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A LIBERTAÇÃO DOS PRESOS DO TARRAFAL EM 1 MAIO DE 1974

Miguel Judas
Oficial da Armada Reformado

30 de Outubro de 2008

Falar da libertação dos presos políticos do Tarrafal é falar sobre:

- o processo de tomada dessa decisão e os seus protagonistas;

- as opções que se confrontaram e os respectivos fundamentos

- do seu significado político estratégico para o futuro de Portugal.

1. Quanto à decisão e seus protagonistas

a) A decisão foi formal e conscientemente assumida pelo então


Comodoro Pedro Fragoso de Matos, Com.te Chefe das FFAA em Cabo
Verde e Encarregado do Governo na sequência da demissão do
anterior Governador na sequência do 25 de Abril.

Não foi uma decisão fácil para o Comodoro na medida em que ela
contrariava abertamente as orientações estratégicas e pressões da
Presidência da República (Gen. Spínola) e do Governo de então no
que respeitava à política colonial.

Os objectivos destas entidades consistiam em levar as colónias


portuguesas à aceitação de soluções neo-colonialistas e a conservar
uma influência relevante de Portugal na política africana, ao serviço
do imperialismo, designadamente no prolongamento dos regimes
racistas na Rodésia, na África do Sul e na Namíbia, tal como já
acontecia no tempo de Salazar e Caetano.

b) Ao lado do Comodoro Fragoso de Matos e apoiando-o na sua decisão


encontrava-se o MFA de Cabo Verde, ainda em fase de formação
mas já dotado de clarividência política e determinação na defesa dos
interesses de Portugal e dos povos colonizados.

Desejo referir especialmente, entre muitos outros oficiais, sargentos


e praças dos navios da Armada destacados no território e das
guarnições do Exército da Praia e do Mindelo, o então Major Loureiro
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dos Santos, o Capitão Goulão, os Comandantes Ferreira de Gouveia
e Alves Correia, os Primeiros-Tenentes Vidal Pinho e Cambraia
Duarte e o Alferes Gonçalves. Pouco depois da libertação dos presos
do Tarrafal veio juntar-se ao MFA de Cabo Verde o Capitão Torres
Mendes, o qual, pela sua capacidade pessoal de julgar e decidir
politicamente e capacidade operacional e de liderança militar, veio a
desempenhar um papel central em todo o processo de transição
pacífica para a independência de Cabo Verde.

c) Mas se aqueles foram os protagonistas mais directos na decisão, não


queremos deixar de aqui registar aqueles que, pelos seus exemplos e
lutas concretas, mais inspiraram a tomada de consciência
democrática dos militares de Abril e que, de algum modo, levaram a
chave da Liberdade ao Campo do Tarrafal:

- Em primeiro lugar, os povos em luta das colónias portuguesas os


quais, pelo seu heroísmo e acção política e militar coerentes
contribuíram, pelo exemplo e a punição, para que os militares
portugueses desenvolvessem a consciência política e humanista
que conduziu ao 25 de Abril. Em seu nome, do lado de dentro, os
patriotas angolanos, guinéus e caboverdeanos de quem não
sabíamos o nome e que hoje aqui estão representados; do lado de
fora, lá estavam Eduardo Mondlane, Samora Machel, Agostinho
Neto e, de modo particular, Amílcar Cabral;

- Também lá estavam, a empurrar as nossas decisões e


determinação, os ex-presos portugueses no Tarrafal, os mortos e
os sobreviventes, entre os quais os aqui presentes Edmundo Pedro
e Joaquim de Sousa Teixeira, mas também, outros camaradas da
ORA como Faria Borda e Manuel Guedes e o arsenalista
Secretário-geral do PCP Bento Gonçalves, de quem havíamos
aprendido as “Palavras Necessárias”.

- Estavam lá todos os anti-fascistas e anti-colonialistas portugueses,


desde as correntes republicanas, religiosas e socialistas até
Gabriel Pedro, irmão do Edmundo, o qual, já muito avançado na
idade, não quis deixar de participar na acção da ARA que fez
explodir o navio Cunene.

- Estavam lá a empurrar-nos, o heróico povo vietnamita, a grandeza


democrática de Salvador Allende e, em nome de todos os
revolucionários-rebeldes, Ernesto Che Guevara;

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- Naquele momento, a guiar os nossos actos e pensamentos,
estavam lá os gemidos dos milhões de africanos durante séculos
levados como escravos, o sofrimento dos que ficaram, despojados,
e os gritos de angustia dos “flagelados do vento leste” espalhados
por todas as ilhas de Cabo Verde; à sua frente, as vozes de
comando dos libertadores Patrice Lumumba, Nelson Mandela e do
mítico Capitão Ambrósio.

Só lá não estavam, naquele 1º de Maio, aqueles que em todas as


épocas e locais do Mundo têm procurado viver à custa da exploração
e da sonegação da plena dignidade humana dos outros Homens,
aqueles cuja vocação é, será sempre, criar novos “Tarrafais”.

d) A libertação dos presos do Tarrafal foi, por isso, um acto colectivo de


todos os lutadores pela Liberdade, pela Democracia e pela Igualdade
entre os Homens.

No entanto, porque a História também é feita de pequenos mas


heróicos gestos praticados no local e na hora certos, parece-me justo
recordar e homenagear a coragem democrática, a consciência
humanista e, também, a visão patriótica do Comodoro Fragoso de
Matos, o qual, por conhecimento directo, tinha plena consciência que
a melhor defesa dos interesses estratégicos de Portugal passava por
uma cooperação livre, voluntária, respeitosa e mutuamente
vantajosa entre o povo português e os povos africanos libertos da
dominação colonial.

2. Quanto ao enquadramento e implicações políticas da


libertação dos presos do Tarrafal

a) A decisão da libertação dos presos foi condicionada pelo debate que


já se fazia sentir tanto em Cabo Verde como por todo o país, entre
duas concepções diferentes quanto à democratização do país e
quanto á futura estratégia de desenvolvimento de Portugal.

De um lado estava uma concepção inspirada no programa da


“revolução democrática e nacional” proposto pelo PCP e pelas
referências programáticas saídas do Congresso da Oposição
Democrática de Aveiro de 1973, a qual era sustentada pelo grosso
mais jovem do MFA.

Segundo esta concepção, a democratização de Portugal era


inseparável da descolonização, da participação social alargada e de
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uma estratégia de desenvolvimento independente do imperialismo
internacional, baseada na cooperação livre e igual entre países e
povos. Isto é, apostava no trabalho e no autêntico
empreendedorismo nacional e na amizade e cooperação
internacional.

Do outro lado, estava uma concepção baseada na democracia


meramente representativa, na manutenção do poder económico dos
grandes grupos “modernizados” e dos agrários, na manutenção de
uma influência e dominação neo-colonial sobre os territórios
africanos e no perfeito alinhamento estratégico com os EUA e a
NATO.

A primeira dessas concepções teria de ser concretizada pelo método


da “tentativa e erro”, qual segundo “caminho marítimo para a Índia”.

A segunda, não era mais do que a continuação de estratégias


passadas, que já vêm desde D. Manuel I, em que as elites dirigentes
do país, políticas e económicas, de características autoritárias,
ociosas, desafectas de qualquer tipo de risco empresarial e
tecnicamente incapazes, preferem viver de rendas, de dinheiro fácil;
primeiro, da pimenta da Índia, depois do ouro do Brasil, a seguir do
tráfico de escravos, mais tarde, da exploração de alguns recursos
naturais das colónias e da repressão aos trabalhadores

Daí que as correntes conservadoras polarizadas à volta do Gen.


Spínola tentassem criar, à pressa, nas colónias, movimentos políticos
pró-Portugal, federalistas, que se opusessem aos movimentos de
libertação internacionalmente reconhecidos, projecto que, nas
condições concretas, era totalmente inviável e iria agravar
dramaticamente os conflitos armados existentes.

Esta corrente era animada por todo o chamado “mundo ocidental”, o


qual gostaria de poder continuar a contar com Portugal como
instrumento de retardamento do processo de libertação de toda a
África austral, designadamente a África do Sul, a Rodésia e a
Namíbia.

No processo de decisão sobre a libertação dos presos do Tarrafal


estas concepções defrontaram-se, tanto pelas pressões do PR e do
Governo sobre o Comodoro Fragoso de Matos como por acção dos
círculos mais conservadores em Cabo Verde: alguns militares e
outros funcionários ligados à administração colonial, animados por

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uma leitura parcial do “confuso” Programa do MFA quanto às
questões coloniais.

Assim, para assegurar o maior bloco possível de apoio à decisão,


tivemos de argumentar arduamente quanto:

- à necessidade de proteger a segurança das nossas forças nos


diversos territórios, designadamente na Guiné, estabelecendo uma
posição de credibilidade política e linhas de entendimento com o
PAIGC (O MFA da Guiné, estabelecera já mecanismos de contacto
directo com o PAIGC);

- a assegurar que o conflito armado não se viesse a estender a Cabo


Verde, o que seria tecnicamente fácil, designadamente depois dos
acontecimentos da Cidade da Praia em que uma tropa mal
enquadrada disparou e feriu dois manifestantes

- à “legalidade” e legitimidade política da libertação unilateral de


membros de movimentos político-militares que, à luz do
programa, ainda poderiam ser considerados como “beligerantes”.

Em consequência, conseguiu-se obter, em Cabo Verde, um consenso


alargado, mesmo junto de alguns militares conservadores, sobre a
justeza humanista e a conveniência política da libertação dos presos
dos movimentos de libertação.

b) Ao longo de 1974 e 1975, o MFA, muitas vezes com a


incompreensão de forças políticas ditas “progressistas”, desenvolveu
inúmeras acções tendentes à criação de uma elevada confiança
política com os movimentos de libertação e futuros dirigentes
nacionais dos novos países independentes. Tal aconteceu na Guiné,
em Cabo Verde, em Moçambique e em Angola.

Chegámos ao ponto de, já com graves fracturas no seio do MFA que


apontavam para a inversão do curso da Revolução, alguns termos
insistido em arrastar uma situação política que sabíamos
insustentável até ao 11 de Novembro de 1975, dia marcado para a
proclamação da independência de Angola pelo MPLA, facto que,
desesperadamente, o imperialismo pretendia evitar.

A criação de linhas de confiança e convergência política e de


cooperação prática com os novos países independentes foi
continuada por inúmeros militares do MFA e cidadãos de diversas
áreas de actividade ao longo destes longos anos que nos separam do
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1º de Maio de 1974. Muitas vezes à custa da sua marginalização no
seu próprio país.

Infelizmente, nos últimos mais de 30 anos, salvo em raros


momentos protagonizados pontualmente por alguns poucos políticos
de sentido mais realista ou independentes relativamente ao
imperialismo, a política governamental portuguesa tem seguido a
linha da influência e da ingerência em África atrelada aos interesses
das potências imperialistas, designadamente dos EUA, e da NATO.

Tais políticas subservientes só têm servido para nos fragilizar tanto


em África como no seio da própria Europa, mantendo as condições
de dependência de Portugal dos subsídios de subsistência que nos
são dados pelas grandes potências.

Porém, o tempo de mais esse ciclo de dinheiro fácil, o dos fundos


europeus, está a chegar ao fim. Talvez aí compreendamos, colectiva
e definitivamente, que temos de trilhar o nosso próprio caminho de
trabalho, de participação social democrática e de autonomia nacional
face ao imperialismo.

Pela nossa parte, gostaríamos que o gesto da libertação dos presos


do Tarrafal permanecesse como um marco não só de um passado de
grande aproximação entre os nossos povos, mas também do futuro,
para que Portugal e os restantes países de língua portuguesa se
reencontrem novamente num projecto comum digno do século XXI.

Com confiança política, respeito entre todos e sentido da


solidariedade, a CPLP poderia vir ser uma “Nova Fronteira” para
todos nós.

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