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« A FITA”: OBJETO E DUPLO NA INVENCAO DE UM CORPO POR UM JOVEM AUTISTA Jeanne Marie de Leers Costa Ribeiro Solicitada a dar meu testemunho sobre o trabalho desenvolvido no projeto Circulando, escolho aqui trans- mitir 0 que pude aprender com os jovens autistas que participavam das atividades do projeto e com os clini- cos' que os acompanhavam, no periodo em que fiz parte da equipe como supervisora. Esse projeto oferece um dispositivo de trabalho clinico para adolescentes e jovens autistas e psicé- ticos atendidos desde a infancia no Instituto Phili- ppe Pinel.’ Os impasses surgidos no trabalho com as “criangas que cresceram” e que tinham o servico in- fantil como um ponto de ancoragem, 0 que, para os pais, também era uma referéncia importante, leva- ram-nos a pensar em uma forma de acompanhamen- to diferente daquele até entdo oferecido as criangas. Com a entrada na puberdade, novas questées se colo- cavam. Alguns pacientes ja eram jovens adultos, mas © encaminhamento para servicos de atendimento a adultos nao se sustentou. ee ntes que acompanhayam 0 irculando: 1. Denominamos “clinicos” os analis trabalho dos jovens e adultos nas atividades do projeto Ci estagiarios do setor infantil do Instituto Philippe Pinel e alunos da Btaduacao do Instituto de Psicologia da UFRJ € da Pos-Graduagao em Teoria Psicanalitica. ~ . 2. O setor infantil do Instituto Philippe Pinel é hoje o CAPSi Mauricio de Souza, 64 Fragmentos do acompanhamento de Pedro, com 18 que comega a frequentar as atividades ham o arduo trabalho empreendido tativa de localizar 0 g0zo que o de- ara construir um corpo, trabalho com esses su- anos na época em do projeto, testemun! por esse rapaz na ten! vastava e suas invengoes P: Veremos também como 0 jeitos convoca os profi sionais a invengdes singulares em suas intervengoes € como as contingéncias surgidas nos circuitos pela cidade tiveram efeitos de surpresa in- teressantes nesse caso. ‘As discussdes em equipe, no trabalho de supervisgo, a partir do testemunho dos encontros que cada clinieg teve com Pedro, possibilitaram a construcao de uma dire- cao de trabalho nesse caso. A posteriori, foi possivel reco- Ihermos os efeitos desse trabalho e aprendermos com ele. Os autistas nos ensinam muitas coisas, se nos pro- pomos a escuta-los. Ensinam-nos, de forma contunden- te, que um corpo nao é dado, mas se constréi. . “A crenca de que somos ou temos um corpo tem sua origem no estadio do espelho, na identificacéo com a crianca especular. Esse corpo que nao somos nem temos, mesmo assim, é a Unica consisténcia da qual o ser fa- lante é capaz. De fato, o ser falante necessita de seu corpo para estar vivo. O corpo é a substan- cia, a res potencialmente gozante que permite que o Outro entre no sujeito, que o Outro se encarne e lhe dé vida (Jimenez, 2008, sem indi- cago de pagina). Os psicdticos e os autistas nao participam dessa crenca. O que experimentamos, como sendo um corpo que habitamos com alguma estabilidade, se constitui a partir de uma operacio do significante sobre 0 £020- No caso dos autistas, a incidéncia do significante sobre 0 Co po produz um gozo que nao é simbolizado, xada por essa experiéncia de gozo nao é aj nao apagamento do Um do gozo marca o ¢ corpo que goza de si mesmo” (Laurent, 20 . ————— na descrico Psiquiatrica sobre o au- tismo, fendmenos corporais que revelam esse corpo goza de si mesmo, um corpo encapsulado, No ae Pedro, a mae relata que ele, quando crianga, nao chi le va quando se machucava e parecia nao sentir dor. oe Por falta da subtragao do objeto, que Lacan deno- minou objeto a, nao se estabelece 0 circuito pulsional que localizaria 0 gozo em torno das zonas erdgenas e nao ha instauragao da imagem corporal unificada. O gozo aparece, assim, disperso pelo corpo e devastador. Entretanto, na clinica e nos testemunhos dos autis- tas que relataram em livros suas experiéncias, podemos constatar invengées singulares, em cada caso, para lo- calizar 0 gozo e construir uma ordenacao corporal. Por meio de recursos sofisticados, ou mais rudimentares, os autistas nos ensinam que é possivel suprir a falta da unidade corporal através de invengées inéditas para dar sustentagdo ao corpo. Pedro iniciou o tratamento no setor infantil do Pi- nel com sete anos. Aos quatro anos, teve 0 diagnostico de autismo feito por um neurologista. Chegou a falar algumas palavras, mas parou de falar e retraiu-se. Quando comega o tratamento, Pedro apresenta di- ficuldade para entrar e sair da sala de atendimento. oo e fecha portas, acende e apaga a luz. Cola fita ades oa em sua boca, tamponando-a. Durante todo o seu perce SO na instituicdo, o objeto “fita” e o intento de a buracos do corpo ou perfura-lo vao aparecer de we maneiras em sua tentativa de construir um fate de uma Em seu prontuario, encontramos © eee Tapa atividade que Pedro realiza de forma me’ sassinb e as 0s orificios do corpo de bonecas com ma A marca dej- Pagada. “Esse rpo como um 12, p. 28), 66 coloca enfileiradas no chao. E interessante hotar que 0 ar os orificios do corpo das bonecas indica fa ae ae hecimento desses orificios. Tampona e ao que ha recon sublinha que ha furos no corpo, mesmo as do ato de acender e apagar as luzes F A ——- vai-se deslocando para um interesse Sate objeto lampada. Traz para o atendimento oe pega na caixa de ferramentas do Pai, A mie relata que sua brincadeira Predileta é — lampa- das e fios elétricos. “Faz ligagdes pela casa toda’, Quando entra e sai da sala, no que faz limite entre o dentro e o fora, no umbral da porta, abaixa-se, em uma posigao que parece a dos muculmanos em auns Tezas. A partir desse ritual e com seus objetos Pprivilegiados na mao, entra e sai mais facilmente da sala, o que até entao era muito dificil para ele. O objeto lampada e o ritual na saida e entrada das salas parecem tentativas de construcao de bordas. Acreditamos que, a partir do encontro com parceiros que acolheram suas Pequenas invengées, Pedro pode circular pela instituigdo sem ser invadido por um gozo insuportavel, O inicio da puberdade foi um momento critico para Pedro. Passa a se masturbar compulsivamente na frente de todos, Devastado Por esse gozo estranho, que nao a pana Sralizar, fica agitado, nao dorme, anda de um Mar 05 otificios ne chora muito, A tentativa de tampo- de uma forme & corpo val aparecer, nesse momento, em seu anus omen Passa ao ato enfiando objetos ig Seus ouvidos, ao mesmo tempo em Ne procura faze. i a aD Pe fazer furo €m seu corpo, utilizando-se de Buns objetos Para ferir sua cabeca, | tuicdo da imagem especular, um “invélucro que venh; costurar-se neste em torno dos anéis Orificiais” (L, a 1960, p. 682). . ‘acan, A psicanalista’ que acompanha Pedro, hesse mo- mento, no setor infantil do IPP, relata que ele come a se estabilizar a partir do trabalho que realiza com fitas de video. Amarra essas fitas na sala em que é atendido, tracando um Percurso por todo 0 servico, A equipe = empenha em notificar esse trabalho de amarragao. Apa- zigua-se, consegue agora suportar a espera para 0 inicio de uma atividade. Dorme bem e mostra-se mais calmo, Aos 18 anos, Pedro é encaminhado para partici- par do trabalho clinico realizado pela equipe do projeto Circulando. Continua sendo atendido no Pinel. O caso é discutido com a equipe do servico infantil do hospital. Dois clinicos 0 acompanham, de inicio, em peque- nas saidas pelo campus da universidade e arredores.* Pedro sempre comparece, trazendo um objeto privile- giado por ele: uma fita de video. Em supervisio, discu- timos a fungdo desse objeto para Pedro. De inicio, Pedro se apresenta para as pessoas mos- trando a fita de video e dizendo: “a fita”. Nao aceita que ninguém toque em suas fitas e nao se separa delas em momento algum. A “fita” aparece, assim, como um objeto autistico, que tem a fungao de defesa contra a angustia, fazendo barreira ao mundo exterior. Maleval (2009) aponta para 0 fato de que 0 objeto autistico pode também constituir-se como um recurso para regular 0 80z0 e localiza-lo numa borda, permitindo uma media- ¢o na relacio com o outro. Atia Alva ¢ Carvalho & 3. Agradecemos a Marcia Gomes, Katia Alvares de c an Claudia Cadaval, psicanalistas que acompanharam eee mentos diferentes de seu percurso no Pinel, pelos rela de seus atendimentos em prontuario. ern 4, Bettina Mattar e Rafael Ferreira Dias sao 0s ©! panham. a 68 Em um segundo momento, Pedro Passa a fita no alto de uma parede, porta ou muro, “se -a cair, desenrolando-a até 0 chao. Realiza see procedimento a partir de alturas diferen tivesse medindo espagos. Na supervisio, levantamos a hipétese de que fi agora parecia ganhar uma nova fungio, a de um A ta que realiza medidas, constréi espacos. Uma espécie qu padrao de medida, uma invengio singular desse — frente a falta do padrao de medida resultante da as cdo da extragéo do objeto e da inscrigéo simbélica da castracao. Em uma saida a um campo de futebol localizado no campus da universidade, os clinicos introduzem “uma brincadeira”. Trata-se agora de uma invencao por parte dos clinicos. Brincam de medir, com a fita, a altura deles e a de Pedro, que consente com a brincadeira. Quando Bettina esta distraida sem ocupar-se dele, Pedro pegaa fita e comeca a medi-la. Assim, um mede 0 outro, utili- zando-se do objeto que agora o jovem consegue ceder. Bettina e Rafael iniciam outra brincadeira: ver quem consegue pér a mAo na trave do gol. Pedro entra na brincadeira e ri muito de Bettina, que nao consegue alcangar a trave, por ser mais baixa. Aqui, constatamos uma passagem importante. A fita, um objeto autistico de que Pedro nao podia se desgrudar, passa a ser um ob- jeto de que pode langar mao para tomar certa distancia do outro, marcar diferencas: um é baixo, 0 outro é alto. Por um acaso, no meio desse jogo de “medidas' entre os clinicos e Pedro, dois homens com instrumen- tos de topografia chegam ao campinho de futebol para realizar medidas topograficas, Com uma enorme trena, iniciam seu trabalho. Os clinicos se surpreendem Ge esse fato inesperado, e Pedro fica extremamente inte- ressado € surpreso também. Chega perto para obser~ varlos, aproxima-se da trena, volta novamente par@ 0 ‘BUrar €ndo. Mesmo es, como Sees. _ SeesteeeeteeeeCeSEEeETEEEES lugar onde estava e, com sua fita, mede o terreno, orgu- Jhoso de seu trabalho. Langa olhares para os topdgrafos, estabelecendo assim um “didlogo”, e os segue de longe no trabalho de medidas em que esto empenhados, rea- lizando também 0 seu. Os clinicos, a partir de uma “invengao”, notificam como uma mensagem recebida o trabalho de construir uma medida que Pedro realizava solitaria e infinita- mente com as fitas. Agora é possivel ceder o objeto fita. O prazer que Pedro extrai da brincadeira de “medidas” atesta uma cessao, uma perda de gozo, e, a partir dai, a possibilidade de trocas com 0 outro. Esse pequeno fragmento clinico do trabalho no projeto Circulando nos ensina sobre o dispositivo de trabalho que criamos. Uma diregao de trabalho que im- plica escutarmos os autistas em suas invenc6es, sermos déceis ao trabalho que ja realizam solitariamente e, ao mesmo tempo, abertos ao imprevisto. Constatamos que as contingéncias e surpresas sur- gidas na circulagéio pela cidade podem abrir caminho para que algo do real, que acossa os sujeitos autistas, possa circunscrever-se. Acreditamos que, nesse episé dio, a surpresa dos clinicos, dos topégrafos e de Pedro permitiu certo esvaziamento da consisténcia do Outro, abrindo espaco para que esse jovem pudesse localizar- -se no mundo com sua invengao singular. Apés esse encontro, Pedro nao esta mais colado ao seu objeto, muitas vezes, esquece a fita, ou corta alguns pedacos desta, deixando os restos cairem no percurso pelas ruas, e passa a se interessar por outras atividades. Participa de uma oficina de pintura e comega a de- senhar pessoas. Sio desenhos que se constroem com 0s tragos da fita de video. Pedro desenha uma figura hur mana com o corpo feito por buracos, como os do rolo da fita: cabega, tronco, pernas, bragos, pes, miios e um pé- nis. Nomeia-se mostrando o desenho: “Pedro”, Ao lado 69 70 dessa figura, seu objeto: “a fita”, ainda presa ao corpo por um fio. Eis o seu desenho: “Pedro” Lacan, ao comentar a brincadeira do neto de Freud, conhecida como jogo do Fort-Da, refere-se ao carretel como algo que se destaca do corpo da crianga, mas que ela ainda mantém puxado por um fio, como sendo “a automutilagao a partir da qual a ordem da significan- cia vai se por em perspectiva” (Lacan, 1964/1985, p. 63). Faz-se necessdria a perda do objeto, uma extracio no Corpo, para que se constitua uma primeira articulagio significante: Fort-Da. O carretel aqui ja é um substituto do objeto perdido. No caso de Pedro, nao ha a inscrigao simbélica da perda. Em seu desenho, Pedro constréi um corpo, repre- Senta-se na imagem que ja tem uma unificagéo, mas ha ainda 0 objeto “fita” preso por um fio. Nao se trata aqui da inscricao da perda do objeto, de uma extracao, como no jogo do Fort-Da. Ha uma exteriorizacao do objeto que permite essa invengao singular de uma unidade corporal. Com seu objeto, Pedro constréi um corpo a partir do recurso ao duplo real. Rosine e Robert Lefort (2003) cor ae duplo como um encontro estrutural €ssencial no autis- mo. Trata-se de um duplo real e nao do duplo especular, do transitivismo. p O duplo pode ser um objeto, Passivel de ser con- trolado pelo sujeito, seguindo suas exigéncias de um mundo seguro e previsivel e pode servir Para tratar o gozo desregulado e excessivo, O apoio sobre um objeto que é, ao mesmo tempo, condensador de gozo e uma forma consistente, pode vir a dar um enquadramento, construir um limite corporal. Pedro nos mostra que o duplo real autistico pode-se constituir como uma su- pléncia ao imaginario. Pedro, hoje, esta mais falante, circula pela cidade, é atendido em um servico de satide mental para adultos e frequenta uma oficina de teatro no projeto Circulan- do. Nunca mais apresentou crises ou desencadeamento. Continua com sua producao de desenhos. Ao seu estilo, apoiado sobre o objeto “fita”, construiu um corpo e um mundo relativamente habitavel. vay 2 REFERENCIAS MENEZ, S. Trabalho apresentado em Jornada de Curtis da Escola Brasileira de Psicandlise, Secéo Rio. Rio de Janeiro, 2008, mimeo. LACAN, J. (1960). Observacao sobre o relatério de Daniel Lagache: “Psicanalise e estrutura da per- sonalidade”. In: . Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 682. LACAN, J. (1964).O Seminario, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicandlise. Rio de Ja- neiro: Zahar, 1985. LAURENT, E. O que nos ensinam os autistas. In: MURTA, A.; CALMON, A.; ROSA, M. (Orgs.) Autismo(s) e atualidade: uma leitura lacaniana. Belo Horizonte: Editora Scriptum, 2012. p. 17-44. LEFORT, R. La distinction de l’autisme. Paris: Edi- tions du Seuil, 2003. MALEVAL, J.-C. L’autiste et sa voix. Paris: Editions du Seuil, 2009, OLIVEIRA, R. A, 7 A invengao do corpo nas psicoses. Sao Paulo: Biblio ; * , teca 24x7, 2010.

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