ,c aravelas, sempre de velas enfunadas. Tanto desses
desenhos como de outres informações deduz-se que
tanto caravelas como galés, pelo facto de usarem sempre
todas as velas pelo mesmo lado de mastros e brandais,
eram obrigadas a cambar todas as vergas sempre que
viravam de bordo. O que não acontece com o calque.
Tal manobra obrigava a passar a verga de um para
outro lado por anteavante do mastro; para esta opera-
ção, quando a verga ficava prolongada com o mastro,
a vela era cambada com a escota, pela proa. Como a
esta manobra convém vento pela popa, o virar de bordo
tinha de ser feito geralmente em roda. Assim se faz na
fndia. Dos modelos de barcos antigos conhecidos, os
quais têm -como os pangaios- as betas das ostagas a
ré dos mastros, conclui-se que era geral nas velas latina8
antigas 'a imposição de virar em roda para as cambar.
 A TtCNICA NA NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS [CAP.

Tal tipo especial de velame continua, mesmo em

barcos de 400 toneladas, a ser o favorito dos experientes
marinheiros mouros da tndia, de onde vieram os avós
dos caravelistas do Infante D. Henrique, embora essas
velas árabes não permitam aos navios o chegar-se tanto
ao vento como o fazem os caiques e outros barcos lati-
nos modernos . . . Embora essas velas fossem perigosas,
porque, quando o vento saltava ao lado que tinha sido
antes sotavento, não havia tempo de arriar •a verga, e
como a vela não podia cambar por si folgando a escota
--como fazem ·a s dos caíques-as velas latinas •a ntiga·s ,
dando sobre, podiam causar a perda da embarcação ... P.IG. I O- Ca ravela
Apesar de todos estes inconvenientes, havia vantagens redo nda, do «Livro
superiores no uso das velas indianas; porque é certo das Fortalezas de
ei-Rei O. Manuel»
que se notam os mesmos defeitos nas velas redondas,
e elas foram contudo o pano favorito do período áureo
do navio de vela, no tempo em que havia naus de três
pontes, e grandes corredores de alto mar, os clippers
do chá.
Acrescentarei que se não encontram documentos
nem argumentos que se oponham à versão de que nos
fins do século XV e, provàvelmente, antes de Bartolo-
meu Dias voltar do Oabo já os mareantes portugueses
tinham experimentalmente reconhecido, como os espa-
nhóis, as vantagens do pequeno traquete redondo, vela
esta que tornava a caravela de cabotagem mais própria
para o longo curso. Assim o podemos inferir do facto
de o Tratado de Tordesilhas prever uma esquadra inter-
nacional de quatro caravelas, portuguesas e espanholas,
para a demarcação da raya.
Foi só muito rp.ais tarde que da combinação da
vela da caravela com a vela da lorcha chinesa - que
faz porta em torno do mastro - se originaram as velas

FIG. 12- Galé de Malta, segun do uma es ta mpa do século xvru

I, VI] AS CARA VELAS I9I

dos calques, como também as outras a que moderna-

mente se chama pano latino; mas o calque ficou sendo,
como a caravela primitiva, apenas barco de cabotagem.
E ra caravela, apesar do traquete redondo, foi banida
do alto mar pelos navios redondos.
Não era por puro capricho, nem para realçar as
faculdades decorativas dos trabalhos de artistas incons-
cientes, que a,s caravelas, como as galés e os chavecos,
usavam as velas muito enfunadas em balão, por sota-
vento dos mastros e enxárcias.
Por um lado, fora reconhecido que as viagens de
mar largo - e não de cabotagem -não impunham
barcos que chegassem tanto ao vento como os moder-
nos barcos latinos: conhecidos os ventos gerais, cujo
regime os Portugueses descobriram no século XV. con-
cluira-se que havia maneira segura de o navio de vela
ir a toda a parte, contornando os ventos contrários, em
derrotas indirectas, que evitavam a penosa e proble-
mática faina de bordejar contra o vento.
Por outro l'ado, nos antigos navios, ra ltos de borda
e de estabilidade deficiente ou mal conhecida, a vela
em balão tinha a vantagem de se ir levantando à medida
que o vento refrescava; o esforço do vento, tornando-se
de baixo para cima, não fazia inclinar tanto o barco,
como o fazem as velas planas actuais, e, diminuindo
assim o risco de o barco se virar, ele podia continuar a
reger o pano, sem necessidade de rizar, ou de tirar as
monetas, como se fazia com o pano redondo. Eis o que
ainda agora notamos, tanto n~s pangaios como em
alguns barcos de pesca, os quais nos surpreendem pela
sua moderada inclinação, mesmo quando sopra vento
fresco.
192 A TÉCNICA NA NÁUTICA DOS DESCOBRIMENTOS [cAP.

Em resumo, quer pela sua origem moura e medi-

terrânea, quer pelos desenhos antigos, e ainda pela
disposição das ostagas, há a concluir que as velas lati-
nas- como as das caravelas, galés e chavecos- se usa-
V'am sempre excessiV'amente enfunadas. De onde tam-
bém se conclui que será erro náutico o facto de alguns
portugueses atribuírem às velas das caravelas uma
representação artística que as faça assemelhar ao cafque
do Algarve, ou às canoas da picada, como se fez no
timbre da Exposição de Sevilha. Para não errar dever-
-se-ia antes copiar o tipo do «Livro das Armadas~, ou
das galés de Roma (fig. 8), ou do pangaio indiano
(fig. 3), ou dos desenhos .r eproduzidos na «Raccolta
Colombiana», figurando todas as velas das caravelas,
como as das naus, artisticamente enfunadas, por fora
Figura I
das enxárcias. Desenh o téc nico de uma galé
Eis as razões pelas quais continuo convencido de
que, com as conjecturas desenvolvidas na conferência
da Sociedade de Belas-Artes, fiz alguma coisa mais
do que tentar «impressionar o vulgo inconsciente» com
vagas críticas, «sem longos estudos prévios» («A Cara-
vela Portuguesa», pág. 494). Porquanto não há segredo
nem mistério na explicação das vantagens técnicas das
velas enfunadas das caravelas portuguesas: não se
trata, como acabo de mostrar, duma sugestão arbitrária,
«apoiada em argumentos que se possam pôr de parte»
(«A Caravela Portuguesa», pág. 625).
Enfim, ao pretender que o velame da caravela
portuguesa difere dos ligeiros caíques de nossos dias,
sendo ela neta do subtil pangaio, eu não deprimo o notá-
vel baixel dos ousados caravelistas algarvios: já há três
md.l anos que pangaios da India, seus av6s, cruzam o
oceano Indico com o mesmo velame usado agora. Foram

Figura 8
Duas ga lés, segundo gravu ra do sécul o XVI , existente em Bruxelas
I, VI] AS CARAVELAS 193

os ·s eus hábeis ·t ripulantes mouros quem trouxe ·ao Medi-

terrâneo as suas vela·s enfunadas. Certo, elas e11am
impotentes para vencer, directamente, os ventos e as
correntes da costa de Mrica além-Bojador. Admirável
foi, portanto, a inteligente acção dos colaboradores do
Infante D. Henrique, que conseguiram com as caravelas
contornar aquela dificuldade milenar, tornando-as
barcos de alto mar e descobrindo que as viagens de
volta da Guiné- como do largo do Atlântico -pode-
riam ser praticadas à vela, pelo Mar do Bargaço, como
o fazem os mais finos veleiros modernos. Eis as razões
nãuticas que explicam como foram descobertos os
arquipélagos dos Açores e de Cabo Verde, e afinal todas
as tantas ilhas do Atlântico que ainda conservam nomes
portugueses.
 CAPITULO II

A ESCOLA DO MAR LARGO

ATLÂNTICO E COSTA DE ÁFRICA

SUMÁlUO:

I-Açores. A Volta do Mar Largo

li-Cabo Bojador. A Volta do Mar de
Baga ou do Sargaço
m- Cabo de Boa Esperança. A Volta
do Cabo
IV- Tratado de Tordesilhas
 I - AÇORES. A VOLTA DO MAR LARGO

Ao estudarmos a Histór1a da Descoberta dos

Açores~ reconhecemos de início que são escassos os
elementos que nos restam para poder deduzir, com segu-
rança, detalhes sobre essa primeira revelação da capa-
cidade dos Portugueses como navegadores do alto mar.
O incêndio dos arquivos da Casa da lndia, em 175~,
tira-nos a esperança de se virem a encontrar novos
documentos sobre a época das nossas descobertas geo-
gráficas.
Até cerca de 1830 acreditava-se, como sendo a
mais provável, na versão da descoberta portuguesa dos
Açores há proximamente cinco séculos. Era o que-
por motivos que adi•a nte apontarei - se podia deduzir
da reserva significativa dos ·c ronistas, como Zurara e
Barros, e também do cEsmaraldo:.; e era o que se
apurara no dndice Cronológico:..
Foi por essa época que, com D'Avezac-tão hostil
aos navegadores portugueses-, ·se começou a suspei-
·t ar que os Açores teriam sido conhecidos já antes do
tempo do Infante D. Henrique, pretendendo-se que
os mapas do século XIV a:presentavam aquele arqui-
pélago desenhado com cnotável exactidão, salvo um
defeito geral na orientação:. ; o que era confirmado por
um manuscrito da mesma época. Tudo teria resultad9

198 A ESCOLA~DO.MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA DE ÁFRICA ( CAP.
de viagens ao Ocidente, das quais, inexpl.icàvelmente, se
perderam outros vestígios.
Tem-se discutido se estes documentos teriam sido
actualizados no século xv, depois das descobertas por-
tuguesas. Direi desde já que, pelo que se refere aos
Açores, tais retoques, se os houve, não revelam influên-
cia das ·v iagená portugliesas, pois o desenho daqueles
mapas opõe-se nitidamente à realidade geográfica, que
os pilotos do Infante provaram ter sido os primeiros
a conhecer.
:m certo que há professores modernos, como o
Dr. Jules Mees, que aceitam que as ilhas do grupo
central dos Açores, separadas por canais de menos de
seis léguas, podiam ter sido descobertas em anos dife-
rentes, ~sendo-o o ra lto Pico depois do Faial -professo-
res esses que apesar de não mostrarem os conhecimentos
elementares de náutica, necessários para discutir via-
gens de navios de vela, concluem com convicção que os
Açores já tinham sido visitados antes daquilo a que
chamam a redescoberta ou o reconhecimento por-
tuguês. Contudo, é certo que dessa visita, em data
ignorada, por navegadores ignorados, nem ao menos
ficaram, nos mapas geográficos, indicações que pudes-
sem orientar outros navegadores. Tal visita resulta,
assim, extremamente improvável.
Com esta minha comunicação vou tentar demons-
trar que o critério dos antigos historiadores, do tempo
em que era comum a prática da navegação à vela, pode
continuar a ser seguido, como o propôs Pinheiro Chagas:
porquanto não há fundamento técnico para deixar de
de considerar entre as grandes navegações portuguesas
a Descoberta do Arquipélago dos Açores, povoado por
li, t] AÇORES. A VOLTA DO MAR LARGO 199
portugu~ses empreendedores e constituindo, ainda hoje,
uma parte importante do território metropolitano.
O cLIBRO DEL OONOSÇIMIENTO:.
O argumento capital que tem sido aproveitado
contra 'a versão da descoberta portuguesa dos Açores
é um manuscrito espanhol do século XIV, publicado em
1877 por D. Marcos de la Espada, cujo titulo é:
cLibro del Conosçimiento de todos los Reynos y
Tierras y rSefioriOS».
O seu autor anónimo, um frade mendicante de
Sevilha, pretende ter percorrido todo o mundo conhecido
na sua época, a Europa (incluindo a Inglaterra e a
Islândia), a Rússia, a tndia, a China, Java, ·a África
até ao golfo da Guiné (e talvez a Serra Leoa) e, enfim,
25 ilhas do Atlântico, compreendendo todas as Canárias
e a Madeira, que são aquelas que se têm pretendido
identificar com os Açores.
Esta viagem, para cver las islas perdidas que llama
Tolomeu las islas de la caridab, teria sido feita a
bordo de un lefío (embarcação pequena de vela e remos,
como a fusta) «Con unos moros»; depois de terem
atingido a ilha mais afastada da África, a de los Cuervos
Marines, voltaram ao cabo Bojador, donde tinham
saido. ·
Ora, naqueles tempos não poderiam tão longas via-
gens por ~terra ter sido realizadas por um só homem,
andando a pé, mesmo que tivesse recursos. O pobre
frade foi, pois, mais geógrafo compilador que viajante.
Estudando ra sua viagem atlântica nota-se logo
claramente que o frade enumera as ilhas, que d~ cter
~ 200 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA DE ÁFRICA ( CAP.
ido ver:., segundo o que leu nas antigas cartas catalãs,
caindo no mesmo erro de chamar Balvage e Desierta
a grupos de ilhas, e falhando, no grupo . de oito ilhas
ao norte da Madeil'a, as mesmas duas ilhas que falta.m
nas cartas para aquele arquipélago dos Açores estar
numericamente completo. Tão-pouco o frade mendi-
cante nos conta alguns detalhes inéditos que, em uma
visita real às islas de la caridat, não poderia deixar de
ter notado: não nos fa11a nas grandes alturas de Tenerife
(3700 m) ou do Pico (2300 m), nem nos diz que a ilha de
8. Miguel é alongada e a maior do grupo, nem que a
do Corvo é a mais pequena. Enfim, não notou que a
ilha mais a sul do grupo, a Looo, não está a 25 léguas,
e portanto perto de Porto Santo, como nos portulanos,
mas, pelo menos, a 150 léguas.
O frade conta a viagem como se, sem dependência
dos ventos -isto é, em navio motor-, tivesse suces-
sivamente avistado as ilhas pela ordem em que elas
estão desenhadas nos portulanos! Ora, a remos, a sua
viagem seria impraticável.
Tal viagem autêntica, embora não fosse feita pelo
frade, exigiria que a bordo houvesse outras cartas
de navegar, diferentes daquelas tão erradas em que ele
acreditou, com distâncias e rumos aproximados para
ser possível ir demandar ilhas tão afastadas umas das
outras. Além disso a viagem entre as Canárias e a
ilha do Corvo está projectada contra os ventos domi-
nantes: a ida deveria ser directa pelo largo, ao passo
que a volta seria sucessivamente de ilha em ilha. Esta
volta, que o Libro liquida com cinco palavras, ctorneme
ai cabo de buyder:., conesponde ·a uma navegação de
mais de mil milhas!
li, r] AÇORES. A VOLTA DO MAR LARGO 20I
Enfim, tratar-se-ia de uma viagem não comercial,
mas de exploração ou recreio, que naquele tempo um
navio isolado não faria, porque as ilhas como a
Madeira- só com excepção das três Canárias orien-
tais - eram todas desertas e sem recursos.
Assim, se tentarmos ajustar esta viagem à ver-
dade geográfica, que hoje conhecemos, não será neces-
sário perspicácia para concluir que o frade não visitou
toda a série de i'l has que cita, e se limitou a imaginar
um cruzeiro, fi·ado nos portulanos do século XIV, de
onde copiou, pela sua ordem, os nomes das ilhas. Om,
com mapas assim errados, nem mesmo um náutico,
conhecedor da navegação de vela e dos ventos do
Atlântico, poderia inventar uma peregrinação marítima
verosímil.
Portanto, o Libro- espécie de compêndio das
tradições geográficas correntes da época- não passa
de um argumento infantil contra a versão da descoberta
portuguesa dos Açores no século XV. Ele não prova
mais que as cartas do século XIV; mas, visto que
elas apresentam outros deta:lhes, há que discuti-las
como se o manuscrito, delas copiado, não existisse ou
tivesse sido composto no nosso tempo.
O Libro- que se provou ter sido acrescentado
depois de 1400 - conta uma peregrinação inverosímil,
esmolando entre Java e a Serra Leoa, e prolongando-se
pelo mar fora até à ilha Cuervos Marines; a crença
nesta testemunha ,t raduz, simbõlioamente, ·a facilidade
com que alguns publicistas aceitaram argumentos
contra a ideia da descoberta portuguesa dos Açores.
De facto, não há em documento algum, anterior
à descoberta portuguesa, séria referência ao arquipé-
lago dos Açores.
, 202 A ESCOLA D O MAR LA RGO-ATLÂNTiCO E COSTA DE ÁFRICA [ CAP.
OS PORTULANOS DO S:mCULO XIV
A MADEIRA
Passemos a estudar os portulanos e cartas do
século XIV. Na parte em que eles dizem respeito .à
ilha da Madeim (Legname dessas cartas), é certo que
já em 1351 a apresentam, com as Selvagens~ Deserta
e Porto Santo, todas com os seus nomes modernos,
convenientemente ,aiTUmadas. A ilha está desenhada
em uma posição aproximada, segundo a distância e
rumo -não magnético mas verdadeiro! - a que fica
de Lisboa. Assim, na carta catalã de 1373, o erro em
direcção é apenas de um grau. Tem a forma alongada
de leste 1a oeste, e um por.to aberto ao sul, como está
o Funchal. Sómente se não explica o nome Deserta
dado a uma ilha especial, quando é certo que, no tempo
das cartas, todas aquelas ilhas eram desertas de gente;
as Desertas emm então, como ainda hoje, habitadas
por pássaros e por focas.
Tais informações, tão cor.rectas, não as podemos
atribuir ao acaso, nem mesmo à arribada, debaixo de
temporal, do inglês Machim: elas denunciam viagens
reais, de náuticos hábeis, talvez mouros ou portugueses
- vista a exactidão do rumo e distância entre a
Legname e Lisboa-, navegadores esses anteriores ao
InfantEl D. Henrique, que as mandou povoar, e até
mesmo ao rei D. João I.
Recordemos que a descoberta da Madeira seria
elementar, porque as Canárias se avistam da costa de
África e, ·s ucessivamente, umas da:s outras; além disso,
tanto Tenerife como a Madeira são muito altas e se
li, 1] AÇORES . A VOLTA DO MAR LARGO 203
podem avistar, com tempo claro, a mais de cem milhas,
havendo exemplo de, no mar, se terem visto as duas
ilhas ao mesmo tempo. · Pessoalmente, eu já vi Tenerife,
e a Córsega, e Santo Antão, a mais de cem milhas.
De resto, a Madeira fica a cerca de cem milhas
do caminho directo de Lisboa para as Canárias;
pode-se pois admitir que os navios antigos - talvez
ainda do tempo em que Lisboa era moura- ao vol-
tarem de Marrocos, com vento pontedro, passassem à
vista da Madeira.
.A!ssim, os portulanos do século XIV revelam um
conhecimento náutico indiscutível sobre a existência
da ilha da Madeira (como de resto sobre a das Caná-
rias), não se podendo contudo saber quando ·a ilha teria
sido visitada pela primeira vez. A descoberta de Porto
Santo e da Madeira, em 1418, a que se refere Barros
nas cDécadas», não foi uma verdadeira descoberta,
mas o reconhecimento de ilhas, embora mal conhecidas,
que o Infante D. Henrique pensou ocupar.
OS AÇORES
Quanto ao arquipélago dos Açores, o caso é intei-
ramente diferente do da Madeira, e tanto que a nomen-
clatura das ilhas dos portulanos não foi conservada: as
cartas posteriores a 1339 - data do portulano de
Dulcert, que ainda está limpo das ilhas ao ocidente
-apresentam ao norte do grupo da Madeira uma se-
quência de oito ilh'a s- Lovo, Caprara, Brasil, Colombi,
Ventura, San Zorzo, Conigi, Corvi Marini- cujos rumos
e distâncias a que demoram, tanto de Lisboa como da
Madeira, ~iferem fundamentalmente dos rumos a que
- 204 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂ NTICO E COSTA D E ÁFRICA [ CAP.
demoram os Açores. Estes ficam, não ao norte, mas
ao noroeste da Madeira. Aquele arquipélago dos por-
tulanos antigos, que se pretende identificar com os
Açores - os quais seriam assim conhecidos desde
meados do 1século XIV-, tem com eles, como vou mos-
trar, mais incompatibilidades que semelhanças.
De uma manei·r a geral, as ilhas estão arrumadas
segundo um alinhamento, prolongando o grupo da
Madeira pelo seu meridiano, que passa a cem léguas
da costa de Portugal. Aparece já aqui uma profunda
divergência da verdade- apesar de confessada sem
importância por D'A vezac - porque a orientação real
do arquipélago dos Açores é ONO, pràticamente do
nascente para poente, estando todas as ilhas, não a cem
léguas, mas entre 220 e 310 léguas de Lisboa.
O desenho antigo apresenta dois grupos extremos,
de duas ilhas cada um, os quais correspondem aos
grupos S. Miguel-Santa Maria e Flores-Corvo; há lá
também um grupo central de quatro ilhas, que teria
de corresponder ao grupo de cinco ilhas: Terceira, Gra-
ciosa, S. Jorge, Pico e Faial.
Neste grupo central aparece uma ilha com o mesmo
nome aotual, 8. Jorge, ao passo que no grupo do norte
a ilha Corvi Marini seria, dizem, a actual do Corvo.
O grupo das duas Hhas ma:is ·a o norte está figu-
rado apenas a cem léguas de Portugal; como a sua ilha
do norte é .a maior de todas e a mais próxima de
Lisboa; teríamos por isto que reconhecer nela a ilha
de S. Miguel, realmente a maior dos Açores. Mas como
ela, nos portulanos, é a mais afastada da Madeira e
tem o nome Corvi, preferiu-se identificá-la com a do
Coroo, apesar de esta ser exacta.mente a ma:is pequen·a
de todas, e não estar a cem mas a mais de 300 léguas
II, I] AÇORES. A VOLTA DO MAR LARGO 205
de Lisboa, isto é, apesar de ser a mais afastada de
todas! Notemos que este grupo Flores-Corvo, por estar
de facto isolado das outras ilhas, só foi descoberto
vinte anos depois das primeiras -em 1450-, sendo
portanto extremamente improvável o seu conhecimento
anterior, que pretendem agora criar.
Nos portulanos o grupo mais sul é formado por
duas Hhas, das quais a maior, e a mais próxima da
Madeira no Portulano Normal de 1351 é entre todas
J ' ' '
a mais afastada de Lisboa, tendo o nome Lovo (de lobo
ou de ovo?). Como a ilha de Santa Maria, ·c om 570 m
de altura, é em mesa, ao passo que a do Corvo, muito
mais pequena, tem de altit ude máxima 750 m, somos
assim levados a considerar a ilha real, mais afastada
de Lisboa, a do Corvo, que tem a forma de ovo, como
devendo corresponder à Lovo; mas o nome Corvi, da
ilha do norte, impedia esta identificação e, por isso,
os criticas geográficos, condescendentes tiveram de
aceitar que o grupo ma:is sul seria o da maior ilha dos
Açores, S. Miguel. Contudo, a ilha do grupo que
assim lhe corresponde - a Caprara - é, nos portu-
lanos, das mais afastadas de Lisboa, e das menores,
ao contrário do que se passa com S. Miguel!
Enfim, o grupo central, formado da ilha destacada,
Brasil (que seria a: actual Terceira), e de três enfiadas,
que se pretende serem S. Jorge, Pico e Faial, tem um
desenho impossível de confundir com o das cinco ilhas
centrais dos Açores, como se vê na carta.
A ilha mais norte deste grupo, San Zorzo, foi,
por causa da coincidência do nome , identificada com
S. Jorge actual; mas a sua posição extrema no seu
grupo só a poderia identificar com a Graciosa ou
melhor, com a ilha do Faial, que é a mais próxima d~
~o6 A ESCOLADO MAR L ARGO-ATLÃ NTLCO ECOSTA D E ÁFRICA ( CA P.
Corvo, como a San Zorzo é a mais próxima da Corvi
Marini. Nunca poderíamos identificar a San Zorzo dos
portulanos com a actual S. Jorge, cercada pelas outras
quatro do grupo, e tendo uma forma característica
muito alongada.
Quanto à ilha dei Corvi Marini, este nome é a
única vaga parecença que ela tem com a ilha actual
Corvo, chamada em 1460 Santa Iria ou Santana, e a
mais afastada de Lisboa.
Trata-se, pois, apenas de dois nomes repetidos,
dados a ilhas em condições muito diferentes: a Corvo
recebeu este nome, provàvelmente, por lá aparecer
algum corvo, como há em muitas outras ilhas; e a
S. Jorge por lá terem aportado no dia do Santo, ou
em um dia ainda vago, e os marítimos terem devoção
especial por S. Jorge, tão venerado dos Portugueses;
análogo é o caso da baía de Santa Helena ao norte
do Cabo, onde Vasco da Gama aportou em 7 de Novem-
bro, que não é o dia de festa da Santa.
Idênticamente se poderia explicar a conservação
do nome menos vulgar - Antüia - dos antigos mapas,
a qual, sendo uma terra que nunca existiu, deu poste-
riormente o seu nome às ilhas descobertas por Colombo,
as actuais Antilhas.
Enfim a ilha Ventura acusa vestígios do nome
antigo «<slas de los Bienaventurades», que estas ilhas
já t inham antes de aparecerem i)antasiadas nas cartas.
De todo este embaraço em decalcar sobre os
Açores verdadeiros, que conhecemos desde o tempo
do Infante, as ilhas apresentadas pelos diferentes
portulanos ao norte da Madeira - que tanta dificuldade
tive em conciliar no meu desenho - ressalta a arbitra-
li, 1] AÇOR ES. A VOLTA D O MAR LARGO 207
riedade do critério com que se pretendeu que os portu-
lanos reproduziam com exactidão os Açores.
Não há analogia no agrupamento das ilhas, nem
na orientação, nem nas distâncias à costa e à Madeira:
há apenas coincidência de três grupos e de dois nomes,
que se conservaram acidentalmente, como se poderiam
repetir mais outros, sem que isso denunciasse crença
em uma descoberta anterior. Os portulanos, com a
grosseria do seu desenho das ilhas ocidentais, têm
tanto valor como as referências antigas à Descoberta
da América no século XI pelos Vikings (nas suas 'l anchas
a remos e sem coberta) , ou pelos Normandos, sem que
essas referências tão pouco fundadas como o próprio
nome A nt í lia tenha m sido acatadas: tal ·a rgumento
seria tão pueril que nem os mais acintosos detractores
de Colombo o apresentaram. E dá-se a coincidência de
ter sido a mesma Nova Ciênóa Náutica que levou os
Portugueses ao mar largo e às ilhas do Atlântico, como
os Açores, aquela que, incontestada e aprendida por
Colombo, lhe permitiu ir às verdadeiras Antilhas.
OS AÇORES EM MAPAS DO S~CULO XV
A par dessas cartas com indicações tais que só
uma fantasia t endenciosa poderá pretender adaptar
à verdade geográfica temos, em cartas posteriores à
passagem portuguesa pelos Açores, argumentos de
mais · peso:
A carta de Bianco, datada de 1436 - quando
ainda não tinha sido completada a descoberta dos
Açores -, apresenta a inda os fialsos Açores e a Antüia
na sua posição a nterior. Mas a oeste lê-se Mar de
208 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA DE ÁF RICA ( CAP.
Baga, que eorresponde ao ·a ctual Mar.~ Sargaç~., Es~
informação não poderia ter sido adiVInhada; Ja nao
se trata de uma conjectura sobre a existência de ilhas,
mas de uma vli.agem rea.'l a oeste, provàvelmente das
caravelas do Infante, que, antes de 1436, teriam veri-
ficado naquelas paragens a abundância de ervas ma-
rinhas flutuando.
~ de notar que, em uma outra carta de Bianco,
datada de 1448 se encontram já os verdadeiros Açores,
' .
a par dos falsos, sinal evidente de .que Bianco. consi-
derava as duas informações como mcompativeis.
Na carta de Valsequa, datada de 1438, também
os Açores aparecem na sua posição aproximada, ao
noroeste da Madeira anotados com a. seguinte legenda:
'
cA questas illas for~am trobades per Diego de
Guullen (ou SéviUe) pelot del Rey de Portogall an
lany 1432» (ou 1427 ou 37).
Sobre o nome do descobridor têm-se levantado
dúvidas se seria Séville ou Sénill (Velho); mas sobre
os descobrimentos não: é o das caravelas portuguesas,
do Infante D. Henrique.
Enfim, o globo de Behaim, datado de 1492, fixa
ano de 1431 como o da Descoberta dos Açores, no
0
total de 10 ilhas, contando como uma as Formigas.
Todas estas informações, por datarem da época
em qu,e os Açores já eram realmente conhecidos, têm
incontestàvelmente mais peso que o Libro do frade
mendicante, que pretendeu ter corrido - dig~os
co-reporter! - todo o mundo conhecido desde a China
até aos Açores. Elas traduzem a data em que os Açores
foram, de facto, descobertos.
Jl, 1) AÇORES. A VOLTA DO MAR LAaGO 209
VALOR NÁUTICO DOS PORTULANOS
Consideremos agora a questão debaixo do ponto
de vista propriamente técnico, isto é, náutico.
Como se sabe, os portulanos ou cartas de marear
tinham um fim essencialmente prático, qual era o de
facilitar aos marítimos a sua navegação entre as dife-
rentes terras; eles deviam, portanto, ser só o resultado
das informações de outros marítimos.
Ora aqueles navegadores, de cujas informações
teriam resultado as ilhas ocidentais dos portulanos,
ainda mesmo que não conhecessem cartas nem bússolas
não poderiam deixar de ter conservado uma ideia apro-'
ximada sobre as distâncias e rumos da sua grosseira
navegação, à semelhança do que se passa com os Negros
no sertão africano : apesar de estes não disporem de
instrumentos, sabem indicar-nos com aproximação os
rumos pelo Sol e dias de viagem ~a que ficam as dife-
rentes terras.
De resto, é conhecida a antiga tendência dos
pilotos para exagerar as distâncias navegadas: se real-
mente se tivessem arrojado a ir 300 léguas em mar, até
avistarem a ilha do Corvo, com mais facilidade a arru-
mariam nos portulanos ,a 500 léguas de Lisboa do que
apenas a 100! Assim teria acontecido com aqueles
pilotos de navegação tão larga que se ;a fastassem mil
milhas da costa, para irem aos mares dos Açores, e
ainda tendo por lá tanta demora que 'n ão lhes esca-
param as duas ilhas do extremo ocidente - identifi-
cadas com Flores e Corvo; em algumas eles teriam
mesmo desembarcado, visto que lhes deram os nomes
sugestivos de coelhos, cabras, pombos ...
2!0 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA DE ÁFRICA ( CAP.
Os portulanos não deviam, pois, estar errados;
por isso os cartógrafos confiaram cegamente nas suas
indicações e uns dos outros foram copiando as ilhas.
Descobertos ' 'os verdadeiros Açores,
' 150 'l éguas a oeste,
consideraram os dois arquipélagos ocidentais como
terras diferentes, e por esta razão chegaram a dese-
nhá-los simultâneamente, como fez Soligo em 1455.
Outros, melhor informados, suprimiram as ilhas antigas,
para só aceitarem as descobertas pelos Portugueses.
Mas todos aceitaram os nossos nomes, postos pelos
pilotos do Infante, considerando-os assim os únicos
descobridores. Se outros lá tinham estado também,
a verdade é que dessa descoberta não ficaram provas,
porque as ilhas continuaram perdidas ou cobertas.
Conclui-se daqui que houvera pouco escrúpulo no
desenho do portulano original, que todos foram copi-
ando, sem terem a certeza da existência das ilhas
ocidentais- daquelas a que João de Lisboa chama
«<lhas não Descobertas»- como a ilha Mayda e a
Antília. Especialmente esta última ilha, quase tão grande
como Portugal, aparece desenhada com tal detalhe nos
contornos que sugere - mais que a forma geral das
outras, em triângulo ou semicírculo -uma prolon-
gada visita real. Por isso, descobertos os Açores no
mar que ela ocupava, não se atreveram a apagá-la,
e afastaram-na 200 léguas para o ocidente das Canárias,
no caminho de Colombo!
}yfas hoje, conhecida a verdadeira posição geográ-
fica das ilhas do Atlântico, já não podemos seguir tal
critério ; somente não-náuticos imprudentes poderão
aceitar que as ilhas ocidentais dos portulanos resul-
taram de visita de descoberta a um •a rquipélago,
próximo e rao norte da Madeira, correndo para o norte
II, I] AÇORES. A VOLTA DO MAR LARGO 2II
até uma ilha extrema, a Corvi, que seria das maiores,
como outros detalhes a que já me referi. Os geógrafos
não podem deixar de .r econhecer, pela falsidade destas
indicações, que as ilhas ocidentais dos portulanos não
resultaram de descobertas reais, mas da fantasia de
um charlatão, que a topografia fantãstica da Antília
faz ressaltar.
CONJECTURAS NÁUTICAS
SOBRE A DESCOBERTA MAIS PROVÁVEL
DOS AÇORES
Em presença da pobreza de fontes que, aos olhos
de um náutico, possam ser indicio de uma viagem real
aos Açores - visto que os portulanos não pesam mais
do que a viagem do Frade, espécie de viagem maravi-
lhosa, escrita por um Júlio Verne da época, mais lido
que viajado -passarei a conjectUI'ar como, debaixo
do ponto de vista da navegação à vela, poderia maAs
provàvelmente ter sido feita a descoberta do arqui-
pélago dos Açores.
A hipótese de D'Avezac- derivada dos nomes
italianos das cartas - atribuindo a descoberta dos
Açores aos navios de guerra portugueses do século XIV,
dos quais o genovês Pessagna era almirante, deve ser
posta de parte: esses navios eram só cgalees», pró-
prias para navegação costeira e para combate. Pode-
riamos admitir que, com esses barcos, cujo motor
principal e11am o braço humano e o remo, se tivesse ido,
quando muito, a cem léguas da costa, aportar à ilha
dei Corvi Marini, se ela lá estivesse; mas a 8. Miguel,
212 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA DE ÁFRICA [ CAP.
a 230 léguas de Lisboa e em um mar batido dos tem-
porais do oeste, não se poderia tentar ir em barcos
de baixo bordo e pequeno calado, como emm as galés,
nem mesmo havendo certeza de lá encontrar os recur-
sos do actual porto artificial.
De resto, as ilhas ocidentais não tinham ainda
então tal importância para os marítimos que justi-
ficasse essa aventlH'a: se as vissem logo as abando-
nariam. Para que ir buscá-las tão longe, então? Se
D'Avezac fosse náutico não teria abraçado estas ver-
sões, tão inverosímeis como é a do cruzeiro do Frade,
que ele aceitou por ler mal os mapas geográficos.
Pouco ma:is de um 'século depois da descoberta
do Infante, no tempo de João de Barros portanto,
escrevia Gaspar Frutuoso as «Saudades da Terra». Já
nessa época aparecia disfarçada a verdade acerca da
descoberta dos Açores. Como corria que, em 1428,
fora trazido a Lisboa um mapa-mundi que tinha ctodo ·
o ambito da terra» - incluindo já o estreito de Maga-
lhães e o cabo de Boa Esperança, como resultado de
viagens dos Fenicianos! - , Frutuoso conjectura que
deste mapa se teria cajudado» depois o Infante para
o descobrimento dos Açores, «se é que não o fez por
revelação divina, como alguns escreveram». Assim, na
época em que Gil Eanes conseguiu passar o cabo Boja-
dor, o Infante teria mandado descobrir terras ao Mar
de Oeste, ainda mais longe que o Oabo, o que é inve-
rosímil. Tendo falhado uma primeira tentativa, o
Infante, seguro da existência das ilhas, insistiu, e, da
segunda viagem, teria Gonçalo Velho chegado às For-
migas; por fim, entre 1430 e 32 ele teria encontrado,
em 15 de Agosto, a ilha de Santa Maria.
li, 1] AÇORES. A VOLTA DO MAR LARGO 213
~ certo que nesse tempo já se usavam navios de
vela capazes de irem ao mar largo. Mas a versão de
Frutuoso traduz, da parte do Infante, uma confiança
cega em que havia, ao largo de Lisboa, certas ilhas
marcadas em um mapa, não decerto mais correcto que
aqueles portulanos do século XIV, que chegaram
até nós.
Ora se, no tempo do Infante, os portulanos lhe
marcavam essas ilhas- tão misteriosas como a das
Bete Oidades - e se ele acreditou na sua existência,
apenas a cem léguas da costa, as suas pesquisas teriam
que falhar, porque, como disse, só a mais de duzentas
léguas de Lisboa poderiam começar a aparecer ilhas.
Fiado nos mapas antigos, um navegador apenas pode-
ria ir às ilhas Canárias ou à Madeira. Mas como a ilha
mais sul dos falsos Açores, a Lovo, estava marcada a
menos de trinta léguas de Porto Santo e a vinte da der-
rota directa de Lisboa para a Madeira, era desta ilha
que se devia começar a busca. Assim, depressa os nave-
gadores se teriam convencido de que os portulanos
estavam falseados.
Esta conjectura de Frutuoso é tão improvável
como a ida às Formigas~ sem ter conseguido avistar
Santa Maria ou S. Miguel, e, enfim, como o conheci-
mento do cEstreito de Magalhães»; se este estreito
estava no 1Jelho mapa, fora lá desenhado tanto ao
acaso como os falsos Açores, a Mayda e outras ilhas
do Atlântico!
Poderiam essas ilhas ter sido avistadas pelos
navios que, ainda antes do Infante, faziam viagens
entre a Península e o Norte da Europa?
~ sabido que os ventos fortes do norte, da costa
de Portugal- as nortadas- só se estendem a meio
214 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA DE ÁFRICA ( CAP.
caminho dos Açores. Assim, os navios que, para con-
tornar essa .r egião de ventos contrários, se atrevessem
a afastar-se da · costa de Portugal não precisariam ir
a oeste do meridiano da Madeira para encontrar os
ventos variáveis, que servissem para montar o cabo
Finisterra.
Quanto às viagens de volta da Biscaia, quando
soprassem ventos contrários, do sul, como eles se
estendem para o largo, nada ganhariam os navios de
vela em se afastar da costa: essas viagens para o sul,
pràticamente, seriam directas.
Donde se conclui que os navios empregados na
navegação de alto mar, no tempo do Infante, não indo
ao mar dos Açores, ignoravam a existência destas
ilhas. A'lguns, quando muito, teriam já verificado que
não existiam as ilhas, marcadas nos portulanos por forn
da costa de Portugal. Como poderiam os pilotos con-
cluir que, se navegassem para fora ainda mais outras
cem léguas, começariam a avi·s tar terras?
Eis a razão pela qual o frade não nos contou a
sua viagem a bordo de um «lefio» cristão do Mediter-
râneo, preferindo sujeitar-se a ser maltratado a bordo
de um barco de mnfiéis muçulmanos ...
Enfim, não há documentos, nem sequer memória
de que- mouros, ou navegadores do Mediterrâneo-
tivessem empreendido viagens platónicas de explora-
ção no Atlântico Ocidental.
Certo, podemos acreditar que, de tempos imemo-
riais, corriam em Portugal lendas vagas sobre terras
ao ocidente -talvez as ilhas Afortunadas- •análo-
gas à velha lenda da Atlântida. Elas teriam, em 1486,
motivado o contrato com Dulmo parn navegar mais
de quarenta dias além dos Açores- e foram elas afi-
II, I] AÇORES. A VOLTA DO MAR LARGO 215
na:l que, sugestionando Colombo em Lisboa causaram
a descoberta da América, seis anos depois do ' projecto
de Dulmo. De resto não era só nas cartas que vinham
indicadas várias Hhas a oeste: também a elas se refere
o «Livro de Marinharia» do princípio do século XVI,
que se ocupa das ilhas de S. Francisco, S. Brandam,
Maydas-, etc., as quais só muito tarde se verificou não
existirem.
Mas, empenhado o Infante D. Henrique no traba-
lhoso reconhecimento da costa de África, que se ·s us-
peitava de resultados práticos imediatos, e conhecendo
a falsidade dos portulanos no que se referia às ilhas
ao norte da Madeira, não é crível que ele ocupasse os
seus mareantes em viagens duv1idosas ao largo, de
preferência a tentar a passagem parn o sul do cabo
Bojador, que lhe abria o caminho das terras lendárias
do ouro e marfim, que, por terra, se ·s abia virem a
Marrocos.
E, de resto, se o Wante de facto mandou- como
crêem alguns - reconhecer as ilhas que os mapas indi-
cavam a oeste de Lisboa, por que razão, depois de
encontrar as duas primeiras do grupo oriental, não
continuou logo o reconhecimento para oeste, à busca
das outras seis conhecidas, até atingir a Oorvi Marini,
que era das maiores? O Corvo só foi achado em 1450.
Afigura-se-me nitidamente que há toda a proba-
bilidade de tal busca geográfica, tão difícil, nunca ter
sido praticada, por nada prometer_ Assim, eu sou
levado a uma outra conjectura mais natural, debaixo
do ponto de vista náutico.
Tendo-se, em 1416, chegado ao cabo Bojador, que
já fica ao sul daJS Canárias, e reconhecido que ao longo
da costa de África dominavam os ventos e correntes
216 A ESCOLA DO MAR LARGQ-ATLÁNTICO E COSTA DE ÁFRICA ( CAP.
para sul, tornando a volta à Península, com os navios
de vela, demorada e aborrecida, à mercê de revessas e
.
I Volta da Mina: fazia--se correr que os navios de velas
terrais, e pouco praticável, por muito larga, com as
galés, natural é terem os mareantes do Infante reco-
nhecido uma sug~stiva necessidade de praticar a nave-
gação por fora da costa.
Com esta orientação se teria imposto ao Infante
D. Henrique a criação da chamada Escola de Bagres
- ponto escolhido ao abrigo dos nortes da costa de
Portugal, e com largo horizonte de mar- , na qual os
cientistas da época, na sua maioria doutores judeus,
combinavam a prática das cartas hidrográficas e da
navegação astronómica, isto é, a. maneira de, com o
auxílio geométrico dos astros, se conhecer, tanto o
erro das agulhas como a altura, ou latitude. E é intui-
tivo que lá se ensinava a levantar as cartas das regiões
novamente achadas.
Habilitados com estes recursos geométricos, e
conhecendo experimentalmente o regime de ventos do
Atlântico, os pilotos das caravelas do Infante, para
tornar mais breves e menos trabalhosas as suas via-
gens, afastavam-se da vista das costas. Iam no bordo
do noroeste, até que, esgotados os ventos contrários
do norte, e caídos na região dos ventos variáveis,
enchiam a latitude, até atingirem, pelo astrolábio, no
mar largo, a altura de Lisboa. Tendo assim tomado
barlavento, faziam caminho directo para Portugal sem
receio de, com o norte da costa, chegarem sotaven-
teados.
Esta navegação indirecta era conservada em
sigilo, e tanto que, ainda hoje, é corrente ler-se que,
nessa época, toda a navegação dos mareantes era ao
longo da costa. Ela nos é revelada mais tarde pelos
li, 1] AÇORES. A VOLTA DO MAR LARGO 217
roteiros e cronistas, quando se referem ao segredo da
redondas, que se não podiam chegar muito ao vento,
e:vam incapazes para essa viagem, só possível às cara-
velas portuguesas, porque as suas velas latinas lhes
permitiam chegar-se mais ao vento, e bordejar ao longo
da costa de Ãfrica, para norte. Assim, os náuticos,
que hoje conhecem os ventos e correntes do Atlântico,
compreendem bem as dificuldades encontradas pelos
raros navegadores que, naquela época, passaram para
o sul das Canárias: encontravam tão difícil a navega-
ção de volta à Europa, · contra ventos contrários, que
abandonavam a ideia de repetir as viagens.
Não, aqueles aventurosos marinheiros não acre-
ditavam na lenda das águas equatoriais a ferver, nem
no mar todo coberto de baixios, nem na água a subir,
ao aproximarem-se do Paraíso, em que nos fala
Colombo: os verdadeiros monstros marinhos, do Mar
Tenebroso, quais marcas vermelhas de direcção proi-
bida nas nossas cidades, não eram as 27 mil ilhas
inabitávcis, mas o vento norte, contrário para quem
queria voltar à Europa!
Daquela navegação, tão larga que, com os ventos
mais insistentes do norte e noroeste, que sopram de
verão, poderia desviar os navios a mil milhas da costa,
s6 há vestígios de ela ter então sido praticada pelos
navios do Infante: foi fiados nesse recurso que, nas
suas navegações, eles se puderam ir afastando de
Lisboa, até à Guiné, à costa da Mina, ao Congo. E a
própria viagem de Bartolomeu Dias, que passou para o
oceàno Indico, pelo largo, sem avistar o cabo de Boa
Esperança, denota a generalização daquele mesmo
principio - contornar os ventos gerais - aplicado ao
2 18 A ESCOLA D O MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA DE ÁFRICA ( CA P.
Atlântico Sul. Era isto cinco anos antes de Colombo
também o aproveitar, quando ele, em 1493, fez a volta
das Antilhas à Europa, não pelas Canárias- por onde
tinha ido -mas pelos Açores.
Ainda hoje os navios de vela praticam a mesma
derrota em arco, sem ser por uma espécie de capricho,
mas porque ela lhes é imposta pelos ventos dominan-
tes, cujo conhecimento as cartas modernas vulgarizam.
Tal derrota tinha fatalmente de levar as caravelas do
Infante até os Açores. Assim foi sem dúvida encon-
trado o Mar do Sargaço de Bianco, e é verosímil que
o fossem as ilhas desse mar, embora o segredo polí-
tico na navegação impedisse que se contasse como lá
tinham chegado os Portugueses.
Nestas viagens largas encontra, pois, justificação
a conjectura de que - fosse directamente, fosse por
indicação dos pássaros, a que Colombo, no seu Diário,
atribui algumas descobertas portuguesas - na volta ·
da costa de Áfr ica os navios do Infante tivessem
topado com algumas das ilhas do Sueste dos Açores-
Santa Maria, ou Formigas- muito afastadas da posi-
ção fixada nos portulanos à ilha Lovo, que moderna-
mente alguns dizem confundir com Santa Maria.
Esta descoberta seria ainda mais autêntica que a
da América, porque aqui não havia sequer nome de
anterior descobridor, ao passo que se citam, como pre-
cursores de Colombo, os Vikings e o príncipe Madoc.
Naturalmente, achadas as primeiras ilhas (antes
do ano em que primeiro se montou o cabo Bojador) ,
sucessivamente, à medida que as caravelas recolhiam
de portos novos, mais ao sul da costa de África,
foram sendo descobertas as outras ilhas mais oci-
dentais. Apesar da identidade do nome, e da proximi-
II, I] AÇORES. A VOLTA DO MAR LARGO 219
dade da ilha Corvi da nossa costa, era então tão
pouca a fé nos portulanos, que Flores e Corvo só foram
descobertas em 1450, como se disse.
Desembarcando nas ilhas, e averiguada a sua
fertilidade, que se aliava a uma óptima posição geo-
gráfica para abastecimento dos navios que voltavam
da África- ou do Ocidente - seguiram-se expedições
de reconhecimento e colonização dos Açores.
Quanto ao ano em que terira sido descoberta a pri-
meira ilha, como ao nome do descobridor- apesar de
Gaspar Fructuoso, nas cSaudades da Terra:., indicar
como tal Gonçalo Velho, em 1431-, não temos ele-
mentos para discutir se ele foi como capitão de cara-
velas, de facto, o primeiro a avistar a ilha de Santa
Maria, ou se foi apenas o chefe da primeira expedição
de ocupação.
Em resultado do segredo politico em que, com
astúcia, ,se conservavam reservadas as viagens largas,
os falsos Açores ainda duraram um século em algumas
cartas, depois da descoberta portuguesa. Não convi-
nha contar que as ilhas tinham sido descobertas por
navios que voltavam da .África, porque isso denun-
ciaria as derrotas indirectas: Barros limitou-se a
escrever que cjá eram descobertas em 1449»; de resto,
as cartas de navegar , muito guardadas, não puderam
chegar até nós. E daqui ressalta a razão pela qual os
cronistas como Fructuoso e como até o cEsmeraldo:.
e o «Livro de Marinhania» caiaram- ou desconhe-
ceram- esta explicação da descoberta dos Açores, tão
natural para todos os náuticos, e à qual já se refere
a «História Insulana», de Cordeiro, publicada em 1717.
Enfim, é certo que não conhecemos hoje, com
segurança, detalhes sobre a descoberta das Ilhas. Mas,
220 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA DE ÁFRICA [ CAP.

em lugar de a atribuirmos a uns navegadores proble-

máticos-cartagineses, normandos, genoveses, mouros
ou catalães- que, se jamais fizeram navegações lar-
gas, e passaram pelos Açores, não nos deixaram outra
informação a não ser que havia a cem léguas da 008ta
de Portugal umas ilhas com mamíferos., o que é falao,
mais aceitável é seguir o critério dos geógrafos do
século XV: estes adaptaram a vemão de uma desco-
berta portuguesa - que a esses indiscutíveis mari-
nheiros de alto mar levou 20 anos a completar- e da
qual resultou o conhecimento definitivo dos Açores e
sua posição.
De resto, não há documentos, nem indício algum,
que nos levem a acreditar que os mareantes do Medi-
terrâneo, nos séculos XIV ou xv, soubessem navegar
no mar largo: eles não precisavam praticar navegação
astronómica e ignoravam o regime dos ventos no
Atlântico. Se o soubessem teriam descoberto a Amé-
rica. Somente sabemos que já antes de Cristo os
pangaios de mouros atravessavam à vela o oceano
Indico; mas esta navegação larga, única conhecida dos
antigos, era feita só à mercê das monções, que no nosso
Verão sopram do sudoeste, e no Inverno do nordeste.
Ao contrário, os Portugueses no século xv, obrigados
a J)azer navegação larga, tiveram que criar, no Atlân-
tico, essa Ciência Náutica. Foi procurando a oeste
ventos favoráveis para virem a Lisboa que chegaram
ao Mar das llhas. E fizeram-no primeiro que outros
navegadores.
Podia D'Avezac, na época em que não havia cartas
de ventos, ignorar esta técnica da navegação à vela;
mas hoje já não há essa desculpa para se acreditar em
viagens maravilhosas, de Catalães, Mouros, ou até Por-
 li, 1] AÇORES. A VOLTA DO MAR LARGO • 221

tugueses, à procura de terras cuja existência fosse

incerta. A conjectura mais aceitável é, portanto, a da
descoberta acidental dos Açores, embora alguns cro-
nistas, para exalçar a obra do Infante D. Henrique,
tivessem preferido a versão mais nobre, a que hoje
chamaríamos a mais elegante: as Ilhas foram desco-
bertCJB por ordem do Infante!

Em resumo:

Não há certeza sobre quando e por quem foram

descobertos os Açores, mas temos bons elementos para
conjecturá-lo.
~ certo que há professores- dos que acreditam
que os pilotos do Infante não sabiam navegar fora da
vista de terra! - que se precipitaram a identifjcar os
Açores com algumas das ilhas ocidentais dos portu-
lanos do século XIV, visitadas por navegadores des-
conhecidos, e enumeradas no «Libro dei Conosçi-
miento:., embora tão diferentes da realidade geográfica.
As ilhas de oeste dessas cartas- chamadas Biena-
uenturadas no portulano catalão, de 1375- , tanto pela
sua proximidade da Madeira e da costa de Portugal,
como pelo seu agrupamento e dimensões relativas,
divergem tanto dos Açores que provam ser o produto
da fantasia do cartógrafo. Navegadores reais, capazes
de ir tão longe da costa, se as tivessem visto, em lugar
de trazerem detalhes tão errados, dariam informações
que facilitassem a redescoberla das ilhas. Conclui-se
que estas ilhas foram tão vistas como o foi a grande
ilha 'lendária Antília, que, com os seus cabos e balas,
s6 existiu naqueles mesmos mapas antigos! Contudo,
o seu nome foi aproveitado para as actuais Antilhas,
222 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA DE ÁFRICA [ CA •
como o foram os nomes 8. Zorzo e Corvi~ sem que,
entre as ilhas antigas e as modernas com o mesmo
nome, seja possível estabelecer identidade. Enfim, sus-
peitava-se a exdstência de ilhas a oeste, das quais se
ignoravam detalhes: a 8U8peita, por acaso, foi con-
firmada.
Por estas razões alguns cartógrafos, ainda do
século xrv, deixaram de apresentar as ilhas fantás-
ticas, ao passo que outros, do século xv, atribuíram a
descoberta dos Açores aos Portugueses, considerando
estas ilhas, com outros nomes, diferentes das ilhas
antigas.
Em presença da escassez de documentos sobre
primitivas viagens aos Açores- documentos que se
limitam a uns portulanos, copiados uns dos outros,
onde, a par de ilhas verdadeiras, se encontram outras
impossíveis de identificar, e portanto falsas - con-
clui-Se que são frágeis os argumentos para provar
prioridade de outros sobre as viagens reais dos Portu-
gueses ao Mar do 8argaço, cerca de 1431, das quais
tivessem resultado conhecimentos concretos. Para os
náuticos não há vestígios sérios de os marinheiros do
Mediterrâneo se terem jamais aventurado ao largo das
costas, na incerteza de encontrarem terras que, de
resto, lhes seriam inúteis. A fuga dos Cristãos, perse-
guidos «em sete naus para a ilha das Bete Cidades»,
ao mar da Ibéria não passa de uma lenda romântica!
Enf~m , as galés eram impróprias para extensas via-
gens de mar; e os navios de vela do comércio para a
Flandres não precisavam nunca afastar-se mais de
cem léguas das costas.
Somos ·a ssim levados, em boa fé, a reconhecer que,
à falta de informações de navegadores dos mares pro-
U, r] AÇORES. A VOLTA DO MAR LARGO 223
celosos do Atlântico, não passou de cartografo-inventor
aquele que primeiro desenhou o alinhamento de seis
ou oito ilhas ocidentais, no mapa donde foram levia-
namente copiados os portuhmos d·os séculos xrv e XV,
com a mesma fé cega com que o sábio ToscanelH
copiou, para a sua carta de 1474, algumas ilhas fan-
tásticas, como a Antilia e 8. Brandam.
Desse invento efémero de umas ilha&, prolonga-
mento para o norte do grupo da Madeira, e de que
só sabemos estarem especializadas zoolõ~camente em
lobos, cabras, pombos, coelhos ou corvos, nada resultou,
como se tais ilhas- à semelhança da nha Misteriosa,
de Júlio Verne- tivessem sido subvertidas por algum
cataclismo, restando, para memória, a grande ilha dei
Corvi Marini, reduzida à pequena ilha actual, de uma
légua, o Corvo, e arra·s tada 200 léguas para o ocidente
onde terminam os Açores! Tal !invenção, ainda que
tivesse excitado a curiosidade dos homens do mar, da
Península Ibérica, não poderia originar descobertas
porque, cem léguas em torno das ilhas dos portulanos,
não havia outras terras além da Madeira e da costa
de Ãfrica ou da Espanha.
Contudo, •a queles mesmos que negam aos pilotos
do Infante competência ou audácia para navegar fora
das wstas da terra partilham a opinião de D'Avezac
sobre pretensas descobertas de oito das ilhas dos
Açores- não se sabe por quem- antes dos Portu-
gueses. Ao lado desses fanáticos dos portulanos resta-
-nos fazer ressaltar a independência de critério com
que um historiador moderno, Prinheiro Chagas, se pro-
nunciou pela probabilidade de os Açores serem desco-
berta portuguesa.
224 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA DE ÁFRICA ( CAP.
De facto, se os portulanos são falSos, não é falsa
a ciência náutica dos pilotos do Infante: praticavam,
sem dúvida, a navegação larga, e tanto que foram com
as suas caravelas aos Açores, que estão mais longe de
Lisboa que o cabo Bojador. Seguiam as derrotas lar-
gas que os ventos do Atlântico impõem, na viagem de
regresso a Portugal.
Mais natural é aceitar, pois, que os Açores foram
descobertos em uma dessas viagens - cujo roteiro se
conservava secreto -do que em resultado de busca
das ilhas perdidas no imenso Atlântico: porque é anve-
rosimil uma tal viagem de exploração, tanto ao largo,
com incert0za de encontrar terra, e isto na época em
que ir ,ao longo das costas, ,a té dobrar o Bojador jã
era uma façanha. Falta-nos, de resto, provas de tais
pesquisas: ,a s ilhas de oeste tental'I8.Ill tanto o Infante
D. Henrique, como mais tarde o projecto análogo de
Colombo não tentou Génova, nem D. João II. Eram
todas terras de lenda!
Assim, da mesma maneira que se reconhece a
prioridade da's descobertas de Colombo e Cabral-
apesar de o planisfério de ToscanelH já indica.r terras
a oeste - , porque foram essas viagens aquelas de que
há provas, e aquelas que tiveram sequência e impor-
tância, originando o brilhante futuro das duas Amé-
ricas, idênticamente. apesar da existência dos portu-
lanos, com ss suas ilhas ocidentais (e aM, talvez, com
o cabo .d e Boa Esperança e o estreito de Magalhães),
legitimo é aceitar e celebrar a Descoberta Portuguesa
oos Açores.
Tivesse ela sido intencional, à procura das ilhas
fantásticas, ou, como é mais provável, tivesse ela sido
por acaso, à volta da África, el•a constitui um aconte-
li, 1] AÇORES. A VOLTA DO MAR LARGO 225
cimento português que a Humanidade deve registar
com letras de ouro, porque simboliza a primeira grande
viagem europeia de mar largo, a qual veio demonsh-ar
a possibilidade de outras grandes travessias funda-
mentais oo Atldntico, como a de Bartolomeu Dias a
de Colombo, e a de Vasco da Gama. A descoberta dos
Açores foi, portanto, de extraordinário alcance prático.
Esta foi obra incontestável de navegadores, não
lendários mas re&s, que, sem o terem adivinhado nem
copiado, com a sua longa e penosa experiência desven-
daram o segreoo oos ventos do Atldntico- co sentido
único» das ~otas à vela- e assim estenderam as
suas navegações até ao mar dos Açores. São estas via-
gens as únicas que, como História, se podem tomar a
sério.
Esses descobridores compreenderam a utilidade
prática daquelas ilhas, e logo as ocuparam e povoaram.
Pela sua posição, elas continuam sendo passo obrigad,()
da navegação à vela, como é provável que o venham a
ser das aeronaves. Toda esta sequência não derivou de
viagens de navios corridos por inverosímeis tempesta-
des atldnticas de ventos de leste - os levantes do
Mediterrdneo ... Essa sequência inteligente foi obra
de navegadores auMnticos, que deram à8 suas ilhas o
nome actual, Açores, e que ficaram definitivamente
sabendo que elas se encontravam não ao norte _,.o
' ' """"""
«cento e setenta léguas ao noroeste da Madeira-.. Eram
hábeis mareantes, que iam ao mar largo sem ser por
um desporto de romance de aventuras, escrito por
quem nunca lá foi. Eles, de todas as terras que acha-
ram, ficaram sabendo como lá se voltava!
Podemos pois aceitar que esses, os primeiros que
de facto se revelaram capazes de navegar no Atlântico
15

226 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÁNTICO E COSTA DE ÁFRICA ( CAP.
Ocidental, são os mais prováveis descobridores dos
Açores:
Os mareantes das caraoolas do Infante D. Hen-
rique/
NOTAS:
INPORMAÇAO SOBRE A OARTA OATALA DB 1375
L'dnsu'la de iMan:. est plade au sud ~ flrland.
•En :faoe du 1Portugal C'ODllmencent ~les iles Beneven:tu-
111111des. Voiid leur Oidre ldu nord au su:d:
lnsu'l a de Corvi Ma.rini
U tCon:igi
San Zorzo
Insula (ie la Ve:n.rtwe :('l a plus grande).
Li Colombi
lnsula1 de 'Brazfl.
A iJ.'ex~ OCIC:ilcfentta!e de ~ carte et à ·l a hauteur
des deux .Hes septentrionales (Col'VIi Marini et Li Ccmigi)
commence un:e 1lanigue note qui s'~d jusqu'a.u dessous
:Cks Oanades. 0n y :trouve d'a'bord d:es ll~s Beneventu-
rsdes et plus ~oin tires lles Fortunacles. Buchon et Tastu
ll'éuznlissent :ees :deux ~gna't!ions dalns de seul ttit!re dtlles
Fortunêes.
ILBS BBNBVBNTURA>DBS
,~,;es i Jes...Fortu.n&s sont SUlr 'l a tgrandie ~. du côté d:e
,Ja main gauc::he, toudumt ·l a limite de .f~: elles ne
•
II, I] AÇORES. A VOLTA DO MAR LARGO 227
iSOilt pas 1oin .en mer, lsidore 'le dit a:iMii dans 150n xv•
livre. 1Ces Iles ISOilt appe:lées Fortunées, C8il' dles sont ebon-
dantes en :tous bien, en blés, en :f ruits et arbres . .Les paiens
suppose:nt que là 50i:t :)e 1P•adis, en ~raison de ·l a doutt
<:ihaleur du solei] et de ·l a :f.ertiüté de Ja t«re.
·l sidooe dit aussi que :les erbres y croissent eu moins
de 140 p:ieds et portent beeucoup de fruits et d'oiselwx.
On y :t:rourve :d u miei et du :]!tit, surtout dans l'IJ.e. de Ca.pl'lie,
a.iinsi appelée ·de 1la multitude de chêvres qui l'habitent.
GROUPB >DB MADBR.B (DU NORD AU SUD)
tP orto Santo
•l nstde de ·lJegname
IMula de:sante ·( desert~e?)
lnsuia Salvat~.
L'AB'l'RoNOMII!l NAU'l'IQUE AU PoRTUGAL, por Josquim
&n.saúde, pág. 85.
...1legu:e la ·l a tien:oa de los negros a vn cabo qUe dizen
de :buydetr que le:S dre1 Rey de guynoa çerca de ia mar
y :ally 'faille moros y j u'd4os y sabet que desdetl .oabo de
buyder lfasta d ·R io de'l oro son ochoçi:entas y sessenta
m.illas !toda :t ierra desehitad&J y d~tste Jogar se tnmo d
pan'filo Je yo &que ally Vin tiempo y 'ruy 'Wil' las listM
perdidas que Hama :toldm:e o 1las islas Ide la caridat y stabed
que d.:es:dJe e1 cabo de buider tfasta ptime:ira isia soo
XC millas.
228 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA DE ÁFRICA ( CAP.
Sobi en Vtn leíio oon Vtnos moros y Ue-gamos a la
primel1a isla qUJe diZielll g.res.a y apres della es ~a iisla de
']anç:a:rote y <lizen de asi porque 1las gentes desta isl.a
mataron á vn gin•a oes que ldezian lançaroite y dendre fuy
a otra isla que d~Zielll bezimarin y otra que dizen ·R achan.
Y lden:d:e 1a1 ollra que di:ren ail~ça y otra que dizen
Uegimar y otra qwe diz·en .forte V/e:lltum y ottra que di:ren
ca.naria y ;fuy a otra que diizen .tenttetfiz y a otra que !diZielll
la isla deil mfilerno y fuy a o1tra que di:ren iQ'ODlerB Y a otlrlar
que dizen .Ja :isla :de ~o fero y a dllra qUie diZielll lélll1algau:ia
y a Ot:M que :diz.en saluaje y a otra 1q ue dizen la .is11a dresiertla
y 1a dt.ra que ld:izen 1ecmane y lal otlra el puerto santo y a
dtra ,}a ds1a :d:e1 !lobo y a ()t:ra la :i sla de rias cabras y a otra :I a
isla dei masil y la otlra ·l a oolunrba!ria y a otra la lisll a de ~a
VIOO'tura y a otra :} a :isia de ISianlt jooge y a otra la ysla de ios
oonejos y a otra la lislla .de 'los cueruos marinei'S Y en tail
.manrera que son :veyn.ltle y cilllK:o y.slas.
Tomelme al cabo d:e rbuyder donde ~sat'ly y ,fuyme por
iLa za'ara con vnos moros que Ueua.u:a.n oro aJ Rey de gu:inoa
en Cl81Dl.ellos ...
LIVRQ DEL ICoNOBÇIMiiENTO DE TODOS LOS ~EYNOS Y
TIERRAS -Madrid, JW- pág. 49.
lil est .oe:rta:in que l'eiS (:l8ll.'ltes du quatorz.ieme Sliecle, en
remorutant j'UISiqu'eu portula:n ~dioéen de 1:3<511, nous
dffrent .t out l'arch~pel des Açore5 dess inê aJVec précision
'e t ~tail, :e t éWe'C Ulllle r emarquable .e xaotitude dans :te gxou-
:pemen.t Ides iles, saU'f ·u:n délfaut glénléral d'orienltation, qui
~:es a'ligne :du nord au su:d au 'lieu du n.ord-ouest au sud.-est.
li, 1) AÇORES. A VOLTA DO MAR LARGO 229
Le portula:n méldJi.OOen ne td onne point 'l e nom de CJhacoo.e
des iles, ma:is tiJl .leur att.rilbue, ;par -groupe, une appeJ,l ation
•COmmUlne, c.omme Insula de Cabrera pour 1-es deux rles de
Saint.,Mard.e, et Saint-·M icllel, insule de V enture sive de
Colombis, pour ,Jes ·tlrois iles de Sa:in:t Geooge, Faya.l e t
Pico, d insule de Corvirvis Marinis, poU!r les deux illes de
Corvo ;e!(: .F lores; Tlelrieêre seule lét son dénominatlion propre
de insula de Brasil. Mlalis les ca.1'ltes ·ul~eUttS nous oUren.t
une nomte<ncla'tU!re oomplete, qm ronse'r'Ve ISiél phy&ionomie
i;tlalli~e mêm.e sU!r 'res oart1es mtalanes de ;P aris (:1375)
eJt de Naploes, et ·q ui se :retrou~ e:ncore sur Ja carte d' Antl.ré
Bianoo dJe '14<36, bien que dé.fi.g,wree dans 'l'~n!hal»le ldéch'i!f-
,freune:nt de Forma.léoni.
Petii!Je e ll"'OIl'de, Sa.int-!Marie apparut comme un oeuf
à 's eiS premie.rs d1écouvreurs, qwi l'aJllpelerentt en consé-
que:noe l'Uovo, l'Ovo ou fObo swvant la lectlulre dout.eu-
s e~ment .ex·a cte ·de F.ormaléoni. Saàn!t-iM-íclte'l qui ·I eur offrit
ISiaillS doute Ides itroupeaux de dhêV!l'leS, .reçut d'eux ~e nom
eLe Cabrera, Cabraria ou peut-être Chaprera, que Forma-
léond a Ju Cha.pesa. Teoce.re, ou 1a ltroisieme, que .J.es
IPortugais appela'i.etnt auparavant ile de Jê>sus ou du Bon
'Jésus, est .fameuse par son non pr.imi,tif d'insula de Brazil,
ou !Oelr.balillls ll"êv'eurs ·c royaient tlrourver, COD1Jire dans cdu1
d'Antilia, 'la revélation de qru:elque notion a:nticipée de
l'Am'érique, tandis qu'i'l s'agissadt uniquement ici d'\1'111 bois
de 'te'inture, qui abonda&t dans l'ile, comme il abonde sur
,Ia t~e~rre-fernre du B.re.si!l.
Saint. . George garde encotre sa denomina.'tion origd-
tnaiire, Sain-Zorzo, San-Zorz:i, ou Sancto-Zorzi, due sans
doote i8IU patxon du jour ou elle Lf,u t !albordée pour la pr.e-
miere lfois.
Fayal, qJUe SJeS 1foretr.s .de ihêh"es ont fa:it ainsi appeler
'V'er'S .Je mirlieu du quinzieme siede, <Wait été vis:ttée plus

2.30 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÃNTICO E COSTA DE ÁFRICA ( CAP.
d'.un Stiede a.upacazvant, et peut-être la prem.iere de toutle:s,
sous i'.influenc.e d'une rtempête qui y conduisit léiiCciden~
•telle:ment qudque 'Vaisseau: c'oes:t :du moins 'Cie que semble
oon.stlater Je nom qu:i ~ui 1fut primittivemen.t donn~. ~ qui
.si lit uniformémmt insula de Ventura ou de la ventura sur
toutes 1~ GLr.te:s anciennes, même sur <:Jelle d~e Sianoo,
disons~le hardiment, 1bi;en que 'l a •légêre'fé de Formaléoni
ait 'b urlesquemen•t transfOil'lmt Ventura en .Se:ntuifJ.a, ICOmJllle
'j)Our •s usci.ter à pla:isir les éluculbra·tions des étymolo-g:istes,
:qui se soot fait ifiatute d'expl:iquer gra'Vem.ent par 1l'ara.be tia
-billevesée :du libraire vén.itien.
L'ile de Pko off.rit sans doute à soes découvr:euT'S
qua:ntité de .pig•eon•s sau'V'él·ges, si ,J'on en jwg.e par .}a deno-
mination d'insula de Colombis ou di Colonbi, ou h1en
s~mpleme:nt li Columbi, 1nscrite sur les c:a.rtes du qua. tor~
ziême et du oommmoement du quinz.iême siede. .Ce ifut
probablement 1' abondance eLes ,Jap'ins qui va:lut à .l'ile :de
Flores son nom primit:if de li Conigi, défigure :en Coriios
par Foi'JDialiéoni . .Enf:in Corvo, •la .p lus éloi'gnée des Açores,
:g aroe encore, sous cette lform'e, ,Je ·n om que ,Jui ava.ioent
ldonné les tpl'le!miers décou'VreUJrS, lesquels, à .raison du
lllbmhre d'oiseaux de cette espece qu'!i'is y aJVa'iffit rencon -
tft:s, l)'a.ppel.alient insule de Corois !Malrinis ou de Corvi
Marini. que Formalêoni a 1u Corbo Marinos sur ~a CJa!rltie
.d',André Biaiilco. Gra:ziosa ne pa.rait su:r •a ucune de ces
cartes.
'NOTJCE DES DtOOUVERTES :FAlTES AU IMoYEN~GE
DANS L'Ocú.N IATLAN'l'lQUB, por !D~Avezac,
pag. 32.
Varchi~l eçorêm, ~ seu! quií nous m~. se
trouve à qu.atre deg.rés de longitude plus p.rà de mcOte
li, 1] AÇORES. A VOLTA DO MAR LARGO 2.31
européenne que les iles a.ctueHes, avec un ~fa.Uit gênéra•l
d'orien.ltaltlion IIWl"<kmL Les premiêres cartes ol1 il est tiracé,
son:t l'atllas med.icéen ( B511}, la C&l1te catallane de 1375 et
i'atllas Pmell:i~Walcltenaer ·(c. B84}.
On 'l e ;voWt, !le moine !kancisca:in pialá du cap Bojador
e1t !Visite suc~wment les ·Can:a:rie:s, .) es !Marlére et le:s
Açores. Les hWt demiers noms se rapportent à oe demier
·~: c'est J:a preuve qu'!tl étla.it traC'é sur de:s c.arte:s
.J:Jlalri.ttes, 1fort proba:b.llement 81\Wlt l'a111née 1350, et ce!la
:SOUJS dies noms qu:i n'léllppa.I'éllist que 30 ·a ns plus ;tard sur
des portulans ~us jusqu'à nous.
Bien que ·1e .~g!llage du moitne ne 'Vaille pas Cleilui
d'un lécrivain contempot"éWl, son travai:l en effet n'est
qu'une .géogmphie en action reposant sur quclque mappe--
....moode, oomme: M. M. Morlei.-Fatio et Hamy •l 'ont mont.re
à toute lévl'denoe, ·le ~oignta!ge :du moine, d:isons.-.nous,
n'en est pas moins ~eux pou.r ,Jes lftaits qu'il revele.
Ses prétendus voya:ges sont de ceux que tOUJt le mond:e
1
peut lfa:ire du hout ides dt:rigts sur un:e oa:rte.
11 est .i'mlploSsible de determiner la ISOUII'Ce à ·laquelle ~e
.r eligieux 1fmnci8caln a puisé; mais oi! semble ratiOIIllilel de
sUJPPOLSielr que c'est à des pomrlans C81tialélllSI, ca- com.:ment
odes cartes marines Í't!aHennes !ui seraient~eHes parvenues?
.Oe d:e:miiler poilllt n 'es~t pas saru; importance pour
fdxer la na:tionali:té d'eS premiers découvreurs des !Açores. &
elflfert:, & :l'on am~dbuai-t .génréra.lemetn:t la ldérouvert de ces
itles à -d es •ltal'iens, c'esit ;parc.e qu'on CI'O}'lélli>t 'troover leur
;premier :tracé -sur J'atlas médic.éen de 1351 c'est~à-di·re
232 A ESCOLADO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA DE ÁFRiCA ( CAP.
sur une carte ita'.lienn.e. Or voila.i qu'a!Vaiilt cette da.te, des
pootwlaru !SallS dou:ve cata:léllliS donna:i.ent des Açor.e s Ul1l
llracé bien plu:s •rompil:et. Ne peurt~on rpas 'COnclure av,e c
·bearucoup de 'l:a.ison que c'est à des marJns cata:léllliS que
sont dues ces donn:ées?
....................................
QUia!lld et dans queUes rircon:stances ~es !Açores onrt-
~el1es été il'econnues rpour •l a premier:e fois? L'lhdstdi-r<e ne
le dit pas, mais Jes rportulans prouvent que cette premiêre
reconna.issanoe êtait un rfa.it accompli idans e premiêre
·m oitié du XIV" rsiecle.
DISCUSSÃO SOBRE A !DEsCOBERTA 008 !AÇORES, pelo
Dt. Jules Meu, publicado em 1901.
Cette carte (Bianco) (jffre à Ia rfois d'e:s noms a~rabes
~ cluétiens, c:eux de Bentufla et de San Zorzi. Elle
d:ispose a&Sez corvectemenrt les neulf iles ·ettl ltrois ·grourpers
partiels, mais ces ·groupes, rau rlieu d'ê'tre omentés SE--NO,
sont pre:sque placés du sud au nord. L'ilot le pltJ:SI éloigné
s'appelle déjà Corvos Marinos. Les noms de San Jorge
et de Corvo n'ont donc pas été donn'és par 1le:s :Portuga:is
en 1H9; ÜS appartienn1ent à d'au'tres .peuples de 1'Europe
llatine. Dans 1e m~~âge, ce sont sans doute les ldeux
rJlllltions rrivales letl aventureuses des Normands et des
Arabes qui ont répandu ~es •pre'Dlieres notions oertain:es
sur les ·.groupe des Açooes. Quelques historiell!S' (Murr)
font ~remonter la découverte des Normands au neuviemie
&ecle.
Les Açores dlécouvertes, ou plutôt retrouvées rplusmeurs
rois, pouvaient lfai-re naitre J'idée de ,}'exJste:nce d'une ter.re
II, t] AÇORES. A VOLTA DO MAR LARGO 233
,tJres étlendue rparce qure ~·on $Uppo5élit 1iaJ .c onbiguité de
CÕites appart.enlllanlt à d.i:f·f érentes iles. C'est 50U:S ce .rap-
port, •je petns·e que il'arch~peil entier des Açor.e s a donnlé
·l'i eu de 1f•i x•e r ·l a position de l'Antiha ou i•l e des Sept-ili-veques
et des Sept-Vlji.J.les; Clél/1" je ne saurais conjeoturer a'VIeiC
M. .B uache que •l'An.ti1ilai de Bíanco, ~arge comm.e L'&~
pagne, soit l'He de Sain.t--MicheL
HISTOIRE llE LA GÉOGRAPHIE, por Humboldt.
, P~elo q•ure o meu parecer lhe, que IC'OmO a5 lil.has de
Oabo Vrerde se des'OUibr.iirão em 1543(?) re a rv.inda d'ellas
parra Pootugal, re a ida d.est:e pla!rla e!llas, he pelo rumo dia
T ·e rceym; e oomo esta ,foy ~ pdo Norte, para
onde ficão alem, as de Ca:bo Verde, he de c·r er que drestas
vinJdo IIllaiWo :pam Portuglall, deo no NOl'lte da Treooeyra, e
por aspero o deyxarrão, COillben~ ·Com trazer as novas
ao lnlfarntJe ...
HISTORIA [NSULANA, ~ pe')o Padre !Antônio
Cr:JitkUo, Uaboa. ·1~1~.
A mudez dos arquivos e o tesrt<imenro do Infante
Dom Henrique J,UISfti,fic:am o
a:sserif:o: não se sabe quem
descobriu o arquipélago dos Açores, e, com cerrtf!za. não
foi Frei Gonçalo Velho.
E se nenhum documento o diz, Iorça fé oondu:i:r que
.... a ·tal respeitb nada se sabe, que não houve tal a:chado.
234 A ESCOLA D O MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA D E Á F RICA [ CAP.
por tais rdesoobridores, de que não f~la:m Z-urara e Diogo
Gomes, OIS oroni&sltlas .ma4s SleQUil"'OS do que f01.1aJm no mar os
•Portugueses do século XV.
Pall.1él que, pais, manter de pé wna 1lenda .ideada no
século XVI, cerca de 160 •a nos d:epois do imaginado, do
M.n.tas'iado descobrimento em 1431?
Qtre Uitilidalde há le:Dl pellp'e'tUiall' o erro, o ·q ue é .!a:J&-
fioa.r 1a h..istórúa, continuar a ~?
Conlfessemos a verdade: manda-o a probidade cien-
,t!iJfioa:
Está por enc:cmtrar o descobridor dos AçOl'e.sl
CloNCLUSÃO SOBRE O DEsCOBRiMENTO IDOS •AÇORES, por
Ant<Wo Ferreira de Serp&
IT-OABO BOJADOR. A VOLTA DO MAR
DE BAGA OU DO BARGAÇO
Na mesma latitude de Santa Cruz de Tenerife,
do grupo das Canárias, está, na costa de África, um
cabo a que os •a ntigos chamaram cabo Nam, porque
durante muitos séculos terminou ali a navegação
normal dos povos do Mediterrâneo. A costa continua
para o ·s udoeste até que, nos mapas datados do século
de 1300, que chegaram até nós, figura outro cabo,
logo do outro lado do canal entre a ilha Forteven-
tura e a terra firme. A esse cabo, algumas cartas do
século XIV- feitas depois de reconhecidas as Canã-
rias- dão o nome de Buyerer ou Buyeder. Tinha-se
alargado :até lá a navegação, no fim daquele mesmo
li, u] CABO BOJADOR. A VOLTA DO MAR DA BAGA 235
século de 1300. O nome foi transformado pelos Porl:u-
gueses em Bojador, e passou a aplicar-se o dito
popular:
cQuem passar o cabo Não ou voltará ou não! »
Só em 1434 a navegação da costa de Ãfrica se
estendeu para além do Buyder, tendo iniciado esta
navegação corrente, por mandado do Infante D. Hen-
rique, o português Gil Eanes, natural de Lagos.
A maneira heróica como os historiadores têm
interpretado este acontecimento não nos pode elucidar
sobre quais teriam sido as dificuldades reais que,
durante tantos séculos, impediram de facto os marl-
timos- e não só os do Mediterrâneo, como também
aqueles que conheciam os procelosos mares da costa
de Portugal e da Biscaia - de se lançarem nos seus
navios para o sul do arquipélago das Canárias.
Porque os cronistas, ao escrever sobre os Desco-
brimentos, esquecem que, por eles terem sido reali-
zados em navios cujo motor principal era o vento -
isto é em navios de vela- , seria preciso ter em ·c onta
I
as possibilidades desses navios, porquanto antigamente
não havia, como há hoje, à disposição dos não-náuticos,
mapas com as correntes maritimas, os ventos e as
derrotas gerais. Tudo o que a tal respeito então se
sabia era conservado no maior segredo, para evitar
que outros concorrentes o aproveitassem.
Estando, assim, pouco divulgada a técnica espe-
cial da navegação à vela, os cronistas supuseram que,
nos navios do século de 1400, quem dispusesse de
alguma audácia poderia navegar, como se faz hoje, por
todos os mares. Ora isto só aconteceu depois que a

236 A ESCOLA D O MAR LARG O-ATLÃNTlCO E COSTA D E ÁFRlCA [ CAP.
existência dos ventos gerais foi descoberta Com tal
critério, nos casos mais embaraçantes- ~mo foi o
do descobrimento do Brrusil - ·a llistóri•a Antiga criou
correntes e ventos tendenciosos, ou «tempestades:. a
propósito, por mares onde quase as não há, como são
em geral os das regiões tropicais.
:m com este fraco ·c onhecimento da Náutica que
se tem deduzido de certas Hhas ocidentais, desenhadas
nos mapas do século XIV, uma prova do pr~escobri­
mento dos Açores, apesar de ser inverosímil que qual-
quer navegador, que tivesse passado pela pequena ilha
do Corvo, a qual fica a mais de 300 léguas da costa de
~ortugal, viesse amesquinhar a sua própria navegação
informando que ela -que dizem ser já a chamada
dei Oorvi nos portulanos - se ·a chava apenas a cem
léguas de Lisboa, e que era a maior do grupo dos
Açores! Enfim, pretende-se que, deste arquipélago, os
Portugueses só acharam os ilhéus que não foi possível
desencantar nos mapas anteriores a 1400; tais são os
penedos das Formigas!
, _Foi ainda ~m ~sta mesma ligeireza de juízos
t~cm~ que a HlStória fez de América Vespúcio um
pioneiro das navegações ocidentais, quando é certo que,
exactamente dos documentos da época- as suas cartas
literárias- , sem referências a nomes de navios ou de
chefes, nem indicações sobre ventos ou velas como
até das suas críticas náuticas absurdas, os m~itimos
concluem q~e Vespúcio nem sequer foi um navegador,
ten_do, por tsso~ desastradamente inventado a sua pri-
mema navegaçao, se não também a quarta. Pois este
mesmo Vespúcio- que conta nas suas cartas ter sido
chamado pelos Portugueses para lhes ensinar a desco-
brir terras!- foi ele, acima de Colombo, proclamado
II, u] CABO BOJADOR. A VOLTA DO MA R D A BAGA 237
o descobridor da América do Sul, dando o seu nome
até à América do Norte, por onde nem sequer passou!
Enfim, vemos correntemente os historiadores con-
jecturarem derrotas de navios de vela, a navegar
direitos contm o vento, como só fazem os barcos a
motor.
·E is a razão por que não tem sido devidamente
apreciada a viagem que fez Gil Eanes em 1434; supõem
que, ao passar além do Bojador, cuja navegação se
sabe de facto fácil, ele •s e limitou a desprezar antigos
preconceitos e superstições de marinheiros ignorantes.
P.ara reconstituir esse capítulo de história, no
qual se atribuem as hesitações nas passagens dos cabos
Não e Bojador àqueles perigos imaginários- que nada,
no mar das Canárias, os fazia sequer suspeitar dos
marítimos - , limitar-me-ei pois a aproveitar o conhe-
cimento dos ventos gerais do oceano Atlântico, que
hoje já não são - como há quatro séculos - mandados
conservar em segredo entre os chefes: com esse ade-
quado recurso técnico analisaremos as viagens além
das colunas de Hércules, e fácil será deduzir qual foi
o verdadeiro obstáculo que, até ao tempo do Infante
D. Henrique, impediu materialmente o estabelecimento
de uma navegação regular, tanto para o sul do arqui-
pélago das Canárias como para as ilhas do mar 'largo
e, enfim, para as terras que se encontram no Atlântico
Ocidental.
•
Vem de muito longe a tradição sobre viagens rea-
lizadas, rodeando a África ou só à sua costa ocidental,
nas quais o cabo Bojador t eria sido passado.
238 A ESCOLA DO MAR LARGo.ATLÃ NTICO I! COSTA DE ÁFRICA ( CAP.
De todas essas viagens, a mais antiga e da qual
há notícia menos nebulosa é a que fez o capitão Hanão,
partindo de Cartago com sessenta galés, cerca de cinco
séculos antes de Cristo. Leva.V18., dizem, trinta mil pes-
soas- o que faria quinhentas por barco ... -além de
mantimentos e outros recursos, tudo destinado a fun-
dar colónias na costa de África. Não é fácil apurar até
onde teria chegado Hanão: a História narra que ele
chegou a um golfo - chamado o Corno do Bul- , de
onde, por os mantimentos começarem a escassear,
voltou as velas para Cartago.
Segundo alguns historiadres - como se lê no «Tra-
tado dos Descobrimentos:., de António Galvão- nesta
viagem foi atingido o eabo de Boa Esperança; outros,
como o moderno La Ronciere, limitam-na no pico dos
Camarões; e há quem julgue que Hanão nem sequer
passou além do Bojador.
Estudada a relação da viagem de Hanão, debaixo
do ponto de vista náutico, e atendendo a que, das
alturas das Canárias, ele ainda navegou bastantes dias
-sendo só de uma vez doze -mas considerando que
a Relação se não refere às dificuldades naturais do
golfo da Guiné, quer no desembarque, por causa da
alterosa calema, que rebenta na praia - a qual ainda
hoje impõe botes especiais de praia, tripulados por
negros acrás - , quer nas fortes correntes que abriga-
riam o capitão cartaginês, do fundo do golfo da Guiné,
a ir ao sul do equador buscar ventos e correntes favo-
ráveis para oeste, o que tudo está longe de corres..
ponder à ligeireza da expressão «voltar velas para
Cartago».. . por todas estas considerações náuticas,
ressalta, como de maior probabilidade, que o seu «Carro
dos Deuses:. deveria ter sido a Berra Leoa, além da
li, u] CABO BOJADOR. A VOLTA DO MAR DA BAGA 239
qual só navegaram até ao Golfo do Sul, mais ·t rês
dias. Esta conjectum ooncorda com a antiga opinião-
divulgada em Ramúsio -de um piloto português.
Assim poderemos aceitar que Hanão teria passado
para o sul do cabo Verde, e portanto além do Bojador,
mas nunca além do cabo de Palmas.
Desta noticia primitiva- que constava de uma
inscrição lapidar num templo de Cartago - acerca de
uma primeira passagem para o sul do cabo Bojador,
conclui-se, pelo menos, que as dificuldades encontradas
pelas galés de Hanão não animaram outras viagens
à Guiné. E passaram dois mil anos até que tal nave-
gação se tornou corrente, ou em série, como hoje
se diria.
Há ainda outras noticias antigas sobre passagens
do mesmo cabo Bojador, embora mais vagas.
Conta Galvão que, ainda antes de Cristo, os Fení-
cios, partindo do Mar Vermelho- provàvelmente nos
mesmos zambucos, ou bogalas, que ainda hoje lá se
usam - , foram contornando a eosta de África por
Melinde e Bofala, 'a té que dobmram o cabo de Boa
Esperança. Depois «fizeram ao Norte seu caminho
pela Costa da Guiné, e mar Mediterrâneo até tornar ao
Egipto donde partiram, e puseram dois anos neste
descobrimento:..
Ora, no estudo geral de todas estas viagens em
torno de África, não devemos esquecer que, quer indo
pelas Canárias, quer pelo cabo de Boa Esperança, os
ventos e correntes ajudam os navios até ao equador;
dai, a volta à Europa seria trabalhosa e exigiria
conhecimentos prévios da Arte de Navegar muito fora
da vista de terra, conhecimentos estes de que os anti-
gos não dispunham. Porquanto é sabido que, assim
240 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA D E ÁFRICA
como no Atlântico Sul sopra o alisado do sueste, que
afronta os navios- tendo obrigado Bartolomeu Dias
a ir contornar o cabo de Boa Espernnça muito pelo
largo parn o poder dobrar- , também a volta da Guiné
para o norte, em navegação costeira, é dificílima, por
ser tanto contra correntes como contra o alisado do
nordeste, que sopra para o sul das Canárias. Por estas
razões- como se induz da «Crónica de D. João Il» -os
navios que vol1JaVI8.m do golfo da Guiné tinham que
ir ao sul do equador buscar ventos e correntes fa·vo-
ráveis e, de lá, de~revendo um arco por oeste das ilhas
de Cabo Verde, iam então- como hoje- rao mar de
Sargaço e Açores, de onde tomavam rumo da Europa.
Er·a assim a chamada Volta da Mina; e , pelos Açores,
vieram Vasco da Gama e Colombo, como é sabido.
A volta completa, ou périplo da África, que se
atribui aos Fenícios, é pois uma viagem bastante duvi-
dosa, por eles não disporem de tais conhecimentos dos
ventos e correntes, nem talvez de bússolas, para se
poderem afastar muito das costas.
Da mesma maneira que a de Hanão, as viagens
dos Fenícios não tiveram sequências.
Muitos séculos decorreram até haver noticia de
outra viagem além do Bojador: é essa de uns genove-
ses- os irmãos Vivaldo - , os quais, talvez preten-
dendo recon:hecer o ·c aminho para a fndia pelo ocidente
da Mrica, cerca de 1285, empreenderam uma viagem
pelo Atlântico, em duas galés. Parece que teriam che-
~ado a·t é à Guiné- o que os ventos do norte lhes facili-
tariam - , porque, segundo Usodimare, que foi um dos
navegadores italianos apoiados pelo Infante D. Hen-
rique, os Vivaldo foram morrer nra Guiné, tendo lá
deixado descendência. Mas o que é certo - e conta
l CA P. 11, n] CABO BOJADOR. A VOLTA DO MAR DA BAGA
Zurara - é que «nunca mais tornaram» para poder
explicar quais as dificuldades de uma viagem que con-
tinuou sem sequência imediata.
Segundo uma legenda da conhecida carta catalã
da Biblioteca de Paris, datada de 1375, um catalão,
Ferrer, partiu em 1346 para o Rio del Oro; não houve
mais notícia do seu barco, sendo certo que, se voltou
à Espanha, não o fez por mar, mas por terra.
Chegamos agora às categóricas conclusões de
D'Avezac. Este geógrafo francês, empenhado em uma
polémica contra a fundada opinião do Visconde de San-
tarém sobre a descoberta da costa ocidental da África,
afirma que esta costa já e.r a conhecida por mar no tempo
dos navegadores portugueses. E , assim, pretendeu pro-
var que outras nações nos precederam na Guiné.
D'Avezac começa por aceitar como verídica a nar-
rativa que um frade mendicante apresenta no conhecido
«Libro dei conosçimiento de todos los reynos», acerca
das suas extraordinárias viagens por todo o Mundo
então conhecido na Europa; çntre essas viagens conta
um inverosímil cruzeiro circular, visitando no século
de 1300, sem fim prático, todas as ilhas Canárias, a
Madeira, com as Selvagens, Porto Santo e Deserta e,
ainda alguns acreditam, oito ilhas do arquipélago dos
Açores. Este frade conta também que, em uma «ga-
leota de unos moros de Gazula», passou os cabos Não
e Bojador, indo até ao então chamado Rio del Oro,
metendo-se no golfo da Guiné. Mas desta viagem, ape-
sar de ter sido tão fàci mente feita só no papel, tão-
~pouco há notícia da volta por mar. Assim, nem o Libro
ensina como se .navega a lém do Bojador, nem- contra
a opinião de D'Avezac- ele traduz um reconhecimento
marítimo da costa de África. O que naquele tempo se
242 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA DE ÁFRICA ( CAp.
sabia pelas caravanas que, por terra, iam de Fez à
Guiné comerciar, é o que nos conta Barros na «Primeira
Década». A costa de África «pela informaçam dos
Alarves», sabia-se ser ccontinua hua a outra, té se
meter debaixo da linha equinocial», não havendo «no-
ticia da navegação da sua c~sta».
Com o mesmo critério simplista, D'Avezac aceitou
também ·a s estranhas afirmações contidas no livro
cRelation des costes d'Afrique»,
publicado em 1669 pelo «Sievr Villaulb, onde pela
primeira vez aparece a revelação de antigas viagens
francesas à costa da Guiné, afirmando~se que esta
glória é devida aos franceses de Dieppe, que «Y ont
navigé plus de soixante ans avant que les Portugais
en eussent eu la connoissance» (pág. 410).
Porque, segundo Villault, os Normandos, já desde
o ano 1364 e até cerca de 1410, traficavam para a
Serra Leoa e Guiné, tendo até deixado no local onde
foi depois construído o castelo português da Mina uma
cBateria Fmncesa». Teria, além disso, havido na Guiné
feitorias fundadas por eles, como o «Petit Dieppe» e o
cPetit Paris». Na viagem que Villault fez em 1666 e 67,
por ordem de Colbert, à costa de África, ele teria en-
contrado lá seguros vestígios de uma ocupação nor-
manda, três séculos antes: a nora de um príncipe indí-
gena ainda lhe soubera dizer em francês: cMonsieur,
je vous remercie».
Embora tais afirmações apareçam com Villault
pela primeira vez, sem confirmação de documentos
anteriores, repetem-nas Labat e outros. Gravier, na
sua informação do livro «Le Canarien» (publicado em
li, n] CABO BOJADOR. A VOLTA DO MAR DA BAGA 243
1874), apresenta como incontestáveis as navegações
normandas à Guiné, muitos anos antes das portugue-
sas. Nesta mesma introdução ao livro antigo, referindo
as viagens em que o fidalgo normando João de Béthen-
court, «Conquesteur» das Canárias, visitou de facto
estas ilhas em 1402 e 1405, Gravier acrescenta que
Béthencourt iniciou assim a era das grandes nave-
gações- apesar de nem ter sido o primeiro navegador
a visitar as Oanárias-, porquanto, «Com a bússola e
o astrolábio na mão, ele se dirigiu com segurança,
abrindo à Arte Náutica novos horizontes, a Gama o
caminho do Cabo e a Colombo o da América»!
Em resumo, todos repetem que há «des apparences
três bien fondées » das viagens dos Normandos à Guiné,
embora isso fosse ignorado em Fvança enquanto Vil-
lault não foi à Guiné descobri-lo!
Contudo, acontece que no mesmo livro eLe Oana-
rien» (pág. 101) se conta que Béthencourt tinha apenas
a intenção de abrir o caminho do Rio do Ouro, apesar
de, segundo Gravier, esse caminho já estar aberto pelos
Normandos, que se pretende terem lá andado desde
quarenta anos antes ... Além disso, Béthencourt, ani-
mado desse propósito, esteve, em 1405, em um cabo
«qui siet au royaulme de la Guynoie, à XII lieus prês
de nous» , isto é , a 12 léguas da ilha Forteventura.
Béthencourt chama a este cabo Bugeder, mas é fácil
de ver em um mapa que o tal cabo, que fica do outro
lado do canal, a 12 léguas, é o actual cabo Juby, ao
passo que o verdadeiro cabo Bojador fica ainda umas
35 léguas mais a sudoeste. Assim, desta viagem de um
normando conclui-se que o caminho do Rio do Ouro
não estava ainda aberto pelos Normandos em 1405,
nem tão-pouco ficou então aberto, visto que Béthen-
244 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA DE ÁFRICA [CAPe
couzt nem sequer passou uma légua além do Bojador
(como tão-pouco esteve na Guiné), contm o que D'Ave-
zac e os seus outros admira_d ores pretenderam.
De resto, não há documento algum que confirme
estas pretensas viagens francesas anteriormente às
dos Portugueses. Nenhum livro anterior a Villault as
cita, e elas eram pràticamente ignoradas em França.
Tão-pouco mapa algum anterior ao Infante D. Henri-
que mostra conhecimento da costa ocidental de África
para o sul do actual cabo Juby, ou fiaz sequer uma refe-
rência ao «Petit Dieppe». Só os nomes portugueses,
postos no tempo do Infante, são lidos nas cartas
modernas da África Ocidental. Nos livros franceses
anteriores a Villault é reconhecido que foi pela dili-
gência dos navegadores portugueses que se dilataram
os limites da navegação. E ainda hoje podemos repetir
que, se os Normandos visitaram de facto a Guiné entre
1364 e 1410, eles abandonaram esta terra tão comple-
tamente que, poucos anos depois, os Portugueses já lá
não encontraram vestígio algum da passagem de outros
europeus. Ao contrário, segundo se lê em Cadamosto,
os indígenas da costa mostravam nunca ter visto, quer
outros navios, quer os mouros ou os portugueses.
Enfim, todos os países, incluindo a própria Frn.nça.,
aceitaram como boa a ocupação portuguesa da Guiné.
Apesar de todas estas razões, D'Avezac- pondo
a par das viagens dos Fenícios, e da que o frade conta
no seu Libro à Júlio Verne, as viagens dos Normandos
- conclui definitivamente que os Franceses, os Cata-
lães, os Mouros e os Genoveses já, antes dos Portu-
gueses, tinham todos navegado para o sul do cabo
Bojador, desbravando o caminho ao longo da costa
II, n] CABO BOJADOR. A VOLTA DO MAR DA BAGA 245
de África aos navegadores que lá mandou o Infante
D. Henrique!
As pretensões francesas respondeu detalhada-
mente o Visconde de Santarém na sua «Memória sobre
a prioridade dos descobrimentos portugueses na costa
da África Ocidental». Deste livro se deduz, como seguro
e irrespondível, que de todas as problemáticas viagens
além do cabo Bojador, anteriores a 1434, desde a de
Hanão às dos Fenícios, Romanos, Catalães ou Nor-
mandos, só resultou na tradição popular a sentença
«Quem passar o cabo Não ou voltará ou não:..
Esta frase traduz claramente que a dificuldade
capital da navegação além do Cabo não estav,a na sua
passagem mas na voita, a qual, por ser contra ventos
e correntes, era afinal aquilo que propriamente se
poderia chamar «dobrar o cabo Bojador». Ora de todas
aquelas viagens antigas não resultou explicada qual
a dificuldade dessa navegação além do Cabo, nem a
maneira de a vencer: tratava-se apenas de tentativas
acidentali.s que em nada, absolutamente, aproveitaram
ao Infante nem aos outros navegadores europeus. A
última tentativa, a de Béthencourt, foi ainda impo-
tente, como ele conta, para abrir a navegação da Guiné.
Mas os cronistas, desconhecendo as dificuldades
reais, que todos tinham encontrado em estabelecer
essa cobiçada e proveitosa navegação, foram levados
a aceitar explicações maravilhosas: por eles se encon-
tra contado que, no princípio do século de 1400, a
navegação para além do cabo Bojador - no Mar
Tenebroso- não estava sendo sequer tentada, por
que os homens do mar eram dominados por supers-
246 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA DE ÁFRICA [ CAP.
tições, que a sua experiência da navegação no
Atlântico não justificava. De resto, os cronistas, ape-
sar de tão pouco poderem acreditar nesses contos
fabulosos, que navegador algum testemunhara, escre-
veram:
O mar para o sul das Canárias é, com razão,
chamado o Mar Tenebroso. Vai bater na costa de
Ãfrica, «areal desabitado:. por causa do muito «fer-
vor» do sol, calor este tão forte que os homens brancos
que de lá voltassem «viriam queimados tão negros
como os guineos:., «vizinhos a esta quentura». Embora
lã se não estivesse navegando, corria que no Mar Tene-
broso a água era tão quente que cozia os peixes, e, em
1498, ainda Colombo receara que o calor tropical cque-
masse los navios y gente»; e, por causa desse insu-
portável calor, a evaporação das águas era quase
completa, a ponto de descobrir em parte o fundo do
mar, formando muitas ilhas e baixios, de modo tal
que a uma légua de terra não haveria de fundo mais
que uma braça.
Com o mar assim caparcellado:., o «fervor da
aguagem sorvia os navios!:. Nos lugares onde havia
água, esta era muito espessa, por muito salgada, sendo
as tempestades frequentes, os ventos violentos e as
vagas alterosas. Havia também monstros marinhos,
serpentes do mar ou talvez aqueles que agora chama-
mos ictiossauros. .. Enfim o ar não era ·s ó quente, mas
também · venenoso, e as trevas eram profundas. Chei-
rava mal.
Eis, em resumo, as razões pela-s quais- segundo
os cronistas - «todos tinham receio de passar aquele
cabo Bojadon, «termo que Deus pusera nos mares à
ambiciosa temeridade dos homens:.!
11, n] CABO BOJADOR. A VOLTA DO MAR DA BAGA 247
Embora os próprios cronistas não pudessem acre-
ditar nestas fábulas pueri<s, atribuíram a sua crença
àque1les homens práticos da navegação do Mediterrâneo
e das costas da Península que, ao chegarem ao mar das
Canárias, ali começavam já a sentir a acção modera-
dora dos trópicos, em cuja-s águas as tempestades,
quando as há, são de pouca força e duração! Contudo,
nas crónicas que nos deixaram, lemos que «O temor
desta passagem do Cabo, que se chama do Bojador:.,
já vinha desde os antepassados, que nunca «se antre-
meterom de passar». Ora entre esses antepassados
estavam os Mouros, marinheiros de experiência muitas
vezes ·s ecular, pois é sabido que os seus «pangaios
subtis da bruta gente» - como lhes chamou Camões- ,
os quais ainda hoje se encontram em Moçambique e
nos outros portos do oceano Indico, e~am aqueles
mesmos pequenos barcos de vela com que há três mil
anos os Mouros iam da fndia, a Sofala, em busca do
ouro do interior de África. E quando Vasco da Gama
chegou à costa de Moçambique, a navegação para a
tndia era ainda feita por pangaios mouros.
Pois apesar de tudo isto, nem mesmo entre esses
marinheiros houvera quem, na passagem do Bojador,
«Ousasse tomar tal atrevimento, sob tão certa ameaça
de morte, como lhe ante os olhos apresentavam:.!
Enfim, Zurara compa~a este receio ao justo temor
das virgens sacerdotisas ao entrarem cna cova de
Apolo para lhe esquadrinhar os segredos:.!
)(
Não! O que se escreveu sobre as viagens além do
cabo Bojador não é História Marítima, é apenas
romance de ficção. Se se hóuvesse tratado apenas de
um esforço comparável ao das «Virgens de Apolo», ou
àquele que as crianças fazem para entrar em um
248 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA DE ÁFRICA ( CAP.
quarto escuro - que neste caso seria o Mar Tene-
broso - , se se tratasse apenas, digamos, de um rasgo
de audácia, já outros o teriam praticado, muito antes
dos ccriados do Infante:. : nem teria sido preciso espe-
rar pelos marítimos que atravessavam a Biscaia ou
por aqueles que, em 1432, se não antes, foram ao mar
aberto dos Açores, incomparàvelmente mais temeroso
que o mar da costa ocidental de África, onde os fracos
temporais nada podem contra os reduzidos molhes
com que deles se defendem agora os portos artificiais
das Canárias. Para aquele rasgo de audácia bastariam
os marinheiros do Mediterrâneo.
O náutico de agora, conhecedor da meteorologia
da costa ocidental de Ãfrica, não poderá deixar de
sorrir ao ler os perigos pueris que os antigos cronistas
atribuíam à passagem de um cabo, sem dúvida menos
perigoso que os cabos Finisterra e de B. Vicente, já
frequentados no século de 1300. Por isso hoje, que os
não-náuticos conhecem as facilidades da navegação no
mar ex-Tenebroso- cujas águas não são negras mas
azuis!-, não se poderá repetir que os antigos marí-
timos hesitavam em navegar além das Canárias em
razão daquelas tão vagas quimeras: temos que lhe
encontrar outra explicação mais verosímil e esta res-
salta naturalmente quando, pelas actuais cpilot-charts:.
Illensais, notarmos que ao longo da costa da África,
entre o Bojador e a Guiné, domina todo o ano o alisado,
com os seus ventos e correntes para sul. Assim, a
navegação para a Guiné seria aquela navegação para
sotavento que sempre os marítimos receiam, porque a
volta se tornaria aventurosa contra o vento se recorres-
sem apenas aos processos de navegar que, segundo
li, u] CABO BOJADOR. A VOLTA DO MAR DA BAGA 249
conta Barros, então todos praticavam: ctoda sua nave-
gação era por singraduras à vista de terra:..
De resto, tanto Barros como Zurara já descobrem
uma parte do véu que encobria a verdade, quando alu-
dem às «grandes correntes», ctamanhas que navyo que
la passe jamais nunca podera tornar:.. Barros, bus-
cando uma razão marítima, acrescenta que no rosto
do cabo Bojador havia uma «restinga que lançava
para !oeste obra de seis legoas:., onde as águas cpare-
cem saltar e ferver», o que produzia nos marinheiros
um tal temor que os «cegava», a ponto de «não enten-
derem que, afastando-se do cabo o espaço das seis
legoas que ocupava o baixo, pod~am passar além»,
por não saberem cortar tão largo que salvassem o
espaço da restinga. E ainda «concebiam que o mar
daly por di•a nte era todo aparcelado, e que nam se
podia navegar». Ora, em realidade, ·a restinga do
cabo Bojador não vai além de uma légua da praia!
O certo é que a sentença popular, que o Infante
ainda encontrou, c ...ou tornará ou não!:. não se apoiava
em temores fantásticos: tinha um fundamento náutico
real, qual era a dificuldade material de os barcos de
vela, ou mesmo galés, depois de se afastarem muito
•
para o sul do Cabo, voltarem para o norte, contra o
vento e corrente. A vaga cavada por esse vento afron-
taria de tal modo os pequenos navios do século XV,
que só por um paciente e incerto trabalho, esperando
bonanças e aproveitando revessas, junto a uma costa
não hidrografada, eles poderiam ganhar as Canárias,
fazendo a navegação de cabotagem que então sabiam
fazer. Porque aquele vento e corrente ainda hoje
afrontam tanto os pequenos vapores como os mais
finos veleiros; os próprios rápidos clippers do sé-
250 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA D E ÁFRICA [ CAP.
culo XIX largavam a costa e, a rumo de noroeste,
abertos ao vento, iam tomar barlavento ao mar dos
Açores. Assim praticavam até alguns navios mistos,
isto é, onde o vapor de fraca potência era acompa-
nhado de velas auxiliares.
• cia dos seus predecessores - desde os Cartagineses até
Tal era o estado da questão quando o Infante
D. Henrique, movido por todos ou alguns dos fins que
lhe ra tribui Zurara:
porque tinha vontade de «saber a terra» que ia
além das Oanárias e do cabo Bojador, a qual, «deter-
minadamente», não era conhecida;
ou porque considerou que de alguns portos que
lá houvesse se poderiam trazer mercadorias;
ou para conhecer até onde se estendia o poder
dos infiéis;
ou para ver se se achava «em aquelas partes»
alguns príncipes cristãos que o quisessem ajudar con-
tra os inimigos da Fé;
fosse para buscar mais alguns crentes do cris-
tianismo ...
... ou fosse, enfim, movido por motivos mais mate-
riais que sentimentais, o certo é que o Infante, pouco
antes de 1418, começou a trabalhar para abrir aos
Portugueses o caminho marítimo para a Guiné, a qual,
pelas informações colhidas em Marrocos, se sabia ser
rica em ouro e outras mercadorias, e tanto que valia a
pena ir buscá-las atravessando o deserto com camelos.
Preferível ·s eda vazer esse mesmo comércio em navios
portugueses, se isso fosse praticável, visto já se saber
então - segundo Barros - , pela «~nformação que tinha
II, u] CABO BOJADOR . A VOLTA DO MAR D A BAGA
dos Alarves», que a costa de .Ãfrica, para o sul do
Bojador, era «'Continua hua a outra, té se meter
debaixo da linha equinocial». De resto, o caminho pelo
mar era o único acessível aos Portugueses.
Conhecedor o Infante das dificuldades práticas,
já apontadas, e nada podendo aproveitar da experiên-
aos Mouros de Marrocos - , segundo uma e~pressão
conhecida, teve o Infante que inventar a navegação
para a Guiné, isto é, teve que buscar a maneira prática
de em navios tanto lá ir como voltar, sem grande
'
incerteza, '
ou demora, nas viagens.
Para resolver este problema, bem sabia o Infante
que nenhuns, dentre os marítimos da sua época, tinham
conhecimento de navegação de alto mar, porquanto, de
acordo com o que se lê em Barros, «OS marinheiros
não eram costumados a se engolfar tanto no pego do
mar e toda sua navegaçam era por singraduras sempre
á vista de terra» isto é, ao mar e à terra.
' .
É certo que, um rs éculo antes, em 1317, fora o almi-
rante Pessanha encarregado de organimr a Marinha
Milirbar Portuguesa, para o que trouxera consigo outros
genoveses, todos práticos na arte de fazer a guerra
das galés; saberiam talvez servir-se dos portulanos,
mas, limitada a sua navegação ao Mediterrâneo e às
costas de Espanha, desconheciam a navegação de alto
mar. Se a ·conhecessem teriam ~sido eles, Gerroveses, e
não os Portugueses, quem primeiro teria ido ao Atlân-
tico Sul e à índia.
Também, por vários cronistas, consta que, em
1428, o Infante D. Pedro trouxera do estrangeiro, pro-
vàvelmente de Veneza, aquele mapa-mundi, muito
citado, em que já estava «todo o âmbito da Terra, a
 252 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA D E ÁFRICA ( CAJ>':
fronteira ( ?) de África, o cabo de Boa Esperança e
até a Cola do Dragão», a que depois se chamou o
estreito de Magalhães ... Acrescenta-se que este cPadrão:.
teria ajudado o Infante D. Henrique nos seus desco-
brimentos.
Ora, quando tal mapa chegou a Portugal, já os
Portugueses tinham estado no arquipélago da Madeira,
tendo Zarco, quando lá foi, cerca de 1418, conservado
à ilha mais ao norte o nome de Porto Santo, que ela
já tinha nos outros mapas do século de 1300.
Donde se deduz que já antes da viagem de
D. Pedro haveria em Portugal outros mapas daqueles,
semelhantes ao catalão, de 1375, nosso conhecido.
Todos esses mapas apresentam, é certo, uma indicação
da costa de África para o sul do actual cabo Juby- e
não do actual Bojador; mas tz,ata-se apenas de uma
linha comida para o sul, ,s em nomes, não traduzindo,
portanto, visita por mar, isto é, sendo apenas o resul-
tado de informações vagas colhidas dos habitantes
africanos, ao sul do Deserto.
De resto, a dificuldade principal em passar além
das Canárias não estava na falta de mapas com o
âmbito da Terra; os mapas não indicavam aquilo que
mais importava conhecer, que eram os ventos gerais,
elemento essencial para se poder projectar ,a navegação,
tanto de ida como de regresso.
Assim, nem os Genoveses nem os mapas cajuda-
ram:. o Infante na sua invenção .
•
Dispunha o Infante, naturalmente, de conhecimen-
tos pessoais de astronomia elementar, isto é, da parte
11, u] CABO BOJADOR. A VOLTA DO MAR DA BAGA 253
mais simples entre o muito que se encontra coorde-
nado nos cLibros dei saber de Astronomia:., onde não
há segredos ou revelações, mas apenas a compilação
dos conhecimentos gerais correntes na Península no
século xrv; e conta-se que ele passava noites a_ con-
templar o céu para lhe arrancar o segredo da orienta-
ção dos navios no alto mar, quando não houvesse à
vista outra coisa ...
Nesse cogitar sobre a maneira de realizar nave-
gações largas, que lhe permitissem mandar navios à
Guiné, e mais tarde à India, sucessivamente se deve
ter apresentado ao Infante a necessidade de dar solu-
ção aos seguintes quesitos:
a) Haveria, no mar largo, ventos que permitissem
tornar mais breve a navegação?
b) Determinação da posição do navio em relação
à terra, fora das vistas dela, seja só pela
estima geométrica, seja pelo Sol ou pelas estre-
las·, e ' como consequência, .
c) Determinação do erro das agulhas, ou seJa a
diferença entre o seu norte e o norte verda-
deiro, recorrendo à Estrela Polar;
d) Levantamento das cartas hidrográficas, a fim
de facilitar a navegação pelo mar largo, entre
os diferentes portos, quando os ventos não
permitam uma navegação costeira;
e) Adaptação à navegação do mar largo dos
navios conhecidos, de remo ou à vela.
Embora nos não restem documentos a comprovar
estas conjecturas pelo facto de, depois da ida aos
Açores e da pass~gem do cabo Bojador, se ter iniciado
254 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA DE ÁFRICA ( CAP.
uma série de viagens para sul, os náuticos concluirão
intuitivamente que aquelas operações essenciais da
navegação foram conhecidas no tempo do Infante.
Para a resolução do problema da navegação de
alto mar bastaria o conhecimento de geometria ele-
mentar, assim como o da astronomia elementar, tanto
do Sol como da Estrel-a Polar. E, embora o quadrante
e o astrolábio não tivessem, provàvelmente, sido usados
por Béthencourt, em 1403, como os seus admiradores
pretendem, estes ~nstrumentos já eram conhecidos na
Península, e a sua aplicação a bordo não dependia de
conhecimentos teóricos, mas só de prática no mar.
Quanto ao Regimento do Sol, embora dele não nos
ficasse cópia alguma, contemporânea do Infante, nada
mais intuitivo do que aceitar que havia tais tabelas
manuscritas, onde estivesse a ·l-atitude dos lugares
sobre cujo zénite o Sol paJSsava nas diferentes épocas
do ano. li: sabido que é elementar deduzir assim, da
distância meridiana do Sol ao nosso zénite, qual é a
nossa latitude.
Seria preciso, principalmente, praticar em via-
gens de mar esses ensinamentos elementares da Astro-
nomia e da Geometria de então.
Posto o problema desta maneira tão nítida pode-se
aceitar como conjectura bastante provável que o In-
fante D. Henrique, possuído da ideia de abrir o cami-
nho da Guiné- e, logo que fosse possfvel, o do Oriente,
vri.sitado por Marco Polo - , ·começou por se ir esta-
belecer junto daquele cabo, onde, segundo Zurnra,
acaba o Mediterrâneo e começa o oceano, e que,
segundo o «Esmeralda», «por outro nome antigamente
sacro promontório se chamava», fundando ali o In-
fante «a sua villa de Terçanabal, situada sobre angra
II, n] CABO BOJADOR. A VOLTA DO MAR DA BAGA 255
de Sagres que oje em dia aly esta fundada:.. Na angra
que fica ao nascente do actual cabo de São Vicente, abri-
gada dos ventos do norte, «afastado das fadigas deste
Mundo», teria ele formado aquilo a que chamamos hoje
uma Estação Naval, e se teria criado, não uma Aca-
demia Naval, com aula:s e cursos regul-ares- como se
chegou a pretender- , mas, mais naturalmente, aquilo
que conjectura Sousa Viterbo, ou seja um ponto de
reunião frequentado de contínuo por pilotos e outros
homens do mar, onde se praticaria acerca da marcha
dos Descobrimentos e maneira de os prosseguir.
Nessa espécie de Escola de Aplicação, aprovei-
tando-se a ciência dos doutores, como Jácome de Ma-
lhorca, e também a arte dos hábeis marítimos mouros,
que ficaram em Portugal, se teria, por um lado, melho-
rado os processos de navegação, quer copiando os
regimentos astronómicos, quer desenhando os portu-
lanos- ou cartas de navegar- das regiões novamente
navegadas; por outro lado, se teria estudado a adap-
tação dos barcos então empregados, tanto galés como
os só de vela, de modo a poderem afrontar os temporais
do alto mar, para o que era elementar aumentar aos
seus cascos a altura da borda.
Desta troca de impressões teria resultado tanto
a nova Arte Náutica, como a «Caravela portuguesa:.,
que tão importante papel teve nas viagens de desco-
brimento.
Certo, não temos, nos arquivos, provas concretas
de tais estudos terem sido realizados em Sagres,
havendo até quem escreva que, no tempo do Infante,
se continuava a só praticar navegação costeira, quer
para a ida como para a volta da Guiné, de acordo com

256 A ESCOLA DO MAR LARG O-ATLÂNTICO E COSTA D E ÁFRICA [ CAP.
a versão que, meio século depois - no tempo de
D. João II - , ainda se fazia tendenciosamente correr.
Mas o facto de antes da passagem do cabo Boja-
dor terem os caravelistas do Infante ido aos Açores,
e ·a té de, na carta de Bia nco, datada de 1436, já
figurar o Mar de Baga, ou de Sargaço, que flica ao
sudoeste das mesmas ilhas, denunciando assim via-
gens muito mais extensas e mais de mar largo que a
viagem de Lisboa às Canárias, esses factos provam-
-nos que a solução completa do problema da navegação
do alto mar- mais dependente, como disse, da expe-
riência das viagens, do que de um curso de náutica
teórica- fora encontrada antes de, em 1434, se ter
passado o oabo Bojador e , portanto, muito antes de
Colombo vir a Portugal.
Porquanto o descobrimento português dos Açores,
ainda que t ivesse sido um «redescobrimento» (sic) , não
poderá deixar de ser considerado como um evidente
testemunho do <adi< a ntamento da Arte Náutica Portu-
guesa em 1432: foram encontradas algumas ilhas que
estavam mais de duzentas léguas ao largo da costa de
Portugal. Tivesse esse descobrimento sido por a caso,
ou tivesse sido inspivado no mapa de D. Pedro- onde
estariam umas ilhas, que se t êm identificado como os
Açores, mas que lá estão só a cem léguas da costa - ,
o certo é que já em 1431 se sabia ir ao mar largo, sem
receio de os navios se perderem; já portanto se conhe-
ciam 'os ventos que lá dominam. Se, à volta das terras
além do cabo Bojador, se encontrassem a queles ventos
e correntes, que impossibilitam uma viagem directa
para o norte, voltar-se-i'a pelo então conhecido mar
dos Açores, como hoje se pratica.
II, n] CABO BOJADOR. A VOLTA DO MAR DA BAGA 257
Assim, a passagem do cabo Bojador, que sabemos
ter sido feita por Gil Ea-nes em uma cbarcha:. - que
não era barco latino-, terá de ser considerada uma
demonstração clara de que os colaboradores do Infante,
tanto cientistas como homens do mar, tinham conse-
guido descobrir a maneira de navegar sem receio pelo
Mar Tenebroso, porque tinham a certeza de lá poder
voltar- se a sua famosa cquentura:. tropical não quei-
masse os homens! - , apesar da conhecida persistência
dos ventos do norte ao longo da costa de África.
Esta passagem do Bojador não foi pois, apenas,
como se pretendeu, um rasgo de audácia ou uma aven-
tura bem sucedida, que outros não pudessem repetir.
Eis a versão náutica mais verosfmil, que se opõe ao
que contam alguns cronistas sobre as já referidas
lendas dos monstros, que durante tantos séculos teriam
assustado os marítimos, mouros ou europeus, infes-
tando o Mar Tenebroso: para vencer esse temor secu-
lar não fora preciso aperfeiçoar a Náutica ... teria
bastado, dizem, que Gil Eanes, intimidado pela pre-
sença imponente do Infante e pelas suas ordens impe-
riosas, desprezando o perigo, fizesse um último esforço
e conseguisse c dobrar o cabo aliem:.!
Tal versão não passaria de uma continuação da
lenda. Porque, em verdade, bem sabemos hoje que se
tratava de um arrojo comparável aos trabalhos de
Hércules : bastava um aproveitamento bem orientado
de recursos que, no tempo do Infante, já não era pre-
ciso inve-ntar, a Geometria, a Astronomi,a , o ~tro­
lábio.
A aplicação experimental destas ciências, em
viagem de mar largo- como foi a dos Açores- , era
suficiente para se descobrir que as viagens de volta
17
258 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA D E ÁFRICA ( CAP.
da costa de África a Portugal podiam ser feitas con-
tornando em arco, pelo Atlântico Central, o alisado
do nordeste, vento este que sopra todo o ano para o
sul das Canárias. Com esta derrota indirecta, em arco
pelo noroeste, se atingiria a região dos ventos variá-
veis; chegados ao mar dos Açores, e reconhecida a
altura ou latitude de Lisboa, quer avistando as ilhas,
quer recorrendo ao astrolábio e à mencionada astro-
nomia elementar, bastava correr pela latitude para se
chegar a Lisboa, não varando o porto, mesmo que
soprasse o ~onhecido vento do norte. Assim fizeram
Colombo e Gama, e assim praticam ainda hoje todos
os navios de vela.
Só um tal conhecimento de navegação de alto mar,
sem receio de se perderem - por muitos dias que pas-
sassem cengolfados no pego do mar» à mercê de ven-
tos e correntes, sem o recurso da «vista de terra» para
se orientar- , só uma tal e~iência, de que nenhum
outro povo da Europa então dispunha, poderia ter
animado os Portugueses a frequentar o mar largo, por
onde sabemos que tinha de ser feita a viagem à vela,
de regresso da costa de Africa. Foi mercê da acção
inteligente do In:f:iante D. Henrique que os mareantes
de Portugal aprenderam a Nova Arte Náutica, que
lhes permitiu a navegação do alto mar, a qual nenhum
outro povo fazia na primeira metade do século de 1400.
Devassado assim o Mar Tenebroso, por onde se
traçavam as derrotas de volta, sucessivamente se foi
invadindo o ·oceano Atlântico com os navios portu-
gueses: foi-se à Guiné, ao Atlântico Sul e, além do
cabo de Boa Esperança, ao oceano Indico. Se, antes
de Gil Eanes, alguns outros navegadores frequenta-
ram o mar largo, é indiscutfvel que foi só a viagem
li, n) CABO BOJADOR. A VOLTA DO MAR DA BAGA 259
portuguesa aquela que teve sequência, por ter sido o
resultado de uma sistemática preparação. Essas via-
gens constituíram uma conquista definitiva: nunca
mais elas foram interrompidas, pois no século dos
Grandes Descobrimentos o Atlântico foi tão minucio-
samente explorado pelos navegadores portugueses que
lhes não escapou nenhuma das ilhas que lã se encon-
traram. E, assim, receberam nomes portugueses os
Açores, Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe e Ano Bom,
Noronha (a que primitivamente se teria dado o nome
de São Ma teus), Trindade, Santa Helena Ascensão
Tristão da Cunha ... ' '
E até na Terra Nova, como nas Antilhas, perdu-
ram nomes portugueses, porque, pelo menos, a nossa
ciência náutica concorreu para o seu descobrimento.
Canadá é' o antigo nome português canada.
Havia, naturalmente, um poderoso interesse em
manter a lenda do exclusivo das misteriosas caravelas,
conservando em segredo a nossa maneira de traçar
as derrotas - como se deduz do conhecido episódio
de Pero de Alenquer ter sido desmentido por D. João II,
quando afirmou que lhe seria fácil trazer da Guiné
a Lisboa qualquer nau, por ronceira de vela que ela
fosse. Eis a explicação provável de não terem chegado
:a té nós diários, cartas de navegação do século xv, ou
outros documentos- como seriam os regimentos do
Sol, manuscritos, por então não haver ainda imprensa
em Portugal. Os próprios cronistas, como também o
c:Esmeraldo», eram cúmplices deste intuitivo segredo;
de resto, conhecessem-no ou não, não era permitido
publicá-lo.
E foi tal segredo tão bem mantido no decorrer do
século de 1400 que, embora sem documentos, podemos
260 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA D E ÁFRICA ( CAP.
garantir que os Portugueses estiveram nos Açores em
1432, cortaram o equador em 1470, e dobraram o cabo
de Boa Esperança em 1486. Donde- sem necessidade
de outras provas- se pode inferir com segurança que
esses mareantes sabiam perfeitamente navegar no pego
do mar, a que se refere Barros. Tais navegações reper-
cutem-se na tradição sobre a existência da Escola de
Sagres, onde tal possibilidade fora criada.
~ certo que os cronistas não mostram ter com-
preendido a importância e alcance náutico que teve a
passagem do cabo Bojador: limitam-'se a contar que
este cabo foi passado e repassado eem dizer oomo.
Zumra apenas regista que Gil Eanes, dobrando o cabo
c a aliem:., achou as coisas cmuyto pello contrairo do
que elle e os outros ateelly presumyram». E , como sinal
da terra que ficava algumas dezenas de léguas para o
sul do Oabo, trouxe a Portugal umas ervas chamadas
no Reino crosas de Sancta Marya:., em que se conver-
teram os famosos espinheiro das praias do Mar Tene-
broso. Não fala , sequer, das pegadas dos monstros, que
ele estava bem seguro de lá não enoontrar ...
Mas, embora o não tenham feito notar os cro-
nistas, outro testemunho mais eloquente trouxe Gil
Eanes: apesar dos ventos e oorrentes para sul, que ele
e os outros cpresumyram:., resultava provado que-
mesmo em uma barca, que não era navio latino como
'
as caravelas- se podia, só à vela, fazer as viagens
de ida e volta à Guiné, primeiro alvo a que o Infante
apontara: deste principio a passagem pelos Açores
fora uma prova de ensaio, ao passo que a do Bojador
era uma prOVIa prática definitiva.
De facto, a partir desse ano de 1434, aquilo que
não pudera ser realizado pelos Cartagineses, nem pelos
II, n] CABO BOJADOR. A VOLTA DO MAR DA BAG A 2ÓI
Fenícios ou Normandos, isto é, o descobrimento da
costa ocidental da África, continuou passo a passo,
oom segurança, a ser feito só pelos mesmos marean-
tes - os Portugueses-, que, meio século depois, ainda
eram os únioos a navegar no Atlântico Sul, tendo pas-
sado já para o nascente da ponta mais austral da
África - o cabo Tormentoso - e atingido o oceano
lndioo, mar onde os recursos da navegação eram conhe-
cidos, havia séculos, de outros navios de alto bordo.
Com esta passagem de Bartolomeu Dias feita muito
pelo sul e por fora do Cabo, em uma volta ' indirecta,
semelhante à da viagem de retorno do cabo Bojador,
deixou de ser lendário o périplo da Ãfrica; tornam-se
realização, embora dela apenas nos restem indicações
vagas, como a de Pero de Alenquer, ou a de Diogo
Gomes: cEu e Antonio No li, do porto de Zaia, fomos
dois dias e uma noite caminho de Portugal, e vimos
!ilhas no mar .. . » «E eu tinha um quadrante quando
fui a estes paizes ... ». kssim, em viagem de 'regresso
da oosta de África, feita pelo largo, fora descoberta
a ilha de Santiago, de Cabo Verde.
Para se alcançar um tal progresso definitivo sobre
a navegação que, havia tantos séculos, era praticada
no Mediterrâneo, não bastara audácia em uma ocasião
de sorte feliz: fora preciso que de Sagres surgisse a
invenção de uma Nova Arte de Navegar. Foi confiados
nela que os caravelistas, antes de descobrirem as terras,
como disse Camões, foram
«descobrindo os mares inimigos ... :.
Em resumo:
A História tem ignorado as dificuldades reais e
a importância da passagem pam o sul do cabo Boja-
262 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA D E ÁFRICA ( CAP.
dor, julgando, literàriamente, que o único obstáculo
a essa navegação residia apenas na superstição de
marinheiros tímidos, apesar de já práticos de mares
bem mais procelosos.
Como os portulanos do século de 1300 não reve-
laram conhecimento da costa ocidental de África,
deduz-se que, das viagens de Cartagineses, Fenícios,
Mouros ou Normandos- se as houvesse -nada ficou
que pudesse ter concorrido para facilitar aos carave-
listas do Infante D. Henrique a sua navegação defi-
nitiV'a no mar ao sul das Canárias; porquanto os mapas
anteriores a 1400 nem sequer mostram conhecimento
da costa de .Africa até ao verdadeiro cabo Bojador dos
Portugueses: a costa conhecida terminava no ·a ctual
cabo Juby. Todos ·aqueles navegadores lendários como
o próprio Béthencourt, deixaram confirmada ~ sen-
tença popular
«Quem passar ... ou tornará ou não:. !
Porém, as dificuldades reais não eram puras
superstições, eram de ordem náutica. Aquela navegação
só poderia ter sido conquistada por aqueles que, depois
de uma preparação de muitos anos, em terra e no mar,
descobriram a maneira de se poder voltar da Guiné,
terra esta que se sabia ficar cerca de 300 léguas para
além das Canárias. Destes estudos, realizados no tempo
do Infante, concluiu-se -de acordo com os factos, bem
conhecidos hoje - que tal volta da costa ocidental da
África não era praticável bordejando contra o vento,
ao longo da praia: era preciso contornar deliberada-
mente a zona dos ventos contrários, pelo largo, em busca
de outros ventos favoráveis. A dificuldade da volta da
Guiné estava pois nesta travessia do alto mar no
•
li, TI) CABO BOJADOR. A VOLTA DO MAR D A BAGA
seg.redo que Pero de Alenquer ia deixando escapar ... E
esta viagem de algumas centenas de léguas, sem ver
terra, pôde atingir depois milhares delas, como foi a
de Vasco da Gama entre Santiago e a .Africa do Sul.
Aqueles «e& doze annos continuados durou o
iffante:. consumidos a insistir com os seus marinheiros
para se atreverem a passar a!lém do Bojador, ven-
cendo apenas obstáculos, literàriamente imaginários,
em um mar que se suspeitava ter parte do fundo a
descoberto, não poderiam ter sido consumidos apenas
em hesitações de navegar para ·além de um cabo cuja
restinga de arrebentação não passa - como é sabido -
de uma légua: é uma navegação fácil e elementar
com vento e corrente a favor. Mas era necessário
garantir a continuidade das viagens, quer de ida quer
de volta, para estabelecimento de relações permanentes
com as feitorias ultramarinas. Ora é intuitivo que a
maneira prática de realizar a volta da costa de África
- a qual talvez os cronistas ignorassem- em uma
navegação indirecta pelo largo não convinha ser divul-
gada, para conservar o monopólio comercial das terras
novamente descobertas.. . Fazia-se por isso correr que
só os navios de panos 'l·a tinos - como os portugueses,
se é verdade que todas as caravelas só os tinham ... -
poderiam realizar a viagem da Guiné.
Tal é como, aos homens do mar, se apresenta com
verosimilhança náutica aquele acontecimento marí-
timo a que os antigos náuticos ligaram tanta impor-
tância, qual é a passagem definitiva do cabo Bojador
em 1434. Porque ela exigia a ciência de cengolfar-se
no pego do mar», que nenhuns outros navegadores
conheceram e praticaram correntemente antes dos
Portugueses.
 264 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA DE ÁFRICA ( CAP,
Não! Esta passagem do cabo Bojador- di-lo-ei
ma4s uma última vez- não foi ·a penas, como se pre-
tendeu, um acto de audácia de Gil Eanes, espécie de
salto por cima de preconceitos fúteis, que nada nos
pode levar a crer que os marítimos tenham tomado a
sério. Esta passagem, conjugada com a passagem dos
mesmos navios do Infante pelos Açores- que flicam
ainda mais longe de Portugal, mais de 200 léguas em
mar - , simboliza uma conquista definitiV'a da Huma-
nidade. Aquela passagem não foi o resultado da boa
sorte, no encontro acidental de condições meteoroló-
gicas propicias: foi o resultado das demoradas e inte-
ligentes !investigações dirigidas pelo Infante D. Hen-
rique sobre a maneira de evitar os ventos contrários,
aproveitando os favoráveis.
Não foi necessãrio descobrir a maneira de bor-
dejar contra o vento, porque isso era uma vantagem
conhecida de todos os que andavam à vela - o próprio
vento no-la ensina!; ao contrário, foi preciso des-
cobrir a maneira de vencer as regiões de ventos
contrários sem o penoso e contingente trabalho de
bordejar.
Com o auxílio da geometria dos astros, para os
navios se não perderem depois de navegar muitos dias
sem avistar terra, a passagem do cabo Bojador foi a
prova final da possibilidade de os navios da época do
Infante, os veleiros, poderem atravessar a vastidão dos
oceanos.
Deste progresso da Arte Náutica, tão útil à expan-
são e hegemonia da Europa, resultou aquilo que
D'Avezac e outros atribuem aos Normandos escre-
'
vendo que Béthencourt mostrara ( !) aos Portugueses
o caminho que eles depois seguiram nas suas des-
II, 11] CABO BOJADOR. A VOLTA DO MAR DA BAGA
cobertas. Ao contrário, não foram os Normandos mas
só os caravelistas do Infante D. Henrique quem, cde
bússola e astrolábio na mão», e depois de larga expe-
riência de alto mar, «abriram à Arte Náutica hori-
zontes novos:., mostrando os camlinhos marítimos da
África, da lndia e da América; por fim, com o portu-
guês Magalhães, ficou aberto o mar que ainda faltava,
o Pacifico. E as cartas de navegar, então levantadas,
eram cmais exactas que as da velha Europa:. (Morais
e Sousa).
•
à semelhança da inscrição lapidar com que, em
Ca.rta.go, se regtstou a viagem de Hanão além do cabo
Bojador, a passagem portuguesa deste mesmo cabo-
a definitiva - será perpetuada, à maneira de agora,
pelo Monumento ao Infante D. Henrique, o Navegador,
e aos seus mareantes.
No ano de 1934, em que se comemorou o meio
milénio desse inicio capital da moderna expansão
europeia, foi também decidida a criação desse monu-
mento. Para ele foi escolhida uma situação universal:
a península de Sagres, local donde se iniciaram
«As navegações grandes que fizeram:.
os Portugueses, seguidos por outros povos europeus.
Ali, melhor do que na praça monumental de
a lguma cidade, à beira-oceano, naquele cabo de Sagres,
«onde se combatem ambollos mares, scilicet, o grande
mar Occiano com o mar Medyoterreno», naquele marco
de separação entre o Mar Conhecido e o Mar Tene-
266 A ESCOLA D O MAR LAR GO-ATLÂNTi CO E COSTA D E ÁPRJ CA ( CAP.
broso... ali, em Sagres, melhor do que o estaria no
próprio cabo Bojador - cuja passagem, tão fácil, o
torna um local pouco sugestivo - ficará o Monumento
em posição de ser todos os di~s contemplado pelos
numerosos navegadores modernos -tripulantes e pas-
sageiros- que o passam a bordo de palácios flutuantes
dotados de todos os confortos da terra. Esses fáceis
navegadores dos barcos de motores de agora serão,
sugestivamente, levados a admirar a memória do In-
fante D. Henrique, em cujas pequenas caravelas, sem
frescos, sem conforto, sem deck sequer para passear,
aqueles pioneiros do Mar Oceano, Gil Eanes e os seus
sucessores foram ao Mar Tenebroso abrir as portas
que, durante tantos séculos, fecharam aos europeus-
prisioneiros da Europa! - os camdnhos marítimos para
o resto do Mundo, caminhos tornados agora tão fáceis
de trilhar.
. Assim, o Monumento do Infante recordará, sen-
timentalmente, o local onde se forjou aquela chave
libertadora, a qual, apesar de a reconhecermos uma
criação simples, não foi achada por inspiração súbita
ou acaso: não é demais repetir que anos foi necessário
consumir em estudos e navegações de mar, até que a
sentença, tantas vezes secular
... ou voltará ou não,
se pôde transformar em
Quem passar o Bojador voltará pelo Golfão!
• que romântico - da passagem do cabo Bojador, pri-
Há quem pretenda que os Portugueses nada desco-
briram. . . nem os Açores, nem a Guiné nem o Brasil
, '
II, 11] CABO BOJADOR . A VOLTA D O M AR D A BAGA
nem o Cabo: eles apenas teriam tido a sagacidade de
se aproveitar dos descobrimentos dos outros ...
Mas, ao contrário deste critério humorístico, eu
creio firmemente que se a passagem ra lém do Bojador
- e a sequente abertura das grandes rotas oceânicas-
nã:o fosse obra nacional não nos teríamos sabido apro-
veitar das descobertas alhei·as, e a História de Portu-
gal teria sido invertida. Certo, a Civilização Europeia
não teria, pela nossa falta, deixado de se estender para
fora do Mediterrâneo; mas, para Portugal, não teria
havido, nem os famosos
cmares nunca dantes navegados ... :.
nem Ai;rica Tropical, nem lndias e Oriente, nem Brasil.
Camões não t eria escrito «Os Lusíadas». A nossa acti-
vidade se teria limitado ao Norte de Africa. Desapa-
recida a razão de ser de um Portugal Europeu, hoje
não se falaria português na América ... nem mesmo na
Europa!
Quando muito estaríamos agora, ao calor de
fogueiras, explicando ao povo - em língua árabe, espa-
nhola ou francesa - como tinham os nossos avós sido
banidos do outro •l•a do do estre!i.to, da saudosa Penín-
sula Hispânica, por não terem compreendido a imensa
vantagem de passar com as suas caravelas além do
cabo Bojador.
Compreendeu esta verdade o Infante D. Henrique,
como depois D. João ll. Porque não a compreendemos
nós agora, ao recordar o inicio dos Descobrimentos?!
Tal é, a meu ver, o significado -mais geográfico
meiro passo capita1l dos Descobrimentos, realizado por
Gil Eanes em 1434, há meio milhar de anos.

268 A ESCOLA DO MAR LAR GO-ATLÂ NT ICO E COSTA D E ÁFRICA ( CAP.
NUNO TRISTÃO E O MAR DE SARGAÇO
Depois de ter praticado viagens pela costa afri-
cana, na sua viagem final- a de 1446 em que perdeu
a vida- o aventureiro «nobre cavalleiro Nuno Tris-
tam», concretizando o «grande desejo e vontade» do
Infante D. Henrique, prossegllli.u no descobrimento da
Guiné, província ultramarina que se nos devia tornar
tão útil, sem ter havido a má sorte de a perdermos
como aconteceu a outra·s terras úteis na mesma costa.
Desta última aventura de Nuno Tristão resultou tam-
bém uma prova técnica de que os «caravelistas do
Infante», longe de terem navegado «a acertar», já em
1446 estavam familiarizados com as rotas indirectas
atlânticas, como vou tentar mostrar.
• era possível «guindar» e meter dentro os batéis, nem
Combinando o que nos conta Zurara, na sua
«Chrónica de Guiné», com o que lemos nas «Décadas»,
de Barros, deduzimos que «Nuno Tristam:., depois de
viagens, tanto à costa moura como à «terra dos Ne-
gros», partiu de Lisboa para sul em uma caravela, na
Primavera de 1446.
Tendo passado umas sessenta degoas:. além do
cabo Verde, entrou em costa ainda desconhecida, «onde
achou huü ryo» que resolveu expio~, fundeando a
caravela «na boca delle:., e entrando-o nos dois batéis
com um total de 22 homens. Mas encontrou-se logo com
«treze almadias», nas quais haveria uns «oitenta ne-
gros», guinéus combativos, a rmados de arcos e frechas ,
que cercaram os batéi·s, forçando-os, depois de todos
feridos, a retirar para bordo. Mas «as frechas erão
II, n] CA BO BOJADOR . A VOLTA DO MAR DA BAG A
hervadas:., de modo que já a bordo foram morrendo os
feridos, !incluindo o chefe, Nuno Tdstão. Dos que tinham
largado nos batéis só dois escaparam, apesar de com
a «peçonha» terem chegado «acerca da morte». Na
caravela só tinham ficado cinco almas, sendo «dous
moços ·a ssaz pequenos», um «moço gineu», «huü
grumete assaz pouco avisado na arte de marear» e o
«moço da câmara do Iffa nte, que se chamava Aires
Tinoco, que hya por scrivam».
Embora Barros informe que este rio «Üra té o
nome de Nuno», a distância concreta de 60 léguas nave-
gadas pa.ra sul do cabo Verde leva-nos antes ·a crer
que o caso se deu no então «Rio Grande», segundo
Barros, vis to que o .a ctual rio Nuno imporia um reco-
nhecimento de mais meio cento de léguas por fora das
ilhas Bijag6s.
Com a guarnição t ão reduzida da caravela não
«levar as ancoras», tendo-se tido que «COrtar as amar-
ras ». 1!: mesmo de crer que não tivessem arriado a
verga grande, tendo a vela sido ferrada com moços
cavalgando a verga, como era corrente nos cafques do
AlgaTVe em fins do século passado. Qu'c!!ndo muito
teriam largo, além da maior, também a pequena «COn-
tm-mesena» a ré, para compassar a mareação.
Com tripulação, pano e recursos tão Umitados
não seria praticável empreender a retirada em viagem
costeira, a aproveitar revessas da corrente e ventos
terrais, bordejando com vento contrário ou fundeando
nas calmarias.
Por outro lado, o grumete «nom sabia rotear». Mas
Barros e Zumra concordam em que, sepultados no
mar Nuno Tristão e seus companheiros do desastre, a
270 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA DE ÁFRICA [ CAP.
caravela se fez de vela para o largo, por onde, «enca-
minhada a vyagem daquelle navyo» pelo escrivão
Aires Tinoco, durante «dous meses nunca ouveram
nhüa vista de terra», tendo ido demamdar a costa de
Portugal «'a traves de huü lugar do meestrado de
Sanctiago, que se chama Sines», apenas umas vinte
léguas a barlavento de Lagos, onde foram contar ao
Infante o fim daquela «humanidade» que por ctantos
anos fora criada».
O facto concreto de a caravela, «seguindo assy
per sua vya», ter praticado uma navegação de cdous
meses continuados» sem ver terra, passando, portanto,
por fora da costa e das Canãrias e Madeira, e do arqui-
pélago de Cabo Verde, prova-nos que fizeram navega-
ção larga a contornar os ventos dentre norte e leste
que dominam no Atlântico Norte. A anãlise das cartas
de ventos dd.z-nos que, jã iniciada a monção de sul,
tiveram de ir passar com ventos variãveis a sul das
ilhas de Cabo Verde, sem delas terem tido vista. Cor-
tado o Mar de Sargaço, e aproveitados os ventos dentre
sudoeste e oeste, dominantes no Verão no Mar dos
Açores, puderam passar-lhes pelo sul sem os avistar .
O pano reduzido que levavam largo, e a época favorãvel
do ano- foi depois, ainda em 1446, a viagem de cAl-
varo Fernandez a Guiné» -, permitiram àquelas sete
almas levarem o navio a Lagos. Porém, tendo-se per-
dido também o piloto, este acontecimento nãutico
revela-nos que as viagens de retirada da costa da Guiné,
seguindo em largo arco a rota indirecta, jã em 1446 não
eram mistério: tanto o grumete como o escrivão conhe-
ciam essa rota, e, •a ssim, forçados pela necessidade, ·se
atreveram a praticá-la.
II, 111] CABO DE BOA ESPERANÇA. A VOLTA DO CABO
De sorte que, da fatal aventura de Nuno Tri8tão,
não nos ficou só o descobrimento do Rio Grande mas
também uma confirmação de que aquele Mar de Baga
da carta de Bianco, datada de 1436, jã fora descoberta
dos mareantes portugueses por essa época. Era o Mar
de Sargaço.
O Atlântico Central não estava pois, ainda então,
envolto naquelas trevas que muitos lhe atribuem. A
possibilidade de aproveitar os ventos que lã dominam
não teve que esperar pelo cgénio descobridor:., geral-
mente atribuído a um excepcional navegador: jã por
lã navegavam as «Caravelas do Infante» meio século
antes de o sagaz Colombo atravessar o Atlântico para
as Antilhas, revelando conhecimento prévio dos ventos
que teria de aproveitar, tanto à ida como à volta. E
aquele «segredo » da Volta da Mina, que D. João II
recomendam. a Pero de Alenquer jã em conhecido em
1446 por um leigo de nãutica, «nado e criado em OU-
vença, que he hii.a villa do sertaão muy ,a fastada do
mar», o escrivão Tinoco.
Como vamos, pois, insistir em negar aos Portu-
gueses a prioridade das rotas atlânticas? Só o poderão
escrever aqueles que apenas conheçam o mar por o
verem do promenade deck dos barcos de agora, e não
do desabrigado convés de navios que, como a caravela
de Aires Tinoco, só confiam nas suas velas para ir a
toda a parte.
m- OABO DE BOA ESPERANÇA.
A VOLTA DO OABO
O descobrimento do caminho marítimo para a
tndia não dependeu de um golpe, como o que corren-
272 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA D E ÁFRIC A ( CAP.

temente se atribui a Colombo no descobrimento da

América.
As primitivas tentativas de ir à India pelo Atlân-
tico tinham falhado sempre. Mas só se tratava a sério
da rota a contornar a África, porque os mapas do
século xv - como o de Martellus e o autêntico de
Toscaneli -todos apresentavam a India mais próxima
de Portugal pelo oriente do que pelo ocidente. Nos
antípodas estaria, quando muito, a China. Não se podia,
pois, deixar de considerar absurda a opinião dos que
dimam que lá se teria de andar de cabeça parn baixo.
Também era anterior a D. João II, vindo rflalvez
muito do tempo do Infante D. Henrique, o cplano» por-
tuguês de ir à India contornando a África pelo sul.
E em 1492 já tínhamos bases para considerar praticá-
vel este caminho, ao passo que se ignorava quais as
dificuldades de um caminho pelo ocidente, se o
houvesse.
De facto, tendo-se chegado à Guiné em 1445, con-
tinuou-se para sul a exploração da costa africana. Em
1470 - se não antes - fora cortado o equador; mas
perdera-se a esperança de poder passar ao Oriente
com facilidade, por a costa de Ãfrica se estender para
sul, ao contrário do que alguns opinavam.
Só em 1482 a explornção para s ul atingiu a boca
de um grande rio, o Zaire. Depois, em outra viagem, o
mesmo descobridor - Diogo Cão - , seguindo ainda a
costa, conseguiu em 1485 atingir um cabo- o actual
Cape Cross dos mapas-, assim chamado por lá
terem debmdo um padrão, que foi levado para museu,
em BeT'lim. Esta expedição interrompeu-se pouco além,
cerca da latitude 22° 10', por ter morrido o chefe. Mas
viu-se que a costa continuava para sueste.
Efígie de Bartolomeu Dias
(Escultura no alto da fachada da Casa da
África do Sul, na Praça Trafalgar, Londres)
11, m) CABO DE BOA ESPERANÇA. A VOLTA DO CABO 273
Mantinha-se a crença em que Diogo Cão chegara
c·a té perto» do extremo sul da costa africana. :m pois de
crer que sem demora-, portanto, logo no ano de 1486,
e não de 1487- D. João ll tivesse mandado prosseguir
na exploração do caminho para o oceano Indico.
Não se tratava de construir navios novos, como se
fez para Vasco da Gama, pois serviam bem as carave-
las que havia, talvez mesmo as que Diogo Cão tinha
levado.
Foi então enviada uma expedição a prosseguir nos
trabalhos. Mas, por motivos que desconhecemos, pare-
cendo provável a reserva dos resultados de uma viagem
tão interessante- medida 'a preciada por D. João ll -,
escasseiam, ou são contraditórias, as informações sobre
a nova e~pedição. Sabemos que ela se realizou, faltando
elementos até para se saberem as datas da partida e
chegada a Lisboa, depois de ter sido descoberta a parte
mais sul da África, tendo-se dobrado um cabo ao qual
puseram o nome de cabo Tormentoso, depois mudado
por D. João ll para cabo de Boa Esperança.
De facto, a par da escassez de fontes directas a
respeito desta viagem, as narrativas dos cronistas não
correspondem à importância decisiva que a viagem do
Cabo teve para o descobrimento definitivo da rota para
a lndia.
O conhecido manuscrito cEsmeraldo», de Duarte
Pacheco, escrito em 1505, limita-se a nos indicar o ano
de 1488, para a passagem de um cabo, tendo-se reco-
nhecido que a ccosta e Ribeira do mar voltava daly
em diante ao norte e ao nordeste:.. A latitude deste
cabo era 34 graus e chum meo graao:..
18
274 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA DE ÁFRICA [ CAP.
Dos dois cronistas, Pina e Resende, só este último
faz uma ligeira referência a Bartolomeu Dias, sem
acentuar a importância da viagem.
Nas «Décadas», João de Barros 13!presenta uma
narrativa desenvolVIida da viagem de exploração, a qual
teria sido iniciada «no fim de Agosto do dito anno»,
1486, tendo a viagem terminado em Dezembro de 1487,
e durado «demsseis meses e deZ'assete dias ». A narra-
tiva não é isenta de outros erros.
Enfim, as «Lendas da India» aJtribuem a chefia dra
expedição a um «estrangeiro», «Janinfante», absten-
do-se de sequer citar o nome do rc hefe real, Bartolomeu
Dias. Teriam consumido «quatro meses» em bordadas
ao mar e à terra, e ·s ofrido «gra.IIldes temporais» e ventos
contrários, «sem nunqua fazerem mudança», pelo que
foi forçado a «arribar» para Portugal. Não consegui-
ram assim descobrir o Cabo, ao qual as mesmas
«Lendas» chamam de Boa Esperança, quando em
1499 foi avistado pela primeira vez, e por Vasco da
Gama! São tão claros os erros, que a narrativa das
«Lendas» tem de ser compiletamente posta de parte.
Uma tão grande deficiêncila, ou confusão, de infor-
mações fundamentais leva-nos a apoiar a narra.tiw
da viagem em conjecturas, de acordo com aquilo que
hoje conhecemos, tanto 1a respeito das costas como dos
ventos dominantes nas diferentes épocas do ano.
E temos, em princípio, de aceitar que a chefia da
expediç~o foi confiada ao «cavalleiro da casa d'ElRei»
(Barros, f. 42) «Bartholomeu Dias», que comandava
uma das duas caravelas. A outra era comandada por
João Infante. O piloto principal era o hábil e conhecido
Pero Dalanquer, o mesmo que depois, em 1497, acompa-
nhou Vasco da Gama. Além das duas caravelas ia um
II, m] CABO DE BOA ESPERANÇA. A VOLTA DO CABO 275
outro navio, «a nao que levava os mantimentos», ou
«uma naveta», como depósito de sobresselentes.
(V. nota A).
A largada do porto de Lisboa teria sido em meados
de Agosto de 1486 (1) .
Seguiram a rota corrente, costeando a África a
favor de correntes e ventos conhecidos, provàvelmente
até à Mina, onde se teriam abastecido.
Natural é supor que daqui, em lugar de se ensa-
carem no golfo, rumassem para sueste, aproveri tando
ventos variáveis, e indo passar a oeste da ilha de São
Tomé, donde foram demandar a costa na altura do
rio Zaire.
Então com terrais, viração, e revessas da corrente,
foram acompanhando a costa já reconhecida por Diogo
Cão, até à latitude de 22 graus sul, como disse.
Na sequência da exploração iriam lutando contra
os conhecidos ventos de sul, por vezes muito frescos (2),
dominantes da costa.
Pelo Natal (3 ) -com quatro meses de viagem-
teriam chegado à angra Pequena, agora Luderitz
Bay, definida pela latitude 26° e 38' sul. A'l guns con-
fundem esta angra com a «das voltas», da qual, segundo
J. Barros, a persistência de ventos fortes e contrários
obrigou Bartolomeu Dias a meter-se «na volta do mar».
(V. nota B).
(1) Lopes de Mendonça e Fontoura aceitaram o ano de 1487.
( 2) É conhecido o caso da canhoneir a «Salvador Corrêa»,
que, em J aneiro de 11896, sob o comando do experiente João Cou-
tinho, teve de arribar depois de, durante «seis dias», ter lutado
contra um vento de sul «Com proporções de verdadeiro temporal».
( 3 ) De acordo com a versão de Fontoura.
276 A ESCOLA "DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA DE ÁFRICA ( CAP.
Pelo facto de haver nesta angra um portinho fundo,
abrigado, ignorando-se se, para a frente, apareceria
outro melhor, tem-se aceitado que teria sido na angra
Pequena o porto onde Bartolomeu Dias deixou a naveta
dos mantimentos, guardada por alguns homens insu-
ficientes para a navegarem e, naturalmente, menos
aproveitáveis para a manobra das duas caravelas com
as quais se continuou a ' exploração (4 ) .
Pelo nome de São Silvestre, que se lê na carta
de Cantino (1502) e que, segundo Fontoura, foi dado
a uma «terra» avistada no último dia do ano- e arru-
mada na niesma carta cerca da latitude de 28 graus-,
é de crer que Bartolomeu Dias tivesse entrado no
ano de 1487 ainda bordejando contra ventos de sul.
Por fim teria sido ·a tingida um·a outra angra for-
mada por um cabo que, nas cartas e roteiros, ainda
conserva o nome. de cabo das Voltas , na latitude real
de 28° 4f5' sul, fundeadouro chamado Peacock
Roadstead, o qual fica duas léguas 'além do rio Orange.
. Foi provàvelmente . aqui que os ventos contrários,
muito frescos. obrigaram Bartolomeu Dias a abando-
nar o reconhecimento da costa. Esperava, talvez, que
y}or ali acontecesse o mesmo que na costa de Portugal,
onde as nortadas raro se estendem para além de meio
éaminho dos Açores. Pelo que, como último recurso e
de acordo com o que se lê nas «Décadas», foi tomada
«a volta do mar», desde a angra das Voltas, que
«está ~m vinte nove graos da parte do sub, e onde
:nartolomeu Dias se «deteve cinquo dias com tempos
que lhe não leixavão fazer caminho:..
( 4 ) O Rev. Sidney Welch aceitou que a naveta foi deixada
em Porto Alexandre, o que é menos provável.
li, m] CABO DE BOA ESPERANÇA. A VOLTA DO CABO 277
~ sabido, pelos roteiros, que em Janeiro sopra ali
vento dominante entre sul e sueste, sendo absurdo
supor-se - como alguns pretendem __:_ que Bartolomeu
Dias tivesse continuado ao crumo do sub, proa ~
vento. {V. nota C).
Esta «Volta» larga teria, sem dúvidaI sido a rumos
entre oeste e sudoeste, levando as velas latinas arria-
das «a meio masto», por o vento ser violento.
Naqueles «treze dias» de volta do mar citados nas
«Décadas.», as caravelas ter-se-iam afas~o cerca de
três centenas de léguas da costa africana. Entraram
assim na zona dos ventos variáveis, os quais já permi-
tiram ~r ganhando sul. Atingida uma latitude entre
35 e 40 graus, onde dominam ventos entre norte e sul,
por oeste, foi então tomado rumo de leste, em demanda
da costa de Africa.
Mas a terra não aparecia. Navegadas cerca de uma
centena de léguas para nascente do meridiano da angra
das Voltas, surgiram fortes suspeitas de que a costa
africana não corria mais para o sul, e Bartolomeu Dias
foi buscá-la csobre o rumo do norte».
Até que, na latitude de cerca de 35 graus, avista-
vam um cabo, ao qual chamaram dos Vaqueiros, por
terem notado perto da praia muito gado vacum guar-
dado por pastores.
Pouco a norte a?ria-se uma baia, onde fundearam,
e à qual puseram o nome de São Brás, naturalmente
por lá terem chegado no .dia do Santo, que cai a 3 de
Fevereiro. Hoje é Mossel Bay p).
(~) Opinião seguida por Fontoura.
278 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA D E ÁFRICA ( CAP.
Felizmente a costa continuava correndo para nas-
cente. De modo que, não se tendo obtido dos indígenas
informações nem auxílios materiais ( 6 ) , a exploração
foi continuada para leste.
Nesta continuação de reconhecimento da costa
foram navegadas mais 60 léguas, indo-se fundear em
outr a angra, cha.omada da Roca, por o seu cabo ter
semelhança com o conhecido cabo da Roca da costa
portuguesa.
Havia dentro um ilhéu, a que puseram o nome
de ilhéu da Cruz -hoje St. Croix lsland- sendo de
'
crer que o nome seja devido a lá terem arvorado, não
um padrão de pedra, mas uma cruz de madeira (7).
Este fundeadouro identifica-se com Algoa Bay, não
só pelos ilhéus, como por a distância estimada desde
São Brás, umas 60 léguas, pouco diferir da verdade.
Já ali todos estariam convencidos de que a terra
africana se não e"Stendia mais para sul e que a·s sim o
'
caminho para o Mar da tndia estava enfim '
aberto. '
Teria sido nesta baía que «a gente cançada e mui
temerosa dos grandes mares ·que passarão » começou a
«requerer» que se não fosse mais avante, com receio de
que os mantimentos faltassem para o regresso até ao
navio-depósito, o qual não haVJi.a certeza de ter sido
respeitado pelos negros. De resto, ainda eram igno-
radas quais as dificuldades de navegação que se iriam
( 6) N o «Roteiro de Vasco da Gama » lê-se que, tendo os
negros de São Brás defendido «às pedradas» a aguada, Bartolo-
meu Dias se viu obrigado a atirar-lhe «com uma besta e matou
um deles».
(7) BarrO'S afirma que f oi neste ilhéu «onde puseram o
padrão chamado da Cruz», o que não é verdade. A latitude que
lhe assina, 33• 45',, não difere mais de uma légua da realidade.
li, m] CABO DE BOA ESPERANÇA. A VOLTA DO CABO 279
encontrar na parte da costa, ainda desconhecida, que
ficam para trás, para ocidente de ·São Brás.
Em vista disto, Bartolomeu Dias reuniu em terra
- talvez no ilhéu da Cruz - conselho dos principais.
E, considerando que já «levavão a maior novidade»,
concordaram em interromper a exploração. Somente
Bartolomeu Dias obteve a concessão de um prazo de
«maes dous ou tres dias» de navegação pela costa, a
qual seria terminada se não encontrassem novidade -
como, por exemplo, um porto já frequentado por navios
indianos, onde se pudessem abastecer e prosseguir na
exploração.
Continuando a navegação para nordeste foi atin-
gida a boca de um rio -que ficava «25 legoas» além
do ilhéu da Cruz, e na altura de «trinta e dous graos e
dous terços» - , rio ao qual foi dado o nome de rio do
Infante, repetido nos roteiros antigos. O que, segundo
Barros, foi devido a ter sido Infante «O primeiro que
sahio em terra»; mas, mais natural é a conjectura de
que foi ele quem, no seu batel, entrou para dentro do
rio, por a barra não dar entrada fácil às caravelas, que
teriam ficado ao largo.
Perestrelo, que em 1575 reconheceu esta parte da
costa de África, atribui à barra do rio a latitude de
«32 gr. e meyo». O estudo desta questão faz-nos hesitar
sobre a identificação deste rio, que, já desde 1838-
data em que o Dr. Kopke publicou o «Roteiro de Vasco
da Gama» -tem sido identificado com o Great Fish
River das cartas modernas, cuja boca está em 33 graus
e meio. (V. nota D).
Na «Arte de Navegar», de Pimentel, lê-se que
«adiante» do rio do Infante há outro rio, «que se chama
S. Christovão», o que, por ser este o nome do navio
280 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA DE ÁFRICA ( CAP,

de Bartolomeu Dias, sugere outro descobrimento coito

léguas» para nordeste.
Nada se tendo achado de interessante, foi então
decidida a «volta», 'a gora com a corrente a favor.
É natural supor que foi só neste regresso que Bar-
tolomeu Dias levantou· um «derradeiro padram:., em Escavações donde foram retira dos fragmentos
um ponto notável, um «ylheo peguado na terra:. ( 8 ) , do Padrão de S. Gregório implantado por
hoje chamado False Islande-, o qual estimaram f~car Ba rtolomeu Dias, a gora expostos no Museu
de Cape T own
dez léguas além do ilhéu da Cruz. Como lhe puseram o
nome de São Gregório, é de crer que o padrão fosse
erigido no dia deste Santo, que cai a 12 de Março.
Desta pedra ainda há poucos anos foram encontrados
na False I slande claros vestígios, alguns com letras
gravadas.
Tinha sido notado um detalhe importante: a costa
corria francamente para nordeste, vindo de lá uma
corrente forte- que hoje sabemos correr normalmente
uma milha por hora - , corrente que era apreciàvel-
mente quente, indicando caminho aberto def!de a região
equatorial.
Naturalmente, o regresso tinha agora de ser feito
com urgência, não só pelo interesse de comunicar a
D. João li o importante resultado da viagem- a «Che-
gada às portas da lndia» - como também para lhe
atenuar o aborrecimento por não terem continuado o
reconhecimento pelo costa africana, até ao encontro
de um porto já em relações comerciais com a lndia.
Havia também urgência em voltar ao navio de
abastecimento, com o qual se não podia contar em
absoluto, e tanto mais que em São Brás pouco se tinha
obtido dos nativos.

( 8} «Livro de Marinharia:., de J. de Lisboa.

False lsland, vista do la do da praia

«llh eo do padrão de sam greguoreo» in «Livro de Marinha ri a
de João de Lisboa», fi. 46 v .•

Padrão de S. Gregório
primeiro e o mais afas~
tado erigido por Barto-
lomeu Dias sobre a False
lsland das cartas do
Almirantado Britânico_
promontório que faz
parte do grupo de ilhas
conhecidas pela designa-
ção de «Kwaai Hoek» .
O padrão é uma reconsti-
tuição formada de acordo
com os fragmentos (5000)
e n c o n t r a dos por Eric
Axelson na Universidade
de Witwaters Rand
joanesburgo. ' o mar- , porquanto, pelo depoimento de Pero Dalan-
(Foto gentilmente
cedida pela Sociedade
de Geografia de Lisboa)
.
li, m] CABO DE BOA ESPERANÇA. A VOLTA DO CABO 281
Nesta navegação para ocidente, passado um cabo
que ainda hoje tem nas cartas o nome de Cabo do In-
fante -vestígio desta viagem- , foi enfim atingida
a parte mais a sul do continente africano, à qual- não
sabemos bem porquê- foi dado o nome de Cabo das
Agulhas, não citado no «Roteiro de Vasco da Gama»,
mas indicado em 1502 na carta de Cantino. Decerto
ali observaram a latitude, 35 graus. Junto deste cabo
lê-se na mesma carta «angi"a de sam Jorge», o que
sugere o terem lá estado em 23 de Abril. Seria aqui
que, como era natural, deixamm um padrão? (V.
nota E).
Faltavam apenas 25 léguas para contornar a ponta
sudoeste de África, distânci'a fàcilmente navegável em
um dia, com os ventos favoráveis em metade dos dias
do ano, que hoje sabemos ali dominarem.
Passada uma «angra muito grande que entra pela
terra bem seis legoas» - a actual False Bay- foi
então finalmente descoberto aquele cabo-, tão famoso
que é conhecido pelo nome simples de Cabo - ao
qual os primeiros europeus que o avistaram «poserão
nome Tormentoso» por causa dos perigos e tormentos
que em dobrar delle passarão». O que provàvelmente
teria sido durante a anterior passagem para leste,
pelas latitudes altas, onde se encontram temporais, ao
passo que junto ao Cabo são comuns ventos frescos de
sueste, favoráveis à passagem para o Atlântico. Jul-
ga~se que o nome actual - cabo de Boa Esperança-
lhe foi dado por D. João II. (V. nota F).
Para norte, Bartolomeu Dias continuou acompa-
nhando a costa, mas sabemos que a foi correndo ràpi-
damente - apesar de a não ter reconhecido à ida para
282 A ESCOL A DO MAR-LARG O ATLÂNTICO E COSTA DE ÁFRICA [CAPt
quer, que se :tê no «Roteiro de Vasco da Gama»,
sabe~se que t endo partido um dia pela manhã do Cabo,
passar.aJm de noite a baía de Santa H elena, que fica
trinta léguas a norte.
De modo que, contando com os ventos favoráveis
que ali dominam todo ano - e que tinham sido con-
trários à ida- é lícito conjecturar que a distância de
cento e meio de léguas «per costa», que vai do Cabo à
angra Pequena, teria sido navegada em uma semana,
para o que bastaria ir à velocidade de uma légua por
hora. (V. nota G) .
Na Angra já Bartolomeu Dias só foi encontrar
três dos nove homens que lá tinha deixado a guardar
o navio-depósito de mantimentos. Os outros tinham
sido mortos «peilos negr os da terra», quando desem-
barcaram para obter água, lenha, frescos. Depois de
abastecidas as ca11avelas, a naveta foi queimada.
A esta angra foi também dado o nome de São
Cristóvão, que se lê na carta de Cantino, possivel-
mente por ser o do navio que Bartolomeu Dias capi-
taneava (9 ) .
Foi aqui que Bartolomeu Dias deixou o seu ter-
ceiro padrão, na ponta noroeste da terra, a qual hoje
tem nas cartas o nome de Dias point . (V. nota H).
O padrão tem o nome, incontestado, de Santiago, o que
Fontoura atribui ao facto de lá ter ido a 25 de Julho,
dia do Santo. Mas é tão demorado o prazo de sete
semanas, que ele atribui à viagem desde o Cabo -de
6 de Junho a 24 de Julho - , para uma navegação de
(9) Segundo a versão F ontoura, explica-se o nome São
Cristóvão por as caravelas terem chegado à Angra em 24 de
Julho de 1488.
Il, m) CABO D E BOA ESPERANÇA . A VOLTA DO CABO
menos de dois centos de léguas, com vento e corrente
a favor, que é lícito preferir-lhe para a chegada à
Angra o dia 1 de Maio, em que também era festejado
Santiago, Apóstolo {1°).
Desta a ngr a continuaram para norte, lendo-se nas
cDécadas» que foram escalar na ilha do Príncipe, onde
encontram Duarte Pacheco - autor do manuscrito
cEsmeraldo», que não apresenta a menor referência a
este interessante detalhe (V. notas I, J) - «mui
doente», tendo naufragado o navio em que estava
explorando a costa da Guiné.
Bartolomeu Dias teria feito ainda duas escalas -
no Resgate e em S. Jorge da Mina- inúteis para a
finalidade das viagens, e demor adas por se ir ensacar
no golfo da Guiné, donde era trabalhoso recuar uma
centena de légu,a s para o equador, a fim de por lá
iniciar a co!Ilhecida Volta da Mina, a caminho de Por-
tugal.
Mesmo aceitando as três escalas, citadas por
Barros, a navegação da angra Pequena para Lisboa
deveria levar cerca de três meses. Dando ainda um
mês para as demoras devidas às escalas, não é natural
conjecturar para esse regresso de Bartolomeu Dias, da
Angra a Lisboa, mais de quatro meses.
E tan to assim é que se, com Fontoura, aceitarmos
os quatro meses normais de ida de Lisboa à Angra,
demorados pelo reconhecimento da costa desconhecida
por Diogo Cão ( 11 ) , ou ,s eja aceitando a passagem na
Angra pelo Natal, e os somarmos aos «nove meses
justos» que, segundo Barros, Bartolomeu Dias se
( l O) Regimentos de Évora e de Munique.
(11 ) Fontoura, «Às Portas da fnd ia », pág. 31.

284 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA D E ÁFRICA ( CAP.
demorou fora da Angra, a chegada lá ter-se-ia dado
em fins de Setembro. Assim, até à chegada a Lisboa,
cem Dezembro:. (1 2 ) , restariam apenas três meses.
De resto, atendendo à lógica imposição de levar
a D. João II a extraordinária cnovidade:.- qual era a
cboa esperança:. de se poder navegar até à índia-,
surge como pouco provável que Bartolomeu Dias,
tendo-se abastecido na angra Pequena, tivesse neces-
sidade de outras escalas, só pelo capricho fútil de cnão
virem com as mãos vazias:. (18 ) . Porquanto eles as
levavam bem cheia8 com a certeza de estar aberta a
porta entre os oceanos Atlântico e Indico. .
Na falta de documentação é pois lícito duvidar de
tais escalas - como seria a da ilha do Príncipe - no
fundo do golfo da Guiné, onde ventos e correntes já
eram bem conhecidos.
Teriam ido, quando muito, a um porto para fazer
aguada, tomando lá, possivelmente, carga para Por-
tugal. (V. nota J).
Daqui teria sido praticada a usual retirada em arco
pelo Mar de Sargaço, bem simples até para navegado-
res menos experientes que Dias ou Dalanquer, pionei-
ros do Mar do Sul.
Assim, mesmo contando que a passagem em Angra
Pequena se tivesse realizado, não em Maio mas em
Julho - como aceitou Fontoura - , é verosímil a che-
gada a Lisboa menos de quatro meses depois, ou seja
em princípios de Novembro de 1487.
Deixa pois de se impor a hipótese de uma pouco
provável coexistência, no fim do século xv, dos dois
(12) cDécadas:., Livro III, cap. IV.
(1') cDécadas:., idem.
li, m] CABO DE BOA ESPERANÇA. A VOLTA DO CABO
capitães· com o mesmo nome -Bartolomeu Dias- , um
dos quais estaria em l!.isboa em 23 de Novembro de
1487 comandando a nau cFiga», enquanto o outro
cvel~java por águas africanas» , comandando a cara-
vela cSão Cristóvão ». (V. nota K).
Torna-se assim licito acatar a versão de Ba.r:ros
de que Bartolomeu Dias partiu de Lisboa em Agosto
de «quatrocentos e oitenta e seis», e ainda não voltara
a Lisboa em Maio de 1487, quando Paiva e Covilhã
foram «despachados» para a India (14 ) . O Oabo teria,
pois, ,sido descoberto em 1487. E a viagem teria durado
pouco mais de um ano. (V. nota L).
De resto, neste caso a data não tem importância
capital ao lado do resultado final atingido pela e~­
dição de Bartolomeu Dias. A qual, de facto, abnu o
caminho da autêntica India alguns anos antes de 1492,
ano em que Cristóvão Colombo declarou - convencido
ou não - que estivera às portas do Mar da India,
quando apenas descobrira o arquipélago das Antilhas.
(V. notaM).
•
Enfim das dificuldades de navegar ao longo da
costa de África, para sul, por causa da insistência de
ventos contrários, maus de vencer mesmo com cara-
velas ressalta a natural conjectura de a Bartolomeu
Dias ' e Pero Dalanquer ter sido aproveitada a expe-
riência para a exploração de outra rota, a passagem
do Atlântico pelo sudoeste. O que teria sido feito reser-
(H) «Décadas>, Livro III, cap. V.
 286 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA DE ÁFRICA ( CAP.
vadamente, ainda em vida de D. João II. Os cronistas
são omissos a tal respeito, como afinal o são também
a respeito da própr ia vi'a gem de Bartolomeu Dias além
do Cabo. Dessa natur al exploração se teria concluído
a possibilidade de atravessar de Lisboa para o Cabo
em navios de velas quadrangulares, as naus. (V.
nota L).
Do grande navegador Bartolomeu Dias temos
ainda informação de ele, em 1497, ter acompanhado
Vasco da Gama até ao largo da Serra Leoa, onde se
separaram. Dias i1a em viagem comercial para a Mina,
enquanto que Vasco da Gama tomou a volta do mar
largo.
Depois, em 1500, Bartolomeu Dias acompanhou a
· esquadra de Cabral, comandando uma caravela, espe-
cialmente encarregado de descobrir- ou seja explorar
- a .reglião de Sofala, famosa pelo comércio de ouro.
Mas, lamentàvelmente, esta sua viagem acabou tràgi-
camente. Pelas alturas das ilhas de Tristão da Cunha
-ainda então por descobrir- , no dia 23 de Maio,
«armou-se uma negrur'a no mar», acalmando o vento,
que depois saltou ao outro bordo, de modo que, encos-
tando os panos sobre enxárcias e mastros, não deu azo
a amainar vergas. Assim se viraram e afundaram
quatro navios da esquadra. Um deles foi a caravela de
Bartolomeu Dias, que, «tendo passado tantos perigos
de mar nos descobrimentos que fez », esta «fúria de
vento>~ lhe deu sepultura naquele mesmo Mar do Sul
que ele começara a desbravar.
Quanto a Pero Dalanquer, só temos notíci'a de que
foi como piloto-mor na viagem de Vasco da Gama.
Ainda estava vivo na baía de Santa Helena. A ele
seriam devidas as informações sobre o «derradeiro
li, m] CABO DE BOA ESPERANÇA. A VOLTA DO CABO
padram» de Bartolomeu Dias. Mas, uma posterior
carência de pilotos no regresso da índia faz-nos crer
que ele foi uma das vítimas do escorbuto, que reduziu
a um terço as tripulações da esquadra de Vasco da
Gama. Terna Pero Dalanquer sido sepultado no Mar da
índia?
Resumindo:
Foram vários os resultados da expedição de Bar-
tolomeu Dias.
COnseguiu dobrar o extremo sudoeste da costa
africana- um cabo ao qua!l D. João II, esperando ter
aberta a «pOrta» do oceano Atlântico para os portos
do Mar da tndia, deu o nome de cabo de Boa Espe-
rança, que ainda conserva.
Navegando para nascente, Bartolomeu Dias con-
cluiu que a Mrica se não estendia mais para sul e, no
termo da sua viagem, até reconheceu que a costa virava
a nordeste. Uma corrente quente, que de lá vinha, era
forte indicação de haver caminho aberto até à região
tropical, onde se sabia ficar a lndia.
Bartolomeu Dias trouxe outra informação impor-
if:lante: depois das dificuldades que encontrara na sua
rota para sul, apesar de só levar navios maneiros, de
pouco porte- caravelas-, foi reconhecido que a rota
costeira era pouco praticável para navios de velas qua-
drangulares - as naus - e que, em lugar da rota pelo
sueste, convinha explorar uma outra- se a houvesse
~pelo sudoeste. Mas sempre para o Cabo. Ainda se
ignorava se aquele vento que, na Volta da Mina, ao
longo do equador, vinha soprando de sueste se esten-
deria muito para sul ou oeste. Se 'a ssim fosse, a bor-
dada larga teria de prolong·ar-~se para sudoeste, talvez
288 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA DE ÁFRICA [ CAP.
indo esbarmr em alguma terra que, eventualmente,
por lá houvesse.
A prudência impunha, pois, a exploração desse
outro caminho. Estava indicada uma volta do mar,
como aquela que Bartolomeu Dias traçara desde apep.as
um cento de léguas a norte do Cabo, mas iniciada de
um porto ao norte, como seriam a Mina ou a ilha de
São Tomé.
Tratava-se assim de tentar uma volta em arco,
pelo largo de África, a contornar aquela região de
ventos contrários, que Dias encontrara a poente do
Cabo, e que se receava dominarem no Atlântico Sul
até ao equador. Seri·a uma volta- à qual depois cha-
maram do Brasil - análoga àquela que os navios
em retorno da Guiné traçavam no Atlântico Norte,
também em arco, pelo largo da costa africana. Mas
nada fazia prever tal possibilidade e, de facto, esta
outra rota tinha de ser traçada mais chegada à África,
por causa do vento da monção de sul, que há no Verão
entre as ilhas de Oabo Verde e o equador. Também se
verificou depois que ao passo que, no Atlântico Norte,
a Volta do Sargaço se podia alargar para ocidente dos
Açores, no Atlântico Sul existiam terras a barrar o
alargamento da volta para ocidente. Tratava"'se da
costa de Pernambuco, cujo conhecimento o Tratado de
Tordesilhas, assinado em 1494, fazia prever.
Esta costa teria sido achada durante as inevitá-
vei& viagens de exploração em busca da possibilidade
da passagem pelo quadrante sudoeste do Atlântico.
:1!: sabido que essa volta larga, passando a barla-
vento - a leste -da costa brasileira, foi praticada
em 1497 por Vasco da Gama, navegador que, visto não
levar caravelas, como Bartolomeu Dias, mas naus, ia
11, m] CABO DE BOA ESPERANÇA. A VOLTA DO CABO
em viagem definitiva. E ia tão seguro de poder romper
pelo sudoeste, para o Cabo, que, em lugar de ir iniciar
a volta à Mina, ou mesmo ao cabo das Palmas, se con-
tentou em não passar para leste da Serra Leoa.
Não é preciso ser técnico náutico para concluir que
foi de reconhecimentos, só tenninados alguns anos
depois do regresso de Bartolomeu Dias, que resultou
a norma de procurar, em todas as estações do ano ir
•
cortar o eauador cerca do meridiano das ilhas de Cabo
Verde. O q ue também fez Cabral • em 1500 • na sua
viagem definitiva para a tndia.
Um tão indispensável reconhecimento prévio
explica cabalmente a demora de uma dezena de anos
entre a chegada de Bartolomeu Dias com as c:boas
esperanças>> e a partida de Vasco da Gama em 1497
com as naus, em viagem definitiva por caminho dife-
rente, a «passagem do sudoeste». As informações de
P. da Covilhã, sobre as posibilidades de navegação no
Mar da lndia, tinham chegado a Lisboa cerca de 1492,
indicando que as travessias deste mar se faziam a
favor das monções, para o que eram preferíveis os
navios de panos redondos, também naus.
Enftim, a provada prudência que deu o sucesso
aos navegadores portugueses - concretizada pelo
espaço de meio século que nos exigiu a exploração
entre os cabos Bojador e Tormentoso- confinna a
versão de Pedro Nunes de que os Descobrimentos Marí-
timos se não fizeram «indo a acertar», ou seja ao
acaso. Avançava-se passo a passo, à medida que se
iam adquirindo informações novas.
Conhecemos os nomes de alguns dos pioneiros
dessa longa campanha maritima, como Gil Eanes,
Dinis Dias, Diogo Cão, Bartolomeu Dias. Mas a res-
19
290 A ESCOLA DO MAR LAROO-ATLÃNTICO E COSTA DE ÁFRICA [ CAP.
peito de muitos outros nada sabemos. E até nos faltam
informações regulares sobre as rotas seguidas pelos
navegadores conhecidos.
Somos assim levados a, interpolando entre as via-
gens conhecidas algumas outras prováveis, deduzir um
lógico encadeamento das viagens de descobrimentos,
segundo conjecturas nàuticamente prováveis.
Foi assim que procedi nesta tentativa de recons-
tituição da rota seguida por Bartolomeu Dias. Espe-
remos que outros investigadores, obedecendo a inter-
prestações mais seguras, se dêem ao trabalho de-tanto
a esta como a outras versões- as discutir e modificar.
Não começámos cedo.
A Bem da História dos Descobrimentos.
NO TIAS
A - Na !Versão - di~tivel - da rota seguid:a. por
'Bartolomeu ,Dias, que apr:esento, procurei combinar a IVer<>-
's imilhança 1n'âutica com aquilo que demos nos cronistas e,
em especial, nru~ «Décaldas:., de João de Barros. 1Bm aJgUID.s
.pon'b)s afasteii-me Slelrullve'lmente Ida ~VerSão akloptada pelo
Prof. 1F on:toura dl8l Costa ( 18 ), especialmente na 'V'lagem de
regresso, à qual atribui uma natura1l urgênda de ~eva1r a
10. João U a boa nova de se: ter .p e:nmado .franC81Dlen'te com
os ID.Avios pottugu'es'eiS no Mar dia fndia. Oo que peço
humilde d.eis.cutpa à memócla Ide tão !ia:roaiD.sâVIell1n~tigador.
B- :E ntre OUit1Ms r az6es para negu a lide:nti'da'd~
en:tt:e a l!llnlgra Pequena e a angra das Voltas - na qual
(••) «À8 Portas da lndia em 1484:..
II, m] CABO D E BOA ESPERANÇA. A VOLTA DO CABO 291
Ba.rttolomeu Üias a1banidonou a costa e tomou a V01ka do
'Mal' - a'V'Ult a o facto de a sua !La:ti·t ude real, 26• 38' ser
'inconJfundívcl com os 29 'gll"aus que são alt:rilbuídos nas
«IDécald:as», como as 29• 20' do «E s·m eraldo», à ang1'a das
V oitas, ainda registlada nos .m apas modernos com o nome
cabo das Vol~s . Foi na cra t i-twte 218• 412:' . segundo o
((IA,frica .Pilo t» .
C ___.O desvio de ·Bartol~eu Oi·a s paira o ma:r largo1
não ·tem :Sfdo bem interpretado pelos historiadores moder-
nos, que não repMaram na insistêncl'a de 'V'e:Iltos entre su~
e suest ~ . na cos!la a:frk ana para norte do Cabo. Tanto
Dias oomo Gama; jâ os ~encontraraim. Apesar de IS'e es'talr
então no V erão do hemisfério sul, alguns admitem «grandes
&ios:. . .:E, desde o C&rdeal Saraiva, tanm Sophu:s Ruge
oonm IPil"eSta!ge, Sidney e outros ·m ais modemos, rtoidos
d·n siste m no «rumo 180 sub , o que s-eria oontre o vento. E é
IC<m'tra a dn'formação de Barros aoeroa do ven,t o, que ldetE!'Ve
.Ba.r't()lomeu !Dias «cinquo dias:. bordej1811ldo, a~ que se
decidiu a :r uma·r pa!ra poente «na vo]itJa do ma:r». Só assim,
:por causa do 'Vte:llto !forte IOO.Iltrir:io, e não por tempesta:die
de norte, se e xplica nàutkam en.te o 'facto de ter sido
alban&maldo o ll"'ellOOlhecimento da costa.
D- São vagas a;s notícias a~erca do rio do Infante,
85 quais nos ,farem hesitair sobre a sUJa' identificação.
Barrt>s ait:rlbui..Jhe a latit ude de «trin~ e deus -greos
e dbus tletrços:. (a rme:sma do Re:gim:ento de Svora), ao
passo que 1Perestrelo, que, em 1575, percorreu a costa,
tendo :aJlltles n:au:fragado perto do mes·m o rio, atribui à sua
boca «32 graus e meyo».
'A mais antiga iilnÍormação COinlhecida a tal .r espeito é
aquela que consta do «IRote:iro de Vasco da Ga·m u, natu-
292 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA DE ÁFRICA ( CAP.
rafm~mte ~devida ta 1Pero de Alenqu.er, que :ia na 'Via·gem e
que antes tinha chegado com Ball'tolomeu Dias à entrada
do mesmo rio, «a ldeell"radei·ra terra que Bartolomeu Dias
ide&Cobriu:.. FicaiVa «quynze 1egoas» aiém do «d:errade:ko
padram:., o qual •Pero Ide Alenquer bem conhecia, o oons~
picuo roch·e do de São Gregório, ·h oje definitilvaJmm.te toe.
~zado.
1Em outro dOICUJmle.:nto d'a répoclal. a carta porrugue:sa
(te IC:antino. a ldistãnda mleidida entre o padrfto e o mesmo
rio anda por trinta léguas. Ao passo que, nos mapas moder~
nos a distância entre o mesmo padrão ·e a boca do Great
Fish River nã·o dheoga a dez <léguas. Como esta boca tem
no «A.f!.OOa Pilob a ~atitude de 33° 311 '. coru:lt.lli.-se que a
sua iden•ti>ficação com o Rio do Infante d:e Per-estrelo
mvolVie um erro de um .g rau !pléllra uma latitude OOsell"V&f:a
~ terra, oomo é pouco prováv:el. O que nos leva a supor
que o verdad·e iro rio do Infante é mais a nor.te que o Great
Fish Rivet.
Só :um ~ 1oc:al p!Oiderã, didfimtiv8Diiellllt2', dleoídk
esta questâo.
E - Fontoura ace5.tou que o nome de «•P onta de São
Bran!dlatm:.. qwe se lê na atrta de Gantino, ·t raduz uma
passagem no dia 16 de Maio. Ora o prazo de mais de dois
meses desde o padrão de S. Gregório parece ex•oessivo
palta a navegação de uma distânda de um cento !de légum;,
das quais 60 jã tmham sido ;reconhecidas. Mas, no lm'e!SIIDO
mapa :de Cantino e Junfto do cabo das Agulhas, está a
«angra :de sa:n J(jt\ge:., santo 1festejado a 23 de Abril, o que
:indica wn:a palSS8gem. por aquele caJbo mU'ilto 181ll'teriôr a 16
•de Maio.
F- Seguindo a informação de Barros, Fontoura
areitou que o padrão de S§o Filipe foi erigído no cabo
II, m] CABO DE BOA ESPERANÇA. A VOLTA DO CABO 293
das T onnentas, apesa:r dle Barros taim'bém con.tu que co
itleimpo•lhe não deu :lugar a 5aic em ttel'lra». O que teria sido
iato etm 6 de Junho, dia de S • •Filipe. Assim, a pequena
·distância de 24 rl éguas entre os dois mbos .teria ex1g:i do
tirês semanas às Clalravelas, o qUJe é .i.mprovãvel, por a cor~
rente ser a favor, e as 'Vellltos lfaiVOiáV'eiis ISOpl'arem a!li
dUil"ante metla!de das kilas do 18no.
,Demais, não ,a_pl8lreCie: v.estigib âe padrãb no Cabo.
pelo q·ue é ilíCito a<:lei1:1a!r que t:al rv:ersão de Barros é t!o
Mctíci:a oomo a dos outros padrões qUJe ele 'CiOD.ta tJe:re'm sido
erig·i·dos na «Serra Parda» e no «ilhéu da Cruz». Segundo
o «Roteiro de Vasco da Gama», Pero Dalanquer a.ftirmou
que tinham partido do Cabo um dia «pdla manha:m», e que
«de noute passara per al'ly»- a baía de Santa Helena -
«<:Om -vento a popa», não t endo por isso notado a baía,
•vis·to que venceram aquela distância - 30 léguas - em
1menoo de .um dia.
G _, Fontoura da Costa, OOimallldo como base os :nom~
de santos que se lêem .nas ca.rt:as antigas, aceitou que o
·c ento .e meio de léguas, que vão do Cabo à angra Pequena,
tleria exigido uma nawgação die sete semanas _,entre 6 de
}unho e 2·4 de Ju1ho - , ape:sa•r dos ventos favoráveis que
por ali dominam, sendo frequ•e ntemen•t e fre:siC.OS.
1Asstim explica o nome de Santiago que, Ide !.facto, foli
dado ao padrão de Bartolomeu Dias, encon.tredo na ponta
re x•terio.r da angra Pequena . Como porém Santiago era
itlaimbém ·~ado em 1 de Maio, é 1íd'to aceitar esta daJta
iplll1'l8l o .regresso dle &mo.lODlle:U Dias à Angra. onde ficara
a naveta de mantimentos. Assim ra distância a navegar
desde o padrão São Gregório, plantado ao. 12 de Março
- menos de tT'ezentas léguas - , col'responderia a,penas a
294 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA DE ÁFRICA ( CAP.
wna m~ de 6 1léguas por di:a. ou menos de I\JIDlla millha
por hora.
:De II'eS'to, este regl'leSSO das caraV'elas não lfoli feito
como à lida, em vd.agem em parte i}la.rga, mdirectlai. Iam
cog.te ando a terra, aproveitando terrais e viração, e, pelo
menos para norte do Cabo, já se não preocuparam em ·r eco-
nhecer a costa. O que se con.cluli da citada declaração de
Pero de Alenquer, acerca da ;viagem de ll'egresso pelo larigo,
oom <vento a ·p opa:..
Há ainda que .insistir em que, tanto a urgênda de
chegar :a Lisboa <XliDl lai boa nOVIa, ctmro o receio de não
'e ncontrarem a naV'eta na Angra, impunham aproveitar o
mais possível vento e pano.
&tas considerações .torn1Bl1alm tpouco !V'el'OISímlil IU'Dll8
grande ausência da Angra, sejam os <nove mezes:. de
Barros, sejam oo sete da versão Fontoura.
H - O padrão da angra Pequena foi vJsitado em
·1'825 pelo apt. Owen, IS'ellldo-lhe lfi:mlda a llatitude dle
26° 38'. Estava partido, o que parecia ter sido feli•to pro-
positadamente ( «evidendy by deSiign », pág. 270) .
1 - O prazo «nove meses justos» que, segundo Barros,
<Dias esteve ausente da Angra, é mani•festa.m.ente exagerado.
Aoe:i:tando a provável passa,gem, à ~da, petlo N atai, o
regresso à Angra .teri'a sido fe:itn em lfins de Setembro.
Restariam só três m<eses para a viagem até Lisboa, onde,
.segundo Barros, Dias chegou <em Dezembro», prazo esse
msuficiente, ;Visto que o mesmo autor ainda .fixa três esca~
•las, Príncipe, Resgate, Mina . Toma-se, pois, lí.cito duv:i-
darmos ido ;prazo de «desaselis mes·es e dez.ase:te dlias» ,
que Barros marca para 181 duração tota1 da viagem de Bar~
tolom.eu Dias.
11, m] CABO DE BOA ESPERANÇA. A VOLTA DO CABO 295
] - As a.c'tui84s CIBir.tlas de ventas m05t.ralm que, 8()
lar.go da costa 18/fricanJa. os ventos facilitam a navegação,
~a da An·Qll'a, seja de Moçâmedes, lelDl l"UDlO di:recto para
a Mina. Não se ;vê, pois, qu~ ;van<ta'gelll Dias e Dallanquer
•v eriam em ir esoala·r no fun-do do golfo da Guiné, como
seria no Príncipe. Al'ém :disso, tratando-se de um mar aiiinlda
mal ccmhooido. havlla vantlaig.em .em lhe estudar as possibi~
liidadies die n:avegação p81l"a 105 navios que, ide tuturo, wl~
tJalsSem da costa de A'frica a !Portugal, indo ou não à Mina.
A naturalidade ·com que no «Rotei•r o de Vaoco da Gama» se
o:mta que db Cabo para o Rio Grande corta:ra:m direct:aJ..
m:en•te - «seguymos nosso camynho» - é in-dício forte de
que se tra1laiva Ide uma rota jã exploradlal a.nterinrmenre,
rprovàve.l.menme por Bartoldm:eu Dias.
Embora n·a s «ii)éoa.das:. se a'e'.ia que Ba:rtoilom'e'U Da
fui !eSCala:r DJai lilha do Príncipe, onde enoon'tlrou D. Pachect>
muito d.olenltie:, ttle!lldo-se perdido o n:avio em qu:e esta'VIa
.
:exploratndo a cos:ta da Guinê ' é certo que de no «Es.m.e-
·r aldo», poucos deta•lhes apresenta sobre a interessan•t e
viagem 'de Bartolomeu Üia:s. Até erra a mformação sobre o
padrão mrus avançado, que diz ter sido no !ilhéu da Cruz ;
e não em São Gregório, <:orno decerto o iln:formaria Dias.
D. P ·aoheoo limita-se a oeon•tar vagamente que Bé!ll'tolomeu
Dias descobriu o Cabo «no ano de 1488», V'emdo que a
·«costa e ·R iheira db mar vo1ta!V&m daly em d.i ante ao nor·te
:e ao nordeste cuja costa fazia caminho» da Btiópia. Não se
refere, poi•s , ao seu encontlro com Dias, em que sem
dúvild:a 'tleirliial ouvkio dele detalh•es m~tes e méditos.
Donde há a <:on.cluir .que a bordada de Dias ao gol·fo da
Guin~. múti1 para quem se t.in:ha a:bastec:i:do na. Angra, é
Jl1le:Jl06 ~.
29<} A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA DE ÁFRICA [ CAP.
K -Segundo B81rl01S, Bartolomeu Dias Chegou 181 l.Jis..
boa em >Dezembro de 1487, :tendo descoberto «.t:rtezentas re
cinquoenoa legoas per costa que he outro tanto como Diogo
Cam de:scobrio per duas vezes». Trata,..se die wna mfor~
mação que poclemia •ter ~esultado só de inspecção em m1apa,
e não .Jida tem documento. O que explica o erro de &m:os,
que atribui aos padrões de Bartolomeu Dias postições erra~
das: um no Ilhéu Santa Cruz e não em São Gregório;
outro na serra Parda - larti.tude 15 graus - e não na
angra Pequena; e, enfim, um outtro no «notável cabo de·
Boa Esperança», do rq ual não hã 'V'e:stígio, o que o toma
muito duvidoso. Lã :teriam, quanto muito, arvorado uma
cruz de madeira, re não um mastro «.com bandeira», que o
;vento logo .rasgaria.
L - São conhecidas quatt ro referêooas documentais a
um capitão de navios cham·ado Bartnlomeu Dias:
a) Em 1486, Outubro, •10- Gitaça e mercê a Ba:rto--
tl omeu Dias, «patmm Ido nau Sam Chistovam:.
desde Janeiro de 1485, pelo serviço que ·cd:ele
espramos :receber:.. Este é, provàvelmente. o ·g rande
navegador, ·q ue jâ estaria em tviagem para AfriOal;
b) Em 1487, Novembro, 23-Recibo de bolacha pas-
sado por Bartolom,eu .D ias a quem a fornecera ao
, «pa.tram da rn•a u Figa». Este nome não é citado
por Bartolomeu Dias no !lecibo;
c) Em H98, Fevereiro, 26-Carta de quJtaçAo a .
Bartolomeu Dias, capitão da nau «São Cristó-
vão», que foi «nos anos de 90 a~ 95:.;
II, 1H] CABO D E BOA ESPERANÇA. A VOLTA DO CABO 297
d) Em 1501, Julho, 2 - Quitação de BartotlOim.eu D.W.,
falecido ma viage-m à lrn.d.ia de 1500, como «rece-
tb edor do l8!1m:asem da Gumé» IDOIS anos de 94 a
97. Este é o g~rande nav.egllldolr.
Em prilncipio há que notar que o :faoto de nós não
eru:ontratrmOS expUcaçâo paiM Clel"ttas mformaçõe:s mebm~
pletas não é :prova de qrue as não haja, ·e rn.atturais.
g sabido que, tê<:lnibamelnte, rwma n~u é W:onifrundiwl
tcom uma ·c aravela. Mas é certo que, na linguage m cor-
rente em escritos antigos, como nos cronistas, se not·a
OOJllfusão 100 nome dado aos rnavüos, oittan'do-se ~ferat~
teme!Il:te nau, navio, •caravela. Al•g uns chamam canwd a
á «•Santa 1M:aria» de Cdlombo, navio em qrue pr.e/domJ.n;a~
vam as veJas qwadran:gulares das naus.
'Thlm:bém é ISiaibido que a!lguns dos illla'Wbs antlip
tinham mais dre um IIlOIIIl~ sendo IDl:&s conhecidas por uma
~eSpécie de alcunha. tAssim, ·a oaravda que .foi oom VlllSIOO
da Gama é sempre ohamada c:Bétmio:., nome do dono 111
qU~em tfoi comprada, jmganido-se que o seu nome of:icia:J.
s er:i·a o .d.e um .santo, ·como «São .Miguel ». En.Hm Quirino
da Fonseca citou casos análogos de alcunhas, ~orno Ta-
noeíra e Barrileira.
M- Tte:m &do cons~ «documento:. •prova.ti.'Vo
do ano da passagem do Cabo um romentá1~io que s:e lê na
obra ..:!mago Mundi:. que pertJenceu a Cdlombo. e que
este 101avegador muito manuseou, rench·end.o-<a de notas. Lá
se •lê qure BM!tolomeu Dias, «ca·p itão rdre tires C~a~ravelas»,
c!hegou a Lisboa te!m Dezembro do cano de 88:.. !Ele teria
contado a O. João U oomo navegara c600 •l éguas para
ail<ém do qu•e já .e:stava na<vegado, a saber - 450 pare sul
I' ·e 250 para norte - até um .p romontório que ele mesmo
•
298 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA DE ÁFRICA ( CAP.
pôs o nome de Cléllbo Ide Boa Esperança », o qual «viu
achl8ir.JSe pelo astrolábio à distância die 45 <g.taus pa:1'f8l irlém
da l~nha equinociail», distante de Lisboa 3 100 léguas. Es:ta
·~ lterla sildo d.escrtiJta a n. João 11 à 'V'istlai ·«de <}'égua
em légua l1liUDla carta de nawgação:.. Nestas «quais coisas
todas eu tomei parte» (ou «assisti » ) . (Fontoura, pág . 52) .
Tlail nota 1Dl18!1"gilnall :de 1Colombo ,tem em"OS mdiscutí-
vieiis: :Bartolomeu Das não tnavegou «pam 'éclém:. do último
pad·r ão de D:iogo Cão, a1té ao Caib o, 450 léguas «pa:ra
:Suh, mas só metade desta cldstânc,ia: a ,t'e ma mais sul,
:alti.n!g'dla por 'Dias. não está ,«r45:.. mas ro 35 g·J.'BIUS <pam
aJlém da ~a equ:inociab, e a sua na.veg~ação para além
ido Ca>bo não .fo[ de léguas «Q50 para norte», mas de
Uollli8S 150 para nascente do Cabo.
Tão-,pou.co aquele «prom.on.tório», ao qual Bartolomeu
Dias pós o nome de cabo Tormentoso, es1tá a «leuohe
31100» de Lisboa, mas a menos de duas mil ·!léguas pela
costa, mesmo 00111/tJando oo g·r.a.us a 1·8 ~léguas, e não às ~tli
que Colombo pretenideu ter medido por pu.
'De resto, no mês de Dezembro dle 1488 -ou mesmo
Janeiro de 1489 - , em que D . João 11 't eria recebido Barto-
,Jomeu Dias, para este lhe mostrar a «carta de na;vegan ,
deta·lb;ada. <de 1égua em l'égula », não h'á n~tíoia de 181gum
dos iirmãos de Colombo lt!Stlair em Lisboa. Mas. ra!ink:la que
esti>V'eSSe, tm'tllwa..se de .u ma mformação muito mtJeres.-
sante. que c:mvmhlai :J.'Ie5ieii:!Va, especialm.e:nte de quem, cbmo
cle, andava fora de !Portugal O!CUtp8do em promov.e1' o
Descobrimmto :do Cam:inho da lndia. Além disso. Barto-
Iomeu Dias, d-epoiiS de ter ent:r<ado no oceano fndlico ,
ooconhJeoer.a. a nJeoess'iidlalcre k:l.e se exploM~r uma lllOVIél. l[(rt'a
sul-'atllânti!C'a, pe!lo sudoesite da Gu.inlé. O que tudo COJlS.-
tituia uma IDOVIidade capital, que não oon<vmha a D. João 11
«espalhar».
II, m] CABO DE BOA ESPERANÇA. A VOLTA DO CABO 299
Não é, pois. 'VIelro5ími!l que reste sagaz rei ~ con-
vOICiél.ldo tais tOOIIOC'Orl1'eDtles paiM «ass.isltWrem.:. à audiêru:lia de
Ba·rtolomeu D1as. As in,for:mações que a tal ~respeito l emos
no «<<m'a go = MUIIld:i» de 'Colombo estão do 'fía!lsas como
·o u·t:véi!S anotações que lá se lêem, impre ssas ou :e scri,t;as à
·mão. 'Comb 'vamos .pois :deduzir que este «documento:. .C bn-
C011rle leiDl algum ipOD.'to pa.Ifa! nos elucidar sobre a iW!agem
de Bartolomeu Dias?
A conclusão a ÜIIair é a poosbJ.idalde de o mesmo Bar-
tolomeu Dias, que passou o Cabo, l!llelr aquele «pa'tmm»
que comandou o navdo «São Cristóvão», desde 1485 alté
1495, IIllaiV'io que !piCllder:ia :ter sildo de facto uma camV'eiLa,
embora iflenrdb IU!Dlla veJ.a redonda no :mast-ro de p:roa. Assim
se ex:pliCia que o ill'a~o de 1Bairtolomeu Dias- DJau ou Q~~M,.o
v.e!la - tiiVes's e o mesmo nome, «Sã o CriJStóvão», o qual
se mctm~t.ra citado !tanto na costal omenrtal de Á'&ic:a - um
rio - como na cos'tla oddentlal - um ,golfo.
Ser.ia a 'e sse mesmo mwtto qUJe lfai ,f ornecida !bolacha
em Novembro de 14'87, :d.anlclo-ise-Ihe, por Jdson,j a, a clas-
5Wfioaçãb de «noo:., e sendo ma:is conhecido pelo nome
popu181r de '«IF[ga:..
·.Apesar das clatros erra; que se notam na narrativa
de Damos. SOillOO ass;im. levadas' a a'Oe!illéllr a sua ldlalta,
11487, emiboi1a Di'a s não ltlV!e5Se ~regressado do Cabo com
«desaseis meses » de viagem, mas com pouco mais de um
a1no - como é mais natural - , chegan/do a Lisboa antes
do mês Ide Nov;emhro de 1-4'&7.
Também é 1lkd,t o supor que o niM'io de Bartolomeru
lAias tivesse !ficado em Lislboa. sem nJaveg'811', ttll8. situação
a que :agora se chama de «meJi.o lél1'iiilléllmeto:.. embora a
Clarta de qU:i'tação só ISie ll.'lelfilra ao serviço desde o ano de
1490. •Ba:rtolomeu Dias teria sido conservado nessa função
marítima s·e dentária, pelo menos desde 1494, assistindo à

300 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA DE ÁFRICA ( CAP.
.oonst~rução dos lli8Jvios destlin•ados a V asco da Gama. E,
como não tnoavegarva. ele poderia ta.mlhém ser «ll"te'CiebeJdor»,
cargo rendoso, como recQmpensa pelo «serviço» qu.e pres~
ta:re mdo ao ()1Ce:a410 lnrdiro.
Afigul.'a~se~me que esta explicação .m arítima não é
menos verosímil que a conjectWiél dre, na última dêoada do
século de 1400, 1:1erem ex•i stido do.is ou três oapitães, o dia
« P.~ga•», o do «São Cristóvão», e o das IOéllfavelas de 1497
e 1500, todos ·c om o nome «Bartolomeu Dias». Enif.iim, o
nome «São Cristóvão», f·r equente nos nos·sos na'Vios, pode~
ria ser, ao mesmo tle:mipo, o de uma nau .e o de uma car·a vela.
IV-TRATADO DE TORDESILHAS
:msabido que, em Junho de 1494, foi assinado,
entre o Rei de Portugal e os Reis de Espanha, o famoso
Tratado de Tordesilhas, pelo qual, em princípio, di~­
di•a m o Atlântico em duas zonas para seus descobn-
mentos, delimitadas por uma craya~ que ia cderecha
de Polo a Polo», passando 370 léguas a poente cde
las yslas dei Cabo Verde:.. Parece clen~», co~o as do
Mar Tenebroso, ma:s não é. Porque amda existem os
dois exemplares do Tratado, um em Lisboa, outro em
Sevilha.
Este maravilhoso documento previa a existência,
tanto de cyslas» como de c:tierra firme», as quais, se
0 c~eridiano-raya.» as cortasse, seriam balizadas com
«torres». Para oeste ficaw o hemisfério de Espanha.
Contudo havia no Tratado certa restrição contra
Portugall: como Colombo ainda não voltara da segunda
viagem de descobrimentos, iniciada em 1493, no caso
de nas 120 léguas mais a •p oente - e de acordo com a
II, IV] TRATADO DE TORDESJLHAS 30!
previsão dos Reis- terem sido descobertas terras até
20 de Junho daquele ano de 1494, tais terras (decerto
não asiáticas) ficariam pertença de Espanha. Hoje
sabemos que, de facto, havia por ceá» uma extensa
«terra firme », que imporia muitas ctorres» ...
O Tratado detii.nia, pois, os limites interiores do
Brasil, pais que, para alguns autores, começara pelo
«fim:., pela sua fronteira terrestre, mais por obra de
letrados do que de mareantes. Não foi assim, como se
verá.
Segundo o critério dos Espanhóis, que começavam
:a contagem das 250 léguas a partir da ilha de San-
tiago, se Colombo já tivesse ·a chado as ter:ra.s ·a dentro
das últimas 120 léguas, o Brasil teria como limite o
actual meridiano de cerca de 39 gmus W Gr., o qual
segue uma linha que, cortando o Ceará pouco a oeste
de Fortaleza, -y;ai sair a sul, em Belmonte. Nem o
Monte Pascoal, como tão-pouco a Guanabara, teriam
assim ficado brasileiros. Como Colombo, apesar de
prevenido, não tinha em 1494 dado com tais terras, a
nossa fronteira ·alargou--se então até à:s 370 leguas
fixadas no Tratado de Tordesilha:s.
Em 1493 Colombo, à sua passagem por Lisboa, de
regresso da primeira viagem, tivera demorada confe-
rência com D. João 11. Ao contrário do que alguns
escrevem, ele decerto não pretendeu que aqueles nati-
vos que trazia, morenos e de cabelo corredio, fossem
cnegros de Guiné» . Eram habitantes das terras oci-
dentais, a que chamou dndias:.. Ter-se-i~. talvez, gabado
de vir cdas ilhas de Cypango», as quais nunca tinham
interessado os Reis de Portugal, convencidos de que
a Ásia, pelo ocidente, ficava tão longe que era preferí-
vel explorar o caminho marítimo da ctndia:., contor-
302 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂ NTICO E COSTA DE ÁFRICA ( CAP.
nando a costa africana, em lugar de a buscar para
além da China.
Porque, de facto, já seis anos antes de 1493, Bar-
tolomeu Dias, dobrando o cabo tormentoso, e nave-
gando para leste cento e meio de léguas, entrara no
oceano Indico, ·a té onde a costa já vinha franca de
nordeste. Ao mesmo tempo, outro enviado de D. João II,
Pero da Covilhã, tinha atravessado o Mar da India,
de Calecute «para Sofala», também na costa oriental
sul-africana, que Bartolomeu Dias reconhecera.
Não é, porém, de crer que D. João ll informasse
Colombo sobre o progresso feito nesse sentido, porque
havia interesse em manter o sagaz navegador espe-
rançado naquelas terras ocidentais, onde, aHás, ele
poderia exercer de «Visorrey», que lhe garantia a «Capi-
tulacion de Santa Fé». O que lhe não aconteceria nas
terras civilizadas, como China e Japão.
Fosse por esta razão, fosse também por as ilhas
descobertas em 1492 terem sido consideradas só como
úteis «escalas» para a Ãsia, o certo é que, na sua via-
gem a seguir, iniciada em Setembro de 1493, Colombo
continuou a exploração das terras tropicais a que os
Portugueses chamaram «has Antilhas». Foi abordá-las
a sul, cerca da actual Guadalupe} donde rumou para
noroeste, para a sua já conhecida ilha de São Domin-
gos, onde deixara um «forte» com espanhóis.
Por outro lado, é natural conjecturar que D. João ll,
ao insistir com os «Reys» de Espanha sobre uma fron-
teira amigável, passando a meio entre as Uhas de Cabo
Verde e as Indi·as, nada contava dbter no Atlântico
Norte. Porquanto é sabido que, ao principio, D. João II
pretendera que a «raya» fosse um «paralelo•, traçado
entre as Antilhas e o equador. Mas, por fim, conten-
li, rv] TRATADO DE TORDESILHAS
tou-se com a delimitação segundo um meridiano.
Este facto nos leva, intuitivamente, a crer que se con-
tava com terras na parte sul-ocidental do Atlântico
comum àquelas duas soluções. '
Sabemos hoje que, no ramo completado pelos anti-
podas, o circulo meridiano ia passar pelo Japão, dei-
x>ando as Filipinas e, portanto, a lndia muito den-
tro do hemisfério português. Como se vê, D. João II
já estava em 1494 tão firmemente informado sobre a
posição lndia que não receou perdê-la no hemisfério
espanhol, ao deslocar para ocidente de Cabo Verde o
meridiano que, inicialmente, distava das ilhas só 250
léguas. Não contava, assim, ir atingir terras asiáticas.
Foi só nas lndias, em Outubro de 1494, que
Colombo foi informadó, por carta dos «Reys•, da com-
binação com D. João n. E como as terras descobertas
estavam muito fora das 120 léguas, concedidas no
Tratado, prosseguiu na exploração das ilhas. Só regres-
sou à Espanha em 1496.
Assim a «raya• - «ho marco» do mapa de Can-
tino - ficava fixada definitivamente pelas 370 léguas;
contando-as à portuguesa, que era para oeste de «todas»
as ilhas de Cabo Verde, ela ia passar cerca do actual
meridiano 47 graus W Gr., o qual corta o Brasil do
Pará ao Paraná.
De declarações de Colombo deduz-se que ele estava
conve~cido de que o seu «rival» em sagacidade,
D. Joao ll, sabia que «·a i Austro habia tierra firme ».
Ademais, suspei.t ava-se que o Rei estava seguro de
q.ue «dentro de sus limites habia de hallrar ·c osas y
tierras famosas». Não se tratava pois de «yslas» fan-
tásticas no Mar Tenebroso. Assim, Colombo julgara
que D. João ll não pretendera garantir-se, dentro do
304 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA D E ÁFRICA ( CAP.
quadrante sudoeste do Atlântico, só léguas quadradas
de água salgada.
Também os cReys:. de Espanha tinham idêntica
opinião; e tanto que já em 1493, em carta, preveniram
Colombo de que os Portugueses pensavam cque podria
habe.r lislas, y aun Tierra firme», emas ricas que todas
las otras», para além das ilhas de Oabo Verde. Mas
convinha manter D. João 11 desinteressado das An-
tilhas.
O certo é que Colombo, na viagem empreendida
logo a seguir ao Tratado- a de 1498-, foi, diferente-
mente do que· praticara nas duas viagens anteriores,
fazer escala em Santiago, do grupo de Cabo Verde,
ilha donde os Espanhóis pretendiam contar as léguas
para oeste, até ao cmeridiano-raya». Quando partiu,
ele já não ia mais em busca das lndias, nem da costa
asiática, que os mapas da época, como Ptolomeu e
Martellus, arrumavam a dois milhares de léguas do
cabo Verde. Nesta viagem «al Austro » Colombo pre-
tendia cdescubrir el secreto dei Rey Don Juan», tra-
duzido no Tratado. Embora tendo em Cabo Verde
·c onfirmado suas suspeitas, por lá ter ouvido que cel
rey don Juan tenia gran inclinacion de enviar gente a
descubrir al suroeste» o seu programa já fora ante-
riormente concebido, c~mo sequência do Tratado. (Ma-
dariaga, págs. 450 a 452).
Assim, indo rumando para sudoeste , ele obe-
decia. ao processo mais prático na época para definir
a craya», qual era o de cencher» as 370 léguas em
·latitude - de fácil determinação astronômica em
terra-, às quais, por aquele rumo, corresponderiam
outras tantas léguas em longitude, ou para ocidente.
S6 então teria, academicamente, entrado no hemisfério
II, IV] TRATADO DE TORDESU.HAS
que, pelo Tratado, pertencia à Espanha. Para o que
precisava navegar meio milhar de léguas ao citado
rumo, «sudoeste verdadeiro».
Se Colombo em 1498 conhecesse- como o pro-
varam os pilotos de Vasco da Gama no Verão do ano
anterior- o regime de ventos para além do cabo
Verde, ou se tivesse tido a sorte de navegar no Inverno
- como Pizon em 1500 - , ele teria encontrado até ao
equador ventos favoráveis, os do conhecido calisado
de nordeste», que o levariam à terra firme equatorial.
Como, porém, partiu de Santiago em Julho, navegadas
cal ·s udueste 480 milhars , que son 120 leguas», foi encon-
trar, em cerca de dez graus de latitude, o vento
contrário da conhecida «monção de sub.
Esse vento e calmarias o forçaram a carribar:.
para poente, interrompendo seu inteligente cplano».
Em fins de Julho era avistada a ilha da Trindade.
Junto de uma costa nova, a qual, por causa das águas
caudalosas que ali iam dar, foi considerada cterra
firme».
Ficava apenas 250 léguas para oeste da «raya».
Colombo não esquecera que Marco Polo, quando
retlirara de Cathay - a China-, fora eontornando a
costa oriental asiática, até passar para o oceano Indico,
tendo deixado a nascente uma grande ilha, chamada
«Java Major», que hoje identificamos com cBornéo».
Ora mesmo entrando nos mapas da época com a
noção errada de Colombo sobre uma Terra muito curta
-se era sincera .. . -, aquela costa asiática ainda lhe
ficaria um milhar de léguas além da craya». De resto,
como as ilhas descobertas por Colombo não corres-
pondiam à tradição do cCypango» , civilizado e tão rico
de coro» que era com chapas deste metal inoxidável
!O
3o6 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA DE~ÁFRICA
que telhavam das casas», a grande ilha de Cuba
seria, quando muito, a Java dos mapas antigos.
.A!Ssim a terra descoberta em 1498 ·a sueste de Cuba,
'
e correndo leste-oeste, nunca poderia confundir-se com
aquela outra costa da China, que Marco Polo ·acompa-
nhara navegando de norte para sul, e que demorava,
não a na·s cente, mas a poente da ilha Java Maj<Yr. Foi
levado por esta forte razão que, na viagem seguinte
- a de 1502 - , Colombo t ão trabalhosamente buscou
o cestrecho:., que tinha de separar a nova terra do sul,
da .a utêntica costa asiática. Atingiu Verágua, 400 léguas
além da Trindade. E a costa ainda continuava para
oeste.. . Não era com certeza Ásia.
Enfim, a terra firme achada em 1498, apenas 250
léguas além da c:raya», e que vinha «corrida:. de nas-
cente só poderia corresponder àquela terra prevista
'
no Tratado. Colombo a fora buscar de propósito. ·a sul,
levado pelas ideias da época acerca das razões que o
sagaz D. João ll tivera para insistir na delimitação dos
hemisférios.
• de 1502, as costas da China já são distintas das costas
Por certos detritos vegetais que ventos e corren-
tes de oeste :J.evawm aos Açores concluira-se a exis-
tência de terras - Antília, ou outras- no Atlântico
Ocidental. Seriam asiáticas, ou não. Pretenderam lá ir
alguns aventureiros- um deles, Dulmo, decidido a
navegar 40 ou mais dias para ocidente- e sabemos
que lá chegaram, tanto João Caboto em 1497, como
Corte-Real em 1500. Se alguns por lá passaram antes,
não há disso cprova:. afirmativa ou negativa.
[ CAP. li, xv] TRATADO DE TORDESILHAS
Colombo, aproveitando um recurso inédito - o
apoio de Reis-, as atingira perto do trópico em 1492.
Mas, apesar do que veio contar, não se via razão para
identiflicar as suas lndias com as civilizadas terras
asiáticas, que Marco Polo conhecera dois séculos antes.
A tal respeito, os pilotos portugueses tinham,
como disse, já antes de 1492, plena convicção de que
a costa oriental da Ásia distava de Portugal, pelo
ocidente, bem mais do que pelo oriente. E pelas suas
navegações em latitude ficara reconhecido que a volta
da Terra, no trópico, andava por seis milhares de
léguas. Assim, de Cabo Verde à costa da China haveria
que navegar m:ais de três mil.
Nunca estas terras ocidentais tinham interessado
os Reis de Portugal. As propostas de Colombo tinham
sido desprezadas: concediam-se c alvarás:., mas não
navios, nem gente. E tanto que as abandonámos em
Tordesilhas, apesar de não serem consideradas asiá-
ticas. Embora o mapa português de Cantina apresente
a Groenldndia como «ponta da Ásia:. - a qual entra-
ria no Atlântico por cima do pólo, e na longitude dos
Açores-, é certo que, no mesmo planisfério, datado
do continente americano, estando deste afastadas para
oeste cerca de milhar e meio de léguas. São realmente
dois e meio.
E o facto é que, depois do Tratado de 1494, os
Reis de Portugal continuaram a não mandar navios
a ocidente. A Torre Nova, que está um cento de
léguas para além da craya:., foi descobrimento par-
ticular.
Ora, no hemisfério sul não havia, como a poente
dos Açores, aquela indicação natural sobre a existên-
308 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÃNTICO E COSTA DE ÁFRICA ( CAP.
cia de terras, estas a ocidente da costa africana. Mas
aqui o Tratado de Tordesilhas parece intuitivamente
inspirado na crença de sua existência.
Por outro lado, uma análise náutica da questão
revela interesse especial português em terras a sudoeste
das ilhas de Cabo Verde e a sul do equador. O qual
interesse raro tem sido devidamente considerado.
Porquanto, no prosseguimento da exploração do
caminho maritimo para a fndia, naturalmente indicado
a contornar a costa africana conhecida dos Portugue-
ses e que se prestava a cescala» de abastecimento, já
Bartolomeu Dias conseguira, em 1487, passar além do
seu extremo sudoeste, entrando no oceano Indico.
Mas Dias reconhecera também a insistência de
correntes e ventos contrários- principalmente a sul
do trópico - , os quais o obrigaram a tomar a bordada
do largo, em busca de ventos favoráveis. Tal insistência
mostrara que a rota «costeira» seria pouco praticável
para os navios de mais porte da época- as naus,
com as suas velas quadrangulares- e até mesmo para
as caravelas de panos latinos, ou triangulares, únicos
navios que Bartolomeu Dias levara.
Impunha-se, portanto, o reconhecimento de uma
outra rota, larga, mas para o Cabo, e não a romper
para sudoeste segundo o critério colombiano, partindo
de um ponto na costa ocidental africana, talvez só da
Mina.
Pel,a s viagens de regresso da Guiné, praticadas em
largo arco, por vezes iniciado pelo equador, já se sabia
que no Atlântico Sul dominavam ventos de sueste.
Eram os mesmos que Bartolomeu Dias tivera de evita.r,
ventos que imporiam indefinidamente rumos para
sudoeste, afastando-se os navios da .Ãfrica, possivel-
II, IV] TRATADO DE TORDESILHAS
mente, até às altas latitudes onde Bartolomeu Dias veri-
ficara que eles cessavam.
Porém, com tal rumo para sudoeste aonde se iria
d ar. Haver1a
? . terras pela proa que cortassem
' a bordada
«na volta do mar» ? Mudaria o vento de direcção?
Haveria calmarias?
Tratava-se de considerar a possibilidade de, pelo
quadrante sul-ocidental do Atlântico, traçar uma .r ota
«indirecta», em arco, semelhante àquela que, já desde
o tempo do Infante, se vinha praticando no regresso da
Guiné, a contornar o vento alisado de nordeste, do
Atlântico Central. Mas aqui havia mar livre, onde se
topava com csargaço». Faltavam indicações de que, no
Atlântico Sul, fosse praticável uma rota semelhante, a
contornar a região do vento geral de sueste. Era pois
inevitãvel investigá-lo.
A exploração desse novo caminho largo para o
oabo de Boa Esperança não era por demais compli-
cada. Tanto a poderiam realizar os navios que regres-
savam da Mina (prolongando para poente a usual
bordada equatorial a favor de correntes e ventos conhe-
cidos) como a pode.riam tentar caravelas partidas direc-
tamente de Cabo Verde para sul e sudoeste, nave-
gação esta que, com meio milhar de léguas, os teria
levado a terra firme.
Só de repetidas viagens de exploração, em várias
épocas do ano- e realizadas antes de 1497, ano em que
Vasco da Gama por lá navegou-, é que se poderia ter
verificado que, no Atlântico Sul, as terras iam muito
mais a nascente que no Atlântico Norte. Mas feliz-
mente, a meio caminho do trópico, o vento do~inante
de sueste - que só daria bordada para sudoeste-,

310 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÃNTICO E COSTA DE ÁFRICA ( CAP.
passado o cabo Santo Agostinho~ eomeçava cde hir
alargando até ventar da banda do Ponente», permi-
tindo assim rumos de sul e de sueste, até se dobrar o
cabo de Boa Esperança. Além disso, a costa, reco-
lhendo-se ali para sudoeste, reduzia o risco de os
navios lá se irem censacar», no caso de vento escasso,
contrário.
Deste modo, nem era preciso -imitando a bor-
dada larga de Bartolomeu Dias- «ir tomar barla-
vento» a algum porto da costa africana, como seria a
conhecida Mina~ porquanto bastava procurar cortar
o equador pelo meridiano das ilhas de Cabo Verde
para ter garantida a travessia do Atlântico para o
Cabo. Enfim, se no Verão ventos de sul impunham
uma bordada inicial para sueste de Santiago - como
fez Vasco da Gama-, no Inverno bastava navegar logo
pelo sul, até ao equador.
Esta complexa informação sobre terras e ventos
não poderia ter sido c adivinhada» pelos cosmógrafos:
resultara de uma exploração do mar, da qual, como
de outras viagens reais, nos não ficou documentação.
Tal é, por exemplo, o caso da primeira viagem ao
Cabo~ contada bem diferentemente pelas cLendas da
lndia» e pelos cronistas.
A reforçar tais conjecturas marítimas temos a
indicação da viagem da ccaravela secreta», como as
da ilha São Mateus e do cabo São Jorge~ nomes pri-
mitivos da ilha F. Noronha e do cabo São Roque, o
que tudo sugere um anterior descobrimento.
Enfim, a característica prudência dos descobri-
dores portugueses, que levaram meio século entre as
passagens dos cabos Bojador e Tormentoso, essa
li, IV) TRATADO DE TORDESILHAS 311
norma justifica a necessidade da exploração prévia de
um mar onde havia terras csuspeitas:., podendo ~mpor
c~scala:. na costa africana. Só assim teria sido adqui-
nda a certeza com que os pilotos investiram em 1497
com o Atlântico Sul, não em viagens cdirectas» eomo a
de Colombo, miS.S cindirectas», e levando naW: navios
impróprios para reconhecimento de novos mar~s.
Eles praticaram as mesmas rotas em arco, agora
re~mendadas nos cRoteiros», e diferentes, conforme
se 1a em Agosto - como fez Vasco da Gama- ou em
Março, como Cabral, sem terem precisado ir ctomar
badavento à Mina». Em ambos os casos se conseguiu
passar para o Cabo~ depois de cmontar» a parte da
costa brasileira que vai mais a nascente, ou a leste _
a de Pern'a mbuco - , apesar do vento contrário, de
sueste. Ainda hoje os Roteiros previnem os navegantes
contra o risco de se ir dar na costa que fica para oeste
do famoso Cabo São Roque~ além do qual ventos e
correntes tornam muito contingente a navegação dos
veleiros para nascente, corrente a prolongar ·a costa
do Ceará e Rio Grande, e que só nesse cabo inflecte
para sul.
'l'ais reflexões náuticas sobre as rotas confirmam
a forte indicação de que o Tratado de 1494 foi feito
mais para dividir terras do que mar. Ele provocou, como
é notório, a primeira visita de Colombo ao 'Novo Con-
tin~nte. E t~do nos indica que a costa ocidental já
~na conhe~1da dos pilotos portugueses na parte que
mteressava a travessia do Atlântico Sul. Ah, em 1497
o Mar Tenebroso não tinha mais mistérios nem ctre-
vas:.! Estava desbravado.
 312 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA DE ÁF RICA ( CAP.
Em resumo:
O Tratado de Tordesilhas não foi documento só
concebido no gabinete. Obedeceu à orientação de quem
conhecia o Mar do Sul.
Não foi cao acaso» que D. João n insistiu na deli-
mitação dos hemisférios. Mas tão-pouco o foi em resul-
tado de informações prestadas por Colombo, que só se
gabava de ter atingido a Ásia, e não de ter cortado
o equador. Os Portugueses- que, às lndias, deram
o velho nome ·a tlântico de Antilhas- continuaram
convencidos de que a •c osta asiática ficava tão longe
que o caminho prático para a autêntica lndia não seria
pelo mar ocidental - livre que ele estivesse - mas só
· pelo cabo de Boa Esperança.
O exame técnico desta questão sugere-nos pré-
-descobrimento de terras no quadrante sudoeste do
Atlântico:
- Pela reserva espanhola das 120 léguas da ctd.erra
firme » que Colombo buscava em 1493, na sua viagem
cal suroeste» das Canárias ( cMad.», pág. 376) ;
- Porque as terras a ocidente dos Açores não
interessavam os Reis, nem de Portugal nem de Espa-
nha, como se deduz da sua indiferença pelas viagens
de João Caboto dentro da zona de Espanha;
- Porque se sabia não haver ilhas importantes
nem terra firme, a poente dos Açores, e adentro das
duzentas léguas ali delimitadas pela craya»;
-Porque D. João n começara por reclamar uma
zona definida por um «paralelo» passando a sul das
Antilhas.
· Enfim, da prudência com que Gama e Cabral
traçaram suas rotas diferentes, evitando «ensacar-se»
II, IV] TRATADO D E TORDESILHAS 313
na costa pernambucana, também se deduz que seria
essa cuma» das terras citadas no Tratado.
E tanto assim é que, ao passo que em 1497 Vasco
da Gama a «deixou» para. sotavento com a sua bor-
' a foi «buscar»
dada inicial à costa da Guiné, Colombo
no ano seguinte. Tanto este, como D. João n- duas
autoridades da época- ambos esperavam que a «raya»
fosse cortar novas terras, deixando as costas asiáticas
a mais de 370 léguas a poente de Cabo Verde e, por-
tanto, no hemisfério espanhol.
De tudo ressalta intuitivamente uma fundada
crença na existência de terras no hemisfério portu-
guês, e a sudoeste de Cabo Verde.
Não há prova nem indicação em contrário. Mas
as coisas passaram-se como se os pilotos levassem os
mapas modernos, onde, a par das costas, estão indi-
cados, mês a mês, os ventos dominantes. E nem foi da
experiência de Vasco da Gama, em Julho de 1497, que
se pôde concluir que seria «mais favorável» Cabral
partir em Março. O Tratado de 1494 o explica.
Qual teria sido, então, o interesse de D. João ll,
ao propor uma convenção?
Aquelas «yslas y tierra firme », mencionadas no
Tratado, teriam sido achadas quando se investigou a
possibilidade do caminho para lndia pelo Cabo, a
·passar em arco muito ao largo da costa africana.
E, conforme os «Reys» comunicaram a Colombo,
alguma coisa lhes teria constado.
Como só depois de Vasco da Gama é que se reco-
nheceu a praticabilidade de travessias de alto mar de
três ou mais meses, é lícito conjecturar que, conhecida
a posição da costa ocidental que ia mais contra o vento
sueste, D. João n teria pensado na ceonveniência» de
314 A ESCOLA DO MAR LARGO-ATLÂNTICO E COSTA DE ÁFRICA

lá se «escalar:.. E assim, além de não convir ter terra

espanhola a menos de meio mühar de léguas da Guiné, r
surgia ·a possibilidade de nessas novas terras haver
algum porto de abastecimento, preferível aos d:a. costa
africana, para a travessia do Atlântico. CAPITULO m
Ademais, é cristalinamente gratudta a hipótese de
que, apesar da previsão de 1494, e mesmo depois de
Colombo ter em 1498 atingido o continente americano,
ainda os pilotos portugueses - por « intuição ~ ? - con-
fiassem em que o Atlântico Sul fosse mar tão livre à AMÉRICA
navegação como o Atlântico Norte. Ou banhasse terras
da Ásia e índia. Só Colombo teria compreendido o
espírito do Tratado, melhor que seu próprio promotor,
o arguto D. João 11 .. . Enfim, estão também errados
aqueles que aceitam que se esperara pelo advento do
sagaz Vespúcio, o qual teria sido, em 1501, quem pri-
meiro «descobrira» que as costas da Terra de Banta
Cruz já não eram asiáticas! SUMÁRIO:
Certo, uma tal concepção acerca do conhecimento
das terras sul-ocidentais, anteriormente a 1500, pre- I - A inte1"00nção portuguesa no de8cobri-
judica tecnicamente o interessante paradoxo geométrico
mento da América do Norte
de o Brasil - digamos, por profecia de astrólogos, ou
pelo Destino- ter começado pelo fim, pela sua fron- 11- Crist61Jão Colombo
teira interior. Ora não foi ·a ssim: a defind.ção inicial
deu-se na costa atlântica, conhecida em resultado da m- Aménco Vespúcio
mtervenção lógica de mareantes, precursores do «clás-
sico Cabral~ .
Só a ampliação a mais de três vezes do que seria
o Brasil se o Tratado de Tordesilhas tivesse sido
cumprido à risca, só ela é que foi mais obra de diplo-
matas do que de navegadores, cuja actuação pioneira.
neste capitulo da «História de Portugal-Brasil~ , com
estas notas, eu pretendi esclarecer.
 I - A INTERVENÇAO PORTUGUESA
NO DESCOBRIMENTO
DA AMSRICA DO NORTE

Aquele acontecimento capital da História que

permitiu a expansão dos Europeus- o descobrimento
da América- tem sido considerado, em geral, fruto
do cgénio» luminoso de Cristóvão Colombo- e, às
vezes, até de Américo Vespúcio -, julgando-se que tudo
fora obra maciça de um só homem. Deixa-se, assim,
IÍgnorada, obscurecida, a importante preparação ini-
cial, que exigiu labor de meio século, e cujos pioneiros
foram os Portugueses. Certo, eles não criaram a pro-
gressiva América aclual, mas tão-pouco Colombo a
criou!
Pois foi em Portugal que Colombo se possuiu
daquela febre de descobrimentos, cujo sucesso então
dominava os Portugueses. Foi também em Portugal-
e não em Génova nem em Espanha- que Colombo
aprendeu a navegar no alto mar, adquirindo o prestfglio
de piloto português, que decidiu os Reis de Espanha a
entregar-lhe - como mais tarde a outros portugueses
-uma esquadra. Foi, enfim, em Portugal que ele adqui-
riu o conhecimento da existência de terras no Atlântico
Ocidental. E, embora Colombo afirmasse que elas eram
318 AMÉRICA [cAP.
Asia, não está a'bsolutamente provado que ele o acre-
ditasse - exactamente como o não acreditavam os ma-
reantes portugueses-, havendo quem creia que a 'Visão
da opulência das lendárias terras orientais, reveladas
pelo viajante Marco Polo, foi apenas um engodo para
tentar a Espanha, naturalmente empenhada em não
deixar que o seu pequeno vizinho da Peninsula se
engrandecesse, reservando-se um exclusivo de terras
ultramarinas.
•
Ora uma anMise técnica dos acontecimentos marí-
timos do século XV prova que os Portugueses, se não
estiveram na América antes de Colombo, dispunham
de todos os elementos necessários para lá ir, e lá teriam
ido mesmo que nem Colombo nem o seu imitador Ves-
púcio tivessem existido. Colombo só lá pôde ir apro-
veitando-se dos conhecimentos portugueses do alto
mar. De resto, fo:ram os Portugueses quem ·a briu as
saídas do Atlântico, tanto para o oceano Indico ·como
para o Pacífico. Colombo nunca esteve em terras dos
actua.is Estados Unidos.
Vem pois a propósito insistir na divulgação mun-
dial da importância que teve a intervenção portuguesa
no descobrimento da América, intervenção esta que
começou muito antes de 12 de Outubro de 1492. Mais
de .meio século antes.
Porque esse grande dia só chegou depois de demo-
rados trabalhos marítimos peninsulares, durante os
quais se reconheceu a existência das terras ao ocidente
da Europa, como também que os ventos dominantes no
oceano Atlântico permitiam ir lá, e de lá voltar, em
III, I] os PORTUGUESES NO DESCOBRIMENTO DA AMÉRICA 319
barcos só de vela. Eis a técnica que não seria possível
descobrir só com uma viagem de exploração, como foi
a de Colombo, em 1492: o sucesso de uma travessia
única poderia ser um acaso, difícil de repetir. Aquela
possibilidade geral exigia múltiplas viagens, sucessi-
vamente mais largas, até se descobrirem os ventos
gerais- se os havia- e a maneira de os aproveitar.
•
Repetidas vezes se tem escrito que a navegação
do Atlântico -ao qual, no ·principio do século XV, ·a inda
se dava o nome de Mar Tenebroso- não era conside-
rada possível: os raros navios que lá tinham ido não
puderam voltar. · As dificuldades de tal navegação
estariam na crença em temporais que cobriam o céu,
bai.rios, calores t6rridos, monstros marinhos, ou outras
lendas- como aquela do buraco onde os navios, pilo-
tados pelo Diabo, caíam, indo parar ao inferno. Mas
os mareantes que chegavam até às Canárias não viam
indicação alguma de que para o sul houvesse trevas
ou contínuos temporais : eles conheciam a verdadeira
dificuldade material, que estava na viagem de volta,
contra ventos e correntes contrários, de norte, que
dominam no mar para o sul das Canárias. E sabiam
ainda, por informação de Marrocos, que a Guiné era
habitada.
Foi o Infante D. Henrique quem, desprezando as
trevas lendárias, se dedicou a estudar a maneira de
dominar essas dificuldades meteorológicas. Para o que,
retirado em meditação em Sagres, consultou livros e
m8ipas antigos e ouviu não s6 os doutores judeus e

320 A~RICA [ cAP.
mouros que havia na Península Ibérica, como também
outros homens práticos dos navios e do mar.
Esta intervenção portuguesa fora pois iniciada no
princípio do século xv, quando o Infante -de quem
alguns historiadores se limitam a apresentar o inte-
ressante retrato- se propôs criar, ou «inventar», a
navegação de alto mar, diferente da navegação de cabo-
tagem, usada no Mediterrâneo e nas viagens costeiras
para as Canárias, como para a Biscaia e Flandres.
Ah! Se Venezianos, Catalães ou Genoveses conhe-
cessem tão bem como as especiarias, essa Arte de
Nave~r fora de vistas da te'r ra, esses hábeis nave-
gadores não teriam esperado nem por Bartolomeu Dias
nem por Colombo : eles teriam, antes, ido ao oceano
Indico e à América. Ma s não o poderiam fazer nas
suas galés do Mediterrâneo: teriam de se confiar a
navios só de vela!
Que concepção ideal teria levado o Infante D. Hen-
rique a tal criação?
Documentos e raciocínios levam-nos a admitir que
o moveram quatro factores principais:
-Desejo de propag·a r a fé cristã, «estender a
Cristandade»;
-Curiosidade de csaber de outras terras» ;
-Extensão do domínio português em Marrocos;
- Desenvolvimento do comércio de Portugal apro-
veitando o Mar.
Para o último factor devem ter influído não só as
informações trazidas do Oriente pelo Infante D. Pedro,
como também o conselho dos negociantes judeus de
Lisboa conhecedores do opulento comércio com a
' 21
Jll, 1] OS PORTUG UESES N O DESCOBRIMENTO DA AMÉRICA 321
Guiné e com a India, e das suas dificuldades, por causa
da necessidade de recorrer a caravanas, a baldeações,
e a navegar o Mar Vermelho e o Mediterrâneo. O que
tudo se simplificaria com um caminho só por mar.
Enfim, o Infante contava também com a forte dispo-
sição que os Portugueses tinham para a árdua vida
do mar.
D. Henrique não foi induzido a buscar no Atlân-
tico ilhas novas- como os Açores- mas só caminhos
marítimos para a Guiné e, depois, para a India, acei-
tando a tradição, corrente, de que a África terminava
em latitude baixa, ao sul do equador. Não se pensava
então, pois, em ir às terras do Ocidente. Na continua-
ção daquele «plano», os Reis de Portugal só pensavam
na India; o próprio descobrimento do Brasil teve ainda
como causa final a busca de portos de escala para ir
à India.
Para poder realizar com segurança viagens à
Guiné, e costa de Mrica que ficava c além», o Infante
D. Henrique tinha de encontrar a solução do problema
de navegar no alto mar. Tratava-se de aproveitar pro-
cessos e barcos diferentes dos usados no Mediterrâneo,
cuja impotência para as viagens além das Oanárias
fora demonstrada pelo insucesso da tentativa- não
repetida pelos Genoveses- das galés dos Vivaldo, que,
em fins do século de 1200, partiram já em demanda
da India.
Impunha-se, pois, a necessidade de recorrer a
barcos práticos no alto mar, só à vela, navios de longo
curso, como hoje diríamos. A solução foi a caravela
portuguesa; depois veio a nau. Além disso, para, no
mar, os navios se não perderem, tinham de recorrer à
única coisa que lá se via, os astros. Para os observar
322 AMtRICA [cAP.
foi aligeirado o astrolábio, conhecido havia séculos, e
foram coligidas - talvez calculadas - as tábuas da
.posição no céu, a que se chamava regimentos, tanto
para a Estrela do Norte como para o Sol, pois bem se
sabia que a Polar deixaria de se poder ver logo que se
aproximassem do equador.
Era também essencial preparar cartas de marear, e,
a:ssim, surgiu a ideia dos portulanos quadrados, isto é,
divididos em graus de latitude e longitude iguais, em-
bora não fosse mi,s tério que, ao passo que a dimensão
do grau de 'latitude se conservava constante, a do
grau de longitude lia decrescendo do equador para os
pólos, visto a Terra ser esférica.
Vem aqui a propósito notar que o Regimento da
Estrela Polar não permitia só o conhecimento da altura,
ou latitude, mas também o da direcção para o norte
da Terra, ou verdadeiro, indicando assim o erro da agu-
lha, isto é, o ângulo que o seu norte fazia rcom o norte
verdadeiro -ou da carta-, erro esse que, no tempo
do Infa..nte, em Portugal, era de cerca de me'ia quarta
(seis graus) para nordeste. O conhecimento desse
erro da agu1ha era evidentemente essencial para
se poderem continuar a:s indicações da estimaçam
da rota, com a:s latitudes astronômicas, e figurar na
carta as terras e os caminhos navegados.
Reunidos todos esses elementos, fora enfim preciso
começar por realizar numerosas viagens de exploração
do alto mar, praticando a bordo dos pequenos navios
com o astrolábio, e reconhecendo-se que, no oce'a.no
Atlântico, dominavam ao largo ventos que permitiam
viagens em todos os sentidos e durante todo o ano.
Assim se chegou ao descobrimento dos ventos gerais
de leste - a que hoje chamamos alísios-, os quais,
III, I] os PORTUGUESES NO DESCOBRIMENTO DA AMt RICA
soprando nas latitudes baixas dentre norte e leste
permitiam a navegação directa para o sul, ao longo da'
costa de África, com vento e corrente favoráveis, e a
volta pelo largo, contornando essa região de ventos
contrários. Foi assim criada a rota indirecta, de volta
de África para Portugal, em arco pelo Atlântico Cen-
tral. Era chamada a Volta do Bargaço.
Como se vê, antes de se descobrirem terras foi
preciso descobrir o mar, faina mais dificil, que levou
anos. Assim ficava garantida a posSIÍ.bilidade de nave-
gar no chamado Mar Tenebroso, com a certeza de que
os navios, indo além do cabo Bojador e mesmo per-
dendo por muitos dias ·a terra de vista, sempre pode-
riam de lá voltar, até com a certeza de irem a Lisboa,
e não, sotaventeados, a Bagres. Colombo terá desco-
berto a América: mas, antes dele, os Portugueses
descobriram o oceano Atlântico!
•
A primeira indicação prática sobre viagens de alto
mar, em ·r esultado de tais investigações do Infante,
resulta da passagem das caravelas portuguesas pelo
arquipélago dos Açores, em 1431, três anos antes da
passagem além do Bojador.
O que tudo revela navegações de alto mar, as
quais sobrelevam a todas as que até então foram reali-
zadas por navegadores europeus, provando que, já em
1431, havia em Portugal um desenvolvimento da Arte
Náutica que permitia, com segurança, a navegação
mesmo nos mares tormentosos dos Açores.
 AMÉRICA [cAP.
Foi apoiadas nessa nova Ciência Náutica que as
caravelas se lançaram resolutamente na exploração da
costa de Mrica para o sul das Canárias.
Assim, em 1434, um navio europeu, chefiad~ pelo
português Gil ffianes, passava além do cabo BoJador,
já com a certeza de de lá poder voltar a Portugal.
Colombo ainda nem nascera, mas havia já anos
que os Portugueses atravessavam o m_ar largo,. ~m
receio dos Feus buracos ... Tal navegaçao fora, Indis-
cutivelmente, obra de um português genial, o lnfan~e
D. Henrique, a quem lJatino Coelho chamou « O pn-
meiro inventor da navegação no oceano».
Vieram a segW.r outras dificuldades, naturalment_e
mais financeiras que náuticas. Por isso o reconheci-
mento dra costa de Mrica só se foi continuando len-
tamente mas com segurança.
Assim, só em 1445 se passou o cabo Verde, che-
gando-se à Guiné. Em 1470 cortava-se. o equador. Em
1484 Diogo Cão descobriu um grande ri~ -co~o ou~
não havia na Europa-, o Zaire, e subira-o até às P.I'!l-
meiras cataratas. Enfim, em 1487, Bartolo~eu Dias
passava além do extremo sudoeste da Mrica - o
cabo de Boa Esperança, hoje chamado The Cape -,
e saindo do Atlântico, navegava em outro oceano
n~vo 0 Mar da lndia. Assim, o caminho maritimo da
lnd~, em que o Infante acreditava, tornara-se franco.
Tinham os Portugueses apagado de vez as lendas
do .M ar Tenebroso, e já eram conhecidos os seus mons:
tros _ os ventos dominantes - , os quai~ eram at.?
aproveitados nas viagens largas, tan:o. à Ida como a
volta a Portugal. No regresso da Gume contornava-~
a. região do alisado de nordeste, e passa~-sc: a meio
do Atlântico pelo Mar do Sargaço, que Já figura na
III, 1] os PORTUGUESES NO DESCOBRIMENTO DA AMÉRICA
carta de Bianco, de 1436, a primeira carta em que os
Açores, depois da viagem de 1431, aparecem de facto
conhecidos, pois estão aiTUmados ao noroeste da
Madeira.
Como se vê- apesar das fantasias de certos auto-
res colombianos-, passado o Bojador em 1434, já não
era mais preciso esperar por Colombo para devassar o
Mar Tenebroso, descobrindo os ventos alísios, e mos-
trando ao Mundo que cum navio podia avançar pelo
oceano dentro sem perigo de cair em um buraco».
Esta navegação de alto mar, praticada exclusiva-
mente pelos mareantes portugueses, ficou constituindo
uma espécie de monopólio Atlântico, porque das rotas
oceânicas - como até dos processos usados pelos pilo-
tos, alguns dos quais, em 1537, o próprio Pedro Nunes
prova ignorar - se fama segredo. Espalhava-se a
notícia falsa de que a volta da Guiné e do Atlântico
Sul só era possível às caravelas portuguesas, porque
elas, com os seus cascos finos e os seus panos latinos,
faziam navegação contra ventos contrários, como o
não podiam fazer as naus de velaa redondas, ou qua-
drangulares.
Esse monopólio só foi quebrado quando Colombo,
em 1492, atingiu as Antilhas. Ora se ele não tivesse
praticado alguns anos em Portugal e navegando com
os Portugueses, Colombo nunca se teria atrevido a
atravessar o Atlântico, como o não atravessavam
outros homens do mar que -sem dúvida! -havia no
Mediterrâneo, tanto ou mais arrojados e hábeis que
Colombo, o qural, ao chegar a Lisboa, era apenas, como
eles, marinheiro de galé. Ao sair para Espanha já era
piloto português ...

AMÉRICA (cAP.
• e, enfim, o prestigio de piloto de alto mar, que Jevou
Como se viu os descobrimentos maritimos portu-
gueses exigiram 'uma demora;da preparação, tanto em
terra como no mar. Tem absoluta .r azão Pedro Nunes
quando, em 1537, desenvolve esta ideia, afirmando que
a·s navegações do «Ramo de Portugal» foram cmais
maravilhosas» que as de cnenhuma outra gente do
Mundo», e que os descobrimentos de novas ilhas, terras,
mares, povos, estrelas, baixos, cou sequer algum
penedo», não ·se fizeram indo a acertar; partiam os
nossos mareantes cmui ensinados e providos de estro-
mentos e regras de astrologia e geometria» como de
cartas, com as alturas e longitudes correctas, apesar
de os graus dos paralelos parecerem lá iguais aos da
cequinocial~.
Não é pois justo que toda a glória dos Descobri-
mentos Atlânticos recaia em quem, como Colombo, só
chegou atrasado, limitando-se a aproveitar aquilo que
outros trabalhosamente tinham adquirido.
E, contudo, é corrente escrever-se que Colombo
descobriu a América apenas confiado em .r ecursos
cosmográficos, de que os outros não dispunham. Será
em parte verdade, mas esquece-se acentuar que tais
recursos - entre os quais avulta o conhecimento dos
ventos gerais do Atlântico -foram resultado não da
experiência de m:areantes genoveses, como tão-pouco
foram criados- ou adivinhados. Foram sagazmente
apreendidos por Colombo na dezena de anos em que
conviveu com os Portugueses. :m preciso repeti-lo.
E foi com os mesmos mareantes que Colombo
adquiriu a febre de descobrir novas terras, a crença
III, I] os PORTUGUESES NO DESCOBRIMENTO DA AMÉRICA
firme na existência das terras no Atlântico Ocidental,
os Reis de Espanha a entregar-lhe o comando de uma
esquadra. Tê-lo-iam feito se ele fosse um simples
mareante genovês? Não! Nem Colombo se aproveitou,
sequer, de todos os recursos técnicos de que dispunham
os Portugueses. Não há noticia de ele, no mar ou em
terra, ter observado o Sol_, não tendo passado para o
sul do equador. E quanto à famosa descoberta da irre-
gularidade na variação da agulha- que os seus admi-
radores lhe atribuíam -, é erro supor-se que, apesar de
a palavra noroestear ser portuguesa e não genovesa,
os Portugueses tivessem navegado meio século no
Atlântico, e até além do Cabo, sempre acreditando que
o norte da agulha diferia do norte verdadeiro em toda
a parte, a mesma meia dezena de graus que' acusava
em Portugal. De resto, dos diários até se conclui que
não foi Colombo, mas os novatos pilotos espanhóis,
quem, a oeste dos Açores, notou ta:l diferença, logo
na viagem de 1492. Contudo, Colombo continuou
aproado a oeste da agulha - como se ela estivesse
certa -e, por isso, nas Antilhas declara estar na
mesma altura de Castela. Ora aquele noroestear da
agulha, que ele desprezara, levara-o à latitude do tró-
pico. Assim o repetem cartas da época. Colombo não
reparara que tinha descaído duzentas léguas para sul.
Trata-se de um caso idêntico à singradura das
caravelas, que se afirma ter sido Colombo o único que
sabia apreciá-la, reduzindo-a, para não alarmar os com-
panheiros ... Chegam a atribuir-lhe a descoberta de
cnouvelles étoiles~!
 AMÉRICA [ CAP.
• ~ativo de negação, porque há indicação de outras
1!: indiscutível que foi a ocupação dos Açores que
revelou, não só a possibilidade de navegação pelo
Atlântico Central, como a existência das terras de
oeste donde lá i1a m dar detritos vegetais desconhe-
cidos' na Europa. E a navegação para essas terras apre-
sentava-se mais simples que a viagem de ida e volta
à Guiné.
Várias foram as propostas conhecidas de parti-
culares, para lá irem, todas menos onerosas que a de
Colombo -que até pedia navios-, e, contudo, foram
sempre desprezadas pelos Reis. Mas ninguém poderá
duvidar de que não faltavam em Portugal mareantes
capazes de fazer aquilo mesmo que Colombo propunha.
Os Reis de Portugal limitaram-se sempre à con-
cessão de autorizações platônicas. E é sabido que ao
próprio Gaspar Corte-Real, depois de ter de facto
estado nessas terras do Ocidente, tão-pouco D. Manuel,
em 1501, quis auxiliar materialmente, e isto apesar de
a Terra Nova ser então considerada- nos mapas, pelo
menos - como ao abrigo dos limites impostos pelo
Tratado de Tordesilhas.
1!: certo que os Reis de Portugal nunca viram nas
terras ocidentais, apesar de mais próximas de Lisboa,
vantagem comparável àquela que se esperava do
co~ércio da Guiné e da lndia. E, de faoto, até o pró-
prio descobrimento e ocupação do Brasil só tiveram por
fim, de inicio, garantir bases para evitar às naus da
lndia as escalas na Ãfrica do Sul.
Não deixa, pois, de ser natural supor-se que algu-
mas viagens ao Ocidente tivessem sido feitas em fins
do ·século xv. O ignorarem-se os resultados não é
III, 1] os PORTUGUESES NO DESCOBRIMENTO DA AMÉRICA
329
VIage~ que foram realizadas, as quais se conservaram
o m~s secretas possível: tais foram as real4za.das ao
Brasil logo a seguir a 1500, das quais só conhecemos
d~talhes pelo que conta Vespúcio nas suas cartas. Da
VIagem de volta da nau dos mantimentos que Cabral
mandou regressar a Portugal, talvez reconhecendo
·c osta para norte, nada tão-pouco se sabe.
Também, da falta de documentos sobre a viagem
de Bartolomeu Dias, além do Cabo em 1487 há razões
par~ se ~itir que se quis conse~ar secreta tal rota.
Seria :ntao essa a caravela traiçoeira de D. João II?
Ela nao foi: certo, ao Ocidente, mas foi investigar 0
mesmo cammho da índia em que falava Co.Jombo. De
facto, da combinação da viagem de Bartolomeu Dias
- que já na costa SE da Ãfrica encontrou fortes cor-
:entes de água quente, vindas do equador- com as
Informações enviadas por Pero da Covilhã _ 0 qual
esteve em Sojala- desligados só por uma solução de
u.mas 300 léguas, resultou para D. João II a convicção
firme de que era por lá o caminho prático da tndia.
Essas duas viagens secretas condenavam o esquema de
Colombo, o qual, mesmo que o mar estivesse livre para
oeste, até à índia, representava uma navegação de
quatro .milhares de léguas, sem porto conhecido para
ab~stecimento. E D. João II tinha razão, porque, mesmo
hoJ~, com o canal de Panamá aberto, o caminho da
índia, pe.lo ocidente, seria muito longo e trabalhoso
para navios de vel1a como os do século xv.
_E~im, qua~do, em 1492, Colombo largou das
Cananas para orndente, o caminho marítimo da fndia
estava pràticamente aberto havi·a cinco anos Por isso
mesmo, depois de Colombo ter descoberto as. Antilha8,
--~
 AMÉRICA [CAP.
330
o critério português não mudou. SOmente D. João ll
r
teve possivelmente receio de que Colombo tivesse, no
, '
Atlântico Sul, tomado posse, para Espanha, de portos
na carreira da lndia, pelo Cabo. Mas, depois da entre-
vista com o grande navegador- à sua passagem em
Lisboa, em princípios de 1493-, tais suspeitas ter-ee-
-iam desvanecido : Colombo não teria ocultado a
D. Joã:o n a ·s ua convicção- que se lê no seu Diário
-de ter estado na mesma altura de Castela e de,
portanto, não ter cortado o equador. Como se sabe, ele,
nas suas viagens, nunca esteve fora da vista da Estrela
Polar.
De resto no ano seguinte, ao insistir em afastar
para oeste, ~ mais possível, os limites do hemisfé~o
espanhol de Tordesilhas, D. João ll provava que nao
havia o menor receio de que essa metade da Terra
fosse ao ·s eu ocidente a quase quatro mil léguas de
Lisboa,' comprometer a' posse da co'biçada lndia, donde
vinham as especiarias.
Também é de elementar probabilidade conjectu-
rar que, entre 1487, em que Bartolomeu Dias foi ao
oceano Indico, sem se afastar muito da Africa, e o
ano de 1494, em que foi assinado o Tratado, D. João ll
se tivesse certificado da existência das terras ociden-
tais e da ·s ua pouca utilidade. Teri!a sido esse o fim da
viagem da caravela secreta de Júlio Verne?
• fácil identificação pela falta de pontos característicos,
Não pode restar dúvida de que, aos Reis de Por-
tugal, absorvidos pela ideia inicial de abrir um ~~o
por mar até à lndia, a exploração das terras oCidentais
III, I] os PO RTUGUESES NO D ESCOBRIMENTO DA AMÉRICA 33I
os não poderia interessar. Só tarde houve conheci-
mento do ouro do Peru e da prata do México.
Mas não quer isto dizer que, em Portugal, se duvi-
dasse dia sua existência. E tanto assim é que entre
outras, há noticias claras das explorações às terras
ocidentais, projectadas por aventureiros. Entre estas
avultam as tentativas de Diogo de Teive -1452 -, a
de Fernão Teles -1475- e a de Dulmo -1486. Igno-
ramos completamente os resultados colhidos: teriam
reconhecido que as terras não eram aproveitáveis, ou
teriam desistido? Mas não é de admirar que, sendo as
viagens por custeio particular, eles conservassem em
segredo os resultados.
Essa mesma crença na existência das terras oci-
dentais levou um veneziano -João Caboto- a uma
idêntica tentativa de chegar à ilha das Sete Cidades.
Partido de Brístol, em Maio de 1497, com um pequeno
navio só de 18 tripulantes, Caboto começou por rumar
a norte, encontrando ge,los flutuantes; desceu depois
a climas temperados, no Verão, costeando 300 léguas
de terras. De volta a Inglaterra, organizou em 1498
outra expedição com cinco navios, dos quais nada se
sabe. Mas os resultados não foram interessantes, por-
que as viagens de Caboto não tiveram sequência, como
a não tiveram algumas expedições portuguesas a oeste.
Ignora-se, até, onde estiveram; sõmente no mapa de
La Cosa- datado de 1500 -aparece em latitude alta
uma costa, corrida de leste a oeste, a qual não é de
como a ilha da Terra Nova e as penínsulas Nova Escó-
cia e Florida. A costa traz a indicação cMar desco-
berto por ingleses:.. Trata-se apenas de informações
vagas. E aquelas informações que, muito posterior-
r---
332 AMÉRICA [ cAP.
mente o filho Sebastião Caboto prestou são conside-
radas', pelos criücos, como destituídas de fundamento.
Era um charlatão, afirmou Harrisse.
Enfim, a par da carta de La Cosa, e datada de
Maio de 1500, existe uma carta de doaçam, pela qual
D. Manuel concede a Gaspar cCorterreal» jurisdição
sobre as ilhas ou terra firme que, pela cobra que quer
ainda agora comthenvar», novamente achar. A doação
apoia-se, pois, em trabalhos de exploração anteriores
à de 1500 na qual Corte-Real teria descoberto terras
e ilhas, ~resumivelmente supostas a leste do Me~­
diano-raya de Tordesilhas, irs to é, adentro do her~ns­
fério português. Com este alvitre concordam Harr1sse
e Larsen.
Combinando estas indicações com aquelas que
resultam da carta portuguesa - o conhecido planis-
fério de Cantino- desenhada em Lisboa em 1502, na
qual pela primeira vez aparecem, com nomes ~rtu­
gueses, detalhes importantes da terra norte-~eriCana,
como a Groenlândia a Terra Nova e a Florida, ~somos
levados a concluir ~ue essas terras, só 'COnhecidas em
Lisboa, foram exploradas por navios portugueses
antes de 1500.
Mas nem por isso é lícito desconhecer que, entre
os pioneiros do descobrimento da América do Norte,
os Portugueses figuram e avultam concretamente, por
serem aqueles que de lá trouxeram as primeiras infor-
maçõés geográficas regulares. Eles passaram ao largo,
por fora de Long Island; e, se não entraram no can~l e
não descobriram e ocuparam a ilha de Manhatan, Isso
fm devido a essa terra - aliás fora da zona atlântica
portuguesa - não ter nessa época valor total superior
a uma onça de ouro. Contudo, a entrada para o grande
III, I] os PORTUGUESES NO D ESCOBRIMENTO DA AMÉ RICA 333
porto moderno já aparece indicada, em 1502, na carta
de Cantino, à qual mais própriamente devemos chamar
a carta de navegar portuguesa.
Em resumo:
:1!: certo que os primeiros documentos decisivos
sobre a descoberta da América são os que se referem
a Colombo. Nenhuma outra data pode poi~s substituir
a de 12 de Outubro de 1492.
Mas é erro atribuir a Colombo um descobrimento,
por assim dizer, ~ntegral, mesmo quando se queira pôr
de parte - ao contrário do que se faz com os Açores-
as indicações de ilhas ocidentai8, como a Antília,
nos mapas do século XIV. Porque está provado que
Colombo não foi o descobridor absoluto, a cem por
cento, como agom. se diz. Outros a:té, muito possi-
velmente, 'l á estiveram, no Ocidente, antes dele. E
quando Colombo concebeu a sua viagem wspunha dos
seguintes elementos fundamentais, que não criou:
-Mar Tenebroso aberto pelos Portugueses, que
nos seus navios iam a meio do Atlântico havia
muitos anos.
-Certeza absoluta da existência de terra a oeste
dos Açores.
-Confiança em uma Arte de Navegar no alto
mar, que não era praticada nem pelos Genoveses nem
pelos Espanhóis, mars só em Portugal.
-Certeza de poder atravessar o Atlântico à vela,
indo pelas latitudes baixas, a favor dos ventos conhe-
cidos, sem receio de que esses ventos ~mpedissem a
334 AMÉRlCA [ cAP.
volta~ que seria feita pelas latitudes altas, à mercê
de outros ventos conhecidos, favoráveis.
- ::IDstímulo na imitação dos descobrimentos marí-
timos dos Portugueses, buscando, como eles, caminho
da lndia.
-Enfim, prestígio de ter navegado com os Por-
tugueses no Mar ex-Tenebroso, o qual lhe dava auto-
ridade para dirigir uma exploração do Atlântico.
Semelhante preparação, no fim do século XV, só
existia em Portugal, como o demonstram as viagens
de descobrimento do caminho para a verdadeira lndia,
de Bartolomeu Dias e de Vasco da Gama, as quais se
não podem comparar, nem em trabalhos de alto mar
nem em arrojo, com a fácil travessia atlântica de
Colombo, em cinco semanas.
Foi assim que Colombo -fosse ou não genovês,
mas sendo português pela sua Arte Náutica, fruto dos
trabalhos que o Infante D. Henrique promoveu-
Colombo, iamos dizendo, pôde chegar às Antilhas, nome
que simbdliza as antigas ilhas ao ocidente do Atlântico,
povoadas de índios, outro símbolo tirado do nome dado
aos habitantes da 1ndia. Se Colombo, em 1498, não
tivesse ido à América Continental, ela não teria tardado
a ser descoberta por outros mareantes, dispondo dos
mesmos meios, os Portugueses. De resto, nos seus
escritos, jamais Colombo desdenhou dos seus colegas,
os na'Vegadores de Portugal: apesar da sua fama de
«falador:., nunca afirmou ser ele o descobridor da
navegação de alto mar ou do8 ventos gerais.
Colombo jamais viu terra da actual América do
Norte. Por isso a intervenção portuguesa no descobri-
mento dessa parte do continente ocidental merece uma
III, I] os PORTUGUESES NO DESCOBRIMENTO DA AMÉRICA
335
~ferência mais sugestiva que a simples palavra Corte-
- e~l que, no Labrador, figura no mapa parietal da
Natwnal Geographical Society, de Washington.
•
O descobrimento da América resultou incontes-
tAvelmente da iniciativa do Infante D Benn'q d
des b . . ue, o
co n~ento dos Açores, e da abertura do alto
aos naVIos rt . mar
d . po ugueses, CUJas rotas de volta da costa
e Ãfnca passavam pelo Atlântico Central na Volt do
Sargaço. • a
• ~do .isto é tão dntegralmente português como o
e a pn~eira carta regular da América do Norte - o
,pZa_.nt8[érw Oantino -onde se identifica a actual costa
atlantica dos Estados Unidos Há alem' d' "'
' d' - ' ' ISSO, LOrtes
In Icaçoes da passagem de navegadores portugueses
antes de Colombo, pelo menos, pela própria Améri~
do Noz:e. Os aventureiros que empreenderam tais via-
gens. n~o puderam delas tirar o resultado material·
eles Imitaram o Rei, reservando as narrações das sua~
av~n~as, e, por isso, delas não há documentos. Con-
tudo, amda mesmo que os marea.ntes portugu -
t' eses nao
Ivessem passado pela América antes de 1492
d~ lhes ser fácil lá ir, em qualquer dos ca~:petaisar
VIa·g ens
. ,só nao
- ti veram sequência por ter aparecido
' s
no _üz:ente, um campo exclusivo de operações o quaÍ
mais Interessava os Reis de Portugal. ,
•
. O .des~brimento de terras ao ocidente do Atlân-
tico foi pois uma sequência dos trabalhos portugueses,
 AMÉ RI C A [cAP.
III, u] CRISTOVÃO COLOMBO
para descobrimento do caminho marítimo para Guiné 337
e índia. O golpe feliz de Colombo, em 1492, não fora o n- ORIBTOVAO OOLOMBO
primeiro, nem o mais largo, dos passos importantes
que deram aos Europeus um campo de acção ultrama- 1 . «Para la execution de la Empresa de las
~las no me aprovecho razon, ni matemat.
rina, no total -África, América, Oceânia -oito vezes n~ mapa mundi.:. tca
mais extenso que a própria Europa. E o seu sonho de
D . Ch:RISTOBAL CoLON (1501)
abertura de um caminho marítimo para a Asia, nem
era original, nem Colombo o real~zou. Realizaram-no, «Si Christophe Col~b eut éti b
graphe, il n'aurait pas découvert l'Aon c~smo­
pelo oriente, Vasco da Gama, em 1498, e, pelo ocidente, menque.:.
Fernão de Magalhães em 1520. Ambos portugueses, os VICTOR HUGO
«eternos espoliados:. das glórias dos descobrimentos «Cristobal Colon en el arte de
ed · · navegar
maritimos. Certo, a viagem de Colombo vem dando «te . w, atn alguna duda, a todos cuantos m
8U twmpo en el mundo havia.>
mais brado; filas os seus fanáticos ignoram que não foi
Colombo quem abriu as portas do Mar Tenebroso para LAs CASAS
os três oceanos, e que a sua viagem às Antilhas foi
apenas um quadro excitante da teatral epopeia que
foram os descobrimentos marítimos. Os seus realiza- b :Assim tem sid~ românticamente explicado o des-
dores, Dias, Colombo, Gama, Corte-Real, Cabral, Maga- :a:e~cul:lombtan~ da ~érica, realizado há
lhães, só completaram a concepção Henriquina, dis- Colo , e meto. Crtou-se uma denda de
pondo dos meios que o Infante lhes criara. a Po=\ clí.~mbre sobrehumano:., que teria chegado
ga pe o mar, a nado, e que calculara cientifi-
Não será pois por cegueira nacionalista, nem por camente a largura do Atr ti
fundam an co, lenda que não tem
fantasia literária, que poderemos repetir- com o sau- ento.
doso hd.rs toriador Lopes de Mendonça- que o «desco- rai:ar~ue para atravessar o Atlântico de praia a
brimento da terra ocidental deriva em absoluto da ~ . . nao era necessária supercosmografia. Bastou
influência portuguesa, tendo o seu início no pensamento mststAr no rumo oeste da agulha durante po .
genial do Infante D. Henrique:.. de um mês; e isto tanto podia ser feito por uco mats
como po bo um mau
te r um « n cosmographe». Sabia-se que havia
NOTA - A rota de 1.1,92, de Colombo, ·c onstitui com rras a oeste, mas desconhecia-se a
exacta. sua posição
as de Vasco da Gama e Magalhães, uma trindade bem
portuguesa, de natural aproximação no planisfério das Tão-pouco a História Crítica pode atribuir o
grandes viagens portuguesas. :US:, d~ ~bo
e
à sua santidade, por ele ser-
gues - um embaixador divino. Se
n
 (cAP. III, n] CRISTÓVÃO COLOMBO 339
A~RICA

esab'd
cinco léguas da CI·da de d e Lisboa.
. Colombo tê-lo-ia
assim fosse, como poderia ele confundir a América com I o por uma carta e um ma d T
a China'? Ou tudo teria sido audácia 1 de outros enviados ao rei D Afo~:O e oscanelli, cópia
Não. O descobrimento da América não foi milagre aquela possibilidade Ora
ram, perderam-se e. .
ta.
d V, onde se revelava
Is- ocu~entos, se existi-
nem tão-pouco acaso. Foi um :acontecimento humano,
realizado por um sagaz navegador, favorecido por uma dedução teórica, a q~a~~~a!iv~:; seria m~is ~ue uma
anterior preparação técnica, apoiado por um governo, veitada pelos h, b . e base, tena sido a pro-
a eis navegadores italianos
e exaltado em vista das maravilhosas consequências ela não seria segredo (1). , para quem
que teve para a Humanidade. A verdade
O estudo técnico das viagens de Colombo prova cabilidade de até que Colombo nao
- adivinhou
. a prati-
ravessar o mar para oeste com a cer-
que ele não criou os recursos de que se serviu, e que
é delirio supor que, em 1492, ainda os mareantes por-
tugueses receavam ir ao alto mar. Embora Charcot
(1) Há poucos anos foi
chamasse a Colombo «le vainqueur de la Mer Téné- século xv, original dos ma encontrado um planisfério do
breuse», é eerto que, aind·a antes de 1492, já estavam nelli. Neste mapa a distân~;: ddo t::a!o florentino Paolo Tosca-
1~ graus de longitude. esta d~st~s .a costa da China anda por
esquecidas as Lendas do Mar Tenebroso. através do Atlântico s'er, d'f nela, mas contada pelo poente,
. , a a 1 erença par 360
- mais de dez mil milhas - ' pr6XIma . daa verdade
' ou 220 ~graus
• graus. N ota-se mais que 0 Jap- . , 1,
costa da China
, , que " 232
ao Ja a está arrumado, perto da
O exagero dos admiradores de Colombo levou-os
seria Ora, segundo
de «26 espac'a carta de T ascanelh,. a referida distância
a afirmar que ele, dotado de «audaciosa imaginação», Cypango 1500 milha
lOS > -OU 6500
te d
'Ih ·
. mi as -, ficando a ilha
depois de, em confirmação da esfericidade da Terra, s an s a Chma D d h,
que o mapa autêntico agora d be . on e a a concluir
ter efectuado a medição do grau meridiano, descobriu .. , escortoéi til
mdlcações da carta atribuída a ' . ncompa ve com as
os ventos alisados, a declinação da agulha, o Mar de cida cópia, faltando-lhe o ma Toscanelh,. da qual s6 é conhe-
refere. Este facto f' pa «per navigare> a que ela Sei
Sargaço, a corrente do Golfo e, até, «novas estrelas».
não escreveu a. Colombo>. A cart t . ~a~ • e que cToscanelli
con 1rma a versão Vi t d
Outros, pretendendo simplificar o descobrimento segundo informações colhidas da Benha ~Ido mventada pelo irmão,
da América, mas excluindo a intervenção portuguesa, e e a1m com f' d .
com a responsabilidade d , , o Im e cobrir,
qão-lhe explicações inverosímed.s: tal seda a informa- cepção colombiana sob e um geografo co.nhecido, o erro da con-
ção, particular a Colombo, de um piloto misterioso, ~tlântico. Teria sido co: i:ênii :u;: distância à Ásia, pelo
que lá teria ido, corrido por um inédito temporal de mventou o seu tendencl·oso pl . f' . que Bartolomeu Colombo
ams er10 o qu 1 -
tad o de expedições marítimas d ' , a, nao sendo resul-
levante, ou a de um geógrafo florentino-Toscanelli-, Behaim, Martellus e La C . , ~scorda dos mapas conhecidos, de
que, em teoria, escrevera que o caminho «brevissi- o Brasil. Não foi, pois, por oess~~ ~e alonga a !-sia,. ligando-a com
mo» da tndia não era pela Guiné, mas pelo ocidente, de Toscanelli, que Colombo d f atopa, com~ nao fol pelo autêntico
e ac se gu1ou.
por onde a China distaria apenas mil 's eiscentas e vinte
 ~RICA
[CAP.
340
teza de poder lá voltar, à vela, e com navios como aqueles
que preparou, em que predominavam as velas quadran-
gulares, isto é, menos próprios para ventos escassos,
porque não se podiam chegar tanto ao vento como as
caravelas latinas. Colombo, tendo navegado com os
Portugueses na viagem da Guiné, à volta reco~ecera
quais os ventos que dominam a meio do Atlântico: de
'l este nas latitudes baixas, de oeste ao norte. Já se
. portanto que para ter sempre vento favorável,
sabla, ' ' .d te
estava naturalmente indicado navegar para o oc~ en .
pelo sul e voltar pelos Açores. Assim fez. E ·a sstm fot
descobr~ a América, sem necessidade de ser, como o
considera Las Casas, o supernavegador. Formara-se
cen Portugab, escreveu Blasco Ibaiiez.
Mas erram também aqueles que julgam que
Colombo descobriu a América por acaso, a caminho da
tndia falhando assim a rota e sendo, portanto, mau
ccos~ographe » . Colombo não tinha razões para :supor
que a travessia da Europa para a Asia fosse vtage~
tão simples. Os cosm6grafos do seu U:mpo - CUJa
opinião geral está traduzida no conhectdo globo. de
Behaim --consideravam que entre Portugal. e~ ~hma,
pelo ocidente, havia no Atlântico uma dtstâncta de
1800 léguas, 128 graus no Globo. Mas, entre os Açores
e a costa asiática, haveria ilhas para escala, ~o era a
grande ilha Oypango- ou Japão~ , ~ue ficana a 1400
léguas de Portugat Colombo nao dts_Punha de expe-
riência que lhe permitisse alterar ta1s detalhes geo-
gráficos. .
Assim, Colombo, em 1492, tendo descoberto tlh~s
s6 a um milhar de léguas da costa de Africa, e nao
encontrando lá a opulência e a civilização que Marco
Polo atribuíra ao Japão- onde o palácio real seria
III, n] CRISTOVÃO COLOMBO
341
pavimentado com ladrilhos de ouro maciço de cdous
dedos» cem grosso:. - , Colombo não podia iludir-se:
esta.~a n~ ilh·a s de escala, e ainda não tinha atíngido
a Asta, C1tada por Marco Polo. Nunca mais a buscou.
Apesar de Colombo sempre ter afirmado que che-
ga~ àa ln:!ias_· não podemos esquecer que, de prin-
cipio, ele nao tinha elementos práticos para ter opinião
náutica diferente da dos Portugueses-de quem nnnca,
nos seus escr~tos, desdenhou. Não poderia, pois, supor
que a travessia para a Ãsia, pelo ocidente, fosse mais
fácil que a outra, aquela que os Portugueses buscavam
pelo sul da Ãfrica, a qual, ao princípio, se julgara
estender-se poucos graus para além do equador.
A verdade é que, possuído da sua ideia ocidental
Colombo apresentou ao Rei de Portugal e depois ·ao~
de Espanha, projectos de viagem. Mas ign~ramos quais
as bases, náuticas ou outras, com que poderia apoiar
as suas propostas, como ignoramos se elas seriam,
segundo alguns julgam, para cir ao Oriente pelo Oci-
dente:..
Se se apoiasse em alguns mapas da época como
aquele atribuído a Toscanelli, já citado, e que tlvesse
sido antes enviado ao Rei de Portugal, esta anterior
informação não estaria cá esquecida, e o Rei teria logo
posto de parte uma análoga proposta de Colombo.
Do~de se conclui, como mais provável, que s6 se tra-
taria de uma viagem de exploração ocidental, anâloga
àquela que Dulmo projectou em 1486 sem pedir como
Colombo, uma esquadra, ou honras d~ vice-rei. '
Para tais viagens ao Ocidente, se elas interessas-
sem D. João ll mais que a da lndia pela África, sabe-
mos que o Rei dispunha de mareantes conhecidos,
como Diogo Cão, Bartolomeu Dias' Pero Dalanquer,
 III, o] CRISTÓVÃO COLOMBO 343
(CAP.
AJ,{ÉR!CA

342 . à argumentos fariam sorrir ma.reantes práticos como

upor infenor Colombo. A verdade é que os mapas da época, como
A • não há razão para se s . . s
cuja •competencia . 1 tes nem havl'a receio os de Martellus, Behaim ou Toscanelli, arrumavam a
de Colombo. Não faltavam tnpu an
E tanto que, em
1487 eles contor-
, costa da China a mais de dois milhares de léguas de
de se ir ao alto mar. o oceano Indico. Mas Portugal, ignorando-se se haveria terras de permeio.
naram a Africa e passara~!:~es do Atlântico Norte Além disso, Colombo não dispunha de ·a rgumentos iné-
é sabido que as nossas exp . ç 6 foram objecto de
ditos para provar que a Terra era redonda e de exíguas
-como as dos Corte-Rerus;:-~ a particulares deci- dimensões, como não podia alegar experiência de nave-
co ncessão régia quando era . ei sta Eles não falavam
à própria cu · l' gação além do Mar de Sargaço- onde passara (em
dA

didos a empreen e- as 1 à Asia, enfim. E,.~ .a 1483 ?) no regresso da Guiné- da qual se concluísse
em ir à China, a eypango, foi considerado mutil. que havia passagem livre, ocidental, para a Ásia. E a
foram o que lá encontrar: tanto em Portugal como verdade é que a não havia.
As propostas de Coloro ' sido submetidas a Dos . escritos deixados por Colombo não se pode
anha ·
tenam- conta-se - de compreender
em Esp ' incapazes deduzir quais as bases .novas em que se apoiava. Seria
cJuntas de Doutores»,
um visionário sincero? Ele nunca se referiu concreta-
Colombo. ·untas uns, por fana· ' mente, nem às infovmações de pilotos, nem a. mapas
Entre os membros .dess~ Jredondeza da Terra e como o de Toscanelli, nem às correntes, que traziam
. ·
tismo re1iglOso, duvidanam
, d a
Outros, . do-a, J·ul-
aceitan cmaderos» e ccafias» aos Açores. Só declarou não se
da existência de antipo as.
. h para o oci
'dente seria a descer,
b' ter aproveitado de «matemática ni mapamundos::. .
gariam que o camm o . un·possível aos navios su i- Podemos contudo deduzir que, pela sua convivência de
se tornaria . e do
e que, à vo lta' Estes esqueciam qu ' uma dezena de anos com Portugueses- com quem
rem outra vez para a ~urop~~zidos por ventos e cor- navegara e para quem desenhara cartas de navegar,
Ocidente, vinham detrl~~s 'lmente também de lá pode- consultando cDiários»-Colombo teria, provàvelmente,
rente e que, portanto, acl to J'á era sabido que os ideias práticas idênticas às dos mareantes portugueses,
·os Deres , e
riam voltar os navt . sul do equador e qu como era a de atravessar para as terras ocidentais,
vam para o · ti
muito ao longe do Atlan ~·
A

Portugueses navega não indianas, ideia antiga portuguesa, pois já em 1452

de lá voltavam, passand~· Ora na verdade, o m~s Teive buscara a ilha Antília, ou a das Sete Cidades.
sem necessidade de s~ ~r. con~luir que o Atlân~CO Além disso, as navegações portuguesas em lati-
natural era, ao co~trarlO, visto que as águas corrlam tude provavam, como se sabe, que a volta da Terra,
Ocidental ficava mals i:to~té haveria quem sup~esse pelo equador, passava de seis milhares de léguas, tendo
de lá para cá ... Enf. ' b' o onde os navlOs se o grau entre 17 e 18 léguas.
istla um a lSID
que, ao P?ente, ex do Atlântico não! . Por estas razões, •se Colombo ·a presentou a
precipitariam, e as águas razões menos puens par.a . D. João n projecto para se ir à lndia, pelo ocidente,
Certo, há que prsfocura~vel das juntas, porque taiS
explicai o parecer de avor
344 AMÉRICA [cAP.
tal proposta asiática não poderia merecer ao Rei maior
atenção que aquelas análogas que, por documentos,
sabemos terem-lhe sido sugeridas em 1493 por um
doutor alemão -Monetário - a instâncias de Behaim,
as quais foram desprezadas.
Nada tendo obtido de D. João II- e até, segundo
alguns, tendo sido atraiçoado por certa cperfidie
royale» - , Colombo partiu para Espanha, onde tenaz-
mente insistiu junto dos Reis Católicos, solicitando
recursos - cdinero, buques y hombres:. - que em
Portugal lhe tinham sido negados.
Submetido a exame dos cientistas espanhóis o
projecto de Colombo, apoiado menos em factos do que
na leitura de livros conhecidos em Espanha, como o
de Marco Polo e o de Mandeville- que não ensi-
navam 'a navegar no mar- , as propostas de Colombo
não foram aprovadas. De resto ignoramos os seus
termos: teria Colombo algum segredo? Apoiar-se-ia
na opinião atribuida a Toscanelli, ou nos craisonne-
ments scientifiques:. que lhe atribui Charcot? Tratar-
-se-ia de ir à Ásia ou só à margem ocidental do
Atlântico? Só podemos concluir que Colombo sabia que
a lndia ficava muito longe, e que ele contaria com
escalas intermédias.
Foi sõmente em 1492, depois de vencidos os Mou-
ros na Península, mercê da colaboração de alguns
espanhóis, e pela intervenção da Rainha de Castela
- não-acadêmica, mas ambiciosa e estimulada pelo
sucesso das navegações portuguesas- , que Colombo
conseguiu os três pequenos navios de que precisava.
Diz-se que, para financiar a empresa, a aventureira
Rainha até tivera que empenhar as jóias ... Outros
aventureiros, os irmãos Pinzon, concorreram também
III, u] CRISTÓVÃO COLOMBO
345
P~ o armamento dos navios e tornaram a expedição
mais popular, ou nacional.
_ Foi ent:ão assinada uma capitulacion cujos termos
sao conhecidos. Colombo seria reconhecido «Visorey
Y .gobernador general en todas las dichas islas y tierras-
-firmes:. que descobrisse. Não há nela referência directa
à·s terras civilizad~s da Ásia - como a China e a
~ndia- , on?e, de .r esto, não seria fácil a ·E spanha
1mP?r um cwsorey», de modo que, se a Junta de facto
duVIdou da possibilidade de se ir cao Oriente pelo Oci-
dente:. - no que estava com a justa crazon» - o fiacto
~~ereto é que a ccapitulacion» não contraria tal opi-
mao da Junta de cientistas espanhóis.
Enfim, Colombo partiu de Espanha no princípio
de Agosto de 1492.
~erendo exaltar as dificuldades vencidas pelo
própno Colombo nessa sua primeira viagem, como
chefe, alguns escreveram que ele não foi só descobridor
de novas terras mas, também, de golpe, teria desco-
berto um auxiliar essencial - os ventos gerais do
Atlântico- que aos Portugueses tantos anos levaram
a. desco~rir, por dependerem, não de uma, mas de repe-
tidas VIagens em várias estações do ano. Ora, :há um
de.talhe técnico que prova que Colombo jã conhecia
tais ventos, e não os adivinhara: logo nas Canárias
ele começou por transformar o velame da caravela
«Pinta:., fazendo-a «redonda:., porque era clatina:..
Redondo era também, pelo menos, o navio-chefe, a
«Santa Maria:., de um cento de tonéis. Como os navios
latinos são os mais próprios para navegação com ven-
tos contrários, vê-se que, no tempo de Colombo, jã
eram conhecidos os ventos favoráveis que ele iria
encontrar no Atlântico: à ida teria ventos de leste-
 AMÉRICA [cAP.
a que hoje chamamos o alisado; e, encontrasse ou não
terra, a volta estava garantida pelos Açores, onde
dominavam ventos de oeste, também favoráveis. Tais
eram, de resto, os ventos que Colombo sabia que os
mareantes portugueses aproveitavam nas viagens de
regresso da Guiné, que não eram costeiras, mas a con-
tornar, centenas de léguas ao largo da Africa, os ventos
do norte, dominantes na costa.
Ah! Se Colombo, antes de largar das Canárias
para cel Oeste», não tivesse conhecimento concreto
desta Arte de Navegar no Atlântico, ele, só pela sua
descoberta dos ventos dominantes no alto mar, que
alguns lhe atribuem, teria merecido o título de cgénio
inspirado por Deus», título que De Lorgues .n ão con-
cedeu ao tão religioso Infante D. Henrique.
Mas Colombo era, afinal, um navegador prático.
Ele não se riria fiar em palpites ou adivinhação de
ventos ... como os não •a divinhou Va·sco da Gama quando~
em 1497, se meteu a cortar o Atlântico pelo goZfão.
Ambos tinham segurança de, tanto na ida como na
volta, ·encontrarem ventos manobráveis. E ambos vol-
taram à Europa pelos Açores.
A sequência é de fácil compreensão, embora o
cDiá.rio» atribuído a Colombo não passe de um extracto,
feito por um seu admirador- Las Casas- , no qual
se notam inverosimilhanças, que só o documento ori-
ginal poderia esclarecer. Tal é a explicação do cnOI'Oes-
tar» da agulha pelo movimento da Polar. Mas a maior
delas está nas latitudes, pois tendo Colombo navegado
das Canárias cal oueste» da bússola, a qual na maior
parte do ·Caminho declinava para oeste do Norte do
Mundo, ele sabia que iri-a parar a uma 1latitude a ·s ul
das Canárias. Como foi. Mas no c-Diário» ·lê-ee que
III, u] AMÉRICA 347
estavam «tan alto como en Oastilla», isto é, muito a
norte das Canárias. Ora não é licito atribuir tal erro
a Colombo.
A travessia de 1492 foi tão simples como o faz a
tradicional anedota: pôr cum ovo em pé:. sobre a
ponta machucando-lhe a casca. Foi viagem directa,
rumando a poente com ventos a favor. Navegadas
assim novecentas léguas, em cinco semanas de bom
~mpo, sem vista de ter·r a, a 12 de Outubro, Colombo
atingiu uma ilha, das mais pequenas de um numeroso
arquipélago ao qual ele deu um nome artificial, o de
lndias; são as actuad.s Antilhas, nome derivado dos
mapas antigos. O encontro de terras era fatal porque
elas barravam o caminho.
Nesta primeira exploração Colombo teve a sorte
de ir 1a tingir a maior das ilhas, Cuba. Julgou ser terra
firme, que ficaria a um milhar de léguas da costa de
Africa. Mas, em lugar de prosseguir para o ocidente,
em busca da China, Colombo voltou para trãs, para
leste, para outra ilha grande, a •a ctual Haiti. A gente
andava cdesnuda», era simples, desconhecia o ferro, e
contentava-se com presentes de ccuentecilhas de
vidrio». E era tão sociável que deixaram lá um forte
- la Navidad - com 39 espanhóis. No regresso
Colombo começou por ganhar norte e, pelas latitudes
altas, com ventos do oeste, veio aos Açores, a Lisboa,
à Espanha.
Colombo declarou então ter atingido a Asia.
Porém, alguns críticos históricos duvidam de que
Colombo, apesar das suas repetidas afirmações, esti-
vesse intimamente convencido de, logo na sua primerira
tentativa, ter chegado às lndias. Ele nunca poderia
confundir aquelas ilhas, de que foi cgovernador:., com
 AMtRICA [cAP.

as opulentas terras de Cathay ou Cypango- China e

Japão- terras civilizadas, já então conhecidas pelas
narrativas de Marco Polo, Conti e outros. Nem tinha
razão para acreditar que, entre a Europa e a .Asia,
havia apenas o milhar de léguas navegadas.
A viagem de Colombo, iniciada em 1493, foi
·sequência natural da primeira. Indo mais pelo sul, em
procura de outras terras, e talvez a confirmar a ausên-
cia das ilhas Cypango e das Sete Cidades~ Colombo foi
avistar, a 700 léguas apenas das Canárias, uma ilha
nova, junto da actual Martinica e uma das mais pró-
ximas de Ãfrica. Daqui, passando por outra ilha maior,
Porto Rico~ seguiu para o cforte Navidad:.. Mas os
espanhóis que lá deixara não puderam encher o
ctonel de oro», em que lhes falara Colombo, porque os
lndios os tinham trucidado.
No prosseguimento desta expedição só se navegou
pam oeste, pe1o ·s ul de Cuba, mais uma centena de
léguas que da primeira vez. Colombo contentou-se em
tornar a alegar, gratuitamente, que já chegara à .Ãsia,
do que, quando muito, só poderia estar desconfiado.
Porém, daquilo que contava, continua a concluir-se
que o interessava mais o descobrimento de coro y per-
las:. do que o do caminho para a lndia.
Ainda no ano de 1492, um alemão- Monetário -
enviou, em carta a D. João n, um alvitre, já citado,
sobre a possibilidade teórica de se ir a Cathay cem
poucos dias», navegando pelo ocidente. Mas, apesar
das afirmações asiáticas de Colombo sobre a sua desco-
berta, é certo que D. João n não tomou a sério tal
proposta. E tanto que promoveu o Tratado de Tor-
desilhas- éoncluido em 1494, antes de Colombo vol-
tar da sua viagem - , pelo qual Portugal abandonava

Modelo da na u «San ta Ma ri a » (capitâ nia de Cris tóvão Colombo)

qu e em 1892 repetiu a viage m da original
III, n] CRISTOVÃO COLOMBO 349

à Espanha o hemi8fério terrestre que começava 370

léguas além das ilhas de Cabo Verde e ia terminar 218
graus ao ocidente, ou cerca de 3000 léguas de Lisboa,
próximo do extremo do Japão real. Vê-se que, apesar
de a primeira viagem de Colombo em nada ter concor-
rido para provar a redondeza da Terra, todos em Espa-
nha acreditavam nela. Até um cardeai, o D'Ailly.
Era pois manifesto que D. João ll estava absoluta-
mente convencido de que a «verdadeira fndia:. ficava
muito mais ao largo de Portugal do que se poderia
concluir das narrativas de Colombo. E tanto que, sem
receio de a perder, ele conseguira alargar o limüe
atlântico do domínio português, 370 léguas para além
das ilhas de Cabo Verde. Esperava assim abranger,
no quadrante sudoeste do Atlântico, terras não asiá-
ticas, o futuro Brasil, sem o menor receio de que o
limite oriental do seu hemisfério deixasse de fora a
lndia.
Tal seria, embora inconfessada, também a opinião
de Colombo. Foi por esta razão que, logo na viagem
que fez depois do Tratado-em 1498-, ele foi procurar
aquelas mesmas terras cuja existência julgava conhe-
cida de D. João n, não havendo a mínima razão para
as considerar já como Ãsia.
Com esse fim claro, Colombo foi fixar a sua lon-
gitude na ilha de Santiago, de Oabo Verde, e de lá
nunou a. sudoeste. Com este rumo, se, à chegada a
terra, a. latitude fosse inferior a 6 graus sul, ele teria
ganho, para sul, menos de 370 léguas e só outras
tantas para oeste : estaria, pois, ainda no hemisfério
português. Mém daquelas latitudes já estaria mais de
370 léguas para oeste das ilhas de Cabo Verde, e a
terra pertenceria a Espanha. Assim, teria sido traçado,
350 AMÉRICA [cAP. III, n]
CRISTOVÃO COLOMBO
35I
pela maneira mais prática, o meridiano-raia, que, levante», para onde Ga . .
segundo o Tratado de 1494, passava 370 léguas- oü 1502 trA ma partira no mesmo ano de
, es meses antes de Co! b0
21 graus em longitude - a poente daquelas ilha·s. Nesta via . om largar de Cádis.
Contudo, pelo facto de esta tentativa de Colombo quatro - a qu:::n: mais longa e trabalhosa das
ecemos por uma conf
t ensiosa narrativa de Co!
ter sido feita no Verão, a monção de sul não lhe per- bo . usa e pre-
mitiu, sequer, atingir o equador, ao contrário do que de Jamaica e Cuba d dom -, e'le foi passar ao sul
fez, em 1500, Pinzon, por ter ido no Inverno, sem mon- gadas umas 150 Ié' on e' .rumando. a sudoeste e nave-
de T ··na . guas, atmgm terra firme- o porto
ção. Mas Colombo explica a falha do seu acertado TUJ't - apenas um grau ar .
esquema imaginando um exagerado ca:lor, tal que receou mais ocidental de Cuba e 400 I, p a oeste da parte
que se lhe «quemasen navios y gente». De facto, nave- da Trindade ' egu•a s para além da ilha
, que Colombo .descobrira na .
gadas só 120 léguas, arribou para oeste, indo desco- anterior. VIagem
brir a ilha da Trindade e, junto dela- denunci~da Esta terra firme era tu I
pelo grande rio Orenoco - , finalmente a ctierra-firme» da Améri do ' na ra mente, continuação
Hojeda de:rita Sul, explorada anteriormente por
prevista na cCapitulacion de 1492:. e no «Tratado de
Verág~ nú ma :~cartas de Vespúcio, e indicada até
1494». Não a explorou porque, apesar de se declarar p e La Cosa, desenhado em 1500 ( ")
já cen Oriente:., bem sabia que ela não era A8ia. E Como a nova costa ago · ·
conia lest t ra encontrada por Colombo
ooriou logo para noroeste, para a sua conhecida ilha e-oes e, e como se ign
Espafíola, ou Haiti. México impedia a saída do Af!Iâ:z;va que o golfo do
era intuitivo ue Ico para o poente,
onde estava ~as~~: ~:~c;-sse ~e facto aquela fndia
O facto de o hemisfério português só recomeçar
três mHhares de léguas para poente da Trindade con- nova costa • tena de acompanhar a
vencera Colombo de que, ainda que houvesse mar livre · para oeste Porém ,
afirmado que a terra fi d ' apesar de Colombo ter
até à lndia, o caminho regular para ·l á ir não seria por
ali. E tinha razão porque, nesse mesmo ano de 1498, junto da Trindade já e:eÀ.s:co~;:: ;;or;I~ em 1498,
não um Novo Mund e r1ente:. _e
e dois meses antes, já Vasco da Gama chegara a favorece . o, e_ apesar de ventos e correntes
Calecute. ocidente ~~:dC:~!~~~a~a~:.aexploraç~o da costa para
Tão convencido ficara Colombo de tal dificuldade aleD'tlndo . y, a Cluna- Colombo
que, a seguir, na viagem de 1502- a sua última- e......... uma Inverosímil tabl ' '
durante 88 d" . «espan e tormenta»
ainda menos procurou atingir terras indianas, já então a.ff d Ias seguidos, vo!Jtou para trás para lest
mtan o que a terra atin "d 0: • ,• e,
também visitadas, pelo Cabo, por Cabral. E isto apesar nas a 19 · d gi a, anag ficava ape-
de, desta vez, Colombo levar instruções dos «Reys» para JOrna as do rio Gan E '
busca de um «estr h ges. xplicava ir em
ir até à autêntica lndia, pois elas prevêem encontro poderia estar para e~áo», o qual, se existisse, tanto
amigável com os Portugueses enviados ca la parte ·de a Asfa. s como para diante, cortando
352 ~RICA [cAP.
Por outro lado, por causa das múltiplas travessias
do Atlântico já realizadas, havia a certeza de não ter
ficado para trás uma ilha real- a Cypango, que,
segundo Marco Polo, era rica e civilizada, e estaria
cerca de 1500 milhas antes de se chegar à Ásia.
resto, ser a da China - Cathay - , frequentada por
resto, ser a da Chinra- Cathy-, frequentada por
grandes naus de quatro mastros, nas quais se fazia
o comércio com a lndia. Nem é licito confundir as
cabanas dos lndios, vistas por Colombo, com os palácios
que vários viajantes descreviam no Oriente. Também
se sabia que lá era usado o ferro. Como Colombo ainda
não encontrara vestígios de semelhante civilização, não
havia razão para supor que aquela terra era Ãsia,
cortada por um canal, invenção a que nenhum viajante
se referira. Enfim, se na Ãsia havia cminas de oro:.,
estariam ocupadas e Colombo não levava força para
as conquistar.
Há ainda a notar que Colombo, nos seus entrela-
çados reconhecimentos, abandonara a exploração de
Cuba- que declarara ser terra firme da Ãsia- e não
passara, nunca, mais de 200 léguas para ocidente do
primeiro ponto atingido em 1492, a ilha Guanahani,
a que chamara São Salvador. Ora esta ilha, no mapa
do piloto La Cosa - companheiro de Colombo em
1492- , está apenas a 60 graus da costa da Guiné,
ao passo que no Globo de Behaim, que traduZiia as ideias
·da época, repetidas no mapa de Toscanelli, reconsti-
tuído, a costa sul da China ·a parece 150 graus a oeste
da mesma costa da Guiné. Faltavam, pois, 90 graus- a
quarta parte da volta da Terra- para Colombo se
poder supor na Ãsia. E, de facto, dos escritos que dele
ficaram conclui-se que Colombo se interessava mais
III, n] CRISTÓVÃO COLOMBO
353
po_: «mi~as de oro» do que pelos Impérios do Oriente.
Nao podia acreditar ter encontrado mais que portos de
escala, ou abastecimento, para se poder ir cao Oriente
pelo Ocidente:..
Assim, da narrativa que Colombo fez das suas
duas últim~ viagens, deduz-se claramente que, pelo
menos depois do Tratado de Tordesilhas e da chegada
dos Poz:tugueses à lndia, Colombo ficara logicamente
convencido de que ela estava tão longe ao ocidente
que caia sem dúvlida dentro do hemisfério europeu,
desaparecendo as vantagens de tentar lá ir pelo oci-
dente.
As suas ideias s6 poderiam ser idênticas às do seu
piloto La Cosa, que, no mapa de 1500, prolonga a costa
do Novo Mundo até uma longitude semelhante àquela
atingid~ ~r Colombo em 1502, apesar de ele pretender
ser o um co a con~ecer a posição de V erágua, para
poder lá ~oltar. Enfim, mostrava-se convencido de que,
tanto as tlhas como a terra firme, descoberta por ele
e por outros, como Pinzon e Hojeda, era tudo Ásia,
houvesse ou não cca.nab do oceano Atlântico para
o Mar da lndia.
•
Como se vê, a discussão náutica das rotas de
Colombo, e o seu decalque sobre os mapas da época,
que conhecemos, revelam que, em 1500, já nem marean-
tes nem outros poderiam acreditar na chegada dos
navios de Espanha às terras civilizadas do Oriente
onde a Espanha não teria forças para impor um «vice~
rey e governador:., de acordo com aquilo que a letra
da cCapitulacion::. garantia a Colombo.
23
354 AMaRICA [cAP.
1!: pois transparente que, apesar de o g:rande nave-
gador até à hora da morte ter dado a impressão de
que acreditava no seu descobrimento das lndias Asiá-
ticas, ele só podia estar convencido de ter atingido,
a menos de um milhar de léguas das costas de Ãfrica,
Hhias e terra firme de um Novo Mundo, aquelas que,
já em 1486, D. João TI concedera a Dulmo e que, docu-
mentalmente, sabemos terem sido cobiçadas por aven-
tureiros portugueses. Tal é a opinião, já citada, de
alguns americanistas ·como H. Harrisse.
De resto, ainda que o Atlântico se estendesse desde
a Guiné até à costa oriental da Ásia - mais de três miJ
léguas pelo trópico - , nunca Colombo dispusera de
navios ou homens para poder n 1avegar até lá. Ele mesmo
o previra, pouco passando além de Cuba. E viu-se,
poucos anos depois, a luta formidável que Fernão de
Magalhães teve de travar contra homens e elementos
para chegar às Filipinas, que ficam ainda antes da
China.
Mas, perguntar-se-á, porque não confessava
Colombo a verdade? Temia que ela pudesse levar os
cReys» a abandonarem, por demasiado aventurosa, a
cempresa de las Indias», cujos cnavios carregados de
oro» não eram mais que ficções, com que Dulmo e
outros, se lá foram, se não iludiram.
Contudo, da mesma maneira que a exploração da
caravela que se conta ter D. João TI mandado em
segredo partir de Cabo Verde para sudoeste, em veri-
ficação dos planos de Colombo, ficou viagem secreta,
também se pode considerar secreta a viagem de 1497,
na qual Vespúcio atii.rmou ter atingido cterra ferma »
na latitude norte 16 graus (Honduras?). Assim, em
presença destes e outros segredos, não há documentos
III, n] CRISTÓVÃO COLOMBO 355
que permitam recusar a Colombo a sua primazia na
chegada ao continente americano em 1498.
Resumindo:
O descobrimento da América, realizado definiti-
vamente há 450 anos- quatro séculos e meio - , foi
um acontecimento universal que, pelas suas conse-
quênoias mais do que pelo esforço de 1492, surpreen-
deu os cronistas, que, desconhecendo a sua evolução
náutica, deliraram.
Foi consumado em 12 de Outubro de 1492 por um
hábii e arrojado navegador- Cristóvão Colombo-
favorecido por um conjunto de circunstâncias em
grande parte políticas. Mas ele não criou a Arte de
Navegar que lhe deu o sucesso, não tendo sido- como
alguns escreveram -o primeiro navegador cau long
cours:..
Para se ir às terras ocidentais com a certeza de
poder voltar bastava, em ambas as .r otas, generalizar
para oeste aquele regime de ventos, já conhecidos no
século xv, pelo menos até meio Atlântico, onde pas-
savam os navios portugueses em regresso do golfo da
Guiné, pelos Açores. Se houvesse lenda do Mar Tene-
broso entre os mareantes, o certo é que Colombo sabia
que já lá não iria encontrar trevas, mas céus de nuvens
soltas.
Sem esta essencial preparação peninsular, que
Colombo desconheceria se só tivesse navegado no
Mediterrâneo ou nas costas, ele não poderia ter conce-
bido o seu plano, provàvelmente idêntico aos dos ante-
riores concessionários portugueses das terras ociden-
 A~RICA [CAP.
tais, porque ele foi fruto de um meio -ou clima-
onde tais descobrimentos marítimos eram preocupação
geral.
Teria Colombo, talvez, pensado em ir à tndia pelo
ocidente, sugestionado por leituras como a do livro
de viagens de Mandeville. Mas logo de principio se
teria convencido de que ela ficaVIa de facto muito
longe, de acordo com todos os mapas conhecidos. Sendo
cartógrafo, nada lhe poderia ter sugerido a leitura de
uma carta teórica, como a de Toscanelli, porque ela
só se referia a terras e distâncias na latitude de Lisboa,
e Colombo sempre procurou terras mmto mais ao sul
entre o trópico e o equador. De facto, a-chadas as ilh~
de e$cala, passou a e;xplorã-las, só buscando cel oro
excelentisimo:., sem procurar romper para o ocidente.
Não esteve, nem teve motivos para acreditar ter
estado, na Ásia. Tudo parece indicar que Colombo,
apesar do que contava a respeito das tndias, pensara
-como se lê em Barros- que cainda que maes não
achasse que algúa ilha herma, segundo logo erão man-
dadas povoar: ella bastava para satisfazer a despeza
que com elle fizessem:.. Mas achou muito mais, um
Nooo Mundo - a futura Ambica- para a qual foi
adoptado este nome sonoroso, fiados no que se contava
a respeito de Vespúcio e do Brasil, e também conven-
cidos de que fora Gama o único a atingir as tndias.
De resto, sem Colombo, o descobrimento defini-
tivo do continente ocidental não iria além do fim do
século XV. Porque este descobrimento não foi mila-
groso, nem imprevisto rasgo de génio de um super-
-homem, mas uma obra natural, humana, sequência
fatal da exploração do chamado Mar Tenebroso, impul-
sionada pelo Infante D. Henrique hâ mais de cinco
III, u] C RISTÓVÃO COLOMBO 357
séculos. E, embora o centenârio da primeira viagem de
alto mar - a dos Açores, em 1431- tivesse passado
despercebido, é incontestável que foi o Infante o homem
genial - digamos - cuja intervenção no «Descobri-
mento do Mar:. tornou possíveis as grandes travessias
oceânicas, aproveitando o prévio conhecimento dos
seus ventO& dominantes.
Mas a História, desprezando indicações técnicas,
julgou instinto, inspiração, milagre, ou acaso, os des-
cobrimentos de Colombo. Romantizou demasiado o
feito, porque ele não revela, nem o cexcessivo:. cosmõ-
grafo de Las Casas, nem um tão cmau:. como o fez
Victor Hugo. O próprio Colombo, quando escreveu que
para lir às tndias não se aproveitara de crazon, mate-
mática, ni mapamundos», levanta o véu e encobre a
verdade: não se fiou em mapas- como o de ToscaneUi
ou outros, verdadeiros ou reconstituídos - porque a
sua. ideia era ir às ter:ras suspeitadas ao ocidente
-as cylhas e terra firme:. de Dulmo -as quais não
vinham nos mapas. Colombo não buscara pois as lon-
gínquas cCipangu» ou cCathaia:., que aqueles mapas,
oomo o de Martellus, arrumavam cerca dos antípodas,
segundo as ideias da época.
Para esse fim simples não era precisa santidade
ou cgénio:., nem «matemática:. : bastava aquele espí-
rito de aventura que não faltava aos Portugueses.
Assim Colombo buscou e encontrou aquelas terras inter-
médias, já suspeitadas. Se elas não existissem, a expe-
dição de 1492 não dispunha de recursos para, além do
milhar de léguas, continuar aproada cal Oueste:.. De
resto, apesar de ele ignorar - como todos então - que
elas fechavam o Atlântico ao poente, cem cercoyto por
toda a Redondeza:., Colombo nem sequer tentou inves-
 ~------------~~r
~ --------------- .----------------.
zo ______

IAGENS DE COLOMBO
AMÉRICA (CAP. E MAPAS DA ÉPOCA
rtigá-lo, nunca tendo passado mais de 1200 léguas A ORES
além da costa de Africa. 1493
Em 'Suma, erram aqueles que consideram COlombo
descobridor cintegrab da América. Ele acompanhou
uma ideia corrente na sua época. Porque, como se sabe, /
a existência de te·r ras a oeste, não asiáticas, não era 1492
novlidade, como já então não era novidade o processo
de navegar à vela no alto mar, de que Colombo se
----- --
aproveitou. Outros, que o praticavam, pensaram tam-
bém em ir àquelas mesmas terras, e lá chegaram talvez
-- .. · .··

antes de Colombo, só não insistindo por lhes ter faltado

o apoio de um governo. \ /
··. /
Certo, este «homem falador e glorioso em mostrar 1496 \,..../
suas habilidades»-como Barros classificou Colombo- ·-·-·-·-·- ·- '··.
a escrever era sibilino, confuso . . . e tanto que nem
nos deixou elementos claros para identificarmos a
primeira ilha a que aportou, a São Salvador. Exa-
gera o seu saber. Prevê o fim do Mundo para 1656, - ··- ··· - ··· ···-···-···./.
intitula-se escolhido divino em luta com Satanás,
afirma gratuitamente -porque não indica a base iné-
dita em que se apoiaria- que a Terra não é esférica,
mas em «pera», e muito mads pequena do que o «vulgo»
a julgava, chega às portas do «Paraíso terrena!:.. )>
Enfim, escreveu cfantesias:. em que não sabemos se
acre<li.tava ou não.
Porém, em compensação destes seus incontestá-
veis defeitos, no especial trabalho de navegador, que o
tornou famoso, não temos razão para supor Colombo
um sonhador. Ele o confessou: não foi a «razon» que
lhe indicou a existência das terras ocidentais e a
maneira de lá ir à vela. Foi a sugestão. CoEB ESPERANÇA
Aceitar que Colombo acreditava estar a China
só a um milhar de léguas da costa de África é duvidar

COMPILA EM 194-2 POR

UI, u] CRISTóVÃO COLOMBO 359

do seu génio ou, pelo menos, do seu espirito prático de

homem do mar. Ah! Ele não se iludiu supondo as
índias apenas a umas centenas de !l éguas da África.
Começou por buscar as terras ocidentais - em que
tanto se falava em Portugal- como porto de escala
para, eventualmente, depois atingir o Oriente. E se,
navegando aquele milhar de léguas, as não encontrasse,
só lhe restaria voltar à Europa.
Assim, conclui-se como extremamente provável
que o descobrimento de ilhas e terra firme ao ocidente
-que, tanto o seu piloto La Cosa como seu irmão Bar-
tolomeu, consideraram Novo Mundo -não foi acaso.
Foi intencionalmente que Colombo descobriu as Anti-
lhas, como depois, em 1498, buscou e descobriu ao
sudoeste as terras em que D. João 11 acreditava.. . e
que, nem geométrica nem politicamente, se poderiam
confundir com a ilha Cypango ou com terra firme
asiática. Viu-se que Colombo não revelou, depois, inten-
ção de as ir outra vez visitar.
Tudo isso ele o pôde fazer em navios de Espanha,
apoiado no seu prestígio de mareante de escola
portuguesa - «indirectement un élêve de Henri le
Navigateun, concluiu o Dr. Charcot. E, como tal, o
navegador e cosmógrafo, que era Cristóvão Colombo,
não podia duvidar de que a Asia lhe ficara sempre
demasiado longe para os seus recursos. Porque ele sabia
que as repetidas viagens dos Portugueses em latitude
não davam ao grau só 14 léguas, mas uma dimensão
entre 17 e 18 léguas, e, ao circuito da Terra, por entre
os trópicos até aos antipodas, cerca de três milhares
de léguas.
Colombo e os seus companheiros só podiam, pois,
acreditar ter abordado a uma vasta e prometedora terra
 AMÉRICA [CAP.
virgem, susceptlvel- como o não era a Ãsia- de ser
ocupada e civilizada pelos Europeus, e para a qual
nunca é demais repetir que não se deveria ccon harta
injusticia e ~mpropriedad » ter preferido o nome de
América ao de Colômbia.
m- AMSRICO VEBPOCIO
A 12 de Outubro de 1492 aportou a uma ilhota ao
largo das Antilha8, uma esquadra de três pequenos ' um ano, Colombo no descobrimento da terra firme oci-
navios, que a Espanha tinha confiado a Cristóvão
Colombo, a fim de t entar, pelo ocidente, abrir caminho
para a lndia.
A análise náutica dos acontecimentos leva-nos a
deduzir que já anteriormente se tinha tentado atingir
as terras que se sabia existirem ao ocidente dos Aço-
res. E, até, do estudo da nova rota atlântica seguida
por Vasco da Gama pelo largo da .Africa se deduz,
como extremamente provável, que a posição da terra
firme no Atlântico Sul já fora conhecida pelos Portu-
gueses antes de Colombo lá chegar, em 1498. Mas não
há documentação.
Por isso, à falta de outro nome, e de uma data
concreta, é bem que o descobrimento da parte da Terra
cujas consequências foram de tão poderoso alcance para
a Humanidade seja festejado neste dia 12 de Outubro.
Já o mesmo bem se não pode dizer a respeito do
nome posto ao Novo Mundo -América- talvez só
definitivamente adoptado por ser ceufónico », como lhe
chama um autor inglês. Mas sê-lo-ia menos Colômbia?
Logo que Vasco da Gama chegou à lndia, em 1498,
compreendeu-se que um outro caminho, pelo ocidente,
III, m] AMÉRICO VESP ÚClO
não era mais praticável. A lndia ficava fora do hemis-
fério que o Tratado de Tordesilhas reconhecia à Espa-
nha: Colombo teria que navegar, além de Cuba, mais
trê8 milhares de léguas para poente, antes de atingir
o seu projectado destino.
E assim, tendo então as tentativas de Colombo
perdido importância, aconteceu que a glória dos Des-
cobrimentos Ocidentais foi recair em um navegante
florentino -América Vespúcio -, o qual, em cartas
particulares a seus amigos, contara ter precedido, de
dental. Ele foi geralmente acreditado e, mesmo ainda
hoje, é corrente ler-se que foi Vespúcio quem cprobably::.
descobriu o Brasil. Assim se explica que nos mapas
primitivos o Brasil tivesse o nome de cAmérica» -de-
rivado de Amerigo - , nome depois estendido a todo
o continente.
Ora, que sabemos nós sobre Vespúcio? Quais foram
as suas navegações? Teria ele, alguma vez, como chefe
de expedição, direito a ser, tanto como Colombo, consi-
derado um descobridor? Deu ele, sequer, informações
correctas acerca das viagens dos pioneiros ocidentais?
•
A respeito de Vespúcio nada contam os nossos cro-
nistas. Se embarcou em navios do Rei de Portugal,
fê-lo apenas em um cargo secundário, mais em relação
com os negócios do que com a navegação. Nesta espe-
cialidade ele seria um amador, ao passo que Colombo
-este citado nas crónicas portuguesas - foi sempre
chefe e navegador.
 AMÉRICA (cAP.
Quanto ao embarque em navios espanhóis, s6 sabe-
mos que, em 1499, Vespúcio acompanhou de facto a
expedição de Hojeda. Só mais tarde, quando ele já era
chefe dos pilotos de Espanha, é que, em 1512, lhe cha-
maram «piloto». Mas, na História das lndias, por
Herrera, só se lê que Vespúcio embarcou como «mer-
cador:..
Tudo o mais que consta a respeito das viagens de
Vespúcio é só o que se lê nas suas cartas particulares,
onde, naturalmente, ele encarece a própria importância.
Aconteceu, porém, que os seus patrícios as julga-
ram tão interessantes que, como propaganda naciona-
lista- como hoje diríamos-, ·l hes deram publicidade
em numerosas edições. Elas correram mundo e chega-
ram até nós. Como os originais desapareceram, aquilo
que hoje lemos não constitui documento, e nem sequer
é depoimento do próprio Vespúcio. Não é, pois, de
admirar que algumas contradições, que até se notam
entre as suas duas cartas datadas de 1502 e de 1504,
sejam atribuídas a retoques, introduzidos com o fim
de enaltecer a intervenção de Vespúcio nos Descobri-
mentos.
Contudo, quem promoveu a publicação das cartas,
decerto não lhes mudou detalhes técnicos e, quando
muito, é de crer que se tivesse limitado a omitir os
nomes dos orientadores das expedições. Mas não se
atreveu a apresentar claramente Vespúcio como chefe
ou capitão-mor das esquadras.
Desaparecem, assim, motivos para considerarmos
Vespúcio um descobridor americano, comparável a
Colombo, ou a outros capitães. O que vou tentar mos-
trar ràpidamente.
III, tu] AMÉ R1CO VESPÚC!O
•
Da leitura das ca:rtas - na:s quais há, como se
disse, absurdos- deduz-se que Vespúcio pretendeu ter
reailizado quatro viagens, todas ao continente ocidental,
ou Novo Mundo.
A sua primeira viagem teria sido iniciada em 1497,
por ordem do Rei de Espanha. Teriam atravessado por
entre as Antilhas, sem as notarem, e atingido uma terra
firme, até então, desconhecida; depois costeando a
parte norte do golfo do México, teriam de lá, pilotados
por índios, abordado a uma ilha Atlântica- Ity- da
qual se omite a latitude. Vespúcio não menciona, nem
o grande rio Mississipi, nem a península da Florida,
donde pretende que os índios, nas suas canoas, faziam
excursões àquela ilha, navegando uma semana por mar
aberto! Um dos seus jans até alvitrou que se trataria
das Bermudas, que ficam um milhar de milhas ao
largo da Florida ... Ora, é evidente que os lndios não
o poderiam fazer.
Nem dos arquivos de Sevilha, nem do inquérito
contra Colombo, feito em 1512, consta a menor infor-
mação acerca dessa inverosímil viagem de 1497, a qual
seria mais importante que qualquer das viagens de
Colombo, que, em 1497, ainda não encontrara terra
firme.
Concluiu-se que esta primeira navegação foi !nven-
ção total de Vespúcio, com o fim de, no descobrimento
do continente ·a mericano, arrebatar a Colombo a sua
precedência, pois ele só lá chegou em 1498.
Esta falsificação corta às cartas todo o seu valor
provativo. Ademais, o conhecimento que hoje temos

AMÉ RICA [cAP.
da geografia local denuncia outras mentiras de Ves-
púcio ou, pelo menos, das suas cartas.
• vaJd.do a perlcia de Vespúcio com «quadrante, astrolá-
A viagem a que Vespúcio chama csegunda» cor-
responde à viagem real do navegador Hojeda, realizada
em 1499, e comprovada pelos arquivos espanhóis. Ves-
púcio ia nela em cargo subalterno, abaixo de La Oosa.
Sabemos de Hojeda foi dar ao continente americano
em um ponto a norte das bocas do Amazonas, visto
que só reconheceu ccasi doscientas leguas» de costa,
antes de chegar à ilha da · Trindade, descoberta por
Colombo no ano anterior.
Contudo, Vespúci.o- sem nomear o chefe Hojeda-
também falseou esta navegação. Conta que a terra
foi avistada na latitude 5, ou 6, ou 8 graus sul, isto é,
cerca do actual cabo São Roque. O reconhecimento até
à ilha da Trindade teria, assim, de oompreender uma
extensão não de cdoscientas•, mas de mais de 500
léguas de' costa, às quais, na sua carta, Vespúcio se
refere apenas com uma dúzia de palavras. Por onde se
confirma a versão de Hojeda só ter ido abordar, como
disse, ao norte de tão grande rio.
Vespúcio mente quando afirma ter, em 1499, cor-
tado o equador. Não estiveram na costa brasileira, e
julgaram só ter ido avistar terra além da raya luso-
-espanhola.
• poderia ter sido no alto mar
A terceira viagem de Vespúcio é aquela que mais
nos interessa por ter sido, de facto, realizada à costa
brasileira. Vem contada nas suas cartas de 1502 e 1504.
III, m] AMÉRICO VESPÚCIO
Partiram de Lisboa em 1501, com três navios.
Vespúci.o não cita o nome do chefe, que considera
incompetente. Escalaram em Oabo Verde e, depois de
67 dias de navegação errática -em que lhes teria
bio e carta» - , foram dar a uma costa que ficava 700
léguas a sudoeste, e na latitude de 5 graus sul, como
em 1499. Estas duas indicações são incompatíveis: a
latitude estimada está errada.
Mas Vespúcio só nota a «ignori.nci.a» do capitão-
-mor, ·s em reparar que a navegação era dirigida por
pilotos já conhecedores dos ventos e correntes da região
equatorial, pelo menos desde que o equador fora cor-
tado em 1470, e que por lá praticavam a viagem de
regresso da Mina. Ora, isto não se dava com Vespúcio.
Desembarcaram. Teriam determinado a latitude,
mas a carta de 1502 só conta que lá ouviram cmissa
cantada•.
Seguiram depois ao longo da costa cpara o oriente»,
tendo comunicado muitas vezes com a terra e os seus
habitantes. «Navegadas trezentas léguas• - sempre
pela costa norte do Brasil -chegaram a um cabo, no
«Oitavo grau•, para além do qual ca costa propendia
para o sul». (São Roque está nos cinco gll'8.Us!).
Desde este cabo foram «baixando muitas vezes em
terra•; e , navegadas c quase 600 léguas» ao longo do
continente, atingi-r am ca altura de 50 graus», o que só
Vespúcio acentua que esta latitude, somada com
a de Lisboa, perfazia 90 graus, ficando assim os habi-
tantes das duas terras em um interessante ângulo recto.
 AMÉRICA [ cAP.
Pa:ssados três anos, ,a1gumas das informações erra-
das desta carta de 1502 são emendadas em uma nova
carta, datada de 1504.
A aterragem teria ainda sido em 5 graus. Mas,
em lugar da «missa cantada», teria havido um mau
encontro com os lndios, que teriam «morto, assado e
comido três cristãos». Ao contrário do que contou a
carta de 1502, os habitantes eram «piores que feras »,
e não houve comunicação com eles.
A citada navegação de 300 léguas pela costa norte
do Brasil foi, nesta carta, reduzida a metade, de modo
que, assim, já não é de estranhar que Vespúcio não
repa,r asse no rio Amazonas. Tendo partido da mesma
latitude de 5 graus, navegaram «entre leste e sueste»,
até ao mesmo cabo de 1502, em 8 graus, ao qual desta
vez deram o «nome de Santo AgQstinho».
Naquela navegação de 300, ou mesmo só de 150
léguas, pela costa do Brasil, Vespúcio não notou deta-
lhe algum, nem mesmo a forte corrente, que contra-
riaria a sua navegação para «levante». Além disto,
Vespúcio confunde em um único os dois cabos, São
Roque -onde, de facto, a costa «quebra para o sul»
(1502) - e Santo Agostinho, onde, de acordo com a
~ retocada de 1504, a costa «volta para sudoeste».
Como o cabo São Roque está na latitude da terra
abordada em 1501, ressalta que, entre as latitudes 5 e 8
graus sul, Vespúcio não poderia ter navegado 150
léguas «para oriente», como afrirmou, mas só as 50
léguas para sul, que há entre os dois cabos.
De tudo isto há a concluir que a navegação de
Vespúcio pela costa norte do Brasil foi inventada. Ele
nada lá vira, e só teve o fim claro de suprimir a solução
de continuidade entre os pontos de inicio das suas nave-
III, m] AMÉRICO VESPÚC10
gações de 1449 e 1501, os quais estão separados por
cerca de trezentas léguas de costa.
A crença de Vespúcio na quebra da costa em um
só cabo, «no oitavo grau:., denuncia que ele nem ia
acompanhando a navegação real dos navios, e que as
suas cartas foram decalcadas sobre um mapa errado.
Tal seria o mapa de La Cosa - que não conhecemos-,
cujo autor, não tendo nunca estado na costa para
leste do Amazonas, também reduziu aqueles dois cabos
a um só em latitude alta, apoiando-se na ilusão de
Pinzon, sobre a sua navegação do cabo Santo Agos-
tinho «para ocidente», a qual é ~mpossivel, por ter de
ser a cortar por cima da terra. :m sabido que, pelas
próprias declarações de Pinzon, se prova que ele, em
1500, só veio abordar terra muito para oeste do cabo
São Roque, donde pôde de facto navegar «para
ocidente:..
Ambas as ca.rtas de Vespúcio concordam em que,
em 1501, do cabo Santo Agostinho continuaram cor-
rendo a costa e fazendo «muitas escalas:.. Assim teriam
reconhecido «quase 600 leghe» de costa para sudoeste.
Mas, dir-se-ia que Vespúcio não navegava com atenção
porque, entre tantas «escalas», nos não menciona algum
dos portos visitados, nem outros detalhes interessan-
tes: não cilta os recifes do norte, nem rios grandes,
como o São Francisco, nem a vasta Baía, nem uns
bancos que se estendem muito ao mar- os Abrolhos -
nem o cabo Frio, onde a costa quebra para oeste
nem ilhas da costa, como a ilha Grande. Tão-pouco ~
refere a Porto Seguro, onde decerto teriam entrado em
1501, para ouvir os portugueses, que lá ficaram no ano
anterior.
 AMÉRICA ( cAP.
Marcando no mapa real a extensão de costa .reco-
nhecida - 600 léguas segundo ambas as cartas -
conclui-se que essa navegação s6 poderia levar os navios
à latitude de c32 graus». Mesmo contando as 600
léguas directamente a sul - de acordo com a carta de
1502 mas não com a realidade da costa brasileira -
só s~ chegaria a 42 graus, e nunca aos 50 graus da
mesma carta.
:m transparente que só ao escrever a carta de
1504 é que Vespúcio reparou que a distância de 600
léguas era mncompativel com a inventada latitude de
50 graus, tão clarament e acentuados na carta de 1502~
De modo que, para emendar tão flagrante erro, foi
preciso inventar outra explicação, a qua.l, de resto, não
é verosfmil.
Vespúcio ainda nos não contara ter chefiado
alguma expedição. :m sõmente em 1504 que ele pretende
que, em 1502, atingida na costa do Brasil aquela lati-
tude de 32 graus- boca do rio Grande e lago dos
Patos- os Portugueses o teriam incumbido c absolu-
tamente do comando da Armada:.. Seria isto no AtlA.n-
tlco Sul, que Vespúclo desconhecia absolutamente, ao
passo que os Portugueses já lá tinham ido com Dias,
Gama e Cabral, e lhe conheciam os ventos dominantes.
De modo que, ainda que a carta de 1502 já falasse em
tal comando, não o poderiamos acreditar.
Então o novo chefe florentino teria tido a fan-
tasia de mandar rumar entre sul e leste, para o mar
largo. Navegadas assim 500 léguas, levantou-se grande
cborrasca» e na tal latitude de 50 graus, passaram à
vista de u~a ' ccosta brava» - que, segundo a carta de
1502, Vespúcio teria julgado ser ainda cdo conti-
nente»-, da qual se não fez caso. Se, de facto, Ves-
III, ru] AMÉRICO VESPÚCIO
púcio foi arvorado em chefe desta tão frfvola excursão,
foi esse o seu único descobrimento, ao qual não deu o
nome mas que bem mereceria o de América.
Vespúcio prova ignorar a explicação náutica da
bordada ao largo, a qual teve por fim ir entrar na
região do alisado do sueste, vento favorável para nave-
garem para o equador.
Embora esta viagem de 1501 não conste nos arqui-
vos, crê-se que ela foi realizada como sequência do
reconhecimento, feito talvez por Lemos, na cnau dos
mantimentos:.. Em ·l ugar de a quemmar - como fez
Gama em 1497-, Cabral mandou-a regressar a Lisboa.
Tanto esta viagem de 1500, como a de 1501, foram
ambas reservadas, e, por isso, da última só conhecemos
os detalhes contados por Vespúcio, e nada sobre a
navegação.
Lamentàvelmente, ele pouco adianta. Depois da
sua narrativa, a costa norte do Brasil ficou tão por
descobrir como estava antes. E quanto à parte da costa
realmente reconhecida para sul do cabo São Roque,
Vespúcio não nos deixou mapa ou indicação detalhada.
Ele nem sequer, como seria próprio de um cosmógrafo,
faz referência ao trabalho de levantamento da carta
das novas terras que iam descobrindo, o que só muito
ràpidamente teria sido feito em 1500.
•
Vespúcio fala-nos ainda de uma quarta 'Viagem,
com portugueses, a qual poderia ter sido a da costa
do Brasil, em 1503, e de que não hã documentação
além de uma lacónica referência de Damião de Góis
provàvelmente por se tratar de expedição mais comer:
clal que geogrãfica.
370 AMÉRICA (CAP.
Segundo conta Vespúcio, levaram o «propósito
de ir ao Oriente descobrir uma ilha chamada Malaca:..
Tal destino, ainda para além da lndia, é in~rosímU.
Vespúcio iria jã a comandar um pequeno navio,
cujo nome não cita, como tão~pouco refere o nome do
chefe, que classifica de «cavezzuto:. e incompetente,
como fez ao chefe da sua anterior expedição. E, por
isso, estranha a sua bordada à Serra Leoa- jã pra-
ticada por Vasco da Gama-, a qual tinha, como é
sabido, um fim que Vespúcio prova ignora.r, qual era
o de ir tomar barlavento contra a monção de sul.
Entre a Serra Leoa e a Baía teriam navegàdo
600 léguas, e esta distância pouco difere da verdade.
Porém, a meio do caminho, teria sido descoberta, em
três graus ao sul do equador -que é a média das
latitudes-, uma ilha pequena, mas tão alta, que se
avistou ca 22 léguas:., a qual tinha ca 4 léguas um
cachopo:., onde por ignorância do chefe ele perdeu a
sua nau. Vespúcio ainda se demorou alguns dias na
ilha - cujo nome não cita-, na qual abundavam uns
«lagartos de duas caudas:..
Têm alguns crentes identificado tal ilha nova como
a de Noronha. Mas esta lilha jã estava conhecida, não
fica a ctrezentas léguas:. da Baia, mas a duzentas, e
não tem «Cachopos» a mais de meia légua.
Deve pois tratar-se só de outra li.lha, a de São
Mateus, que não existe, mas que Vespúcio teria visto
desenhada nos mapas antigos, onde ela figura mais
encostada à Africa que ao Brasil.
Navegadas outras «trezentas léguas•, entraram
na Baía de Todos-os-Santos, jã conhecida de viagens
anteriores. Daqui foram a outro porto, cma4s para
diante 260 léguas e em 18 graus:., cujo nome Vespúcio
111, m] AM~RICO VBSPÚCIO 371
prudentemente omite, apesar de lã se terem demorado
cinco meses e deixado um cforte:. com 24 homens.
Combinando a ·l atitude da Baía' 13 graus , com
aquela navegação de 260 léguas pela costa chegar-se-ia
ao porto de Guanabara, cuja latitude não é os 18 graus
de 'Vespúcio, mas 23 graus. Não hã, portanto, elementos
para se saber onde foi que Vespúcio se demorou com o
navio de seu comando.
Desse porto regressaram a Lisboa, sem que Ves-
púcio aluda mais à li.deia inicial de se ir descobrir
Malaca. Ficamos na ignorância sobre se tencionavam
lã ir pelo sul do Brasil, ou pelo sul da Africa. Nem
Vespúcio o saberia ...
Nesta viagem de 1501 repete-se o facto de Ves-
púcio, de preferência àquilo que poderia ter visto,
mesmo sem ser piloto, se ter fiado em mapas errados.
A sua ilha, a meio entre a Baía e ·a Serra Leoa, não
existe. O porto 260 léguas ao sul é igualmente miste-
rioso. E, do descobrimento vespuciano em 1503 nada
mais se apurou. Vespúcio não foi descobridor do Brasil.
•
Uma idêntica confusão de ideias se nota nas fan-
tasias astronómicas das cartas de Vespúcio, apesar de
Humboldt lhe ter concedido a função de castronome
de l'expédition:.. Portanto, ele limita-se a contar que,
perdidas de vista as Ursas, se governaram por cumas
vinte estrelas:. do hemisfério sul de brilho anãlogo ao
de Vénus e Júpiter. Ora, nem em todo o céu as hã.
Havia, contudo, no céu austral, jã conhecida dos
mareantes, uma famosa constelação - o Cruzeiro ào
Sul- que o astrônomo Vespúcio nem sequer cita.
372 .uffiRICA
Tão-pouco cita as observações do Sol, das quais os
Portugueses correntemente se serviam, como sabemos
que se fez em Porto Seguro em 1500.
Os pilotos preferiam, assim, um astro de uso
tão fácil, à confusão das inventadas cvinte estrelas:..
Nem podemos, sequer, conjecturar que Vespúcio tivesse
sido um dos vários observadores do Sol ao meio-dia,
como sabemos que, em 1538, eram alguns marinheiros
e o calafate de D. João de Castro, sem que, por isso, os
possamos considei'M' castrónomos da expedição:.. Como
vamos, pois, tomar a sério a pretendida astronomia
náutica de quem nunca nos diz que astros ou que alturas
observou, nem de que Regimento concluiu as suas posi-
ções no céu? Um professor de Astronomia, o Dr. Duarte
Leite, classificou Vespúcio como cmentiroso:. castró-
nomo improvisado:., ccharlatão:.. ' um cabo duplo, S. S. Roque-Agostinho, uma ilha a meio
Enfim, da leitura das cartas de Vespúcio ressalta
que, da mesma maneira que ele, nas suas narrativas,
inventou terras e astros, também inventou os convites
que os Reis de Espanha e Portugal lhe teriam feito
para ir cajutare a discoprire» um Novo Mundo, e isso
mesmo ainda antes de ele se tornar conhecido e célebre,
devido às cartas romantizadas, nas quais, mistificando
os leitores, se gaba das suas habilidades.
Ranmindo :
As narrativas das famosas cquatro navegações»
de Vespúcio pecam, tanto por contradições geográficas,
como pelo desconhecimento da náutica praticada em
1500. As rotas são descritas por quem ignorava as
imposições dos ventos dominantes, e julgava que, para
se atravessarem os mares à Tela, bastava soltar l'1UD.08
III, rn] .uffiRICO VESPÚCIO 373
direitos - cnavicazione vera:. - como em navio a
motor e só confiar no quadrante.
Vespúcio nunca alude àqmlo que mais interessaria
um navegador. Dos absurdos náuticos das suas narra-
tivas deduz-se que ele se fiou em indicações falsas -
talvez blagueB dos pilotos - e que, no fundo, ele era
mais «mercador:. que navegador. A análise das cartas,
teóricas e não práticas, prova que a primeira navega-
ção foi inventada, e que a quarta parece contada por
quem nela não embarcou. Isto, eu não o descobri vem
sendo escrito por outros. '
Nunca Vespúcio se atreveu a intitular-se capitão-
-mor das expedições. Nada justifica, pois, a sua vaidade
de aludir aos seus descobrimentos. Só o teriam sido
do Atlântico e uma costa 50 graus ao sul do equador.
Nenhuma destas terras se pôde identificar.
Além disso nada nos revela Vespúoio a respeito
do Brasil, de modo a poder ser considerado um dos seus
descobridores. Conta-nos informações pitorescas, mas
em parte falsas, sobre os costumes dos índios, exacta-
mente como o poderia fazer qualquer tripulante, igno-
rando por onde tivessem navegado e como poderiam lá
voltar. Sobre o Brasil, bem mais sérira é a carta de
Oaminka, como o é o cDiário» de Pero Lopes de Sousa.
Mas nenhum destes foi considerado um descobridor,
como tão~pouco o fod. o mareante que escreveu o deta-
lhado cDiário:. da viagem de Vasco da Gama.
Vespúcio nada adianta sobre a geografia ou nave-
gação da costa bmsileira: não fala de ventos ou oola8,
nem de correntes, bancos ou sondas, nem de terra baixa
ou alta- como é a Serra do Mar. Ignora cabos, rios,
portoa. Como nomenclatura da terra nova, limita-se a
374 AMÉRICA [CAP.
citar o cabo Santo Agostinho e a Baía. Depois da
leitura das cartas de Vespúcio- que poderiam ter
sido escritas por quem, em Lisboa, se tivesse limitado
a entrevistar autênticos mareantes- o Brasil fica-nos
tão coberto como estava antes das suas navegações ..
Enfim, ainda que Vespúcio, que não observava o
Sol' tivesse sido, como escreveu Vignaud, «O primeiro
cosmógrafo do seu tempo», ou se, como se lê na Enci-
clopédia Americana de 1940, ele fosse o mais «expert
in calculation of latitude and longitude», esta superio-
ridade astrológica em nada influiu no descobrimento
da América. Contudo, ainda hoje se mantém a lenda
vespuciana, sendo Vespúcio por vezes citado como «des-
cobridor do Brasil», encaixado entre os nomes de
autênticos navegadores, como o de Cão, B. Dias,
Colombo, Caboto, Corte-Real, Gama, Pinzon, Cabral,
Magalhães. Ora, a verdade é que, mesmo aceitando-se
tudo o que se conta nas cartas, Vespúcio não foi um
descobridor. E, ao criar as suas mentiras, ou ilusões,
nunca esperou que elas o elevassem tão alto.
Assim se vem esquecendo que foi devido a infor-
mações vulgarizadas depois do desaparecimento de
Colombo, que nada publicara, que um jovem e ~nexpe­
riente geógrafo derivou de c:Amerigo::. uma palavra, a
qual, em 1513, ele mesmo repudiou. Mas ela já tinha
entrado no uso corrente e era fonogénica. O erro per-
petuou-se e o Novo Mundo ficou-se ·c hamando Amé-
rica. E este erro, por uma espécie de reflexão sônica,
veio confirmar a Vespúcio o imprevisto titulo de
pioneiro dos Descobrimentos Ocidentais.
Em suma, os únicos elementos que nos permitem
apreciar a intervenção americana de Vespúcio são as
suas carta8. Delas- autênticas ou não -nada resulta
III, m] AM~RICO VESPÚCIO
375
que permita compará-lo a um Colombo, que não ~nventou
quatro viagens, nem trezenta8 léguas de costa, nem
'Vinte estrelas. Colombo nunca desdenhou dos marean-
tes portugueses e foi, de facto, convidado por um R~i
de Portugal para vir a Lisboa.
Colombo tivera preparação náutica. Tendo pra-
ticado no mar foi conviver com os experientes navega-
dores portugueses. Com eles realizou viagens de mar
largo, como era a de regresso da Mina, na qual os
ventos de nordeste impunham passar no Mar de Sar-
gaço, a m~o Atlântico, entre África e América. Além
disto, encarregado de coordenar cartas de marear,
Colombo teve de compulsar numerosos diários de
navegação. Foi assim que tomou conhecimento dos
ventos gerais e pôde prever suas rotas novas. Enfim
Colombo foi de facto chefe de todas as expedições: era
piloto e sabemos por onde navegou. Ora, a Vespúcio
faltaram semelhantes bases e, por isso, embora tivesse
c:génio sublime:. e fosse c:uomo ingegnoso::. - como
msse Canovai -,não era um navegador. A sua prepa-
ração fora terrestre, e, como confessa, deixou-se c:della
mercanzia::. para ir navegar. Faltava-lhe, pois, a base
para criar mentiras náuticas verosfmeis.
Das quatro navegações de Colombo resultaram
terras novas, cartas, documentos. Mas é só pelas carta8,
mais literárias que de mareante, que podemos deduzir
que Vespúcio figurou em duas das suas quatro nave-
gações, com as quais, como até com a invenção do
intento de c:ir a Malaca», pretendeu igualar-se ao autên-
tico navegador que foi Colombo. Supôs-se superior aos
experientes mareantes portugueses, e até- evitando
falar em Porto Seguro, onde observou Mestre João-
 376 AMÉRICA [CAP.
pretendeu exaltar-se como astrónomo pioneiro do Novo
Mundo.
Mas os cronistas nunca o puseram ao lado de
Colombo, a quem chamam calmirante:., título jamais
concedido a Vespúoio.
Assim, nesta data convencional de 12 de Outubro,
ao comemorarmos o descobrimento de uma Nova Parte
do Mundo, não esqueçamos que o seu nome, América,
é também convencional: ele concretiza uma injustiça
flagrante, a ccem por ·cento», fruto da fantasia de
-digamos- um tão grande leigo das coisas de nave-
gação que talvez lá na Alsácia tivesse esquecido que
a água do mar é salgada ...
NOTAS FINAIS
IAo examinarem, com atenção modernista, as «cartas
de Vespúdo», tanto o 1Prof. Magnla·ghi oomo outlros, para
desfazer o 1mrau efeito das cnn:tradjções e ahsurdos, que
nelas se notam, alegaram :q ue algumas seriam «apócrifas».
Assim, ·pusertam de parte a.s cartas ·mais interessantes e
detalhadas, como são •a cMundus Novus» e a « Let~»
( 1504). Mas não II'epararam :em que, :nas out.ras três cartas,
aceites comó cautênticas», também hã absurdos náuticos.
Se:não vej-amos:
Na sua carta de Sevilha, '1500, Vespúcio afirma que,
desde que em 1499 abordaram na costa - com o chefe
Hojeda-, como é sabido-. navegaram sempre «para o sub
até calem dos 6 graus» . .Mas teria sido por uma costa
fantástica, • porque a ll'ea:1, desde o equador até ao cabo
São Roque- que fica nos 5 gr. - , eola corre para nascente.
III, m] AMÉRICO VESPÚCIO 377
Os radJJllilradores de Vespúcio dh~gam a inventar que eilJe.
jã desde Cádis, ia ooman.dando wna esquadra ae duas
caravelas -sem dela ha'V'e!r VleiSitigio nos Arquivos·- inde.-
.pe:ndente da dle Hoj'eida, na qwa!l V~eSpúdo só •fali como
observador comeroial ... Ademais Vespúc:io, no seu t"egresso
para ,poenrte, só passou em oosta espanhola já antes per~
.corrida pelo chefe Hojedla; o que não !impediu que, em
outra carta, mmbérm considerada «81U'têntJioa:. - a de Oalbo
Verde, 1501 - , escrevesse que ·i a pa:ra a «mesma /terra q,ue
eu descobl'li .p ara o Rei de Ca:stela:..
1Bm .uma rterc.eWra c81111a, 1:1a:mbém cautênt:i.oa:. - a de
Lisboa, 1602 - . Vespúcio, que de facto foi na 'Vli81Qem
portuguesa dle 11501, mas sem se mtitulair capitão de Ciéllr'a-
vela, aih111D18 que a tCX>Sta lfoi atingida em wn pon.'t:o CUJja
latitude não defme, mas que sabemos te!r sido cen:a do
cabo São Roque. Mas, segu111do a «iM·UIIldw; NOVIUS>, a
alte:rragem teria sido «ltrezeil!tas ~eguas» a •poettlite, donkLe
teriam navegado contra vento e corrente até àquele rcabo.
rPositeriormente, na ~a», Vespúóo oorr.igiu ltail cüs~
rtânoia para c:150 'l~uas», .mas dé ao cabo São Agostinho.
A:.ssim telescopa OS' dois Clalbos, separada; por rm W IOelllto
de ~guas. Estas duas rear:tlals !foram COllSideradas -«apó-
crifas:. peilOis professores que class'iifi10a11"<l1Dl oomo cautên~
ticas» as outras três já dtadas.
·Acontece, porém, qu:e, na dre 1502, Vespúdio dk!:clma
que, cpela quai tet~ra cor.remos oorca de 800 1legU18S em di~
recção a 14 do sudoeste para ooidenlte» -em ii.t ailiano, ·«r800
leghe tu1itla volta allla 14 a di ~·ilbeocio :verso iPooente» - ,
·r wno que cooresponde a S040. Asswm, segUJndo a carta,
teria sido atinJgjda a latitude Ide «50 IQrad:i», a qu&, fSIO.mada
léii06 40 graus da Península, compl'etaria «uma quar.ta parte
do mundo:., ou seja c à pairte dos antípodau, wn iinftelr.e ssanrte
cang.ulo reato» <:0111 os halbitantes de 'POl'itugall Contudo
 AMÉRICA [cAP.
os fans d:e Vespúoio não notaram que aquellas 800 J~uas,
rao r umo C'OllCireto de -«sudoesrte rq uarta de .Poente», ~riram
co.r:ta.r pela terra dentro, passando :pela Bolívia, e termi~
nrarndo na latitude rtr'inrta •gr81US, em rpleno oceano Pacifico/
Como se 'Vê, os a!bsu:r:dos· cumulam~se nas três «cartas
autênticas», de sorte qu.e, se pusermos de ,parrt~e a det:a~
iLhalda «'Leittera:. ICOm as suas Quatuor Navigationes,
~ de, ·oom o m~mo croitér.io, abandonm todas as
ou:tras, e nalda fu,ca:r.emos sraben·d o a respeliilx> das «quartro
vria.gretn5t» de V es:púrc:io, a :primlelilrra dias quraás é 'e'Wk:IJelnrte,..
menote uma rf.alsi:fucação.
Tlaimibé:m algualS a:dm~r.adores de Vte!Spúcio se têm exta~
s!irardo com os seus rmm1X:lls, como «cientista» d:a expedição
de 1501, e «COS:móg•r afo de merito, perito prim:irp;aiLmen.rtle
•em cakwlm as J:afitudoes». Assim o tomam a s~rio como
«nJaMeg:ackn- ra5•t ronómico». 01'18 VespúC'io na.s sUJaS célt'tas
na:d:a nos revela a tall respeito: só :se rrefer.e a determinações
ode latitude por •es'Íil'le'las. - uma das quads tell".iiaa ide ser a
·PoJ.a:r do Sucr, invi·sível à vista desa:mnadrar- e n.U!Ilca se
·r ef•eil'le à obse:J.Wlação corr·e!Ilte entre ·o s pi1otos po!litugueses,
a úndca Ide conlfiançra, que era a de alturas do Sol.
Adle ma!is, tilra sua Clalr!ta de Semlhra, 1500- oonside.-
rrada «autêntica»- Vrespúcio n18.i1'11'1a uma obser:vaçã:o da
·«Conljunção da Lua com 1Mra•r te:., dia qual, por um aitlculo
simplista., teria dedUZ'Ido ,p ara um rponto da oos:ta, que não
especifica, a lon:g:itude dJe «r&2 rgu:aus e meio pall'a ~este de
Cádis» . iEste va;lor, que oorres,ponlde a·o s a'Cituaris 90 graus,
deEine. um ponrto na OOSitra de Yukatan, ondle Hajeda não
chegou. Nem sequ:er ColO!D11bol
];: prolixo record:ar que tliii1 profesSIOr de Astronomia,
181Dialisa!lldo as rfuln.ol:'asi•as de Vespúoio, concluiu que ele não
d!ispU!Il!b.a de elementos para a swa determinação da aOillg:i,..
twde pela Lua, e que só por acarso Se' poieLeria !ter aprox·i~
III, rn] AMÉR!CO VESPÚCIO 379
macio da rverdade. Ora Madalena, rpoillto m;a1is ooide~ntal
ra'tiilng~do por Hoj.elda em .1500 - 1quandn levarva Vres,..
rpúoio - ~ica nos 75 g·rau:s de long:ituide, e, sem obset"V'ao--
ções astronóm!icas, o pi·l oto La Cosa não er.rou itaMo como
Vespúdo. Contuido, OSo seus a.dtnúradorres contJinwam a
l8lfirmar qwe Vespúcio dlesoobr.iu o prooesso da 1ongdíude
pelas «distâindas JUiJl1811'1eS:.- só prta/t:icávre:l de:sdre que, cerca
de 11.7 00, Newton criou um ·Wstll'Umen!tx> de dupla reflexão.
Que poderia .t er limra.gina.do VieSpúcio só oom astrolábio ou
qwadran'te, oomo preoonldre rPoM? De tresto, mesmo acei~
tando as suas c<U~tas .como autênticas, nada se pode con~
clu:itr sobxe a oompertênlcia de V es,púcio como 1p:iloto, pelo
menos enqwanto iilOS con•tou as suas navegações.
IBm COlllOlusão, se nos rpreocupa.I~mOIS com os absurdos
das CJal11!as de Vrespúcio, todas soerão excluídas, e n:ada ~
tatrá a ·r:espe:ito Ida sua mterv:enção mas ms.vegações, seja como
na'Vegador, piloto ou cartógralfo. Resta a:indra ·llelf.lectir qwe,
se os seus amigos de Folooetnça, !p81l"a o en!&tecer, rl he retoca~
Mm as cartas - das quais nenhuma nos •f icou orrif~ -,
não é d.e crer que s·e at.t'1eMeSsem a altera!!' detalhes técnicos,
nos qUiads s•e apc»a a opin:ião p.ejoralfivra 1a1 respeito da lin't:Jeir~
venção de Vespúcio nos Desoobr.irmen1X:lls. Tal é, por exrermr-
.p lo, a sua inverosími•l cllegalda à latitude swl, 50 ou 52
graus.
rSiml A deficiência tlécnica, denU!Ilcialda por todas as
cartas atribuídas a Ves:púcio, atesta a sua incompetência
como na'V'egador, pois nrem ahes oompreendeu OIS! rabsurrdas
náwtioos. Humiboldlt oOai1'leiCeU lere base parra o supor «rastlr~
i!l'Ome de ·l'exopré'dition», oomo ca:rec:ia V~gnaud ao classi~
ficá~.lo OO!JDO astrônomo re cosmógrafo, «JSupérrieUtr ~ oes
-
mat'iê~ a.ux rnra.VIiga.tewrs de S(m .t emps». Contudo, Vrignrauki
•rterconhece não só não ll'lestarr prova da a.ut·e nt:icidade Idas
cartas, oomo tramrblém que V~espúcio ll!U!IlCB se ra.presenrta
 III, m] AM~RICO VESPÚCIO
AM:é.RJCA [cAP.

como «ayant -oommande •l es ~oyiliges dont hl rend ~». J)UbllicaJdas !e!Dl 1504. Cltl'jla leitu!Ia inspir'oU o mgén.uo oosmó-
gralfo alsaciano, levamdo-o a criar, pél'1'la a Terra de Santa
Mras é ~elrltlo que nunca nos ci'bai o IJlODl·e do .o hde...
Enf.ian, otentando elevar o florentino acima ido geno- Cruz, o rpseu:dón:imo de AMÉRICA. O qua:J.- talrv.e:z por
vês, os fam de Vespúoio lél!fi!rmaram que de «supemra» ser cdle fazer cartas» ou cbest sellm·g » - fez C1811'111elÍ1I',
sendo depois tt'ansferido pa:ra o continente a nOl.'ltle das
Colombo, por rte:r ctdesooberto» que a .terra ·firme, ~Jsitad.a
em •1501, não era «a:.sdát!ioa», oomo .eile lai!Dda a cansidieraNa Antilhas. .em cwj·a·s costas V ersrpúcio nem seq·u er jamais
pôs 05 olhos. E ra:irndla lSie insiste em e:sc.rever que «la priori-
quando, no attl.O anteroior, IIl/éWieiQ'Oll oom Hojeda.. Ora lé
certo q.UJe os Portugueses, com quem Vespúc:io, a seguir, dade Ido desoobrimento do Brasil ~he pemtence»l
ruwe:gou, já sabDan1, pelo menos desde ·1500, que o Adân-
ltJioo ·Su:l não tb aoh.ava rterra ·aSiática. Só a Groenlândia seria,
ltia:liV'eZ, uma «ponta da Asia», mas ligada à Sibérila pdo
norte. .Porem •V espúcio rem Cabo Verde, em J•u nho de
1501, l8linidta eSIOIIeVlia que a expedição portJugUieSléll, em que
lia, !Se tdir.iglia, pelo ociden!te, para a <mfmi>tissima .temra
ddl'.A sia», tdesoobetrtla «IJlOr V:e~Stpúcio» IIlO lélliilo tanlterior, da
.quail ouv.i!ra fa.Latr na esquadra de :Gahral, aili en.cx:mtrada.
rF oi só depois de chegar à Terra de Santa Cruz, e
por lá naMe:gar com os .Portug•weses, .que Vespúc:io desco-
briu que est:alva errado, e que se: lt!raitarVa de um N~
Mundo, com o :quaJ não é Hcilto supormos que Colombo.
desde que em 11498 descobrira terra rm·r me ainda estaiiTia
.i:luldido: Ibero. sen.sarta é a opinião de Thacher, que 'C()OllSá-
dlera «hwni<liating» para~ Colombo a v.ell"São de ele oon-
fundlirr Cuba com «<terra lfoimne dJe Ásia».
Foi só ~ dos marrearnt!es rport.ugweses e kJe
Colomrbo que 'V espúcio escreveu que se rtratai\Ta de uma
lll.OVa pa.rtte .do Munido, dWferen'te da !Visitada por Marco
rPdlo, .t:eN"a :tão .rlica que os pallácios se:ri.aan cobertos de
cihapa onrdoui1adra, !feita de UliD m•e tal abundattt!te, e próprlio
por ser :inoxlidávd, o ouro ...

Não foi pois originar! ressa oonrepção ~uClÍiéliilia do

crMUID.dus N10VU51», lSÓ expressa por ele IIliBS SUIBS cartas
 CAPlTULO IV

Í NDIA

SUMÁRIO:

I - O descobrimento do caminho marí-

timo para a lndia
n - Discussão sobre a rota seguida por
V asco da Gama entre Santiago
e São Brás
m- o diário da primeira 'IJiagem de
Vasco da Gama à lndia
IV- A rota de Vasco da Gama nas «Len-
das da lndia:.
Vasco da Gama, segundo o desenho à pena, realçado a aguarela,
de Gaspar Correia, feito cerca de 1550- I 555, para o manuscrito
do original das Lendas da fndia . É dos mais antigos retratos que
se conhecem de Vasco da Gama
In •A s assinaturas de Va sco da Gama•• , de Luiz K eil
 I - O DESCOBRIMENTO DO CAMINHO
MARITIMO PARA A INDIA

No dia 20 de Maio de 1498, domingo, os navios de

Vasco da Gama encontravam-se cjuntos com huuas
montahas as quaes sam mais altas que os homens
nunca viram». Havia já dois dias que, depois de uma
travessia de duas mil e quinhentas milhas desde a
costa de Africa, sem se avistar terra, tinham chegado
à costa indiana. Era cterra alta» que por causa dos
cmujtos chuyveiros e trovoadas», comuns ali naquela
época do ano -monção de sudoeste - , não a tinham
podido logo reconhecer.
Foi pois sõmente no domingo que o piloto, tendo
o tempo clareado e chegando-se mais à terra, a reco-
nheceu, por ter distinguido o característico pico duplo
da cordilheira dos Gates, chamado Boosa de Camelo,
pico tão alto que tem quase cinco vezes a altura da
serra de Bintra, muito vista dos mareantes. :Este pico
fica c·s obre a cidade de Calecute», de acordo com o que
se lê no cRoteiro » da viagem de Descobrimento da tndia
e com o que sabemos.
Navegaram então para a costa, indo Vasco da
Gama enfim fundear perto da ccidade de Calecute», a
qual, desde Lisboa, se projecta.ra demandar, visto ser
c& terra honde nos desejavamos dir», como diz o
25
 ÍNDIA (CAP.
«Roteiro». Estava finalmente descoberto o caminho
marítimo para a autêntica India, e ninguém poderia
mais ter ilusões sobre a maneira prática de atingir
por mar terras de Ásia, tanto mais que foi no ano de
1498 que Colombo descobriu finalmente terra firme,
a costa de um novo continente, em absoluto diferente
da conhecida China.
Para chegar à India Vasco da Gama não realizara
uma navegação tão simples que se lhe pudesse aplicar
a anedota colombiana do truque do ovo, ao qual basta
esmagar-lhe parte da casca para o poder ·e quilibrar
sobre a ponta. Não bastara aos pilotos portugueses o
truque de navegar oitocentas léguas para além das
ilhas Canárias, rumando durante cinco semanas a
oeste da agulha, para se atingirem terras da 1nd~a.
Porque só a preparação da rota que Gama deveria
seguir exigira meio século de explorações, mais do
mar do que de terras.
E, afinal, foi dessa mesma preparação que resul-
tou o descobrimento do Brasil.
• à própria custa. Contudo, alguns contam que D. João li
Já anteriormente, em 1493, quando Colombo fez
sua passagem em Usboa, de regresso das ilhas a que
dera o nome de lndias, D. João li, ao ouvi..1lo, não
teria deixado de sorrir.
Porque este «homem sagaz» já estaV'8. seguro da
di·s tância à lndia, e não .p odia acreditàr que aquelas
illÍa:s, povoadas de gente nua, desconhecendo seda e
ferro, fossem já Ásia ou, sequer, o Cypango, que ficava
antes das costas da China, e onde se sabia viver gente
civilizada, tão rica de ouro que lhe aproveitavam a
IV, I] O CAMINHO MAIÚTIMO PARA A ÍNDIA
propriedade de metal inoxidável para cobrirem os .
palácios.
:m certo que alguns historiadores literários acei-
tam que o Rei D. João 11, tendo, cerca de 1483, ouvido
Colombo sobre certas propostas de ir à India pelo
ocidente, consultara a tal respeito uma Junta de
Matemáticos. Tais cientistas só poderiam informar
que, visto a Terra ser credonda», em teoria tan·t o se
poderia ir a Cathay e à lndia pelo oriente como pelo
ocidente. Porém, sobre a possibiMdade de o realizar
com os barcos de vela da época, a Junta nada poderia
adiantar, porque essa fase prática dependia de ventos
e dos mareantes. Colombo, se alguma coisa de novo
sabia, seria por o ter ouvido a algum português que
tivesse navegado pelo Atlântico Central.
Já havia meio século que não era segredo a exis-
tência de terras - «Ylhas ou terra-firme» - ao oci-
dente, reveladas pelos restos de plantas desconhecidas
na ·E uropa que as correntes levavam aos Açores.
Apesar de não se tratar de pimenta, ou especiaria, já
vários aventureiros portugueses lá tinham tentado ir
teria hesitado, a ponto de mandar ao Ocidente, em
segredo, cuma caravela» - tornarei a falar nisto -
em exploração. Certa história acrescenta que aqueles
pilotos portugueses, capazes, como .s abemos, de passar
além do cabo Tormentoso, nada teriam conseguido
descobrir al·é m de «tempo torbolento», o qual os fizera
arribar a Lisboa, dizendo que não tinham encontrado
fim àquele mar. Tinham recuado por falta cde cou-
ra:ge» e cd'énergie»! Mais uma tempestade inventada
pela História .. .
 ÍNDIA (CAP.
Pois a História também não pode ignorar que,
mesmo depois do sucesso das duas primeiras viagens
de Colombo os Reis de Portugal insistiram na prepa-
ração da vi~gem da tndia, a contornar a .Africa, e isto
apesar de já saberem que essa viagem indirecta exigi~
navegação de mais de três mil léguas. Como se va1
mostrar.
• Mo~ambique e Sofala, terras governadas por chefes
Quando, ainda em vida do Infante D. Henrique, em
1445, passado o cabo Verde, se notou q~e a ~sta de
Africa já não corria mais a sul, mas inflectia p~a
nascente, ganharam crédito as esperanças de a Ãfrlca
se não estender pelo hemisfério sul. De facto, nave-
gadas 250 léguas, a costa já corria francamente a
nascente em latitude sensivelmente a norte do equa-
dor; porêm, meio milhar de léguas além daquele .ca~,
a costa tornava a virar para sul. Desfizera-se a 1lusao
de ser fácil passar do Atlântico para o Mar da tndia
com uma rápida navegação costeira.
. Contudo isto não foi bastante para animar
D. João II ~ aceitar o esquema de tentar ir à lndia
·c ortando o Atlântico para poente. Tinha-se prosseguido
na exploração da costa de Africa para sul. Cortou~se
0 equador em 1470 e, enfim, em 1487, Bartolomeu Dias
dobrou a ponta sul-ocidental da África, um cabo a que
chamou Tormentoso, nome que D. João li mudou para
cabo de Boa Esperança. · DiaiS navegara ainda umas
150 léguas para nascente, mas o cansaço geral e uma
forte corrente contrária impediram a continuação do
reconhecimento da costa, para nordeste. Notara-se,
IV, 1] O CAMINHO MARÍTIMO PARA A ÍNDIA
porém, que a corrente era de águas quentes, o que indi-
cava que o caminho estava aberto para além do trópico.
Pela mesma época, um emissário secreto de
D. João li, Pero da Covilhã, disfarçado em mercador,
conseguira passar, por Alexandria e Mar Roxo, para o
oceano Indico, por onde navegara. Estivera em Calecute,
importante centro comercial, e, na costa de Ãfrica, em
mouros, os dois pontos extremos então atingidos na
costa oriental da África. Sofala e o r1o do Infante, de
Bartolomeu Dias, já só estavam separados por menos
de trezentas léguas.
De resto, a posição da própria lndia já vinha indi-
cada nos mapas conhecidos da época, como o de Mar-
teUus, com alguma aproximação: a sua costa ociden-
tal era arrumada, em longitude, distando de Portugal
cerca de uma quarta parte da volta da Terra.
Eis as razões pelas quais podemos crer que
D. João li, em lugar de «hesitar:., sorria quando, seis
anos depois, Colombo se lhe foi gabar de ter descoberto
um caminho marítimo para a lndia. Porque já então
os nossos mareantes estav-am informados acerca da
maneira prática de vencer as dificuldades de navega-
ção, que impunha a rota portuguesa pelo Cabo. Do que
se faria segredo, por não convir distrair os Espanhóis
das suas tentativas ocidentais.
Certo, talvez os Portugueses, em 1493, não sou-
·b essem ainda que um novo continente, a. que depois se
chamou América, ba11rava de norte a sul a passagem
ocidental para o oceano Indico. Porém eles estavam
seguros de que, ainda mesmo que esse cam~nho oci-
dental estivesse completamente livre de terras e ventos,
a distância a navegar através de oceanos desconheci-
392 ÍNDIA [ CAP.
são as mesmas que os roteiros agora aconselham, este
facto concreto revela um conhecimento regular da
posição de terras e de vent08 do Atlântico Sul, em
várias estações do ano, adquirido anteriormente a 1497.
Outro facto concreto, o de ambas as esquadras
serem quase completamente compostas de MU8, e não
de navios próprios para reconhecimento, como seriam
caravelas7 confirma nàuticamente esta versão.
Apesar disto, uma obra recente não deixa de alvi-
trar, teõricamente, que a conjectura de uma tal explo-
ração ou estudo da ·r ota a seguir é menos provável,
porquanto os pilotos portugueses se contentaram com
a suspeita de que no Atlântico Sul reinava analogia
ceólica:t -ou de ventos- com o regime de ventos do
Atlântico Norte. Ora, faltava base para tal dedução,
visto que ao norte do equador domina no Verão a
conhecida monção de ventos de sul, a qual nunca se
manifesta no Atlântico a sul do equador. Fiarem-se
em tal crença seria cir a acertar•, contra o que lemos
no cTratado da Sphera• , de Pedro Nunes.
De resto, ainda que houvesse tal csimetria:. de
ventos, também era suspeitada a. existência de terras,
as quais, se não fossem simétricas com as terras do
Atlântico Norte - e não o eram - , poderiam impedir
o traçado de uma rota análoga à Volta do Bargaço,
que leva os navios até cerca do meridiano 40 graus a
oeste de Greenwich. Ora este mesmo meridiano corta
francamente terras no Atlântico Sul, ou seja a. parte
mais oriental do Brasil.
Como se vê, a nova conjectura iria contra a reali-
dade de ventos e de terras.
A dezena de anos que medeiam entre as viagens
de Dias e de Gama- apesar do grande interesse que
IV, I] O CAM INHO MARÍTIMO PARA A INDIA 393
então havia em se chegar à India- indica-nos que
houve, de facto, um estudo prévio da rota a segui·r .
Esta exploração teria sido realizada, tanto partindo
das ilhas de Cabo Verde, como alargando para oeste
as viagens de regresso da Mina7 que se ·f aziam pelo sul
do equador, a aproveitar a conhecida corrente equato-
rial, favorável.
Podemos, pois, arrumar a invenção histórica da
viagem de Gama à mercê de ventos e calmarias, ao
lado de uma outra, muito mais antiga e também falsa,
mas nem sempre abandonada pelos historiadores: tal
é a lenda de que Vasco da Gama, para dominar a
repugnância que os seus tímidos mareantes manifes-
tavam em passar além do cabo Tormentoso, teria
teatralmente lançado ao mar «astrolábios, cartas,
bússolas», a fim de cortar os crequerimentos» de arri-
bada a Portugal! Contaria comprar outros na India,
se lá conseguisse chegar? ...
Resta pois aceitar que aquele inevitável reconhe-
cimento - realizado secretamente, como o tinham sido
os de Bartolomeu Dias e de Covilhã - se concluiu entre
1487 e 1497. Dele se apurava que o vento geral sueste
se estendia no Atlântico Sul muito para poente, mas
que a sul, na:s alturas da actual Baía, esse vento
começava alargando7 a soprar de leste7 de modo a
permitir navegação para sul, até ganhar latitude supe-
rior a trinta graus, em que demorava o cabo de Boa
Esperança.
Nesta exploração ocidental fora encontrada a
sotavento uma terra corrida a do futuro Brasil a qual
' cerca de oito graus
seria preciso montar7 até que, ' de
latitude, ela se «inclinava:. para sudoeste. Para tal
fim impunha-se o cuidado de não cortar o equador
394 ÍNDIA [CAP.
muito além do meridiano das ilhas de Cabo Verde, o
que no Verão, por causa da monção de sul, obrigava
os navios a irem tomar barlavento a nascente. Só de
várias viagens de exploração é que se poderia ter con-
cluído que não era preciso alongar a bordada li.nicial,
pa.ra sueste, indo mai•s a oriente que o cabo das Pal-
mas, que ficava um cento de léguas antes da Mina. Com
esta bordada já os navios conseguiriam sempre, na
volta do mar, ir montar aquela parte da costa que
vinha mais a nascente - hoje chamada de Pernam-
buco - , donde depois se podia ganhar sul sem ter de
costear Mrica, tanto como fizera Bartolomeu Dias.
Tal é, muito provàvelmente, a origem técnica da
versão das «caravelas secretas», que D. João 11 man-
dara partir de Cabo Verde- não a «atraiçoar Colombo»
como contam os eolombia'llos, mas para sudoeste,
onde convinha verificar qual a posição e efeito das
terras, se por ali as houvesse.
O próprio Colombo nos infonnou de que D. João 11
afirmara que «al Austro habia tierra firme», e tanto
que este rei «tenia gran incldnacion de enviar gente a
descubrir a suroeste» da ~lha do Fogo, do arquipélago
de Cabo Verde. (Madariaga, pág. 451). :m sabido que
Colombo o imitou em 1498.
Por outro lado, para além do cabo de Boa ·E spe-
rança, surgia a dificuldade das correntes contrárias,
que lá encontrara Bartolomeu Dias em 1487. Mas elas
podiam ser contornadas, indo-se pelo largo da costa
como fez Cabral em 1500.
Depois, ao longo da África Oriental, a navegação
já poderia ·s er costeira, como Pero da Covilhã a vira
lá fazer aos pangaios, em que chegara até Bofala.
IV, 1] O CAM INHO MAIÚTIMO PARA A fNDIA 395
Enfim, ·s egundo as informações do mesmo via-
ja'll.te, havia a contar com a travessia do oeeano lndi·co,
viagem que os nawos trafegando entre a lndia e a
Ãfrica - como depois as nossas naus- só realizavam
a favor dos ventos dominantes, os das duas monções.
Estes ventos sopravam de nordeste, de Novembro
a Abril, e era nessa época que os navios indianos pas-
savam da lndia para a Mrica Equatorial. Os regressos
à lndia só se faziam nos meses de Maio a Outubro, em
que naquele oceano dominam ventos opostos, os da
monção de sudoeste.
Estas informações concretas teriam sido forne-
cidas ainda por Pero da Covilhã.
Também se teria sabido que o oeeano Indico
não era tão lrinnpo como o Atlântico. Haveria
pelo meio várias ilhas, e até meio cento de léguas
em mar da costa i'lld~ana, chamada do Malabar,
corria de norte a sul um rosário de ilhas e reci-
fes -as Laquedivas e as Maldivas -, cujos canais
de passagem só os pilotos indianos conheciam. Natu-
ralmente, Covi•l hã, que não era náutico, nada poderia
ter informado sobre latitudes, seja dos portos africa-
nos, seja de Calecute, de resto avaliadas pelos Mouros
em certa unidade angular, diferente do grau dos pilo-
tos europeus. Mas Covilhã, que atravessara o Indico
várias vezes, com certeza informara que a travessia
daquele oceano era realizada aproveitando observa-
ções de .a stros, exactamente como os pilotos portugueses
praticavam no Atlântico.
Como se vê, a viagem de Portugal à lndia estava
longe da simplicidade colombiana, embora fruto de um
«plano» misterioso. Ela só pôde ser realizada depois
de uma exploração marítima que levou mais de meio
396 fNDIA [cAP. 'iOV E ~ ADOJ.\'1 RGE CA bR ALL·MAMD<W}A"S[RJ.1CM0
R IA DAS · 1\ RMAD A S·Q.VE ·PORTV G ALL· PA ARAM'AEITA)
século, só concluída em tempo de D. João 11. Não se PAR T ES·E:,TA·PRlM EIRA·COM'G..'·lEVASC. O · DA .
pode dizer, dos navios de Vasco da Gama, que co vento .G AMA · C OM·~vE DARTJo·REII'v OA NO· DE·497
os levou~ como se diz dos de Colombo .

•
Vasco da Gama largou de Lisboa no Verão de
1497. Começou por rumar directamente para a ilha de
Santiago, passando entre as Canárias e a costa de
África, como os ventos favoráveis permitiam.
Das ilhas de Cabo Verde, por ser em Agosto, época
da monção de sul, foram tomar barlavento a sueste,
ao mar da Berra Leoa. Daqui meteram na cvolta do
mar~, indo cortar o equador pouco a nascente do
penedo de Bão Pedro, do qual só tiveram noticia vaga
pelas caves feitas como garções» que, à tarde, talvez
para lá voassem. Seguindo na bordada de sudoeste, que
o vento geral de sueste lhes permitia, foi atingida a
latitude do cabo de Santo Agostinho. Assim consegui-
ram passar ao largo da costa brasileira, sem sequer
dela ter havido sinais. Se Vasco da Gama tivesse
rumado logo de Santiago para sul - como o vento ali
lhe permitia, e como Cabral fez em 1500, mas em
Março - , Gama, depois de navegar ·a ssim uma centena
de léguas, teria encontrado vento sul da monção. Já
não poderia mais rumar a sul, e teria metido pam
sudoeste na cvolta do mar~. Assim as suas naus teriam
ido esbarrar na costa norte do Brasil, e a viagem para
a lndia estaria comprometida, por se lhe tornar impos-
sível, contra os ventos e correntes para oeste, que aJ4
dominam, conseguir dobrar o conhecido cabo de Bão
~.

1\ Arm ada de V asco da Ga ma na I ." viage m à fndi <I

lu ~< Dicí rio tf,· V. lSco d 1 .z·• V o/. 1
G~..!m . plÍ,Ef. 9 1
 t
IV, 1] O CAMINHO MAlÚTJMO PARA A INDIA 397

Como venho acentuando, este interessante deta-

lhe da rota de Vasco da Gama- que os primitivos
comentadores do seu cRoteiro:. não notaram, apesar
de também estar nas cDécad81S», de Barros, e em
«Üs Lusíadas», escritos por um navegador da tndia-
este detalhe prova materialmente que em 1497 já os
pilotos dispunham de informações claras sobre os
ventos e terras do quadrante sul-ocidental do Atlân-
tico. Essas terras, previstas em 1494 no Tratado de
Tordesilhas, já estavam, pois, localizadas, porque só
assim se compreende que Vasco da Gama tivesse adop-
tado uma rota indirecta em dupla bordada, que é a
mesma praticada pelos veleiros modernos quando pre-
tendem montar o cabo de São Roque.
Continuando para sul, Gama foi entrar na região
dos ventos oeste que, nas altas 'l atitudes, sopram todo
o ano. Eles lhe permitiram desfazer para leste o cami-
nho com que inicialmente se afastara de África. Mas
o conhecimento, ainda incompleto, desse regime de
ventos não lhe permitiu o ir de rumo feito dobrar o
Cabo, e Gama foi ainda encontrar vento ,s ueste, com
o qual foi avistar costa de África, cerca de meio cento
de léguas a norte, e a sotavento, do mesmo cabo.
Entrou depois na baia, que ainda conserva o nome de
Santa Helena, que Vasco da Gama lhe pôs.
Esta travessia do Atlântico Sul, em quatro bor-
dadas, exigiu três meses de navegação sem avistar
terra, facto aJté então inédito na História.
Depois, tendo bordejado uma semana contra o
vento cSull Susoeste», ali dominante, em 22 de Novem-
bro de 1497 a esquadra portuguesa passava o famoso
Cabo, penetrando no oceano tndico. Até aqui não
houvera tempestade alguma.
 ÍNDiA (CAl'.
Para abastecimento de água, lenha e frescos, ainda
Vasco da Gama tocou em vários portos da costa afri-
cana, como São Brás, Boa Paz, rio dos Bons Sinais (o
rio Zambeze), e Moçambique. Já aqui passavam navios
da India -os pangaios -, de modo que, desconhecida
em detalhe a técnica da navegação do oceano Indico,
do qual não tínhamos ainda carta de marear, e sabidas
as dificuldades da travessia desse mar, começou logo
a tentar obter piloto indiano. Porém, os Mouros, para
quem o comércio com a tndia constituía uma espécie
de monopólio, fizeram a Gama toda a oposição possí-
vel. E, mais ao norte, em Mombaça, até tentaram a
destruição dos navios. Já a carência de pilotos causara
encaJlhe de uma das naus, em uns baixos perto da costa
e a norte da ilha Zanzibar, donde o navli.o se safou na
preia-mar. Às «baixas» deram o nome de San Rrafaell.
Fina:lmente, recebidos com condescendência rpor
«El-Rey» de Melinde- porto ainda a sul do equador-,
conseguiu-se obter aqui um piloto hábil para levar
os navios à tndia. Como já começara a monção de
sudoeste, vento favorável à travessia directa do oceano
Indico, a costa indiana foi atingida depois de «vinte
e três dia's que não viramos terra», como lemos no
«Roteko:. desta viagem.
Examinados os mapas de agora deduz-se ·q ue o
piloto foi passar no canal entre as ilhas Laquedivas e
Maldivas- as quais não avistou-, donde -romou para
Calectite. Para traçar esta ~longa rota de setecentas
léguas de alto mar não seria suficiente a bússola, tendo
a navegação imposto recurso a alturas do Sol. Assim,
ignorando os Portugueses a existência daquele canal,
·como até a latitude de Caleoute, a travessia de Ma4o de
IV, I] O CAMINHO MARÍTIMO PARA A ÍNDIA 399
1498 teria •s ido muito contingente sem a intervenção
do piloto indiano.
A viagem de regresso a Lisboa não foi isenta de
dificuldades. Só a travessia do Mar da India custou
três meses, em que muitos morreram de escorbuto.
Não houve, é certo, tempestades. Mas os ventos, espe-
cialmente depois do Cabo, impuseram rota diferente
da de ida: directa pelo Atlântico Sul, e na Volta do
Sargaço pelo Atlântico Norte.
•
Vasco da Gama partira com três naus e uma cara-
vela de apenas cinquenta tonéis. Doenças e privações
dizimaram as tripulações a tal ponto que, daqueles
que em 8 de Julho de 1497 embarcaram na «praia de
Restello» confortados pela Igreja como cse fossem a
sepultar:., desse cento e meio de homens, apenas um
terço tornaram, no Verão de 1499, com dois anos de
viagem, àquela mesma praia de Belém. Dos principais
faltavam o capi.t ão da nau «São Rafael» e o piloto-mor
da esquadra. E, dos quatro navios, dois dos maiores
foram abandonados e queimados, por falta de gente
para os marear. Só a nau «São Gabriel» e a caravela
«Bérrio» regressaram a Portugal.
Enfim, este descobrimento do «Caminho marítimo
para a tndia» teve na época tão forte repercussão que,
para o comemorar, foi erguido em Belém um templo
m:onumental. Ainda lá está, porque até o terramoto
de 1755 respeitou aquelas pedras lavradas que docu-
mentam a importância do acontecimento. Dir-se-ia que
El-Rei D. Manuel previu a indiferença- ou lamentável
 iNDlA [ CAP.
desconhecimento de Arte Náutica- com que a Poste-
ridade chegaria a apreciar a vliagem da tndia.
• encontrado pelos numerosos navegadores que prece-
A complicação geométrica do traçado da rota
seguida por Vasco da Gama exclui a aplicação por
golpe de génio de um super-homem, de um c:santo»,
eleito pelo Destino. Certo, tal traçado correcto, em
mapa, não poderá deixar de impressionar mesmo os
leigos de navegação, sugerindo mais ciência que aven-
tura, mais o estudo de D. João 11 que o c:plano» de
Colombo. Mas, lamentàvelmente, aquela rota t em, por
vezes, sido desenhada errada, mesmo como decoração
de edificios públicos.
Não se explica, pois, que alguns historiadores se
não tenham dado ao trabalho de a investigar e .recons-
tituir. Bem superficialmente a comentou, na edição
de 1861 do «Roteiro », o próprio Alexandre Herculano.
Dir-se-ia acreditarem que Vasco da Gama, quando
traçou a sua rota a montar a costa de Pernambuco, o
fez ao acaso, obedecendo apenas a uma espécie de
instinto náutico ...
Tais são as reflexões técnico-marítimas pelas quais,
longe de reiterar o sorriso de D. João 11, eu entristeço
quando verifico a flagrante injustiça com que publi-
cistas didácticos, por vezes portugueses, apreciam e
comparam a viagem de Vasco da Gama com outras
viagens de descobrimento, e especi9Jlmente a de
Colombo. Pois esta viagem de 1492, sem aflição de
escorbuto, foi tão fácil que os colombianos procura!'lam
ilustrá-la atribuindo ao grande navegador descobri-
mentos complementares, como são as dimensões da
IV, I] O CAMINHO MAIÚTIMO PARA A fNDlA 401
Terra, a variação das agulhas, os ventos alisados, a
corrente do Golfo, o Mar do Sargaço e, até, novas
estrelas. Ora tudo isto os Portugueses já conheciam,
deram Colombo no Atlântico CentraJ.
Outros historiadores não navegados tentam des-
vendar os mistérios do sucesso do c:plano de Colombo~,
por ele ter sabido sagazmente interpretar um certo
mapa, que um cosmógrafo !italiano, Toscanelli, teria
enviado para Portugal, no qual revelava a maneira
prática de se ir à Ásia e tndia atravessando o Atlân-
tico segundo c:camino de la mar más corto» que o c:de
Guiné». Este mapa, que Colombo teria consultado no
Arquivo secreto de D. João 11, não tinha sido com-
preendido em Portugal, nem mesmo pelos doutores
da c:Junta de Matemáticos», mas s6 por Colombo, que
o copiara e, até, o fora aproveitando durante a sua
travessia de 1492 ( c:C. Colon», por Madariaga, págs.
123, 167, 231, 245, 292, etc.). Pois de tão famoso mapa
do Atldntico Central- um tabo -ninguém viu mais
que uma moderna reconstituição fantasiada, extraída
do Globo de Behaim -outro que o não compreen-
dera! - , e tecnicamente inútil para realização de
viagens novas ao ocidente, porque erra as terras e
não indica os ventos.
São estes mesmos autores superficiais quem des-
conhece, ou disfarça, a importância que, tanto para a
viagem de Vasco da Gama, como pa.r a a de Colombo,
tiveram outros mapas e informações náuticas, resul-
tantes de uma anterior exploração do Mar, exclusiva-
mente portuguesa. Obedecendo àquele tão condenável
critério, a viagem de Vasco da Gama entre 1497 e
1499, a primeira em que de facto navios ' europeus
26
402 íNDIA [cAP.
conseguiram ir até à tndia, raro interessa publicistas
literários.
Sim. As nossas edições do cRoteiro::. da viagem
da tndia ainda se contam pelos dedos da mão. São só
quatro. O esforço colectivo que a sua preparação e
realização .r epresentam, essa incontestãvel cfaçanha
marítima», coroada pela apoteose da chegada à autên-
tica tndia continuará a ser ·Cla:ssificada abaixo da
famosa viagem ' às Antilhas, que até teria sido a pri-
meira de clongo curso». Um autor moderno, cde pol-
trona», esquece até a primitiva Volta da Mina, ou dt>
Sargaço e classifica a Vli.agem do Gama como
c costeira:. ! Seria por ele só ter deixado junto das
costas, e não no mar, os seus cinco padrões, agora
desaparecidos?
Enfim chegou-.se a escrever- talvez para impres-
sionar a galeria- que, sem a excitação que em Portu-
gal provocou o sucesso colombiano de 1492, Gama não
teria sido mandado à tndia, e o negócio ficaria em
meio, nt> Caho. Colombo, violando o Mar Tenebroso,
teria sido o «animador» da travessia definitiva, por-
tuguesa. Ele - afinal, como mareante, mais português
que genovês ou espanhol - , se não descobriu caminho
ocidental para a Ásia, teria, digamos, indirectamente,
·concorrido para o desC!Obrimento do caminho (ia tndia!
E assim o nome de Cristóvão Colombo - que se não
deve omitir sempre que se trate da viagem à tndia- ,
do navegador que nada teria feito .se s6 tivesse conhe-
cido navios do Mediterrâneo, ofusca nomes de outros
mareantes, eficazes colaboradores da grande viagem
de Vasco da Gama, desde aqueles pioneiros que reali-
zaram o demorado descobrimento do Mar- iniciado
quando, em 1431, se foi aos Açores e, em 1434, se passou
IV, n] ROTA ENTRE SANTIAGO E SÃO BRÁS
além do cabo Bojador - até ao piloto-mor, Pedro
Dalanquer, que já antes de 1492 entrara no oceano
Indico com Bartolomeu Dias. Entre eles avultam
obscuros precursores que antes de 1497, e portanto
do advento de Colombo e de Vespúcio, localizaram
aquela parte do continente sul..americano que mais
se aproxima da costa africana, o Nordeste do Brasil.
Tais são as razões sentimentais que me levam a
aproveitar a oportunidade para insistir mais uma vez
-que não terá de ser a última- nas tentativas jorna-
listicas de vulgarizar e comentar, nàuticamente, as
grandes travessias marítimas. Entre elas avulta uma
Vli.agem ideal, a da tndia, utopia com que os Europeus
sonharam muitos séculos e que, por vezes, tentaram
ao acaso- indo c a acertar» -até que esse sonho foi
levado a cabo em 1498, mercê do esforço bem orien-
tado daqueles autênticos desbravadores do Mar Tene-
broso que foram os navegadores portugueses. São
estes nossos comuns antepassados os descobridores
da tndia.
11- DISCUSSAO SOBRE A ROTA SEGUIDA
POR V ASCO DA GAMA
ENTRE SANTIAGO E SAO BRAS
A viagem de Vasco da Gama à tndia não tem
sido convenientemente estudada, na sua parte técnica,
não só por causa da carência de documentos, como
também por não se ter compreendido o alto significado
da rota de mar largo - e não coste4ra- que Gama
seguiu no Atlântico Sul.
 ÍNDIA (cAP.
Esta viagem não teve, nem podia ter tido, a sim-
plicidade da famosa viagem de Colombo -uma rota
directa com o vento do então já conhecido alisado de
nordeste, entre as Canárias e as Antilhas. A travessia
do Atlântico Sul tinha que ser mais complex,a , e, con-
tudo, já em 1497 se praticou a rota indirecta, em dupla
-c urva, que lá praticam os veleiros modernos, apoiados
nas detalhadas cartas de ventos- «pilot-charts» -de
que hoje dispomos, não só para navegar como também
para estudar as possibilidades dos primitivos navega-
dores.
Porém, os historiadores, não tendo reparado
naquele detalhe - a rota indirecta - , não deram
importância a tal estudo.
De resto, o próprio cRoteiro:. de Vasco da Gama
é muito omisso nos detalhes sobre a navegação, pare-
cendo que obedece à. politica de não vulgarizar infor-
mações que pudessem ensinar a outros pilotos a
maneira complexa de se fazer a travessia do AtUm-
tico Sul.
E os comentários Kopke-Paiva, do «Roteiro», nada
elucidaram.
Reconhecida a importância histórica mundial da
viagem de Vasco da Gama, a qual representa a aber-
tura do oceano Indico e mares e terras do Oriente à
navegação europeia, há que começar por perguntar
qual a estranha razão pela qual só após tantos séculos
de navegação no Mediterrâneo e nas costas da Europa
coube a Portugal, tão pobre de recursos, ser o pais que
conseguiu iniciar tais viagens, embora com grandes
sacrifícios, pois, na primeira travessia marítima para
a lndia, Vasco da Gama teve de queimar dois dos seus
IV, u] ROTA ENTRE SANTIAGO E SÃO BRÁS
navios e perdeu dois terços dos tripulantes com que,
em 1497, largou da praia do RestekJ.
Era, decerto, a satisfação de um sonho muito
antigo, cuja realização ninguém se lembrou de julgar
tão simples como pôr «um ovo em pé» machucando-lhe
a ponta ...
Ela se revelara possível desde que, em 1431, em
obediência à orientação náutica criada pelo Infante
D. Henrique, as suas caravelas foram aos Açores, atra-
vessando mais de duzentas léguas de mar largo e tem-
pestuoso. Três anos depois passavam os mareantes
portugueses além do cabo Bojador, ficando aberto à
navegação o Mar Tenebroso, que alguns julgam só
ter sido franqueado quando, seis décadas depois,
Colombo, aproveitando a experiência portuguesa de
alto mar- já então amplamente demonstrada pela
viagem de Bartolomeu Dias além do cabo de Boa
Esperança- , Colombo, dizia eu, foi às Antilhas.
Aqueles descobrimentos portugueses dependeram
menos de um rasgo de audácia do que da técnica de
mar. Porque os obstáculos que, durante tantos séculos
impediram os navios de passar além da,s Canárias nã~
foram monstros, nem calores, nem sequer uma «exten-
síssima restinga» que se estenderia ao mar do cabo
Bojador, «assustando:. os mareantes.
Certo, nunca existiu tal restinga à entrada do
Mar Tenebroso, como não existiam iá «monstros» ou
cburacos:.. Sõmente havia ctrevas:., mas estas não
eram devidas a fabulosos temporais, encobrindo cons-
tantemente o céu, porque elas eram, afinal, o resultado
da ignorância em que os navegadores do Mediterrâneo
ainda estavam a respeito da possibilidade de se navegar
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ÍNDIA [cAP.
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pelo Mar Tenebroso, isto é, de se poder ir pelo oceano,
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à vela, a toda a parte com a certeza de voltar!
Assim, antes de descobrirem novas terras fora /<-;>\o o
preciso, como disse Camões, cdescobrir e conquistar o li
q,·'\
mar largo:..
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'<! ·
Esse descobrimento do Mar- impulsionado pelo
Infante D. Henrique -não se poderia fazer de golpe,
."
de repente: foram necessárias repetidas viagens para
'
se descobrirem os ventos gerais- por vezes variáveis
com a estação do ano. Assim, no caso da viagem à
Guiné, o vento nordeste permitia ir-se ;l á em rota
directa, ao longo da costa de Africa; ao passo que a
volta já tinha que ser feita em rota indirecta} pelo
mar largo, contornando em arco os citados ventos do
nordeste, que dominam para o sul das Canárias. Ia-se,
assim, passar no Atlântico Central, no Mar do Sargaço
e no dos Açores. Foi nessa volta que se descobriram
as ilhas de Cabo Verde, que ficam um cento de léguas
ao largo do cabo do mesmo nome.
Obedecendo a esta orientação geral, nas primeiras
viagens de exploração da costa de Africa, para além
da Guiné, como na de Diogo Cão e na de Bartolomeu
Dias, empregaram-se só caravelas} navios de panos
latinos que se chegavam bem ao vento, conseguindo-se
ir acompanhando a costa, até à latitude de 22 graus sul,
pelo menos. Sucessivamente se tinham descoberto os
ventos do Atlântico Sul, reconhecendo-se que lá domi-
/\
nava um regime de ventos provàvelmente análogo ao
'\
do Atlântico Nort;.e -neste o alísio de nordeste, lá
o de sueste. Ambos estes ventos se opunham às via-
gens do equador para as regiões temperadas. E é sabido
'i:' '\'
1t. ;S'' ..... .....
que, em 1487, Bartolomeu Dias, apesar de levar só li

caravelas, teve de cortar da costa de Africa para o

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U~BOA . lHO

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11
IV, u] ROTA ENTRE SANTIAGO E SÃO BRÁS

sudoeste, e só assim .pôde dobrar o cabo de Boa Espe-

rança. Mas o conhecimento dos ventos gerais do Atlân-
tico Sul permitiu, depois, fazer as viagens com as naU8
-navios de panos redondos- , as quais, apesar de
serem piores navios de vela que as caravelas, tinham a
vantagem de carregar mais abastecimentos e mais mer-
cadorias.
:m por esta razão que, na viagem de Vasco da Gama,
já só ma uma caravela- navio ligeiro próprio para
reconhecimentos- sendo naU8 os outros três navios.
O troço desta viagem, que agora me ocupa, entre
Santiago e São Brás- já além do cabo de Boa Espe-
rança -, foi realizado por rota diferente da seguida
antes por Cão e Bartolomeu Dias, os quais, em parte,
costearam a Africa. De modo que a travessia do Atlân-
tico Sul, dez anos depois, constitui ·p ara os náuticos
uma indicação característica de que antes de terminar
o século XV já os Portugueses tinham completado o
descobrimento de todo o Atlântico.
Tratava-se por vezes, de rotas indirecta8, que reve-
lam o conhecimento 'dos seus ventos gerais, aprovei-
tando-os, ou contornando-os quando contrários, con-
forme convinha. Assim, Gama, ao partir de Santiago,
foi contornando a África, com vento favorável até além
da Serra Leoa. Aqui, encontrando a monção de sul,
rumou para oeste, a contorná-la, até que se pôde
.r umar a sul e depois a sueste. Ora é certo que Vasco
da Gama, aproveitando a experiência da viagem de
Bartolomeu Dias, podia ter seguido outra rota segura,
acompanhando a costa de África até Angola, pelo
menos. Ele não poderia ter adivinhado que a monção de
sul se tornava, ao ocidente, vento entre sueste e leste,
para lhe permitir ganhar, por oeste, a latitude do
 ÍNDIA [cAP.
Cabo. Por esta razão clara, a rota seguida por ele, entre
Santiago e São Brás ronstitui uma demonstração prá-
tica de que, como o escreveu Pedro Nunes os desco-
brimentos portugueses de mares, ilhas e terras' cnão
se fezeram indo a acertar:..
~ evidente que Gama e os seus pilotos não~iam
ir navegar, à aventura, por um mar desconhecido,
arriscando-se a comprometer o fim capital da viagem,
que era dobrar o Cabo para ·a travessar o oceano Indico
entre a África e a lndia. Do facto de terem ido, não
pela costa de África, mas pelo largo, é elementar con-
cluir que já se sabia que, ao ocidente, o vento e a terra
permitiam a navios redondos- as naus- a travessia
do Atlântico Sul para o Cabo.
À volta do Cabo para Santiago, a rota de Vasco
da Gama não foi pelo mesmo caminho mas directa com
o alisado de sueste a favor. ' '
Enfim os caminhos marítimos, como as terras que
ocupámos, não os achámos por acaso ou boa sorte:
buscámo-los sistemàticamente!
Passarei a analisar as informações dos diferentes
autores, as quais podem concorrer para nos elucidar
da rota mais provável de Vasco da Gama, na sua pri-
meira travessia do Atlãntico Sul.
• cortar a leste em busca do Cabo de Boa Esperança, no
António Galvão, no seu «Tratado dos Descobri-
mentos:., apesar de ter navegado e estado na lndia,
cai em erros inaceitáveis.
Conta, é certo, que Bartolomeu Dias, tendo ido
ao longo da lerra, descobriu até ao rio do Infante, cque
.IV, u] R OTA ENTRE SANTIAGO E SÃO BRÁS
se pode dizer que viu teiTa da lndia, mas não entrou
nela:.. ·
Quanto a Vasco da Gama, começa por lhe errar
a data da partida, que afirma ter sido a 20 de Julho,
quando ela foi realmente no dia 8. E CODJta que, de
Santiago, cforão ao longo da terra: e além do Cabo
pozeram Padrões nella:..
Como ·se verá, nenhuma fonte permite supor que
Vasco da Gama foi costeando a Ãfrica além da Guiné.
E, de resto, sabemos que a Bartolomeu Dias, apesar
de ter ido só com caravelas, lhe não foi possivel bolinar
contra o vent o, seguindo t oda a costa até ao Cabo.
Como seria possível a Gama, que ia com naus, piores
para bolinar?
De modo que este autor, para quem a viagem
atlântica não passou de navegação costeira, nada nos
fornece de aproveitável no seu «Tratado:..
•
Na cChronica do Felicíssimo Rey D. Emanueb,
coligida por Damião de Góis, lê-se apenas uma narra-
ção simplificada, na parte da viagem de Vasco da
Gama, que agora me ocupa.
Ele teria largado de Santiago caos 28 dias do mês
de Julho», cdonde seguindo seu regimento começou de
que andou nos meses de Agosto, Septembro, e Outu-
bro, com muitas tormentas e tempos contrários até
que Deos se houve por servido lhe mostrar terra, que
foi aos quatro dtias do mes de Novembro:..
«Aqui fizeram aguada e sahiram em terra», cpera
mais a sua vontade tomaram ha altura do sob.
410 ÍNDIA [cAP.
A 16 de Novembro fizeram-se à vela, e aos 20
dobraram o Cabo, seguindo com bonança ao longo (la
costa. Enfim, domingo, cdia de Santa Catherina 25
de Novembro chegarão a auguada de São Braz, que he
sessenta legoas do Cabo:..
Como se vê, este autor atribui a demora do Gama
só a tempo contrário, sem ponderar que ele, na falta
de uma carta detalhada do Atlântico Sul, que atra-
vessou, não podia deixar de andar de nüdte muito pouco,
por só içar pano reàt-'2iào.
• Mas começa por inventar uma tormenta que fez
Barros, na sua «Década» primeira, também não
entra em detalhes sobre a rota de Vasco da Gama até
São Brás. Conta que foram à ilha de Santiago.
Depois da «partida da qual ilha Bartholomeu Diaz os
acompanhou te se por no caminho da derrota para a
Mina, Vasco da Gama na sua». E a primeira terra que
tocou antes de ·c hegar ao cabo de Boa Esperança cfoi
a bahia de Santa Helena, onde foram a terra, fazer
aguada e tomar a altura do sob.
Seguindo Vasco da Gama seu camdnho na volta
do mar «por se desabrigar da terra:., cno terceiro dia,
que erão vinte de Novembro passou aquele grão Cabo
de Boa Esperança, com menos tormenta e perigo do
que os marinheiros esperavão». E dia de Santa Cata-
rina chegaram à aguada de São Brás.
Barros concorda, pois, com o cRoteiro» em contar
que, de Santiago, começaram por cortar para a costa
de Africa, onde Gama se separou de Dias, que ia para
leste. E há acordo também na escala de Santa Helena,
donde partiram na volta do mar; bordejando, atingi-
IV, n] ROTA ENTRE SANTIAGO E SÃO BRÁS 4II
ramo Cabo, sem noticia de ctormenta:., e entraram em
São Brás a 25 de Novembro.
Esta informação de Barros, apesar de curta, não
deixa de ser interessante.
•
Castanheda, que esteve na India, na sua «História
do Descobrimento:. mostra ter conhecido o cRoteiro:.,
donde extraiu informações.
perder os navios uns dos outros. Ora, não as há «atravez
do rio do Ouro»; o que houve, segundo o cRoteiro»,
foi só cçarração».
Depois conta que a 3 de Agosto Gama partiu de
Santiago, «despedindo-se primeiro de Bartolomeu Dias,
que se foy a caminho da Mina». E Vasco da Gama
cseguiu por sua navegação indo caminho do Cabo de
Boa Esperança», e «Se engolfou no mar», por on{}e
navegou Setembro e Outubro, ccom muitas tormentas
de ventos, chuvas e çarrações, vendo a morte diante
muytas vezes». E indÓ demandar a terra avistaram-na
a 4 de Novembro. Como a não conheceram, viraram na
volta do mar; vindo na volta àa terra, em 7 de Novem-
bro «foram ter a hua grande baya», onde surgiram
para fazer aguada, pondo-lhe o nome de cangra de
Sancta Helena». Segundo a observação do piloto-mor,
«fazia-se trinta legoas do cabo ao mais».
Feita aguada e ccaruagem de lobos marinhos»,
Gama partiu da:qui a 16 de Novembro, cna volta do
mar com sul suroeste». Bordejaram até que na quarta-
-feira 20 de Novembro - aliás 22- dobraram o Cabo.

412 lNDLA ( CAP.
Foram então «ao longo da terra» e, em «dia de
Santa Catherina», chegou Vasco da Gama à cagoada
de Sam Bras, que he sessenta legoas avante do cabo:..
Castanheda concorda com o «Roteiro» em alguns
pontos, tendo de lá copiado frases. Contudo, por lhe
não ter compreendido a frase «partimos em Leste:.,
separa, à saída de Santiago, Bartolomeu Dias do Gama,
o qual se teria cengolfa:do no mar». Desta expressão
não se pode concluir que Castanheda pretendesse que
Gama tomasse rumo de sul, porque «engolfar» tanto
pode ser rumar a sul como a SE ou SW.
Castanheda também se refere a mau tempo, ao
qual não alude o «Roteiro» - como não alude à tor-
menta do Rio do Ouro - , o qual teria causado a quebra
da verga da nau do capitão-mor, o que aconteceu chindo
com vento sub e, po·r tanto, ainda no norte do equador.
Ora tal avaria não constitui indício de tempestade,
mas só de violento balanço, o qual poderia até ser
devido a estar o mar cbanzeiro:., isto é, haver grande
ondulação com bonança.
• Porém, insiste na lenda dos múltiplos temporais e da
Jer6nimo Osório, na «Vida e Feitos d'Elrá
D. Manoeb, fracos elementos nos fornece para o estudo
da rota de Vasco da Gama.
Conta que, de Santiago, ccomo vinha nos pregos:.,
Gama · cpoz a proa no Oriente», com todas as «naus
de •s ua conserva; e, entradas que forão n'huma grande
enseada, mandou colher as velas e deitar ancoras no
fundo:..
Feita aguada em Santa Helena, e tomada «naque-
las paragens da linha a altura do sob, «levarão ancora
IV, u] R OT A ENTRE SANT IAGO E SÃO BRÁS 413
dali e correrão para o sul, porfiados a montar o cabo
de boa esperança». Osório, a seguir- provàvelmente
inspirado nas «Lendas da India» - refere-se a mares
ccruelissimos», ventos «frigidíssimos e contrários»,
brumas, temporais contínuos, vagas alterosas, que
«faziam as naus ora apontar para as nuvens», cora
roçar no leito do profundo ». Iam com velas ferradas, à
mereê dos ventos, fazendo bordos e esperando o fim
das tempestades. Então a tripulação teria requerido
a Gama a arribada; e, como ele recusasse, «COnjurarão
alguns de lhe dar a morte». Por esta razão Gama cpoz
a ferros Mestres e Pilotos, encarregando-se ele mesmo
do serviço de Piloto-Mor». Depois de ter «por muitos
dias sostido com valor sem quebra o peso dos tempo-
raes, e o da perfídia, virou o tempo», e em 20 de
Novembro começaram a dobrar «a ponta do Cabo». Veio
o bom tempo, e navegaram ao longo da terra vendo
«Cafilas de gente» e seus rebanhos. Enfim, em 25 de
Novembro deixam a ré o Promontório, entram numa
angra, a aguada de S . Brás.
Como se vê, Osório bem pouco nos diz sobre a
travessia de três meses entre Santiago e Santa Helena .
revolta, entre Santa Helena e o Cabo, nos 8eis dias que
durou esta viagem, incidentes que nem o «Roteiro»
nem as «Décadas» referem, e que não são verosimeis.
Osório, como outros, não compreendeu o signifi-
cado da rota de mar largo, iniciada quando Gama, à
saída de Santiago, cpoz a proa no Oriente», apesar de
a sua derrota não ser ao longo da África, mas pelo
largo dessa costa. E, contudo, esta rota denota conhe-
cimento prévio dos ventos que iria encontrar.
414 INDIA [cAP.
Osório também insiste na improvável revolta da
tripulação, antes da aguada de São Brás; mas abste-
ve-se de contar que o Gama, para intimidar 'a s tripula-
ções, tivesse deitado ao mar os astrolábios ...
• festamente quente : vinha pois do equador e revelava
Poucos anos depois da primeira vi•a gem à tndia,
Gaspar Correia- que para lá fora em 1512 -escreveu
as cLendas da tndia:., obra onde as duas viagens de
descobrimento, a de Dias e a de Gama, estão lamentà-
velmente deformadas, como se vai ver.
Poucos anos depois de 1484, D. João n teria encar-
regado «um estrangeiro, Janinfante», de, com quatro
caravelas, ir ao longo da costa de Ãfrica, o que ele
teria feito, «aJté que a costa foi voltando para o mar».
Não se falou na 1nd!a.
Começaram então ventos contrários, com «grandes
temporais e grandes mares», contra os quais teria sido
necessário navegar em bordos «ao mar e à terra:..
Passados quatro meses desta luta, e sendo já escassos
os mantimentos, Janinfante teria cedido ao cbradar da
gente» e arribou, «Se tornando a ElRey». Porém, ape-
sar deste insucesso, D. João n teria encarregado o
mesmo Janinfante de dirigir a construção de ctrês
navios pequenos:., para voltar a descobrir o ccabo
da terra:..
Como se vê, nas «Lendas» não se fala nem em
Bartolomeu Dias, nem na ·s ua passagem de facto além
do extremo su{ioeste da África -ao qual em Portu-
gal se deu o nome de cabo de Boa Esperança - ,
tendo-se navegado ainda mais de 140 léguas para seu
leste, até um rio a que chamaram rio do Infante.
IV, n] ROTA ENTRE SANTIAGO E SÃO BRÁS
Foi aqui, •segundo contam outros historiadores, e não
Gaspar Correia, que, tendo encontrado forte corrente
contrária, Bartolomeu Dias, cedendo às reclamações
dos tripulantes, desistiu de lutar contra a corrente e
arribou a Portugal. Mas aquela corrente era mani-
que o ca.rn4nho para lá - e, portanto, para aquele
oceano Indico que, pela mesma época, Covilhã atraves-
sou para 8ofala, na costa da África- enfim, o caminho
marítimo para a !ndia era praticável, estava aberto
desde o ponto aonde tinham chegado as caravelas.
Certo, não há documentos que provem em abso-
luto a verdade desta viagem de Bartolomeu Dias além
do Cabo. Foi uma viagem secreta. E tão secreta que -
dir-se-ia- Gaspar Correia a fantasiou intencional-
mente para que se não espalhasse que, ainda no reinado
de D. João n, dois seus enviados Covilhã e Dias
tinham atingido dois pontos da costa ' do Oriente da'
África, apenas separados por 300 léguas, um milhar
de milhas.
Tão manifesta inexactidão sobre a primeira via-
gem além do Cabo põe-nos de prevenção contra o que
escreveu Gaspar Correia. E , como se vai ver, ele não
foi mais exacto na sua imaginária narrativa da rota
atlântica de Vasco da Gama , não dizendo , sequer, ela-
ramente se o Cabo fora ou não dobrado antes de 1497.
Falecido D. João rr, D. Manuel teria começado por
consultar Zacuto, não como técnico de Astronomia,
ma:s como astrólogo. E ele teria previsto: «a !ndia
descobrirão dois drmãos nossos naturais:..
De acordo com esta previsão, D. Manuel teria
mandado partir três navdos levando cada um «até
oitenta homens», o que seria ' exagerado em barcos tão
416 INDIA [ cAP.
pequenos: no total s6 foram cerca de 150. Eram de
facto comandados por dois irmãos, cVasco e Paulo da
Gama, e por Nicolau Coelho:.. Correia não fala na
caravela deste último, navio essencial para os reconhe-
cimentos de portos novos.
Segundo as «Lendas», fizeram seu caminho «ao
Cabo Verde», e «dahi forão cortando largo para toma-
rem a costa que sabião havião d'achar, que entrava
muito no man. cAssi navegarão até dar na costa, da
qual havendo conhecimento, se tornarão na volta do
mar:., «indo pela bolina:.. cCorrerão na volta da terra,
atingindo-a» cmuito mais avante do que chegarão as
caravelas da viagem de Janinfante:..
Como se vê, Gama - partindo, não de Santiago,
donde de facto pa·r tiu, mas do cabo Verde - teria
ido avistar um ponto da costa de África aquém do
cabo de Boa Esperança e ainda não atingido o que é
notõriamente falso, pois Bartolomeu Dias já o passara
uma dezena de anos antes.
A romantização da viagem - para não dizermos
falsificação- continua. Voltaram ao mar largo, e tanto
ao sul que o vento era frio e cquase nom havia no dia
sol de seis horas», o que só seria possível mais de 400
léguas além da latitude do Cabo, e nunca em Outubro
ou Novembro, mas em Junho, Inverno de lá. Na bor-
dada da terra ainda tornaram a encontrar a África,
de modo que teriam tido que fazer uma nova bordada
ao mar, até que o cacha.rão todo em tormenta desfeita,
·com sà.rrações e escuridões», sendo os dias tão pequenos
que csempre parecia noite». cComo não podião fazer
comer», e havia cmedo e trabalho:., adoeciam. Havia
quase cdous meses que hião naquela volta, quando
Vasco da Gama decidiu virar na volta da terra»!
.: I l't"I.
IV, n] ROTA ENTRE SANTIAGO E SÃO BRÁS 417
Ora, convém aqui notar que sabemos que o Gama
dobrou o Cabo avistando-o com bom tempo, tendo levado
nove dias de Santa Helena à aguada de São Brás. Não
teve necessidade de fazer bordos tanto ao sul; porém,
se os tivesse feito, lá encontraria os conhecidos ventos
gerais- os oestes- , com que ràpidamente Gama teria
passado para além, isto é, para leste de toda a África
do Sul. De modo que, se lá bordejasse contra o vento,
isso não seria bordejar para montar a costa da África,
mas para montar uma costa que lhe ficasse a barla-
vento - isto é, a oeste - , a qual só poderia ser a
América do Sul.
Como se vê, esta luta lendária, que Gaspar Correia
aceitou, é manifestamente contra a verdade.
Porém, o romance continua. Tendo Gama, como se
leu, resolvido virar na volta da terra, andaram com os
navios «mais folgados» e «conhecerão que tinhão
dobrado o Cabo», que parece ser afinal o de Boa Espe-
rança, anteriormente assim baptdzado, e ao qual as
cLendas» se referem pela primeira vez.
Descobriram uma terra com «Serranias» e «praia
de penedia», grandes bafas e enseadas, «bocas de
grandes rios ». Sondavam, mas cnão achavão nenhum
fundo ». Passados três dias, as naus entraram em um
rio, que tinha dentro fundo de cdoze braços», mas não
havia praia, porque ctudo era rochedo de penedlas».
Mandaram Nicolau Coelho no batel, cpelo rio mais
de mnte Zegoas, e se tornou sem achar nada:.. Por esta
razão safram de novo para o mar, o que só conseguiram
pela violência da corrente, porque a viração era con-
trária.
Ora, como Gama não entrou em rio algum da
Mrica do Sul, nem em São Brás, nem na aguada da
27
 fNDIA [cAP.
Boa Paz, parece haver aqui confusão com o que se
sabe acerca da viagem de Bartolomeu Dias, quando foi
muito ao sul, para dobrar o Cabo, e depois entrou no
rio do Infante.
Atingida terra além do Cabo, a continuação da
narração já não interessa o actual estudo sobre a rota
atlântica de Vasco da Gama.
Foi, porém, nessa continuação que sucederam as
aventuras mais extraordinãrias que as cLendas:. atri-
buem a Vasco da Gama.
Estavam ainda no mês de Novembro, apesar de
sabermos que partiram de São Brás em princípios de
Dezembro. Continuavam a sofrer grandes temporais,
fazendo os navios muita água, a ponto de ser necessã-
rio dar continuamente à bomba. .A!s tripulações, can-
sadas e doentes, requereram que a rribassem, mas Gama
respondia que ctinha prometido a Deos» atrás não
tornar ainda que «visse cem mortos ante os olhos:., ou
que ctivesse as naos carregadas douro:., ccomo não
levasse recado do que vinhão buscar:., que era «desco-
brir a tndia:..
Porém, tendo-se agravado as exigências de arri-
bada- como seria natural se tudo o que Correia nos
conta fosse verdade - , Gama simulou ceder, e chamou
à câmara alguns marinheiros, como também o cMestre
e o Piloto», e rom os seus criados pô-los todos a ferros ,
prometendo levá-los assim a Lisboa. E ordenou «que
logo ali lhe entregassem quantas cousas tinhão da
arl:e de navegar», as quais, em seguida, cdeitou ao mar,
dizendo: Olhae que nom tendes mestre nem piloto:.,
nem quem vos censine o caminho pela arte de navegar:.,
cporque so Deos era o Piloto e Mestre, que os havia
IV, u] ROTA E NTRE SANTIA O E SÃO BRÁS 419
de encaminhar e salvar por sua misericordia se o
merecessem:..
Teria Gama dominado assim o levantamento;
porém, se era tão fatal para a volta a carência de
carta8 e instrumentos de navegação, não se compreende
onde Gama teria encontrado outros, com os quais, de
facto, pôde voltar a Portugal...
A Gaspar Correia escapou, contudo, uma grave
dificuldade que Dias e Gama encontraram na costa
sueste de África, qual foi forte corrente contrária.
Depois o mar abrandou, e serenaram os ânimos,
entrando-se no rio dos Bons Sinais.
•
Vejamos também o que nos dizem a este respeito
alguns autores estrangeiros.
I. F. Lafitau, na cHistoire des Découverts et Con-
quêtes des Portugais», publicada em 1733, conta que
Gama, partindo de Santiago, teve de lutar quatro meses
ccontra os ventos:., tendo entrado em Santa Helena
por se ver «forçado a buscar a terra:..
Depois, atingindo o cabo de Boa Esperança, Gama
só lá encontrou tempestades tão caffreuses:. que a
tripulação, cansada de uma navegação de perto de
ccinco meses:. com má alimentação e assustada ainda
pelos perigos :fantá:sticos do terrível Cabo, se revoltou
- cdiz-se:. - por várias vezes contra ele, tendo salvo
a sua vida só devido à sua fineza: porque, tendo man-
dado ·p ôr a ferros os chefes da revolta - , e, entre eles,
os mestres e pilotos - ele tomou pessoalmente a cana
do leme e, durante os muitos dia8{ ?) que durou a tem-
pestade, capeando e vencendo todos os obstáculos, mais
J
420 1NDIA [ cAP.
fortes por causa dos revoltados que da parte dos
ventos e mares, dobrou enfim o famoso Cabo... tudo
nos seis dias que, pelo «Roteiro », vão de 16 a 22 de
Novembro. Abonançando então o tempo, os espíritos
acalmaram-se rtambém e Gama entrou na aguada de
São Brá.s. ' lago:..
Como se vê, Lafitau combina os cronistas com as
cLendas:., mas não se pôde libertar da romântica
revolta das tripulações antes do Cabo, tendo Gama
que se arvorar em piloto. De resto, Lafitau, não d~s­
pondo de informações originais, nem de conhecimentos
de Náutica, não acentuou o quanto há de técnico, novo
e inédito na travessia do Atlântico Sul, que Gama
realimu.
Um outro autor francês, Deschanel, na sua obra
sobre Colombo e Gama, escreveu que, para ousar dobrar
o terrível cabo de Boa Esperança- o que Gama teria
feito por uma hábil manobra - , foi necessária a
coragem de Vasco da Gama, estimulado pela glória de
Colombo (! ?) .
• tanto para o cabo Verde como para as Ilhas .
A Edição Nacional d'cOs Lusíadas:., publicada em
1928, e comentada pelo erudito camonista, Dr. José
Maria Rodrigues, não foi feliz no que respeita à inter-
pretação da rota de Vasco da Gama.
Começa por apresentar um mapa segundo o qual
Gama, entre Santiago e o Cabo, teria ido a contornar
a costa de Africa, o que está reconhecido ser absolu-
tamente falso.
IV, n] OTA ENTRE SANTIAGO E SÃO BRÁS
.A'lém disso, o Dr. J. M. Ro'd rigues timaginou que,
no tempo de Camões, se t 1avam d'l/48 rotas diferentes,
à partida de Lisboa, inici.dmente cruzadas :
- Lisboa, leste das Canárias, Santiago e cimenso
- Lisboa, Madeira, oeste das Oa.nárias, Cabo
Verde, Bijagós e «grandíssimo golfão». Acreditou que
Camões as conhecia, e as pretendeu entrelaçar hàbil-
mente n'cüs Lusíadas». Ora, não havia tais rotas dis-
tintas, porque a passagem à vista da Madeira não
tinha relação com a passagem por leste ou por oeste
das Canárias, como tão-pouco se relacionava com a
escala para aguada, fosse no cabo Verde ou nas ilhas
do mesmo nome; tal passagem dependia dos ventos
encontrados até às Canárias, não obedecendo a um
estranho princípio náutico que impusesse o cruzamento
daquelas duas rotas. :e eviden:te que, quem passasse
ao mar das Canárias podia também ir pelo arquipélago
de Cabo Verde, fazendo, ou não, escala lá. O vento ali
é sempre o alisado de nordeste, e dá rumo franco,
Deste equívoco, aliás hàbilmente defendido, resul-
tou a afirmação de que n' cOs Lusíadas» se não podia
deixar de destacar aquelas duas falsas rotas, para o
que era preciso lê-las em estâncias salteadas, e esquecer
que não se tratava de uma cr6nica, mas de uma com-
posição com liberdades poéticas.
Em consequência deste critério- pouco natural
de se atribuir a quem, como Camões, conhecia as via-
gens da lndia - foram distribuídas pelas àua8 rotas
as estâncias 9, 10 e 12 do canto V d'cüs Lusíadas:..
 [CAP.
422 ÍNDIA
E, contudo, e'l as definem, até nelhor que no cRoteiro»,
uma rota única, em dupla c rva:
Estância 9 - Aportam a Santiago e, cdaqui, tanto
que Boreas nos ventou», deixam a terra e tor-
nam a cortar o «imenso lago:.;
Estância 10- Rodeiam, sem a ver, ca larga parte
de África, que ficava ao oriente, «Onde estão
J alo f o e Mandinga:. ;
Estância 11- Passam as Dórcadas, ou ilhas
Bijagós;
·E stância 12 -Deixam a Serra Leoa, e o cabo das
Palmas, e metem-se no cgrandissimo golfão».
Por aqui se vê que, sem saltar, ou alterar estân-
cias, se encontra n'cOs Lusíadas» descrita a rota mais
provável de Vasco da Gama no Atlântico Sul: de San-
tiago vão a sueste, e, na altura da Serra Leoa, viram
no bordo de oeste, como o vento sul permitia.
O desdobramento da rota contada por Camões
não se impõe, pois, não sendo lógico praticá-lo na obra
do nosso grande poeta.
• Bastaria a Ruge ter consultado, além das cLendas»
O Dr. Sophus Ruge, na «História da :mpoca dos
Descobrimentos», publicada em 1881, fiou-se dema-
siado nas cLendas da lndia:., que frequentes vezes cita.
Começa por contar que Gama se separou logo de
Bartolomeu Dias, e ctomou rumo directamente para
sul». À partida o vento era violento e o mar caterra-
don, por causa de continua tempestade. A situação
durou, assim, pelo menos quatro meses. Os dias eram
IV, n) R OTA E NTRE SANTIAGO E SÃO BRÁS 423
cada vez mais pequenos, por irem de encontro ao
inverno austral- que acaba em Agosto, quando Gama
parttiu de Santiago - , e os homens adoeceram de pavor
e de fadiga, sob os fortes aguaceiros .. . Entraram final-
mente em Santa Helena, para determinar a altura do
pólo em terra firme, porque o balanço dos navios
impedia obse:rvações exactas. Depois doutra «tormenta:.,
que durou muitos dias, dobraram o temido Oabo; mas
as tormentas continuaram, crescendo o descontenta-
mento e formando-se uma «conspiração:. contra o
capitão. Este teve que fazer carregar cde cadeias» os
conjurados. «Segundo se conta» carrojou ao mar todos
os livros náuticos», para ser ~possível voltarem para
trás. Só em princípio de Janeiro de 1498 voltaram à
costa, entrando no cRio dos Reis:., e não em São Brás.
?ra, o rumo sul, o Inverno, as temperaturas, as
cadeias.. . nada disto é história, é só romance!
Ruge não compreendeu o que havia de experiência
náutica anterior na viagem de Gama pelo largo da
costa de África. Mas aceitou as tempestades inven-
tadas, pois no «Roteiro:. não há menção de nenhuma,
pelo menos, entre as escalas de Vasco da Gama San-
tiago, Santa Helena, São Brás. '
as «Décadas», Castanheda, o cRoteiro» e ainda as cartas
de ventos, para poder interpretar a rota de Gama. E ,
se tivesse ouvido um náutico, não poderia deixar de
admirar como, já em 1491, os Portugueses conheciam
tão bem como hoje, o regime dos ventos no Atlânti~
Sul, a ponto de lá traçarem uma rota análoga à dos
veleiros de agora.
Assim Ruge não teria caido em julgar que- em
contraste com Colombo- Gama só fizera ccabotagem
 ÍNDIA [CAP.
de grande escala» por «mares conhecidos»... tendo
arrojado «ao mar todos os livros náuticos».
• ventos gerais, que pe:ronitissem depois voltar a sueste,
O inglês K. G. Jayne, na sua obra sobre Vasco da
Gama e seus sucessores, passa também por alto sobre
o significado da ·r ota indirecta seguida de Santiago
para o Cabo. ~ certo que abandona o mapa do
«Roteiro», mas repete sem análise o de Ravenstein.
Sobre a viagem conta que, deixando as ilhas de
Gabo Verde em 3 de Agosto, Gama rumou ao sueste,
paralelamente à costa de África, até que, em cerca de
10 graus de latitude norte, atingiu a reglião das calmas
e trovoadas. Então, para se livrar logo deste tempo
de aguaceiros, e das correntes do golfo da Guiné- as
quais, aliás, lhe eram favoráveis, pois correm fortes
para leste, ao longo da mesma ·c osta da Guiné- ,
então Gama concebeu a ideia «original e arrojada»
- «bold» -de navegar segundo uma larga curva atra-
vés do Atlântico Sul, contornando a região dos ventos
contrários, antes encontrada por Diogo Cão e Bartolo-
meu Dias quando voltaram para o norte. Gama teria
cortado o equador cerca de 19° W Gr., donde governou
ao sudoeste, ·a través de um «Oceano desconhecido»,
«por mares nunca dantes navegados».
Com que irreflexão se escreveu esta história!
:m certo que de 19° oeste, em Agosto, Gama poderia
talvez rumar ao sudoeste, mas precisava contar que
o alisado de sueste se fizesse depois leste, para evitar
ensacar-se na costa do Bra:sil e poder ganhar a lati-
tude do Gabo. Contudo, como acreditar que Vasco da
Gama, obedecendo só a uma fantasia, ou palpite, se
IV, u] ROTA ENTRE SANTIAGO E SÃO BRÁS 425
pudesse ter arrojado a atravessar o Atlântico se este
nunca tivesse sido por lá navegado? Seria mar aberto?
Haveria por lá terras a barrarem o caminho? Haveria
e ir ao Gabo rumando a leste?
Repeti-lo-ei mais uma vez: só depois da experiên-
cia de várias viagens de reconhecimento é que quem
fosse para a lndia como Gama- e depois Cabral-
poderia lançar-se para sudoeste com uma esquadra
numa tal aventura •s em ter foz;tes probabilidades de
não comprometer a viagem capital, que era passar
para o oceano Indico.
Não! Se as coisas tivessem sido como J ayne e
outros fantasiaram, Gama teria procurado seguir com
as caravelas a rota mais segura, que era a de Barto-
lomeu Dias, pois este conseguiu passar além do Gabo,
só não continuando pelo encontro de dificuldades que
Gama, melhor prepamdo, contava vencer.
•
Na «História da Expansão Portuguesa no Mundo:.,
publicada recentemente, reconhece-se a impossibilidade
de se saber qual a verdadeira rota de Gama, e, por este
motivo, a sua discussão foi posta de parte.
Devia-se, contudo, ter encaminhado a questão,
para concluir se, de facto, Gama teria, ou não, seguido
rota costeira, análoga às de Diogo Cão e Bartolomeu
Dias, os quais se julga terem em grande parte da
viagem, acompanhado a costa de Mrica.
Reconhecer-se-ia que Gama, com toda a proba-
bilidade, seguiu, entre Santiago e Santa Helena, uma
rota de mar largo; e não seria cbisantdsmo critico»
426 INDIA [CAP .
estudar profundam.ente certtos detalhes, os quais nos
levam a conclusões interessantes:
l.a -Gama não conhecia a distribuição 'd as mon-
ções do Oceano lndico, para o ir atravessar
nas épocas mais próprias: partiu de Lisboa
muito cedo;
2.•- Nenhum dos caminhos apresentados no mapa
da mesma «História» corresponde a uma
rota nàuticamente aceitável;
3.•- A rota pelo mar largo indica que Gama e
os seus pilotos, ao largarem de Lisboa, em
naus, já levavam conhecimento dos ventos e
das terras que, no Atlântico Sul, podiam
influir no traçado da sua rota, impondo..IJ.hes
a bordada à costa da Guiné, a tx>mar, pru-
dentemente, barlavento.
• deduz d' «Üs Lusíadas», onde Camões, conhecedor da
O «Roteiro:. de Vasco da Gama - escrito por
alguém que ia na viagem- existe na Biblioteca do
Porto, tendo sido publicado, em 1838, pelos Drs. Diogo
Kopke e Costa Paiva. Nota•se no «Roteiro» escassez
de noticias náuticas.
Os comentários, que acompanharam a publicação,
não fazem ressaltar suficientemente ·a originalidade da
rota seguida; e o mapa, onde se pretendeu marcar a
«verdadeira direcção:. da derrota- e que tem sido
reproduzido ainda nos últimos anos-, ignora e deforma
fundamentalmente o valor técnico da viagem de Gama,
porque o faz seguir de Santiago por «um rumo que não
IV, u] ROTA ENTRE SANTIAGO E SÃO BRÁS 427
se afastava muito do sul», o que seria impossível no
Verão, como fàcilmente se conclui das cartas de ventos.
Este rumo era explicado pelo aproveitamento do
«conhecimento dos ventos gerais da costa ocidental de
Ãfrica, que eram contrários à sua derrota»; ora, como
no Verão o vento, a:o sul de Cabo Verde, sopra de sul
-constituindo a chamada «monção de suh - é evi-
dente que ele não permitiria a um navio de vela rumar
a sul directamente contra o vento. Porém, os ·comen-
tadores não repararam nesta elementar dificuldade, e
até escreveram que Cabral, em 1500 (mas na Prima-
vera, quando ainda não soprava a monção), seguira o
rumo de sul, conforme o exemplo de Vasco tla Gama,
descobrindo o Brasil, por se afastar demasiadamente
para oeste.
As duas rotas foram muito provàvelmente dife-
rentes. E Gama, em Agosto, à saída de Santiago não
tardaria em encontrar, ao sul, a monção, que por
vezes sopra até Santiago -de acordo com o que se
viagem da lndia, escreveu:
«Daqui, tanto que Boreas nos oontou,:. ...
referindo-se ao facto de nem sempre lá haver este
vento do norte na época em que Gama passou em
Santiago.
De mo'do que os comentadores, ao pretenderem
aproximar-se «mais da verdade do que as arbitrárias
derrotas», que encontraram em outros mapas, só con-
seguiram criar uma derrota falsa que infelizmente fez
carreira.

lNDIA [CAP.
Certo, não nos podemos admirar deste erro, por
parte de quem não era náutico; mas eles tinham o
dever de saber que ignoravam Náutica, e de consultar
algum dos náuticos de vela que, em 1838, tanto abun-
davam em Portugal, onde então eram raros navios
a vapor.
O cRoteiro:. de Vasco da Gama foi publicado pela
Hakluyt Society, na tradução inglesa de Ravenstein,
tendo o almirante Cl. Markham assistido como con-
sultor náutico.
Nos seus comentários, Ravenstein acentua que,
apesar de Colombo ter seguido um esquema próprio,
ao passo que Gama cumpriu ordens, contudo, a;s difli-
culdades materiais que Gama teve que vencer foram
sem dúvida muito maiores: Colombo foi favorecido
pelos ventos do •a lisado de leste, ·a o passo que Gama,
indo mais perto da costa da América que da de África,
realizou uma das grandes façanhas- «achievements» -
«registadas nos Anais da Expansão Maritima». E Ra-
venstein compara os pequenos erros em latitude das
cartas náuticas portuguesas com os grandes erros da
carta de La Cosa e do «Diário» de Colombo. Também
Ravenstein lamenta que haja uma tão pobre infor-
mação sobre a viagem de Gama, da qual, para mais,
as cLendas da lndia:. concorrem para lhe aumenta.r
a confusão.
Na. análise da viagem, Ravenstein acerta tradu-
zindo cPartimos em Leste:., por seguirem paralela-
mente à costa cin an easterly direction:.. Mas erra
quando traduz «hindo com sul» para «goó.ng south»,
porque a frase portuguesa quer dizer que havia -vento
sul, e não que rumavam a sul, o que altera a rota.
IV, u] ROTA ENTRE SANTIAGO E SÃO BRÁS 429
Por outro lado , Ravenstein aceita que Gama teria
cconsiderado a possibillidade de alcançar o Cabo nave-
gando a rumo dire<ito a distância de 3770 milhas».
Esta hipótese não é aceitável, porque a monção de sul
-em que se torna, no Verão, o alisado ao norte do
equador - já em bem conhecida dos Portugueses,
pelo menos desde vinte anos atrás, sabido que a viagem
de volta da Mina não se podia realizar navegando,
contra vento e corrente, ao longo da costa de Africa.
Iam a alturas do equador aproveitar o vento geral,
seguindo para Portugal segundo aquela rota indirecta
que, como ·c onta o •c roni•s ta, estando à mesa, Pero
Dalanquer recordou a D. João 11.
Ravenstein reconhecendo que a navegação a rumo
'
directo seria impossível, pôs de parte o mapa do
cRoteiro» e traçou uma rota em arco de convexidade
voltada para a América. Porém, como o seu rumo para
sul passa muito a badavento - ou afastado para
leste - da costa do Braslil, é fraca a probabilidade de
essa rota ter podido ser seguida pelas naus de Gama,
pois elas teriam de ir muito contra os ventos de sueste,
que dominam no centro do Atlântico Sul, e que a
própria carta de Ravenstein lá indica.
Com os navios curtos e de formas cheias de Gama,
que, decerto, nem poderiam navegar a seis quartas
do vento, a rota mai•s prováve'l tem de se encostar
muito mais à costa do Brasil que a dos veleiros moder-
nos, os quais, em geral, vão passar à vista da ilha da
Trindade, tendo lá passado algumas das naus portu-
guesas da tndia, porque não iam de Lisboa no Verão,
como foi o Gama, mas antes de soprar a monção de
sul , como Cabral , D. João de Castro e outros.
430 1NDIA (CAP.
Ravenstein, no seu estudo, não entrou em conta
com este detalhe, de modo que a rota que ele traçou,
decerto menos inverosímil do que a do «Roteiro» portu-
guês- que Ravenstein assim emendou- , não repre-
senta ainda uma conjectura suficientemente provável.
Enffim, Ravenstein nota que os Portugueses já
antes de 1500 praticavam as mesmas rotas recomen-
dadas pelos modernos «Roteiros:., porque conheciam
os ventos e correntes do Atlântico Sul.
• Segundo a «Arte de Navegar:., de Pimentel, publi-
A rota em dupla curva- bordada ao sueste, e
arco por oeste, passando perto da costa do Brasil -
que temos fortes razões para atribuir à viagem de
Vasco da Gama vem citada nos mais antigos roteiros
da lndia, conhecidos.
Assim praticou D. João de Castro, em meados de
1538. O mesmo se conclui também dos «Roteiros:. da
carreira da tndia, publicados por G. Pereira, os quais
aconselham que, de Gabo Verde, se adopte o bordo do
~ sueste até que, na altura da Guiné, «darão os geraes»
para, na Volta do BrasH, ir dobrar o cabo Santo
Agostinho, já com o 81lisado soprando de leste.
Outro vestígio desta navegação se encontra na
carta em que Vespúcio relata a sua quarta viagem-
em 1503 - admirando-'se de que o capitão-mor da
esquadra portuguesa, no mês de Junho, tivesse partido
das ilhas 'de Cabo Verde ao rumo leste-sueste, atri-
buindo esta medida a fantasia, ou capricho de capitão-
-mor, «homem presumptuoso», que só ia à costa da
Serra Leoa para fazer ver «que era capitão de seis
naus:.. Ingénuo reparo de quem não era náutico ...
IV, u] ROTA ENTRE SANTIAGO E SÃO BRÁS 431
Idêntico caso se deu em Outubro de 1519, quando
o português Fernão de Magalhães, apesar dos protestos
dos outros capitães espanhóis, insistiu em ir tomar
barlavento às alturas da Serra Leoa, o que lhe garantiu
o passar a barlavento do cabo São Roque, e da costa
do Brasil.
E sabemos, ainda, que, em 1511, a esquadra de
D. Garcia de Noronha, não tendo conseguido montar
a costa de Pernambuco, teve 'de voltar à costa da
Guiné, para tomar barlavento.
cada no século XVII, todos os navios que ~seguiam de
Portugal, tanto para Angola, como para o Brasil e
tndia, deveriam, das alturas de Cabo Verde tomar rumo
entre su-sueste e sueste até entrarem nos gerais; e,
«se na linha der o vento sul», «antes se vire na v~lta
de leste que na de oeste, até que entre o vento sueste»,
para então «Se atravessar e dobrar o Brasil». Esta
rota, tanto seria segu~da no Verão como no Inverno.
•
Para definir qual a rota que Vasco da Gama, em
1497, seguiu entre Santiago e a angra de São Brás,
já 60 léguas além do Gabo, s6 temos um documento
directo} o «Roteiro», muito conhecido dos estudiosos
desde que foi publicado em 18~8 e 1861, traduzido para
francês e inglês. As duas edições portuguesas, e a fran-
cesa, 'a presentam uma carta da rota provável, a qual,
à luz da Náutica, é incompatível com os ventos que
sopram no Atlântico no nosso Verão, como já notei.
Do «Roteiro» pouco se apura para a investigação
da rota, porque quem o escreveu raro se refere a rumos,
 432 ÍNDIA (CAP.
ventos, ou velas largas; e, à parte mais interessante da
viagem atlântica, de três meses sem ver terra, entre
Santiago e Santa Helena, 86 dedica página e meia.
Os tópicos principais que apurámos para fixar a
rota são os seguintes:
-A 3 de Agosto, «partiram em leste», isto é,
tomaram um rumo próximo de leste, da agulha;
-A 18 de Agosto, a duzentas léguas de Santiago,
«hindo hum dia com sul quebrou a verga ao capitam
moor». Isto quer dizer que já soprava ali o vento sul
da monção;
-A 22 de Agosto, «hindo na volta do mar ao sul
e a quarta do sudoeste» - isto é, com vento sueste -,
«achamos muitas aves» que à noite «tiravam contra o
susoeste muyto rrigas como aves que hiam pera terna».
Estavam «bem oytocentas legoas em mar». (Seriam
as do penedo de 8. Pedro, ou as de Noronha? Seria a
distância contada da África ou de Lisboa?) ;
-Aos 4 dd.as de Novembro sondaram em cento e
dez braças, às 9 horas da manhã avistaram terra,
virando na volta do mar;
-A 7 de Novembro viraram na volta da terra,
chegando a 8 a uma baía, na qua:1 fundearam, pondo-
-lhe o «nome Santa Ellena» ;
-A 16 de Novembro, de manhã, largaram para
o mar, com vento csullsueste», contra o qual borde-
jaram;
-A 22 de Novembro, ao meio-dia, passaram o
cabo de Boa E8perança, «com vento a popa»;
-A 25 de Novembro entraram em a c angra de
Sam Bras», onde estiveram 13 dias, desfazendo ali a
nau dos mantimentos.
IV, n] ROTA ENTRE SANTIAGO E SÃO BRÁS 433
Como se vê, o «Roteiro» é insuficiente para fixar a
rota seguida, tanto mais que, entre 22 de Agosto e 27
de Outubro, coisa alguma lhe mereceu menção.
•
Em presença desta escassez de informações
directas há que compulsar o «Roteiro» com a's
cCrónicas», e consultar as cartas de ventos e correntes
- «pilot-charts» -, as quais indicam, mês 'a mês, os
ventos mais prováveis.
Combinando estes elementos pareceu-me poder-
mos assentar no seguinte:
1.o - Era impossivel rumar de Santiago para o
sul até à latitude da Baía, no mês de
Agosto, em que Gama dali partiu;
2. 0 - O rumo à 'Saída de Santiago, que Ravenstein
traduziu por ceastwards», contando com
variação da agulha e abatimento, devia ser
mais próximo de sueste que de leste. O
mesmo rumo se seguia na rota da Mina
(Roteiro, Barros, Góis, Osório, Camões);
3. 0 -Na altura da Serra Leoa, quando o vento
se fez sul franco, vdraram no bordo do mar
-deixando de contornar a África- pelo
largo;
4.0 - Não foram ao longo da costa de África,
aproximando-se mais da costa do Brasil, a
qual souberam barlaventar, como se atives-
sem marcada no mapa;
28
434 ÍNDIA [cAP.
5.• - A rota que Ravenstein desenhou é pouco
provável para navios modernos (como para
caravelas), os quais, quando muito conse-
guem ir avi•s tar a ilha da Trindade'·
6.o- Não é pois natural atribuir às naus' curtas
e ch·e ias, de Vasco da Gama uma rota de
Verão, afastada da costa do Brasil mais de
um cento de léguas;
7.o- S6 ~vistaram terra três meses depois da
partida de Santiago, indicação esta que con-
firma a ideia de que o Atlântico Sul foi
atravessado pelo largo da costa de Africa ,·
S.o-De Santa Helena para o Oabo bordejaram
contra o vento do alisado, ali dominante
entre su~ e sueste;
9.• - Dobraram o Cabo com bom tempo;
10.o- Entre Santa Helena e São Brá8 não houve "
muito provàvelmente, nem revolta ne~
pilotos a ferros, apesar do que a tal res-
peito contam vários autores. Nem talvez
a houvesse em toda a viagem;
11.•- Seria absurdo que Gama deitasse ao mar
~~e?~s e cartas de navegação, que
rmposs1blldtassem definitivamente, pela sua
falta, a volta a Portugal, a qual sabemos
que se realizou em 1499;
12.•- Tem de ser posta de parte a longa e aciden-
tada viagem de centenas de léguas pelo sul
do Oabo, a qual as «Lendas da lndia:. con-
tam, e que é uma «embrulhada:. de muito
mais ficção que realidade;
IV, u] ROTA ENTRE SANTIAGO E SÃO BRÁS 435
13.•- Tecnicamente devemos condenar o mapa
criado pelos Drs. Kopke e Ravenstein, por
compreender rumos tanto contra o vento
dominante que os navios de vela nunca os
poderiam ter seguido.
•
No mapa que coordenei estão marcados os ventos
gerais nos meses de Agosto a Outubro, e as várias
rotas hipotéticas de Gama, incluindo aquela nàutica-
mente mais provável. Não se marcaram nem a rota
de volta de Gama nem a de Cabral, porque, realizadas
em épocas diferentes, não combinam com os ventos
apresentados na carta.
•
Enfim, do estudo dos ·e lementos de que dispomos,
dados, tanto pelas fontes como pelas cartas de ventos
citadas, somos levados às conclusões seguintes:
a) Se Gama tivesse iniciado a sua rota rumando
de Santiago para sul teria, ainda antes da latitude
10° norte, encontra:do o vento sul da monção. Então
já não 'POderia segu~r o rumo de sul; e, ou iria no
bordo de leste até à costa de África- por onde devia
ter começado - ou meteria no bordo de oeste, pelo
qual, com o vento geral da monção, teria de ir dar à
costa americana muito para oeste do cabo de São
Roque, sem conseguir montar a costa de Pernambuco,
nem atravessar o mar, para ir demandar o cabo de
Boa Esperança.
 ÍNDIA (CAP.
b) Ao contrário, se, 1logo à partida de Santiago,
Vasco da Gama tivesse nunad.o para a co8ta de A/rica
-no «caminho da Mina», ou 'de leste- ele iria con-
tornando a costa a favor do vento ali·s ado do nordeste
e da forte corrente para sueste, que contorna a costa
da Guiné até além do cabo das Palmas, e Gama podia,
assim, atingir a altura de cerca de 7 graus norte, ou
da Serra Leoa. Encontrada aqui a monção soprando
de sul, a rota seguiria no bordo do mar.
c) Porém, nesta altura ·h á que, à vista da carta
de ventos, considerar a hipótese de que Gama poderia
-se tomarmos à letra a frase do cRoteiro:.: cBart.
Dias <i hia e nossa companhia ate a mjna:. - continuar
além do cabo das Palmas, até à longitude da Mina.
Daqui iniciando •a viagem de Volta da Mina já conhe-
cida, Gama cortaria para sul até se •ld.bertar das corren-
tes para leste e encontrar, perto do equador, a conhe-
cida corrente para oeste que vai, sempre forte, até à
costa do Brasil. Caindo assim na região do alisado do
sueste, como a carta indica, o bordo do mar ao rumo
sudoeste iria, na •l atitude de cerca de 30 graus sul
encontrar a região dos ventos variáveis, que lhe asse~
gurariam caminho para sul e, depods, para o Cabo.
Esta hipótese tem contra si não só o facto de
Gama dever então ·t er tocado na Mina, para aguada-
o que não fez- como também o de envolver o conhe-
cimento prévio dos ventos gerais no Atlântico Sul. Ora,
sendo a•s sim, os pilotos saberiam, também, que não
havia vantagem em ir para leste da Serra Leoa, pois,
para tornar o caminho mais curto, convinha tomar
logo ali o bordo de oeste.
IV, n] ROTA ENTRE SANTIAGO E SÃO BRÁS 437
De resto, não temos noticia de navio algum ter
ad.optado tal rota.
Não há, pois, probabilidade de Vasco da Gama ter
acompanhado Bartolomeu Dias a.'lém do Cabo das
Paltna8.
d) Enfim, não é licito supor que as naus do Gama
pudessem ter cortado tanto para sudoeste da Serra
Leoa como Ravenstein o figura no seu mapa que
acompanha a tradução inglesa do «Roteiro». Mesmo
para poder seguir a rota dos veleiros modernos seria
preciso que Gama só levasse caravelas latinas. De
modo que, como as naus curtas e de pano redondo,
que ele levara, pouco poderiam aproveitar para barla-
vento da perpendicular à direcção do vento, é mais
racional aceitar que a sua rota em arco- semelhante,
embora sem coincidir com a dos veleiros de agora-
só lhe permitiria passar cerca de meia centena de léguas
a barlavento da parte mais oriental da costa do Bra·s n
-que é Pernambuco - e passar a meio entre a Trin-
dade e Porto Seguro. Na altura da Baía já poderia ir
rumando a sul franco. Depois, o vento ir-lhe-ia ron-
dan'do ·p ara nordeste, permitindo aproar ao sueste
até que, na altura de cerca de 30 graus de latitude sul,
Gama entraria na região dos variáveis e dos ventos
oeste, com os quais ele teria ido atingir a costa de
África. E fê-lo ao norte do Cabo, -s eguramente na
intenção de o não varar como acontecera a Bartolomeu
Dias. Bolinando contra o vento su-8Ueste, o Cabo foi
depois passado sem maior dificuldade; e, em mais três
dias, Gama chegou à aguada de São Brás.
 ÍNDIA (CAP.
,,' I
Resumindo:
'(:"2 ''
' I I h
.Provado que os comentários e mapas que acom-
panharam o cRoteiro», como a Edição Nacional d'cOs
Lusíadas», e até a tradução inglesa de Ravenstein,
vulgarizam rotas de Vasco da Gama que se aja8tam
da conjectura nàuticamente provável, há que evitar
a sua divulgação em livros ou lugares públicos, ao
contrário do que se fez na Casa de Portugal, em Paris,
como em um Café do Rossio e, até, na História da
nossa expansão.
Além disto é erro ·s upor que a investigação
daquela rota não tenha importância prática porque,
ao contrário, o seu estudo acentua um jacto capital,
provado pela analogia entre o princípio seguido nas
rotas atlânticas modernas e aquele que foi seguido por
Vasco da Gama •ao cortar o Atlântico Sul, princípio
que ele não podia ter adivinhado, indo experimentá..1lo
na travessia do Cabo; porque tal estudo revela-nos o
conhecimento prévio dos ventos gerais do Atlântico
Sul e, também, da situação 'd a terra ocidental que o
borda. Esta conjectura é apoiada pelo facto de o
piloto-mor da esquadra ser aque'le mesmo Pero Dalan-
quer que provou a D. João II conhecer o segredo da
rota da Mina pelo sudoeste de Cabo Verde. Não é
lícito a um tão proficiente prático das rotas de mar
largo -pois ele fora além do Cabo com Bartolomeu
Dias- atribuirmos rotas de aventura sem conheci-
mento prévio dos ventos dominantes que se deveriam
encontrar no Atlântico Sul.
Ah! Os historiadores, desconhecendo a Náutica,
não souberam narrar uma rota provável, preocupan-
do-se mais em contar o incidente de cfernam velloso:.
IV, n] ROTA ENTRE SANTIAGO- E SÃO BRÁS 439
e as lendas românticas das reoolta8, que teriam obri-
gado Gama a deitar ao mar os astrolábios e ·a s cartas
de marear.
Nem eles nem os Drs. Kopke e Paiva compreen-
deram que a navegação indirecta de Vasco da Gama
-que cortou três vezes o Atlântico Sul- constituía
uma demonstração prática de que os Descobrimentos
Marftimos dependeram menos da audácia dos marean-
tes que da adiantada Ciência Náutica dos Pilotos
Portugueses!
Porém, bem o compreendeu o saudoso historiador
Henrique Lopes de Mendonça quando afirmou que:
cVasco da Gama não caminhou para o desconhecido:.;
cia apercebido cientificamente para a viagem». Ao
aventurar-se cpor mares desconhecidos» ia cde olhos
abertos».
E tanto tal interpretação vem sendo pouco conhe-
cida, que é corrente ler-se - repetida - a asserção da
Enciclopédia Britânica, de que a viagem de Gama, em
1497, só se realizou por estímulo provocado pelos
sucessos de Colombo! Pois tais sucessos s6 foram o
resultado de uma Arte de Navegar no Alto Mar, que
Colombo não aprendera em Génova, nem em Espanha
-onde era ignorada- , mas só pela sua convivência
com os navegadores de Portugal, em terra e a bordo.
Porém, apesar desta verdade, a mesma Enciclopédia
insiste em afirmar que foi Colombo o primeiro homem
do mar que conheceu os meios de se conduzir com
segurança através do oceano! Ora, o que poderia este
navegador do Atlântico Norte ter ensinado a Barto-
lomeu Dias e a Vasco da Gama que os guiasse nas
travessias do Atldntico BuZ?
 [cAP.
440 fNDIA
Tal é a importância que se me afigura dever ser
reconhecida ao estudo da rota de Vasco da Gama,
para o qual a presente contribuição é apenas um ensaio
que -ouso afirmá-lo -poderá, à falta de outro, servir
de base de discussão na douta Academia das Ciências,
para aclaração de alguns dos seus pontos duvidosos.
Contudo, creio poder-se desde já concluir que tudo
aquilo que a seu respeito sabemos nos demonstra
que, os mares e terras que descobrimos e ocupámos
não os achámos cpor acaso» ou sorte: buscámo-los
metOdicamente.
Termino repetindo votos ardentes para que, do
«Roteiro» de Vasco da Gama, cujas edições estão de
há muito esgotadas, se faça nova edição1 actualizada
nos seus comentários técnicos.
m-O DIARIO DA PRIMEIRA VIAGEM
DE VASCO DA GAMA A INDIA
Uma informação mais detalhada e natural acerca
da viagem de Vasco da Gama, como atrás se disse, é
a que consta de um manuscrito, cópia de uma narra-
tiva de quem foi na viagem, existente na Biblioteca
do Porto. Foi publicado, pela primeira vez, em 1838
-mercê qa generosidade de um grupo de cerca de
400 cSnr.•• assinantes», um dos quai·s, o inglês Joseph
Forrester, adquiriu 8 exemplares. Este livro, hoje
muito raro, foi comentado por dois professores da
Academia Politécnica do Porto, Drs. Kopke e António
da Costa Paiva.
Mas estes professores, especializados em Mate-
mática e Botânica, pouca importância ligaram à parte
marítima da narrativa, sem, contudo, terem hesitado
IV, m] O DIÁRIO DA VIAGEM DE VASCO DA GAMA 441
em desenhar em cmappa:. a rota prO'VáveZ de Vasco
da Gama.
Assim, a edição do «Roteiro» 1838 é acompanhada
de um cMappa Demonstrativo da Derrota de Vasco
da Gama», procurando marcar «a verdadeira direcção
della (até onde é possível)», e pretendendo «destruir
de uma vez para sempre a força das asserções que
ent:re nacionais e estrangeiros têm aparecido, da mmpe-
riCia e casualidade do descobrimento da India:..
Pois este mapa peca fundamentalmente pelo des-
conhecimento dos ventos dominantes no Atlântico , de
modo que está manifestamente errado na rota para
além de Santiago- a qual, no Verão, não seria «pos-
sível» traçar para sul.
De resto, não se respeitou o próprio cRoteiro»,
onde se lê claramente que Vasco da Gama seguiu de
Santiago cem leste», para a costa, na companhia de
Bartolomeu Dias, que «hia até à Mjna». Errada está
também ·a rota de regresso de Santiago para Lisboa,
que deverá ser subdividida em duas rotas separadas,
nenhuma delas a direito para os Açores, mas ambas
em arco, a contornar a reg1ião do alisado do nordeste:
a de Vasco da Gama iria tocar na ilha Terceira, ao
passo que a da caravela de Nicolau Coelho, passando-
-lhe provàvelmente a .sueste, iria a Lisboa sem
escala (i).
Esgotada a 1.a edição do «Roteiro», foi publicada
uma outra em 1861, comentada por Alexandre Hercu-
( 1 ) Os professores não teriam errado se tivessem consultado
técnicos de vela, que, em 1838, eram abundantes no Porto. Com
o que evitariam cair no erro de suprimir as duas bem conhecidas
voltas: a cdo Brasil:. e a cdo Sargaço».
 ÍNDIA [cAP.
;
lano e pelo Barão de Castelo de Paiva. Procuraram
«expurgar dos defeitos da primeira edição tanto o
texto como as notas». Contudo não foram felizes neste
«empreendimento». Repetem o erro de Gama se ter
engolfado «no oceano Atlântico austral por um rumo
que não se afastava muito do sul», insistindo adiante
em que, cse Cabral em 1500 descobriu o Brasil, foi
que, conforme o exemplo de Vasco da Gama, elle seguiu
o rumo do sul». Além disto, ao passo que Kopke
aceita o relato do «Roteiro», na parte que diz respeito
à sua fácil passagem do Cabo} considerando «roman-
tico» e sem «fundamento o que diz Osório da cons-
piração contra Vasco da Gama», os comentadores de
1861 acreditam na inverosímil narrativa de Gaspar
Correia acerca da «repressão dos conspiradores», por
ser cfacil explicar o silencio de Castanheda, Barros
e Gói's pelo mal-entendido receio de deslustrar os com-
panheiros, de Gama». Assim, Herculano considera as
«Lendas», «quanto à substancia, muito superiores
àquellas e ainda à humilde, mas evidentemente sin-
cera, narrativa de Castanheda».
Os comentários acrescentam que, no livro de
Gaspar Correia, «à maior auctoridade de um homem
que tinha intervindo em grande parte dos successos
que narra» se associa a «Candura que transparece nos
seus períodos singelos» e cuma pontualidade e natu-
ralidade em descrever os factos, que inspiram confiança
no mais subido grau». cEm relação à viagem do desco-
brimento como em relação a tantos outros pontos da
nO'ssa história da índ~a, as cLendas» levam decisiva
vantagem ao que escreveram Barros e Castanheda», etc.
Como se vê, Herculano aceitou CO'mO ·a utênticas
tais «peripécias da expedição». Mostrar-se-á adiante
IV, m] O D IÁRIO DA VIAGEM D E VASCO DA GAMA 443
(Nota L) como aquela passagem do Cabo, falsamente
romantizada nas cLendas», não passa de uma narra-
tiva nàuticamente inverosímil e, por vezes, absurda.
Mas o nosso grande historiador, apesar da sua fé no
que escreveu Correia-incompatível com o «Roteiro»- ,
não se atreveu a retocar o mapa da edição anterior,
e reprodu-lo com todos os seus deslizes, incluindo a
falta de bordada «em leste», confirmada em Barros e
repetida por um que navegou para a lndia: Luís de
Camões( 2 ) .
A seguir, em 1869, H. Stanley publicou na série da
Hakluyt Society, a tradução em língua inglesa da
narrativa das viagens de Vasco da Gama, -conforme as
escreveu Gaspar Correia nas cLendas da índia»,
comentando-a favoràvelmente.
Foi, depois de conhecidas estas informações, que
se publicou, traduzida em português pelo Prof. Oliveira
Ramos, a «História da Época dos Descobrimentos»,
escrita em 1881 pelo Dr. Sophus Ruge, professor no
Instituto Politécnico de Dresda. Nesta obra, sem terem
merecido comentários do tradutor, repetem-se as inve-
rosimilhanças náuticas das cLendas da lndia», com
os seus absurdos na parte que mteressa ao nosso estudo
da rota de Vasco da Gama, tais como:
- cEm muitos pontos» a narrativa de Correia
respira cum ar de veracidade que obriga a dar à sua
narração a preferência»;
-De Santiago, cGama tomou rumo para o sul
directamente sem seguir a costa», quando ele, de facto,
meteu na bordada do sueste. cO vento era violento»,
( 2) cOs Lusíadas ~ . canto v, estância 12.
 ' .•

444 ÍNDIA (CAP.

refere Correia, quando partiram, e co mar apresen-

tava-se tão aterrador que as tripulações sofreram
grandes trabalhos por causa da contínua tempestade:..
Ora, que vento seria aquele? O do alisado de nordeste,
ou vento de sul, contrário, e que, segundo as cartas de
ventos, só principia mais ao sul?
cOs navios iam directamente ao encontro do
inverno austral; parecia sempre de noite e os homens
adoeceram de pavor e de fadiga, chegando a não poder
sequer preparar a comida». Ruge combina estas infor-
mações das cLendas» com outras do cRoteiro:., con-
tando que, cfinalmente, aproximando-se da costa,
acalmou-se o mar», entrando ca esquadra na baia de
Santa Helena», o que jã não · consta das cLendas:.. E
alvitra que seria nesta angra que Gama mandou quei-
mar «um quarto navio», que servia para ctransporte
de víveres». Enfim, não acentua que, segundo as
cLendas:., Gama foi o primeiro que dobrou o Cabo,
porque elas ignoram Bartolomeu Dias.
Contudo, nem Ruge nem Stanley se abalançaram
a traçar sobre um mapa moderno de ventos a rota
que traduz a viagem de Gama contada nas cLendas».
Ora um tal traçado seria argumento forte para fazer
ressaltar aos olhos, mesmo de leigos de Náutica, o que
a viagem de Vasco da Gama representa a favor da
afirmação de Kopke de «que o seguir tal carreira não
era casual».
Enfim Ruge, comparando as rotas de Colombo e
de Gama, comenta: cAmbos atravessaram sem traba-
lho prévio oceanos dilatados e ignotos, sendo, em
comparação» das viagens de Colombo e de Magalhães,
«a expedição de Gama uma cabotagem em grande
escala:..
IV, m] O DIÁRIO DA VIAGEM DE VASCO DA GAMA 445
Ora é incontestável que Colombo deveu à expe-
riência náutica portuguesa( 8 ) , e ao conhecimento por-
tuguês 'dos ventos do Atlântico, o titulo de cvainqueur
de la Mer Ténébreuse:. que lhe concedeu o explorador
marítimo Dr. Charoot. Por outro lado, Pinheiro Chagas
afirmou que Colombo aprendeu com os Portugueses a
cTheoria das Descobertas:.. Mas, para Ruge, tudo foi
feito csem trabalho prévio:..
Como se vê, ainda no último quartel do século
passado se não havia descoberto que a rota de Vasco
da G9.ma tinha um significado de grande alcance aos
olhos dos que conhecem rotas de veleiros.
Felizmente, pelo Centenário de 1898, a mesma
Sociedade Hakluyt publicou uma tradução do cRoteiro
de Vasco da Gama• com novos comentários. E esta
edição já não é ilustrada com um mapa copiado das
edições anteriores - incluindo duas traduções france-
sas, a de Charton e a de Morelet - , apre'sentan'do um
novo mapa onde, a par de correntes e ventos domi-
nantes, se conjectura uma nova versão sobre a rota
provável de Vasco da Gama.
Esta rota está ainda mais afastada da costa do
Brasil do que é natural aceitar, mesmo para navios
de vela modernos, em vista dos ventos correctamente
apresentados no próprio mapa do comentador da obra.
O tradutor do cRoteiro:t, E. G. Ravenstein,
apoiado no almirante Albert Markham, como cnautical
adviser:., depois de estudar a rota de Vasco da Gama,
segundo o «Roteiro:., considera profundamente absurda
a narrativa contida nas cLendas:., csendo surpreen-

(1) cChristophe Colomb fut indirectement un éleve de Henri

le Navigateun (J. B. Charcot, pág. 35).
 lNDIA (CAP
dente ·que ela tinha sido aceite por historiadores
sérios». E acrescenta: «Esta primeira passagem atra-
vés do Atlântico austral é uma das grandes realizações
- «achievements» - registadas nos anais da explo-
ração marítima:..
Ainda no mesmo ano de 1898, foi também publi-
cado -com o tí'tulo «Vasco da Gama, quando partiu?»
um fdlheto cujo autor Frederico Dinis de Ayalla mos-
'
tra estar também iludido '
com 1as «Lendas da fndia»,
porque considera o «Roteiro» cum trabalho feito no
gabinete» em fins do século XVI ou princípios do
século XVII. Seria necessário ser de todo cego «para
não reconhecer que as «Lendas da tndia», no que toca
à primeira viagem de Vasco da Gama, são a narração
exacta e fiel do assombroso acontecimento:.. O autor,
desconhecendo Náutica, tem a desculpa de não poder
notar os absurdos da rota que as «Lendas:. impõem.
São conhecidos - e agora publicados em língua
portuguesa- alguns estudos do Dr. Franz Hümmerich,
professor em Munique, sobre Vasco da Gama e oDes-
cobrimento do Caminho Marítimo para a lndia, o
último dos quais tinha sido publicado em Coimbra,
em 1923.
O Dr. Franz Hümmerich analisou minuciosamente
não só o que se contém nos cronistas, como aquilo que
as «Lendas» romantizam. Tradu21iu o «Roteiro» para
língua alemã, e estudou os comentários das suas dife-
rentes traduções e, nomeadamente, os de Stanley e
Ravenstein, como ainda a «História» de Sophus Ruge
e o «folheto» de Dinis de Ayalla.
Nestes estudos discute...se exaustivamente o que
contam «Lendas» e cronistas, e conclui-se que o
«Roteiro» constitui uma narrativa que merece o nome
IV, m] O DIÁRIO DA VIAGEM DE VASCO DA GAMA 447
de «História:.. Os comentários do Dr. Hümmerich
foram apreciados pelo malograd~ professor L. Pereira
da Silva, no seu conhecido alltigo O Roteiro da primeira
'Viagem do Gama e a suposta conjuração, publicado em
1925 em «0 Instituto», onde declara que o livro do
Dr. Hümmerich, publicado em 1898, «feito com elevado
critério e profundo estudo:., cainda hoje se deve consi-
derar o melhor que se tem escrito sobre Vasco da Gama
e a sua viagem».
Também, a propósito do falecimento do Dr. F.
Hümmerich, o Dr. José Maria Rodrigues, em comuni-
cação à Academia das Ciências, lhe elogriou em 1931
os trabalhos, tão interessantes para nós.
Finalmente, em 1940, a Agência...Ge:ml das Co1.6nias
publicou uma nova edição do cRoteiro:. -edição já
esgotada- , a qual foi proficientemente anotada pelo
professor da Escola Nava'l capitão-de-mar-e-'gllerra
Abel Fontoura da Costa.
Este meticuloso trabalho já abandonou de vez os
comentários menos marítimos das duas edições portu-
guesas, como abandonou o mapa de Kop1re e, mesmo
em parte, o de Ravenstein. Os novos comentários, em
296 notas, concorrem poderosamente para nos facilitar
a interpretação do cRoteiro:..
Nenhum dos anteriores autores se preocupou
exclusivamente com o estudo e discussão da rota
seguida por Vasco da Gama. Era ao comandante Fon-
toura, professor e navegador, que agora competia
ampliar o seu valioso trabalho de 1940, investigando
em detalhe qual a rota que, com maior verosimilhança,
se pode atribuir à famosa viagem de 1497-99.
Foi só na sua falta que eu, decalcando, sobre as
conh~idas cartas modernas de ventos, todas as

ÍNDIA [cAP.
escassas informações de que dispomos a respeito das
Vliagens pioneiras de Dias, de Gama, de Cabral- e
também de D. João de Castro -me atrevi a desenhar
em um novo mapa a rota que, a meu ver, tem maior
verosimilhança de ter sido seguida por Vasco da Gama,
na sua viagem de ida e volta entre Portugal e a lndia.
A confusão de informações e escritos conhecidos
justifica esta nova tentativa de interpretação, que
nenhum dos anteriores autores esgotou.
Não me proponho insistir na narrativa completa
do que se passou durante os dois anos que durou a
viagem de Vasco da Gama. E , assim, omitirei os acon-
tecimentos, tanto a bordo como em terra, estranhos à
navegação da esquadra. Só me preocupou o esclarecer
a parte marítima da viagem, assunto que há muito mais
de uma dezena de anos constitui objecto de meus
estudos.
O AUTOR DO «ROTEIRO»
O Dr. Diogo Kopke, na sua investigação sobre o
nome de quem, «Simples soldado ou marinheiro», escre-
veu o «Roteiro da Viagem de Vasco da Gama», conjec-
tura que «Castanheda sabia» quem o escreve~a e que,
por isso, não podia ter deixado de lhe incluir o nome
entre os de a·l guns dos «doze» que acompanharam Gama
no seu desembarque em Calecute. E isto apesar de Cas-
tanheda não ter vristo o manuscrito original, mas só a
mesma cópia de Coimbra que nós agora lemos na
Biblioteca do Porto. Então, por exclusão de nomes,
deduziu que o autor do «Roteiro» seria «um Álvaro
Velho», do Barreiro.
Por várias indicações conclui-se que ele ia a bordo
da nau «São Rafael», até que este navio, em Janeiro de
IV, m] O DlÁRJO DA VlAGEM DE VASCO DA GAMA 449
1499, foi abandonado e queimado nos baixos a que deu
o nome, ao nordeste da ilha de Zanzibar.
Embora Kopke o considere «mais provàvelmente
marinheiro», a leitura do «Roteiro» dá-nos a impres-
são de que ele seria mais soldado e aventureiro,
dispondo de alguma cultura. Porquanto os detalhes
de navegação que mais interessariam quem nela inter-
viesse não são notados no «Roteiro». Assim, a inte-
ressante travessia do Atlântico Sul, em que se
afastaram centenas de léguas para poente de África,
e passaram três meses sem ver terra, nos quais deveria
ter havido acontecimentos interessantes para cum
marinheiro», não com tempestades, mas com as quatro
bordadas- cem leste», cvolta do mar», caminho para
sul e, afinal, para leste - , esta complicada rota é
descrita no cRoteiro» em menos de uma página.
Também se lê no cRoteiro» que o capitão-mor
desembarcou com outros, tomando um dos Negros.
Mas, dessa ou de outra vez, é certo que Gama também
desembarcou com o piloto-mor, Pero Dalanquer,
levando o astrolábio grande, para observarem o Sol e
determinarem a latitude. Porque no próprio «Roteiro»
se lê que Pero Dalanquer teria afirmado que, apesar
de só ter passado por aquela baía de Santa Helena de
noite, estariam quando muito «trinta légoas a rree do
Cabo». Ora ~sto só se podia ter sabido pelas observa-
ções da latitude, às quais se refere o cronista Barros.
De resto, é de crer que a determinação da latitude,
nunca citada no cRoteiro», teria sido repetida sempre
que interessasse e se demorassem em terra, como no
rio dos Bons Sinais, na ilha de S. Jorge, na ilha de
Angediva e, talvez, nos baixos de S. Rafael.
29
 450 ÍNDIA [cAP.
Tão-pouco há no cRoteiro:. referência à observa-
~- diária meridiana do Bol, sempre interessante por
mdicar o progresso da viagem.
Enfim, o «Roteiro:. peca por falta de detalhes
náuticos, razão esta pela qual Oastanheda se permitiu
a liberdade de aditamentos marítimos, como as tem-
pestades ao norte das Canária·s e na travessia do
Atlântico Sul.
Um facto tem intrigado os investigadores: 0
«Roteiro» -ou a cópia que dele conhecemos- termina
abruptamente, depois da sonda de 20 braças sobre os
«Baixos do Rio Grande:., apesar de ser de sumo inte-
resse citar-se qual a terra depois avistada.
Não há razão náutica para se concluir contra o
que se lê em todos os cronistas, que hou~esse ideia
de demandar a costa da Guiné. Sabemos que algumas
vezes se foi, por aguada e 'lenha, à angra de Beseguiche
logo ao sul do cabo Verde , e umas sessenta léguas
antes do rio Grande. Assim fez Cabra!! em 1501.
Sabem?s que, com certeza, Gama foi a Santiago, lugar
de mais recursos e que exclui outra escala da costa.
De resto, com vento de nordeste, que ·ali domina em
Abril e Maio, o caminho para Santiago era a volta do
mar. Na sua investigação sobre o prosseguimento da
viagem, o Dr. Hümmerich apoia-se em um documento
existente em Munique, no qual há duas referências a
um «Álvaro Velho do Barreiro:. -autor conjecturai
do «Roteiro:. - o qual, depois de se ter demorado
oito anos cna região da Berra Leoa, teria escrito uma
memória, conhecida do impressor alemão Valentim
Fernan1:les», e cem que trata da região situada ao sul
do rio Grande:..
IV, m] O DIÁRIO DA VIAGEM DE VASCO DA GAMA 451
Na sua original conjectura, o Dr. Hümmerich
supõe que os navios de Gama teriam ido aos baixos do
rio Grande cem demanda de terra». Teriam desem-
barcado para meter água e lenha. E, à partida, Álvaro
Velho ficam em terra cpor doença, por desa·s tre, por
qualquer motivo imprevisto, e por lá se empregou, quer
como feitor, quer como capitão ou mestre de alguma
caravela que andasse em comércio de troca por aquelas
paragens».
A meu ver a explicação mais aceitável da inter-
rupção brusca do cRoteiro» original seria a morte. Se,
porém, tivesse havido a escala na costa, que nada con-
firma, não é crível que o autor do cRoteiro», depois
de ter sido dos poucos que escaparam de uma viagem
tão longa, arriscada e gloriosa, não preferisse seguir
para Lisboa, a ver amigos e a sua terra. De resto, tão-
-pouco é natural que, após dois anos de viagem tão
trabalhosa, Álvaro Velho se sentisse com saúde para
ficar na região ~nsalubre da Guiné, em lugar de vir a
Lisboa, também refazer-se.
Assim, embora a conjectura a·c erca da autoria do
cRoteiro» tenha a maior probabilidade a favor de
Álvaro Velho, já a não tem a de que ele fosse mari-
nheiro. Tão-pouco é natural que tivesse interrompido
a sua narrativa sem, ao menos, citar o facto interes-
sante de ter sido avistada terra depms de mês e meio
de mar e, enfim, o desembarque.
Mais natural nos aparece a hipótese de não ter
sido o autor, mas o copista, quem interrompera brus-
camente o seu trabalho. Um facto análogo se nota em
um outro manuscrito interessante- cópia também do
original-, o cEsmeraldo», o qual também se inter-
rompe bruscamente.
452 lNDIA (CAP.
DESCRIÇÃO DA VIAGEM NOS TERMOS
DO c:ROTEIRO:. ESCLARECIDOS
E AMPLIADOS POR OUTRAS FONTES
Concluídos os demorados preparativos da viagem
definitiva à lndia- compreendendo navios, material
pessoal e, até, estudo prévio da rota que os ventos
dominantes permitiam - foi decidida a partida da
esquadra, de que era capitão-mor Vasco da Gama e
piloto-mor o experimentado Pero Dalanquer.
Esta esquadra compunha-se de duas naus iguais,
de ·c erca de cem tonéis, sendo a c:São Gabriel» coman-
dada por Vasco da Gama, e a outra, a c:São Rafael», por
seu irmão mais velho, Paulo da Gama. Eram acompa-
nhadas por uma caravela de metade da tonelagem das
naus, a c:São Miguel», aicunhada de c:Bérrio», sob o
comando de Nicolau Coelho. Na esquadra ia incor-
porada uma nau maior, só destinada a depósito de
mantimentos.
Sendo o tempo propício, no sábado 8 de Julho de
1497(4 ) largou a esquadra do seu fundeadouro, em
frente da praia do Restelo, tendo embarcado a tripu-
lação de cento e meio de homens, assistidos de ceri-
mônias religiosas adequadas aos perigos que eram de
recear nesta primeira grande viagem, espécie de pro-va
real dos importantes trabalhos marítimos com que
tinha sido preparado o Descobrimento do Caminho
Marítimo da lndia.
(4) Esta data, que é a do cRoteiro», é geralmente aceite.
:1!: certo que Duarte Pacheco, no cEsmeraldo», indica csabado
oyto dias do mes de Junho», mas é claro tratar-se de erro do
copista, porque s6 o dia 8 de Julho é que :foi sábado.
IV, m] O DIÁRIO DA VIAGEM DE VASCO DA GAMA 453
Nesta narrativa da rota seguida por Vasco da
Gama- assunto que me ocupa especialmente- será
dada preferência ao c:Roteiro:., adaptando-lhe o que
consta de outras fontes.
Na esquadra ia incorporada a caravela de Barto-
lomeu Dias, que se destinava à Mina.
Na época dominam ventos entre norte e nordeste,
pelo que, com tais ventos favoráveis, no sábado
seguinte, 15 de Julho, foram avistadas as ilhas
Canárias. c:Esa noute» passaram a sotavento- ou seja
à terra- da ilha Lancerote. Tinham, em média, nave-
gado a 26 léguas ( 3 ) ou 90 milhas diárias.
Na madrugada de segunda-feira estavam ao largo
da Terra .Alta( 6 ) . E, ao anoitecer, tinham o c:rrio do
ouro» pelo través, já 45 léguas além do cabo Bojador.
Nessa noite de 17 para 18 foi c:tamanha a çarra-
çam:. (7) que a esquadra se separou em três partes,
indo por um lado a nau-chefe, c:São Gabriel:., por outro
a nau de mantimentos com as duas caravelas e, por
outro, a nau «São Rafael», em que ia o autor do
c: Roteiro».
Todos navegaram para as ilhas de Cabo Verde,
como tinha sido c:ordenado:..
(5) São neste trabalho consideradas sempre as léguas por-
tuguesas, de cdezassete e meia», ao grau.
(6) Deve tratar-se da terra ao sul da angra d>os Ruivos,
do cEsmeraldo», e não da Penha G-rande, 32 léguas ao norte do
Rio do Ouro, distância esta muito grande para ser navegada s6
em meio dia.
(7) Castanheda informa que o nevoeiro foi acompanhado
de «tormenta», o que deve ser falso, não s6 por nada constar do
cRoteiro», como por as cartas de ventos marcarem no local menos
de uma tempestade em cada cento de dias.
 454 lNDIA (CAP.
Domingo 23 de Julho, ao amanhecer, foi avistada
a ilha do Sal, encontrando-se a cSão Rafael» com o
grupo de três navios. Como o vento continuara de
nordeste, as singraduras tinham sido, em média, de
pouco mais de 30 léguas, 105 milhas diárias.
Então o vento abonançou- como ali acontece no
Verão- e andaram três dias cem calmaria», ·a té que
se encontraram com a nau do capitão-mor. No dia
seguinte, quinta-feira 27 de Julho, chegaram todos à
ilha de Santiago, fundeando a esquadra ccom muito
prazer e folgar:. na cpraya de santa Maria:., porto a
que hoje chamamos a Praia.
Em Santiago tomaram ccarnes e augoa e lenha»
e fizeram-se nas cvergas dos navios:. pequenas repa-
rações.
Na quinta-feira 3 de Agosto largaram os cinco
navios para o mar. Continuava ainda com eles a cara-
vela de Bartolomeu Dias, pois partiram cem leste», o
que não quer dizer que tivessem rumado a leste direito
da agulha, mas em uma direcção mais próxima de
leste que de ,s ueste (8 ) .
(8) Nesta mesma orientação, Ravenstein traduziu cem
leste» para c:in an easterly direction». Vasco da Gama ia, pois,
acompanhado de Bartolomeu Dias, que, na sua caravela, ia «ate
a myna». Barros assim o compreendeu, escrevendo que Dias
. acompanhou Vasco da Gama até cada um deles se «por no cami-
nho» da sua derrota. Camões o repete, contando que, para além
das ilhas Bijag6s,
cNo grandissimo golfão nos metemos,
deixando a serra asperrima Lyoa.»
Castanheda, não tendo compreendido o significado das pala-
IV, m] O DIÁ.RJO DA VIAG EM DE VASCO DA GAMA
455
:1!: sabido que no Verão- estavam em Agosto-
o vento alisado de nordeste falha por vezes, sendo
frequentes as calmarias, que somam dezasseis dias em
cada cem, e sendo os ventos variáveis, com exclusão
do sueste. Este facto é traduzido no verso de Camões
cE tanto que Boreas nos ventou:..
Com a sua bordada no caminho da Mina, Gama
aproveitava a forte corrente que acompanha a costa
de África até além do cabo das Palmas, que o ajudava
a ganhar sul, ou seja, barlavento. E quando meteu cna
volta do mar», apesar de a monção de sul dominar em
cerca de setenta por cento dos dias, pôde dobrar a
costa do Brasil, como sabemos. ·
Nesta navegação, primeiro parn. oeste e, depois,
com o vento de sueste do geral, Gama pôde rumar já
a sudoeste e ir passar por leste, ou barlavento, do
penedo de S. Pedro e da i1lha de Fernando de Noronha,
não sendo avistada nenhuma destas terras.
Esta conjectura é confirmada pelo facto de,
segundo o «Roteiro:., terem passado a 23 de Agosto a
duzentas léguas de Santiago, provàvelmente ao sul,
já na cvolta do man e, portanto, em cerca de três
graus de latitude norte.
No prosseguimento desta viagem em largo arco,
pelo largo da África- na qual passaram treze semanas
vra.s cem leste», diz apenas que Gama «Be engolfou no man.
Tão-pouco o Dr. Kopke o compreendeu, no mapa com que acom-
panhou o «Roteiro».
Esta mesma exp.r essão cem leste» se encontra mais adiante
no «Roteiro», onde o rumo de Melinde para a fndia não é leste
direito da agulha, mas entre leste e nordeste.
 IV, m] O DIÁRIO DA VIAGEM D E VASCO DA GAMA 457
lNDIA [CAP.

vada dir-lhes-ia que estavam menos de meio cento de

sem avistar terra- , poucas informações nos dão as
léguas ao norte do Cabo, que pretendiam montar.
fontes.
Tinham passado treze · semanas sem avistar terra.
Contudo, o conhecimento adiantado que hoje temos,
Esta demora explica-se, não por hesitação na rota,
tanto dos ventos dominantes no Atlântioo Sul oomo
mas por terem provàvelmente navegado de noite oom
das rotas que eles impõem aos veleiros, leva-nos a
pano redtwido, receando encontrar alguma ilha. E de
afirmar que a rota de Vasco da Gama, a mais compli-
facto algumas há isoladas naqueles mares, oomo N oro-
cada que até então se traçara- o que exclui a aven-
nha, Trindade, Martim Vaze Tristão da Cunha. Mas a
tura ou acaso-, merecia aos cronistas uma narrativa
oonjectura de a demora ter sido causada por tempes-
mais detalhada. Só a insuficiência náutica dos histo-
riadores explica este facto de terem deixado de acen-
tades, de alguns cronistas, não tem fundamento, visto
que no pior dos casos- no extremo sudoeste da rota-
tuar a imposição de um reoonhecimento anterior.
as cartas não marcam mais de três dias de tempestade
Nesta volta larga teriam passado a cerca de meio
cento de léguas da costa do Brasil. Para sul da latitude em cada cento.
de dez graus o vento vai-se fazendo sucessivamente A 8 de Novembro, tendo vindo na volta da terra,
de leste e nordeste, de maneira que, oonforme se lê depois de Pero Dalanquer ter ido cno batell a
ssumdar», entraram em uma baía abrigada, à qual
no cRoteiro:. de D. João de Castro, cjamais a proa de
nossos navios vai fora do quadrante de sueste:.. cpuseram nome Santa Helena:., que não era a Santa
Atingida assim uma latitude de cerca de trinta deste dia{l 0 ) .
graus sul, já os ventos dominantes permitem, rcomo é
sabido, ganhar directamente leste. Porém não tendo
'
os pilotos descido suficientemente a sul, é natural supor e já «desanimavam os menos corajosos quando avistaram terra~.
que ainda encontraram vento do alisado de sueste com Ora, como a bordo conheciam as latitudes, os pilotos iam certos
o qual não conseguiram ir avistar a ponta do cabo ' de de que haveria terra de Africa pela proa, não havendo, portanto,
razão para irem «desanimados>.
Boa Esperança, indo encontrar oosta de Africa(') na ( 10 ) A simplicidade com que os cronistas, e o próprio
manhã de 4 de Novembro. Foram até cbem junto cõ « Roteiro~ , se referem a essa complicada travessia do Atlântico
terra:. e viraram na volta ào mar. A latitude ali obser- Sul tem desorientado os historiadores, que, por desconhecerem
a navegação de vela, tão-pouco o acentuam. Tem merecido muito
mais atenção e detalhe a demora na baía de Santa H elena, com
"( 9 ) Na recente História de Ant6nio Matoso, a rota larga
a aventura de chiíu Fernão Vellosso> com os chomées baços~ , do
em arco, a contornM ventos contrários, de sueste, explica-se
que a rota indi1'ecta com que lá chegou V asco da Gama, depois
ctalvez para escapar às calmarias e correntes do golfo da
de uma viagem de 9'7 dias, sem escala para água. Pois, mesmo
Guiné>, sem se notar que só um reconhecimento prévio poderia
a leigos, o complexo traçado da rota impressionará, devendo, por
~r garantido que, a oeste, haveria menos calmarias, e possibi-
isso, ser vulgarizado em alguma escola, edifício público, jar-
lidade de se romper para sul, como convinha. Além disso nesta
dim. etc. •.•
navegação, cem pleno mar:. «todos se viram em assaz ~go>,
 INDJA [cAP.
. Nesta baía encontraram a:inda negros, embora.
diferentes, na língua e costumes, dos já conhecidos da
Guiné. Sem serem muito combativos contudo em uma
pequena escaramuça., ainda feriram' levemente ' tanto
.
o capitão-mor como uns «três ou quatro homes:.. ' bordada de leste, vieram à terra., mas o vento conti-
No «Roteiro» lê-se que o piloto-mor, Pero Dalan-
quer, embora não tendo conhecimento da baia, por ali
ter passado com Bartolomeu Dias s6 pelo largo e de
noite, afirmara que não estariam mais de trinta léguas
«arree do Gabo ». O que ele só poderia ter concluído de
observações do Sol. A ela's se referem as «Décadas» ma·s
o «Roteiro» nada diz a tal respeito, nem aqui ne~ em
outros locais onde, com a maior probabilidade, também
foi determinada a latitude. E como aquela distância
de trinta léguas só está errada cerca de uma unidade,
há que concluir que já em 1497 os nossos mareantes
dispunham de suficientes recursos, tais como o astro-
lábio, grande de «rtrês palmos», e tabelas de declinação
do Sol detalhadas para o ciclo de quatro anos.
Em Santa Helena tomaram lenha e fizeram aguada
de um rio que desagua dentro da baia, ao qual deram
o nome de «rrio Santiago:. (11 ) e que hoje tem o nome
de Berg Ri ver {1 2 ) .
11
( ) Segundo Osório, este nome de rio explica-se por ser
«de uso dos nossos descobridores dar às terras, ilhas e ribeiras
.desconhecidas o nome dos Santos que eram mais célebres nos
dias em que as avistavam».
12
( ) Osório dá a entender que este rio era fora da baía
de Santa Helena, e que Vasco da Gama mandou «velejar para
aquele sítio>. No «Roteiro> lê-se que o rio onde fizeram aguada
jaz «a quatro legoas desta amgra pera o sueste». Ora, na costa
não há tal rio, nem seria praticável ir lá, contra o vento, com
IV, m] O DI ÁRI O DA VIAG EM D E VASCO D A GAMA 459
Demoraram-se oito dias na baía, até que na quinta-
-feira 16 de Novembro se fizeram de vela. Como o
vento era csull susueste» ao correr da costa, logo tive-
ram que ir na cvolta do mar». Dois dias depois, na
nuav·a de SSE, como ali costuma, de modo que tiveram
de repetir a volta ao largo. Já estavam a meio caminho
do Gabo; o «Roteiro:. informa que já o tinham avistado,
mas a distância era ainda de perto de vinte léguas, de
modo que s6 poderiam ter avistado as terras altas que
lhe ficam a norte. A 19 de Novembro, na volta da terra,
segundo o «Roteiro», foram coutra vez com o Gabo»,
mas esta ponta é baixa e ficava ainda a quinze léguas.
Deve, pois, tratar-se da chamada montanha da Mesa,
que tem 1082 metros de altitude, ou das outras mon-
tanhas menores, para sul.
Repetiram ainda a bordada para sudoeste, mas
depois o vento escasseou e, na outra volta, conseguiram
dobrar o cabo de Boa Esperança, o que foi a 22 de
Novembro ao meio-dia, seguindo ao longo da costa
com vento folgado (18 ).
Três dias depois, a esquadra de Vasco da Gama
entrava cem a angra de sam Bras», porto cujos recur-
sos já eram conhecidos havia mais de dez anos, pois
as lanchas, encher os barris de água. Só se pode tratar, pois, do
«rio Berg», que desagua dentro e ao fundo da baía de Santa
Helena. Assim o mostra já o mapa de Cantino, e assim opinam
Kopke e Hümmerich, embora sem acentuarem o equívoco das
cquatro legoas para sueste> que se lê no «Roteiro>.
( 1 &) A expressão evento a pôpa> usada pelo «Roteiro», e
pelos roteiros antigos, não corresponde a popa a.rrasada, mas a
vento cpara ré de través>.
460 IN DIA [cAP.
é de crer que Bartolomeu Dias já lá entrara em 3 de
Fevereiro de 1487.
Não foram aqui mal recebidos pelos Negros, que
tinham c:boys:. c:muito grandes como os dalemtejo e
muito gordos amaravilha e muito manssos:.. Davam
montada, de modo que c:vinhão as molheres sobre
elles com hüas albardas databua:.. Trocaram alguns
por c:manylhas».
c:Bem acaram daguada:. havia ra8to de elefantes.
Nesta angra havia um ilhéu, povoado de focas
muito grandes - cobra de tres mill:. - assim como
de umas aves, que c:nam voam porque nom tem penas
nas asas e chamã-lhe fotylicayos». São os actuais
pingusnB~
Desfeita a nau que levava os mantimentos- agora
tornada inútil- e feita agu·a da {14 ) , e posto em terra
c:hüu padram», além de um'a c:cruz» alta, feita de uma
mezena (1~) da nau, largaram para o mar a 7 de Dezem-
bro. Como, porém, o c:vemto era calma:. tornaram a
fundear depois de navegadas duas léguas.
Na sexta-feira, 8 de Dezembro, deram de novo
à vela e seguiram no caminho para leste. Quatro dias
depois c:salrtou com elle» grande tormenta, com vento
cuja direcção o c:Roteiro:. não indica, mas que deve ter
sido de noroeste, visto que, tendo comido c:a popa cõ
o traquete muito baixo:., perderam a terra de vista.
Parece que a não atestaram.
( 14 )
Ainda mesmo antes da partida, foi tudo derribado por
( 13 )
cdez ou XII negros:., de modo que não ficou vestígio deste
padrão.
IV, m] O DIÁRIO DA VIAGEM DE VASCO DA GAMA 461
A tormenta( 18 ) s6 durou todo o dia, tendo-se per-
dido de vista o navio de Nicolau Coelho, até que, ao
sol-posto, se avistou do altx> da gávea, umas quatro
léguas pela popa. Pairaram - c à corda:. - e à meia-
-noite a caravela, que vinha cpella bolina», provàvel-
mente rumando a nordeste com vento de noroeste, já
se juntara às duas naus.
Sexta-feirn 15, de manhã, avistaram terra, os já
conhecidos ilhéus Chãos, nome dado por Bartolomeu
Dias, estimando-os a 65 léguas de São Brás, o que só
difere da verdade umas três léguas.
O c:Roteiro:. explica que, ao cderradeiro padram
que Bartolomeu Diz pos», eram mais cinco léguas, e
à boca do cRio do lffante:. havia um total de vinte
léguas.
Em 16 de Dezembro ao anoitecer estavam já
c:tanto avante como o rrio do lffante:.; pairaram, por a
terra para diante ser desconhecida, e, no dia seguinte,
foram, com vento de sudoeste, cprelongando a c:costa»
até que, à tarde, «saltou o vento ao levante» e toma-
ram a c:volta do mar», ou seja rumos de sul.
Como a costa corre a nordeste, e como não consta
terem tornado a reconhecer a terra até à manhã de 20
(18 ) Segundo Barros, por ser cessa a primeira tormenta:.
em cmares e climas não sabido&>, só acordavam em cclamax por
DeotD. Castanheda chamou-lhe cborriscada:., e Osório chorroroso
vendaval inopinado, que os arredou mui longe da vista de terra,
à qual se vieram apropinquanto, logo que a borrasca amainou».
O que sugere a conjectura de o vento ter soprado de noroeste.
Osório não segue aqui a versão das cLendas», com tempestade
de leste, de tão grande duração que provocou requerimentos de
arribada, prisão de mestre e pilot os, e lançamento cao mar das
coisas de arte de navegar» para não poderem retirar, etc ....
 INDIA f CAP.
de Dezembro, há a conjecturar que deram mais uma
bordada a norte e outra a sul, até que, ao csoll posto»
do dia 19, tornando o vento a soprar de cponente:.,
estiveram pairando. Na manhã seguinte d~a 20 foram
cde frecha aterra», e às dez horas estavam ~com o
Ilheo da Cruz que era a rree do que nos fazíamos
sessenta legoas».
Esta tão sensível divergência entre a estima e o
caminho rea!l (1 7 ) é atribuída no «Roteiro» às ccorrétes
que aquy sam grandes», o que é um facto bem conhe-
cido, e que já tinha concorrido, em 1487, para Barto-
lomeu Dias desistir do seguimento da sua interessante
viagem para nordeste.
Com o cit•a do «Vento a popa», que 1hes durou ctrês
ou quatro dias», conseguiram romper as correntes, de
modo que no cdia de Natal» (18 ) , 25 de Dezembro,
tinham descoberto cpor costa setemta legoas». Teriam,
possivelmente, já verificado que à terra a corrente era
mais fraca , havendo até por vezes revessa(1 9 ) .
( 17 ) Segundo as «Décadas», nesta cparagem por causa
das grandes correntes andaram ora ganhando ora perdendo
caminho>.
(1'8 ) ~ aceitável que esta parte da cost a, a que deram o
nome de Natal, que ainda hoje tem, f osse aquela onde actual-
mente está situada a florescente cidade de Durban, a qual fica,
do facto, 70 léguas além de East-London. A ponta primeira, na
col6ni·a inglesa de Natal, deve ser o cabo Natal, cuja latitude
é 29" 52', ao passo que, segundo o «Roteiro» de Pimentel, a
cprimeira ponta da Terra do Natal está em altura de 32 graoS»·
( 19 ) ~ de crer que esta ponta de terra, que ainda hoje se
chama Natal, fosse o Cape Natal, logo ao sul da actual flo-
rescente cidade de Durban, a qual fica, de facto, 74 léguas
a norte de East-London.
IV, m] O DIÁRIO DA VIAGEM DE VASCO D A GAMA
Neste dia 25 ·a charam « O masto com hüua fenda
abaixo da gavea hüua braça:., avaria esta que repara-
ram mesmo no mar, como puderam.
Três dias depois estiveram todo o dia fundeados
na costa, pescando. cAo soll posto» tornaram a dar
à. vela (20 ) •
Ao suspender perderam um ancorote, por ter reben-
tado o ccalabrete:. com que o tinham fundeado.
Daqui, fosse para fugirem às correntes ou, o que
é mais provável, por o vento ser mais escasso, ou
ponteiro, abandonaram a vista da costa. Andaram
ctanto pello mar», que começou a faltar a água,
passando a ser distribuída em ração muito limitada,
apenas chüu quartHho» -ou seja cerca da terça parte
de um litro- como ração diária, para cbeber». E cozi-
nhavam com água salgada.
Vê-se que em São Brás só tinham podido meter
pouca água, pois haviam saído do porto a 8 de Dezem-
bro, havia cerca de um mês.
S6 na quinta-feira 11 de Janeiro (21 ) o vento lhes
permitiu ir avistar terra, onde se notava a boca de
chüu rrio pequeno», tendo pousado cao longo da costa».
Desembarcaram no dia seguinte, entrando em contacto
com os nativos, cmuittos homees e molheres negros»,
sendo fácil estabelecer relações amigáveis. Era terra
( 20 ) Este ponto da costa deve, naturalmente, ser aquele
que nas cartas da época tem a indicação «pescaria» e que pode-
mos localizar na boca da lagoa Santa Lu zia, cerca de 35 léguas
a norte de Durban. Tal teria sido o caminho vencido contra a
corrente nos três dias que vão de 25 a 28 de Dezembro.
( 21 ) O manuscrito do «Roteiro» traz «dez dias de Janeiro»,
mas a «quinta-feira» caiu de facto no dia 11.
 INDJA [ CAP.
muito povoada. Deram-lhes roupa, e «carapuças e mani-
lhas». V~sitaram povoações, onde ca•s cassas» eram cde
palha» ou, como hoje dizemos, cpalhotas». A esta terra
puseram o nome de Terra da Boa Gente e como ali
viram muito cobre, que usavam em manilhas,' deram
ao pequeno rio o nome de crrio do cobre» (~ 2 ).
Demoraram-se cinco dias ca tomar agoa a quall
nos acareta~am as bates aquelles que nos vinham aver».
Não tomaram toda a que precisavam, porque o vento
era cde feição» para a continuação da viagem para
nordeste.
Largaram de novo para o mar em 16 de Janeiro,
afastando-se da costa, fosse para evitar a corrente a
sudoeste, fosse por o vento não dar bordada.
Passaram ao largo do cabo que depois se chamou
22
( ) Depois de minuciosa discussão do caso, Kopke pro-
nuncia-se pela correspondência da Boa Paz com um rio entre o rio
Lourenço Marques e o Inhampura, ou Limpopo. Este erro arras-
tou Herculano e Hümmerich, mas não Ravenstein. Trata-se da
Aguada da Boa Paz, que o cRoteiro» de Pimentel descreve
correctamente, quinze léguas para levante do rio do Ouro, com
as suas cbãxas ao longo da terra», além de chum arrecife arre-
dado da costa meya légoa». Forma assim um pequeno porto
abrigado de ventos de sul, no qual em Janeiro de 1498 estiveram
fundeados os três navio,s de Vasco da Gama. Foi este o primeiro
ponto da costa da actual província de Moçambique avistado
pelos Portugueses. Não há indícios de os pangaios irem tanto
ao sul. Os panos que os pretos usavam recebiam-nos pro,v àvel-
mente pelo interior. A gente é hoje chamada Mochopes de Zavala,
posto militar pouco afastado. No seu comentário, Fontoura reco-
nheceu também que o rio do Cobre é ·a boca do rio Inharrime ,
que recebe águas de uma fi ada de lagoas que corre ao longo da
costa, por dentro das dunas. Ficou marcada nos mapas em 1910.
IV, m] O DIÁRIO D A VIAGEM D E VASCO DA GAMA
das Correntes, e das ilhas de Bazaruto, como também
de Sofala, nenhuma destas terras tendo sido avistada.
A 22 de Janeiro avistaram uma cterra muito baixa
e de hiius arvoredos muito altos e juntos». Continuando
ao longo desta COSta viram um «ITiO }arguo e boca» e,
para saber onde estavam, fundearam ao largo. A 24
de Janeiro o cBérnio» entrou no rio e, no dia seguinte
à noite, também as duas naus ficaram fundeadas lá
dentro.
Aqui abundavam as frutas, de que se alimentava
a população negra. Os homens eram cde bons corpos»,
alguns cobriam-se com «panos de algodam».
Era esta a mercadoria que os indígenas mais apre-
ciavam, e que «·r esgatavam» com frutas e outros man-
timentos frescos.
Apareceu ali um «mançebo que segundo elles ace-
navam era doutra terra dij longe e dizia que já vira
navios grandes como aquelles que nos levavamos», sinal
que muito alegrou as tripulações.
Começaram então a adoecer muitos chames que
lhe inchavam os pees e as mãos e lhe creçiam as gin~ivas
tanto sobre os dentes que os homes nom podiam comer».
Era a doença do escorbuto, que tantas vítimas iria
causar nas tripulações. Deram ao rio no nome dos
cboõs Signaes», e lá deixaram um padrão, a que deram
o nome de São Rafael.
Embora o «Roteiro» nunca o note, a necessidade
de «conhecer onde eramos» teria imposto uma deter-
minação da latitude. E, como fizeram em Santa Helena,
teriam também desembarcado com o astrolábio grande,
de pau, para observação do Sol. Porquanto se demo-
raram ctrimta e dous dias» dentro do rio.
30
 ÍNDIA [ CAP.
Partiram do rio dos Bons Sinais (2 3 ) na manhã
de 24 de Fevereiro. Iam na «volta do mar», ou ·ao rumo
de nordeste, até que à noite navegarem «em leste», por
cse arredarem da costa».
No dia seguinte foram «ao nordeste», e à tarde
avistaram «tres ylhas ee o mar, e eram pequenas». A
mais pequena era «Calva»-provàvelmente a ilha Coroa}
que é rasa, e também pertence ao grupo das conhecidas
ilhas Primeiras.
Passaram por elas nessa nc»te, com menos de dois
dias de viagem, nos quais venceram uma distância de
cerca de meio cento de léguas.
Como «as noites» pairavam com pano reduzido,
e como a <Corrente <Corria forte para o sul, só a 1 de
Março foram avistar as ilhas que formam o grupo de
Moçambique.
Naturalmente, como não tinham piloto que conhe-
cesse os canaiasJ ia na frente a caravela de Nicolau
Coelho, que, tendo achado «baixo», virou com os mais
navios «na volta do mar», pairando, até que na manhã
de 2 de -Março poisaram «na lagõa», perto de uma ilha
pequena a que deram o nome de São Jorge} sendo cha-
mada agora a ilha de Goa.
Logo veio gente de term, que comeu e bebeu daquilo
«que nos comiamO'S». Falavam «Como mouros», tendo
sido compreendidos pelo intérprete que havia na esqua-
dm chamado Fernão Martins. Assim animados, a
esq~adra suspendeu e seguiu, levando na frente Nicolau
Coelho, que, ao entrar, bateu na ponta da ilha, quebrando
«O governalho» -o leme -, mas logo se safou. Fica-
(2S) Seria este o rio a que as «Lendas da índia> atribuem
o nome de Misericórdia? Porquê?
IV, m] O DIÁRIO DA VIAGEM DE VASCO DA GAMA
ram fundeados entre a ilha de Moçambique e as outras
duas ilhas- actualmente Goa e Sena.
Ao princípio, as relações com o <Chefe da terra
foram boas porque, segundo parece, ele julgou que os
navios eram turcos. Donde há a deduzir que a esqua-
dra de Vasco da Gama não chegou lá com as suas velas
marcadas com a bem visível cruz vermelha} de Cristo,
que sabemos terem sido usadas depois.
Como já aqui vinham navios da lndia, foi fácil
obter dois pilotos para lá levarem os navios. Mas parece
que eles - que foram pagos adiantadamente -, com a
sua convivência a bordo, perceberam que os tripulantes
emm cristãos e, assim, um deles fugiu para terra, dando
aviso da novidade.
O «Roteiro» afirma que as naus desta terra «sam
grandes e sem cubertas e nam tem pregadura», e «suas
vellas sam esteiras de palma». Navegavam usando
«agulhas Genoiscas e quadrantes e <Cartas de ma-
rear» ( 24 ).
(24) ~ frequente o erro, em que caiu o Dr. Hümmerich, de
supor «infinita superioridade> sobre os barcos do oceano fndico,
dos navios usados pelos Portugueses no fim do século xv. ~
certo que as grandes travessias do fndico s6 se faziam ao sabor
das duas monções- a de nordeste e a de sudoeste -com ventos
largos, e não sempre pela popa. Não tentavam bolinar em zigue-
zague contra esses ventos dominantes, o que, nem naquela época,
nem nos tempos modernos, jamais praticaram os veleiros.
Camões, que esteve na índia, bem o notou n'«Os Lusíadas>,
onde escreveu: «Üs pangaios sutis da bruta gente>. E, de facto,
é not6rio que eles entravam - e entram- nos portos bolinando,
quando o vento é contrário. Já Gaspar Correia, que os viu na
fndia, afirmou que os pangaios «apontão muito pela bolina; e
correm muito à vela:..
 !NDIA [cAP.
Feita aguada, e metidos alguns mantimentos, como
cgaltinhas, cabras e pombos», partiram do ·p orto de
Moçambique a 10 de Março, indo fundear junto da
ilha de São JorgeJ donde se fizeram de vela no dia
seguinte.
Com o vento, mais ou menos de leste não canse-
guiram vencer a forte corrente que ali vai' a sul, de
modo que vieram de novo fundear junto da ilha, a 15
de Março. Tinham conseguido romper 20 léguas para
além de Moçambique- até à altura dos actuais Picos
Fragosos- mas as c calmarias» e as correntes tinham-
-nos obrigado a recuar.
A 22 de Março entraram de novo em Moçambique
para aguada, a qual conseguiram fazer, apesar da
oposição jã franca da gente de terra, tendo que levar
artilharia nos batéis.
A 27 de Março tornaram a ir fundear junto da ilha
de São Jorge, donde partiram dois dias depois.
O cRoteiro» conta que co vento era pouco:.. Mas
era favorãvel. Os cRoteiros» modernos indicam ali, para
o mês de Abril, em cada cem dias, 29 de calmas e 68
de ventos entre SE e SO, pelo sul. De modo que, no
primeiro de Abril, passaram por uma ilha, a que puse-
ram o nome de Açoutado (2~), por o piloto mouro, que
levavam de Moçambique, ter mentido a Vasco da Gama,
afirmando que aquelas ilhas- as Querimbas, entre 12
e meio e 10 graus de latitude sul- eram terra firme.
Assim continuaram navegando com ventos favo-
rãveis até que, a 4 de Abril, avistaram uma cterra
( 2S) A ilha do Açoutado deve ser a primeira ilha que se
encontra indo do sul, do grupo das ilhas agora chamadas Que-
rimbas. Será a «ilha Kiziva~ , cuja latitude é cerca de 12• 35'.
IV, m] O DIÁRIO DA VIAGEM DE VASCO DA GAMA
grossa:., com duas ilhas e cercada de baixos. Como
tinham navegado cao noroeste:. jã tinham varado a
ilha Quíloa, para onde se dirigiam.
Por isso arribaram para o largo, ou seja, para nor-
-nordeste. Assim foram passar ao mar de uma «ilha
mui grande:. que era Mafia, junto do paralelo de oito
graus sul.
Como de manhã não w•a m terra fizeram ccaminho
de noroeste», avristando terra à tarde po).
De noite, o caminho foi a norte e de madrugada
nor-noroeste, indo dar «O navio Sam ' Rafael e sequo'
e h fins baixos que estam da terra firme duas legoas (27).
Prevenidos os outros navios, «pousaram» e, ccom
os bates» espiaram âncoras.
Na terra firme em cdireito destes baixos esta
hfiua serrania muito alta e fermosa», à qual, co~o ao
baixo, puseram o nome de São Rafael.
Na manhã seguinte passaram por dentro de umas
ilhas que estaV'am «a mar da terra firme quinze
lego·as», e tinham seis léguas em ccomprido:.. Trata-se
da ilha de Pemba, que cdã a aparência de muitas
ilhas», tendo dez léguas de norte a sul. O canal tem
apenas 9 léguas de largura.
Ao «'SOll posto» foram fundear «defronte de
Mõbaça:., onde estavam muitas cnãoos todas emban-
deiradas com seus estandartes», tendo a esquadra de
Vasco da Gama, «por lhe termos companhia», feito
28
( Provàvelmente a ilha de Zanzibar.
)
27
( São os recifes ao mar da ilha Karange, chamados agora
)
de Yambe, que ficam na latitude 5• fYT' sul. Conservaram nas
cartas portuguesas o nome de São Rafael, como lá o conservaram
as serras agora chamadas U sambara, e que tem cerca de mil
metros de altitude. Tudo fica a norte da ilha de Zanzibar,
470 fNDIA (cAP.
coutro tanto». Continuavam convencidos de que ao
outro dia, domingo 8 de Abril, ~riam a terra couvir
misa» com os cristãos, que se dizia haver aqui, embora
apartados «dos mouros». Mas era uma mentira, que só
traduzia o desejo de tomar os navios.
De facto, nessa noite vieram de terra cem húa
zavra obra de cem homes», todos armados, mas o
capitão-mor só deixou entrar «quatro ou cinquo dos
mais honrados delles». E os outros se foram.
No domingo cMandou o Rey de Mõbaça ao capitam
moor húu carneiro e muitas laramjas e cidrões e canas
daçuquar», e também um canell por seguro», tudo com
o fim de o animar a entrar no porto, onde «lhe daria
todo o que lhes fezesse mester» ; os portadores eram
cdous homes muito alvos», que se diziam cristãos. Ao
que Gama correspondeu com um presente de um crra-
mall de coraees», dizendo que no dia seguinte iria cpera
dentro». Também mandou para terra cdous homes»
dos nossos, os quais foram receoodos pelo Rei, que lhes
cfez muito gasalhado, e lhes mãdou amostrar toda a
cidade». Não Vliram igrejas cristãs, mas trouxeram
para bordo cmostras de cravo e pimenta e gingivre e
de triguo tremes» (2 8 ), dizendo que de tudo isto poderiam
c carregar».
Decidido a entrar no porto que fica entre a ilha
de Mombaça e o continente, na terça-feira 10 de Abril
a nau de Vasco da Gama, «depois de suspender, negou-se
a fazer cabeça (2 9 ), guinando para o bordo oposto àquele
(28) .Segundo Kirk informou a Ravenstein, devia ser antes
sorgo> O trigo tremês não ·se dá naquele clima (Fontoura,
pág. 118).
( 29) Expressão náutica que significa, ao f azer-se de vela,
virar a proa do navio na direcção a que pretende navegar.
IV, m] O DIÁRIO DA VIAGEM D E VASCO DA GAMA 471
que indicava a mareação do pano, de modo que ~a des-
caindo sobre outros navios (ou rochedos?) que lhe
estavam «por popa» (8°). Por esta razão teve de tornar
a fundear, acto que alarmou alguns mouros que esta-
vam a bordo, os quai,s fugiram na embarcação que os
tinham trazido. Os pHotos mouro·s que vinham a bordo
(3°) Apanhada ou não por estoque de água, o facto é que
a nau «São Gabriel» fez cabeça ao contrário da mareação que se
tinha dado ao pano de proa. Este caso de mentir a fazer cabeça
é corrente, e vem citado no cManobreiro» de Bonnefoux. Mas
a expressão do cRoteiro», co navio do capitam moor nom quis
virar e hija é quu que estava por popa», é de interpretação literal
duvidosa. O copista foi infiel ao manuscrito original. Castanheda,
que leu o «Roteiro», explica que «a capitaina núca quis fazer
cabeça para entrar détro e ya sobre hú baixo que tinha por popa».
Barros diz que, «não querendo o navio de Vasco da Gama fazer
cabeça por a vela tomar vento, começou de ir decaindo sobre um
baixo». Gaspar Correia conta que cdando o traquete nunca quis
fazer cabeça a endereitar pela barra direito, e hia descaindo
sobre o baixo». Ruge concluiu que a nau «não obedeceu ao timão»,
por não saber que os navios, ao fazerem cabeça, não têm segui-
mento para obedecer ao lem e. Mor elet traduziu que a nau. caindo
a ré, corria risco de ir dar sobre um navio que se achava pela
sua popa. Ravenstein também alude a outro navio. Ora nem
cabeça nem cu se aplicam em Náutica a qualquer parte do navio,
como tão-pouco se lhe aplica a expressão cestava por popa»·
Deve tratar-se de um cbaixo» ou cnavio» que ficava pela popa
da nau. Resta, pois, concluir que o autor do manuscrito quis,
provàvelmente, contar que o navio de Vasco da Gama ia guinando
sobre um obstáculo, que o copista não definiu. Como nem no
cRoteiro» nem nas cCrónicas» há referência a estar ca popa
voltada para o lugar para onde devia navegar se fosse para
dentro do porto», e com tão pouco os navios de vela se mantêm,
descaindo, ao mesmo rumo com vento de proa, não se vê razão
para pormos de parte a interpretação do comandante Fontoura
da Costa: cnão quis virar e ia em (contra) um que estava por
popa».
472 fNDIA [CAP.
também se lançaram à ãgua, ficando a esquadra sem
piloto para a levar à índia.
Vasco da Gama compreendeu assim que lhe estava
preparada traição dentro do porto, por aqueles mouros
jã terem sido informados sobre o que se tinha passado
em Moçambique quando souberam que os navios não
eram turcos. De resto, em terra não havia cristãos, o
que tudo se soube por dois mouros que tinham ficado
a bordo, e que foram «pingados», isto é, sujeitos a
tratos. Estes mouros fugiram depois para terra, a nado.
Na noite seguinte ainda os mouros tentaram vir
às naus, tendo até começado a «picar o cabre» , ou a
amarra} do cBérrio». Mas foram pressentidos e o ataque
não teve resultado algum.
Tendo faltado os ventos dentre sueste e sudoeste,
que ali dominam em Abril, só na manhã do dia 13 lar-
garam para o norte, tendo ido fundear à tarde além de
Mombaça «Obra de oyto legoas junto com terra».
Na manhã seguinte fizeram-se de novo à vela; e,
buscando «pilotos», t~ram um barco que levava 17
homens «e ouro e prata» e mantimentos, levando tam-
bém a bordo uma cmoça molher de huu homem velho
mouro honrrado».
Ao pôr do Sol desse dia, 14 de Abril, lançaram
âncora «em direito de hüu logar que se chama Milinde
o qual esta de Mõbaça trinta legoas». (Mas são só 17).
No dia 15 suspenderam e foram pousar na «villa
mea legoa de terra». Tendo sido mandado para terra o
mouro aprisionado, este gesto foi ol'ligem de se man-
terem boas relações com «ElRey» de Melinde} o qual
mandou a bordo um cseu cavaleiro e hüu xarife» e três
carneiros, como prova de querer manter paz com o
capitão-mor.
IV, m] O DIÁRIO DA VIAGEM DE VASCO DA GAMA 473
Por esta razão, Gama respondeu com alguns pre-
sentes; e, no dia 17, mudou os navios cmais pera junto
da Villa».
Em Melinde foram muito cordiais as relações com
o Rei. Como Gama não quis desembarcar, combinou-se
um encontro no mar, indo o Rei em sua embarcação,
e Vasco da Gama no batel da nau, ce alij passaram
mujtas palauras e boas». Foi prometido um piloto.
Também houve relações cordiais com alguns índios
de «quatro naos», que estavam no porto.
cEsta villa de milyndes esta e hüa angra e esta
asemtada ao iomguo de hüa praya a qual! villa seqr
pareçer com alcouchete» (5 1 ) e as casas «sam alta!s e
muy bem cayadas», etc. Não houve ocasião de irem a
terra observar a latitude de Melinde} que é 3° 15' sul.
Demoraram-se aqui «nove dias», largando a 24 de
Abril com um piloto (3 2 ) dado por cEIRey» cpera hüua
cidade que se chama qualecub.
( 81 ) Esta passagem tem ajudado a confinnar a hipótese
de que o autor do «Roteiro» seria cum Alvaro Velho, do Barreiro».
( 82 ) Pelas infonnações colhidas em Melirule, os pilotos de
Gama souberam que já havia monção própria para a viagem. As
cartas de ventos modernas indicam-nos que, n a época, já 90 por
cento dos ventos são favoráveis. E o Dr. Hümmerich recorda-nos
que, entre outras, se praticou em Maio de 1506 uma travessia de
Melirule para Angediva cem treze dias:..
O facto de Vasco da Gama precisar levar piloto indiano
resulta de não ser suficiente conhecer a latitude de Calecute
para lá ir, embora já se soubesse reduzir a medida moura isbá
a graus, na proporção de 3 para 5. Donde se conclui que já havia
infonnações, embora indefinidas, sobre a existência das ilhas
Laquedivas e M aldivas, ao largo da costa ocidental da lndia.
E com certeza os nossos pilotos ignoravam os canais que, por
entre as ilhas, davam -se davam- passagem de oeste para a
costa indiana. O que s6 descobriram depois.
474 INDIA ( CAP,

Foram «e leste a demãdala».

Como nesta época do ano os ventos ali dominantes
sopram favoráveis- embora não de popa-, cinco dias
depois da partida já tinham visto, em noite clara, a
Estrela do Norte (3 3 ) por onde 'Se vê que a direcção
«em leste» não corresponde a leste direito~ com o qual
só muito mais tarde teriam cortado o equador. Trata-
-se de uma direcção à qual melhor se poderia chamar
para nascente. Como acontecera à partida de Santiago.
A travessia do oceano Indico correu sem incidentes,
indo «vinte e três dias que nom viamos terra», sempre
«Com vento a popa» (8 4 ) , que «ao menos que podyamos
andar e esta travessa seriam seiscemtas legoas».
Cronistas e «Roteiro» concordam em que a distân-
cia entre Melinde e Calecute- umas 700 léguas- foi
navegada em cerca de três semanas de ventos favorá-
veis, não se tendo avistado terra. Eram os ventos da
monção de sudoeste~ que o piloto conhecia bem, tendo
por isso aconselhado a partida em fim de Abril. O que,
contando já com a correcção gregoriana~ cati franca-
mente no mês d,e Maio dos mapas de ventos modernos.
Como a primeira terra avistada já foi uma «terra
~lta» - 's em dúvida a serrania dos Gates de Malabar~

( 3 8) Como esta estrela passava então no meridiano supe-

rior cerca de meia-noite, e estava afastada do pólo 3 graus e
meio, ela podia ser vista na latitude norte 2 graus e meio,
elevada m eia quarta acima do horizonte. O que só acontece em
casos de horizonte extenso.
(84) As cartas de vento informam que em Maio, na última
metade desta travessia, os ventos dominantes sopram entre Porto e cidade de Calecute
oeste e noroeste, e, portanto, para o navio que for de oes-sudoeste, Em fundo o monte «Bossa de Camelo », da cordilheira dos Gates
não são à popa arrasada, mas folgados ou largos como hoje (Desenho de H. Johnson in •A Journal of the first
se diz. voyage of Vasco da Gama• [1497-1499] por E. G. Ravens~ein ,
n. o xc •x das obras publicadas por The Hakluyt Soc1ety)
 IV, m] O DIÁRIO DA VIAGEM DE VASCO DA GAMA 475

' '
como concluiu o Dr. Hümmerich -, na qual dois dias
depois, clareando o tempo, o piloto reconheceu o pico
,t que fica sobre Oalecute - a Bossa de Camelo -somos
levados a •a creditar que o piloto indiano praticou nave-
gação astronômica. :m sabido, por várias fontes, que já
então no Mar da lndia se usavam instrumentos seme-
lhantes à balestilha.
O piloto teria, muito provàvelmente, enchido a
latitude de nove graus e meio, e metido por ela a passar
no canal, largo de trinta léguas, que há entre os dois
grupos de ilhas, Laquedivas e Maldivas.
'• Segundo o «Roteiro» a cterra alta» avistada a 17
de Maio de 1498 emaria a uma distância de coito
legoas» e, tendo sondado, cacharam quorenta e cinquo
braças».
Naquela noite pairaram rumando a su-sueste (3~),
«por nos arredarmos da costa», lê-se no «Roteiro». No
dia seguinte foram demandá-la, mas ad.nda então não
pôde o piloto caver perfeito conhecimento da terra»
por causa dos cmuitos chuveyros e trovoadas», ali
correntes naquela época do ano, que a encobriam.
Só no dia seguinte se puderam aproximar de umas
cmõtanhas as quaees sam mais altas que os homes nüca
viram as quaees estam sobre a cidade de Calecut». Ao
chegar-se mais c a ellas», ou seja à costa, o piloto de

(&o) O cRoteiro:. indica cSus-este», mas contando com a

variação da agulha, então uma quarta para noroeste, tal rumo
SSE corresponderia a 34" SE verdadeiro, com o qual Gama iria,
não a arreOO.r-se, mas ao encontro da costa.
 INDIA (CAP.
Melinde reconheceu-as e cdise que aquella era a terra
bonde nos desejamos dir:. (3 6 ) .
Tratava-se, evidentemente não do monte Dely
que tem 260 metros de altitude, ' e fica na costa mas'
de um conhecido pico dos Gates, como é a ca~acte­
rí-stica Bossa de Camelo, cuja altitude é de 2338 metros
e que se avista do mar, sobre Calecute, ao rumo ENE.
No mesmo domingo, 27 de Maio, foi o piloto fun-
dear a esquadra de três navios em frente de. Capua,
provàvelmente não por a confundir com a cidade de
Calecute, mas antes para evitar, por os conhecer mal,
os bancos que ficam ao largo da cidade. A vila de Capua
fica só duas léguas a norte de Calecute.
Tinham navegado aproximadamente 4000 léguas
desde Lisboa e atingido uma meta que havia séculos
era cobiçada. Os hábeis pilotos portugueses - e entre
eles Pero Dalanquer- nunca mais esqueceriam o cami-
nho entre Portugal e a autêntica India.
Em Calecute teve V<asco da Gama dificuldades com
os chefes da terra, por causa de intrigas dos Mouros,
que desde há séculos lá tinham grande influência, por
não lhes convir que o comércio da India, para o Mar
Vermelho e Europa-até ali seu monopólio-, passasse
para as mãos de europeus, visto que o caminho, agora
descoberto por mar, era mais regular e mais directo.
Ficaria assim abandonado o caminho indirecto pelo
Mar Vermelho para os portos do Mediterrâneo, como
Gtnova e Veneza.
( 86 ) Na edição do «Roteiro> de 1861, a linha transcrita
acima, entre as cquaes sam» e cnüca viram», fora suprimida,
induzindo em erro os comentadores acerca da montanha primeiro
reconhecida pelo piloto.
IV, m] O D IÁRIO D A VIAGEM DE VASCO DA GAMA 477
Procuraram, pois, os Mouros convencer o Rei, o
Samorim de que os recém-chegados não passavam de
cladrões do mar:., em lugar de honestos mercadores.
Mas esses detalhes - em que se inclui uma deten-
ção de Vasco da Gama em terra, tão perigosa que ele
mandou ordens aos navios para, eventualmente, lar-
garem para Portugal, para se não perder o fruto da
descoberta- não interessam à rota seguida por Vasco
da Gama, assunto restrito, de cujo estudo me estou
ocupando.
Demorou-se a esquadra fundeada pela costa da
India até 22 de Agosto, data em que os navios suspen-
deram ferros, levando a bordo reféns indianos para
garantia da vida de alguns portugueses que tinham sido
detidos em terra.
Com vento sueste foram no bordo do mar e, no
mesmo dia, fundearam cobra de quatro legoas» a sota-
vento de Calecute.
Tornaram a vir fundear mais perto da cidade e a
25 tornaram a fazer-se na cvolta do mar», fundeando
tanto ao largo que ccasy» não viam a terra.
A 26 de Agosto, rom a cviraçãm», voltaram à rosta
e ao csol posto» tornaram a fundear mais perto de
Calecute.
A 27 recolheu a bordo o nosso feitor Diogo Dias.
Embora não trouxessem a «mercadoria», Gama entre-
gou seis dos reféns que tinha a bordo, «OS mais honra-
dos:., e o padrão - chamado :São Gabriel - que o
Samorim cmãndara que posesse ê terra».
Fizeram então navegação para o norte, aprovei-
tando ventos locais e fundeando com a calma, que era
frequente.
 ÍNDIA [cAP.
A 30 de Agosto, ad.nda perto de Calecute, andando
em calma, foi a esquadra atacada por umas «setenta
barcas com muita jente imfinda». Mas foram dispersas
a tiros de bombarda e, também, por uma trovoada, que
levou a esquadra para o mar. Seguiram ao norte.
A 15 de Setembro passaram por dentro de uns
ilhéus que estavam «obra de duas legoas da terra».
Deitaram fora a lancha, e deixaram um «padram é 0
dito ilheo ao quall poseram nome ho padram de Santa
Maria».
Foi este o nome que também deram aos ilhéus e
que eles conservam. ' Naturalmente observaram ali o Sol para determinação
Na noite seguinte, com o vento terral, fizeram-se
à vela, continuando para norte. A 20 de Setembro
pousaram junto de uma «terra alto muito graçiosa e
de bõos ares», a qual tinha junto com a terra seis ilhas
pequenas. Entenderam-se bem com os nativos, que lhes
mostraram o lugar da água e da lenha, e venderam
mantimentos, como galinhas, leite e «abobaras». Tam-
bém lhes mostraram «infindas arvores» de canela.
Houve aqui uma tentativa de ataque por coyto
naoos» de Calecute, as quais foram forçadas a encalhar
na costa, sendo uma delas tomada sem a tripulação, que
fugiu «na sua barca que levavam por popa».
Continuando para norte, a 25 de Setembro foram
pousar junto de uma ilha onde haV!ia água em um
tanque fundo de «Cantaria» lavrada, pertença de uma
«<greja de grande quantaria». Havia também uma praia
na qual, para limpeza do fundo, espalmaram ou enca-
lharam a caravela «Bérrio» e a nau cSão Gabriel»
' em Angediva como, de resto, náú fala da que sabemos ter sido
mas não a «São Rafael».
Ainda aqui houve tentativas de ataque, por cduas
barcas grandes, maneira de fustas», pertencentes ao
IV, m] O DIÁRIO D A VIAGEM D E VASCO DA GAMA 479
governador de Goa, que era mouro, ataque que foi
repelido.
Esta ilha chamava-se Angediva.
Por um «homem de ydade de quorenta anos, o qual
falaua muito bem venezeano», que vd.nha como espião
- pelo que foi açoutado - , veio a saber-·se que «toda
a terra nos queria mall», e que estavam armando umas
«Correnta vellas» para atacar a esquadra.
Na ilha meteram-se alguns frescos, como «pes-
cado», assim como «lenha verde e canela».
Tinham reconhecido 70 léguas da costa da India.
da latitude, que era de 14° ao norte (3 7 ) .
Não ficara, pois, Vasco da Gama desconhecendo
a má disposição da gente -tanto moura como, em
parte, indiana- contra os Portugueses, a quem cha-
mavam «Francos» «em estas partes».
Assim, no caso de ter de se bater contra forças
superiores e bem organizadas- como eram os navios
turcos que vinham do Mar Roxo, ainda aliados aos
navios nativos- surgia grave risco de nem poder levar
à Europa 'a notícia do descobrimento da lndia. Por
esta razão Vasco da Gama não podia demorar-se naquela
terra de recursos, esperando a oportunidade de vento
geral provável- monção de nordeste -que hoje sabe-
mos só começar em Novembro e cerca da latitude 10
graus norte.
( 87 ) O « Roteiro~ não menciona a observação de latitude
feita em Santa H elena. Mas é verosímil que a tivessem feito,
pelo menos para lá poderem voltar. Também as teriam feito no
rio dos Bons Sinwis, e na ilha de S. Jorge, onde se demoraram.
 ÍNDIA [cAP.
Assim, completada a aguada, e limpo o fundo dos
navios, depois de uma demora de «doze dias» em Ange-
diva- ilha que ainda hoje é portuguesa-, Vasco da
Gama inioiou o seu regresso através do oceano Indico
em demanda da terra de África.
Como disse, tinha embarcado um judeu polonês
que veio a bordo como espião, e que mais tarde se
converteu ao Cristianismo -sendo baptizado com o
nome de Gaspar da Gama, ou da 1ndia. Este homem,
conhecedor das monções, como dos negócios indianos,
veio a ser de grande utilidade para os Portugueses.
Pelo «Roteiro» sabemos que a travessia do Indico
exigiu «tres roesses menos tres dias:., de costa a costa,
tão demorada por causa de «muitas calmarias e ventos
contrarias».
De facto, no decorrer da travessia, a monção de
nordeste, que lhes seri'a :favorável, tardou em aparecer.
O que se explica por a rota ter sido traçada muito pelo
sul, fosse para evitar encontros com as naus de Meca,
fosse por se supor que no oceano 1ndico o regime de
ventos seria análogo ao do oceano Atlântico -onde,
no Inverno, o vento geral de nordeste vai até ao equa-
dor -.!. , ou fosse, enfim, por falta de piloto, que não
embarcaram na 1ndia(S8 ) .
Somos, pois, levados a crer que Vasco da Gama,
tendo cortado de Angediva para o largo- talvez a
(
38
) Ex·a minados os mapas dos ventos do fndico conclui-se
que, em Novembro e ao norte de latitude dez graus, já dominam
ventos entre noroeste e nordeste, os quais dariam bordada para
Melinde. Porém, ao sul deste paralelo, a par do vento nordeste
da monção, ainda são frequentes ventos dentre noroeste e
sudoeste, contrários à viagem de Vasco da Gama. As calmas
são, em média, só nove dias em cada cem.
IV, m] O DIÁRIO DA VIAGEM DE VASCO DA GAMA
oeste da agulha - e passado sobre os chamados baixos
de Pádua (5 9 ) , tivesse daqui cortado para latitudes
baixas, onde, como o mostram as cartas de ventos, a
monção de nordeste só se firma em Dezembro.
Como não apareceram ilhas onde tomar frescos,
com a grande demora da viagem voltaram as tripula-
ções a adoecer cdas gingivas» - com escorbuto - a
ponto de morrerem ctrimta homes, afora outros que
já eram mortos», ficando muito reduzida a gente dispo-
nível para a manobra, e tanto que, segundo o cRoteiro»,
cos que navegavã e cada naoo seryam sete ou oyto
homes».
E como sabiam que ainda estavam longe de África,
iam navegando só confiados em cmuitos promitimentos
a Santos e pitetorios» (peditórios ?) cpellos navios».
Esta ausência de ventos favoráveis - apesar do
que decerto informariam os Mouros que iam a bordo,
para quem as monções eram infaliveis- alarmava as
tripulações, lendo-se no cRoteiro» que chegaram a
pensar em carribar» à India se o vento voltasse a
soprar firme de oeste, como acontecera à ida, em Maio
passado. Ora não havia garantia de ele assim continuar
até à costa indiana.
Vasco da Gama confiava, porém, naturalmente, na
possibilidade de continuar sua rota para África, apoiado
na certeza de, em todos os anos, irem navios da 1ndia
até Sofala, como se sabia que lá fora Pero da Covilhã.
Apesar de ser esta a primeira vez em que os mareantes
(• 9 ) Os baimB de Pádua, onde, segundo Ant6nio Galvão,
Gama teria passado, não constituem embaraço à navegação. Estão
a cerca de 25 léguas da costa de Malabar, e entre as latitudes
12 e meio e 14 graus. A menor sonda é de 11 braças.
81
 lNDlA ( CAP.
portugueses estavam em contacto com as monções,
afinal Gama tinha razão.
Estariam já a cerca de trezentas léguas da lndia
-penosamente navegadas contra ventos c contrários»,
não bordejando em ziguezague contra eles, mas só pai-
rando- quando enfim, em fins de Dezembro, decla-
rada a monção de nordeste, cem obra de seis dias» (4 0 )
foram avistar terra cerca de quarenta léguas ao norte
do equador. Nesta travessia do Indico, a distância a
direito foi de medo milhar de léguas. E, assim, a 3 de
Janeiro( 41 ) , já do ano de 1499, acharam-se na costa de
África, cdavante hüua cidade muito grande e de casarias
sobradadas:. com «grandes paços:. e «quatro torres:.
que, pelos Mouros de bordo, se soube chamar-se Moga-
doxo. Ficava ainda dois graus a norte do equador.
Como era terra de Mouros, Gama não quis lá
pousar, mas, à passagem, fez-lhes alguns tiros de arti-
lharia, a tão pequena distância que causou danos a
navios que estavam no porto.
Doi·s dias depois, ao largo da ilha Pate (42 ),
estando a esquadra pairando enquanto se reparava uma
avaria nas costagas» (48 ) da nau cSão Rafaeb, saiu-lhes
ao caminho um «armado» de coyto barcas com muita
gente», as quais fugiram para terra logo que dos
navios lhes fizeram fogo de cbombarda:.. Como se vê,
a atitude hostil dos Mouros já se propagara pela costa
oriental da Ãfrica.
( 40) Assim diz o cRoteiro:., mas Castanheda aumentou-os
para cdezasseis:..
(4 1) Era realmente o mês de Janeiro, embora o cRoteiro:.,
por engano, talvez, do copista, fácil de corrigir, indique Fevereiro.
(42) Actualmente a ilha de Pata.
(41) Cabos com que se içava a verga grande.
IV, m] O DIÁRIO DA VIAGEM DE VASCO DA GA MA
Continuaram navegando ao longo da costa com
vento da monção:, favorável. E como não sabiam bem a
distância a Melinde, que as alturas do Sol, no mar, lhes
não indicavam com suficiente precisão (44 ) -visto a
costa correr pam ·s udoeste-, só navegavam de dia,
pairando durante a noite.
A 7 de Fevereiro, tendo corrido 140 léguas de costa
inteiramente desconhecida, entraram no conhecido porto
amigo de Melinde. O Rei mandou logo a bordo alguns
barcos, com palavras de amizade e frutas. Mas, apesar
disso, ainda aqui acabaram alguns dos doentes de
escorbuto.
Tal foi a pesada contribuição de vidas que custou
esta nossa primeira travessia do oceano Indico entre
a Ásia e a Ãfrica.
(44) O Dr. Hümmerich afirma que s6 navegavam de dia
porque, por causa da perda de vidas, já não havia a bordo quem
soubesse determinar a latitude. Esta explicação ·a poia-se no
cRoteiro>, onde. se lê que cnom avia já hij piloto né homé que
cartear soubesse pera saber em que parajem eramos:.. Ora é
certo que se julga ter já falecido o piloto-mor, Pero Dalanquer;
mas sabe-se que escaparam dois pilotos, Escobar e Gonçalves.
Porém ainda que todos os pilotos tivessem desaparecido,
depois de tão larga viagem de mar, até o próprio Gama saberia
determinar latitudes, desde que não deitara ao mar no· Cabo-
aegundo alguns acreditam ... - nem os astrolábios nem os Regi-
mentos do Sol. Ora, com estes dois elementos, a observação e
cálculo da latitude são rudimentares. De resto, na continuação
da viagem, decerto mais complicada. a falta de pilotos não se
fez sentir.
A explicação nàuticamente mais natural é outra: como
a costa era desconhecida, e corria a sudoeste, a latitude não
bastava para evitar varar Melinde, como acontecera ao próprio
Gama, em Abril de 1498, quando a força da corrente os fez passar
além -ou varar -de Quíloa.
 Í NDIA
Em Melinde, depois de combinação com o Rei, dei-
xaram um cpadram:. ( 45 ) em csinall damizade:..
Largaram de Meli nde na sexta-feira 11 de Janeiro,
de manhã. No dia seguinte passaram cpor jumto com
Mõbaça», e a 13 cforam pousar em hos baixos de Sam
rrafaell».
Como na viagem tão longa, que estava pela frente,
era impossível navegar os três navios com a gente tão
reduzida, foi decidido, de acordo com o que se lê no
c:Roteiro» e como era natura;!, abandonar a nau c:São
Rafael». Aproveitaram do navio o que era útil e lança-
ram fogo ao casco ( 4 e) .
De terra, da vila Tamugata( 47 ) vinha gente a bordo
dos navios vender galinhas, a troco de «camisas e mani-
lhas». Seria já costume?
Com a esquadra agora reduzida a dois navios- a
nau c:São Gabriel» e a caravela c:Bérrio» -partiram
dos baixos no domingo 27 de Janeiro, lev·a ndo «mui
bom vento apopa», o da monção.
Na noite seguinte pairaram, estando de manhã à
(45) Segundo nos informa F ontoura, o actual c:Padrão de
Vasco da Gama> foi construido há muito tempo. ~ de pedra e
cal, tendo a cruz branqueada; na parte voltada ao mar ainda
se distinguem vestígios do escudo português.
( 46 ) Não há r azão para se acreditar, de acordo com o que
contam as c:Décadas>, que, em viagem a nau c:São Rafaeb, pas-
sando no baixo, c:deu outro toque com que ficou ali para sempre>.
Também não é natural a versão de Osório, segundo a qual a
nau estaria c: alquebrada de velhice> e fazendo c: água em demasia>.
( 47 ) Corresponde a M'tangata, perto da actual Tanga.
[ cAP. IV, m] O DIÁRIO DA VIAGE M D E VASCO DA GAMA
vista da ilha de Zanzibar ( 48 ), «povoada de mujtos
mouros a quall estará de terra bem dez legoas» ( 49 ) .
Foram por dentro do canal, costeando a terra,
com a monção de nordeste a favor, e, para além do
cabo Delgado, tiambém com 'R corrente para sul, que
corre toda a costa de Moçambique.
Assim, a viagem correu rápida. De 1 para 2 de
Fevereiro estiveram fundeados junto da conhecida ilha
de S. Jorge1 ao lado de Moçambique1 onde erigiram o
sexto e último padrão.
A viagem para a conhecida c:Amgra de Sã Bras»
levou um mês, até ao dia 3 de Março. Mas nem o
c:Roteiro» nem os cronistas nos dão detalhes do que
se passou nesta travessia de meio milhar de léguas.
Levaram tanto tempo, apesar da corrente favorável,
possivelmente por o vento os não ter ajudado. Por-
quanto é de crer que, nesta região já conhecida, Vasco
da Gama tivesse pressa de passar o Cabo antes do
Inverno, que é lá em Julho.
Demoraram-se na angra de São Brá8, fazendo
aguada, lenha e carnagem, parecendo que não puderam
obter bois nativos, e que tiveram que se contentar com
csalga» de enchovas, lobos marinhos e pinguins.
A 12 de Março largaram para o mar, mas, estando
já cdez ou doze legoas» além da angra, cventou o
Ponete», vento este contrário que os obrigou a voltar
para leste, indo de novo pousar em ca dita angra».
(48 ) Uma escala em Z anzib<vr, terra de Mouros, e inútil
a V asco da Gama, é referida por Castanheda, mas não consta
do c:Roteiro>.
( 48) São realmente seis léguas.
 INDIA (CAP .
cComo foy bonança:. tornaram ao mar e, com cbom
vento», foram passar cpollo» cabo de Boa Esperança,
a 20 de Março de 1499(3o).
Dobrado o Cabo deu-lhes nas velas o conhecido
vento geral - ou alisado de sueste - , o qual evento
apopa:. os pôs em cbem vinte e sete dias:. isto é a 16
de Abril, cem boa paragem de ylha de ~tiago», da
qual cao mais que della:. se faziam ceram çem legoas:.,
sendo alguns cja com ella:.. Tinham navegado desde
São Brás cerca de mil léguas p1) .
Então o vento, ou acalmou, ou tornou-se cpor
davante», isto é, escasso. Aproveitando virações e tro-
voadas, foram-se chegando à terra da Guiné de modo
que a 25 de Abril sondaram entre 35 e 20 braças de
fundo, sem ainda se -avistar terra. Os pilotos julga-
vam-se
, nos baixos do rio Grande. Estariam pois ,
em aguas da actual Guiné Portuguesa, e a cerca de
. Chegados, pois, a Santiago, na primeira quinzena
130 léguas de Santiago.
COMPLEMENTO CONJECTURAL
CORRESPONDENTE A PARTE OMISSA
DO cROTEIRO:. A~ AO REGRESSO
A LISBOA
Aqui se interrompe bruscamente o «Roteiro» , sem
contar nada do que depois se passou até Lisboa. E como
os cronistas não são concordes, há que conjecturar o
50
( ) O «Roteiro:. detalha que, como era natural, aqui che-
garam «de saude e rrijos:., apesar do cfrio de grandes brisa.B'>,
que encontraram e que sentiram por virem cde terra quente>
mais do que devido «ao frio ser grande>. ' téporal forte> - de Nicolau Coelho voltar ao mar em busca da
51
( ) Nesta travessia não há menção no «Roteiro> de os
navios irem fazendo muita água. Tão-pouco, nem no «Roteiro>
IV, m] O DIÁRIO DA VIAGEM DE VASCO DA GAMA
seguimento da viagem à vista dessas escassas infor-
mações, combinadas com aquilo que nos ensinam as
modernas cartas de ventos.
Dos baixos do rio Grande, apenas com trovoadas
e ventos locais - e não com tempestades, que ali não
há em Maio {5 2 ) - , aproveitando também os ventos
de nordeste, ali dominantes, os dois navios foram a
Santiago, onde era sabido que se podiam aba·s tecer de
água lenha e mantimentos frescos.
'
Não há indicação de uma escala na costa afncana, .
lendo.-se nos cronistas que a escala única teria sido em
Santiago, porto de recursos conhecidos. Nunca os
navios faziam por ali duas escalas. E, de resto, era
mais praticável ir logo a Santiago, que ao porto de
Dale, ao sul de Cabo Verde.
de Maio duas semanas teriam bastado para descll!nso
e abasu;cimento. De modo que é licito supor que, em
nem nas c:Lendas> se alud'e a uma reincidência de doença que
matasse gente como acontecera no indico. Contudo, Sophus Ruge
inventa que, c:ao aproximarem-se do equador e das águas da
Guiné, a atmosfera impregnada de miasmas causou novas epi-
demias a bordo fazendo novas vítimas na tripulação, cuja saúde
estava tão quebranta.da. Dali trouxe consigo o germe da morte
Paulo da Gama:..
(52) Uma «tempestade do sub •a judaria a ambos os navios
na navegação para Santiago. Mat> alguns historiadores enga-
nam-se crendo que essa tempestade poderia levar os navios até
Lisboa, a ponto de Nicolau Coelho, à chegada, ter declarado que
a nau ia corrida na frente. Torna-se assim inverosímil a pro-
poeta- que se lê em Barros, como lá se lê a versão de chum
cSão Gabriel>, visto que a sua rota era desconhecida. Esta
versão não é marítima.
 INDIA
fins de Maio, ambos os navios estariam prontos a conti-
nuar viagem. E o regresso a Lisboa teria, com toda a
probabilidade, exigido à caravela de N~colau Coelho
não mais que os quarenta dias de navegação, que vão
até 10 de Julho.
Quanto à separação dos dois capitães, a par da
versão do temporal e da versão da má fé de Nicolau
Coelho- contada por Castanheda ( ~ 8 ) - , o qual chiia
noite» teria abandonado Vasco da Gama cpera ir diante
dizer a el rey dõ Manuel como a lndia era discuberta,
e ganhar as alvisaras de tam boa nova», surge outra
explicação mais verosimil, e mais própria de homens-
-do-mar, companheiros de tão longa e arriscada viagem.
Reconhecida a maior facilidade de a caravela
c:Bérrio» ir a Lisboa, sem perder tempo escalando nos
Açores, era natural- visto estar terminada ali a novi-
dade da rota da tndia - que o capitão-mor mandasse
Nicolau Coelho seguir na caravela para Lisboa levando
a D. Manuel a tão boa nova. E, assim, logo se poderia
começar a preparar a nova expedição, a qual deveria
partir para a tndia mais cedo do que se praticara em
1497, a fim de ainda aproveitar em 1500 a monção
favorável de sudoeste para a travessia do tndico-
Maio a Outubro - como já era sabido. E foi afinal o
que aconteceu, porque Cabral partiu de Lisboa em
Março logo do ·a no seguinte.
De Santiago para diante, aml>os os navios teriam
de ·ir na usual Volta do Sargaço, por ca-qsa do vento
alisado de nordeste, que domina no Atlântico Norte e
(~ 8 ) «História do Descobrimento da fndia>, livro
tulo xxvm.
[ CAP, IV, m] O DIÁRIO DA VIAGEM DE VASCO DA GAMA
que, no Verão, se estende até Portugal, onde é chamado
nortada.
Se, como alguns contam, Gama fretou em Santiago
uma caravela, a fim de fazer viagem mais rápida que
a da nau c:São Gabriel», Gama teria tido assim a ideia
de tentar sa:lvar o irmão Paulo, muito doente, levando-o
o mairs depressa possível aos Açores, terra de melhor
clima e mais recursos. Se assim aconteceu, é natural
que tivesse sido dada ordem à nau para também seguir
para a ilha Terceira, tendo lá chegado depois (5 4 ) .
À chegada de Gama à Terceira, algumas caravelas
do tráfego comercial teriam - segundo alguns contam,
e é natural-largado imediatamente para Lisboa com
a feliz e extraordinária notícia do descobrimento da
lndia. Mas é provável que Nicolau Coelho, na caravela
«Bérrio», tivesse chegado a Lisboa antes das caravelas
da Terceira, e a 10 de Julho de 1499, conforme o acordo
geral (5 3 ) .
Falecido Paulo da Gama na ilha Terceira, e tendo
seguido Nicolau Coelho para Lisboa, com a notícia
acerca da viagem da tndia, desaparecia a urgência da
(~ 4 ) É conhecido que Vasco da Gama levava seu irmão
Paulo____. que comandara a nau cSão Rafaeb -muito doente.
Lê11e nas «Décadas> que por isso deixou em Santiago a nau
- agora comandada por cJ oão de Saa» - e «por remedear a
saude de seu irmão em húa caravela que fretou passouse à ilha
terceira, onde o veo enterrar no mosteiro de S. Francisco por vir
já mui debilitado>. E Vasco da Gama «a vinte d'Agosto chegou
ao Porto de Lisboa:.. Não se fala mais na nau.
( 3 ~) Tem sido citada a conhecida carta datada de 12 de
Julho, na qual o Rei D. Manuel comunica à Rainha de Castela a
l, capí- noticia do Descobrimento, recebida cpor hum dos Capitaens> -
Nicolau Coelho?- «que a nós a esta cidade ora he chegado>.
490 lND lA [ cAP.
caravela fretada em Santiago. E pois licito conjecturar
que Vasco da Gama, refeita a nau cSão Gabriel», tivesse
seguido nela para Lisboa- como era mais próprio -
com a interessante e valiosa carga que ela trazia da
índia.
Assim, teria a nau chegado a Belém cerca de fins
de Agosto de 1499, sendo só em princípios de Setembro
-talvez no falado dia 8 - que Vasco da Gama fez a
sua entrada triunfal em Lisboa.
•
Tal é a versão que, considerando o que se lê nas
fontes e o que permitem conjecturar as cartas de ventos,
se me afmgura mais verosímil. Mas estamos longe, é
claro, de uma última palavra ou solução definitiva.
Esta viagem de descobrimento do Caminho Marí-
timo da India, de tão grande repercussão mundial,
levara dois anos, e custara a perda de duas naus, que
foi necessário abandonar, além de uma centena de vidas,
pois é acordo geral que, dentre aqueles que em 1497
partiram cde Restello», apenas 55 tornaram a ver terras
de Portugal.
Na viagem tinham-se navegado aproximadamente:
Ida .. . 4000 léguas
Volta 3500 » propósito para a viagem, fossem iguais, a fim de lhes
o que exiglira dezasseis meses de mar. A distância total
navegada, 7500 léguas, excede, por um milhar de léguas,
as 6300 da volta da Terra pelo equador.
Para se poder consumar esta viagem fora neces-
sário, não um golpe de visão, como aquele com que,
IV, w] O DIÁ RI O DA VIAGEM D E VASCO DA GAMA 491
correntemente, se explica o descobrimento da América
mas o esforço persistente de três gerações, iniciado'
quando o Infante D. Henrique começou a pensar na
maneira de devassar o chamado Mar Tenebroso. Certo,
não faltara audácia. Mas o meio século que os mareantes
portugueses 'leva~am desde o cabo Bojador até ao cabo
das Tormentas prova que o descobrimento da índi'a
não dependeu apenas de um golpe de génio, mas, princi-
palmente, da criação de uma nova Ciência Náutica.
OS NAVIOS DA ESQUADRA
Combinando o que se lê nos cronistas com o estudo
'
do almirante Morais e Sousa, e com os comentários das
diferentes edições do «Roteiro», ainda não se chega
a informações correctas acerca das características dos
navios de que se compunha a esquadra de Vasco
da Gama.
Além dos três navios conhecidos, não há dúvd.da
de que Gama levou um navio velho, a chamada nau dos
mantimentos, destinado a ser abandonado oportuna-
mente, depois de descarregado, o que se fez depois de
passado o Cabo, em São Brás.
E muito provável que as duas naus, construídas de
servirem os mesmos materiais e sobresselentes. E os
restos de uma delas serviriam para a outra, como acon-
teceu quando a cSão Rafael» foi queimada nos ba:ixos
entre Zanzibar e Pemba.
Ambas estas naus seriam de cerca de um cento de
tonéis de arqueação, com uns 21 metros de comprimento
 492 ÍNDIA [cAP.
na linha de água, e um deslocamento de uns trezentos
metros cúbicos.
Como era extremamente natural levaram também
para exploração e reconhecimentos,' um navio menor'
e mais maneiro~ qual era a caravela cBérrio::.. Este
navio armaria com três panos latinos triangulares, e
um pequeno redondo à proa, o traquete. A sua arquea-
ção seria de cinquenta tonéis, com um comprimento na
linha de água de uns dezoito metros e um deslocamento
' cúbicos.
de cerca de cento e cinquenta metros
à «nau dos mantimentos» poderíamos atribuir
uma tonelagem tripla da tonelagem da caravela uns
cento e cinquenta tonéis. ' avante do ilheo da Cruz, em altura de trinta e dous
A:s três naus levavam velas quadrangulares nos
dois mastros de proa, como no gurupés~ no total cinco
velas redondas. No mastro menor o de ·r é i~'ariam
' ' ~
como era sempre costume, um latino triangular, a
' Fish River, que está em 35° 25'. O «Africa Pilob loca-
mezena.
Na nau «São Gabriel» ia o capitão-mor, VaJSco da
Gama. O piloto-mor da esquadra era o conhecido Pero
Dalanquer, que tinha ido, em 1487, na viagem de Bar-
tolomeu Dias além do Cabo.
A nau cSão Rafael» era comandada pelo irmão de
Vasco da Gama, Paulo da Gama sendo piloto João
de Coimbra. ' Perestrelo- um dos náufragos da nau cSão Bento»,
A caravela cBérrio::. era comandada por Nicolau
Coelho, sendo piloto Pero Escobar, que fora compa-
. nheiro de Diogo Cão, tendo o seu nome na conhecida
inscrição do rio Zaire, abaixo da f.amosa queda de
Yelala.
Ia também outro piloto, Afonso Gonçalves. Sabe-
mos que este e Escobar sobreviveram da viagem. Dos
pilotos Dalanquer e Coimbm não temos mais noticias.
IV, m) O DIÁRIO DA VIAGEM D E VASCO DA GAMA 493
As tripulações somavam cento e meio de homens,
sendo sessenta para cada nau e trinta para a camvela.
As informações concordam em que s6 55 regressaram
a Lisboa.
OS RIOS «00 INFANTE::.
E cDOS BONS SINAIS»
:m corrente que a viagem de exploração de Barto-
lomeu Dias, em 1487, terminou em um rio ao qual foi
posto o nome de rio do Infante .
Segundo •a s «Décadas», a sua boca fica «25 ilegoas
grados e dous terços». No «Roteiro» de Plimentel essa
mesma boca está «em altura de 32 gr. e meyo».
Horsburgh identifica o rio do Infante como o Great
liza este rio um ·pouco mais a norte, em 33° 21'. Acres-
centa que a •s ua entrada é perigosa.
Na primeira edição do «Roteiro », Kopke identifica
o rio do Infante com o mesmo rio já citado. Com esta
opinião concordam Ravenstein e Fontoura, discordando
Mr. Axelson.
Por outro lado sabemos que Manuel de Mesquita
que se perdeu na costa sueste da África em 1574 tendo
escrito a relação do naufrágio- esteve' perto da' «boca
do rio do Infante, em altura de trinta e dous graus e
hum terço».
Este mesmo Perestrelo foi. mandado no ano seguinte
reconhecer a costa oriental da Mrica, e Kopke aceita
que as latitudes e rumos dos pontos mais notáveis são
marcados com exactidão considerável para aqueles
494 INDI A [ CAP

tempos. Esses números são os aproveitados no cRoteiro»

de Pimentel, onde, na pág. 393 da edição de 1699, é
atribuída à boca do rio do Infante a latitude de c32
graus e meyo». Na «História Trágico-Marítima» é atri-
buída a este ponto a latitude ctrinta e dous graos e um
terço:..
De modo que, entre estas latitudes e a latitude da
boca do Great Fish River- 33° 31' S -há a diferença
de um grau, inaceitável para observações feitas em
terra. Tal erro não é natural, havendo exemplos de
grande aproximação nas observações de Perestrelo;
assim, adiante, é atribuída à ponta de Santa Luzia a
latitude de c28 gr, e meyo», quando a latitude real é
28° 32'.
Por outro lado Pimentel diz-nos que, cadiante»
do rio do Infante «Oito legoas» está outro rio cpequeno
para navios que chama S. Cristovão:., estando perto da
choca tres llheos pegados com terra». Se, pela latitude,
c32 graus e meyo», procuramos identificar o rio do
Infant e com um outro rio conhecido, o Buffalo River,
tão acessível que tem dentro a moderna cidade EG8t
London, escala de navios actuais, e cujo farol tem a
latitude 32° 02' hesita remos. Porque se lê no cAfrica
Pilot» que existe na ·c osta, cerca de oito léguas a nor-
deste de Buffalo River, um outro rio, o Great Kei, que
tem pegado com a terra um notável grupo de ilhéus,
rio que assim poderemos · identificar com o rio São
Cristóvão, que Perestrelo cita na relação do seu nau-
frágio. Só um exame local poderá decidir qual é, de
facto o rio do Infante.
Há ainda a nQt ar que São Cristóvão, só festejado
a 25 de Julho, era talvez o nome da caravela de Barto-
IV, m] O D lÁRJO D A VIAGEM D E VASCO D A GAMA 495

lomeu Dias, podendo ter sido de facto o rio do mesmo

nome o termo da sua viagem, tão mal documentada.
Nas cartas modernas podemos medir com mais
exactidão as distâncias. E, ao passo que o cRoteiro::.
nos indica c20 legoas» como distância dos ilhéus Chãos
à boca do rio do Infante, as distâncias reais são:

Dhéus a Great Fish Rti.ver . . . 14 léguas

Dhéus a Buffalo River . . . . . . 27 ::t

Houve, portanto, erro na estima, que o cRoteiro»

aceita. E como o erro de um grau é inaceitável nas
observações de Perestrelo, feitas em terra, resulta uma
maior probabilidade de que o rio do Infante seja o
mesmo rio onde hoje está a cidade de East Lcmdon.
Um outro vestígio da presença de João Infante na
esquadra com que Bartolomeu Dias dobrou o cabo de
Boa Esperança está no cabo que ainda agora conserva
nas cartas de navegar o nome que tinha nas cartas de
Oantino, cabo do Infante, o qual fica vinte léguas a
oeste de São Brás.
E seria, até, possível que s6 a caravela do Infante
tivesse entrado no rio a que ele deu seu nome, ao passo
que Dias tivesse navegado mais adiante coito legoas»
até ao outro rio, que recebeu o nome de São Cristóvão .

•
Lemos no cRoteiro» que, a 22 de Janeiro de 1498,
chindo pello mar:., cvimos hüu rrio !arguo e boca e
porque era necessário saber e conhecer onde eramos
pousamos». A 25 entraram no rio cestamdo já o navio
berrio» lá dentro, desde a véspera.

JNDI A ( CAP.
Este rio é identificado por João dos Santos, na
sua obra cEthiopia Oriental», onde se lê que o rio dos
Bons Sinais, sendo braço menos principal do Zambeze
«que se chama rio de Quelimane:., teve este nome posto
por «Vasco da Gama, quando a elle chegou indo no
descobrimento da lndia».
Nos comentários do «Roteiro» Kopke repetiu este
passo.
Linschot (na pág. 20 II) diz que ·a altura da boca
do rio é 17 graus e três quartos; e, de facto , a lati-
tude do rio de Quelimane é 18° 02'. Mas Linschot
acrescenta que a entrada do rio se não pode ver de
fora , ao passo que o «Mrica Pilot», na pág. 204, ao
contrário, diz que, vista de SSE, a entreda do rio é
«COnspicuous», o que está de acordo com a expressão
«larguo em boca» do «Roteiro».
A ideia de que não teria 1sido no rio Quelimane,
mas por uma das bocas do Zambeze , que Gama, depois
de a distinguir ao largo, entrou, é-nos sugerida pe·lo
viajante Livingstone no seu livro tSObre «Exploração
do Zambeze», onde nota que a boca maó:s oriental do
Zambeze - barra Catrina ou Muselo - é muito usada
por ser mais visível do mar que as outras barras do
Zambeze.
Além desta havia outra barra mais funda, a lnha-
missengo, que tem fundo de duas braças na maré baixa,
e cerca de quatro na preia-mar. Foi esta barra apro-
veitada pelo vapor de Livingstone Ma-Robert, por tei"
sido reconhecida como a melhor entrada do Zambeze.
A solução deste problema apresenta-se-nos como
duvidosa, porquanto ignoramos qual o estado das dife-
rentes saídas do Zambeze para o mar no século de
IV, m] O DIÁRIO DA VIAGEM DE VASCO DA GAMA 497
1400. Mas não se pode afirmar com segurança que
cVasco da Gama entrou no rio de Quelimane».
A TRAVESSIA DO OCEANO INDICO
Para traçarmos a rota de Vasco da Gama através
do oceano Indico são bem escassas as informações que
nos ficaram. Sabemos que a travessia se realizou em
Maio de 1498, já com a monção do sudoeste declarada,
mês este em que já dominam em Melinde, durante três
quartas partes dos dias, ventos entre sul e oeste, por
sudoeste.
Vejamos o que nos dizem as fontes.
Castanheda, tendo seguido o cRoteiro», nada
adianta. Consta que, sendo cinverno na lndia», há
naquele «golfão grãdes tormetas», mas Gama não teve
«nenhüa, antes veto a popa». Aumenta a distância do
cRoteiro» de 600 para 750 léguas, repete o erro da
«sexta-feira 17» - que foi 18 de Maio - e corrige o
rumo final do pairo de noite, para cSueste:., o que seria
assim francamente para cima da terra. Enfim, ao
c domingo vinte de Mado» -data desta vez certa-
cvio ho piloto hüas serras muyto altas que estã sobre
a cidade de Calecub, as quais, chegando-se a terra, as
conheceu. Ã tarde foram fundear cdefrõte de hü lugar
chamado Capocate».
As «Décadas» limitam-se a contar que, atraves-
sando aquele grande golfão de 700 léguas, que há de
uma a outra costa, por espaço de 22 dias sem achar
coisa que o impedisse, a primeira terra que se tomou
foi cabaixo» de Calecute «Obra de duas legoas». E daqui
foi Gama levado a Calecute por pescadores.
11
498 INDIA [cAP.
Nas cLendas da India:. lê-se que, navegando com
bom vento, em 20 dias houveram vista da terra, cque
os pilotos disserão antes que o vissem:. - por conhe-
cerem a latitude- cque foy hum grande monte que
está na costa da India no Reyno de Cananor, que os da
terra chamão em sua lingoa o Monte Dely». Chegando-se
à cpraya, correrão ao longo della:., passando à vista
de Oananor, e foram csorgir em hum lugar onde come-
çava a cidade de Calecute, e que se «Chamava Capocate:..
Como se vê, há aqui a novidade de monte Dely, que
fica 16 léguas ao norte de Calecute, e que não poderia
ser aquela terra muito alta citada nas outras fontes.
Segundo António Galvão, Gama recebeu pilotos
de El-Rei de Melinde, os quais cos poserão na India, na
qual travessa descobrirão as baixas de Padua». Ora
para passarem sobre tal banco eles teriam que ~r à
latitude de 13°, dois graus a norte de Calecute, novidade
esta que as outras fontes não citam, e que é improvável.
No cRoteiro» lê-se que partiram de Melinde a 24
de Abril - já mês de Maio do calendário actual -
ccom ho piloto» que cElRei deu pera hua cidade que
se chama Qualecut», e foram cem Leste a demandala:..
Cinco dia·s depoi-s tiver-am cvista do Norte», e chua
sesta feira » - 18 de Maio- avistaram cterra alta».
Havia «vinte e tres dias» que não viam terra e, indo
«sempre com vento a popa», tinham navegado não
menos de csciscentas legoas». A terra ficava a coyto
legoas e a sonda indicou fundo . de «quarenta e cinquo
braças». De noite fizeram «caminho ao Susueste» (3 8 ) ,
para se arredarem da costa. Este rumo deve ser erro
(58) No manuscrito leu-se cSus este:..
IV, ur] O DIÁRIO DA VIAGEM D E VASCO D A GAMA 499
do copista, porque, contando com a viração da agulha
de uma quarta para noroeste, tal rumo não arredava
mas aproximaria o navio da costa. Donde se deduz que
o rumo deveria ter sido su-sudoeste.
No dia seguinte fo.mm na volta da terra, mas cpollos
muito chuyveiros e trovoadas», não se chegaram tanto
a ela que o piloto a pudesse reconhecer. No domingo,
20 de Maio, estavam «juntos com huuas mõtanhas as
quaees .s am mais altas que os ·h omes nuca viram as
quaees estam sobre a cidade de Calecut». Chegando-se
a elas o piloto então «as conheceo», e disse que «aquella
era a terra honde» desejavam «dir». A tarde foram
«pousar abaixo desta cidade de Calecut duas legoas»,
em frente da vila de «Capua», «ao longuo da costa obra
de húa legoa e meia de terra».
No mapa com que o Dr. Kopke ilustra a sua edição
do cRoteiro» -mapa repetido depois em outras edi-
ções - a rota Melinde-Calecute foi traçada em linha
recta e, assim, vai passar sobre o atol mais sul das
Laquedivas, o que seria completa imprudência, só
aceitável se a existência destas ilhas fosse ignorada.
Ravenstein modificou esta rota, traçando-a a
passar entre os dois recifes que existem a norte das
Laquedivas, formando um canal de só seis léguas de
abertura, passagem esta que não seria tentada por
quem, indo de tão longe, só se fiasse na bússola e
quadrante. Ela seria de pouca confiança, mesmo deman-
dando-a a sextante e a cronômetro, e ainda que houvesse
na época cartas tão correctas como são as modernas.
Parece que Ravenstein se deixou mnfluenciar pelas
«Lendas da India», segundo as quais Gama foi a Cale-
cute pelo norte, em demanda do monte Dely.
500 lNDIA (cAP.
Hümmerich conclui, e bem, que a primeira terra
avistada teria sido a cordUheira dos Gates do Malabar.
Mas acrescenta que continuaram a viagem cao longo
da costa para o sub ·a té que em 20 de Maio ancoraram
em frente de Capocate. Ora esta navegação para sul
não é confirmada pelas fontes, sendo pouco provável
que, quem vinha do sul do equador, fosse a norte, para
depois voltar para sul.
Fontoura da Costa) segu~ndo a versão de Ravens-
tein, opina que cumas montanhas, as quais estão sobre
a cidade de Oalecub, seriam o monte Formosa, das
cartas portuguesa·s, hoje o cabo Kadalut, o qual fica
15 milha·s a NNO de CalecuteJ e com a altitude de
apenas 60 metros.
ll':: certo que estes três autores erraram por terem
só conhecido a edição do «Roteiro» de Herculano, em
que foi suprimida uma característica indicação do
«Roteiro», a qual se encontra na primeira edição, e
que é a seguinte:
«E ao :domingo fomos jun:tos com húas mõtlanhas
as quaees ·sa:m mairs ari tas que os homés núca Vli•r am as
quaees .etstlam sobre a cidade idJe Calecut.-.
Esta indicação exclui claramente o monte Dely, o
qual, por ficar 16 •léguas ao norte da cidade de Calecute,
nunca se poderia avistar «SObre» ela e, de resto, tem
só 260 metros de altitude.
Como se vê, nenhuma das fontes citadas nos dá
indicação clara sobre a rota seguida por Vasco da
Gama- ou pelo piloto de Melinde. Só sabemos que
passaram cerca de três semanas sem ver terra, levando
nas velas o vento favorável da monção) que lhes deu,
IV, m] O DIÁRJO DA VIAGEM D E VASCO DA GAMA 501
em média, singraduras de cerca de 30 iéguas ou sejam
mais de cem milhas por dia. Também se s;be que de
passagem não avistaram nenhuma das 14 ilhas Laque-
divas, grupo este que dista da cost·a meio cento de
léguas, e que se estende entre 10 e 12 graus de latitude
norte.
Pela certeza com que o piloto foi dar direito a
Calecute podemos concluir que lhe não bastou a nave-
gação à bússola, e que fez navegação astronômica. O
que se combina com outras informações, tanto das
«Décadas» como do «Roteiro», onde se lê que as naus
encontradas em Moçambique dispunham de «agulhas
genoiseas», além de «quadrantes e cartas de marear:..
Também pelas «Décadas» somos informados que
o piloto mouro «Malamo Caná», que embarcou em
Melinde, tinha uma «Carta de toda a costa da !ndia
arrumada ao modo dos Mouros, que era em meridianos
e parallelos mui meudos sem outro rumo de ventos»,
sendo o seu «quadrado» «mui pequeno». Além disso o
mouro, apesar de saber que no Mar Vermelho os pilotos
~tomavão a altura do sol» com quadrantes, mostrou o
mstrumento de que se ia servindo, «que era de três
tavoas», possivelmente uma cbalestilha». Não é lícito
conjecturarmos que os mareantes mouros que havia
séculos, cortavam o oceano Indico, entre a tndia e a
África, ignorassem a existência dos dois grupos de ilhas,
algumas delas povoadas: as Laquedivas - cujo nome
primitivo er~ «Ilhas de Mamale» e as MaldivasJ por
entre as quais havia «boqueirões» e, até, seus «pilotos».
Os dois grupos correm de norte a sul, entre a latitude
de treze graus norte e o equador, e ficam afastados
da costa indiana, de M alabar, cerca de meio cento de
léguas. Estas ilhas ficavam, portanto, no caminho entre
502 l ND IA [cAP.
Ãfrica e Calecute ou Cochim. Os mapas de Cantino e
Canério já as indicavam em 1502. No «Roteiro» de
Vicente Rodrigues lê-se que a ilha cCalipene do grupo
de Mamale» está na mesma •a ltura, a coeste da costa
de Cochim 42 legoas». A distância real é de 44 léguas.
O citado roteiro apresenta Cochim em «10 graus justos»,
ao passo que as cartas modernas atribuem à mesquita
de Kalpeni a latitude de 10° 04'. Algumas das 14 ilhas
do grupo das Laquedivas são coberta:s de palmeiras e
são habitadas.
Também não ignorariam que entre os dois grupos
de ilhas há uma •a bertura limpa, larga de trinta léguas,
entre «as ilhas de Mamale e de Maldiva», do conhecido
roteiro de Vicente Rodrigues. Esta passagem era cha-
mada nos antigos roteiros o canal cdos nove graus e
meio », pelo qual navegavam os navios. Seria ridículo
supor que foram os nossos pilotos quem, depois de
Gama descobriu e ensinou este caminho regular entre
os po;tos de Ãfrica e as cidades de Calecute ou Cananor.
:m pois extremamente verosímil aceitar que foi
' largo
por este ' canal, sem ter visto algumas das ilhas,
que o piloto levou os navlios de Vasco da Gama à fndia.
Mas nunca poderia ter sido só a bússola, embora recti-
ficada por marcação da Estrela do Norte, que, após
mais meio milhar de léguas, os pilotos fossem meter os
navios pelo canal, seguros de iá poderem passar. :m
certo que só observações astronômicas lhes poderiam
garantir tal segurança.
· Segundo uma conhecida informação de Sernigi
acerca da viagem de Vasco da Gama, já era conhecida
a navegação astronômica, como também um grupo de
baixos formando «Um milha·r ou mais de ilhas», que
tinham' ficado à direita. Seriam as Maldivas.
IV, m] O DIÁRIO DA VlAGEM D E V ASCO DA GAMA
De resto, o rumo directo de Melinde a Calecute,
que era les-nordeste verdadeiro, iria bater na entrada
do canal, de modo que o demandá-lo e seguir para
leste, na sua latitude, seria uma maneira prática de
demandar Calecute.
Enfim, não se compreende que não fosse conhe-
cido o canal grande, na latitude de cnove graus e meio»,
mas só um canal pequeno, que fica ao norte, em 12
graus, entre os dois atóis Chereapani e Bitra, e que
se preferisse a sua perigosa navegação pela abertura
de apenas umas seis léguas.
Só uma inverosímil ignorância da existência do
canal grande justificaria a navegação tanto pelo norte,
de modo que, para ficar bem safo dos atóis das Laque-
divas, se teria de procurar atingir uma latitude de
mais de treze graus, sobre os bancos de Pádua, indo
então correr em altura, até à costa, donde se desceria
ao longo dela até à latitude de 11 graus e quarto, em
que fica Calecute. Ora, ao contrário, os roteiros acon-
selhavam que, com a monção de sudoeste, se fosse
demandar Cochim, passando «a barlavento», isto é,
pelo sul, das ilhas de Mamale.
Assim, pelas várias razões apontadas, temos de
pôr de parte a rota pelo norte, parecendo mais prático
o ir de Melinde demandar o canal dos nove graus e meio,
sem dúvida tão conhecido como o rosário de ilhas que
lhe ficam a norte e a sul.
Esta viagem pelo sul das Laquedivas exclui a
versão de Ravenstedn de a primeira terra avistada ter
sido o monte Dely, que fica a norte de Calecute. Por-
qu8illto a c terra alta», como, depois, as montanhas
cmais altas que os homens nunca viram- citadas no
cRoteiro» - só poderiam pertencer à cordilheira dos
 ÍNDIA [CAP .
Gates. E acontece que o «Conspícuo» pico chamado
Bossa de Camelo -ou «Camel's Brump» das cartas
inglesas - tem 2338 metros ou 1280 braças de altura, e
de facto se avista ao largo ao rumo ENE, sobre a cidade
de Calecute. Assim o mostra a figura panorâmica das
actuais cartas marítimas, e até uma v>ista de Calecute
que Ravenstein apresenta a págs, 183 da sua tradução
do «Roteiro».
Qual teria, então, sido a rota da travessia do
oceano indico, em 1497, que poderemos conjecturar
como mais possível?
De Melinde Gama tomou o rumo ENE verdadeiro
- o qual corresponde a E4NE da agulha. Navegou
com vento, não exactamente de popa, mas folgado e que,
segundo os mapas de ventos do mês de Maio ~ria ron-
'
dando de sul por sudoeste, até oeste. Navegando
àquele rumo cerca de 570 léguas teriam atingido a
latitude de nove graus e meio, que é a do canal entre
Laquedivas e Maldivas.
Enchida esta latitude de nove graus e meio, segui-
ram por ela, enfiados para o canal. Navegada assim
uma centena de léguas sem ter avistado ilhas ao norte
- como era Calipene -nem, tão-pouco, terra firme,
o piloto indiano, convencido de que tinha passado pelo
sul das ilhas de Mamale teria rumado para nordeste
a aumentar a latitude. E,' com mais umas trinta léguas'
.de caminho- perfazendo no total setecentas léguas
de navegação- foi avistar a umas «oyto legoas» -
cerca de trinta milhas- «terra alta», sem dúvida a
«Serrania dos Gates». Sondaram em 45 braças, o que
nas cartas modernas d.ndica idêntica distância à costa.
Não tendo o piloto distinguido nehuma conhecença
caracterídica, nem o monte Dely, pairaram de noite,
IV, m] O DiÁ RIO DA VIAGEM D E VASCO D A GAM A 505
com a proa ao largo. Tão-pouco no dia seguinte, por
causa das trovoadas e chuvas, ,se reconheceu a terra.
Mas, pela sua latitude observada, o piloto supunha-se
nas proximidades de Calecute.
Sõmente no domingo, tendo clareado o tempo, se
distinguiu melhor a terra, umas montanhas «mais altas
que os homens nunca viram», pois tinham mais de
quatro vezes a altura da conhecida serra de Sintra.
Chegando-se à terra o piloto reconheceu o carac-
terístico pico Bossa de Camelo, que tem a altitude de
2338 metros (7672 feet) e que fica 7 léguas, ou 23
milhas, para dentro da cidade de Calecute, podendo
avistar-se «sobre» ela, do largo, por ENE. Este pico
é inconfundível com o monte Dely, que fica na costa,
isolado, e 16 léguas a norte de Calecute, como o é
a4nda menos com o monte Formosa, que tem apenas
60 metros de altura.
Rumaram para a costa e, provàvelmente, por o
piloto não conhecer bem os baixos que há no mar de
Calecute, foi ancorar os três navios duas léguas a norte,
em frente de Capua.
Tal é a versão que, nàuticamente, surge como mais
verosímil da rota com que o piloto de Melinde levou
Vasco da Gama à vista de Calecute.
Os Portugueses tinham, enfim, conseguido atra-
vessar os mares desde Lisboa até à lndia, em cujo mar
pela primeira vez navegavam navios europeus .
REGRESSO DA lNDIA A MELINDE
Na rota de regresso de Angediva a Melinde há
ainda discordância entre as informações dos cronistas.
As «Lendas da !ndia» limitam-se a acentuar que,
 so6 Í NDiA (CAP.
sendo «tempo de monção», «se fizerão à vela, atraves-
sando o go'l fão» «COm bom tempo sem contraste, e
chegarão a Melinde a oito de Janeiro» de 1499. Contra
seu costume, não romantiza esta travessia, que deve
ter sido a mais angustiosa.
Porquanto Barros conta que na travessia «daquele
grande golfão» «adoeceo e morreo muita gete das enfer-
midades passadas por razão de grandes calmarias que
teve», indo passar à vista da «Cidade Magadaxo», e de
«Outra chamada Paté», até que chegou a Melinde,
trazendo muita «gente enferma». Barros não indica a
duração da viagem nem apresenta datas.
Castanheda, apesar de conhecer o «Roteiro», desen-
volveu mais 1a sua narrativa da travessia do 1ndtico.
Partiram de Angediva «hua sesta feira cinco Doutubro».
Depois de «hú engolfado achou grandes calmarias»
durante «muytos dias», passados os quais «sobrevierão
ventos cõtrarios com que lhe foy forçado pairar e
andar às voltas quãdo nã podião pairar». Cessando
«estes ventos tornarão as calmarias, e ápos elas tor-
narão os vetos». «Durou isto quatro meses», crendo «a
gete que aqueles tempos erã ali naturais e que não
avião de poder passar avante». Veio então o escorbuto,
«de que morrerão trinta pessoas», estando os outros
doentes «Como mortos». Por esta razão recomeçaram
requerendo aos capitães «que arribassem a Calicub,
ao que Gama respondia que, visto que se navegava
«por aquele golfão», nos dois sentidos, aqueles tempos
«avião de ter fim». Daqui surgiu uma «Conjuração»
entre pilotos, mestres e marinheiros, para impor a
arribada. Então Gama prendeu os pilotos até que veio
vento «que em obra de dezasseis dias posa frota di,a nte
da cidade Magadaxo, que virão a dous de Fevereyro».
IV, m] O DIÁRIO DA VIAGEM D E VASCO D A GAMA
Foi Gama, enfim, «surgir a Melinde, onde se deteve
cinco dias por amor dos doentes que levava». A «deza-
sete de Fevereyro» - aliás Janeiro- foi queimada a
nau «São Rafa~l» nos baixos deste nome, por falta de
gente para «marear mais de dous navios».
Castanheda acrescenta que Gama ainda escalou na
ilha de Zanzibar, onde teria assentado «amizade» com
o Rei. Partido dali, Gama «foy surgir no primeiro de
Março (Fevereiro) aos ilheos de Sam Jorge» e «aos
tres de Março fez agoada e carnagem, em Sam Brás».
Damião de Góis parece ter aqui copiado Casta-
nheda. A largada de Angediva teria sido, também, a
5 de Outubro. E no «caminho de Anchediva até Melinde
andou Vasquo da Gama com calmardas e tempos cõtra-
rios, mais de quatro meses, em que lhe morrerã trinta
homes, e ha primeira terra, e povoaçam que viram foi
h'a cidade de Magadaxo», «Cento, e treze legoas de
Melinde», onde foram «Surgir hüa següda feira sete
dias de Fevereiro». Há aqui a mesma troca de mês, e
tanto mais que a «segunda feira » foi a 7 de Janeiro.
Góis acrescenta que Gama passou dâ.ante da ilha de
Zanzibar, «tendo sido mandado visitar pelo «Senhor da
qual» ilha, donde «partio o primeiro de Março». Toca-
ram em São Jorge e São Brás, e a 20 de Março dobrou
o Cabo.
Enfim, segundo o «Roteiro», Gama largou de Ange-
diva aos «cinquo dias do mes Doutubro ». Nesta tra-
vessia gastaram «tres mezes menos tres dias», «isto
com muitas calmarias e ventos contrarias que em ella
achamos, de maneira que nos adoeçeo toda a gente das
gingivas». Era o escorbuto, que matou «trinta homes,
afora outros tantos que já eram mortos, e os que nave-
gavam em cada naoo seryam sete ou oyto homens».
508 INDlA ( CAP.
Pelo que faziam «muitos prometimentos a Santos e
pititorios pelos navios». E os capitães teriam «fecto
conselho que se nos ventos igual acudd.sse», arribariam
à tndia. Veio porém «tal vento que em obra de seis
dias» os levou a terra, chua Quarta feira dous dias de
Fevereiro» de 1499. Pairaram «pera saber em que para-
gem eramos»; cporquanto nom avia ja hij piloto nem
homem que cartear soubese». cAlguns disiam» que
estariam cantre huas ilhas que estam atraves de
Moçambique obra de trezentas legoas de terra». Mas
estavam, como era de esperar, cdavante» a cidade de
Mouros que cse chama Magadoxo». Como ignoravam
a distância a Melinde, por a cost a lhes ser desconhecida,
fizeram caminho ccom mui bom vento a popa ao longo
da costa» andando cde dia» e pairando «de noute».
Na segunda-feira que foram nove do dito mês- aliás
sete- foram ca pousar davante Milindy».
Como mais adiante se lê no «Roteiro» que cao
primeiro dia de Fevereiro a tarde foram pousar davante
as Ilhas de Sam Jorge em Moçambique», indo chegar
a São Brás caos tres dias do mez de M~arço», há só
que concluir que a data chua quarta feira dous de
Fevereiro» em que avistaram terra, foi realmente
quarta-fei~a. 2 de Janeiro, tendo, por erro do copista,
sido trocado o mês para Fevereiro. E este erro foi come-
tido só uma vez porque adiante sempre se repete, não
Fevereiro, mas co dito mez». Além disso, os ctres meses
.menos tres dias», que durou a travessia oceânica, con-
tados desde 5 de Outubro, vão dar a Janeiro e ·não a
Fevereiro. Castanheda, que consultou a mesma cópia
do «Roteiro» nossa conhecida, não deu por este fácil
engano, e emendou a duração da viagem para «quatro
meses». Ainda emendou a data da chegada a São Jorge,
IV, m] O DIÁR IO DA VIAGE M D E VASCO DA GAMA 509
que no «Roteiro» é «primeiro dia de Fevereiro:., «para
primeyro de Março:., donde resultou o absurdo de terem
levado só dois dias para navegar o meio milhar de
léguas que vai de Moçambique a São Brás.
No mesmo equívoco caiu Damião de Góis, sem ter
reparado no escasso número de dias decorridos desde
a partida de Zanzibar, a 1 de Março, até à passagem
do Cabo, em 20 do mesmo mês.
Como no «Roteiro» esta troca de meses só foi feita
uma vez, os comentadores das suas duas primeiras
edições- Kopke e Herculano- nãc;> o aceitaram, ape-
sar de o dia da semana estar correcto.
Já Ravenstein, na sua tradução, corrigiu este erro
tão elementar, como o fizeram depois todos os outros.
Porém, Ayalla, no seu opúsculo, também publicado em
1898, conclui dai mais um argumento para a sua expli-
cação de «estarmos em frente dum documento forjado:..
O mesmo conclui, também, da falta de concordância
dos dias do mês com os da semana, frequente no
«Roteiro».
Quanto à «conjuração» contra Gama, na travessia
do Indico, que Castanheda criou, e que não é citado
nem no «Roteiro» nem por Barros, trata-se de uma
ampliação análoga a outras do mesmo autor e, nomea-
damente, a par dos ·s eus «quatro meses:. da mesma
travessia.
Ora, tanto pelos tndios que iam a bordo, como
decerto pelas informações de Pero da Covilhã a
D. João II- pois as monções são detalhe interessante
conhecido de toda a gente na tndia - , Gama e os seus
., pilotos sabiam que, em cada ano, sempre havia alguns
meses em que a monção de sudoeste, que o ·l evara à
tndia, era substituída pela de nordeste, com a qual as
5!0 ÍNDIA ( CAP.
cnaus ind~anas» atravessavam para a costa de África,
indo até Sofala. Assim fizera Covilhã. Só uma segu-
rança de que, para trás, para a India, se manteria vento
geral provável - e não calmanias - poderia aconselhar
uam «arribada» a Calecute, onde tantas contrariedades
esperariam a esquadra. Ora nada confirmava a persis-
tênci1a de ventos de oeste em Dezembro no oceano
Indico.
' dito à narrativa romantizada por Castanheda, que foi,
De resto é inverosímil que durante esses dois
meses e meio passados, além de «Calmarias» só tivesse
havido ventos contrários, contra os quais Gama, boli-
nando em ziguezague, tivesse consegwi.do vencer mais
de 300 léguas, visto que nos «Seis dias» finais de vento
favorável não teriam navegado, sequer, outras 300.
Os próprios cronistas registam que a navegação
cà·s volta:s» não dava caminho aproveitável: então só
«pairavam». Por outro lado, as cartas de ventos mos-
tram-nos que, mesmo antes de Dezembro, no lnd~co
e cerca do paralelo de 10 graus norte, já dominam ven-
tos entre noroeste e nordeste, que seriam favoráveis a
Vasco da Gama. Donde há a concluir que de facto a
sua rota fod. traçada em latitude bastante ' mais baixa
' ,
onde tais ventos falham.
· De modo que, com ventos van.aveis, não haveria
garantia de que, arribando, se conseguisse voltar à
India. Resta concluirmos que só Oastanheda é que
pensou em tal.
. Apesar da sua judiciosa prudência, o Dr. Fra.nz
Hümmerich aceitou que, em consequência das ccalmas
frequentes e ventos contrários», as tripulações come-
çara;m a «desesperar». Pilotos e mestres «declararam:.
que os ventos de oeste eram ali frequentes. Como Gama
não concordava, fizeram cuma conspiração», pelo que
IV, m] O DIÁRIO D A VIAGEM DE VASCO D A GAMA 5II
o 'capitão-mor teda tido que pôr a ferros todos os
«cabeças de motim». Contudo, o facto de as doenças
ameaçarem aniquilar as tripulações, em conselho dos
capitães foi resolvido «VJirar para a India se não viessem
ventos favoráveis ». O que teria sido eVIitado pela «mise-
ricórdia» divina.
Como se vê, o Dr. Hümmerich deu excessivo cré-
talvez, impressionado pelo que corria acerca da cons-
piração na costa sul-africana contva Bartolomeu Dias
e as «Lendas» apLicaram à viagem de Vasco da Gama.
Porém, o Dr. Luciano Pereira da Silva explica, e
com razão, que a:s várias narrativas da viagem de Gama,
com «conspiração», prisões a imposições de arribada,
são ampliadas do que corria a respeito da viagem de
Bartolomeu Dias e que, segundo a;s cDécadas», é acei-
tável ter-se passado durante a sua trabalhosa investida
pelo oceano Indico, em 1487.
Enfim, nem as próprias «Lendas da !ndia», que
exageram aquilo que se contava na !ndia a respeito
da viagem de Vasco da Gama, se referem a factos de
tanta importância, passados logo na primeira viagem
de regresso.
. Combinando as informações das fontes, e espe-
cialmente o testemunhado no «Roteiro», com as cartas
de ventos no oceano Indico nos meses que vão de
Outubro a Dezembro, há que conclUiir:
-Não haveria, por parte dos Mouros que vinham
na esquadra de Gama, informação contrária à existência
da monção de nordeste, com a qual era notório, mesmo
para quem não era marítimo, que as naus da !ndia
atravessavam para a África nos meses do nosso Inverno
indo mesmo até Sofala; '
 512 INDIA [ CAP.
-Por outro lado, as cartas de ventos do mês de
Novembro ainda indicam no oceano Indico, cerca de
latitude 5 graus norte, ventos entre sudoeste e no-
roeste, contrários à travessia para África. Seriam esses
ventos que Gama encontrou, por ter traçado sua
rota muito pelo sul, fosse para evitar as naus de Meca,
que i'am para a tndia, fosse por os pilotos suporem que,
no Indico, se passava no Inverno o mesmo que no
Atlântico, onde o vento ali•s ado do nordeste então se
aproxima do equador.
Enfim, não há confirmação de que, entre os pilotos
ou capitães da esquadra de Vasco da Gama, houvesse
razão para arribar à lndia, por esperarem evento igual»
- ~sto é, favorável até lá- como o tinham tido em
Maio passado. A versão das conjurações carece, pois,
de verosimilhança náutica.
CHEGADA DE NICOLAU COELHO
A LISBOA
Tem sido explicada por várias maneiras a razão
pela qual, de fa cto, Nicolau Coelho chegou a Lisboa
muito antes do seu chefe, Vasco da Gama.
Segundo as «Décadas:., cchegados com assaz tra-
balho junto das ilhas de Cabo Verde, com um temporal
forte que ali teverão, Nicolao Coelho se apartou de
Vasco da Gama: e cuidando elle que o trazia ante si
veo ter á barra de Lisboa a dez de Julho daquelle armo»,
ce quando soube que Vasco da Gama não era ainda
chegado quisera fazer volta ao mar em sua busca:..
Mas o cRey mandou que entrasse pera dentro». Vasco
da Gama ccom aquelle temporal foi ter à ilha de
Santiago».
O DIÁRIO DA VIAGEM DE VASCO DA G AMA
IV, m]
Osório conta também que Gama ccom vento favo-
ravel veio com suas náos surgir à ilha de Santiago,
d'onde forão dispersos os dous Capitães por huma
tormenta. N. Coelho pos o rumo direito a Lisboa, e
Vasco da Gama navegou para a ilha Terceira; porqu~to
seu irmão Paulo da Gama, mui acabado de porf1a~a
molesüa, consumido quasi d'huma tysica, não podia
soffrer em 'SOrte alguma o balanço dos mares:..
Castanheda conta que, na viagem para Santiago,
sem tormenta, apartou-se Nicolau Coelho chüa noite
e foise caminho de Portugal pera ir diante dizer a el
rey dõ Manuel como a India era discoberta e ganhar as
alvisaras de tam boa nova como sabia aquele avia
de ser pera el Rey:.. .
Damião de Góis conta que na paragem do R10
Grande, ccom temporal se apartou Nicolao Coelho de
Vasquo da Gama, e sem o mais poder ver navegou rota
abaüda para o Regno, onde chegou a Casquaes:. .aos
«10 de Julho» de 1499. Vasco da Gama cfoi ter a ilha
de Santiago», e por seu irmão Paulo da Gama .vir muito
doente de cethequidade, e ha sua nao fazer mmta agu~»,
no desejo de o trazer vivo a Portugal, cfretou hua
caravela» ficando a nau a consertar cpera poder nave-
gar:.. V~ da Gama teria chegado a · Lisboa a 29 de
Agosto.
Enfim, é conhecida a carta, datada de 12 de Agosto
de 1499 na qual D. Manuel comunica à Rainha de
Oastela ~ noticia do descobrimento da tndia, recebida
por chum dos Capitaens que a nós a esta cidade ora
é chegado». .
Parece, pois, não haver dúvida de que N1colau
Coelho chegou a Lisboa a 10 de Julho com a boa nova.
Não é aceitável que Nicolau Coelho, tendo chegado ao
ss
 fNDIA [cAP.
Rio Grande com mês e meio de viagem desde São Brás,
levasse ainda mais dois meses e meio a Lisboa, sem
tocar em porto e, portanto, sem meter água. A viagem
da Guiné não deveria levar à caravela «Bérrio» mais
de mês e meio. Resta-nos, portanto, cerca de um mês
para uma escala da caravela, a qual, com toda a pro-
babilidade, teria sido em Santiago, como foi também
neste local a escala de Vasco da Gama.
O Dr. Hümmerich faz-se eco do «temporal» ao largo
do Rio Grande, o qual teria separado os navios. Ora,
por ali não há temporais, mas só trovoadas de curta
duração. E, assim, como a nau, com trovoada ou sem
ela, pôde ir a Santiago, melhor o faria a caravela de
Nicolau Coelho. Se, contudo, tivesse havido temporal,
e do sul, passado ele voltava o vento ao nordeste
dominante, e ambos os navios poderiam ir a Santiago,
não havendo possibilidade de Coelho ter sido fo-rçado
a arribar «direito a Lisboa» julgando que a nau ia
navegando cante si».
Em caso de uma problemática impossibilidade de
os navios irem 'a Santiago, ambos teriam de meter-ee
cna volta do Sargaço» e, faltos de aguada, ambos iriam
aos Açores, e não direitos a Lisboa. O que não fizeram.
Esta versão do «teporal forte» «junto das ilhas do
Cabo Verde», tem pois de ser posta de parte. As «cartas
de ventos» mostram o seu absurdo.
Quanto à separação, ou evasão maliciosa de Co-elho,
contada por alguns «hua noite para ir deante», tratar-se
de unia inaceitável agressão ao seu chefe por um com-
panheiro da longa e acidentada viagem de ida e volta
da lndia. Não temos razão lógica para considerar tal
deslealdade mais provável que a versão da ctempestade»,
como a da «COnjuração» que nos referem alguns cro-
IV, IV] A VIAGEM NAS «LENDAS DA ÍNDIA»
nistas. Nicolau Coelho era homem de tanta confiança
que, logo a seguir, na viagem de Cabral, ia comandando
uma das naus.
Resta considerar outra conjectura, que se me afi-
gura mais natural, qual é a de que, ficando a viagem
fechada em Santiago, e não havendo mais novidade no
regresso para Lisboa, o próprio Gama, retido na nau
pela doença do irmão, mandasse seguir a caravela para
Lisboa com urgência sem escalar nos Açores. Assim,
'
o Rei teria '
conhecimento da rota seguida, e das facili-
dades que Gama encontrara em Melinde, a tempo de
preparar a nova viagem à lndia, seguimento da de
Gama.
Trata-se de uma conjectura que só documentos a
favor da tempestade, ou da má fé de Coelho, poderiam
preterir.
IV- A ROTA DE VASCO DA GAMA
NAS «LENDAS DA INDIA»
As «Lendas da tndia» foram escritas por Gaspar
Correia, que foi para a lndia cmoço de pouca idade»,
cerca de 1513, e que pretende ter ainda estado em con-
tacto com «alguns homens que vierão nas proprias
naos de descobrimento» - entre eles o cclerigo
Figueira», que teria escrito um Diário do qual foram
tirados cmuitos treslados», tendo Correia visto um
deles, reduzido a um cquaderno já feito em pedaços, e
roto por partes», quando ele serviu como «escrivão» de
Afonso de Albuquerque.
As cLendas», de que há várias cópias manuscritas,
foram começadas a publicar pela Academia das Ciências,
 ÍNDIA (CAP.
em 1858. São apresentadas pelo sócio Rodrigo Felner,
que nelas notou calguns erros chronologicos:., c&lgumas
opiniões singulares» e francos cerros:., como o de
desconhecer a cviagem de Bartolomeu Dias, da qual
atribui toda a honra a Jan Infante». Felner cita ainda
os erros sobre a «invenção e uso dos instrumentos
nauticos» e o emprego tardio das «armas de fogo
portateis:..
Porém, segundo Felner, cestes pecados veniaes
não podem» csuscitar dúvidas contra a boa fé» de
Gaspar Correia, ou contra a cpura verdade com que
refere o que viu e ouviu» (s1c).
Apesar de já em 1838 ter sido publicada a 1.• edi-
ção do cRoteiro de Vasco da Gama», Felner não notou
a sua flagrante divergência das cLendas», das quais,
aos olhos dos náuticos, ressaltam os seus absurdos.
As cLendas» tiveram, contudo, admiradores, avul-
tando entre eles o grande historiador Alexandre Hercu-
lano, qtie quando comentou a 2.• edição do cRoteiro»,
publicada em 1861, ao prefaciá-là com alguma ligeireza,
deu importância manifesta à inverosímil narrativa das
cLendas:. e, em especial, à suposta conjuração contra
Vasco da Gama, afirmando que elas tinham vindo
caumentar a valia do Roteiro».
São mais ltterários que técnicos os comentários
com que o nosso famoso historiador apresentou a
2.• edição do «Roteiro». Herculano, por não ser náutico
- como o não eram aqueles que comentaram a edição
· de 1838 -, não poderia ·a preciar os absurdos com que
as cLendas da tndia:. romantizam a parte náutica das
viagens.
Sem o deduzir, Herculano declarou que as cLendas»
levam «decidida vantagem» ·a os cronistas, relatando
VI, IV] A VIAGEM NAS «LENDAS DA ÍNDIA>> 517
a cvida intima» e cas ·p eripecias da expedição:.. Correia
é assim considerado cum chronista», cujo trabalho é
completado pelo «Roteiro», tornando «perfeitamente
conhecido em todas as suas circunstâncias um dos
principais assuntos da história das nações modernas:..
Ora as cLendas» são em vários casos absolutamente
incompatíveis com o cRoteiro»! Mas Herculano até
conchuu que as cLendas», «inferiores pela forma às
Décadas de Barros», seriam, cquanto à substancia
muito superiores àquellas, e à humilde, evidentemente
singela, narrativa de Castanheda».
Como se vê, as cLendas», apesar dos seus absurdos
náuticos e falsidades, com que narra as três primeiras
viagens ao oceano Indico-as de Dias, Gama e Cabral-,
tiveram, contudo, admiradores de categoria.
Em 1869 fom publicada em Londres, em volume da
Hakluyt Society, a tradução inglesa da parte das
cLendas da tndia» referente às três viagens de Vasco
da Gama.
O seu tmdutor, o Hon. Henry Stanley, provàvel-
mente ·por conhecer mal o cRoteiro», comparando-as
aos cronistas, e desconhecendo navegação de vela, não
foi profundo nos seus comentários. Transcreve hones-
tamente aquilo que os cronistas escreveram em con-
tradição com ·a s cLendas», começando por notar que
elas, diferindo bastante das cCrónicas», apresentam
muito mais detalhes. Também transcreve numerosas
estâncias d'cOs Lusíadas», quando vêm ·a propósito. E,
enfim, nas suas notas, apresenta as razões que o leva-
ram a preferir a versão e as datas das cLendas», pondo
cdefinitivamente de parte o que dizem Castanheda,
Barros e Osório».
 lNDIA [ CAP.
Stanley considera injustiça enfileirarmos Gama
ao lado de Colombo e Magalhães, porque estes coman-
davam tripulações estrangeiras, ao passo que Gama só
levava companheiros portugueses. O que se explica por
Stanley não compreender as diferenças náuticas entre
as rotas de Colombo e Gama. Contudo, Stanley não
deixa de notar a falsidade das «Lendas» quanto à
passagem do Cabo, que foi, de facto, realizada antes
de Gama lá passar em 1497. :e certo que Stanley reco-
nhece a Gama a sua «indomável tenacidade» mas
desconhece, ou esquece, as dificuldades da sua' rota,
que em nada se comparam com a simplicidade da rota
de Colombo, directa tanto à ida como à volta. Todo
este estudo de Sanley é «bastante superficial e contém
muitas apreciações erradas», conclui com toda a justiça
o Prof. Luciano Pereira da Silva, mesmo sem focar a
impossibilidade de traçarmos num mapa a rota que as
«Lendas» atribuem à viagem de Vasco da Gama
em 1497.
Assim, Stanley:
-Aceita a partida de Lisboa a 25 de Março;
-Ignora a vantagem de levar um navio muito
menor que as naus, a caravela cBérrio» destinada
a reconhecimentos; ' declara que Gaspar Correia, nas cLendas da lndia»
- Considera, «most probable», acima da versão
do «Roteiro», a versão das «Lendas», sobre a travessia
desde Lisboa até além do Cabo, na qual teriam passado
sete meses sem meter aguada;
-Confunde os «rios das Lendas», aceitando que
o «grande rio», onde Gama entrou, seria o cda Boa
Paz», que se passa a vau. Também aceita que foi em
outro :do, o cda Misericórdia», que foi queimada, não
IV, IV] A VIAGEM NAS <<LENDAS DA íNDIA» 519
a cnau dos mantimentos», queimada em São Brás, que
não oita- mas a falsa nau de Nicolau Coelho;
-Acredita na grande demora em Melinde, sem
necessidade de esperar a monção, porque é sabido que
ela começa em Maio, permitindo logo as travessias
para a lndia.
Stanley, apesar de conhecer o facto de a nau
cSão Rafael» ter sido queimada nos baixos do mesmo
nome, não acentua esta flagrante confusão das cLendas»
acerca de um facto notável.
Enfim, Stanley não discute a última parte da via-
gem de Vasco da Gama, em que as «Lendas» divergem
do «Roteiro» e dos croni,s tas. As duas naus teriam
partido de Melinde a 20 de Janeiro. Não tocaram mais
em África e foram surgir «em fins de Agosto no porto
d'Angra». A viagem desde Melinde teria levado, pois,
mais de sete meses, sem escala para aguada. Stanley
não notou que seria esta a primeira vez que mareantes
portugueses avistavam o Cabo, o qual, contudo, já tinha
o mesmo nome que hoje tem. E põe de parte a versão
tão natural do cRoteiro », acerca das escalas em São
Brás e em Santiago.
Na «História da :E:poca dos Descobrimentos» o
Dr. Sophus Ruge, professor em Dresde, ainda em 1881
apesar da sua «discrepância» dos historiadores, crespim,
contudo, um ar de veracidade que obriga a dar à sua
narração a preferência». Declara ter-se utilizado da
citada obra de Stanley.
Ruge aceita o descobrimento do cabo de Boa Espe-
rança por Bartolomeu Dias, embora inventando que ele,
«desde a bahia de Santa Helena teve que deixar-se levar
com as velas amainadas na direcção SE à mercê de
520 fNDIA [ CAP.
um vento furioso:., o que é erro, porque Dias não
conheceu a baía de Santa Helena, nem teve na costa
vento furioso, mas só contrário, e de sueste, não tendo
pois rumado contra o vento, mas para o largo, na volta
de sudoeste. Contudo, deixa sem discussão passar a
versão das «Lendas», que só citam Janinfante, e omitem
Dias e a passagem do Cabo.
Quanto à Viagem de Vasco da Gama, Ruge afirma
que, de Santíago, ele «tomou rumo pam o sul directa-
mente sem seguir a costa». O vento era «violento» e
houve «COntinua tempestade» (sic). Ora, é sabido que
nem Gama poderia ter rumado para sul, por causa do
vento sul, da monção e do sueste do alisado, nem há
entre trópicos contínuas tempestades. Ruge continua
as «Lendas», afirmando que passaram meses assim.
Saiu «de encontro ao inverno austral», com dias tão
pequenos que «parecia ser sempre de noite», isto apesar
de não terem ainda dobrado o Cabo, e ~nto que, segundo
Ruge, a esquadra entrou «na Bahia de Santa Helena».
Sabemos que isto foi em Novembro, quando os dias
no hemisfério sul passam sempre de 12 horas.
«Depois d'outra tormenta que durou muitos dias,
dobraram o temido cabo, mas as tormentas continua-
ram» e o trabalho era tanto que houve um «plano de
conjura contra o capitão ». Então «este apoderou-se
com astucia dos conjurados e fê-los carregar de
cadeias». «Segundo se conta, «tão grande foi o seu
furor que arrojou ao mar todos os livros náuticos:..
Havia «incessantes tormentas» até que «em 6 de
Janeiro entraram no rio que chamaram dos Reis:. ou
«Aguada da Boa Paz:..
Como se vê, Ruge, seguindo as «Lendas», suprime
a escala real em São Brá8 e mete as naus de Gama em
IV, IV] A ViAGEM NAS «LENDAS DA lNDIA» 52 !
um pequeno rio, que nunca deu entrada a navios, a
«Aguada da Boa Paz:., ainda hoje conhecido.
Quanto 'ao rio da Misericórdia, que ficaria ao
sul de Sofala, Ruge sege os historiadores quanto à
entrada e demora de Gama no rio dos Bons Sinais.
Na viagem de regresso, Ruge não salienta que,
segundo as «Lendas:., não houve escala entre Melinde e a
Terceira, e cita a passagem pela ilha de S. Jarge. Põe
de parte as esca'las reais em São Brá8 e em Santiago,
parecendo aceitar a versão das «Lendas:. acerca de o
Cabo s6 ter sido descoberto em 1499! Enfim, aceita
que, «ao aproximar-se do Equador e das águas da
Guiné, a atmosphera impregnada de miasmas causou
novas epidemias a bordo, fazendo novas vitimas:., e
dando a Paulo da Gama o «germen» da sua morte!
Enfim, apesar de estar reconhecido documental-
mente que a notícia do grande descobrimento foi
conhecida em Lisboa em 10 de Julho, Ruge, citando
a «tempestade» que teria separado os dois navios de
Gama, ainda segue a versão de a nova ter sido levada
a El-Rei por «Arthur Rodrigues, que estava na Terceira
quando Vasco da Gama lá teve de arribar:..
Como se vê, o historiador Sophus Ruge dá curso
à fabulosa rota de Gama contada nas «Lendas:., sem
se ter informado com técnicos acerca da possibilidade
de ela ser decalcada sobre as cartas de ventos. Abstém-se
assim de ilustrar a sua «História» com um traçado
moderno da interessante e sugestiva rota de Vasco
da Gama.
Falta-lhe assim autoridade para deduzir- como
faz gratuitamente - que, «quanto a arrojo e espfrito
de empreendimento, não chega a expedição de Gama à
altura das empresas de Colombo e de Magalhães:.. E ,
 522 1ND1A · ( C AP.
ao contrário do que se deduz da sua lendária narrativa~
Ruge dirma que ·a viagem de Gama csó em parte se
fazia em regiões desconhecidas». E conclui que, com-
parada com as viagens daqueles dois navegadores, a
expedição de Gama foi cuma cabotagem em grande
escala!» «Cabotagem» a travessia do Atlântico Sul,
em que Gama passou três meses sem ver terra!
Por ocasião do Centenário do Descobrimento
Indiano, foi publicado um opúsculo com o título «Va:sco
da Gama, quando partiu?», onde o autor, F. Dinis de
Ayalla, negando valor histórico ao «Roteiro», se pro-
nuncia pelas cLendas da lndia». O que se explica por
ele desconhecer a crítica náutica do «Roteiro », publi-
cada por Ravenstein no mesmo ano de 1898.
Assim, a partida de Lisboa ter-se-ia realizado, não
em 8 de Julho, mas a 25 de Março. E então, até à
chegada a um rio da costa de Moçambique, pelos Reis
de 1498, haveria um prazo de quase dez meses para
as aventuras romântica·s contra «temporais» inventadas
nas «Lendas».
Ayalla aceita que a passagem ao largo do Cabo se
teria realizado nos dias curtos de Outubro, sem reparar
que nesse mês já todos os dias do hemisfério sul têm
mais de doze horas.
Também aceita a inverosímil viagem de sete meses
sem escala, entre Melinde e a Terceira. Nem repara
na versão da viagem de J aninfante, com que as cLendas»
encobrem a viagem de Bartolomeu Dias até além do
Cabo~ ao «rio do Infante»,
Contudo, Ayalla põe de parte o «Roteiro», que
considera uma «falsificação », talvez feita um século
depois, ao passo que as cLendas», escritas pouco depois
da viagem de Gama, seriam ca narração exacta e fiel
IV, IV] A VI AG E M NAS <<LE NDAS D A INDlA» 523
do assombroso aoontecimento». Enfim, segundo AyaUa,
é «evidente» que o «Roteiro» não foi escrito por quem
tivesse tomado parte na viagem, mas ·s ó no gabinete,
segundo informações. De modo que, se não é «apócrifo»,
há que considerá-lo, pelo menos, como «suspeito ».
Como ·s e vê, Ayalla põe de parte os absurdos, como
aquele de Gama ter deitado ao mar «quantas cousas
tinha de arte de navegar», absurdos que tornam as
«Lendas da lndia» mais que suspeitas.
No mesmo :ano de 1898 foi pulJlicada pela Hakluyt
Society uma tradução do «Roteiro» em língua ~inglesa,
a qual contém «Valiosas notas e documentos, ilustra-
ções e mapas muito úteis». E sta tradução é devida a
E. C. Ravenstein, autor de uma importante obra sobre
a vida e «globo de Martin Behaim», publicada em 1908.
Naturalmente, Ravenstein salientou os absurdos e
contradições das «Lendas da lndia», fazendo ressaltar
a incompatibilidade da sua narrativa com as conhecidas
~indicações meteorológicas do Atlântico Sul, e com a
impossibilidade de Gama lá ter encontrado dias de
curta duração. E termina classdficando as «Lendas»
como «Uma embrulhada» - «a jumble» - «de verdade
e de ficção ». No estudo do «Roteiro » interveio como
«nautical adviser» o 1almirante A. H. Markham.
Foi ainda a propósito do Centenário de 1898 que
um jovem professor alemão, que viveu em Portugal de
1893 a 94, e «ficou nosso amigo» - o Dr. Fra.nz Hüm-
merich - , pulJllicou em volume um estudo sobre Vasco
da Gama e o Descobrimento do Caminho Marftimo da
lndia, o qual, na opinião do ·s audoso professor Luciano
Pereira da Silva, em 1925, devia ser considerado «O
melhor que se tem escrito sobre Vasco da Gama e a
sua viagem». Já em 1923 e 24, o mesmo professor
 ÍNDIA ( CAP.
alemão publicou outro trabalho, idênticamente notável,
intitulado «Estudos Críticos sobre o Roteiro de Vasco
da Gama:..
O Dr. Hümmerich conheceu os historiadores, o
«Roteiro:. e as «Lendas:., assim como a sua tradução
inglesa de H. Stanley e, ainda, a cHistoria» de Sophus
Ruge. E, naturalmente, feriu-lhe a atenção a lamentável
discordância entre as diferentes fontes portuguesas,
de onde se podem deduzir os detalhes essenciais da
viagem de descobrimento da lndia, «capitulo de suma
importância na História da Humanidade:..
De uma maneira geral o Dr. Hümmerich, apesar
de não ter consultor náutico, interpreta com verosimi-
lhança a parte náutica da viagem de Vasco da Gama,
aceitando como base principal o c Rotei~o » . Também
consultou demoradamente as cLendas da lndia::., assim
como os comentários de H. Stanley na sua tradução
inglesa de 1869.
Começou o Dr. Hümmerich por notar que os comen-
tários das duas edições portuguesas do «Roteiro:. se
limitaram a tocar muito ao de leve na adiantada Arte
de Navegar que traduz a complicada rota de Vasco da
Gama. Também num dos seus estudos, o Dr. Hümme-
rich responde detalh'adamente a F. Dinis de Ayalla,
provando-lhe a falta de razão com que opina que as
cLendas::. se aproximam mais da verdade que o
c Roteiro:..
De facto, nos seus estudos, o Dr. Hümmerich foi
o primeiro a notar a benevolência- mais literária que
técnica- com que o académico Lima Felner nos apre-
senta as cLendas da tndia::.. E, é claro, estranha a
confusão que nelas se faz entre as viagens de Dias e
IV, IV] A VIAGEM NAS «LENDAS D A !NDIA>>
Janinfante, a ponto de o cabo de Boa E8perança ser
ainda desconhecido quando Gama partiu de Lisboa.
Parece que o Dr. Hümmerich, ao preparar o seu
trabalho de 1898, ainda não conhecia os sensatos comen-
tários com que Ravenstein acompanhou a tradução do
«Roteiro», publicada no mesmo ano. Mas conheceu e
comentou a tradução, publicada anteriormente, das
«Lendas», na qual Stanley admira a «boa fé, e pura
verdade», com que Gaspar Correia «Se refere ao que
viu e ouviu». O que o levou a considerar as narrativas
das «Lendas» preferíveis às outras.
Pelo seu lado, o Dr. Hümmerich discute largamente
a argumentação de Stanley, concluindo que a sua aná-
lise foi superficial. E assim, e com toda a razão, conclui
que, ao contrá~o dos admiradores das «Lendas:., da
sua comparação com as 011.tras fontes ressalta o seu
fraco valor histórico.
Já o professor Luciano Pereira da Silva também
concluiu que «não é possível harmonizar as «Lendas»
com o «Roteiro ». Mas nenhum destes dois autores
acentuou a impossibilidade de, sobre as nossas conhe-
cidas cartas de ventos, decalcar a rota que, contra
insistentes tempestades, as «Lendas» atribuem a Vasco
da ~a. Tão-pouco logrou fazê-lo Stanley, que, da SU:a
traduçao das .«Lendas:., não apresenta, como elucidação
natural, um mapa com a rota que, segundo as «Lendas:.
e não o «Roteiro:., ele considerou mais provável.
Como disse, na sua lógica orientação, o Dr. Hüm-
merich deu-se ao trabalho paciente de desfazer o auda-
cioso ataque de Ayalla contra o «Roteiro», que consi-
derou cum trabalho feito no gabinete:.. Ora, foi isso
o que aconteceu com as «Lendas:. , donde resultaram
os seus cdias de seis horas», que ninguém V'liu, e que
 ]NDJ A [ CAP.
só ·s eriam possíveis se algum dos nossos navegadores,
antes de Setembro, tivesse prolongado a bordada cente-
nas de léguas para ·s ul do Cabo.
1
Em cinco capítulos, o Dr. Hümmerich «aprecia
largamente e com toda a proficiência a argumentação
de Ayalla», confrontando datas e documentos. Donde
conclui que nada nos pode levar a preferir as épocas
assinaladas nas «Lendas» àquelas que o «Roteiro»
indica para as travessias do Atlântico e do Indico.
Enfim, o mesmo professor, servindo-se de argu-
~e~~s originais, conclui que a reconhecida incompa-
tibilidade entre o «Roteiro» e as «Lendas:. nos deve
levar definitivamente a pôr de parte tudo o que nelas
difere das !informações lidas no «Roteiro» Esta con-
clusão é confirmada pelas incompatibiltdades das
«Lendas» com as cartas de ventos, argumento de que
o Dr. Hümmerich se não serviu, só pelo facto de ser
estranho à Arte de Navegar à vela. Por esta razão,
apesar de ter considerado o «Roteiro» como fonte de
mais confiança, o Dr. Hümmerich absteve-se de repro-
duzir o mapa primitivo da rota, apresentado nas ante-
riores edições do «Roteliro», portuguesas e francesa.
Não deixou o Dr. Hümmerich de notar a diferente
localização que os vários autores dão à «conjuração»
contra Vasco da Gama, parecendo-lhe que não haveria
mais que uma «tradição oral», talvez derivada dos
requerimentos que as tripulações fizeram a Bartolomeu
Dias, já na costa sueste da África, confirmados pelo
facto de ele ter interrompido a sua viagem de explo-
ração no rio do Infante. Mas ele já tinha, para a levar
a Portugal, a «maior novidade» : chegara às Portas
da lndia!
IV, IV] A VIAGEM NAS <<LENDAS DA (NDJA>>
o Dr. Franz Hümmerich, que foi sócio correspon-
dente da Academia das Ciências de Lisboa, era pro-
fessor em Munique, quando faleceu, em Sett:mbro de
1930. Por essa ocasião o Dr. José Maria Rodrigues, em
sessão da Academia, fez, com toda a justiça, o elogio
dos seus trabalhos de investigação, que acabam de ser
citados, e que tanto interessariam o nosso país. O seu
discurso foi publicado em Coimbra, em 1931.
Os numerosos admiradores, ou crentes, que tiveram
as «Lendas da tndia» impõem algum trabalho de
critica, a qual, debaixo do ponto de vista técnico-
-maritimo, nunca foi feita.
Seria extensa uma análise completa das «Lendas
da tndia». Mas, para o nosso estudo, basta examinar o
que diz respeito às viagens de Dias e Gama.
Contra aquilo que sabemos pelas «Décadas», de
João de Bar.r os ·a primeira tentativa de passar o cabo
de Boa Esperdnça teria, segundo as «Lendas», sido
feita por um «Janinfante, estrangeiro», que, a pedido d~
D. João 11 armou em Lisboa «quatro caravelas», e foi
correr a ~sta da Guiné, navegando sempre à vista de
terra. A certa altura, achando os ventos contrários,
porfiou «em voltas, ora pera terra ora pera o mar, ~:n
grandes temporaes e tão grandes mares que lhe com1ao
os navios; e quando viu que os ventos erão geraes,
sem nunqua fazerem mudança, avendo quatro mezes
que aly andavão» , bordejando contra mares grandes
demais para «navegar com as caravelas», então Ja_nin-
fante , cedendo ao «muito bradar da gente», «arnbou
e se tornou a ElRey».
Então D. João 11 o teria encarregado de mandar
fazer «tres navios pequenos, grossos e fortes » para ir
 ÍNDIA ( CAP.
«tornar a descobrir este cabo da tão boa esperança
que me dais».
Como se vê, segundo as cLendas», Janinfante
teria encontrado só ventos contrãrios e portanto não
passam para sul da região do alisado' do sueste ' o
.
qual ternuna em alturas do Cabo, sem aqueles cgrandes
' palavra que as «Le~das» não citam- pelo de cabo de
temporaes».
Ainda se não conseguira, pois dobrar o Oabo. Nas
«Lendas» não se fala nem em Diogo Cão nem em
Bartolomeu Dias. Mas é sabido que este navegador
conseguiu ir costeando a África até que, cerca de uma
centena de léguas ao norte do Oabo se reconheceu
impotente para, bordejando com as 'suas caravelas,
romper perto da costa contra o vento alisado de sueste.
E, em lugar de perder «quatro meses», «Voltando ao
mar, e a terra», como as «Lendas» contam ter feito
J aninf8Jilte, meteu na volta de sudoeste e, tendo nave-
gado nessa bordada cerca de 300 léguas além da costa
da África, voltou no bordo de leste e dobrou sem a ver
a sua ponta sudoeste. Rumando por fim a norte, foi
entrar em 3 de Fevereiro de 1487, em uma angra, a
que pôs o nome de São Brás.
Ainda continuou reconhecendo a costa para nas-
cente e entrou em um rio a que foi posto nome do
Infante - que conservou- e que era o do capitão da
outr~ caravela. Por documento conhecido, sabemos que,
em fms desse ano de 1487 (Nota B), já Dias estava em
Lisboa.
Embora o cansaço das tripulações, com uma forte
corrente quente, contrária, e ventos desfavoráveis
tivesse imposto o regresso, é certo que Dias ·tinh~
descoberto cento e meio de léguas para além de um
Oabo ao qual, à volta, deram o nome de Torment080.
IV, IV] A VIAGEM NAS «LENDAS DA ÍNDIA»
Dias e Infante, de facto, chegando «às portas da
lndia», tinham dado um passo capital que as «Lendas»
ignoram. Mas D. João ll, reconhecendo-lhe a impor-
tância, já uma dezena de anos antes da partida de
Vasco da Gama, trocou aquele nome de Tormentoso-
Boa Esperança) que hoje ainda tem, embol"'a traduzido
em várias línguas.
Não foi Gaspar Correia mais feliz na sua narra-
tiva da viagem de Vasco da Gama, como se vrui ver.
Os navios da esquadra de Gama seriam «três naus
iguais», quando é sabido que a «Bérrio » era uma cara-
vela, navio maneiro, muito essencial para o reconhe-
cimento de portos novos, tendo só metade da tonelagem
dos outros dois navios.
De resto, desde que, segundo as «Lendas», toda a
parte sul de África ainda era desconhecida, a ponto
de depois se recear que «aquela terra atravessava o
mar, e não tinha cabo», seria imprudente só levar naus.
Eles iriam navegando, ainda em 1497, não «per
a:ltuJ:"las», mas sõmente pela cagulba» e pelas «sondas de
prumo», quando é sabido que o astrolábio era até ante-
rior à viagem de Bartolomeu Dias, na qual já fora um
prático famoso, o oficial de Sol Pero Dalanquer. E, sem
dúvida, aqueles cque vierão nas proprias naos do des-
cobrimento», como o «Clérigo Figueira», não deixaram
de ter notado que Gama já navegara com astrolábio.
Gaspar Correia ignorou também a jmportância que
tinha o conhecimento dos ventos dominantes.
Segundo as «Lendas», D. Manuel teria consultado
o conhecido astrólogo judeu Zacuto, não sobre astro-
nomia náutica, mas para lhe prever o futuro!
 530 ÍNDIA ( C AP.
Zacuto informara que a 1ndia ficav<a c:muito longe
desta nossa região» e que seria descoberta por c:dous
irmãos, nossos naturaes». Indicação que D. Manuel
segud.u, mandando acabar a construção das três naus,
e entregando o comando a Vasco da Gama e a seu
irmão Paulo. Mas, contra a versão corrente, Gama não
teria tomado o comando da nau «São Gabriel», mas o
da «São Rafael».
Contra o que se lê no «Roteiro» c:Crónlicas» e
c:Esmeraldo», as «'L enda'S» atribuem à , esquadra uma
partida de Lisboa em 25 de Março - por ser dia da
Anunci'ação de Nossa Senhora- e não na data
corrente, sãbado, 8 de Julho.
Não teriam escalado para aguada em Santiago~
mas c:fizerão seu caminho ao Oabo Verde» donde
seguiram «cortando largo pera tomarem a ' costa:.,
correndo «quanto podião pera o mar, donde era o vento,
por dobrarem a terra sem traba!lho» e a·s sim «navega-
rão até dar na costa:..
Esta narrativa da rota é de diffcil interpretação,
seja considerando os ventos em Março - favorãveis até
ao equador- seja em Agosto, mês em que a monção
de sul obrigou Gama à conhecida bordada a sueste.
Mas podemos aceitar que Correia se refere a uma
grande volta inicial pelo largo de África na qual não
, '
se tendo ido muito a sul, o vento geral de sueste teria
levado os navios, na volta da terra, a irem dar na
costa, bastante 'a norte do Oabo, 'Visto que, segundo as
c:Lendas::., foram c:dar na costa» já conhecida «da vi'a-
gem de Jamnfante». Este ponto poderia ser aquela
costa que Gama foi avistar a 4 de Novembro.
Até aqui é possível lançar a rota nos nossos mapas
de ventos, embora desconhecendo a data correcta em
·- --
IV, IV] A VlAGEM NAS «LENDAS DA ÍNDIA» 531
que Gama, segundo as c:Lendas:., foi c:dar na costa».
~. porém, licito atribuir a esta navegação uns dois
meses desde Oabo Verde, devendo assim jã se ter
passado o solstício de Verão, que então cafa a 11 de
Junho.
De novo c:se tornarão na volta do mar:., cem que
correrão muitos dias»; porém, na outra volta, a de
leste ainda foram encontrar a rosta de Africa. Ora
'
esta segunda bordada só custou a Gama quatro dias,
porquanto o c:Roteiro» conta que lançaram âncora em
Santa Helena a 8 de Novembro.
Em uma nova c:volta ao mar:. andaram tanto
c:oontra o sul, que quase nom havia no dia sol de seis
horas». O vento era c:muli poderoso e frio:., o mar era
c:muito temeroso de ver», e c:sempre tinhão tormenta:..
Como passava de c:hum mez que corriam nesta volta:.,
jã estariam, pelo menos, em fins de Julho, época em
que, segundo o «Regimento de ~vora », o Sol teria
atingido cerca de 17 graus de declinação norte.
Ora, um cãlculo elementar mostra-nos que, rom
ta:l declinação, seria preciso ir c: contra sul» além da la-
titude 67 graus, ou seja entrar no circulo polar antãrc-
tico, para os dias de sol a.sol só durarem c:seis horas».
Nesta navegação tanto para sul não poderiam ter
deixado de encontrar gelos flutuantes, o que sem dúvida
teria sido notado por J . Figueira no seu c:Diário»,
donde foram extraídas < a s c:Lendas». Do facto de não
terem sido avistados icebergs~ como de não terem encon-
trado os conhecidos ventos oeste, hã que concluir que
Gama não poderia ter passado para sul da latitude
de 40 graus, e que os dias de seis horas são pura
invenção de Correia.
~~ .- . -,
532 Í NDIA [ CAP.
Segundo as cLendas:., fizeram então a cvolta. à
terra, vindo de ló quanto podlião». Nesta quarta volta,
na qual teriam de consumir outro mês, como o de ida
para o largo, tor naram ainda a encontrar costa de
África, correndo «pera o mar», isto é, para sul. Por
este facto começaram -romo na viagem de Janin-
fante- a r ecear que aquela terra c atravessasse o
mar», não tendo «cabo». Contam, porém, as «Lendas:.
que Vasco da Gama, «segundo se presumio que hia
informado do judeu Zacuto» -não se compreende
como-, diria aos pilotos que «sem duvida elles acharião
cabo aquella terra, e alem delle muito mar:.. Apoiado
nisto, Gama resolveu repetir ainda outra «volta ao
mar», indo tão foi'a cque pudesse dobrar o cabo de
terra», rogando às tripulações «que tivessem esperança
em Nosso Senhor:., porque « O dobrarião».
Assim c·s e forão tanto metendo ao mar, que o
acharão todo em tormenta desfeita, com çerrações e
escuidões. E ,p or os dias serem mudto pequenos, sempre
parecião noute». cCom medo e trabalho adoecião,
porque também nom podiãa fazer comer, e cramavão
todos que a rribassem a Portugal, e não querião morrer
como gentes bestiaes, que por suas mãos tomavam a
morte». Os navios faziam já cmuita agoa», e as chuvas
eram ctão frias que os homens se não poddão bolir:..
Havia já quase cdous mezes que hião naquella volta:..
Deviam, pois, estar bem em meados de Setembro. Ora,
é sabido que o Sol, a 14 de Setembro, já tinha cortado
o equador, de modo que todos os dias do hemisfério
sul duravam mais de 12 horas, e tanto mais quanto
mais ao sul, de modo a atingirem 24 horas perto
do pólo .. .
IV, IV] A VIAGEM NAS «LE NDAS DA INDIA» 533
Assim, aquelas cnoutes grandes:., e os di~as cmuito
pequenos», em que «sempre parecia noute», são pura
invenção das «Lendas». E lenda é também o facto de,
apesar de passados seis meses desde Lisboa, ainda se
não notarem queixas de falta de água.
Então Gama meteu pela terceira vez na volta da
terra, sinal de que o vento, opondo-se à navegação para
nascente, oontinuava soprando de sueste. Mas na lati-
tude alta que sugerem os cdias pequenos» das «Lendas»,
já só poderiam dominar ventos de oeste, que davam
bordada franca para leste, sem ra necessidade de chir
de ló quanto pudessem».
Foram então- já estariam em Outubro -avistar
chuns piquos de terra, que parecia que tocavão as
nuvens». A praia era ctudo penedia», com cbahias tão
grandes, que lhe não vião a terra de dentro», e com
«bocas de grandes rios» com «grandes corrente» cpera
o mar».
Correndo a costa ctrez dias», chegaram à 'b oca
cde hum grande rio», cuja entrada era funda, indo
surgir lá dentro. Por este rio acima navegou Nicolau
Coelho no batel «mais de vinte legoas e se tornou sem
achar nada».
Que rio poderia ser este de entrada tão fácil? Seria
aquele a que Dias chamou rio do lnfante1 Decerto
não seria a aguada de São Brás, primeiro porto < a lém
do Cabo onde Gama foi fundear, mas onde não há rio
tão importante.
Depois de feita aguada «correrão ao longo da costa»
sem nunca «achar gente nem barcos no mar». Assim,
com ventos «potentes», «gastarão o verão daquella
terra». Acalmou depois o vento, co que foy em Novem-
bro». Há aqui grande contradição, porque o cverão
 [ C AP.
534 lNDJ A
daquella terra» compreende os meses de Dezembro e
Fevereiro.
Foram depois cna volta do mar:. até cperderem
de vista terra:., e surgiu outro temporal, porque então
entrava o Inverno cdaquella terra». Ora o Inverno era
ali de Junho a Setembro e é sabido que Gama passou
em Dezembro na costa do Natal e em Janeiro no rio
dos Reis.
Por causa destas novas tormentas voltaram a falar
ao capitão-mor em arribar para o crio grande». O que
Gama recusou dizendo que quando safra de Lisboa
«prometera a Deos, em seu coração, de nom tornar
a traz hum só palmo de caminho que andado tivesse:..
Como o vento era cgrande furioso », surgiu co grande
trabalho de dar à bomba», de modo que, faltos de
crepouso», a c:gente começou a adoece.r e morrer dos
grandes trabalhos». Ã insistência dos c:grandes reque-
rimentos que arribassem», o capitão-mor respondia
que c:não avia de tornar atraz ainda que cem mortes
visse ante os olhos», visto que já c:tinhão dobrado o
cabo das Tormentas». Ora este cabo, segundo as pró-
prias c:Lendas», ainda ninguém, nem Janinfante nem
Gama, o tinha visto nem, portanto, baptizado com tal
nome .. . Gama esperava que confiassem cem Deos, que
era piedoso» e clhe daria bem tempo».
Gama continuava c: jurando por vida DelRey, seu
senhor, que daly, donde estava, nom tornaria atraz
hum só palmo, ainda que tivesse as naos carregadas
douro, como não levasse recado do que vinhão buscar».
Na única tempestade que o c:Roteiro» cita, e que
só durou um dia, de 12 para 13 de Dezembro de 1497,
não se falou em arribar a Portugal, mas correram
c:a popa com o traquete muito baixo:.. Era o que Gama
IV, IV] A VIAGEM NAS «LENDAS DA 1NDIA» 535
teria de fiazer se o que contam as d...endas:. se tivesse
passado. Mas acresce que os temporais por ali são geral-
mente de oeste, e que o correr ou arribar seria para
nas cente, isto é, a caminho do Mar da lndia.
Em presença dessa nova contrariedade, fruto da
imaginação de Gaspar Cor.reia, teri-am as t ripulações
começado a combin·a r revolta contra os capitães. Do
que, tendo Gama sido informado chamou à câmara da
nau c:trez marinheiros» e o «mestre e piloto» e llies
«mandou deitar ferros dentro da câmara». Então, to-
mando «quantas cousa·s tinhão de arte de navegar», tudo
co deitou ao mar», dizendo às tripulações que, dali em
diante, «SÓ Deos era o mestre e piloto, que os havia
de encaminhar e salvar por sua misericórdia se o
merecessem». E acrescentou: c:se não achar recado do
que venho buscar, que a Portugal nom heide tornar».
Ora os instrumentos deitados ao mar- que seriam
as bússolas, únicos que as c:Lendas» ·a trás citam- não
fariam falta só para regresso, antes ou depois de atin-
gida a lndia, pois eram indispensáveis para se ficarem
sabendo os caminhos de ida e volta. De resto, as
c:Lendas» não contam que se tivessem obtido outros,
nem em Melinde nem na lndia. Este gesto de deitar ao
mar as c:coisas» de navegar é absurdo, apesar de ter
sido considerado a sério por alguns escritores, como
Osório, Ruge e outros.
O fantástico temporal contrário abrandou, emas
os navios fazião tanta agoa, que não largavão nunqua
mão das bombas:..
Escassos de cagoa pera beber» cforão na volta da
terra», e «Caminharão de longo della muitos dias», c:já
em Janeiro do anno de 498:..
 ÍNDIA ( CAP.
Como se vê, a viagem desde Lisboa até aqui teria
durado dez meses.
«Hum dia amanhecerão na boca de hum rio grande
em que entrou o Capitão-mor, que sempre andava
diante, e todos ent~arão » . Ora, ao contrário, tinha de
ser sempre a caravela de Nicolau Coelho, navio mais
maneiro, aquele que iria na frente, nos casos de porto
desconhecido.
As tripulações, primitivamente de 240 homens,
estavam reduzidas «a cento e cincoenta homens, que
todos os mais erão mortos».
Apesar de haver aqui «praya e maré pera pôr os
navios a monte », deram-lhes «pendores no mar». Foram
soltos os «presos», com a condição de, chegados •a Lis-
boa, serem apresentados «'a ElRey assi nos ferrolhos».
E , por a nau de Nicoltau Coelho não ter «Corregimento
por ter mUJitos liamos quebrados e curvas», assentaram
«de o desfazer». A nau «São Miguel!» teria sidc;> ali quei-
mada; o que é evidente confusão de Gaspar Correia,
por ser sabido que houve de facto uma nau queimada,
mas foi a «dos mantimentos», e em São Brás.
Neste .rio, a que deram o nome da Misericordia,
.começou a gente a adoecer, crescendo-lhes as «gin-
givas» e apodrecendo: era o escorbuto. Aqui assentaram
«hum padram de pedra marmore».
Na investigação sobre que rio teria sido este, há
qu~ considerar que Gama esteve, para aguada, na Boa
Paz, onde não podi·a entrar. Depois demorou-se, de 25
de Janeiro a 24 de Fevereiro, em uma das bocas do rio
Zambeze, à qual deu o nome de cBôos Signaees».
Aqui lhe adoeceu muita gente com escorbuto, e deixou
o «padram de Sam Rafael!». Mas a nau tinha sido
queimada em São Brás, e a vi•a gem desde este rio até
IV, IV] A VIAGEM NAS «LENDAS DA ÍNDIA>> 537
Moçambique levou de 24 de Fevereiro até 2 de Março,
ou sejam só seis dias, para vencer uma distância de
cerca de um cento de léguas.
ora; segundo as «Lendas:., tendo Gama partido
do rio da Misericordia, ainda navegou «por espaço
de dias» até que foram passar à cvista dos baixos do
pracel de Çofala». Depois encontraram um czambuco»
mouro, que os pilotou durante «mais de vinte dias»,
chegando a Moçambique «ao fim de Março».
Com estas indicações, pela duração da viagem e
pelo facto de terem passado ao largo de Sofala, só se
poderia concluir que Gama esteve em um rio grande,
ao sul, que não há. Resta concluir que, nas cLendas:.,
Correia confundiu no rio da Misericórdia factos passa-
dos no rio dos BO'n8 Sinais, com outros, como a queima
da nau, passados anteriormente e muito mais ao sul.
Como em Moçambique se falava, não a língua de
«Um cafre de Guiné» - como contam as «Lendas:. -
mas a língua dos Mouros, foi possível obter infor-
mações. E, fosse por descobrirem que as naus eram
cristã·s, fosse por cobiça de as tomarem, o certo é que
o Xeque clogo em seu coração armou traição contra os
nossos». E, por a aguada ser na terra firme, ainda
quiseram impedir os nossos de a fazer.
As «Lendas» contam que foi à saída de Maçam-
bique que uma das naus «deu sobre huns baixos», a
que deram o nome «de Sam Rafael». Há aqui nova
confusão entre a «ponta daquella Hha» onde a «Bérrio»
tocou à entrada no porto, e o baixo onde a nau
«São Rafael» esteve encalhada, e que .sabemos, pelo
«Roteiro», e mapas antigos, f<icar ao norte da ilha
de Zanzibar.
 538 ÍNDIA ( CAP.
A bordo das naus ficara um piloto de Moçambique,
o qual foi posto a ferros, «porque lhe nom fugisse ».
Surgiram junto da ilha de cSam Jorge» até que
«Vindo o vento, se partirão ao longo da costa». O piloto
ainda quis levá-los a Quíloa, mas, porque clhe deu
vento contrário», ancoraram «sobre o porto de
Mombaça».
Aqui o Rei, já prevenido por crecado » do Xeque
de Moçambique, estava «já preparado para fazer trai-
ção aos nossos», e mandou um barco grande carregado
de frescos, como «verdura e laranjas», tão úteis para
os doentes. E, assim, convidou Gama a entrar no porto,
para o que lhe mandou «dous pilotos», instruídos para
darem com os navios nos l;>aixos, «e se perderem».
Aqueles que Gama mandou ·a terra foram apresentados
a «huns Mouros, que fingião que erão christãos».
A este pedido para entrar acedeu o capitão-mor.
Porém, levada a âncora, a sua nau com o «traquete »
içado, cnunca quis fazer cabeça a indireitar pola barra»
e «hia descamdo sobre o baixo, polo que o mestre
mandou largar ancora, e amainou depressa». Esta
manobra alarmou os pilotos mouros, que conseguiram
fugir em uma barca «pera teiTS.». <Donde Gama reconhe-
ceu a traição que lhe estava preparada. Este incidente
vem contado anà!logamente, tanto no cRoteiro» como
nas cCrónicas».
Nessa noite a esquadra suspendeu, e foi correndo
a costa, indo cem fim d' Abril de 1498» surgir defronte
da «Cidade» de Melinde, entrando depois a barra, e
vindo de terra um piloto, que «meteo as naos em seo
logar, de fol"a de outras muitas naos» que estavam no
porto, embandeiradas.
IV, Iv] A VIAGEM NAS <<LENDAS DA INDIA » 539
Segundo as c Lendas», NiCO'lau Coelho teria ido
visitar o Rei, o que não consta do «Roteiro», como não
consta das «Crônicas» que Gama tivesse ido a terra,
ou o Rei viesse a bordo, ao contrário do que se lê nas
«Lendas».
Gama queria partir logo para a tndia, mas foi
informado pelo Rei que a época própria da «monção
pera navegar» não era «em fim de Mayo », mas era cno
mez d'Agosto », porque havia na costa da tndia
«grandes tormentas com que se perderião». No entanto,
é sabido que se fizeram tais viagens em Maio, e as
cartas de ventos mostram que nesse mês já dominam
no Indico ventos entre sudoeste e oeste. No «Roteiro»
lê-se que Gama chegou à í ndia em fins de Maio.
Em M elinde teria m embarcado «dois pilotos», um
para cada uma das naus, além de outro piloto de
Moçambique, que ainda tinham preso a bordo. E na
véspera da partida foram os capitães a terra despe-
dir-se de El-Rei, o qual os acompanhou às suas naus,
«Vendo como metião os bateis dentro », e assim se
despediu. O que constitui novidade que escapou aos
cronistas e que é impe.r doável.
Assim, a 6 de Agosto largaram as duas naus de
Melinde. «Navegando com bom tempo em vinte dias
houverão vista de terra», «que foy hum grande monte
que está na costa da India no Reino de Cananor, que
os da terra 'Chamão em sua lingua o Monte Dely».
Segundo Barros, a travessia levou «Vinte dous dias» e,
segundo o «Roteiro », 23 dias sem verem terras. A pri-
meira terra avistada não teria sido o monte Dely, que
tem só 150 braça's de altura, mas, como era natural,
·a cordilheira dos Gates, com mais de mil, à qua<l o
 540 ÍNDIA (CAP.
cRoteiro:. chama uma cterra-alta:., inconfundível com
aquele «monte » isolado na costa.
Chegados à praia ccorrerão ao longo della», indo
surgir em frente de Capocate, onde «começava a cidade
de Ca!lecut».
Como é sabido, os Mouros, com cmuyto dinheiro
e ricas joyas», peitaram as autoridades indianas,
criando a Gama grandes dificuldades e, até, procurando
conseguir a destruição da esquadra.
Segundo as «Lendas», Nicolau Coelho fora enviado
a terra, em visita ao cRey de Oalecub, a quem afirmara
que a primitiva esquadra de Vasco da Gama se
compunha de «cincoenta naos », da qual Gama «com
tormentas » se perdera. Trata-se de uma mentira inve-
rosímil, pois seria sabido que à África só teriam
chegado aqueles dois- ou três- navios.
Também nas <Lendas», e de acordo com o que
contam os cronistas, se lê que Ga:ma estivera alguns
dias detido em terra, tendo até mandado ordem a seu
irmão Paulo para retirar com os navios para Portugal,
a fim de que se n ão perdesse a notícia de um acha-
mento do caminho para a India, por mar. Teriam
mesmo chegado a fazer-se de vela, simulando a reti-
rada. Mas o Rei, sabendo do caso, teria chamado Gama
à sua presença, e lhe pedti.ra cmuitos perdões, dizendo
que o enganarão com máos conselhos». A seguir o
capitão-mor embarcou ccom to'd os os seus», prometendo
que, à sua volta a Calecute, ce'lle tomaria vingança de
quem lhe mal fizera ».
Logo que houve vento, cas naos se fizerão à veia,
dando muitos louvores a Nosso Senhor». E assim
foram «Correndo a costa com terrenhos e virações, o
que era em Novembro de 498 annos».
IV, IV] A VIAG EM NAS «LENDAS DA ÍNDIA>> 541
Fizeram escala «em Cananor», cujo Rei lhes
mandou presentes, demorando-se ali «tres dias tomando
o que h avião mister», tendo os capitães ido a ter.r a
visitar El-Rei. Mas desta escala, pouco provável, não
há notícia, nem no «Roteiro » nem nas cCrónicas:.. Nem
Gama cairia em visitar mais aqueles reis.
A 20 «de Novembro» largaram de Cananor, e
cfizerão seu caminho para Melinde, e sendo afastados
da costa quorenta ou cinquoenta legoas» - o que seria
na altura das Laquedivas - «lhes acalmou o vento»,
pelo que, por conselho dos pilotos, tornaram à terra,
e se «forão metter em Angediva», onde havó.a cboa
·a goa e lenha». Esta arribada é, também, pouco natural.
As cLendas» inserem aqui uma interessante descri-
ção das naus da India, com o seu «mastro:. único, pelo
que as podemos identificar com os pangaios - a que já
se referiu Oamões - , barcos que •a inda se vêem no
oe'eano Indico, o qual eles atravessavam s6 a favor das
monções. cApontão muito pol•a bolina, e correm muito
à vela». Assim o teria verificado Gaspar Correia na
India, e é verdade.
Em Angediva veio a bordo o «Capitão-mor de mar»
do chefe de Goa, Sabango, o qual era judeu natural de
Granada, e pretendia informações. Mas foi preso e
açoutado, sendo conservado a bordo e tornando-se
depois nosso amigo, como se ·l ê nas cCrónicas», tendo
tomado o nome de cGaspar da Gama».
Tendo os pilotos afirmado que cera tempo de
mon,.lio» os navios «Se fizeram à vela atravessando
~ ' '
o golfão, caminhando para Melinde, a que forão com
bom t empo sem contraste, e chegarão a Melinde, a
oito de Jane'iro », de 1499.
 542 ÍNDI A
PROVÁVEL DE
[ A P.

O «Roteiro:. e os cronistas concordam em que

esta travessia entre Angediva e Melinde levou mais
O DA G
de três meses, pois tendo partido a 5 de Outubro só
chegaram a 7 de Janeiro, tendo durante a viagem-
- provàvelmente traçada muito pelo sul -tardado a
monção de nordeste, pelo que adoeceu e morreu mUiita
gente com escorbuto.
Foram bem recebidos em Melinde, tendo o Rei
vindo à praia, tanto que «a agoa lhe chegava aos pés»,
recebendo com abraços os «Capitães», que o acompa-
nharam «aos paços». Pediram-lhe «pilotos» que os
acompanhassem a Portugal, o que foi logo concedido.
Mas, teriam eles necessidade de pilotos, sequer até ao
Gabo? Contra o que informam outras fontes, os capi-
tães nem desemba.r caram.
Abastecidos os navios de água e «refrescos:. para
a viagem, fizeram-se de vela a «vinte de Janeiro de
499». O «Roteiro» dá para esta partida a data de 11.
«Forão assi correndo a costa», indo com eles um
clérigo «Chamado João Figueira», o qual em Melinde,
«Cuidando que havia de morrer deo ao Capitão hum
quaderno em que tudo tinha escrito», o que continuou
até ao fim da viagem. Desse caderno «se fizerão muitos
treslados», um dos quais chegou ao conhecimento do
autor das «Lendas», e por ele foi seguido.
Navegando «Os nossos» com «bom vento e des-
cansados nos bons Pilotos que levavão», não quiseram
tocar em Moçambique. Contudo, segundo o «Roteiro»
cita, houve a demora no~ «baixos de Samrrafaell», onde
queimaram a nau do mesmo nome, sendo o baixo
marcado nos mapas antigos entre as ilhas de Pemba e
Zanzibar. Também é notório que Vasco da Gama tocou AGEM DE ID 1497-98
S GERAIS À IDA ____. CORRENTES

S VARIÁVEIS QUO
-
VENTOS À VOLTA •----
IV, tv] A VIAGEM NAS «LE NDAS DA l NDlA» 543

no ilhéu 8. Jorge, ao largo de Moçambique, onde

puseram chu padram::..
Ao largo de Sofala, segundo as «Lendas», passa-
ram cprestes pera amainar», e de noite ccom poucas
velas:., por causa da cforte tormenta de vento», que
às vezes lá se apanhava. Seriam as monomocaias, em
que Gaspar Correia ouvira falar.
AB naus, apesar de levarem pouca vela, ccorrião
muyto», por a corrente ser forte e favorável.
Os pilotos mouros - que não é de crer conhe-
cessem ·c osta ou ventos para o sul de Sofala - iam,
segundo as «Lendas», muito chegados à terra contra
a opinião dos nossos; mas informavam que era então
co verão daquella terra», e que cnão havia vento do
mar», que causasse medo, não «havendo chuva nem
tormenta». Fora, contudo, pela mesma época do ano
que, segundo as «Lendas», Gama ali apanhara conti-
nuadas c tormentas» ...
cSem algum contraste passarão a Cabo de Boa
Esperança à vista delle ». Segundo as cLendas», seria
esta a primeira vez que mareantes portugueses o viam,
não nos contando Correia como lhe fora dado tal
nome ...
Meteram logo na «volta que fazia a outra banda
de Portugal». cEntão houverão os pilotos e mestres
conselho sobre o caminho que farião, resolvendo
ccorrer polo mar direito pera Portugal».
cSendo na linha lhe derão chuveiros e calmarias,
com que conhecerão os nossos que erão em Guiné».
Correia continua insistindo em que os pilotos de Gama
ainda não observavam latitude pelos astros!
«Então lhe derão ventos contrarios que vam do
estreito de Gibraltar, com que forão na volta do mar
544 INDIA [CAP. IV, rv] A VIAGEM NAS <<LENDAS DA lNDIA» 545

todo lo quanto puderão pola bolina; e assi indo com Coelho iá chegou a 10 de Julho, e não em nau, mas na
muyto trabalho da bomba, que os navios fazião agoa sua caravela cBérrio».
com força de hirem pola bolina», foram navegando Perde pois veracidade a afirmação das cLendas»,
para noroeste, com o conhecido vento alisado de nor- sobre a notícia de o descobrimento da tndia ter chegado
deste. Cortaram no mar a região de «huns limos ruivos a Lisboa só em princípio de Setembro, levada por
que havia muitos que cobnião o mar, que tinhão a folha chum caravelão» cujo patrão, Arthur Rodrigues7 teria
como çargaço, o qual nome lhe poserão e lho chamarão partido da Terceira ainda antes de as naus terem
pera sempre». Parece que Correia pretende que foi entrado na angra em «fim d'Agosto».
neste regresso de Vasco da Gama que se praticou pela Resta, pois, concluir que, do princípio ao fim, a
primeira vez esta volta larga, e que foi só então que os versão do Descobrimento da índia, apresentada nas
Portugueses conheceram o Mar de Sargaço/1 cLendas da tndia», peca por inverosimilhança, absurdos,
Tendo conhecido pela cestrella do norte» que falsidades. Elas são incompatíveis com o «Roteiro» e
cestavão perto de Portugal», correram caté haverem .
cronistas, e só uma falta de análise, embova superficial,
vista das ilhas». Na Terceira «surgirão em fim explica que a narrativa de Gaspar Correia tenha s1do
d'Agosto», com as duas naus «tão velhas, que era tomada a sério, e como História, por historiadores
causa d'espanto como se sostinhão sobre o mar:., e isto conceituados.
apesar de terem sido construídas de propósito para
esta viagem! Trata-se de um detalhe que os cronistas
não citam e que, provàvelmente, Correia copiou de
alguma das naus em que ele regressou da lndia.
Tinha havido na longa viagem cmuyta gente
morta, e outros doentes que morrerão chegando a
terra, onde também Paulo da Gama faleceo», «tendo
cahido de cama em Guiné, onde adoeceo toda a gente».
Como se vê, e é pura invenção de Correia, a viagem
entre Melinde e os Açores teria levado csete meses:., e
,s em as escalas que Gama de facto fez, em São Brás e
em Santiago. Ora, como as poderia ter omitido o padre
Figueira no seu Diário?
As duas naus só teriam continuado a viagem depois
de reparadas, e com mareantes dos Açores. Segundo
as cLendas», chegaram a Lisboa cem dezoito dias de
Setembro do ano de 499». Contudo, é certo que Nicolau
3S

'
ÍNDICE
 PÁ-GINAS
PREFÁClD . ........ .. . .. .... ..... . .. .. .. . . .. . ..... ....... ... . 9
O ambiente naval de há meio século ... .. .. . . 11
Síntese ·biográfica naval do almirante .. ... . 14
A prática da navegação à vela e a crítica
das navegações antigas . .. .. .. .. . . .. ... . .. . . 18
Os divros de derrotas ~ do almirante em
navios de vela ou mistos, navegando à vela 20
«Uma 1-egata no alto mar> .. . .. .. .. .. ... .. .... . 36
Actividades f or a do serviço. Trabalhos geo-
désicos e demarcações de fronteira. Comis-
sões de cartografia do Ul tramar .. . .. . .. . 45
A primeira viagem aérea navegada : Lis-
boa-Rio de Janeiro ......... ....... .. .. . .... .. 46
A <:rítica ná utica das viagens de descobri-
mento 48
Síntes de uma Doutrina Náutica dos Des-
cobri mentos .. ...... .... . . ... ... ....... ....... . .. . . 56
Plano da Obra . ... ... .... .. .. . . ... ...... .. . .... ..... . 83
ABERTURA 87
Infame Dom Henrique (1394-1460) 89
O monumento do ilhéu das Rolas ... 93

CAPÍTULO I
A TÉCNICA NA
N.AUTI CA DOS DESCOBRIMENTOS 97
I - A técnica náutica e a história dos
Descobrimentos 99
Falta de preparação náutica dos cronistas
e historiadores das navegações pioneiras 99
O descobrimento dos Açores . .. .. . .. .. . . . . .. .. IC4
 l NDI CE 551
550 A NÁUTI CA DOS DESCOBRIMENTOS

PÁGINAS
PiGIN.A.S

Bartolomeu Dias ... . . .. . .. .... ... ... ..... . ... ..... . . 109 V - Cartas rectangulares 149
Colombo .. .... ....... . ... .... .. ...... ... .. .. .. .. . .. .... . IJI
Arnérico V espúcio ... .. .. ............ . ..... . .. . ... . 112
Evolução da carta de latitudes reduzida
Equívocos náuticos. Erros históricos . .. .. ... . . i 13
Os Portugueses n·ão f oram «a a certar» ou carta de Mercator e o «Tratado da
116":
Sphera » . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149
A carta portuguesa chamada «quadrada» do
ll -A Astrologia na Península 119 tempo do Infante . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . J 50
Pedro Nunes e as c cartas de marear» . . . . . . 151
Os Mouros e a Astrologia na Penínsul a ... .... 11.9
A ccarta redu zida> de «latitudes crescidas» 156
O uso do astrolábio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . J 20
O diário da Tra vessia Col ombo-Pinzon-La
Cosa .... . ..... . .... ....... . ... .... .... ..... .... ... .. 122
O famoso «Secreto de la longitud» ... .. .. ... . . 124
Adiantamento da arte náutica em Portugal 126
VI - A s caravelas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 159

m- O início da navegação astronómica 127 O tudo do comandante Quirino da Fon-

seca sobre a caravela portuguesa e os
A abertura dos oceanos e os caravelistas desenhos da caravela primitiva de Roque
portugueses . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127 Gameiro 159
A aplicação da Astrologia à navegação. O «P as de documents, pas d'histoi re» ...... . . . 162
astrolábio náutico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . I 30 O chaveco m.ouro .. . .... . .. .... ... ... .. .. . ... . . ..... . 162
Observação do Sol . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . I 31
Como vi,rariam de bordo as caravelas. O
«embolsar:» das velas das caravelas . . . . . . 163
IV - Astrolábios e quadrantes 132 A s caravelas e os a ctuais caiques. A cara-
vela transoceânica. As vergas n as cara-
O astrolábio plano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . J 32
velas .... .... .. . .. . .. .. .. ........ . ..... .. ...... . .. .. . 164
O cLibro del Quadrante:) nos «Libros del
A caravela e o pangaio . .. ....... . .. ... . ... ..... .. 165
Saber» .. .... ... .. .. . ... ... . . .... .. . ...... ..·. ..... .. 134 ·
As velas das caravelas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 168
O astrolábio simplificado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . 137
Os Mouros e a navegação astronómica . . . . . . 137 A caravela e o .:caravo» mouro .. ...... ... ... . 171
Uso do astrolábio no mar. ObservaçõeS O ccambar» das velas nas caravelas . .. .... .. 173
solares ...... . .. ........ ... ....... . .... . . :·.. . ... .. . f · 138 A manobra de virar de bordo . . . . . . . . . . . . . . . . . . 177
O falso prestígio da Estrela do Norte . :.·. .. ··143 Caravelas «<atinas» e caravelas «redondas».
Experiências do professor A. Barbosa com Ca.ravela·· cde Armada» .. .. ... .. .. . .... . .. . ... . 178
o astrolábio em terra . .... .. . .. . .. ......... . .. :. 147 O regneso da Guiné pelo mar dos Açores 183
Conclusões sobre o uso do astrolábio segundo . Conclusões .... . .. .. ..... ... .. . .. .... .. ... .. . . ... ... .. . . 189
prática pessoal com o instrumento no mar J 48
552 A NÁUTI CA DOS D ESCOBR I MENTOS JNDfC E

CAPÍTULO I1 PÁGINAS
PÁGINAS «Relation des côtes d'Afrique> cfu VH!ault
A ESCOLA , PO MAR LARGO e as viagens de franceees de Dieppe ..... . 242
ATLANTICO ..E .GOSTA DE .ÁFRICA «Le Canarien» de Gravier e as viagens do
195
normando Béthencourt ....... .. . ....... ... ... . 242
I - Açores. A volta do mar largo . .. ..... . «Quem passar o cabo Não ou voltará ou
197
não» ........ .. ......... ... ............... . ........ .. 245
PrimeÜ'a revelação da cap2cidade dos P or- O Mar Tenebroso das crónicas .... ... . .... .. . 246
tugueses como navegadores do alto mar 1.97 O Mar Tenebroso à luz da ciência náutica 248
O «Libro dei Conosçimiento:. ........ .. ....... . 199 O exame dos ventos e correntes entre o cabo
Arquipélago da Madeira nos «portulanos» 202 Bojador e a Guiné nas> actuais «Pilot
Arquipélago dos Açores nos «portulanos» . . . 203 Charts :~> . .... .. .......... .............. ... .......... . 248
Açores nos mapas do século xv .............. . 207
Objectivos do Infante para além das Caná-
Valor náutico dos «portulanos» .............. . 209
rias e cabo Bojador .......................... . 250
Conjecturas náuticas sobre a descoberta
mais provável dos Açores . .............·.. .. 211 O Infante e os seus conhecimentos de Astro-
Conclusões ......... .. .. .... .. .... ............... ... .. .. . 221 nomia ... ..... ........... ....... . .. .... ........ ...... . 252
Notas relativas à :descoberta dos Açores .. . 226 Conjecturas prováveis do Infante e reso-
lução final do problema da navegação do
alto mar. A Escola e Estação Naval de
IT- Cabo Bojador. A volta do Mar de Sagres, p onto de reunião dos pilotos e
Baga ou de Sargaço .. .... ........ . 234 outros homens do mar com aproveitamento
da ciência dos doutores . e da arte dos
Em 1434 Gil Eanes estendeu a navegação marítimos mouros que ficaram . em Por-
da costa de África para além do cabo tugal .... . ........................................... 254
«Buyeder» .. . . . .. . . . . . . . .. .. .. .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 235
O Mar de Baga ou de Sargaço na carta de
Interpretação errcda dos cronistas e histo-
Bianco de 1436 e a ida dos caravelistas
riadores. Recurso ao conhecimento dos
ventos gerais do Atlântico ..·................ 235 do Infante aos Açores .. .. .. .. . .. .. . .. . .. .. .. . 256
Viagem de H anão, partindo de Cartago .. .. .. 237 A Volta do Mar Largo e o segredo que a·
Viagem de navegadores fenícios partindo guardou . . . . . .. . .. . . . . . . . . . . .. . . . . .. . . . . . . . .. . .. . . . . . 257
do Mar Vermelho .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 239 A passagem do cabo Bojador com a ida dos
Viagens dos genoveses Vivaldo e do catalão mesmos navios do Infante pelos Açores
Ferrer ...... . .. ........ ............. . . ......... ... . 240 simboliza uma conquieta definitiva da
D'Avezac e as suas categóricas conclusões. Humanidade .. ............ ... ............... . .... :. 261
O frade m~ndicante e :a sua narrativa Significado mais geográfico que r omântico
no «Libro de! Conosçimiento de Todos los
da passagem do cabo Bojador . . . . . . . . . . . . . . . 266
Reynos» . . .. . . . . .. .. . . .. . .. . . . . . . .. .. . .. . . . .. . .. . .. . . 24 J
Nuno Tristão e o Mar de Sargaço ........ .... 268
554 A NÁUTICA DOS DESCOB RIM ENTOS IN D J C. E 555
PÁGINAS PÁGINAS

i l l - Cabo de Boa Esperança. A Volta Colombo, Bartolomeu Dias, D. João II e · a ''

do CaJJo ...... .. ..... .... .. ... .. ...... .. . 271" escolha do meridiano limite do hemisfé-
rio português ..... ...... ... .. ... .... . .... . ... .... . . 302
O plano português de · ir à .f ndia, a nterior Indícios n{) mar dos Açores de terras a
ocidente . .. .. .. ..... . .... . . ... ........ ..... ...... . · ·· 306
a D. João li . . .. . . . . . . . . . . . . . ... .. . .. . .. . .. .. . . . 272
Trabalho metódico e progres.<>ivo da ex plo- Reconhecimento do Atlântico Sul em repeti-
ração ao largo da costa ocidental de · dae viagens . .... ...... .. .. .. ....... . ............. . 309
África em busca da passagem para a O Tratadb de To:rdesilhas não foi documento
só concebido n o gabinete. Obedeceu à orien-
Oriental e 1ndia . .. ........... ... ... ..... ....... ~ in
taçã.o de quem conhecia o Mar do Sul.
Bartolomeu Dias e os cronistas . . .. . .. . .. ... . . 274
Proba.bilid'a des de um pré-descobrimento
Rota conjecturai seguida na viagem de Bar-
de terras no quadrante SW do Atlântico
tolomeu Dias para além do termo das de
Sul .. .. .. ............ . ...... ............. . ......... .. . 312
Diogo Cão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 275
Os cTrese dias:. da volta do mar de Barto-
lomeu Dias desde a angra das Voltas . . . 277
Reconhecimento da costa do Cabo e identifi-
cação dos pontos visitados . . . . . . . . . . . . . . . . . . 277 CAPÍTULO III
O rio do Infante . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 279
AMÉRICA 315
O padrão de S. Gregório . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 280
Viagem de regresso de Bartolomeu Dias.
Cabo do Infante e cabo das Agulhas. O I - A intervenção portuguesa no des-
cabo Tormentoso ou de Boa E sper ança. 317
~ escalas de Bartolomeu Dias . . . . . . . . . . . . 281
cobrimento da América do Norte
Bartolomeu Di·a s, Pero· Dailanquer e a Volta
do Sudoeste . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 285 Cristóvão Colombo, piloto portu guês que, em
Resultados da viagem de Bartolomeu Dias Portugal, adquiriu conhecimento da exis-
sob o aspecto náutico. Reconhecimento dos tência de terras n o Atlântico Ocidental.
ventos gerais do Atlântico Sul. A futura Decla rou ter ido <várias vezes:. à M ina 317
V.olta do Cabo .. ..... .. .............. ......., . .. .. 287 .· Erradas noções atlân ticas e a Arte de Nave-
gar d~ P ortugueses .... . . ... ..... ..... .. ..... . 319
A caravela portuguesa, a nau, os portulanos
IV- Tratado de Tordesilhas ..... .. .... ... . '300 c:quadrados», os «regimentos:. astronó-
rniCOE!, o conhecimento dos « alísios :~>, a
A «raya», 370 léguas a poente das ilhas de c:descoberta do mar> . ......... .... ..... ..... . .. 321
Cabo Verde, e a pre'Yista deJ;l'_larca~ com Demorada preparaçã.o náutica e átlântica
c:torres> em terra firme ou ilhas que at,ra- em descobrimentos sucessivos ............. .. 326
vessasse ................ ....... .. ... .... .. .... .... ... · 300 Colombo e a febre portuguesa de descobrir
P{)sição do Brasil em relação · à «raya» . . . . . . 301 . '; ~ terras .......... .... ... .. ... ... . .............. ; ...... . 326
 A N ÁU TI CA DOS D ESCO BRIM ENTOS )N DI C E ' 557

PÁGINA! PÁGINAS
O «noroestan da agulha e o erro· de Colombo As sucessivas viagens de Colombo e o hemis-
descaído 200 léguas para o sul, julgan- fério po:r:bJguês. Discussão náutica das
do-se, n as Antilhas, estar na mesma suas rotas . ............ .. ........... ... ........... . . 349
«altur de Castela ... ... .... .. ... .... ....... . 327
A ocupação dos Açores, a possibilidade de
ID- América Vespúcio 360
navegação no Atlântico Centr al. e exis-
tência de terras a oeste .... . .. . ......... ... . 32 Falsa reputação de Vespúcio como descobri-
Quando em 1492 Colombo largou das Caná- dor do Brasil e da América .... . ...... . .. . 361
rias por W o caminho m arítimo da índia As cartas de Vespúcio e os seus absurdos .
estava pràticamente " descoberto havia 5 Da sua · leitura conclui-se que ele desco-
anos ... .. .. . .. . .. .. ... ....... ... ... ... . .. . ... ... . .. . 329 nhecia a ai-te náutica, pelo menos quando
Desinteresse dos Re'is de Portugal por terras as escreveu . ..... . ....... ... ...... ..... ... ....... . 363
ocidentais ..... .. .................. . .. .... ... ...... . 330 Impropriedade do nome atribuído ao Novo
A crença n a existência de terras a ocidente Mundo. «América», nome convencional . .. 376
e a sua provável exploração por navios
portugueses antes de 1500 .... .. ..... .... . . ... . 332
Elementos fundamentais da concepção da
viagem de Colombo, todos de origem por- CAPÍTULO IV
tuguesa . ... .. . .. . .. ... . . .. .. .. .. .. . ........... . .... . 333 fNDIA 383
O descobrimento da América resultou da
iniciativa do Infante D. Henrique, do des-
cobrimento dos Açores e da abertura do I - O descobrimento do caminho marí-
mar alto aos n avios portugueses no sen- timo para a lndia ....... ... ... .... . 385
tido do descobrimento do caminho m arí-
timo para a Guiné e índia ....... .... .. .... . 335 A chegada de Vasco da Gama à fndia em 20
de Maio de 1498, depois de descoberta
l l - Cristóvão Colombo ....... ......... ... . . 337 a maneira prática de atingir terras da
Ásia, precedida de meio século de prepa-
A lenda de Colombo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33 7 ração . .......... .. .... ...... ..... ..... . ... . .......... 38 ~
E xageros e erros na interpret ação da faça- O Infante D. Henrique, D. J oão II, Bartolo-
nha de Colombo .. ... .. ............ .... ... ...... -. 33 meu Dias. Pero da Covilhã. O «segredo»
Crítica do plano de Colombo e da preparação que m antinha oe Espanhóis nas suas ten-
náutica da viagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 342 tativas ocidentais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 388
Falsa atribuição a Colombo da descobertá Conclusões náuticas da viagem de Bartolo-
dos «Ventos gerais», do «noroestar» da meu Dias . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . 390
agulh a, do Gulf Stream e do Mar de Sar- Naus, em lugar de caravelas, para a tra-
gaço ····· ········· ·· ··· ····· · ·············· · ···· ···· · · 345 vessia ... . .. .......... . ...... ... ......... .... .... ... .. 392
Cuba, a terra atingida e não a Ásia como O regime dos ventos e dias correntes n o
foi convicção (sincera ou não) de Colombo 347 . Atlântico Central e Ocidental . . . . . . . . . . . . 392
 .....
.'.~:· ·: '

558 A NÁUTI CA DOS DESCOOR I MENTOS

1N DI CE 559
PÁG INAS
lll - O Diário da primeira viagem de
Currentes contrárias na Afrlca Oriental Vasco da Gama à l ndia .. ......... . 440
encontradas por Bartolomeu Dias. As
informações de Pero da Covilhã até So- O «Roteiro» e as suas sucessivas edições . .. 44o
fala. As monções no fndico ..... ........ . ... . 394 Comentários de Kopke, Herculano, Stanley,
Resenha da primeira viagem de Vasco da Sophus Ruge, Ravenstein, Hümmerich,
Gama à 1ndia . .... .. .. ....... . ................. . . 396 Dinis de Ayalla e F ontou ra da Costa . . . 440
A complkação geométrica da viagem s.uge1·e O autor do «Roteiro» ... .. .. . ...... . ........... . 448
liUÚ8 ciência que aventura . ........ . .. :. :... · . 400 Descrição da viagem nos termos do «Roteiro» . 452
Vasco da Gama e Colombo. Necessidade do Complemento c6njectural correspondente à
comentário náutico às grandes travessias · parte omissa do · «Roteiro» até ao regresso
maritimas ..... ......... . ..... .......... .. .... : . .. . . 402 a Lisboa ....... .... .. .............. . .... ...... .. . . 486
Os navios da Esquadra .......... . .... .. .. . ..... . . 491
Os rios «do Infante» e «dos Bons Sinais» . . . 493
I I - Discussão sobre a rota seguida por A travessia do ocea no fndico ............ . .... . 496 .
Regresso da í ndia a Melinde .. .. ........ . .. .. ... . 505
V asco da Gama entre Santiago e
Chegada de Nicolau Coelho a Lisboa · ····: ··· 512
São Brás .. .... .. .. .... . .... .. .. . ... .. . 403

O «Roteiro» da viagem e os seus comentários 404 IV- A rota de Vasco da Gama nas «Len-
O <descobrimento do Mar» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 406 das da lndta» ... . 00 ..... . 00 00.... ... . 515
A primeira viagem de Vasco da Gama nos
cronistas. Nenhum compreendeu o signi- ' As «Lendas» e o seu tradutor H . Stanley 515
ficado da c rota do mar largo» . . . . . . . . . . . . . . . 408 Sophus Ruge, outros autores e as cLendas> 519
Romantização da viagem. Criticas de alguns O opúsculo de F. Dinis de Ayalla e a crítica
autores estrangeiros. A edição naci ona l náutica de Ravenstein ao «Roteiro» . . . . . . 521
d' cOs Lusíadas» e a História da Expansão O estudo do Dr. Hümmerích ..... ......,. . . . . . . 523
Portuguesa no Mundo . . . .. . . . .. . . . . .. . .. . .. . . 419 A s «Lendas» e as viagens de Bartolomeu
Ravenstein e o cRoteiro» . ..... . . ... ......... .... 426 Dias e Vasco da Gama ........ ...... .. ......... 527
A rota em dupla curva no Atlântico citada
nos mais antigos Roteiros da· índia. Ves-
púcio na cquarta viagem» e o percalço de
D. Garcia da Cunha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 430
Súmula do «Roteiro», compulsado junta-
mente com as cCrónicas» e as modernas
cartas de ventos e correntes . . . . . . . . . . . . . . . . . . 432
Conclusões de carácter náutico sobre a nave-
gação de V asco da Gama na sua primeira
Ti agem à fndia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 433
'·f J.~ •••

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ESBOÇO ESQUEMÁTICO DAS ROTAS DOS
1 ~~
NAVEGADORES DO MAR LARGO NO SI!·
CULO DE QUINHENTOS E DA NAVEGAÇÃO
.À VELA DO ALMIRANTE GAGO COUTI·
/ // NHO, NOS MESMOS MARES, COMO OFICIAL
~ I 11 ; " I r y_ . J .. . c.!'J~,i l//1} I I ~ ::::::o, -I <1Xf\ DE MARINHA E coMo PAS-
sAGEIRo DE UMA BARCA DE
LEGENDA
QUATRO MASTROS.
- Rotas nos Descobrimento~.
Viagens exclusivamente à vela se-
gundo os «Livros de Derrotas» do
oficial de Marinha C. V. Gago
·~ \ I ~-=
r..... ' '\ rI ' 41''t7 '-• I I Coutinho.
NOTA - As rotas interrompid~s corres·
pondero a navios mixtos navegando com
caldeiras apagadas.
Nas viagens à vela está inclyída a da
barca mercante «Foz do Douro», em que
o Almirante veio de passageiro, mas obser-
vando diàriamente com o astrolábio dos
navegadores de quinhentos.

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VE NTOS GERAIS À IDA --+ CORRENTES
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VENTOS VAR IÁVEIS OC<) VENTOS Á VOLTA ·----